6167-Texto Do Artigo-22065-1-10-20220216

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 10

IDENTIDADE E EROTISMO NA Resumo: O erotismo sempre esteve presente na vida dos

seres humanos, e ao longo dos séculos foi temática em

LITERATURA CONTEMPORÂNEA diversos textos literários, porém ainda é um tema que


carrega muitos preconceitos, principalmente ao ser
DE AUTORIA FEMININA relacionado à mulher. Com isso, este trabalho tem como
sua principal reflexão as relações do erotismo na
construção da identidade feminina na
contemporaneidade. E a concepção de que a escrita
IDENTITY AND EROTISM IN erótica de autoria feminina possibilita falar do corpo
feminino como forma de construção identitária. Assim,
CONTEMPORARY LITERATURE em um primeiro momento, analisar-se-á a ligação entre
erotismo e identidade feminina, na pós-modernidade,
WITH FEMALE AUTHORITY apontando às várias possibilidades na abordagem do
erótico produzido e representado por mulheres. Neste
sentido a fundamentação teórica será baseada nas
concepções de Angélica Soares (1999), Georges Bataille
Ingrid Andrade Marques 1
(1987), Octávio Paz (1994), entre outros. Para tanto,
toma-se como corpus de análise, poemas contidos na
obra Guizos da Carne: Pelos decibéis do corpo (2014), da
escritora contemporânea tocantinense Lia Testa.
Visando, de tal modo, identificar a manifestação do
erótico na poesia, que apresenta o feminino não em
submissão ao masculino, mas como este quebra a visão
tradicional de erotismo.
Palavras-chave: Identidade. Erotismo.
Contemporaneidade. Autoria feminina. Poesia.

Abstract: Eroticism has always been present in the lives of


human beings, and over the centuries it has been thematic
in several literary texts, but it is still a theme that carries
many prejudices, especially when related to women. With
this, this work has as its main reflection the relationships of
eroticism in the construction of female identity in
contemporary times. And the conception that erotic writing
by female authorship makes it possible to speak of the
female body as a form of identity construction. Thus, at first,
to analyze the problem of the connection between eroticism
and female identity, in postmodernity, pointing to the
various possibilities in the approach to the erotic produced
and represented by women. In this sense, the theoretical
foundation will be based on the conceptions of Angélica
Soares (1999), Georges Bataille (1987), Octávio Paz (1994),
among others. For this purpose, poems contained in the
work Guizos da Carne: Pelos decibéis do corpo (2014), by
contemporary writer Lia Testa are taken as corpus of
analysis. In such a way, to identify the manifestation of the
erotic in poetry, which presents the feminine not in
submission to the masculine, but how it breaks the
traditional view of eroticism.

Keywords: Identity. Eroticism. Contemporaneity.


Female Authorship. Poetry.

Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). 1


Especialista em Educação e Linguagens (UEG). Mestranda em Letras/Litera-
tura – Universidade Federal de Tocantins (UFT).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5662878213315131.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6215-4943.
E-mail: [email protected]
33 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

