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A Estrutura e o Funcionamento do

Psiquismo
Mestrado - SAPDH

Professora Mestra Daiely Fanchin


Filósofa
Especialista em Nietzsche
Psicanalista
Estrutura do Funcionamento do Psiquismo

“Comecei minha vida profissional como neurologista, tentando aliviar os


meus pacientes neuróticos. Eu descobri alguns fatos novos e importantes
sobre o inconsciente. Dessas descobertas, nasceu uma nova ciência: a
psicanálise. Eu tive de pagar caro por esse pedacinho de sorte.
A resistência foi forte e implacável. Finalmente, eu consegui. Mas a luta
ainda não terminou.
Meu nome é Sigmund Freud.”

1. O que é Psiquismo

Para Freud, a vida psíquica é dinamizada por um conflito de forças


que se desenrola em grande parte fora da percepção consciente do
indivíduo.
O psiquismo é uma totalidade dinâmica, apesar de as suas
estruturas componentes terem diferentes funções e serem regidas
por diferentes princípios. Há uma estreita interação entre o Id, o Ego
e o Superego, raramente resultando o comportamento de influência
isolada de uma das estruturas psíquicas. Onde:
1ª) ID = parte inconsciente formada por instintos e impulsos
orgânicos e desejos inconscientes, (ou pulsões) que são regidas
pelo Princípio do Prazer e são de natureza sexual. O Centro do ID é
o Complexo de Édipo.
2ª) SUPEREGO = parte inconsciente. Instância repressora do ID e
do EGO, proveniente tanto das proibições culturais e sociais
interiorizadas quanto das proibições que cada um de nós elabora
inconscientemente sobre os afetos. É o agente da civilização que
tem o papel de dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo. Através dele a civilização consegue inibir a agressividade
humana introjetando-a para o interior do sujeito propiciando o
sentimento de culpa.
3ª) Ego - é a consciência submetida aos desejos do ID e repressão
do SUPEREGO. Obedece ao Princípio da Realidade. Vive sob
angústia constante pois busca um equilíbrio entre os desejo do ID e
a repressão do SUPEREGO, busca satisfazer ao mesmo tempo o
ID e o SUPEREGO. Quando o conflito é muito grande e o EGO não
consegue satisfazer o ID este é rejeitado determinando o processo
chamado Repressão.

Obs.: A psique é antes de tudo uma entidade teórica, um modelo


construído a partir dos comportamentos emocionais e relacionais
dos indivíduos humanos para explicá-los. Por modelo entende-se
um sistema distraído e simplificado que permite explicações e
previsões.

Na psicopatologia, a clínica permite estabelecer os fatos e a teoria


busca dar uma explicação racional. Essa explicação, no campo da
psicopatologia, é resumida em um modelo da psique muitas vezes
denominado estrutura psíquica, porque esse modelo forma um todo
estruturado.

Além disso, por meio de componentes cognitivo-representacionais,


a psique junta influências sociais e culturais. É dentro da psique que
a energia pulsional de origem biológica se transforma em um
processo que vai gerar parte do pensamento e do comportamento
humano

 Pontos importantes a respeito da Psique

- Existe uma entidade complexa, identificável em cada indivíduo humano e


que gera os comportamentos, traços de caráter, tipos de relacionamento,
sentimentos, sintomas, etc., descritos pela clínica.

- Esta entidade evolui ao longo da vida individual e adquire conteúdos que


dependem de fatores relacionais, educacionais, sociais, biológicos e
neurofisiológicos.

- É possível construir um modelo teórico racional e coerente desta entidade a


partir dos fatos clínicos. Este modelo tem, em primeiro lugar, um valor
operacional, o de explicar a clínica integrando as diferentes influências que
atuam sobre o indivíduo humano.
- A entidade inclui aspectos neurobiológicos e cognitivo-representacionais que
nem sempre são separáveis. Integra influências relacionais, culturais e sociais
e, finalmente, fatores biológicos individuais.

- A partir daí, entendemos que o termo “realidade psíquica” é inadequado. A


realidade empírica é baseada em fatos e a psique, que é uma entidade
assumida a partir dos fatos clínicos, não se funde com eles.

 Significado do Psiquismo

Quando falamos sobre o funcionamento psíquico do ser humano,


devemos distinguir os elementos que constituem a mente, os níveis
de funcionamento da mente e o processo evolutivo através do qual
a mente se desenvolve.

O organismo se estrutura por meio de processos de maturação que


são facilitados, inibidos ou distorcidos pela relação com o meio
social e físico.

O psiquismo se constrói nas relações constantes entre a criança e


os adultos que dela cuidam. As interações humanas consistem em
pensamentos, sentimentos e comportamentos.

 Emoções da Psique

Nos primeiros meses de vida, as interações são constituídas


principalmente por emoções, sensações, movimentos motores,
vocalizações. Este nível de funcionamento mental é denominado
processo primário, conhecimento implícito.

Com o amadurecimento do sistema nervoso e o surgimento da


linguagem, a criança terá cada vez mais acesso ao funcionamento
mental consciente e racional. Funcionamento que amadurece
plenamente por volta dos 10-12 anos, também denominado
“pensamento hipotético-dedutivo”.
Os ingredientes da psique são pensamentos, emoções e
comportamentos, embora haja dois níveis de funcionamento: o nível
consciente e o nível inconsciente. O processo evolutivo é aquele
conjunto de processos maturacionais do organismo, em interação
com o meio ambiente.

 Como isso auxilia no molde de nossa mente

Assim que a criança nasce, ela passa a interagir com o meio


ambiente, com os pais e com movimentos automáticos. Aos
poucos, graças à interação com os adultos, ele começará a finalizar
suas ações para viver no mundo.

O que a criança aprenderá no início de sua vida é o clima


determinado pelas pessoas ao seu redor. A criança usa os
primeiros ingredientes de que dispõe, emoções e movimentos
musculares (comportamento).

As emoções básicas são: raiva, medo, dor, alegria, nojo

 Nível Afetivo-Emocional

O nível de funcionamento será predominantemente o nível afetivo-


emocional, portanto o nível inconsciente-não verbal. A criança não
entende as palavras dos adultos, mas entende suas experiências
emocionais. Seu corpo pode entender se outras pessoas estão
experimentando emoções agradáveis ou desagradáveis.

Se ele sente perigo, ele se enrijece, se ele se sentir seguro, pode


relaxar. É intuitivo entender que o medo nos leva a contrair, a
segurança a relaxar.

Se a criança pode confiar, então relaxar na maior parte do tempo,


então ela pode desenvolver suas predisposições naturais,
experimentar, e assim entender o que gosta de fazer e o que faz de
melhor. Em suma, ele pode começar a construir sua maneira de
existir no mundo.

Se, por outro lado, ele tiver que se defender na maior parte do
tempo, porque se sente ameaçado, então terá que ativar suas
habilidades nesse sentido e haverá pouco espaço para
experimentar.
2. ESTRUTURA DO PSIQUISMO

Para Freud o aparelho psíquico seria uma organização psíquica


dividida em instancias psíquicas interligadas entre si, sendo
topográfico e estrutural. Freud concebe o psiquismo como um
aparelho capaz de transformar e transmitir uma determinada
energia.
O funcionamento psíquico e suas implicações na vida cotidiana tem
movimentado o interesse de diversos campos como a Psicanálise, a
Neurologia, a Filosofia, a Arte, a Religião e até mesmo o senso
comum.

 Funcionamento psíquico: conceito de inconsciente

Na visão comum o psiquismo refere-se aos processos conscientes


de um sujeito. No entanto, a Psicanálise ampliou a noção de
psiquismo, descobrindo que além dos processos conscientes
existem também processos inconscientes influenciando nossa vida
social e nossos comportamentos sem que percebamos. O
inconsciente pleno é o arcaico do aparelho psíquico.
O inconsciente é composto por conteúdos psíquicos
internalizados por serem angustiantes, frustrantes ou por causarem
algum tipo de sofrimento na realidade externa. Nele estão contidas
memórias primitivas e conteúdos da infância retirados de nossa
consciência.
O inconsciente é regido pelo princípio do prazer, pois busca
incessantemente descarregar toda sua energia pulsional através
dos desejos.
O inconsciente tem algumas características, tais como:
não há certezas ou dúvidas no inconsciente, tudo pode acontecer
ou existir, tudo é certo e nada é impossível. E também ambivalente
onde todos os pensamentos e afetos podem coexistir no
inconsciente como o amor e ódio, raiva e calma ocorrem
simultaneamente.
O inconsciente é uma energia psíquica pois sendo atemporal não
segue a cronologia padrão, não respeita a organização do tempo
em anos, dias ou horas, conteúdos do passado podem ser
revividos, o futuro pode influenciar de sobremaneira o presente.
Nele acontecem processos psíquicos mais primitivos e menos
complexos, ou seja, a energia psíquica transita livremente pelos
pensamentos, sem qualquer restrição, como algo caótico,
desorganizado, buscando prazer.
Devido ao mecanismo de repressão, o inconsciente só pode ser
acessado por meio de conteúdos simbólicos, representações que
seriam socialmente “mais aceitas” que surgem através de sonhos,
da arte ou do processo psicoterapêutico.
Por isso, para a Psicanálise todo sujeito tem uma condição
psicopatológica, pois cada um de nós possui algum conteúdo
interno angustiante reprimido em nosso inconsciente durante a
infância ou mesmo na fase adulta.

 Tipos de funcionamento psíquico

Sabendo que o psiquismo vai além da consciência e abrange


também processos inconscientes reprimidos, podemos descrever o
modo como o inconsciente desempenha seu papel nas diferentes
estruturas mentais.

 Neurose e o funcionamento psíquico

A neurose pode ser definida como uma afecção psíquica onde os


sintomas expressam um conflito psíquico que tem raízes na história
infantil do sujeito. Na neurose há um conflito entre pensamento
inconsciente e realidade externa, seja um desejo que não pode ser
realizado devido às regras sociais ou um sentimento negativo que já
experimentamos e é revivido em nós num determinado contexto.
O sujeito neurótico mantém um bom grau de integração do seu
psiquismo e por isso consegue seguir mantendo uma vida social e
ocupacional.
O psiquismo recorre a mecanismos de defesa para manter sua
integridade e segurança como a racionalização das situações
dolorosas, a conversão do sofrimento psíquico em sintomas
corporais, agir com infantilidade, projetar a responsabilidade de um
problema pessoal para outra pessoa, etc.
Alguns tipos de neurose são: os Transtornos Fóbicos ou de
Ansiedade, o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, a Histeria, alguns
tipos mais leves de Depressão, dentre outros.

 Psicose

A psicose, por sua vez, pode ser descrita como resultado de um


psiquismo desintegrado, fragmentado. Na psicose o sujeito vivencia
seu inconsciente a céu aberto, exposto, sua realidade interna é a
mesma que a externa. O psiquismo não é capaz de recorrer a
mecanismos de defesa elaborados para resguardar o mundo
interno do indivíduo.
Na psicose há uma rejeição ou expulsão das ideias e
pensamentos próprios, que passam a ser considerados pelo
indivíduo como pensamentos estranhos ou não reais. O
funcionamento psicótico se inicia com uma cisão do psiquismo em
relação à realidade que lhe causa sofrimento.
Em seguida, o psiquismo tenta reparar tal dano gerado através da
criação de uma realidade paralela que é vivenciada pelo sujeito
acometido como a realidade única, de modo a evitar o contato com
aquilo que lhe gerou sofrimento.
Alguns tipos de psicose são: Esquizofrenia, Transtorno Bipolar,
Paranoia, Melancolia, etc.

 Funcionamento psíquico e a perversão

Na perversão não há qualquer tipo de repressão dos conteúdos


mentais para o inconsciente, o inconsciente não recalca ou
embarreira, nem proíbe seus conteúdos. Ela é o oposto da neurose,
visto que na neurose o sujeito compreende e obedece a uma
estrutura de proibição, realizando as exigências do meio social (tais
exigências que trazem dor ao neurótico).
Na perversão o sujeito apenas realiza o que deseja. A pessoa que
possui estrutura psíquica perversa possui modos de obter prazer
sem que haja uma consideração dos valores, normas ou regras
sociais e culturais.
Para o funcionamento psíquico pervertido, a outra pessoa ou
mesmo objeto existe para manter sua organização, para satisfazer
seus desejos, para obter prazer. O lugar do outro é submetido ao
sujeito.
Alguns tipos de perversão são: o Fetiche, o Sadismo, o
Masoquismo, o Voyeurismo, etc.

Assim sendo, temos em mente a descrição dos três tipos de


funcionamento psíquico (Neurose, Psicose e Perversão), partindo
do pressuposto do conceito de inconsciente como estrutura regente
do aparelho psíquico. No entanto, vale destacar que o
funcionamento psíquico pode possuir graus de flexibilização e
integração.
Nem todos os modos de funcionamento psíquico produzem
transtornos de saúde mental. Na verdade, uma estrutura psíquica
saudável transita entre estados neuróticos, psicóticos ou perversos,
prevalecendo um dos três.
Deste modo, um indivíduo pode vivenciar um estado melancólico e
possuir fetiches, ou mesmo outro indivíduo esquizofrênico pode
também experimentar quadros de ansiedade.
*Para uma análise mais profunda, anexei aqui esta tese da
PUC-RJ do curso de Psicologia que enfoca a estrutura psíquica
proposta por Freud no livro 1893-1895.

 Estrutura do Psiquismo

Ao escrever o Projeto para uma Psicologia Científica, em 1895,


Freud tinha o objetivo de inserir a psicologia no quadro das ciências
naturais. Para isso, ele tentou elaborar uma teoria quantitativa do
funcionamento psíquico que enfatizasse uma abordagem
econômica das excitações que atingem o corpo e, assim, chegar a
algumas conclusões sobre o indivíduo normal, a partir da
psicopatologia. Portanto, desde o Projeto, é possível verificar a
importância que Freud já atribuía para as experiências que atingem
o corpo, na determinação do que somos e do que nos tornamos.
Freud (1895), na ocasião, descreve o psiquismo como um aparelho
capaz de transmitir e transformar energias, cujo funcionamento era
explicado segundo a existência de uma quantidade de excitação Q,
que diferencia a atividade do repouso dos neurônios. O autor
distingue dois tipos de quantidade Q: a primeira, nomeada apenas
por Q, refere-se à quantidade de excitação ligada à estimulação
sensorial externa; e a segunda, denominada de Q´ɳ, refere-se à
estimulação interna, do próprio corpo. Ou seja, Q´ɳ é psíquica,
enquanto Q aponta para quantidade de estímulos externos.
O ponto de vista econômico proposto por Freud (1895) diz respeito
à maneira como Q circula no sistema de neurônios, passando de
um para outro, percorrendo as múltiplas bifurcações neuronais e
encontrando diversos caminhos possíveis. O autor (1895) supõe
que o aparelho psíquico fosse regulado pelo princípio de inércia,
segundo o qual “os neurônios tendem a se livrar de Q” (Freud,
1895a, p.348). Isto é, os neurônios são investidos por uma
quantidade de Q, que os diferenciam da atividade do repouso, e, no
entanto, tendem a se ver livres dessa carga. O modelo do arco
reflexo, no qual a quantidade de excitação recebida pelo neurônio
sensitivo é totalmente descarregada na extremidade motora, seria
um exemplo da regulação do princípio de inércia. Desse modo, a
principal função do sistema nervoso seria livrar-se de Q, seja
através da descarga ou da fuga do estímulo.
Porém, apesar da tendência à descarga, o sistema nervoso se
estrutura de modo a criar barreiras de contato que dificultam esse
processo. Freud (1895) observa, portanto, que, além do princípio de
inércia, a circulação de Q também era regulada pelo princípio de
constância, que consiste em evitar o livre escoamento da energia,
para servir aos estímulos de natureza endógena, que mais tarde
serão denominados por pulsão.
Esses estímulos criam as grandes necessidades vitais, como a
fome, a respiração e a sexualidade, mas, ao contrário dos estímulos
externos, que podem ser evitados, deles não é possível fugir. Eles
só desaparecem depois da realização de alguma ação específica
no mundo externo e, para isso, é preciso que o sistema nervoso
disponha de energia para realizar essas ações, o que não
aconteceria se, em função do princípio de inércia, toda a quantidade
de energia investida fosse descarregada.
Assim, o sistema nervoso é obrigado a tolerar um acúmulo de Q
para servir a este propósito. Em outras palavras, o aparelho
psíquico precisa dar conta de atividades que são mais complexas
do que as respostas reflexas às estimulações exteriores, como as
grandes necessidades vitais, que requerem um armazenamento
prévio de certas quantidades.
“O sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original
à inércia (isto é, a reduzir o nível da Q´ɳ a zero). Precisa tolerar a
manutenção de um acúmulo de Q´ɳ suficiente para satisfazer as
exigências de uma ação específica. Mesmo assim, a maneira como
realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste, modificada
pelo empenho de manter a Q no mais baixo nível possível e de se
resguardar contra qualquer aumento da mesma – ou seja, mantê-la
constante” (Freud, 1895a, p.349).
Segundo Freud (1895), o que impede o livre escoamento da
quantidade de energia são as barreiras de contato que oferecem
resistências localizadas nos pontos de contatos entre os neurônios,
impedindo que a energia passe livremente. Em função das barreiras
de contato, o autor descreve duas classes de neurônios: os
neurônios permeáveis, que possibilitam a passagem de Q como
se não houvesse barreira de contato e retornam depois de cada
passagem ao mesmo estado anterior; e os neurônios
impermeáveis, cujas barreiras de contato oferecem resistência ao
livre escoamento de Q, permitindo a passagem com dificuldade ou
parcial, podendo se modificar depois de cada excitação,
constituindo, assim, uma memória.
Logo, dois sistemas de neurônios são formados: o sistema de
neurônios Φ, formado por neurônios permeáveis, destinados à
percepção; e o sistema de neurônios ψ, formado por neurônios
impermeáveis, retentivos de parte de Q e responsáveis pela
memória.
A passagem parcial de Q pelos neurônios ψ provoca uma alteração
ou uma marca nas barreiras de contato, que é denominada por
Freud (1895) de facilitação e depende, para ocorrer, da maior ou
menor quantidade de Q que o neurônio recebe.
A diferença entre os dois sistemas de neurônios pode ser
justamente devida à posição que eles ocupam em relação à fonte
de excitação. Ou seja, os neurônios Φ recebem estimulações de
fonte externa, enquanto que os neurônios ψ são estimulados por
fonte endógena ou, indiretamente, por fonte exógena via Φ.
Consequentemente, a carga de Q nos neurônios Φ seria muito
maior do que nos neurônios ψ, o que não permitiria a criação de
barreiras de contato que seriam imediatamente destruídas pela
intensidade de Q. A diminuição da resistência no sistema de
neurônio ψ faz com que, posteriormente, uma nova excitação
procure percorrer o mesmo caminho onde houve uma facilitação.
Segundo Anzieu (1989), o conceito de barreira de contato pode ser
considerado uma antecipação da sinapse, na medida em que
consiste em uma barreira que, por estar localizada nos pontos de
contato entre os neurônios, tem a função de inibir a descarga, reter
a quantidade ou permitir apenas uma determinada passagem
parcial.
Anzieu (1989) atribui ao conceito de barreiras de contato um papel
preponderante para o funcionamento psíquico, devido a algumas de
suas propriedades. As barreiras de contato são retentoras de
quantidade, possibilitando que essa carga fique disponível para o
sujeito; e são maleáveis, permitindo que ocorra uma facilitação, por
onde uma pequena quantidade pode atravessar posteriormente. No
entanto, a resistência das barreiras de contato persiste e se
restabelece após a passagem da quantidade, mesmo quando uma
facilitação se estabeleceu, não permitindo que toda a quantidade
presente circule. Essa resistência, porém, tem um limite que pode
ser ultrapassado, temporariamente ou por um período longo, pela
irrupção de uma quantidade elevada demais, como, por exemplo,
no caso da dor.
Segundo Freud (1895), os órgãos do sentido funcionam como uma
tela protetora entre os estímulos provenientes do mundo externo e o
sistema Φ, evitando possíveis danos decorrentes de Q muito
intensas. Essa função protetora é exercida por um aparelho
denominado por Freud (1920) em Além do Princípio de Prazer, de
paraexcitação, que seria uma camada mais superficial, atrás da
qual se encontra a camada que recebe as excitações (o sistema
percepção-consciência). Assim, apenas pequenas quantidades de
Q exógenas atingem o sistema Φ. Desse modo, a dor é produzida
quando certa quantidade de Q externa age diretamente nas
extremidades dos neurônios Φ, e não por atravessar as barreiras de
contato.
As barreiras de contato são, segundo Anzieu (1989), proteções de
segunda linha que precisam, para funcionar, da intervenção da
primeira linha, exercida pelo aparelho de paraexcitação, pelo menos
no que se refere às excitações vindas do exterior. A ruptura do
aparelho de paraexcitação provoca a invasão de Q muito elevada,
rompendo as resistências das barreiras de contato.
Anzieu (1989) ressalta que o conceito de envelope psíquico pode
ser pressentido como “um encaixe de duas camadas, uma camada
externa (paraexcitação; a membrana celulósica dos vegetais, o
couro e a capa de pelo dos animais), uma camada interna (a rede
das barreiras de contato; os órgãos sensórias da epiderme, ou a
coifa cortical)” (Anzieu, 1989, p.88).
Entretanto, a camada interna é protegida apenas das excitações
exógenas, mas não das endógenas. Ou seja, a paraexcitação
protege o aparelho psíquico das intensidades de Q, provenientes do
exterior, enquanto que as barreiras de contato recebem, por um
lado, o que a tela da paraexcitação deixou passar e, por outro, as
excitações oriundas do próprio corpo, ligadas às necessidades
vitais.
Segundo Anzieu (1898), a função das barreiras de contato não é a
proteção quantitativa, “mas de fracionamento da quantidade e de
filtragem da qualidade. Sua estrutura não é a de uma tela, mas a de
uma peneira” (p.89).
O autor ainda acrescenta que “a articulação entre a tela e a peneira
oferece a configuração, recorrendo a uma terminologia mais
moderna, de uma rede de malhas” (p.89). Ou nas citações diretas e
títulos de obras (livros/artigos), a ortografia antiga será mantida, por
fidelidade à obra citada. 18 seja, é a proteção da tela do sistema de
paraexcitação mais a peneira da barreira de contato que configuram
uma rede de malhas, cuja função é essencialmente a proteção do
aparelho psíquico. Veremos a seguir como a filtragem da qualidade
acontece configurando a consciência.