Introdução
Nos últimos anos discussões sobre a sexualidade feminina, e movimentos que lutam
contra dominação do corpo feminino têm ganhado a cada dia mais espaço na sociedade.
Mui-tas escritoras têm se destacado ao abordar o erótico em seus textos. Angélica Soares
em A paixão emancipatória, afirma que a forma como os textos contemporâneos tem
apresentado o erótico trazem novos olhares, percepções e um novo imaginário relacionado
a isso, e que “a dimensão da sexualidade [...] é forte componente das preocupações e da
luta pela emancipa-ção feminina” (SOARES, 1999, p. 119).
A literatura de autoria feminina fundamentada, muitas vezes, nas teorias
feministas, possibilitou uma conscientização e uma maior liberdade de criação por parte
das autoras. Nes-ta pesquisa, pretende-se entender o texto erótico de escrita feminina,
como uma forma de libertação da sexualidade feminina e de construção da identidade.
As mulheres na Literatura assumiram um grande papel ao falar do novo, da
sexualidade, do erotismo e do amor. Neste sentido, uma escritora ao trazer o tema da
eroticidade, reafirma uma forma de resistência ao preconceito e a dominação patriarcal,
dando poder a autonomia e a liberdade feminina, uma forma de emancipação feminina e
literária, a partir do erotismo dos corpos e da linguagem, como afirma Michel Foucault, “o
que me parece essencial é a exis-tência, em nossa época, de um discurso no qual o sexo, a
revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a promessa
de uma certa felicidade estão ligados entre si” (FOUCAULT, 2019, p. 12).
O erotismo é inerente ao ser humano, já que, se fundamenta na constituição de sua pró-
pria existência. Portanto, atualmente, as mulheres conseguem falar sobre sexo e relatar os an-
seios mais íntimos femininos com um pouco mais de liberdade. Por meio da escrita é possível
apresentar um erotismo revolucionário, que rompe obstáculos e amplia o espaço feminino na
literatura e na sociedade. “O grande investimento poético no erotismo pelas mulheres parece--
me ter muito a ver com esse momento de intenso trabalho de conscientização da necessidade de
ruptura dos paradigmas repressores” (SOARES, 1999, p. 119).
Logo este trabalho pretende relacionar a característica humanizadora da literatura com
à construção da identidade cultural de uma sociedade, ao tentar proporcionar aos
leitores o interesse, por meio do ponto de vista feminino, pela literatura erótica.
Georges Bataille em O erotismo (1987), afirma que o indivíduo busca alcançar o
erotis-mo, para se completar, já que, na contemporaneidade os seres são vistos como
descontínuos. E ao buscar o estado erótico o ser busca a continuidade, a completude.
Octavio Paz completa, em A chama dupla: amor e erotismo (1994), que o erotismo é como
uma invenção da natureza e da cultura humana, o que denota os seres incompletos que
somos, colocando o desejo amo-roso como uma busca eterna por se completar.
Para a realização deste trabalho, no primeiro momento foi feito um estudo sobre o
tema proposto: as relações entre erotismo e identidade feminina na contemporaneidade. A
impor-tância da escrita feminina como forma de emancipação. A possibilidade de construção
da iden-tidade feminina através do uso do corpo no erotismo. Ainda, abordaremos conceitos
sobre o desejo e a sexualidade feminina, dialogando, principalmente, com Angélica Soares
(1999), Georges Bataille (1987), Octávio Paz (1994), entre outros.
No segundo momento, foi percorrido o caminho erótico da leitura da poesia de
Lia Tes-ta, por meio da obra Guizos da carne: pelos decibéis do corpo (2014), foram
escolhidos alguns poemas desta obra ímpar da autora, em que percebemos o papel da
poesia e do poeta na contemporaneidade ao explorar a sexualidade. Procurou-se
entender os caminhos percorridos pela autora na escrita do texto erótico, e como o
texto se coloca a serviço da libertação da sexualidade, a favor do erotismo.

Identidade e erotismo feminino


Ao procurar entender o erotismo para mais que uma atividade sexual reprodutora, é
possível perceber uma ligação com os instintos humanos na constante busca por realização.
Sigmund Freud (1969) apresenta a sexualidade como caráter determinante na formação do
ser, além de ser responsável pela continuação da espécie, é um dos impulsos humanos mais
34 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

importantes.
A sexualidade e o corpo de uma pessoa, essencialmente, fazem parte de sua
constitui-ção, “a sexualidade e o desejo do sujeito encontram-se intrinsecamente
ligados ao sentido que esse indivíduo constrói de sua própria identidade” (MAFRA, 2006,
p. 2). Com isso, ao discutir sobre o corpo e o erotismo em relação a identidade, pode-se
entender que, também na se-xualidade, são muitas as identidades que se constroem, e
como afirma Stuart Hall (2001), a identidade está se transformando constantemente,
então, essa construção identitária estável, não é certa, fixa ou contínua.
Paz, ao discorrer sobre as muitas dimensões do amor e do erotismo, aponta que,
na atividade erótica, o indivíduo sai de sua descontinuidade para se entregar ao outro
numa ex-periência mística:

O ato em que culmina a experiência erótica, o orgasmo, é


indizível. É uma sensação que passa da extrema tensão ao
mais completo abandono e da concentração fixa ao
esquecimento de si próprio; reunião dos opostos, durante um
segundo: a firmação do eu e sua dissolução, a subida e a
queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A
experiência mística é igualmente indizível: fusão instantânea
dos opostos, da tensão e da distensão, da afirmação e da
negação, do estar fora de si e do reunir-se consigo mesmo no
seio de uma natureza reconciliada (PAZ, 1994, p. 100).

A partir desta percepção o erotismo atua como uma produção cultural de identidade na
sociedade, construindo e descontruindo ao mesmo tempo. Paz ainda afirma que o erotismo está
além da sexualidade porque implica em uma busca psicológica, uma característica da hu-
manidade, que nos animais encontra-se apenas o instinto de perpetuação da espécie, “é uma
invenção humana e não praticada por nenhum dos outros mamíferos” (PAZ, 1994, p. 106).
A definição de Paz, se aproxima à de Georges Bataille (1987), uma vez que, para
Bataille, o homem diferencia-se dos animais por sua capacidade de transformar o sexo
em uma ativi-dade erótica, “o erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele
o ser em questão” (BATAILLE, 1987, p. 20).
Para Anthony Giddens, em A transformação da intimidade, por meio do erótico é
possí-vel compartilhar sensações, ideias e experiências.

O erotismo é o cultivo do sentimento, expresso pela


sensação corporal, em um contexto comunicativo; uma
arte de dar e receber prazer. [...] O erotismo é a
sexualidade reintegrada em uma ampla variedade de
propósitos emocionais, entre os quais o mais
importante é a comunicação (GIDDENS, 1993, p. 220).

As relações humanas, as representações e a sexualidade, entre muitas outras, são


cul-turalmente estruturadas com base nas diferenças entre os gêneros, conforme
Tedeschi, estas formam uma socialização sexuada que:

Passa a ser reforçada na escola, bem como através dos meios de


comunicação (cinema, jornais, revistas). Uma vez que homens e
mulheres são educados de forma diferente, em consonância com
o que a sociedade define como “identidade feminina” e
“identidade masculina”, homens e mulheres passam a agir,
pensar, comportar-se, falar, discutir e enfrentar problemas de
forma também diferente (TEDESCHI, 2009, p.
35 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

38).

Estas representações, contribuíram para o domínio do sexo masculino, formando


cren-ças e ideologias, que geraram uma cultura que sustenta a condição de submissão e
inferiori-dade femininas. Modelos foram instituídos por uma ordem social e cultural,
que determinava padrões de conduta feminina e masculina a serem seguidas.
A propagação dessas ideias, desvincula a mulher da sexualidade e a transforma
em geni-tora, logo, qualquer revelação da eroticidade feminina é tratada como fora dos
padrões aceitos pela sociedade patriarcal. Em oposição a isso, os homens tinham sua
sexualidade explicitada e estimulada, tinham liberdade para sentir-se sexualmente
realizados e poder até ter muitas parceiras.
Por muitos séculos a sociedade utilizou da sexualidade como uma forma de poder,
con-trole e repressão. As mulheres eram excluídas do erotismo, tornando seus corpos
passivos, não eróticos, apenas reprodutivos. Para Foucault “Nas relações de poder, a
sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade:
utilizável para o maior número de manobras e podendo servir de ponto de apoio, de
articulação, às mais variadas estratégias” (FOUCAULT, 2019, p. 112). Contudo, na pós-
modernidade, o erótico pela voz da mulher representa a luta pela libertação de seu corpo.
O desejo e satisfação femininos, sempre foram vistos como não existentes ou em se-
gundo plano em relação ao homem. E a busca pela liberdade sexual feminina é a busca da
mulher pela construção de uma nova identidade, em que ela possa sentir-se livre, inclusive,
ou talvez principalmente, na sua relação consigo mesma, com seu corpo e sua sexualidade.
Para Zygmunt Bauman, ““sentir-se livre” significa não experimentar dificuldade, obstáculo,
re-sistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos [...] Sentir-se livre
das limitações, livre para agir conforme seus desejos” (2001, p. 26).
Soares analisa o tema no trecho a seguir:

A mulher que pensa e diz o erotismo livremente é a


mesma que pensa e diz o seu papel, enquanto construtora
da sociedade. São faces do mesmo processo. O
autoconhecimento erótico leva ao conhecimento do outro
e do mundo, e à consciência do poder de transformá-lo
em vontade própria (SOARES, 1999, p. 58).