 A introdução da consciência e o problema da qualidade

O funcionamento do sistema nervoso referente aos sistemas Φ e ψ


acontece a nível inconsciente e aponta para o aspecto quantitativo.
A introdução da consciência vai incluir o fator qualidade e o
problema de sua origem. Para resolver esse problema, Freud
(1895) postula um terceiro sistema de neurônios, também
permeável, mas responsável pela qualidade da excitação e não
pela quantidade, que se comporta como órgão de percepção e
recebe o nome de neurônio ɷ.
Esses neurônios são excitados junto com a percepção e são
responsáveis pelas “sensações conscientes” (Freud, 1895,
p.361). Isto é, o sistema ɷ é responsável pelo aspecto sensível da
percepção, como, por exemplo, uma cor, um som, uma textura, ou
qualquer coisa que aponte para o aspecto qualitativo do estímulo.
Segundo Freud (1895), “a consciência é aqui o lado subjetivo de
uma parte dos processos físicos do sistema nervoso, isto é,
dos processos ɷ; e a omissão da consciência não deixa os
eventos psíquicos inalterados, mas acarreta a falta da
contribuição de ɷ” (Freud, 1895a, p.363).
Os estímulos que afetam os neurônios ɷ não estão diretamente
ligados a fontes endógenas ou exógenas, mas retiram sua energia
do sistema ψ, o que a princípio representa uma contradição, já que
os neurônios ψ são impermeáveis e os neurônios ɷ devem ser
totalmente permeáveis para possibilitar a mutabilidade de seu
conteúdo, ou seja, a transitoriedade da consciência. Desse modo,
ao invés de os neurônios responsáveis pela consciência e pela
percepção estarem ligados ao sistema de neurônios ɸ que, assim
como eles, são permeáveis e voltados para a percepção e para o
mundo externo, é ao sistema ψ que Freud (1895a) os associa.
Freud (1895) resolveu esse dilema introduzindo a temporalidade ou
periodicidade da excitação nos neurônios ɷ, ou seja, os neurônios
ɷ recebem uma temporalidade ou um período de excitação que
possibilita uma Q mínima possível, apenas necessária para
existência da consciência.
De acordo com as palavras de Freud, “os neurônios ɷ são
incapazes de receber Q´ɳ, mas em compensação apropriam-se
do período de excitação; e este seu estado de afecção pelo
período, com um mínimo de presença de Q´ɳ, é o fundamento
da consciência” (Freud, 1895, p.362).
O conceito de período, embora seja referido à quantidade, não é um
conceito propriamente quantitativo. Ele diz respeito a uma diferença
entre as quantidades, ou seja, grande ou pequena, mas uma
diferença da modificação no tempo das alterações quantitativas e
não relativa às alterações em si. Isto é, refere-se à mudança de Q
num período de tempo. Não é a magnitude do estímulo ou a
quantidade de estimulação que irá determinar as sensações de
prazer e desprazer, já que o sistema ɷ, responsável pela
consciência, recebe um mínimo de Q para funcionar, que é
imediatamente descarregado.
A Q que chega a ɷ é apenas o mínimo necessário para que ele
possa funcionar como indicador da realidade para ψ. Assim, as
sensações de prazer e desprazer em ɷ são resultados não da Q
recebida por ɷ, mas do período no movimento neuronal, ou seja,
não decorrem do aumento ou diminuição do estímulo, embora
indiretamente estejam ligadas a ela, mas decorrem de um fator
qualitativo.
Segundo as palavras de Freud (1895): “os neurônios ɷ mostram
uma aptidão ótima para receber o período do movimento
neuronal para uma determinada força de catexia; quando a
catexia é mais intensa, eles produzem desprazer; quando mais
fraca, prazer – até que, devido à falta de catexia, sua
capacidade receptiva se extingue” (Freud, 1895, p.364).
Freud escreveu uma carta a Fliess, em janeiro de 1896, na qual
descreveu as três maneiras pelas quais os neurônios se afetam: a
primeira refere-se à transferência de quantidade de um para outro,
a segunda é a transferência de qualidade de um para outro, e a
terceira corresponde a uma excitação recíproca, ou seja, exercem
um efeito excitante uns sobre os outros. Os neurônios ɷ não
necessitam de descarga, seu investimento aumenta ou diminui pela
excitação recíproca que mantém com ψ, o que significa que,
quando a quantidade de Q em ψ aumenta, a catexia de ɷ aumenta;
e quando a quantidade de Q em ψ diminui, a catexia de ɷ diminui.
Isso porque a possibilidade de excitação recíproca não implica em
acúmulo de carga enérgica e a resistência oferecida pelas barreiras
de contato só se aplicam à transferência de Q e não à ação
recíproca.
São os neurônios ɷ que guiam a descarga de energia livre dos
neurônios ψ.
“Os neurônios Φ transferem para os neurônios ɷ sua
qualidade (e não quantidade), enquanto que os neurônios ɷ
não transferem para os neurônios ψ nem qualidade, nem
quantidade, apenas excita ψ, isto é, indica para ψ as vias a
serem tomadas pela energia livre ψ” (Garcia-Roza, 1991, p.104).
“E são essas modificações que passam através de Φ, via ψ, até
ɷ, e aí, onde estão quase desprovidas de quantidades, geram
sensações conscientes de qualidades” (Freud, 1895a, p.362).
O sistema nervoso tem a tendência a descarregar uma parte da Q
dos estímulos do sistema Φ, enquanto outra parte é transferida para
ψ, parte esta correspondente à magnitude de um estímulo
intracelular.
Portanto, o sistema ψ de neurônios recebe estímulos endógenos e
também exógenos, via Φ. Assim, Freud (1895) divide o sistema ψ
em duas partes: o ψ pallium, que são investidos a partir de Φ; e ψ
núcleo, que são investidos a partir de fontes endógenas. O ψ núcleo
está em conexão direta com as excitações endógenas, sem
defesas, não há aqui nenhuma tela protetora. O sistema ψ núcleo
mais o sistema φ são responsáveis pela atividade reflexa, já o
sistema ψ pallium mais o sistema ɷ vão responder pelos processos
psíquicos em geral (percepção, memória, pensamento, desejo,
prova de realidade).
A consciência fornece ao sistema ψ os signos de qualidade e
realidade, e também as sensações de prazer e desprazer, distinção
esta fundamental para se entender o funcionamento psíquico.
“O desprazer teria que ser encarado como coincidente com um
aumento do nível de Q´ɳ ou com um aumento da pressão
quantitativa: equivaleria à sensação ɷ quando há um aumento
da Q´ɳ em ψ. O prazer corresponderia à sensação de
descarga” (Freud, 1895a, p.364).
Desse modo, o sistema ɷ não é atingido diretamente pelos
estímulos do mundo externo. Entre ɷ e o exterior existem os órgãos
do sentido, que, como visto, funcionam como uma tela protetora; e
o sistema ψ, que Freud (1895) descreve como um sistema
intermediário, moderador, cuja função é a filtragem e
amortecimento. Ou seja, “as modificações passam através de Φ,
via ψ, até ɷ, e aí, onde estão quase desprovidos de
quantidades, geram sensações conscientes de qualidades.
Essa transmissão da qualidade não é duradoura; não deixa
rastro e não pode ser reproduzida” (Freud, 1895a, p.362).
A essa função de filtragem do sistema ψ entre o estímulo e o
sistema ɷ, Anzieu (1898) também atribui as barreiras de contato.
Segundo o autor, uma das funções das barreiras de contato
“poderia ser resumida dizendo que elas servem para separar a
quantidade da qualidade e para trazer à consciência a
percepção das qualidades sensíveis, principalmente o prazer e
a dor” (Anzieu, 1898, p.90).
É a possibilidade de alteração das barreiras de contato que
distingue a memória atribuída aos neurônios ψ e a percepção
atribuída aos neurônios Φ e ɷ. Assim, Anzieu (1898) acrescenta
que a rede malhada das barreiras de contato constitui uma
superfície de inscrição, ou seja, possui as marcas deixadas pelas
sensações vividas, diferente da tela de paraexcitação, cuja função é
apenas sua proteção.
A rede das barreiras de contato possui uma face voltada para as
excitações do mundo externo, transmitidas pelos neurônios Φ,
protegida pela tela de paraexcitação; e outra face interna, voltada
para o interior do corpo. Para resumir, Anzieu (1989) afirma que “as
barreiras de contato têm uma função de separação tripla do
inconsciente e do consciente, da memória e da percepção, da
quantidade e da qualidade” (Anzieu, 1989, p.91).
O último ponto a ser destacado sobre a transmissão da qualidade,
ou seja, da sensação consciente, refere-se ao seu caráter
transitório e à questão, a saber, como a sensação de prazer e
desprazer em relação a algo é armazenada, podendo ser recordada
quando necessário.
Até então, Freud (1895) descrevia a percepção e a memória como
excludentes uma da outra; assim o sistema responsável pelo
registro das sensações conscientes não poderia funcionar como
memória.
Anzieu (1989) atribui os registros das sensações às modificações
nas barreiras de contato dos neurônios. No entanto, Freud, na carta
que escreveu a Fliess em dezembro de 1896, supôs que a memória
se faz presente em diferentes registros, separados de acordo com a
inscrição em tipos de neurônios diferentes.
Freud (1896), então, montou um novo esquema do aparelho
psíquico, no qual propôs a distinção de quatro tipos de neurônios. O
neurônio W, responsável pelas percepções, ligado à consciência e
destituído de memória. O neurônio Wz, que seria a primeira
indicação da percepção, ou seja, formaria o primeiro registro das
percepções, seria inacessível à consciência e sua circulação se
daria por simultaneidade.
O segundo registro, descrito como Ub, corresponderia à
inconsciência, ou, dito de outro modo, às lembranças conceituais
inacessíveis à consciência, e sua articulação se daria por
associação de causalidade.
Por último, Freud (1896) descreve a terceira inscrição, chamada de
Vb, que estaria ligada às representações verbais e corresponderia
ao nosso eu, reconhecido como tal. As catexias de Vb seriam pré-
conscientes e só se tornariam conscientes num segundo momento,
ligado à ativação alucinatória das representações verbais.
Freud (1896) buscou, com esse novo esquema e com a ideia de
diferentes registros, compor tanto a memória quanto a percepção
num mesmo aparelho psíquico, já que os dois processos eram
considerados excludentes um do outro. O autor considerou que os
sucessivos registros representariam a realização psíquica de fases
diferentes do desenvolvimento psíquico, e deveria ocorrer na
fronteira entre essas fases uma tradução do material psíquico, para
passar de um registro para outro. Assim, cada novo registro inibe o
anterior e lhe tira o processo de excitação. Uma falha nessa
tradução resultaria no processo de recalcamento, o que Freud
(1896) já aponta como defesa muito frequente contra os eventos
sexuais.
Fontes (2002) ressalta que Wz seria o primeiro registro mnêmico,
disposto de acordo com a associação por simultaneidade,
inacessível à consciência, porém proveniente de W (percepções).
Assim, a autora faz uma leitura desse esquema proposto por Freud,
na qual afirma que, em um momento muito precoce, pré-simbólico,
essa tradução pode não ocorrer entre os sistemas Wz e Vb, ou
seja, “as sensações sendo registradas e não traduzidas”
(Fontes, 2002, p.47).
Logo, as sensações ficariam registradas, podendo aparecer através
do corpo, mas não da linguagem. Por se tratar de um momento
muito precoce, a autora sugere que esse processo seria anterior ao
recalque. Desse modo, essa é a conclusão de Fontes:
“Compartilho a ideia de que a percepção não inscrita na
expressão verbal não é memorizável, o que não quer dizer que
o índice de qualidade não ficará registrado, podendo, em certo
momento, advir como anúncio ou índice” (Fontes, 2002, p.47).

 O outro na origem da experiência de satisfação

Freud (1895) ressalta que o ser humano, ao nascer, é incapaz de


realizar sozinho as ações específicas que exigem uma alteração
não só interna, mas também no mundo externo, necessárias para a
eliminação da estimulação na fonte no interior do corpo. Esta é a
marca do desamparo proposto por Freud, na medida em que as
ameaças do mundo externo e do seu próprio corpo colocam o bebê,
ao nascer, totalmente dependente da pessoa responsável pelos
seus cuidados.
Já em 1895, Freud enfatiza o fator determinante das trocas com o
meio circundante para o funcionamento mental primitivo. De acordo
com as palavras do autor:
“o organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa
ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a
atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado
infantil por descarga através da via de alteração interna”
(Freud, 1895a, p.370)
Isto significa que a Q proveniente de estimulação endógena
armazenada no sistema ψ apresentará a mesma tendência à
descarga através dos caminhos motores comum aos demais
neurônios. No entanto, o alívio da tensão em ψ não ocorrerá
segundo o modelo do arco reflexo, ou com a simples descarga
motora, como, por exemplo, o choro ou a agitação motora, pois o
estímulo endógeno continuará atuando, além de produzir um
sentimento de desprazer em ɷ.
Essa descarga interna, contudo, tem a importante função de
comunicação, constituindo uma forma de introdução do recém-
nascido na ordem simbólica. Já a vivência de satisfação consiste na
eliminação da tensão decorrente dos estímulos endógenos, o que
só ocorre mediante uma ação específica, que implica uma alteração
no mundo exterior, realizada no início da vida por aquele que cuida
do bebê.
“Quando a pessoa que ajuda a executar o trabalho da ação
específica no mundo externo para o desamparado, este último
fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar
imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária
para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento
constitui então a experiência de satisfação, que tem as
consequências mais radicais no desenvolvimento das funções
do indivíduo” (Freud, 1895a, p.370).
Com a experiência de satisfação, três coisas acontecem dentro do
sistema ψ: uma descarga motora elimina o impulso que produz
desprazer em ɷ, surge no ψ pallium o investimento de um conjunto
de neurônios referentes à percepção do objeto que promoveu a
satisfação, e o sistema ψ pallium também recebe informações sobre
a descarga decorrente da ação específica.
Os caminhos percorridos por Q para a satisfação deixam marcas
que, segundo Fontes (2002), remetem “a um processo mnêmico
que não é de início informativo e sim energético” (p.48). Ou
seja, as diferenças de facilitação entre os neurônios ψ dão base
para se pensar nos registros das sensações mais precoces, que
ficam inscritas no corpo como marcas. Quando o estado de
necessidade surgir novamente, o impulso psíquico irá procurar
reinvestir a imagem mnêmica do objeto, com o intuito de reproduzir
a satisfação original. Logo, a vivência de satisfação cria uma
facilitação entre duas imagens-lembrança – a do objeto de
satisfação e a da descarga pela ação especifica – e os neurônios do
núcleo catexizados. Assim, com o reaparecimento do impulso, as
duas imagens-lembranças são investidas novamente, reativando-
as.
O processo é semelhante à percepção original, porém sem o objeto
real presente, ocorrendo então, uma alucinação, que implica em um
consequente desapontamento, já que não pode haver satisfação
com a ausência do objeto real, no que se refere às necessidades
vitais.
O mesmo irá ocorrer com a experiência da dor. O fracasso dos
dispositivos que impedem a invasão de grandes Qs, a saber, a
descarga e a fuga, possibilitam a invasão excessiva de Q, que
provoca a dor.
Segundo as palavras de Freud (1895a): “a dor produz em ψ
grande aumento de nível, que é sentido como desprazer por ɷ,
uma propensão a descarga, que pode ser modificada em
determinados sentidos, e uma facilitação entre esta última (a
propensão a descarga) e uma imagem mnêmica do objeto que
provoca a dor” (Freud, 1895a, p.372)
Isto significa que, da mesma forma como ocorre com a experiência
de satisfação, se a imagem do objeto hostil for reinvestida, surgirá
um estado de desprazer, acompanhado de uma tendência a
descarga.
Do mesmo modo, três mudanças ocorrem em ψ: o aumento de
tensão é sentido como desprazer em ɷ, surge uma tendência a
descarga, e uma facilitação é criada entre a tendência a descarga e
uma imagem-lembrança do objeto, que provoca a dor. A Q
excessivamente grande pode romper a proteção dos órgãos dos
sentidos e ainda superar as resistências oferecidas pelas barreiras
de contato, tornando os neurônios inteiramente permeáveis à
condução da excitação.
A consequência disso é que deixa de haver caminhos diferenciados
pelas facilitações e passa a haver um só caminho, ou um não
caminho, já que qualquer percurso é possível.