Discorrer abertamente sobre as vivências sexuais femininas configura uma forma de


protesto, uma vez que contribui com o processo de reconstituição da identidade feminina.
Em que esta possa viver sua sexualidade como um evento natural, sem que seja algo
transgres-sor. Foucault aponta que isso não é uma tarefa fácil, “a repressão foi um modo
fundamental de ligação entre o poder, o saber e a sexualidade não podemos nos libertar
dela facilmente” (FOUCAULT, 2019, p. 11), porém as vozes femininas na literatura, nos
jornais, nas redes, entre outros, vêm gerando mudanças significativas nesse quadro.
Paz assinala sobre o papel da liberdade de expressão, política e intelectual, como
pre-cursor da reconstituição do ser na sociedade:

A sua conclusão é breve: os males que afligem as sociedades


modernas são políticos e econômicos, mas também são morais e
espirituais. Uns e outros ameaçam o fundamento das nossas
sociedades: a ideia de pessoa humana. Essa ideia tem sido a
fonte das liberdades políticas e intelectuais; também a criadora
de uma das grandes invenções humanas: o amor. [...] O diálogo
entre a ciência, a filosofia e a poesia poderia ser o prelúdio da
reconstituição da unidade da cultura. O prelúdio também da
ressurreição da pessoa humana, que foi a pedra
36 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

de fundação e o manancial da nossa civilização (PAZ, 1994, p.


145).

A linguagem torna-se o lugar da reconfiguração do real, e isso é encontrado com


maes-tria na Literatura, por meio dela é possível desconstruir os obstáculos que
impedem a igual-dade entre os gêneros. Ao mesmo tempo que pode trazer a presença
do prazer e do humor; a linguagem literária pode ser objetiva, confessional, de
representação e reflexão profunda, atuando, assim, na formação crítica do sujeito.
A literatura apresenta-se numa tentativa de apreensão e compreensão da sociedade. Com
isso, podemos observar, na literatura, a denúncia da necessidade do prazer feminino, além de
expor, de maneira clara, os anseios sexuais mais íntimos das mulheres pós-modernas, numa
sociedade que tem apresentado uma estimulação erótica consumista (BAUMAN, 2001), e sua
busca por libertar-se de uma imposição patriarcal estabelecida, conservadora e carre-gada de
preconceitos. Nas palavras de Paz é “o outro, a outra e seu complemento, aquilo que converte o
desejo em acordo: o livre-arbítrio, a liberdade” (PAZ, 1994, p. 47).
Cecília Meireles discorre sobre o despertar para as representações femininas, e a impor-
tância do papel da mulher enquanto escritora, que escreve a literatura com tanta qualidade e
expressão quanto os homens, mesmo estes, por muito tempo dominando o cenário literário:

Vemos como, de uma poesia quase essencialmente


doméstica, a mulher tem alcançado experiências idênticas a
do homem, no domínio literário. E vemos que essas
experiências não se resolvem apenas em composições
plasticamente arquitetadas, mas que, sob essa arquitetura
existe uma elaboração do espírito, uma inquietação e uma
investigação de caminhos interiores, com os recursos
inerentes à Poesia, isto é, por uma forma de Conhecimento
que não é nem científico nem filosófico. Não se pode dizer,
porém, que isso seja um privilégio da mulher; é um privilégio
dos verdadeiros poetas, apenas (MEIRELES, 1959, p.103).

Assim, para descontruir os ideais patriarcais que consolidaram a inferiorização


feminina, narrada pela voz masculina, é de suma importância, cada vez mais, a inserção
de autoras que falem da sexualidade na literatura brasileira, para que leitores tenham
conhecimento do ero-tismo por diversas perspectivas.
E por meio deste ponto de vista, uma autora ao relacionar o erotismo ao desejo e
a liberdade da mulher na literatura, nos presenteia com a criação da obra Guizos da
carne: Pelos decibéis do corpo (2014); escritora e pesquisadora contemporânea, Lia
Testa, reúne diversos poemas em que traz, com uma linguagem veemente, a vivência
dos mais íntimos desejos da “carne”, desejos estes colocados de uma forma desnudada
nas palavras, sem amarras e sem receios, que nos faz pensar que para liberdade erótica
feminina não existem mais limites, nem nas palavras, nem no sentir.
Lia Testa é uma escritora contemporânea tocantinense, que mostra em sua poesia uma
obstinação contra a repressão e a inferioridade feminina, quando esta traz o erotismo de uma
forma natural e singular em seus poemas, fazendo rupturas em paradigmas e a ordem patriar-
calista dominante. E embora a obra aqui analisada seja extremamente atual e relevante, até o
presente momento, recebeu pouco tratamento analítico. Seus poemas serão aqui reproduzi-dos
e discutidos, a fim de observar de que maneira a escrita erótica feminina favorece o empo-
deramento feminino, e como sua linguagem avassaladora possibilita o processo de construção de
uma condição feminina, redimensionando as relações entre homem e mulher.
37 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

A manifestação do erótico feminino em Guizos da Carne: pelos


decibéis do corpo de Lia Testa
Lia Testa é o nome artístico e literário de Eliane Cristina Testa, artista
contemporânea, professora Mestre em Letras e Doutora em Comunicação e Semiótica.
Escritora com traba-lhos poéticos premiados em concursos nacionais e internacionais,
tem grande importância na Arte e na Literatura tocantinense. Publicou obras como
Inquietações (2007); Guizos da carne (2014), Sanguínea até os dentes (2017), entre
outras. Artista visual, ilustradora de publicações, participou de eventos nacionais e
internacionais onde apresenta obras em exposições e mos-tras de arte.
A obra de Testa chama a atenção por sua complexidade e a atualidade do tema da
eroticidade, trazendo situações de reflexão, a constante busca do sujeito por encontrar-
se e os anseios do indivíduo contemporâneo. Com seu jogo de palavras e figuras de
linguagem, vocábulos são apresentados sem pudor, sem medo.

Lia Testa gosta de palavras que mordam ou que mordem a


si mesmas em ritos degustativos encantatórios [...].
Acredita que a poesia está em todos os espaços para
recodificar o corpo-vida. Tenta estabelecer/viver uma
íntima relação (e de atravessamento) com a palavra e
encontrar seu intenso e incessante tecido encoberto
(palpável ou impalpável) (LITERATURA BR, 2015).

No livro Guizos da carne: pelos decibéis do corpo, obra poética publicada em 2014,
temos uma coletânea de poemas que falam do erótico com uma naturalidade e
linguagem únicas. “O livro de Lia Testa toca no sensível tema da eroticidade, com a
autora nos guiando pelos caminhos da poesia, na qual usa a metáfora com requinte,
vivacidade e beleza” (RIBEIRO, 2014, p. 274).
No prefácio do livro, Eliana Yunes chama a atenção ao falar de suas impressões
acerca do texto de Lia: “Este livro de poesias nada tem de estreante, maduro domínio do
dizer que atravessa o corpo anunciando forças inominadas brotando com coragem e
engenho. Lia, poe-tisa, abre passagem à poesia” (YUNES, 2014, p.8).
No início da obra, é possível perceber a utilização de uma linguagem figurativa,
trazen-do a duplicidade de sentidos no poema fato cacófato desaforado ato: “como a boca
dela e a língua te tinha contado tudo / fato é que é essa fada / luta pela dona pelos buracos
das ruas / a cerca dela do caco do caso e do acaso [...]” (TESTA, 2014, p. 9). O poema dá a
entender que esta mulher (a fada/safada) é dona de si e pode ser quem quiser, uma mulher
que luta e uma mulher que não está preocupada com ajuizamentos sociais.
O erotismo é percebido por meio do jogo de sentidos em “como a boca dela” e a “lín-gua”,
aqui as palavras “comer” e “língua” estão associadas ao ato sexual. A ideia de duplicidade em
“cerca dela”, a cacofonia em “cadela”, aponta para uma certa autonomia da mulher; “caso” pode
simbolizar um relacionamento passageiro e “acaso” denotar o espírito livre desta mulher.
A autora brinca com as imagens, utiliza versos livres e poemas concretos. No
poema concreto da página dez, (em forma de seta para baixo) a primeira palavra que
aparece é “efê-mero”, sugerindo reflexões sobre a passagem e fluidez da vida: “[...] hoje
amanhã não sou / homem adiante bicho / bicho-gente que come / o sol a pino o sal da
terra gota errante [...]” (TESTA, 2014, p. 10). O ser humano é visto como um bicho, um
animal, com seus anseios, suas necessidades instintivas, primitivas, incontroláveis, que
“se alimentam do fogo original: a sexu-alidade. Amor e erotismo regressam sempre à
fonte primordial, a Pã e ao seu alarido que faz tremer a selva” (PAZ, 1994, p. 150).
No poema homônimo ao título da obra, a temática é desencadeada em um constante
jogo de metáforas, o que atrai a atenção por meio da escolha de palavras e significados:
38 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