 O primeiro esboço de eu

Como já visto, a experiência de satisfação produz um traço


mnêmico, que é a imagem do objeto que promoveu a satisfação, e
que é reativada toda vez que surgir novamente um estado de
tensão, produzindo-se, assim, uma alucinação, análoga à
percepção, já que o objeto está ausente.
O recém-nascido não tem capacidade para distinguir o objeto real
do objeto alucinado, o que acaba por frustrá-lo, já que ele reage ao
objeto alucinado como se fosse real. Com o intuito de impedir o
desprazer decorrente dessa alucinação, Freud (1895) sugere que
existe uma organização diferenciada do sistema ψ, que passa a
desempenhar, a partir dos sinais de realidade provenientes pelo
sistema ɷ, a função de inibição do desejo, quando se trata de um
objeto alucinado.
Freud (1895) denomina essa organização diferenciada de “eu”, e o
define da seguinte forma: “o eu deve, portanto, ser definido
como a totalidade das catexias ψ existentes em determinado
momento, nas quais cumpre diferenciar um componente
permanente e outro mutável” (p.375).
Dessa forma, é importante ressaltar que o primeiro esboço de eu
descrito por Freud (1895) não está relacionado à consciência, à
realidade ou à percepção, mas sim com o sistema ψ; e seu objetivo
fundamental é dificultar as passagens de Q, que originalmente
foram acompanhadas de satisfação ou de dor.
Garcia-Roza (1992) ressalta esse ponto de vista, afirmando que não
se pode confundir o eu do Projeto com o eu da segunda tópica do
aparelho psíquico proposto por Freud, pois no Projeto trata-se muito
mais de uma formação particular interior ao sistema ψ que não
possui acesso à realidade e não é sujeito da percepção, da
consciência e do desejo.
O acesso à realidade encontra-se sob o domínio do sistema ɷ,
responsável pela percepção, e não do sistema ψ. Contudo, pode-se
estabelecer uma relação entre o eu do Projeto e o eu proposto em
1923, que será estudado a seguir, na medida em que ambos
pressupõem uma forma de organização.
O sentido conferido ao eu no Projeto refere-se a uma parte do
sistema ψ cuja função é essencialmente inibidora. Isto é, evita o
investimento do traço mnêmico do primeiro objeto satisfatório, com
o intuito de impedir a alucinação e a consequente decepção. Assim,
o eu é tanto ativo quanto passivo, na medida em que é aquilo que
deve ser protegido e, ao mesmo tempo, agente dessa proteção.
Freud (1895) descreve duas condições nas quais o eu pode se
danificar.
A primeira ocorre quando um estado de desejo reinveste a
lembrança de um objeto, colocando em ação o processo de
descarga, que não encontra satisfação com um objeto imaginário. E
a segunda condição ocorre quando uma imagem mnêmica hostil é
reinvestida, e o eu não consegue realizar uma inibição adequada,
provocando uma liberação excessiva de descarga.
Os danos em ambos os casos são decorrentes da falta de um
indicador da realidade, já que o sistema ψ é incapaz de distinguir o
real do imaginário, o que é função dos neurônios ɷ. Enquanto os
processos do sistema ɷ estão relacionados com a consciência, os
processos do sistema ψ são inconscientes, porém adquirem uma
consciência secundária ao serem ligados a processos de descarga
e percepção.
Segundo Garcia-Roza (1991), “o sistema ɷ é alimentado por Φ e
é ele que por sua vez fornece a ψ as informações que vão
constituir a prova da realidade para este último” (Garcia-Roza,
1991, p106).
Freud (1895) aponta como uma das principais funções de ɷ
fornecer ao sistema ψ signos de realidade ou signos de qualidade.
A função do eu em ψ de inibir a descarga, quando houver ausência
do objeto real, só é possível devido às informações do mundo
externo obtidas pelo eu através da percepção, ou seja, do sistema
ɷ. No entanto, como o eu e a percepção pertencem a sistemas
diferentes: o eu ao sistema ψ e a percepção ao sistema Φ, é
necessário haver uma articulação entre os dois, para que o eu
possa distinguir uma representação-percepção de uma
representação-lembrança.
Segundo Freud (1895), essa articulação ocorre da seguinte forma:
toda percepção excita ɷ, que não retém Q, por menor que seja, e
logo se produz uma descarga em ɷ, da qual chega uma informação
a ψ. A indicação em ψ de uma descarga ocorrida em ɷ funcionará
como sinal de algo externo, ou seja, como signo de qualidade e
signo de realidade para Ѱ, mecanismo denominado por Freud
(1895) de atenção psíquica.
A inibição e a consequente organização exercidas pelo eu fazem
com que Freud (1895) distinga o processo primário do processo
secundário.
Freud (1895) concebe o eu como “uma rede de neurônios
catexizados e bem facilitados entre si” (p.376), que tem como
função a inibição dos processos psíquicos primários.
Segundo Garcia-Roza (1991), a experiência primária de satisfação
consiste em um momento de indiferenciação original, refere-se ao
prazer de órgão, e não ao princípio de prazer. A passagem do
prazer como estado psicológico para o prazer como princípio ocorre
pela ligação. Isto significa que a ligação consiste numa contenção
ao livre escoamento das excitações, transformando o estado de
pura dispersão das excitações, característico do processo primário,
em um estado de integração.
Freud (1895) designa de energia livre a Q que atinge um neurônio e
tende a distribuir-se através das barreiras de contato mais
facilitadas, em direção à descarga motora. No entanto, se um
neurônio vizinho é investido simultaneamente devido à sua
proximidade e à simultaneidade do investimento, um campo de
força unificado é criado e a Q, ao invés de ir em direção à descarga,
tem o seu curso alterado por um investimento colateral. O
investimento colateral consiste, portanto, em uma inibição do livre
escoamento de Q, através da facilitação de uma rede de neurônios.
Logo, a ligação corresponde à transformação da energia livre em
energia ligada.
A energia livre corresponde ao modo de circulação da energia
psíquica nos processos primários e está relacionada com o princípio
de prazer, enquanto que a energia ligada corresponde ao processo
secundário sob o domínio do princípio de realidade. A energia livre
tende à descarga de forma mais direta possível, enquanto que a
energia ligada tem sua descarga retardada ou controlada.
Eis as palavras de Freud (1895): “A catexia de desejo, levada ao
ponto de alucinação, e a completa produção de desprazer, que
envolve o dispêndio total da defesa, são por nós designadas
como processos psíquicos primários; em contrapartida, os
processos que só se tornam possíveis mediante uma boa
catexia do eu, e que representam versões atenuadas dos
referidos processos primários, são descritos como processos
psíquicos secundários. Ver-se-á que a precondição necessária
destes últimos é a utilização correta das indicações da
realidade, que só se torna possível quando existe inibição por
parte do eu.” (p.379).
São essas ligações que vão constituir um primeiro esboço de
organização, o que torna o eu não um agente da ligação, mas sim
um efeito dela, que tem por função impedir o livre escoamento.
Desse modo, o eu é responsável pela repetição de experiências
anteriores (experiências de satisfação) ou pela inibição da
descarga.
A partir dos signos de qualidade e realidade enviados por ɷ, o eu
torna possível o pensar, que irá distinguir a representação
lembrança da representação percepção. Assim, a função do eu de
inibir os processos primários, dando lugar aos processos
secundários, faz com que o eu tenha outra função ainda mais
importante, a de reguladora do sistema ψ.
Após esse estudo de como Freud primeiro pensou o funcionamento
psíquico e sua relação com as experiências do corpo, a seguir será
explorado, esse mesmo tema, em termos de metapsicologia.

A Constituição do Psiquismo – Experiência de


Satisfação

*Artigo escrito pela Psicóloga Lisiane Storniolo

Uma das questões básicas, desenvolvida por Freud (1895), para a


constituição do aparelho psíquico é a “experiência de satisfação”. O
ser humano é o único animal que precisa do outro para se
desenvolver, ao que Freud denominou de “ação específica”. O bebê
é acometido por tensões advindas do corpo endógeno, e para obter
alivio desta tensão, deste desprazer, precisa que uma outra pessoa
execute uma “ação especifica”. O encontro do bebê com quem lhe
permite obter a descarga das tensões é o que Freud denomina
como “experiência de satisfação”.

Para Freud, este encontro é um dos mais importantes. A descarga


desta energia investe um conjunto de neurônios correspondendo à
percepção do objeto que proporcionou a satisfação, estabelecendo
uma facilitação. Adquirindo, também, a importante função
secundária da comunicação.

Quando este estado de necessidade do bebê se repetir, irrompe um


impulso psíquico que vai tentar reinvestir a imagem mnênica da
primeira experiência de satisfação, como forma de tentar reproduzir
esta satisfação original sem a presença do outro. E assim, começa
a ser definido a noção de desejo. A reativação da imagem produz
uma percepção alucinatória do outro. Esta alucinação primitiva será
o que constitui o início da simbolização, origem do processo de
pensamento.

Portanto, quem cumpre esta ação específica será o responsável por


inscrever representações inicialmente via corpo do bebê, que irão
conter seus próprios desejos inconscientes em relação a esta
criança.

Sendo a origem da representação alucinatória constituída pelo


representante pulsional de quem exerce a ação específica que irá
originar outras representações, o bebê precisará absorver e
significar estes estímulos sensoriais vindos do exterior. Este
processo de transformação realizado pelo bebê é a base fundante
para a singularidade e diversidade de respostas a um mesmo
estímulo vindo do exterior.

A experiência de satisfação é responsável por inscrever marcas


mnêmicas e instaurar o desejo. O desejo teria como finalidade
reinvestir a imagem mnêmica produzida pela primeira experiência
de satisfação. E é a partir da constituição deste desejo que o sujeito
terá a oportunidade de constituir-se como um sujeito pensante.
A máquina do psiquismo

Paulo Eduardo Viana Vidal

Universidade Federal Fluminense

A invenção da psicanálise por Freud ocorreu num campo do saber


estruturado pelo cientificismo, a crença que investe a ciência do
poder de abarcar todos os domínios do real. Segundo autores, este
ponto de partida cientificista fragilizaria epistemologicamente o
discurso freudiano, o qual se veria assolado por uma insuperável
contradição entre um programa mecanicista (baseado em conceitos
tais como determinismo, energia, etc.) e uma hermenêutica
infinitamente aberta à produção subjetiva de sentido. Focalizando
particularmente o “Projeto para uma psicologia científica”, no qual
Freud constrói uma verdadeira máquina do psiquismo, projetando
conceitos das ciências naturais no psiquismo, demonstraremos que
a originalidade da racionalidade inventada por Freud consiste
justamente em ser uma razão limítrofe, de borda, que conjuga e
separa sentido e pulsão, desestabilizando as fronteiras entre os
saberes estabelecidos. Concluímos, portanto, que não há no
discurso freudiano uma contradição que nos forçaria a optar entre a
força e o sentido.
No ensaio “Freud e a reflexão moral”, o filósofo pragmatista Rorty
(1999), recentemente falecido, interroga a conhecida imagem
freudiana que faz da psicanálise o último capítulo de uma história
da ciência moderna como sucessão de golpes na pretensão
humana de ocupar o centro do universo, da criação e de si mesmo.
Para Rorty, a humilhação maior que Copérnico, Darwin e Freud
teriam infligido no narcisismo da humanidade consiste menos nesse
descentramento, o qual sempre pode dar lugar a um recentramento,
que na promoção de uma imagem de mundo mecânica.

Em que consiste tal mecanização do mundo? Derivada do


prolongamento da revolução copernicana por Galileu e Newton, é a
representação do universo como infinito, composto de partículas
homogêneas cujos movimentos de atração e repulsão se acham
determinados precisa e rigorosamente por leis matemáticas
universais. Com isto, entrou em colapso a antiga ideia de cosmos
enquanto totalidade hierarquizada e fechada, grande cadeia do ser
na qual cada ente se moveria para realizar sua finalidade, a qual
coincidiria com o próprio Bem. A natureza dos antigos “funciona
mais como uma causa final que atrai os seres numa direção
particular que como uma causa eficiente que os impele
irresistivelmente” (Dupré,1993, p. 26).

Ao devir máquina, o mundo herda uma propriedade definidora de tal


classe de seres: as máquinas não possuem centro, finalidade
intrínseca, podendo se prestar a usos diversos. Destituído assim de
propósito e sentido, o universo criado pela física moderna evidencia
“que o mundo no qual os seres humanos viviam não os ensinaria
mais nada sobre como eles deveriam viver” (Rorty, 1999, p. 194).
Uma vez dito isto por relação ao universo, o que aconteceria se
considerássemos a nós mesmos máquinas? Neste caso, diz Rorty,
de nada adiantaria sairmos à cata do nosso centro para vivermos
felizes: seria melhor inventarmos um uso para nós mesmos.

Para o filósofo, Freud procurou interiorizar, aplicar o mecanicismo


ao domínio psíquico, empreendimento no qual, aliás, teria sido
precedido pelo associacionismo de Hume como mecânica das
representações. Embora Rorty não mencione obra alguma de Freud
para substanciar sua hipótese, esse intento de mecanização da
mente transparece nitidamente no “Projeto para uma psicologia
científica” (Freud, 1895/1976c). Pouco depois de endereçar o
referido “Projeto” ao amigo Fliess, um Freud exultante com tal
resultado de suas pesquisas sobre a causalidade das neuroses lhe
escreveu que, finalmente, “tudo pareceu encaixar-se, as
engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa
passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria
sozinha” (Freud, 1986, p. 147).

Que máquina não seja aí apenas uma figura de linguagem gasta e


cômoda para designar o modelo do psiquismo construído no
“Projeto para uma psicologia científica” fica evidente já na abertura
do texto, verdadeiro certificado de adesão ao credo mecanicista:

“a finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma


ciência natural, isto é, representar os processos psíquicos como
estados quantitativamente determinados de partículas materiais
especificáveis, dando assim a esses processos um caráter concreto
e inequívoco. Há duas ideias principais em jogo: 1) Aquilo que
distingue atividade de repouso deve ser considerado como Q,
sujeita às leis gerais do movimento. 2) Os neurônios devem ser
encarados como partículas materiais”. (Freud, 1895/1976c, p. 395)

Fazendo obedecer a princípios puramente mecânicos esses dois


postulados (quantidade e neurônio), Freud tenta construir no
“Projeto” a variedade mesma das funções psíquicas: percepção,
memória, consciência, experiências de satisfação e dor, etc. É um
modelo neurológico mecanicista, que pretende explicar o
funcionamento da mente humana através das propriedades dos
neurônios, das relações destes entre si e com a energia que os
atravessa. O psiquismo se torna uma máquina que regula (inibe,
transmite, etc.) o fluxo quantitativo aportado pelos estímulos
externos e excitações internas, permitindo que atravesse ou não os
neurônios.

Contudo, Rorty (1999) nota muito agudamente que não é tanto esse
mecanicismo que torna a psicanálise perturbadora, mas a
postulação de um inconsciente tão inteligente, engenhoso – capaz
de atos falhos, chistes, sintomas elaborados – que “é
necessariamente linguístico” (p. 200). O inconsciente excederia,
portanto, a tradição que faz do homem sede de opostos, de um pólo
“elevado” (alma, razão) que deve controlar, purificar o pólo “baixo”
(o instinto, a paixão, a animalidade). Para a reflexão filosófica, a
psicanálise traria desta maneira uma questão original, de cunho
ético, mais desconcertante que um novo mecanicismo: a noção de
que o sujeito não coincide consigo mesmo, de que se acha
irremediavelmente marcado por uma Spaltung, uma divisão
subjetiva. Por conseguinte, o relato que tecemos de nossa própria
existência não pode ser unificado, forçando-nos ao dever ético de
reconhecermos o inconsciente enquanto interlocutor, parceiro
conversacional, na expressão cunhada por Rorty, na narrativa, na
redescrição que fazemos de nós mesmos.

A experiência analítica consistiria, portanto, numa redescrição do


próprio passado sob as condições dessa conversação ampliada, na
qual nenhuma das partes pode se identificar com a verdade. Para o
filósofo, se tomar pelo único ponto de vista é crer ainda no olhar de
deus. Tecido na conversação, o Outro de Rorty não provê garantias
da verdade nem regras universais. Em vez do reencontro de uma
natureza perdida, que diria o que devemos fazer de nós mesmos, a
psicanálise visaria que – máquinas que somos – criemos narrações
alternativas de nós mesmos, novos estilos de vida, novas
metáforas, usando um vocabulário sempre revisto e ampliado.
Neste sentido, uma análise “só se diferencia da leitura de história,
de romances ou tratados sobre filosofia moral por ser mais
dolorosa, por ter uma maior probabilidade de produzir uma
mudança radical e porque requer um parceiro” (Rorty, 1999, p. 203).

Irônica, a redescrição rortyana faz do percurso de Freud um


paradoxo: cientificista, adepto da causalidade mecânica, ele nos
levou a descobrir que a vida é um romance polifônico, work in
progress sem palavra final. A experiência analítica não se limita,
entretanto, a uma redescrição, entendida como uma nova narração
pelo sujeito de sua existência, esta vai de par com uma mudança na
economia das satisfações, na economia libidinal do sujeito. Ora,
chama a atenção que Rorty só mencione a energia que circula na
máquina freudiana, a libido, para advertir o leitor de que o
inconsciente não deve ser entendido como reservatório de libido.
Par intelectual e parceiro conversacional, o inconsciente não deve
ser rebaixado a “uma massa efervescente de energias instintivas
desarticuladas” (Rorty, 1999, p. 199).

Como Freud usa expressões semelhantes a essas para caracterizar


as propriedades do Es, do Isso da segunda tópica em “O ego e o id”
(1923/1976f), se depreende que Rorty privilegia, senão exclusiviza,
a primeira tópica, entendida como uma tópica da representação e
do recalque.

Entre o sentido e a força


A bem dizer, a crítica de Rorty (1999) não é propriamente original.
Ao descartar a energética freudiana em prol do sentido, Rorty se
inscreve numa tradição que denuncia em Freud a tentativa,
malograda de antemão, de reunir num mesmo corpus teórico uma
doutrina da interpretação com o recurso positivista ao energetismo,
resquício do seu cientificismo, entendido como a crença ou culto, de
origem iluminista, que dota a ciência positiva do poder de abarcar
todos os domínios do real e de conduzir a humanidade no sentido
do progresso. Pela influência que exercerá, o ensaio “A concepção
freudiana do homem à luz da Antropologia”, de Binswanger
(1936/1970), constitui um marco nessa tradição de crítica às
anfibologias supostamente geradas pelo cientificismo freudiano.
Amigo e correspondente de Freud, esse psiquiatra suíço vinculado
à fenomenologia lhe reprovava o projeto de tentar estender ao
domínio do “espírito” o programa das ciências naturais, no qual
mecanicismo e reducionismo andam de mãos dadas. Em
consequência, a imagem psicanalítica de homem resvalaria para o
homo natura, a ideia de um ser passivamente submetido ao jogo
maquínico de forças (subentendido, as pulsões freudianas) que se
entrechocam cegamente.

Em contrapartida, para Binswanger o homem não é redutível ao


natural. Ser fundamentalmente histórico, o homem vive num mundo,
numa teia de significações cujo sentido objetiva. Ora, o
procedimento da construção científica ignora a historicidade do
homem, pois avança justamente ao preço da destruição do sentido,
de “reduzir o mundo a um fato desprovido de sentido” (Binswanger,
1936/1970, p. 231). Ao vincular sua obra à ciência, Freud teria
incorrido numa unilateralidade que Binswanger almeja remediar
reintegrando os achados psicanalíticos num todo que lhes dê sua
significação plena, numa antropologia inspirada na analítica
existencial delineada por Heidegger em Ser e tempo (1927/1988).

Mesmo aceitando a crítica do mecanicismo freudiano realizada por


Binswanger, filósofos como Hyppolite (1971) e Ricoeur (1965)
apontarão sua unilateralidade, pois desconhecem que o discurso
freudiano compreende outra vertente, aquela de uma pesquisa do
sentido, que toma os fenômenos psíquicos como fenômenos
significativos. Ao resgatarem em Freud uma hermenêutica que
contrabalançaria seu naturalismo, tais autores acabaram, no
entanto, plasmando e cristalizando a imagem de uma teoria na qual
a pulsão e o sentido coabitariam implausível e impossivelmente,
restando a questão de como resolver tal contradição, esse ferro de
madeira que fragilizaria epistemologicamente a psicanálise.

Quanto a Freud, parece impermeável a tamanha contradição entre,


por um lado, a quantidade, o determinismo cego das forças, cuja
natureza somática é objeto das ciências naturais; e, por outro lado,
o psíquico, com suas representações e articulação de sentido, cujo
campo é aquele das ciências históricas. Pelo contrário, ao longo de
sua obra, o fundador da psicanálise ressalta que o sintoma conjuga
a uma face significante, de mensagem, uma face de satisfação de
uma moção pulsional. A “razão desde Freud” (Lacan, 1957/1998a,
p. 496) é, por conseguinte, uma razão limítrofe, de borda, cujo
espaço é aquele que reúne e separa o campo da pulsão e o campo
do sentido, espaço como vimos impensável para toda uma tradição
filosófica. Não é à toa que o complexo de Édipo, operador
privilegiado dessa conjunção/ disjunção entre pulsão e linguagem,
figura entre os grandes ausentes, juntamente com o ponto de vista
econômico, do “Freud e a reflexão moral”, de Rorty (1999). O que
não deixa de suscitar uma questão para o leitor: o uso que fazemos
de nós mesmos, da nossa máquina, não tem para o descobridor do
inconsciente uma significação edípica?

Freud, Lacan e a máquina

Finda aqui a trilha a seguir com Rorty (1999); em Lacan


(1954/2000), encontramos uma tematização da máquina mais
precisa e fecunda, que nos permitirá seguir caminho. No capítulo
desse seminário que ganhou o título de “Freud, Hegel e a máquina”,
Lacan postula que a descontinuidade entre Hegel e Freud é
marcada pela consideração da máquina. Embora contemporâneo
da máquina a vapor, o filósofo não fala em energia, “enquanto que é
em torno dessa questão que gira toda a discussão de Freud –
energeticamente, o que é o psiquismo?” (1954/2000, p.96).

Segundo Lacan, Hegel identificou o homem com o saber


acumulado; um século depois, ele tem para Freud, médico, um
corpo. O fundador da psicanálise não foi médico como Esculápio e
Maimônides o foram, pois só com o dualismo cartesiano o homem
passa a ter um corpo. Frente a este, o médico da modernidade
tem...
“a atitude do senhor que desmonta uma máquina. Pouco importam
as declarações de princípio, esta atitude é radical. Foi disto que
Freud partiu e era este o seu ideal – estudar a anatomia patológica,
a fisiologia anatômica, descobrir para que serve esse pequeno
aparelho complicado que se acha encarnado no sistema nervoso”.
(Lacan, 1954/2000, p. 93)

Ainda segundo Lacan, a máquina seria condição de possibilidade


do conceito de energia, noção da qual não dispunha o mundo da
Antiguidade. Alicerçado no trabalho escravo, o mestre antigo não
precisava pôr em equações quanto o escravo produz, quanto custa
sua preservação, etc. Com a invenção da máquina a vapor, que
inaugura a revolução industrial moderna, se coloca todavia para o
capitalista o problema de calcular a eficiência máxima de um
maquinário que se degrada, dissipa energia, realiza menos trabalho
com o mesmo combustível etc.

Ramo da física que surge no século XIX, a termodinâmica formulará


as leis que dão conta da transformação, conservação e dissipação
da energia. Tomando por base a máquina a vapor, que converte
calor em energia mecânica, a primeira lei da termodinâmica
assevera que um processo físico conserva a energia mesmo
quando a transforma. Ou seja, a energia é indestrutível, não é
passível de ser criada ou destruída. Quanto à segunda lei, afirma
que toda transformação energética implica uma dissipação sem
retorno da energia. Prosseguindo com o exemplo da máquina a
vapor, esta não transforma em trabalho mecânico toda a energia
produzida, uma parte é dissipada, degradada sob a forma de calor,
não mais podendo ser aproveitada. Em consequência, caso o
trabalhador resolva girar a máquina a vapor ao contrário, não
conseguirá retornar ao estado inicial.

Em suma, a primeira lei da termodinâmica nos ensina que a energia


não é uma substância, mas a cifra, a notação matemática de um
princípio de equivalência. Já da segunda lei decorre que uma
máquina não funciona sem perda. Como nota Lacan (1954/2000),
“quando se executa um trabalho, uma parte (da energia) se dissipa
como calor, por exemplo, há perda. É o que se chama entropia” (p.
103). Mais precisamente, a entropia é uma grandeza que, ainda de
acordo com a segunda lei da termodinâmica, aumenta
inexoravelmente num sistema isolado (que não troca energia nem
matéria com o ambiente), atingindo o seu valor máximo quando se
extingue todo potencial de executar trabalho. Neste momento, o
sistema esgotou sua capacidade de se modificar, atingiu o chamado
equilíbrio termodinâmico. Numa ruptura com a mecânica clássica e
seus fenômenos reversíveis, a termodinâmica lida, portanto, com
processos irreversíveis, submetidos à chamada “flecha do tempo”
(Coveney & Highfield, 1990).

De autoria do cientista alemão Helmholtz (1847), o opúsculo Sobre


a conservação da força traz uma das primeiras formulações do
princípio de conservação da energia, da sua indestrutibilidade e
capacidade de transformação, no quadro de uma ontologia da
matéria cujo ponto de partida é “a possibilidade de reduzir A
máquina do psiquismo 270 todas as ações da natureza a forças de
atração e repulsão cuja intensidade depende apenas da distância
entre os pontos que agem uns sobre os outros (p. 1, tradução
nossa).

Qualquer semelhança dessa suposição mecanicista com as ideias


de base do “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1976c)
não é mera coincidência. Considerado por Freud um de seus
“ídolos”, Helmholtz fundou juntamente com outros físicos e
fisiologistas, entre os quais E. Brücke, professor e mestre de Freud,
o movimento científico que levaria seu nome – a Escola de
Medicina de Helmholtz –, cujo programa consistia em aplicar ao
organismo vivo, postulados físico-químicos (Jones, 1953).

Ora, o “Projeto” visa declaradamente projetar no psiquismo


suposições das ciências duras da época de Freud, bem na linha do
programa que Binswanger qualificou de reducionista. O historiador
da psicanálise, Anderson (2000) salienta, contudo, que a Escola de
Helmholtz fez parte de uma tendência inovadora, a qual reorientou
a pesquisa médica da anatomia para a fisiologia, da até então
supervalorizada tentativa de localização anatômica das doenças
mentais para o estudo das funções do sistema nervoso,
pesquisadas por meio da eletrofisiologia. Para o autor, essa nova
abordagem teria permitido a Freud desfazer a confusão entre
paralisia orgânica e paralisia histérica, distinção que mesmo
Charcot se revelou incapaz de fazer, porque ainda se achava preso
ao antigo paradigma localizacionista.

De fato, já no artigo “Histeria”, Freud (1888/1976a) prioriza


claramente a explicação neurofisiológica sobre a anatômica.
Condicionada por uma distribuição diferente das excitações no
sistema nervoso, a histeria é:
“uma neurose no mais amplo sentido da palavra – quer dizer, não
só não foram achadas alterações perceptíveis no sistema nervoso,
nessa doença, como também não se espera que qualquer
refinamento das técnicas de anatomia venha a revelar alguma
dessas alterações. A histeria baseia-se total e inteiramente em
modificações fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve
ser expressa numa fórmula que leve em consideração as condições
de excitabilidade do sistema nervoso”. (p. 79)

Portanto, foi a adesão de Freud (1893/1976b) ao programa


científico de ponta na sua época, a maquinização do organismo,
que o levou a correlacionar, no artigo “Alguns pontos para o estudo
comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas”, o
sintoma histérico de conversão não mais à anatomia médica, mas a
uma anatomia popular, imaginária. No mencionado artigo, Freud
escreve que, “na paralisia histérica, a lesão deve ser uma
modificação da concepção, da ideia de braço, por exemplo” (p.
236).

É uma crítica direta à suposição por Charcot (1887, citado por


Bercherie, 1983) de que se acharia na origem do sintoma histérico
uma lesão funcional do sistema nervoso, lesão não verificável pelos
meios de observação disponíveis, mas cuja existência o progresso
da ciência acabaria por atestar. Por que Charcot aposta suas fichas
numa causalidade orgânica ainda a ser verificada? Consideremos
um trecho das Leçons sur les maladies du système nerveux (1887,
citado por Bercherie, 1983), no qual Charcot formula o problema
que lhe suscitam certos sintomas, a catalepsia por exemplo que
acomete certas histéricas: “pode este estado ser simulado de
maneira a enganar o médico?” (Charcot, 1887, citado por Bercherie,
1983, p. 63). Por meio de experimentos que fazem uso de toda uma
aparelhagem tecno científica, Charcot chega a demonstrar “na
maioria dos casos, a ausência de simulação, a objetividade das
perturbações e, portanto, a sua natureza orgânica” (Bercherie,
1983, p. 64).

Nota-se que o ponto de partida de Charcot é a decisão de sustentar


a objetividade do sintoma histérico contra qualquer presunção de
que tivesse por causa a simulação, a imitação mal-intencionada, a
mentira. Numa palavra, de que dependesse desse elemento
sempre suspeito de parasitar a cientificidade: a subjetividade.
Decisão que certamente o alinha no campo da ciência, a qual supõe
no real um saber automático, racional e que, sobretudo, não mente.
Para o cientista, o real não mente, pois a mentira supõe uma
enunciação - um mentiroso.

Do ponto de vista científico, é primoroso o raciocínio que Freud


(1893/1976b) emprega para refutar Charcot. Depois de conceder
que as chamadas lesões funcionais podem ainda não terem sido
detectadas, argumenta que, caso existam, devem produzir uma
sintomatologia idêntica àquela de uma lesão orgânica; caso
contrário, fica refutada a hipótese orgânica. Em seguida, Freud
demonstra com precisão que as paralisias histéricas não seguem os
caminhos do sistema nervoso, mas trilhas determinadas por ideias,
representações, pela linguagem, em suma.

A partir daí, se descortina para Freud uma anatomia que só pode


ser inferida dos usos da língua, dos ditos de cada sujeito – no
sintoma histérico, a força e o sentido se encontram. Mas, como
objetivar cientificamente um testemunho sempre equívoco,
inconsistente e fluido? Ao reincluir no sintoma aquilo que seu
estatuto médico excluía – o sujeito enquanto suposto pela fala que
dirige a outrem – Freud reintegrava, portanto, no movimento da sua
descoberta um elemento considerado inconveniente pelo discurso
da ciência.

O preço dessa reinclusão do sujeito no sintoma é uma tensão


permanente no seu discurso entre uma racionalidade científica e
uma racionalidade de outro tipo, que se busca, que arduamente se
faz, suscitando aliás uma ferrenha oposição da parte dos
representantes do saber científico. Depois de ouvir uma palestra de
Freud sobre a etiologia da histeria, o eminente psiquiatra vienense
Kraft-Ebing alcunhou de “conto de fadas científico” suas hipóteses
sobre a função causal da sexualidade e da defesa nesta afecção
(Freud, 1986, p. 185).

A máquina e o sujeito

Essa tensão entre duas racionalidades permeia o problema que se


coloca para Freud nos textos que examinamos até agora: que tipo
de máquina pode incluir o sujeito? Redigidos de 1888 a 1895, no
leque de tempo que se abre pouco depois que Freud retorna de
Paris, tais artigos expõem uma concepção traumática das neuroses
que generaliza a histeria traumática de Charcot. Porém, definido
como um afluxo súbito de estímulos que o psiquismo não consegue
descarregar, o trauma não faz do sujeito uma mera superfície de
recepção, de inscrição de cargas energéticas? E o sintoma não se
torna a resultante (no sentido físico do termo) da ação de forças
obedientes a uma causalidade mecânica, linear e objetivável? Por
conseguinte, Binswanger não teria razão ao afirmar que o homem
para Freud não passa de um joguete de forças mecânicas?

Para respondermos melhor a essas questões, consideremos


brevemente os dois polos – máquina e sujeito – que colocamos em
oposição: o primeiro será representado pelos efeitos da extensão
da máquina ao psiquismo no “Projeto para uma psicologia científica”
(1895/1976c); o segundo se destacará da noção freudiana de
trauma.

Dispositivo que transforma segundo certas leis uma energia de


entrada numa energia de saída, é bem uma máquina que Freud
agencia no “Projeto”, na tentativa de chegar à “fórmula” que lhe
daria a “essência” da histeria, para retomar termos que emprega no
trecho acima citado do artigo “Histeria” (1888/1976a). À maneira de
uma carga elétrica ou hidráulica, circula, portanto, entre os
neurônios do aparelho uma energia que, embora não mensurável, é
batizada como Q, porque apresenta características quantitativas:
pode diminuir, aumentar, se deslocar, converter, ser descarregada,
etc.

Nota-se que Q é muito simplesmente a letra para inscrever uma


incógnita, uma energia capaz de se deslocar sob a cadeia de
representações. A mencionada fórmula da histeria seria, por
conseguinte, a notação simbólica que exprimiria a particularidade
das relações energéticas na histeria e outras afecções. No “Projeto
para uma psicologia científica”, Freud aduz que supôs Q em função
das suas “observações clinico patológicas, sobretudo das relativas
a idéias excessivamente intensas – na histeria e nas obsessões,
nas quais, como veremos, a característica quantitativa surge com
mais clareza do que seria normal” (1895/1976c, p. 396).

No exemplo extremamente singelo e sugestivo de Freud, um sujeito


chora copiosamente toda vez que chega à sua consciência certa
representação superintensa, denominada A. Só que o sujeito não
entende, acha inclusive absurdo que tal representação, para ele
anódina, o faça chorar de tal forma. Tomando por base a lei de
conservação da energia, Freud infere que a representação A se
tornou superintensa porque lhe foi adicionada uma quantidade
subtraída e deslocada da representação B, essa sim “traumática”,
capaz de causar o choro. Para dar conta do sintoma, Freud põe em
jogo, portanto, duas dimensões, às quais denomina, também,
representação e montante de afeto. O próprio recalque, que torna
inconsciente uma representação, opera separando a representação
do seu afeto, tendo assim um sentido quantitativo de subtração.
Mas, prosseguindo com a contabilidade, para onde vai o X
subtraído? Retirado da representação traumática, se deslocará ao
longo da cadeia de representações, se adicionará ao sintoma.

O inconsciente se constitui, portanto, nessa separação entre


representação e montante de afeto, ou seja, inconsciente é o nome
da hipótese que Freud julga necessária para correlacionar ambos.
Mas, qual é a causa do recalque? E qual a natureza do recalcado?

No campo clínico, Q é sempre identificado por Freud no “Projeto”


com a sexualidade, por mais que em princípio compreenda
estímulos de origens diversas. Por que a sexualidade? Devido ao
despertar tardio, pubertário da sexualidade por relação às outras
funções humanas, unicamente nesse domínio a rememoração
ulterior de um encontro precoce do sujeito com o sexual – tal como
a sedução da criança por um adulto – pode conferir à lembrança
uma intensidade traumática, maior que na época dos fatos,
induzindo assim o seu recalque. Ao ser significada, decifrada na
puberdade como sexual, a lembrança infantil da sedução se torna
traumática e é recalcada.

Portanto, o recalcado é sexual, embora a recíproca não seja


verdadeira: nem todo sexual é recalcado. Há um paradoxo na lógica
da operação, para o qual Freud não atenta na época: produto do
recalque, a sexualidade é também sua causa. Quanto ao sentido
conferido à lembrança traumática, a noção de sedução indica que
tem a ver com uma proibição, um interdito social maior. Inferido do
discurso das histéricas, o inconsciente se apresenta para Freud no
registro da subtração, do menos, pois o recalque, ao tornar
inconsciente o significante traumático (uma moção pulsional, para
usar a linguagem ulterior de Freud), acarreta uma perda de gozo,
transforma o gozo em castração. E, como o significante não
recupera de todo o gozo, o inconsciente repete, tentando
insistentemente apagar a diferença entre a satisfação obtida e a
satisfação buscada, como dirá mais tarde Freud (1920/1976e, p.
60), deixando claro que o inconsciente é uma máquina que trabalha
para o gozo.
A máquina e o simbólico

Fica agora mais claro porque Lacan (1954/2000) afirma, como


vimos, que as noções de energia, da sua conservação e perda,
dependem da existência da máquina: materialização do simbólico,
esta permite a contagem. Transposta por Freud ao psiquismo,
vemos que a metáfora da máquina faz surgir o inconsciente como
perda, subtração.

Contudo, a máquina não se limita, para Lacan, a uma


materialização do simbólico, não se confunde com o mero artefato,
tal uma mesa ou um par de sapatos. A máquina encarna antes, na
sua pureza, o que Lacan (1954/2000) chama de “a atividade
simbólica mais radical no homem” (p. 95). Para entendermos isto,
devemos pensar a máquina na sua autonomia em relação ao
homem ou ao biológico, supondo assim na sua definição uma
ordem, programa ou circuito que se repete.

Ainda no mesmo seminário, Lacan aproxima a noção de circuito da


sua idéia de que o inconsciente é o discurso do outro, de uma fala
que nos precede e constitui. Exemplifica com o supereu, instância
para Freud de uma herança:

“este discurso do outro não é o discurso do outro abstrato, do outro


na díade, do meu correspondente, nem mesmo simplesmente do
meu escravo, é o discurso do circuito no qual me acho integrado.
Eu sou um de seus elos. É o discurso do meu pai, por exemplo, na
medida em que meu pai cometeu faltas que eu sou absolutamente
condenado a reproduzir – é o que se chama super-ego”. (Lacan,
1954/2000, p. 112)

Por conseguinte, descentrada, automática, repetitiva, a máquina


presentificaria com perfeição o poder disruptivo, fragmentador,
mortífero que a linguagem exerce sobre o humano. Não seria isto
que Freud (1895/1976c) procura ficcionar no “Projeto para uma
psicologia científica”? De fato, o texto inicia pela ficção de um
aparelho psíquico que, regido pelo princípio chamado de inércia,
tenderia antes de tudo a se desfazer dos estímulos. Antiadaptativo,
antihomeostático, antivital, o princípio de inércia invalida a
existência de aparelho psíquico, sujeito ou Outro.
Contudo, as exigências da vida (as necessidades) se conjugam
com a impotência, o desamparo originário da criança, para que o
apelo ao Outro tenha início, apelo cuja forma primordial é o grito.
Pois apenas o cuidado alheio pode minorar o estímulo, provocando
na criança uma experiência que é de satisfação. Para Freud, tal
experiência de satisfação provoca certa percepção do objeto e
deixa traços mnésicos (visuais, auditivos, táteis, etc.). Quando a
excitação se fizer sentir de novo, uma moção psíquica – que Freud
chama desejo – reinvestirá os traços mnésicos para restabelecer,
pela via da alucinação, a situação de satisfação primeira.

Veiculado pelo processo primário, o desejo, fome de traços, visa


repetitivamente a identidade de percepção, a coincidência da
percepção atual com o traço mnésico, o selo da primeira vez. A
função primeira do traço de memória freudiano não é, portanto,
epistêmica, no sentido de prover o conhecimento capaz de ajustar o
organismo ao meio. Pois o processo primário não visa conhecer,
mas re-conhecer, reencontrar por meio da identidade de percepção
esse outro que a dependência da criança torna primordial. Freud
(1986) qualificará de “inesquecível” esse outro primordial ao expor
sua nova teoria de que o ataque histérico não é uma mera
descarga, mas uma ação, um meio de obtenção de prazer: “todos
os ataques de tonteiras e acessos de choro visam a uma outra
pessoa – mas, basicamente, visam àquela outra pessoa pré-
histórica e inesquecível, que jamais é igualada por ninguém
posteriormente (p. 213).

Das Ding

Num trecho do “Projeto para uma psicologia científica” que Lacan


(1959/2001) celebrizou, Freud (1895/1976c) tematiza como o outro
se desdobra nessa “outra pessoa” além dele mesmo, “pré-histórica
e inesquecível”, numa dimensão nostálgica. Segundo Freud,
quando o objeto da percepção é outro ser humano, um semelhante,
o complexo perceptivo que dele emana se divide em duas partes: a
primeira engloba tudo que do objeto pode ser formulado a título de
atributos, qualidades, os quais o sujeito compreende, re-conhece
graças às informações que possui, à experiência que tem do próprio
corpo; a segunda parte consiste numa estrutura constante
estrangeira, não compreensível e inassimilável, Outro absoluto do
sujeito que Freud denomina das Ding, (a Coisa).
É uma oposição entre o que se pode dizer e o que não se pode
dizer do objeto, oposição que Lacan (1959/2001) faz corresponder à
distinção existente na língua alemã entre Sache e Ding, dois
vocábulos que querem dizer coisa, mas cujos empregos são
diversos: Sache significa o produto da ação humana enquanto
governada pela linguagem, ao passo que Ding refere a coisa da
ação humana não de todo governada pela linguagem.