Guizos da carne

I
a epiderme tem guizos
de carne
a epiderme tem derme
de orgias
a epiderme não dorme
de dia
a epiderme come o tempo
de noite
a epiderme mora na língua
de quatro
a epiderme se perde
na escrita a epiderme morde o corpo
da onça
e da moça
devagar

guizos da carne

II
eriçada a epiderme chia
chama oriki orixá
canto de lava na derme
onde os guizos da carne
comem devagar a moça
a onça da moça
pela ponta da boca
pela porta da sola
Pela ponta da língua
Sopro em estado de fala nômade
(TESTA, 2014, p. 11)

O poema apresenta algumas metáforas muito importantes para seu entendimento, a


palavra “guizos” (objetos ocos com bolinhas soltas em seu interior, que fazem barulho ao se-
rem agitados) pode significar alegria e agitação. A palavra “carne” está ligada ao ser, a
matéria, o corpo com instinto e desejo. A “carne” é o artifício que carrega o desejo dentro de
si, seu toque e a agitação dos corpos no movimento erótico, geram infinitas sensações.
No texto de Testa, o desejo e o erotismo são ressaltados na linguagem (palavras como
epiderme, orgia, morder, língua, corpo, comer, entre outras) mostrando o momento erótico,
desnudado pelo prazer, sem necessidade de explicação, apenas o sentir. A autora traz uma
linguagem crua e sem rodeios, desatada de padrões ou normas. Constata-se a preocupação
poética da autora em trazer uma linguagem que permeie e descreva a sexualidade e a neces-
sidade do desejo e do prazer. “Os poemas nos sugerem, de algum modo, que o sentimento
compartilhado de satisfação do desejo não é apenas ponto de chegada da experiência
erótica, mas também marco de partida para o equilíbrio global” (SOARES, 1999, p. 129).
Paz afirma que no amor, o desejo corporal pelo toque incita a união erótica:

O corpo do meu par deixa de ser uma forma e converte-se


numa substância informe e imensa na qual, ao mesmo
tempo, me perco e me recupero. Perdemo-nos como pessoas
e recuperamo-nos como sensações. [...] também é a
experiência da perda da identidade: dispersão das formas
39 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

em mil sensações e visões, queda numa substância


oceânica, evaporação da essência. Não há forma nem
presença: há a onda que nos embala, a cavalgada pelas
planícies da noite (PAZ, 1995, p. 148).