No interior mesmo da representação, Freud introduz, portanto, uma


clivagem entre predicável (suporte de atributos) e impredicável,
aquilo que não se presta a nenhum juízo: a Coisa, na falta de
qualquer outro nome. Deixando de ser um objeto do mundo, a
Coisa, reposta na intimidade do sujeito, o torna estrangeiro para si
mesmo. Para Lacan, o momento paradigmático dessa clivagem
aparece no “Projeto” como a transformação do grito da criança em
apelo ao Outro: ao interpretar o grito como demanda, o Outro lhe
atribui um significante, significa que há ali um sujeito, mas no
mesmo movimento separa a criança do grito, pois a faz entrar numa
articulação discursiva.

Portanto, no descompasso, na hiância entre as exigências da vida e


o desamparo da criança se instala uma estrutura significante, por
cujas redes e circuitos o desejo circulará: sem substância, vazio no
cerne das representações, a Coisa inalcançável é a sua mola
propulsora. A metáfora da máquina serve a Freud para conceituar a
memória que chamou de inconsciente num registro que transcende
a relação inter-humana e o domínio biológico.

Todavia, salta aos olhos que é bem singular a máquina do “Projeto”:


funciona desfuncionando, repetindo os fracassos, não tem uma boa
curva de aprendizagem. Além disto, a Coisa introduz na máquina
uma causalidade não mecânica, não linear: a causalidade de uma
ausência que afeta todo termo inscrito, presente. Poeta que tentou
igualar em tudo cada palavra ao silêncio que só afetava o objeto,
Mallarmé (1970) fez da Coisa seu programa: “Evocar numa sombra
expressamente o objeto calado por palavras alusivas jamais diretas,
se reduzindo a silêncio igual” (p. 302).

Para concluir

Em “De nossos antecedentes”, Lacan (1966/1998b) caracteriza seu


retorno a Freud como “a retomada pelo avesso do projeto
freudiano” (p. 68), frase na qual o termo projeto designa também o
“Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895/1976c). Tal
retorno, que não objetiva voltar ao ponto inicial, mas percorrer o
caminho que leva ao novo pela via da repetição, certamente não
obedece a uma epistemologia descontinuista, do corte, para a qual
o “Projeto” seria prépsicanalítico. Afinal, por que ainda estudar um
escrito sobre neurônios que tem uma concepção rudimentar do
inconsciente, sequer fala em pai, Édipo, etc.?

Não obstante, vimos que Lacan extraiu do “Projeto” a Coisa, termo


heterogêneo à significação, aos objetos do mundo e à objetividade
científica. Com a noção de objeto a, Lacan tornará das Ding
operacional em psicanálise: resto produzido pela articulação
significante, o objeto a condensaria o gozo perdido pelo sujeito ao
entrar na linguagem e causaria o desejo. Assim procedendo, lembra
Cottet (1996), a psicanálise “retoma os rebutalhos da ciência e o
que é forcluído do seu discurso, a relação do desejo com um objeto
por natureza não desejável” (p. X). Ao cavar uma brecha entre a
legalidade estrita dos fenômenos científicos e a causalidade da
Coisa, o “Projeto” abre uma margem de indeterminação – o espaço
do sujeito.

Demarquemos agora os limites do “Projeto”, aproveitando uma


sentença de Lacan (1954/2000) no seminário dois: “máquina é a
estrutura enquanto destacada da atividade do sujeito. O mundo
simbólico é o mundo da máquina” (p. 63). Por mais que esta obra
antecipe como vimos inúmeros conceitos que se tornarão centrais
em Freud (objeto perdido, recalque, desejo, etc.), as respostas que
traz quanto à atividade do sujeito derivam ainda de um momento,
bastante sofisticado é verdade, da noção freudiana de trauma: o
trauma a posteriori ou póstumo.

De origem mecânica, a noção de trauma denotava originalmente


um choque de corpos. Transposta para a subjetividade, dramatiza
para Freud, nos “Estudos sobre a histeria” (1895/1976d), o impacto,
a comoção provocada por incidentes reais: a morte súbita de entes
queridos, no caso de Emmy von N., a agressão sexual que
Katharina sofre da parte do tio, etc. De valor traumático, por assim
dizer, universalmente válido, tais infortúnios apresentam o sujeito do
trauma de modo passivo, como uma superfície de inscrição
submetida a uma causalidade linear e objetivável. O sintoma
representa o trauma, não o sujeito. Há certamente uma participação
do sujeito, que se defende afastando da consciência essas cenas,
resiste à sua rememoração, mas Freud não articula a defesa com o
desejo. A cura pela abreação não é uma realização do desejo.

Mais sofisticada, a noção de trauma no “Projeto” confere até mesmo


um novo peso à realidade psíquica ao radicar o traumático na
lembrança do fato e não no fato enquanto tal. Todavia, o conceito
de a posteriori ainda coincide aí com o efeito retardado, diferido de
uma significação (sexual) em potência, latente, que é finalmente
ativada. Ora, a sexualidade não interessa a Freud como uma
substância opaca, uma energia que circularia numa máquina, o que
faria dele um precursor da sexologia ou da terapia reichiana. O que
a psicanálise traz de original são perguntas de outra ordem: como
pode subjetivar, dar conta da sexualidade um sujeito? Que saber
um sujeito pode mobilizar, elaborar para significar a ausência da
Coisa, perda que a máquina, a estrutura de entrada lhe impõe? Pois
há experiência analítica apenas quando opera a união na diferença
desses termos heterogêneos: sujeito e Coisa, sentido e pulsão.

Questões que despontam, portanto, dessa charneira entre o campo


do sentido e o campo da pulsão que Freud inventou, apresentando
assim para a filosofia e para a cultura um convidado incômodo,
estranho ao sentido – a pulsão – ao mesmo tempo em que interroga
a ciência quanto ao estatuto que confere ao sujeito.
Entre o corpo e o psiquismo: a noção de
concomitância dependente em Freud
Monah Winograd

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia

“Ademais, existe o fato, inacessível por meio da compreensão


mecânica, de que simultaneamente ao estado de excitação,
definível mecanicamente, de elementos cerebrais específicos,
estados específicos de consciência, acessíveis somente através de
introspecção, podem ocorrer. O fato real da conexão entre
mudanças no estado material do cérebro e mudanças no estado de
consciência, mesmo que esse fato seja incompreensível
mecanicamente, faz do cérebro o órgão da atividade anímica.
Mesmo a natureza da conexão sendo incompreensível para nós,
ela não é sem leis e, baseado na combinação entre experiência dos
sentidos externos, de um lado, e introspecção interna, de outro,
estamos aptos para afirmar algo sobre estas leis. Se uma mudança
específica no estado material de um elemento cerebral específico
conecta com uma mudança no estado de nossa consciência, então
esta também é inteiramente específica; entretanto, ela não é
dependente somente da mudança no estado material, quer esta
conexão ocorra, quer não. Se o mesmo elemento cerebral passa
pela mesma mudança de estado em momentos diferentes, então o
processo anímico correspondente pode estar ligado a ele numa
ocasião e não em outra. No momento, não estamos aptos a
formular melhor as leis que governam isto. Não sabemos se a
conexão depende, além da mudança de estado dos elementos
considerados, de estados e mudanças simultâneos em outros
elementos cerebrais, ou, ademais, se também depende de outra
coisa” (Freud, 1888a, p. 62-63).

Esta passagem foi extraída do artigo Cérebro, escrito por Sigmund


Freud em 1888 para um dicionário de medicina geral. Ele não figura
nas edições de suas obras completas, e, no entanto, revela as
bases do modo como Freud entendia a alma humana.
Historicamente esse artigo pode ser classificado como parte de
seus últimos escritos neurológicos, situando-se na fronteira entre o
que se convencionou chamar de período neurológico e período
psicológico da produção freudiana (Bruno, 1971; Solms e Saling,
1990). O fato de ter sido escrito durante a época em que Freud
fazia suas primeiras observações e reflexões sistemáticas sobre
psicopatologia, iniciando a construção de sua primeira teoria
psicológica, aumenta ainda mais seu interesse.

Quando o escreveu, Freud tinha 32 anos. Aos 30, em 1885-86,


estudou com Jean-Martin Charcot (1825-1893) em Paris. Histeria e
hipnotismo eram os interesses principais de Charcot na época, e as
atividades de Freud depois de seu retorno a Viena demonstram a
profunda impressão que esses temas lhe causaram. Em 1886 ele
traduziu as aulas do mestre francês (Freud, 1886a) – que eram
principalmente sobre histeria –, apresentou um caso de histeria
masculina para seus colegas (Freud, 1886b), começou a fazer um
estudo comparativo da sintomatologia orgânica e histérica (Freud,
1893a) e começou a tratar de histéricos e neurastênicos em seu
consultório particular. Durante o ano de 1887 começou a usar o
“método catártico” de Joseph Breuer (18421925) no tratamento de
pacientes histéricos e publicou duas resenhas sobre neurastenia e
histeria, entre outros trabalhos. Em 1888 mais dois trabalhos sobre
histeria foram publicados (Freud, 1888b e 1888c) e um livro sobre
sugestão hipnótica escrito por Hippolyte Bernheim (1840-1919) foi
traduzido (Freud, 1888d). No mesmo ano publicou o Cérebro.
O cérebro e o paralelismo psicofísico

Em Cérebro apresenta o encontro entre dois campos – neurologia e


psicologia – em uma só alma. Desse encontro resultará, três anos
depois, a formalização do ponto de vista freudiano sobre o
problema das relações corpo-alma, particularizado no das relações
cérebro-pensamento. O artigo salta aos olhos como especialmente
revelador. É um dos mais longos do dicionário e pretende ser uma
introdução sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro humano.
Dividido em duas partes, a primeira versa sobre neuroanatomia e a
segunda sobre neurofisiologia. A primeira parte é subdividida em
sete subseções, começando com uma rápida descrição do
desenvolvimento embriológico do cérebro. As três subseções
seguintes descrevem sua topografia geral e a anatomia de suas
subdivisões maiores. A quinta seção trata de neuroanatomia
microscópica e revisa as vantagens e desvantagens das diversas
técnicas histológicas em uso na época. A sexta seção considera o
quanto a investigação neuroanatômica da época podia esclarecer
sobre o funcionamento cerebral. Aqui, o artigo torna-se menos
descritivo, com críticas de Freud à então ortodoxa concepção das
relações estruturo-funcionais no sistema nervoso humano. A sétima
e última subseção é dedicada ao então controverso tema do curso
das trilhas sensórias e motoras através do sistema nervoso.

A segunda parte do artigo é a que nos interessa. É sobre


neurofisiologia, e começa pela problemática das relações entre
processos neurofisiológicos e processos psíquicos, incluindo uma
especulação sobre como estes podem ser representados no
cérebro. A seguir, e até o final do artigo, são discutidas a fisiologia
do córtex cerebral e de outras estruturas do sistema nervoso.

Freud começa essa segunda parte dando uma definição geral do


cérebro como o órgão no qual “as excitações sensórias centrípetas”
são convertidas em “impulsos centrífugos de movimentos” 3. Esta
função do cérebro recebe o estatuto de causalidade mecânica,
tendo no arco-reflexo o seu modelo. Contudo, a atividade cerebral
não se reduz a essa função, pois “simultaneamente ao estado de
excitação, definível mecanicamente, de elementos cerebrais
específicos, estados específicos de consciência podem ocorrer”
(1888a, p. 62). Entre os estados de excitação cerebral e os estados
de consciência, Freud concebe uma relação de conexão ou de
ligação, que pode ser formulada da seguinte maneira: as mudanças
nos estados materiais (excitação de elementos cerebrais) estão em
conexão com as mudanças de estados de consciência (Bruno,
1971); ela constitui uma primeira determinação do psíquico e faz do
cérebro “o órgão da atividade anímica (Seelenthätigkeit)”. O que
nos diz Freud dessa atividade anímica?

A conexão que a constitui não tem origem em uma causalidade


mecânica. Se a aparição de um estado de consciência implica
necessariamente a excitação de elementos corticais, a recíproca
não é verdadeira. Um mesmo estado de excitação, de um mesmo
elemento cerebral, pode estar ou não em conexão com um estado
de consciência, de acordo com cada momento. Nada, pelo menos
na época de Freud, permitia dizer se a ocorrência dessa conexão
depende de uma mudança de estado de outros elementos
cerebrais; ou, segundo as palavras do jovem médico, “de outra
coisa”.

A conexão, quando tem lugar, dá-se em termos de franqueamento


ou não-franqueamento de um “limiar da consciência”. A aparição de
um estado de consciência tem por protótipo o ato voluntário, mas os
estados de consciência podem tomar formas diversas: sensação de
necessidade, percepção de objeto, representação de objetivo etc.
Os estados de consciência são acessíveis unicamente à
introspecção. Na forma do comportamento observável nada permite
afirmar com segurança que tiveram lugar.

A partir desses aspectos pode-se, provisoriamente, tirar algumas


conclusões. A ausência de causalidade mecânica entre estado de
excitação cortical e estado de consciência induz à idéia de uma
espécie de distinção de níveis entre os dois, da qual ainda não se
sabe se é nominal ou real. Por outro lado, há o anímico a partir do
momento em que a conexão se efetua entre os dois níveis, o estado
de excitação cortical sendo uma condição necessária, mas não
suficiente, do estado de consciência. É o que Pierre Bruno (1971)
chama, em sua análise do artigo, de determinação I do psíquico.

Porém, o restante do texto não permite a permanência nessa


primeira determinação. Com efeito, ao lado da relação de conexão,
Freud acrescenta um segundo tipo de relação, desta vez operando
entre os próprios elementos psíquicos. Essa ligação tem a forma de
uma cadeia, cujos elos são os elementos psíquicos, que podem ser
por exemplo, os diversos estados de consciência, ou mesmo as
diversas idéias. Segundo a primeira relação (determinação I), essa
cadeia psíquica está em ligação com a cadeia material, mas é ao
mesmo tempo distinta. Ela obedece às leis da associação de idéias
(associacionismo), o que implica leis homólogas ao nível da cadeia
material. Mas será que esta homologia de leis permite a dedução da
existência de uma correspondência elo a elo entre as duas
cadeias?

Freud oferece três possibilidades de composição da cadeia


psíquica:

1. todos os elos da cadeia psíquica franquearam o limiar da


consciência. É o caso mais simples;

2. somente alguns elos franquearam esse limiar;

3. algum elo não franqueou esse limiar.

De saída nota-se que a identificação entre consciente e psíquico


parece impossível: se algum elo da cadeia psíquica pode não ter
franqueado o limiar da consciência, e ainda assim ser um elo da
cadeia psíquica, é porque psíquico e consciente não são idênticos.
A pergunta é inevitável: qual o destino dos elos que não
franquearam o limiar da consciência? Pierre Bruno (1971)
decompõe a resposta em duas eventualidades, evidenciando o
ponto de vista de Freud sobre o problema das relações corpo-alma.

Em uma primeira eventualidade os elos que não franquearam o


limiar da consciência só existiriam como elos da cadeia material. No
caso em que apenas alguns elos franquearam esse limiar, e se
queremos que a cadeia não se rompa, devemos supor a existência
de uma possibilidade de associação entre um elo da cadeia
psíquica e um elo da cadeia material, o que estaria conforme a
ideologia associacionista. Por outro lado, conforme as palavras de
Pierre Bruno, “no caso em que nenhum elo franqueie o limiar da
consciência, a aplicação desta eventualidade resulta na redução
total da cadeia psíquica à cadeia material. Vê-se o que daí decorre:
o psíquico não seria nada mais do que a fisiologia cortical, incluindo
a possibilidade, mas não a necessidade, da consciência” (1971, p.
130).

Pierre Bruno prossegue e apresenta uma segunda eventualidade:


os elos que não franquearam o limiar da consciência subsistem
como elos psíquicos não-conscientes, distintos da cadeia material.
Neste caso, Freud estaria considerando o psíquico como mais do
que somente a consciência e irredutível ao fisiológico. Embora o
desdobramento ulterior do pensamento freudiano leve a considerar
a segunda eventualidade como pertinente, nada no texto de 1888
permite escolher seguramente uma das duas possibilidades.
Somente uma coisa é certa: há uma determinação I do psíquico,
que segundo as eventualidades 1 e 2, pode especificar-se em
determinação I.1 ou I.2 (p. 131 e ss).

Esse problema – como Freud concebia a relação entre psíquico e


fisiológico, portanto, mais profundamente, qual a sua posição
filosófica sobre o problema das relações corpo-alma nessa ocasião
– foi objeto de alguns poucos estudos. Andersson (1962) acreditava
que o jovem Freud tinha uma perspectiva epifenomenalista,
segundo a qual os acontecimentos psíquicos seriam somente
sombras dos acontecimentos físicos. A relação causal é clara e de
mão única: o físico causa o psíquico. Como consequência, os
acontecimentos psíquicos são dispensáveis, já que o curso dos
acontecimentos físicos seria exatamente o mesmo, com ou sem seu
correspondente psíquico. Peter Amacher (1965) aproxima-se de
Andersson ao afirmar que Freud não concebia os processos
anímicos como sendo independentes dos físicos. Cérebro e
pensamento funcionariam segundo princípios idênticos, quais
sejam, os do arco-reflexo. Solms e Saling (1990), discordando de
Andersson e Amacher, entendem que para Freud a atividade
psíquica não pode ser reduzida à fisiologia cerebral e seus
princípios. Para esses comentadores, a posição de Freud sobre o
problema das relações corpo-alma seguia o paralelismo psicofísico
(Freud, 1891; Solms e Saling, 1986).

Solms e Saling parecem estar com a razão. Com efeito, segundo as


duas determinações diferenciadas acima, Freud supõe duas
cadeias – a material e a psíquica – ligadas, inter-relacionadas, em
conexão, mas simultaneamente distintas. Apesar de não
encontrarmos nenhum tipo de resolução explícita quanto ao destino
dos elos que não franqueiam o limiar da consciência, a distinção
entre as duas cadeias, aliada à afirmação de que a conexão entre
elas não segue uma causalidade mecânica, sugere que Freud as
compreendia de maneira paralelista. Fica evidente que se por um
lado ele não concebia as cadeias como substâncias distintas,
operando de modo independente, por outro lado também não
reduzia uma à outra – posição reiterada e reforçada, como
veremos, em 1891.
A histeria e a distribuição das excitações

No artigo Histeria, escrito para o mesmo dicionário de medicina


geral, pode-se encontrar outras indicações sobre o modo como
Sigmund Freud entendia a relação entre a cadeia material e a
cadeia psíquica. Logo na primeira página ele afirma que não foram
encontradas alterações anatômicas perceptíveis do sistema
nervoso nos pacientes histéricos, e que não se deve esperar
encontrá-las, mesmo com o aperfeiçoamento das técnicas de
anatomia. Isso porque, nas suas palavras, “a histeria baseia-se
inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso, e
sua essência deveria expressar-se mediante uma fórmula que
desse conta das relações de excitabilidade entre as diversas partes
do referido sistema” (1888b, p. 45).

Dentre os sintomas físicos da histeria, o jovem médico inventaria os


seguintes: ataques convulsivos, perturbações da sensibilidade,
paralisias e contraturas. Todos marcados pelo caráter do excessivo:
uma dor histérica é relatada como dolorosa em um grau máximo,
uma contratura opera o máximo de contração de que um músculo é
capaz etc. Quanto aos sintomas psíquicos, Freud os define como
alterações no decurso e na associação de representações, inibições
da atividade voluntária, acentuação ou sufocamento de
sentimentos, entre outros. Todos podendo ser resumidos como
“umas modificações na distribuição normal, sobre o sistema
nervoso, das magnitudes de excitação estáveis” (p. 54), com a
produção de um excedente de excitação que exteriorizar-se-ia ora
inibindo ora estimulando, e deslocar-se-ia livremente. Vê-se que
variações nas excitações dos elementos do sistema nervoso estão
em conexão com variações anímicas, tal e qual o que foi proposto
no artigo Cérebro.

No final de Histeria, a título de resumo, Freud escreve:

Para sintetizar, se pode dizer: a histeria é uma anomalia do sistema


nervoso baseada numa distribuição diferente das excitações,
provavelmente com formação de um excedente de estímulo dentro
do órgão anímico. Sua sintomatologia mostra que este excedente
de estímulo é distribuído por representações conscientes e
inconscientes. Tudo quanto varie a distribuição das excitações
dentro do sistema nervoso é capaz de curar perturbações
histéricas; tais intervenções são em parte de natureza física, em
parte de natureza psíquica (p. 62-63).
Primeiro, a confirmação de mais uma idéia que ficava implícita no
artigo Cérebro os elos que não franqueiam o limiar da consciência
permanecem como elos psíquicos inconscientes. Depois, a
afirmação de que intervenções de natureza psíquica, bem como
física, podem fazer variar a distribuição das excitações no sistema
nervoso: a conexão entre as cadeias material e psíquica é
recíproca. A cada configuração somática das forças em ação no
sistema nervoso, ou segundo o punho de Freud (1889), a cada
“estado encefálico” corresponderia um “estado de alma” e,
inversamente, a cada estado de alma corresponderia um estado
encefálico, cada um sendo causa do outro e de si mesmo. É isto
que permite o deslizamento e a indecisão entre a utilização de
termos psicológicos e fisiológicos, característicos desse texto de
1888. São dois modos de descrever um mesmo processo.

Se era realmente este o seu ponto de vista, nada mais coerente do


que considerar o método hipnótico como uma possibilidade
interessante no tratamento de algumas afecções. Em seu prólogo à
tradução do livro de H. Bernheim, De la suggestion, também de
1888, Freud apresenta o problema de como o hipnotismo deveria
ser considerado: como um fenômeno psíquico (desencadeado a
partir da “sugestão”) ou como um fenômeno físico e fisiológico.
Como era de se esperar, ele não assume nenhuma das duas
posições. Ao contrário, empenha-se em descrever tanto os
processos fisiológicos quanto os psicológicos envolvidos, e justifica
seus argumentos concordando com Bernheim sobre o equívoco de
classificar os fenômenos hipnóticos como puramente fisiológicos ou
puramente psíquicos. Trata-se na verdade de um processo de dupla
face que implica, simultaneamente, variações psíquicas e
fisiológicas. A especificação, de acordo com sua natureza, dos
mecanismos em ação na hipnose deve, portanto, ser considerada
um falso problema: “creio, então, que é preciso desautorizar a
pergunta sobre se a hipnose mostra fenômenos psíquicos ou
fisiológicos, e submeter a decisão a uma indagação especial para
cada fenômeno singular” (Freud, 1888d, p. 91). Para Freud, um
determinado fenômeno (no caso, o hipnotismo) será psíquico ou
fisiológico, anímico ou corporal, de acordo com o registro de
incidência da investigação e da explicação, o que faz da decisão
sobre o que teria causado o que uma questão formulada
equivocadamente.

A ação recíproca entre o anímico e o corporal


Dois anos depois, em 1890, Freud publicava o artigo Tratamento
psíquico no manual de medicina Die Gesundheit, uma obra de
divulgação em dois volumes, que reunia muitas colaborações de
autores variados. Esse artigo integrava uma seção do primeiro
volume sobre os diversos métodos terapêuticos. Versando mais
uma vez sobre o polêmico tratamento hipnótico, Freud apresentou
seu ponto de vista sobre o próprio hipnotismo, a medicina de seu
tempo, e sobretudo o paralelismo psicofísico. A passagem é
bastante clara e mostra a atitude singular de Freud frente ao modo
como seus colegas médicos pensavam a vida anímica:

É verdade que a medicina moderna teve ocasião suficiente de


estudar os nexos entre o corporal e o anímico, nexos cuja
existência é inegável; mas, em nenhum caso, deixou de apresentar
o anímico como comandado pelo corporal e dependente dele.
Destacou, assim, que as operações anímicas supõem um cérebro
bem nutrido e de desenvolvimento normal, de sorte que resultam
perturbadas toda vez que esse órgão se enferma; (...). A relação
entre o corporal e o anímico (no animal, tanto como no homem) é
de ação recíproca; mas, no passado, o outro flanco desta relação, a
ação do anímico sobre o corpo, encontrou pouca honra aos olhos
dos médicos. Pareciam temer que, se concedessem certa
autonomia à vida anímica, deixariam de pisar o terreno seguro da
ciência (1890, p. 116 – grifo meu).

Pela primeira vez Freud declara explicitamente que entende as


relações entre o anímico e o corporal como sendo recíprocas. Por
um lado, variações na configuração material dinâmica do sistema
nervoso implicam variações na atividade da alma. Por outro, o
anímico também age sobre o corpo, por exemplo paralisando
pernas e braços, como na histeria. E mais uma vez o problema da
verificação empírica da causa última dessas variações deve ser
descartado, na medida em que a premissa é a de que se trata de
dois modos possíveis e legítimos de explicação para um mesmo
acontecimento. Acontecimento que ao afetar simultaneamente os
dois registros, produz efeitos em ambos, sem que seja possível
determinar a causa primeira.

Finalmente, em 1891 Freud publica sua primeira obra, Contribuição


à concepção das afasias, na qual é possível encontrar – ao lado e
por conta de sua tomada de posição relativamente às teorias
neurológicas mais influentes da academia vienense do final do
século passado – a formalização de seu paralelismo apenas
esboçado implicitamente nos textos anteriores. Nesse livro Freud
arrisca a construção do primeiro modelo de aparato psíquico sob a
forma de um aparato de linguagem. Sua intenção era criar um
modelo que, diferentemente daqueles concebidos por seus colegas
Karl Wernicke (1848-1905) e Theodor Meynert (1833-1892), entre
outros, fosse capaz de explicar ao mesmo tempo o discurso
espontâneo normal e os distúrbios funcionais reversíveis (Nassif,
1977; Rizzuto, 1993). Segundo Ana-Maria Rizzuto (1989), o motivo
para empreender tal tarefa teria sido a necessidade de dar conta
dos fenômenos discursivos apresentados, por exemplo, por sua
paciente Emmy von N. e pela antiga paciente de Breuer, Anna O.
Os modelos de seus colegas explicavam satisfatoriamente a
repetição da linguagem falada por outros, mas não incluíam
nenhuma explanação de como o discurso espontâneo acontece.

Ao querer um aparato capaz de produzir o discurso espontâneo,


Freud pretendia que esse aparato fosse capaz de pensamento, de
processos psíquicos implicando representações (objeto e palavra),
associações entre tais representações, e por aí vai. Mas para Freud
ainda era necessário relacionar essas atividades da alma à
estrutura e ao funcionamento material do cérebro. A doutrina
dominante no ano de 1891 era a teoria da localização, segundo a
qual as funções psíquicas poderiam ser localizadas
anatomicamente no cérebro. A partir da verificação da relação, em
cadáveres, entre lesões no córtex e déficits funcionais, inferia-se a
referência de determinada função psíquica a uma localização
cerebral dada. Freud discordava desse ponto de vista, tanto com
relação à localização das funções psíquicas quanto com relação à
inferência da fisiologia cerebral a partir de sua patologia. Essa
discussão o leva, necessariamente, ao problema das relações
corpo-alma.

A concomitância dependente

Na parte V do livro sobre as afasias, ao criticar a doutrina “córtico-


cêntrica” de Meynert e sua hipótese da localização anatômica das
funções cerebrais, Freud explicita e defende a idéia de que a
relação entre os processos fisiológicos do sistema nervoso e os
processos psicológicos não é de causalidade mecânica, mas
de concomitância dependente. Ou seja, os processos fisiológicos e
os processos psicológicos são concomitantes (ocorrem
simultaneamente a partir de certo momento), interdependentes e de
ação recíproca.
A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso não se
encontra, provavelmente, numa relação de causalidade com os
processos psíquicos. Os processos fisiológicos não se interrompem
ao iniciarem-se os processos psíquicos. Ao contrário, a cadeia
fisiológica prossegue, só que a partir de um certo momento, um
fenômeno psíquico corresponde a um ou mais de seus elos. O
processo psíquico é, assim, paralelo ao processo fisiológico (“a
dependent concomitant”) (1891, p. 105 – grifo meu).

Sendo assim paralelos, processos fisiológicos e processos


psicológicos não se confundem, embora estejam estreitamente
conectados entre si. Daí a localização das representações nas
células nervosas ser, para Freud, um grande equívoco. O correlato
fisiológico da representação não deve ser algo em repouso, mas
alguma coisa da natureza de um processo, cujas propriedades
devem ser definidas por si mesmas e independentes de seu
correlato psicológico. O mesmo vale para os processos
psicológicos: sua estrutura interna independe das estruturas
anatômica e fisiológica, e deve ser abordada em seus próprios
termos.

Para alguns comentadores, como Bruno (1971) e Solms e Saling


(1986; 1990), esse teria sido o momento de mudança formal do
pensamento conceitual de Freud, o “elo perdido” entre seus anos
neurológicos e psicológicos. Para outros, como Sulloway (1979),
nada haveria da ordem de um corte, mas ao contrário uma síntese
entre psicologia e biologia. Outros, como Rizzuto (1989) e Garcia-
Roza (1991), preferem ressaltar a importância do texto como sendo
a primeira construção de um modelo de aparato psíquico, ainda que
se especializasse em um aparato de linguagem, implicando a
formulação de noções como as de representação-objeto e
representação-palavra.

De fato, a monografia de 1891 contém a formulação inicial de


conceitos importantes, que irão operar como elementos de outros
conceitos especificadores do campo da psicanálise. Determiná-la
como o ponto de mudança formal do pensamento de Freud é forçar
uma marcação histórico-epistemológica. Afastar-se da pesquisa em
neurologia não significou, para Freud, o abandono dos pontos de
vista assumidos. Pelo contrário, sua manutenção foi produtora da
própria psicanálise.

Voltando à questão da concomitância dependente, se tinha ficado


clara para Freud a relação paralela e de ação recíproca entre as
séries fisiológica e psicológica, um outro problema permanecia
enigmático: o que acontece no momento a partir do qual à série
fisiológica há uma série psicológica correspondente, simultânea e
paralela? Serão precisos poucos anos mais para que uma resposta
seja esboçada, com a retomada da noção de limiar em outro
contexto teórico.

Em janeiro de 1895 Freud publica um artigo em que propõe uma


nova entidade nosográfica, a neurose de angústia (1895a).
Diferenciando-a da angústia histérica, Freud conclui que nessa
neurose recém-definida, a angústia tem sua fonte nos assim
chamados “fatores físicos da vida sexual”. A impossibilidade, pelos
mais variados motivos, de transpor a tensão sexual física para o
plano psíquico acarretaria um acúmulo exacerbado dessa tensão e
sua consequente descarga motora através, por exemplo, de
taquicardias, hiperventilação, tremores etc. Sua hipótese na ocasião
era: para que uma excitação endógena sexual faça-se notar
psiquicamente, ela deve atingir um certa intensidade, a partir da
qual será valorizada e entrará em relação com os grupos de
representações capazes de engendrar a solução específica. Dito de
outro modo, a tensão sexual física deve atingir um certo valor
acumulado para despertar a libido psíquica. Uma vez transposto
esse limiar, o grupo de representações sexuais presente na alma
seria dotado de “energia” – ou seja, o estado psíquico de tensão
libidinosa seria gerado e levaria ao esforço para cancelá-lo. O limiar
da consciência do texto de 1888 reaparece aqui como explicação
etiológica de um tipo de neurose5.

Mas o que quer dizer “representações dotadas de energia”? Para


Freud, evidentemente não se tratava de propor que a energia
sexual física se transformasse em energia psíquica, mas de
valorização psíquica de uma excitação física recebida pelo aparato
anímico.

Se, para fixar melhor nossas representações sobre isto,


supusermos que a excitação sexual somática se exterioriza como
uma pressão sobre uma parede provida de terminações nervosas,
as vesículas seminais, então, esta excitação visceral aumentará de
modo contínuo, mas apenas a partir de certa altura será capaz de
vencer a resistência da condução interpolada até o córtex cerebral e
exteriorizar-se como estímulo psíquico (1895a, p. 108).

Se Freud arrisca aqui e ali a noção de limiar, ele não a desenvolve


a ponto de utilizá-la como explicação geral da passagem da cadeia
material para a cadeia psíquica. Seu uso é hipotético, local e
bastante circunscrito. Para Freud somente uma coisa era certa: as
cadeias material e psíquica são concomitantes dependentes,
paralelas e de ação recíproca. Quaisquer afirmações sobre o modo
como se dá a conexão entre elas eram, e até hoje ainda parecem
ser, apenas hipóteses.

Dito de outro modo, é preciso considerar – e não apenas


teoricamente, mas clinicamente também – a simultaneidade dos
processos em jogo e a sua articulação em rede. De modo que o
recurso tão frequentemente utilizado – tentativas de explicação
causal dos fenômenos clínicos – revela-se ingênuo e insuficiente. A
relação entre as causas em operação é de ação recíproca formando
um sistema complexo, no qual é impossível decidir sobre a causa
primeira: somos uma conjugação entre o que trazemos à vida e o
que a vida nos traz.

O conflito psíquico na teoria de Freud


Flávio Fernandes Fontes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Parte I

O presente artigo se propõe a estudar o tema do conflito, isto é, o


choque entre diferentes forças – as chamadas oposições e
contradições. Mais especificamente, pesquisaremos sobre como
essa temática foi explorada por Sigmund Freud em suas
investigações acerca do psiquismo humano. Para isso, partiremos
de uma hipótese central: é o pensamento antitético, isto é, o pensar
através de pares de opostos, uma das características constitutivas
da obra freudiana? Em outras palavras, é a obra de Freud marcada
por conflitos entre pares de opostos?

Essa hipótese surgiu principalmente a partir da leitura dos próprios


textos freudianos. Em Os instintos e suas vicissitudes, podemos
encontrar o seguinte trecho:

nossa vida mental como um todo se rege por três polaridades, as


antíteses:

Sujeito (ego) – Objeto (mundo externo),

Prazer – Desprazer, e

Ativo – Passivo (Freud, 1915a, p. 138).

Observando essa esquematização dual proposta por Freud,


imediatamente levantamos a possibilidade de ampliar, generalizar
essa estrutura para interpretar outros conceitos, agrupando-os do
mesmo modo. Veremos a seguir que tal procedimento revela-se
frutífero na compreensão de diversos conceitos, que passaremos a
listar.

Princípio da Inércia – Lei da Constância

No Projeto para uma psicologia científica (1895a), o aparelho


psíquico é concebido como formado por partículas materiais
chamadas de neurônios, que podem estar mais ou menos
carregados por Q, quantidade de energia psíquica. Nessa teoria, o
modo como se dá a circulação de Q no sistema neuronal é o que
caracterizará o ponto de vista econômico. Essa economia é
regulada por dois princípios: 1) o princípio da inércia diz que os
neurônios tendem a se desfazer de Q; 2) como uma descarga total
tornaria o sistema incapaz de realizar qualquer coisa, o princípio da
constância cuida de reter uma quantidade mínima de Q
constantemente presente no sistema.
Neurônios? (phi) – Neurônios? (psi)

Os neurônios? são permeáveis à passagem de Q, não oferecendo


nenhuma resistência à descarga de energia, enquanto os
neurônios? são, pelo menos em parte, impermeáveis, o que
possibilita a retenção de uma determinada quantia de Q. Ainda
no Projeto... (1895a), aparecem de forma rudimentar as
concepções de processos primários e secundários, energia livre e
ligada. Porém, como esse tema só veio a ser melhor desenvolvido
mais tarde na obra de Freud, trataremos desses pares em relação
com outros conceitos nos dois tópicos seguintes, seguindo o bom
comentário e resumo feito por Garcia-Roza (1988).

Prazer – Desprazer

O desprazer estaria relacionado a um aumento da tensão do


aparelho psíquico, enquanto o prazer estaria relacionado a uma
diminuição. Todo o funcionamento mental estaria voltado para
diminuir o desprazer e gerar o prazer, ou seja, estaria regido pelo
que Freud chamou de Princípio do prazer. No entanto, o sujeito
logo aprende que nem sempre a satisfação dos seus prazeres é a
melhor opção, uma vez que tais atos podem ter como contrapartida
uma punição. Assim, passa a adiar alguns prazeres em troca de
outros, mais seguros, e para isso utiliza-se de processos racionais
de avaliação e julgamento objetivo das causas e consequências
envolvidas em um determinado contexto. Essa ponderação, que
vem contrabalancear o domínio do princípio do prazer, foi chamada
por Freud de Princípio da realidade (1911). O princípio do prazer
está relacionado ao processo primário, que se encarrega de
descarregar excitação, enquanto o princípio da realidade está
relacionado ao processo secundário, que permite a inibição dessa
descarga.

Inconsciente (Ics) – Consciente (Cs)

A definição entre esses sistemas psíquicos se dá sempre por


oposição. Assim, o inconsciente é definido por uma forma de
energia livre, e pela predominância do processo primário e do
princípio do prazer, enquanto o consciente é definido pela energia
ligada e predominância do processo secundário e princípio da
realidade (Freud, 1915b, p. 191-194). O recalque e a repressão
procuram expulsar conteúdos do Cs e impedir que eles voltem a
aparecer, enquanto as formações do inconsciente (atos falhos,
sonhos, chistes, sintomas) tentam burlar a resistência e a censura
para fazer com que determinados conteúdos surjam (Freud, 1910a,
p. 43-51).

Introjeção – Projeção

Em uma investigação sobre a paranoia, Freud descreve a projeção


como um mecanismo de defesa no qual o ego rechaça conteúdos
ameaçadores, projetando-os no mundo externo: o alcoólatra jamais
admitirá perante si mesmo que se tornou impotente por causa da
bebida. Por mais que consiga tolerar o álcool, não consegue
suportar esse conhecimento. Assim, é sua mulher a culpada –
delírios de ciúme, e assim por diante" (1895b, p. 257)

O conceito de introjeção, por sua vez, é descrito como o passo final


de um processo mais amplo. O que ocorre é que uma catexia
objetal é substituída por meio de uma identificação do ego ao objeto
amado, havendo em seguida introjeção, ou seja, o objeto passa a
fazer parte da psique do sujeito. Vemos, assim, que são processos
extremamente semelhantes, mas que apresentam vetores opostos
– enquanto a projeção representa um movimento para o exterior, a
introjeção é um movimento para o interior, de modo que estes
conceitos se ligam intimamente ao par Sujeito – Mundo Externo.

Sadismo – Masoquismo

As denominações sadismo" e masoquismo" são creditadas a Krafft-


Ebbing; entretanto, Freud muito discorreu e investigou sobre o
tema. O sadismo é caracterizado pela inclinação a infligir dor ao
objeto sexual, chegando ao ponto em que o sujeito só obtém
satisfação por meio dos maus tratos a que puder sujeitar o outro na
relação sexual. Já o sujeito masoquista constitui-se pela
característica de obter satisfação por meio da sensação de dor e
sofrimento físico ou psicológico advindos do objeto sexual (Freud,
1905). Nesses conceitos vemos a atuação pervertida das oposições
naturais entre macho e fêmea, atividade e passividade.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud faz a


seguinte reflexão: algumas das inclinações à perversão
apresentam-se regularmente como pares de opostos" (1905, p.
151), e cita como exemplo, além do par sadismo-masoquismo, o
par exibicionismo-voyeurismo:

Sempre que se descobre no inconsciente uma pulsão desse tipo,


passível de ser pareada com um oposto, em geral pode-se
demonstrar que este último também é eficaz. Toda perversão ativa",
portanto, é acompanhada por sua contrapartida passiva: quem é
exibicionista no inconsciente é também, ao mesmo
tempo, voyeur; quem sofre as consequências das moções sádicas
recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da
tendência masoquista (p. 158).