No texto erótico a sintonia começa quando o poema termina, pela palavra, tanto
o au-tor, quanto o leitor buscam a identificação. Diferentemente da realidade
dominadora que o envolve, o poeta, se liberta por meio da linguagem.
No poema matadora de touros, podemos perceber no eu lírico uma mulher que se
vê como agente de sua satisfação pessoal, seu prazer e desejo são fundamentais: “bela
centaura, égua esquiva de corpo torso / bruta, cega, insensata, voraz [...] / lascas de
couro, / testículos, fibras, membros, / o corpo alheio pisoteado / é de pó e aço o seu
desejo / - a faca segue até as goelas - / o corpo cai”. (TESTA, 2014, p. 13). Neste poema é
possível alcançar a associação de vida e morte ao prazer sexual, vista por Bataille (1987),
a expressão “o corpo cai” dá a ideia de transcendência provocada pelo gozo, o prazer e o
nada, todas as sensações e nenhuma ao mesmo tempo.
Ainda no poema matadora de touros (TESTA, 2014, p. 13), a descrição do corpo masculi-no
mostra que este serve, tão somente, para que o eu lírico feminino se descubra, perceba sua
sexualidade, compreenda o estranhamento que sente, a partir de um corpo que se transforma. E
que segura de si, toma as rédeas da vida nas próprias mãos. Não é mais o corpo passivo e
reprimido (BATAILLE, 1987), mas o corpo ativo que domina a situação e usa o corpo masculino
apenas como fonte de seu prazer, quebrando, assim, a visão tradicional de erotismo.
Na obra há a ideia de que ambos os indivíduos envolvidos num ato sexual deveriam
satisfazer um ao outro: “para comer uma putinha equalizada / ao fluxo das ondas de um rio
rápido / posicione-se em frequências não estáticas / pule para baixo para cima / use apetre-
chos pontiagudos / não acalme os ruídos indesejados / e faça um vis-à-vis / a dois a três a
seis ou/ a dez decibéis no eixo x e y” (TESTA, 2014, p. 18). A palavra “decibéis” ligada a
intensidade, aponta para corpos ágeis e entregues em uma mesma sintonia/frequência.
Divergindo do pensamento patriarcal em que a mulher satisfazia o homem e que
o desejo e o prazer eram exclusivamente do sexo masculino, no poema a entrega de
ambos é apresentada como algo recíproco: “quando dois corpos ocupam / o mesmo
espaço / estalos nos países baixos” (TESTA, 2014, p. 19). Corpos estes que estão
“perfeitamente inseridos na dinâmica natural, os corpos dos amantes se conectam e se
complementam, na entrega plena e recíproca” (SOARES, 1999, p. 122).
Por meio dos textos é possível inferir o erotismo para além da reprodução humana,
no momento em que permite a liberação do desejo e a mulher como sujeito da cena erótica.
“O sexo, não mais dividido e discriminador, é agora transcrito como uma ação realizada a
dois” (SOARES, 1999, p. 124). Indicando seu caráter desconstrutor da representação
estereotipada e repressiva, assinalando uma nova “realidade erótica em que os instintos
vitais acabassem descansando na gratificação sem repressão” (MARCUSE, 1972, p. 136).
No poema maya a associação do eu lírico a um bicho, revela que a mulher deseja ser
levada pelo instinto, que ela é dona de seu próprio sexo: “maya”: “é bicho e gente na sua dança
/ batuqueira bandalheira roda gira move / é gente e bicho na sua dança / é gente gente na sua
vadiagem / mata come cava colhe / miríades de beleza maquiada / é bicho que come bicho /
tamborilando no couro na carne [...]” (TESTA, 2014, p. 20). A beleza da mulher é intensificada por
sua participação ativa no ato amoroso. “A atuação transformadora da mulher é indício, no
poema, de outro modo de rompimento da tradição opressiva” (SOARES, 1999, p. 123).
O estilo da linguagem, a descrição, a predileção por minúsculas, os vocábulos eróticos e a
pontuação, denotam a contemporaneidade dos poemas de Testa. A mudança dos sentidos das
palavras, se apresenta como um recurso forte para quebra de expectativa: “:palavras se
incendeiam / no ranger dos dentes: / :palavras se incendeiam / no roçar das horas: / :palavras se
incendeiam / no rasgo do meu ventre: / [...] / uma fala que fode / e a boca goza gostoso / por
dentro por fora / pelos lábios pelas guelras pelas ventana / [...]” (TESTA, 2014, p. 26). No texto de
Testa, a linguagem é usada com preocupação estética e erotismo.
40 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

Em muitos poemas vemos uma linguagem menos formal, mais vulgar, que Bataille
(1987) vê como algo extremamente sensual. O erótico na obra aparece de diferentes
formas, em alguns poemas, é mais sutil, apresentando sua essência na busca pela
completude huma-na, enquanto em outros, o erótico é explicitado em uma explosão de
desejos e entrelaçamento de corpos.
Assim, por meio dos poemas de Testa, percebemos a atuação transformadora da
mu-lher, como escritora da literatura erótica, da mulher dona de si, como indício, de
outro modo do rompimento da tradição opressiva. E é por meio da literatura que as
palavras têm uma im-portância infinita para falar dos anseios mais profundos humanos,
desmistificar, romper com preconceitos e libertar, “a palavra é pescada dentro de cada
palavra / [...] / a palavra foi e não foi nada acredito e dito / por mim não fica palavra
sobre palavra / nenhuma pa.la.vra / viva a palavra / quase” (TESTA, 2014, p. 42).

Considerações Finais
A literatura contemporânea vem trazendo muitas inovações no que concerne ao
uso erótico do corpo feminino. Sem a perda do domínio de seus corpos, sem renunciar
seus dese-jos e sem submissão, as personas narradoras dos poemas estudados
mostram-se como seres autônomos, conscientes de seus desejos, donas de si, em suas
múltiplas identidades. Entende--se que essa mulher busca sua identidade não apenas
em questões éticas, históricas e sociais, mas também a partir de seu próprio corpo.
Assim, a literatura de autoria feminina quebra vários paradigmas: inicialmente ao falar
sobre erotismo, utilizando uma linguagem que por tantos anos foi considerada uma linguagem do
homem sobre o sexo. Em seguida libertando o prazer sexual feminino, mostrando a mulher livre
para se satisfazer sexualmente, sem repressão. Deste modo pode se afirmar enquanto ser
independente, dona de seu próprio corpo e que busca por se conhecer “no exercício erótico, que
é sempre o de uma busca psicológica de autoconhecimento” (SOARES, 1999, p. 129).
Escrever sobre erotismo é discorrer sobre liberdade, é questionar a realidade
social e os contextos de exclusão feminina, em que estas por muito tempo foram
impedidas de sentir o próprio corpo.
Na obra de Testa, observa-se a busca por completude, pelo erotismo dos corpos e
da escrita. Este foi trabalhado tanto por uma linguagem mais explícita, obscena, quanto
por uma linguagem mais subjetiva e subentendida. Testa problematiza o erótico na
contemporaneida-de, trazendo discursos presentes em nosso tempo.
Neste mundo, pós-moderno, de desordem e incertezas em que vivemos (Hall, 2001),
não podemos dizer nada além daquilo que é efêmero e passageiro. A palavra vai nos denotar
justamente o que sentimos e desejamos, no passado, no presente, e a única certeza é a de
que mudamos constantemente, “quero mais, sempre mais / nada de doses homeopatas /
desfruto da vida / a sede da vida / em altas doses” (TESTA, 2014, p. 45).

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Zahar, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Cos-
ta Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2019.

FREUD, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janei-ro: Imago, 1969.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas socie-


41 Revista Humanidades e Inovação v.8, n.60

dades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.

LITERATURA BR, A poesia de Lia testa, artigo publicado pelo site Literatura BR, 2015. Disponível
em: https://www.literaturabr.com/2015/11/27/poemas-de-lia-testa/. Acesso: 10 ago. 2020.

MAFRA, Betânia Siqueira. A Voz de um corpo de mulher: O erotismo em Paula Tavares. In. Re-
vista Eletrônica Gatilho. Ano 2006, vol. 4. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/
ojs/index.php/histedbr/article/download/8640058/7617/0. Acesso em: 16 jul. 2020.

MARCUSE, Hebert. Eros e civilização. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar
Edito-res, 1972.

MEIRELES, Cecília. Expressão feminina da poesia na América. In: Três conferências sobre
cultu-ra hispano-americana. Rio de Janeiro, MEC/Serviço de Documentação, 1959a.

PAZ, Octavio. A chama dupla: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo:
Scilia-no, 1994.

RIBEIRO, Antônio Carlos. Resenha: TESTA, Lia. Guizos da carne: pelos decibéis do corpo. São
Paulo: Poesia Menor, 2014. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v. 5, n. 2, p. 274-275, ago./dez. 2014.
Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/entreletras/article/downlo-ad/
1337/8149/. Acesso em 10 ago. 2020.

SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na


poesia brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.

TEDESCHI, Losandro Antônio. As mulheres e a história: uma introdução teórico metodológica.


Dourados, MS: Ed. UFGD, 2009.

TESTA, Lia. Guizos da carne: pelos decibéis do corpo. São Paulo: Poesia menor, 2014.

YUNES, Eliana. Prefácio. In: TESTA, Lia. Guizos da carne: pelos decibéis do corpo. São Paulo:
Poesia menor, 2014, p. 8.

Recebido em 06 de setembro de 2021.


Aceito em 27 de setembro de 2021.

Você também pode gostar