Transferência positiva – Transferência negativa

Tanto em um caso como no outro, a origem desses afetos é uma


situação anterior ao tratamento analítico, sendo os sentimentos de
então transferidos de forma inconsciente para a figura do analista. A
transferência negativa é caracterizada pela presença de
sentimentos hostis do paciente em relação ao seu psicanalista,
enquanto a transferência positiva, considerada por Freud como
condição necessária para que houvesse um tratamento bem
sucedido, é baseada na presença sentimentos amorosos (Freud,
1912). A relação entre amor e ódio foi longamente analisada em Os
instintos e suas vicissitudes (1915a).

Pulsões Sexuais – Pulsões do Ego

Esta é a primeira teoria geral das pulsões formulada por Freud,


sendo as pulsões sexuais expressas pela libido, energia sexual,
enquanto as pulsões do ego representam sua tendência à auto-
preservação. Em uma de suas Conferências (1917a), Freud declara
que o conflito patogênico, isto é, gerador de neurose, é aquele que
se dá entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego, chamadas
também de forças instintuais não-sexuais".

Eros – Tânatos

Na segunda teoria das pulsões, Freud (1920) estabeleceu que pela


atuação concorrente ou mutuamente oposta entre as pulsões de
vida (Eros) e as pulsões de morte (Tânatos) poderíamos explicar
toda uma multiplicidade de fenômenos. As primeiras procuram
preservar a vida, combinando e agregando elementos em
organizações complexas e funcionais, enquanto as segundas fazem
o caminho inverso, levando a vida organizada de volta ao seu
estágio inicial, que é o de substância desagregada e inanimada.
Embora esse levantamento esteja longe de ter sido completo e
exaustivo, esperamos ter demonstrado a presença de pensamento
antitético ao longo de todo o percurso teórico de Freud, pois os
exemplos escolhidos foram retirados tanto de textos iniciais como
de outros ao longo dos vários momentos de reformulação teórica
pelos quais a obra de Freud passou. Além disso, ressaltamos que
tais concepções antitéticas não se dão em constructos secundários,
ou de menor importância, mas em conceitos capitais da teoria
psicanalítica.

Obviamente, em diversos momentos Freud utilizou-se de


formulações que não podem ser reduzidas a pares de opostos –
exemplos disso são as noções de equação etiológica e de
sobredeterminação (Winograd, 2004). Ponto de extrema
importância também é o fato de que a clínica freudiana encara a
verdade de cada sujeito como algo singular, o que aponta para um
pluralismo de verdades subjetivas, e nos lança muito além de
qualquer simplificação dualista. Assim, concordamos com
Winograd, quando esta afirma que:

a questão sobre ser Freud monista, dualista ou pluralista ao invés


de auxiliar na compreensão de seu sistema conceitual, atrapalha o
entendimento, porque opera uma redução de sentido. A produção
de Freud não deve ser subsumida a tais categorizações genéricas
demais, pois ela tem como traço singular a impossibilidade de ser
classificada satisfatoriamente em alguma destas categorias. Ele não
é nem monista, nem dualista, nem pluralista. Quando muito, será
monista, dualista e pluralista ao mesmo tempo. Afirmar apenas um
destes aspectos é desconsiderar a complexidade desta construção
teórica (2004).

Assim sendo, não pretendemos classificar pura e simplesmente


Freud como dualista, uma vez que o seu pensamento é maior do
que isso, mas ao contrário, apontar para o que há de dualismo no
pensamento freudiano. Como vimos acima, esta abordagem pode
ser esclarecedora para a compreensão de um conjunto de
conceitos, cujas definições e relações entre si passam pelos pares
de contrários.

Parte II

Apontaremos agora alguns dos desdobramentos possíveis a partir


do que procuramos realizar na primeira parte deste texto, para o
tema da gênese de conceitos e para a psicanálise (realidade
psíquica, divisão do sujeito, sofrimento, patologia e bem-estar
mental). Em A significação antitética das palavras primitivas (1910b,
p. 161), Freud cita uma observação que fizera em A interpretação
dos sonhos:

[os sonhos] mostram uma preferência particular para combinar os


contrários numa unidade ou para representá-los como uma e
mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso, a liberdade de
representar qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não há,
assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado
elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos
pensamentos do sonho como positivo ou negativo.

A partir desse ponto, Freud compara esse achado de sua


investigação dos sonhos com o trabalho do filólogo Karl Abel, que
chamou a atenção para o fato de que várias palavras em egípcio
significam, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu exato oposto. Nas
palavras do próprio Abel:

Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente


de absurdo, que em alemão a palavra forte" signifique ao mesmo
tempo forte" e fraco"; que em Berlim o substantivo luz" se use para
significar ao mesmo tempo luz" e escuridão" (apud Freud, 1910b, p.
162).

Abel reconhece em seguida que casos de significação antitética


também estão presentes em outros grupos linguísticos, e enumera
vários exemplos. Fornece também a explicação para tal fenômeno:

Se sempre houvesse luz, não seríamos capazes de distinguir a luz


da escuridão, e consequentemente não seríamos capazes de ter
nem o conceito de luz nem a palavra para ele ( ). É claro que tudo
neste planeta é relativo e tem uma existência independente apenas
na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as
outras coisas ( ). De vez que todo conceito é dessa maneira o
gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e
como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam
concebê-lo, senão pela medida do seu contrário ?
(Abel apud Freud, 1910b, p. 163).

Essa explicação já havia aparecido antes na filosofia de Hegel


(1969, p. 18-19), para quem um conceito só se define na relação
que estabelece com seu contrário, com aquilo que lhe é diferente.
Mas a origem dessa idéia ainda pode ser procurada em textos bem
mais antigos, e é isso que demonstraremos por meio de exemplos.

É uma e a mesma coisa: o vivo e o morto, o acordado e o


adormecido, o jovem e o idoso; pois pela conversão, isso é aquilo, e
aquilo, convertendo-se por sua vez, é isso", afirma Heráclito de
Éfeso, filósofo grego do século VI a.C. (apud Berge, 1969, p. 277).
Burnet (1994, p. 138) afirma que diversos fragmentos de Heráclito
asseveram da maneira mais categórica a identidade de várias
coisas habitualmente consideradas opostas". A explicação para isto,
segundo Burnet, seria o fato que:

O caminho para o alto não é nada sem o caminho para baixo (fr.69).
Se um parasse, o outro pararia também, e o mundo desapareceria,
pois este necessita dos dois para construir uma realidade
aparentemente estável. Todos os outros ditos dessa espécie [o
autor se refere aqui a outros fragmentos de conteúdo semelhante]
devem ser explicados da mesma forma. Se não houvesse frio, não
haveria calor, pois uma coisa só pode aquecer-se caso – e na
medida em que – já esteja fria (1994, p. 139).

Pensador chinês do mesmo século que Heráclito, Lao-Tzu chegou


às mesmas conclusões:

“Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela


desta forma já se pressupõe a feiura.
Se todos na Terra reconhecerem o bem como o bem,
deste modo já se pressupõe o mal.
Porque Ser e Não-ser geram-se mutuamente
O fácil e o difícil se complementam.
O longo e o curto se definem um ao outro.
O alto e o baixo convivem um com outro.
A voz e o som casam-se um com o outro.
O antes e o depois se seguem mutuamente” (2004, p. 38).

Voltando aos Gregos, encontramos as seguintes palavras ditas por


Sócrates, em um dos diálogos de Platão:

“Assim observar-se-á se todas as coisas nascem da mesma


maneira, isto é, de suas contrárias, quando tem contrárias. Por
exemplo, o formoso é o contrário do feio, o justo do injusto e assim
outra infinidade de coisas. Vejamos, pois, se é absolutamente
necessário que as coisas que têm seu contrário nasçam desse
contrário, como quando uma coisa cresce é necessário que tenha
sido menor para crescer. (...) [aqui temos uma série de exemplos
que repetem a mesma argumentação]. Obtivemos destarte o
princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é
que nascem as coisas que lhe são opostas”. (1981, p. 117-118).

Sendo assim, poderíamos interpretar a presença de antíteses no


pensamento freudiano como mais do que mera casualidade. Como
vimos, o próprio processo de definição de um conceito deve passar
necessariamente por aquilo que ele não é, já que, se tudo fosse
idêntico, não haveria razão para distinguir e existiria uma só
palavra. É somente pela heterogeneidade que as idéias se tornam
claras e tomam forma – e nada melhor do que recorrer às
comparações para delimitar um conceito e assim melhor comunicá-
lo a outra pessoa. Entretanto, nada disso seria possível se não
encontrássemos essa mesma heterogeneidade e polaridade no
mundo mesmo a que nos referimos como juiz de toda e qualquer
teoria e descrição humana. Dessa forma, as polaridades presentes
nos pensamentos e esquemas de Freud seriam o reflexo da
presença real de oposições na realidade psíquica, e isso explicaria,
consequentemente, sua presença no discurso psicanalítico que a
procura descrever.

A imagem da alma humana perpassada por contradições


constitutivas surge como o retrato fiel da concepção freudiana do
homem, na qual observamos a presença irremediável de conflitos
que fazem do mundo interior um campo de batalha. Não se pode
viver sem estar, em alguma medida, em desencontro consigo
mesmo, e não há apaziguamento absoluto que possa despontar no
horizonte. Freud estava bastante ciente disso, e afirmou em uma de
suas conferências: nossa vida mental, conforme sabem,
é permanentemente agitada por conflitos que temos que resolver"
(1917b, p. 352 – grifo do autor).

Laplanche e Pontalis, por sua vez, sintetizam a importância desse


tema:

A psicanálise considera o conflito como constitutivo do ser humano,


e isto em diversas perspectivas: conflito entre o desejo e a defesa,
conflito entre os diferentes sistemas ou instâncias, conflitos entre as
pulsões, e por fim o conflito edipiano, onde não apenas se
defrontam desejos contrários, mas onde estes enfrentam a
interdição (1986, p. 131).

Esses mesmos autores propõem uma maneira de entender os


conflitos na obra de Freud a partir da metapsicologia, isto é,
conflitos dentro dos aspectos tópicos, econômicos e dinâmicos.
Embora esta seja uma sugestão interessante, optamos por um
enfoque ainda mais geral e abrangente, que ultrapassa tal ordem de
classificação, uma vez que o conflito entre pulsão de vida e de
morte, por exemplo, pode ser caracterizado como simultaneamente
econômico (quantidades de energia pulsionais em ação) e dinâmico
(as energias pulsionais interagem entre si). O leitor pode voltar a
observar o quadro resumo, e conferir como os três aspectos da
metapsicologia podem servir para algumas oposições, mas são
insuficientes para a devida compreensão de todas as que são
estudadas aqui – outro exemplo seria o conflito entre o sujeito e o
mundo externo, que dificilmente poderia ser dito tópico, já que o
mundo externo se situa fora do aparelho psíquico propriamente dito
(1ª e 2ª tópicas).
Garcia-Roza (1988, p. 125), discorrendo acerca do tema das
pulsões do ego e pulsões sexuais, comenta, semelhantemente a
Laplanche e Pontalis:

É possível que esse dualismo que atravessa toda a produção


teórica de Freud esteja ligado ao papel fundamental que o conflito
psíquico desempenha no interior da psicanálise. Não é apenas em
relação às pulsões que Freud fala de conflito": ele pode se dar entre
dois tipos de pulsões (pulsões do ego vs. pulsões sexuais), como
pode ocorrer entre duas instâncias psíquicas (sistema Ics vs.
sistema Pcs/Cs), ou ainda entre o desejo e a defesa. É o conflito,
particularmente o conflito edipiano, que institui a ordem humana,
assim como é o conflito que produz a clivagem do psiquismo. Trata-
se, portanto, de uma das noções mais fundamentais da psicanálise
e que está presente, nas suas mais variadas formas, em qualquer
texto psicanalítico.

Avançando na pista de problema tão central e importante, vejamos


a contribuição, dada por Robert Holt, que muito se assemelha à
nossa própria abordagem. Holt não cuida do estilista Freud, (...) ou
do prosador científico (...). Ele se preocupa em divisar, através e
para além dos textos freudianos, o estilo de pensar, de teorizar,
mesmo de sentir, desse autor tão singular" (Souza, 1998, p. 47).
Dentre várias outras observações, que não nos interessam
particularmente para os fins desse escrito, Souza segue
apresentando a visão de Holt a respeito da teoria freudiana:

a psicanálise prima pelo dualismo, como se sabe. Enxergando no


conflito o móvel fundamental da vida psíquica, sempre destaca as
oposições e polaridades: atividade-passividade, Eu-mundo exterior,
prazer-desprazer, amor-ódio, vida-destruição. Dualismo dialético" é
a expressão que ele [Holt] usa para qualificar esse pendor
freudiano, tendo em mente que os pares de contrários são pólos de
um continuum, ao longo do qual se dispõem muitas formas
intermediárias (p. 51).

Outras antíteses citadas por Holt são racionalismo versus intuição e


devoção ao realismo versus atração pelo oculto.

Estrutura parecida, por estabelecer dualismos, foi proposta por


Laplanche (1970) e avalizada por Mahony (1992), ambos citados
por Souza (1998):
Nesse momento, podemos levantar alguns questionamentos: mas
não seria essa uma maneira inútil de leitura? Qual o propósito de
construir tais esquemas formais, se bem sabemos que eles não
fazem justiça ao pensamento total de Freud? Não seriam apenas
jogos intelectuais sem aplicação ou relevância teórica?

Ora, o ponto de vista apresentado aqui se propõe apenas a ser uma


leitura possível do papel do conflito na obra freudiana, sabendo que
muitas outras leituras são igualmente admissíveis, e sem ter a
ambição de esgotar o tema. Imaginamos, porém, que a
sistematização dos conceitos em uma estrutura dual, tal como foi
realizado, se justifica plenamente por revelar, tal como afirmou
Robert Holt, grande parte do modo de pensar freudiano, e também,
como vimos por meio de exemplos retirados da filosofia, uma parte
do modo de pensar universal. Dentro do campo psicanalítico
propriamente dito e da área clínica, essa visão esclarece e põe em
destaque a tragédia do sujeito dividido, dilacerado entre vetores
opostos que o atravessam.

Os conflitos não fazem parte de uma fase que logo depois é


superada, não acontecem em uma época e depois deixam de
existir. É possível que alguns conflitos acabem, mas sempre haverá
outros em atuação, de forma que é impossível chegar a uma
resolução completa – os conflitos não são passageiros, mas sim
permanentes. E como Freud mesmo se encarrega de demonstrar,
tais conflitos estão na gênese das psicopatologias, do sofrimento
psicológico humano:
os sintomas podem servir tanto à satisfação sexual como ao seu
oposto. Existe uma excelente base para essa bilateralidade ou
polaridade numa parte do seu mecanismo, que até o momento não
pude mencionar. Pois, conforme veremos, elas são o produto de
acordo e surgem da recíproca interferência entre duas correntes
opostas; representam não só o reprimido, mas também a força
repressora que compartilhou de sua origem. Um ou outro lado pode
estar representado com mais força; mas é raro uma das forças em
jogo estar totalmente ausente (1917a, p. 307).

Em outras palavras: o sintoma neurótico é definido como o produto


de um compromisso entre dois grupos de representações que agem
como duas forças de sentido contrário" (Laplanche e Pontalis, 1986,
p. 131). Assim, estamos lidando com um dos principais fatores
etiológicos da neurose, e embora existam diferentes graus de
intensidade e de frequência que definem o normal e o patológico,
podemos concluir com segurança que todo ser humano tem algum
grau de sofrimento psicológico porque está justamente tentando se
equilibrar em meio a forças antagônicas.

Assim, não é de forma alguma devido ao acaso que o conflito seja


considerado tema de tão crucial importância, e que Freud tantas
vezes trabalhe a partir de oposições, uma vez que tudo isso parece
apontar para o âmago da questão do sujeito psicanalítico, que se
revela como aquele que sofre pelas contradições que lhe são
inerentes e constitutivas.

*Artigo do Blog Pilares da Psicanálise

Estrutura do psiquismo
Ego - Ou Eu é o centro da consciência, é a soma total dos
pensamentos, idéias, sentimentos, lembranças e percepções
sensoriais. É a parte mais superficial do indivíduo, a qual,
modificada e tornada consciente, tem por funções a comprovação
da realidade e a aceitação, mediante seleção e controle, de parte
dos desejos e exigências procedentes dos impulsos que emanam
do indivíduo.

Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de


encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as
exigências do superego. Quando o ego se submete ao id, torna-se
imoral e destrutivo; ao se submeter ao superego, enlouquece de
desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se
submeter ao mundo, será destruído por ele.

Para Jung, o Ego é um complexo; o “complexo do ego”. Diz ele,


sobre o Ego: “É um dado complexo formado primeiramente por uma
percepção geral de nosso corpo e existência e, a seguir, pelos
registros de nossa memória. Todos temos uma certa idéia de já
termos existido, quer dizer, de nossa vida em épocas passadas;
todos acumulamos uma longa série de recordações. Esses dois
fatores são os principais componentes do ego, que nos possibilitam
considerá-lo como um complexo de fatos psíquicos.”
O Ego em sua função básica à natureza humana é a consciência da
sobrevivência, é o limite da consciência entre o instinto de doar-se a
uma causa ou a uma verdade rígida (Superego)e o da própria
sobrevivência humana como indivíduo.

É importante salientar que a função do EGO é ignorada e, portanto,


este tantas vezes é utilizado de forma exacerbada, errônea e
inconsequente, mas ele é acima de tudo uma função na
composição mental do indivíduo. Ainda importante saber que ele
atinge as três instâncias: Consciente, Pré-consciente e
Inconsciente. É um grande negociador, sempre negociando com o
ID e o Super-Ego.

Super-Ego: Esse termo designa a instância da estrutura psíquica


cuja função primordial, segundo Freud, é normatizar as forças das
pulsões do ID. Ele correlacionou a origem do superego à dissolução
do complexo de Édipo: "O superego é herdeiro direto do complexo
de Édipo" (Freud). Segundo Freud, isso acontece porque quando a
criança supera, com maior ou menor êxito, sua conflitiva edípica,
encontra uma solução para as angústias acompanhantes deste
conflito, pela interiorização dos seus pais. Isto é, a criança
identifica-se com eles e, assim, internaliza as proibições e
interdições.
Pode atender ao mandamento interno "deve ser assim... (como seu
pai)", mas também pode abarcar a proibição: "não deve ser assim
(não pode fazer tudo que seu pai faz, muitas coisas são
prerrogativas dele; ai de você se desobedecer)". Conquanto o início
da formação do superego seja fundamentalmente devido à renúncia
aos desejos edipianos, amorosos e hostis. Freud também destacou
as posteriores influências e exigências sociais, morais, educativas,
religiosas e culturais. É importante lembrar que ele atinge duas
instâncias: pré-consciente e inconsciente

ID: O id (isso) é o termo usado para designar uma das três


instâncias apresentadas no segundo tópico das obras de Freud.
Possui equivalência topográfica com o inconsciente da primeira
tópica embora, no decorrer da obra de Freud, os dois conceitos: id e
inconsciente apresentem sentidos diferenciados.

Constitui o reservatório da energia psíquica, onde se “localizam” as


pulsões. Faz parte do aparelho psíquico da psicanálise freudiana de
que ainda fazem parte o ego (eu) e o superego (Supereu).
As primeiras traduções das obras de Freud no Brasil privilegiaram a
utilização do termo do Latim como Id, embora traduções mais
recentes tenham utilizado isso por acreditarem ser mais fiel ao
original.

É formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes


e regido pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. É
atemporal e só quer prazer. É a energia dos instintos e dos desejos
em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido.
O id a princípio responde as necessidades do indivíduo ao nascer,
ou seja, ao nascer o indivíduo está voltado para as suas
necessidades básicas. Vale lembra que o ID é totalmente
inconsciente.

Mecanismos de defesa do ego

1-Introdução.
2-Sublimação.
3-Repressão.
4-A Racionalização.
5-A Projeção.
6-Deslocamento.
7-A Identificação.
8-A Regressão.
9-O Isolamento.
10-Formação Reativa.
11- A Substituição.
12-A Fantasia.
13-A Compensação.
14-Expiação.
15-Negação.
16-Introjeção.

1 - INTRODUÇÃO - São diferentes tipos de operações em que a


defesa pode ser especificada. Os mecanismos predominantes
diferem segundo o tipo de afecção considerando, a etapa genética,
o grau de elaboração do conflito defensivo, etc. Não há
divergências quanto ao fato de que os mecanismos de defesa são
utilizados pelo ego, mas permanece aberta a questão teórica de
saber se a sua utilização pressupõe sempre a existência de um ego
organizado que seja o seu suporte.

Foi este o nome que Freud adotou para apresentar os diferentes


tipos de manifestações que as defesas do Ego podem apresentar,
já que este não se defronta só com as pressões e solicitações do Id
e do Superego, pois aos dois se juntam o mundo exterior e as
lembranças do passado.

Quando o Ego está consciente das condições reinantes, consegue


ele sair-se bem das situações sendo lógico, objetivo e racional, mas
quando se desencadeiam situações que possam vir a provocar
sentimento de culpa ou ansiedade, o Ego perde as três qualidades
citadas. É quando a ansiedade-sinal (ou sinal de angústia), de
forma inconsciente, ativa uma série de mecanismos de defesa, com
o fim de proteger o Ego contra uma dor psíquica iminente.

Há vários mecanismos de defesa, sendo alguns mais eficientes do


que outros. Há os que exigem menos dispêndio de energia para
funcionar a contento. Outros são menos satisfatórios, mas todos
requerem gastos de energia psíquica.

As defesas do ego podem dividir-se em:

a) Defesas bem sucedidas, que geram a cessação daquilo que se


rejeita
b) Defesas ineficazes, que exigem repetição ou perpetuação do
processo de rejeição, a fim de impedir a irrupção dos impulsos
rejeitados.
As defesas patogênicas, nas quais se radicam as neuroses,
pertencem à segunda categoria. Quando os impulsos opostos não
encontram descarga, mas permanecem suspensos no inconsciente
e ainda aumentam pelo funcionamento continuado das suas fontes
físicas, produz-se estado de tensão, com possibilidade de irrupção.
Daí o por que as defesas bem sucedidas, que de fato, menos se
entendem, têm menor importância na psicologia das neuroses. Nem
sempre, porém, se definem com nitidez as fronteiras entre as duas
categorias; há vezes em que não se consegue distinguir entre “um
impulso que foi transformado pela influência do ego sem que este o
reconheça. Este último tipo de impulso há de produzir atitudes
constrangedoras, há de repetir-se continuamente, jamais permitirá
relaxamento pleno e gerará fadiga.

2 - SUBLIMAÇÃO - É o mais eficaz dos mecanismos de defesa, na


medida em que canaliza os impulsos libidinais para uma postura
socialmente útil e aceitável. As defesas bem sucedidas podem
colocar-se sob o título de sublimação, expressão que não designa
mecanismo específico; vários mecanismos podem usar-se nas
defesas bem sucedidas, por exemplo, a transformação da
passividade em atividade; o rodeio em volta do assunto, a inversão
de certo objetivo no objetivo oposto.

O fator comum está em que, sob a influência do ego, a finalidade ou


o objeto (ou um e outro) se transforma sem bloquear a descarga
adequada. Deve-se diferenciar a sublimação das defesas que usam
contracatexias; os impulsos sublimados descarregam-se, se bem
que drenados por uma trilha artificial, enquanto os outros não se
descarregam. Na sublimação, cessa o impulso original pelo fato de
que a respectiva energia é retirada em benefício da catexia do seu
substituto. Nas outras defesas, a libido do impulso original é contida
por uma contracatexia elevada.

As sublimações exigem uma torrente incontida de libido, tal qual a


roda de um moinho precisa de um fluxo d’água desimpedido e
canalizado. É por isto que as sublimações aparecem após a
remoção de certa repressão. Para usar uma metáfora, as forças
defensivas do ego não se opõem frontalmente aos impulsos
originais, conforme ocorre no caso das contracatexias, mas incidem
angularmente; daí uma resultante em que se unificam a energia
instintiva e a energia defensiva, com liberdade para atuar.
Distinguem-se as sublimações das gratificações substitutivas
neuróticas pela sua dessexualização, ou seja, a gratificação do ego
já não é fundamentalmente instintiva.
Quais são os impulsos que experimentam vicissitudes desta ordem
e quais são as condições que determinam a possibilidade ou a
impossibilidade de sublimação? Se não forem rejeitados pelo
desenvolvimento de uma contracatexia (o que os excluirá do
desenvolvimento ulterior da personalidade), os impulsos prégenitais
e as atitudes agressivas concomitantes organizam-se, mais tarde
sob a primazia genital.

A realização mais ou menos completa desta organização, é


indispensável para que tenha êxito a sublimação daquela parte da
pré-genitalidade que não é usada sexualmente no mecanismo do
pré- prazer. É muito pouco provável a existência de sublimação da
sexualidade genital adulta; os genitais constituem um aparelho que
visa à realização da descarga orgástica plena, isto é, não
sublimada.

O objeto da sublimação são os desejos prégenitais. Se estes,


porém, tiverem sido reprimidos e se permanecem no inconsciente,
competindo com a primazia genital, não podem ser sublimados. A
capacidade de orgasmo genital é que possibilita a sublimação
(dessexualização) dos desejos prégenitais.

O que determina a possibilidade de o ego conseguir chegar à


solução feliz desta ordem não é fácil dizer. Caracteriza-se a
sublimação por:

a) Inibição do objetivo
b) Dessexualização
c) Absorção completa de um instinto nas respectivas sequelas
d) Alteração dentro do ego;

Qualidades estas que também se veem nos resultados de tantas


identificações no processo de formação do superego.

O fato empírico das sublimações, sobretudo as que se originam na


infância, dependem da presença de modelos, de incentivos que o
ambiente forneça direta ou indiretamente, corrobora a asserção de
Freud no sentido de que a sublimação talvez se relacione
intimamente com a identificação. Mais ainda: Os casos de
transtorno da capacidade de sublimar mostraram que esta
incapacidade corresponde a dificuldades na promoção de
identificações. Tal qual ocorre com certas identificações, também as
sublimações são capazes de opor-se e se desfazerem, com êxito
maior ou menor, certos impulsos destrutivos infantis; mas também
podem satisfazer, de maneira distorcida, estes mesmos impulsos
destrutivos; de algum modo, toda fixação artística de um processo
natural “mata” este processo.

É possível ver precursores das sublimações em certas brincadeiras


infantis, nas quais os desejos sexuais se satisfazem por uma forma
“dessexualizada” em seguida a certa distorção da finalidade ou do
objeto; e as identificações também são decisivas neste tipo de
brincadeiras.

Varia muito a extensão da divisão do objetivo na sublimação. Há


casos em que a diversão se limita a inibição do objetivo; Noutros
tipos de sublimação, ocorrem transformações de alcance muito
maior. É até possível que certa atividade de direção oposta ao
instinto original substitua, de fato, este último. Certas reações de
nojo, habituais entre as pessoas civilizadas, sem vestígio das
tendências instintivas infantis contra as quais se desenvolveram
originalmente, incluem-se nesta categoria. O que ocorre, então, é
idêntico ao que Freud chamou transformação no contrário; uma vez
completada, toda a força de um instinto opera na direção contrária.

3 - REPRESSÃO - É a operação psíquica que pretende fazer


desaparecer, da consciência, impulsos ameaçadores, sentimentos,
desejos, ou seja, conteúdos desagradáveis, ou inoportunos. Em
sentido amplo, é uma operação psíquica que tende a fazer
desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou
inoportuno: idéia, afeto, etc. Neste sentido, o recalque seria uma
modalidade especial de repressão.

Em sentido mais restrito, designa certas operações do sentido


amplo, diferentes do recalque:

a) Ou pelo caráter consciente da operação e pelo fato de o


conteúdo reprimido se tornar simplesmente pré-consciente e
não inconsciente;
b) Ou, no caso da repressão de um afeto, porque este não é
transposto para o inconsciente, mas inibido, ou mesmo
suprimido.

4 - RACIONALIZAÇÃO - É uma forma de substituir por boas razões


uma determinada conduta que exija explicações, de um modo geral,
da parte de quem a adota.
Os Psicanalistas, em tom jocoso, dizem que racionalização é uma
mentira inconsciente que se põe no lugar do que se reprimiu. É um
processo pelo qual o sujeito procura apresentar uma explicação
coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista
moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, etc.,
cujos motivos verdadeiros não percebe; fala-se mais
especificamente da racionalização de um sintoma, de uma
compulsão defensiva, de uma formação reativa.

A racionalização intervém também no delírio, resultando numa


sistematização mais ou menos acentuada. A racionalização é um
processo muito comum, que abrange um extenso campo que vai
desde o delírio ao pensamento normal. Como qualquer
comportamento pode admitir uma explicação racional, muitas vezes
é difícil decidir se esta é falha ou não.

Em especial, no tratamento psicanalítico, encontramos todos os


intermediários entre dois extremos; em certos casos é fácil
demonstrar ao paciente o caráter artificial das motivações
invocadas e incitá-lo assim a não se contentar com elas; em outros,
os motivos racionais são particularmente sólidos (os analistas
conhecem as resistências que a “alegação da realidade”, por
exemplo, pode simular), mesmo assim pode ser útil colocá-los
“entre parênteses” para descobrir as satisfações ou as defesas
inconscientes que a eles se juntam.

Como exemplo do primeiro caso encontraremos racionalizações de


sintomas, neuróticos ou perversos (comportamento homossexual
masculino explicado pela superioridade intelectual e estética do
homem, por exemplo) ou compulsões defensivas (ritual alimentar
explicado por preocupações de higiene, por exemplo).

5- PROJEÇÃO - Manifesta-se quando o Ego não aceita reconhecer


um impulso inaceitável do Id e o atribui a outra pessoa. É o caso do
menino que gostaria de roubar frutas do vizinho sem, entretanto, ter
coragem para tanto, e diz que soube que um menino, na mesma
rua, esteve tentando pular o muro do vizinho.

Termo utilizado num sentido muito geral em neurofisiologia e em


psicologia para designar a operação pela qual um fato neurológico
ou psicológico é deslocado e localizado no exterior, quer passando
do centro para a periferia, quer do sujeito para o objeto. No sentido
propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de
si e localiza no outro - pessoa ou coisa- qualidades, sentimentos,
desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele.

Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos


encontrar em ação, particularmente, na paranoia, mas também em
modos de pensar “normais”, como a superstição.

6 - DESLOCAMENTO - É um processo psíquico através do qual o


todo é representado por uma parte ou vice-versa. Também pode ser
uma idéia representada por uma outra, que, emocionalmente, esteja
associada à ela. Esse mecanismo não tem qualquer compromisso
com a lógica. É o caso de alguém que tendo tido uma experiência
desagradável com um policial, reaja desdenhosamente, em relação
a todos os policiais.

É muito corrente nos sonhos, onde uma coisa representa outra.


Também se manifesta na Transferência, fazendo com que o
indivíduo apresente sentimento em relação a uma pessoa que, na
verdade, lhe representa uma outra do seu passado. Fato de a
importância, o interesse, a intensidade de uma representação ser
suscetível de se destacar dela para passar a outras representações
originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por uma cadeia
associativa.

Esse fenômeno, particularmente visível na análise do sonho,


encontra-se na formação dos sintomas psiconeuróticos e, de um
modo geral, em todas as formações do inconsciente.

A teoria psicanalítica do deslocamento apela para a hipótese


econômica de uma energia de investimento suscetível de se
desligar das representações e de deslizar por caminhos
associativos. O “livre” deslocamento desta energia é uma das
principais características do modo como o processo primário rege o
funcionamento do sistema inconsciente.
7- A IDENTIFICAÇÃO - É o processo psíquico por meio do qual um
indivíduo assimila um aspecto, um característica de outro, e se
transforma, total ou parcialmente, apresentando-se conforme o
modelo desse outro.

A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de


identificações. Freud descreve como característico do trabalho do
sonho o processo que traduz a relação de semelhança, o “tudo
como se”, a substituição de uma imagem por outra ou
“identificação”.

A identificação não tem aqui valor cognitivo: é um processo ativo


que substitui uma identidade parcial ou uma semelhança latente por
uma identidade total.

8 – REGRESSÃO - É o processo psíquico em que o Ego recua,


fugindo de situações conflitivas atuais, para um estágio anterior. É o
caso de alguém que depois de repetidas frustrações na área sexual,
regrida, para obter satisfações, à fase oral, passando a comer em
excesso.

Considerada em sentido tópico, a regressão se dá, de acordo com


Freud, ao longo de uma sucessão de sistemas psíquicos que a
excitação percorre normalmente segundo determinada direção. No
seu sentido temporal, a regressão supõe uma sucessão genética e
designa o retorno do sujeito a etapas ultrapassadas do seu
desenvolvimento (fases libidinais, relações de objeto, identificações,
etc.).

No sentido formal, a regressão designa a passagem a modos de


expressão e de comportamento de nível inferior do ponto de vista
da complexidade, da estruturação e da diferenciação. A regressão é
uma noção de uso muito frequente em psicanálise e na psicologia
contemporânea; é concebida, a maioria das vezes, como um
retorno às formas anteriores do desenvolvimento do pensamento,
das relações de objeto e da estruturação do comportamento.

Freud é levado então a diferenciar o conceito de regressão, como o


demonstra esta passagem acrescentada em 1914 em três espécies
de regressões:

a) Tópica, no sentido do esquema do aparelho psíquico. A


regressão tópica é particularmente manifestada no sonho,
onde ela prossegue até o fim. Encontra-se em outros
processos patológicos em que é menos global (alucinação) ou
mesmo em processos normais em que vai menos longe
(memória).
b) Temporal, em que são retomadas formações psíquicas mais
antigas.
c) Formal, quando os modos de expressão e de figuração
habituais são substituídos por modos primitivos.

Estas três formas de regressão, na sua base, são apenas uma, e na


maioria dos casos coincidem, porque o que é mais antigo no tempo
é igualmente primitivo na forma e, na tópica psíquica, situa-se mais
perto da extremidade perceptiva.

9 – ISOLAMENTO - É um processo psíquico típico da neurose


obsessiva, que consiste em isolar um comportamento ou um
pensamento de tal maneira que as suas ligações com os outros
pensamentos, ou com o autoconhecimento, ficam absolutamente
interrompidas, já que foram (os pensamentos, os comportamentos),
completamente excluídos do consciente.

Entre os processos de isolamento, citemos as pausas no decurso


do pensamento, fórmulas, rituais, e, de um modo geral, todas as
medidas que permitem estabelecer um hiato na sucessão temporal
dos pensamentos ou dos atos.

Certos doentes defendem-se contra uma idéia, uma impressão,


uma ação, isolando-as do contexto por uma pausa durante a qual
“…nada mais tem direito a produzir-se, nada é qualificada de
mágica” por Freud; aproxima-a do processo normal de
concentração no sujeito que procura não deixar que o seu
pensamento se afaste do seu objeto atual.

O isolamento manifesta-se em diversos sintomas obsessivos; nós o


vemos particularmente em ação no tratamento, onde a diretriz da
associação livre, por lhe ser oposta, coloca-o em evidência (sujeitos
que separam radicalmente a sua análise da sua vida, ou
determinada sequência de idéias do conjunto da sessão, ou
determinada representação do seu contexto afetivo).

Freud reduz, em última análise, a tendência para o isolamento a um


modo arcaico de defesa contra a pulsão, a interdição de tocar, uma
vez que “… o contato corporal é a finalidade imediata do
investimento de objeto, quer o agressivo quer o terno”. Nesta
perspectiva, o isolamento surge como “… uma supressão da
possibilidade de contato, um meio de subtrair uma coisa ao contato;
do mesmo modo, quando o neurótico isola uma impressão ou uma
atividade por pausa, dá-nos simbolicamente a entender que não
permitirá que os pensamentos que lhes dizem respeito entrem em
contato associativo com outros”.

Na realidade, pensamos que seria interessante reservar o termo


isolamento para designar um processo específico de defesa que vai
da compulsão a uma atitude sistemática e concentrada, e que
consiste numa ruptura das conexões associativas de um
pensamento ou de uma ação, especialmente com o que os precede
e os segue no tempo.

10 - FORMAÇÃO REATIVA - É um processo psíquico que se


caracteriza pela adoção de uma atitude de sentido oposto a um
desejo que tenha sido recalcado, constituindo-se, então, numa
reação contra ele.

Uma definição: é o processo psíquico, por meio do qual um impulso


indesejável é mantido inconsciente, por conta de uma forte adesão
ao seu contrário. Muitas atitudes neuróticas existem que são
tentativas evidentes de negar ou reprimir alguns impulsos, ou de
defender a pessoa contra um perigo instintivo.

São atitudes tolhidas rígidas, que obstam a expressão de impulsos


contrários, os quais, no entanto, de vez em quando, irrompem por
diversos modos. Nas peculiaridades desta ordem, a psicanálise,
psicologia “desmascaradora” que é, consegue provar que a atitude
oposta original ainda está presente no inconsciente. Chamam-se
formações reativas estas atitudes opostas secundárias.

As formações reativas representam mecanismo de defesa separado


e independente e dão mais impressão de constituir consequência e
reafirmação de uma repressão estabelecida. Quando menos,
contudo, significam certo tipo de repressão que é possível distinguir
de outras repressões.

Digamos: É um tipo de repressão em que a contracatexia é


manifesta e que, portanto, tem êxito no evitar de atos repressivos
muito repetidos de repressão secundária. As formações reativas
evitam repressões secundárias pela promoção de modificação
definitiva da personalidade.

O indivíduo que haja constituído formações reativas não desenvolve


certos mecanismos de defesa de que se sirva ante a ameaça de
perigo instintivo; modificou a estrutura da sua personalidade, como
se este perigo estivesse sem cessar presente, de maneira que
esteja pronto sempre que ocorra.
11 – SUBSTITUIÇÃO - Processo pelo qual um objeto valorizado
emocionalmente, mas que não pode ser possuído, é
inconscientemente substituído por outro, que geralmente se
assemelha ao proibido. É uma forma de deslocamento.

12 – FANTASIA - É um processo psíquico em que o indivíduo


concebe uma situação em sua mente, que satisfaz uma
necessidade ou desejo, que não pode ser, na vida real, satisfeito. É
um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que
representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos
defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um
desejo inconsciente.

A fantasia apresenta-se sob diversas modalidades:

a) Fantasias conscientes ou sonhos diurnos.


b) Fantasias inconscientes como as que a análise revela, como
estruturas subjacentes a um conteúdo manifesto.
c) Fantasias originárias.

13 – COMPENSAÇÃO - É o processo psíquico em que o indivíduo


se compensa por alguma deficiência, pela imagem que tem de si
próprio, por meio de um outro aspecto que o caracterize, que ele,
então, passa a considerar como um trunfo.

14 - EXPIAÇÃO - É o processo psíquico em que o indivíduo quer


pagar pelo seu erro imediatamente.

15 - NEGAÇÃO - A tendência a negar sensações dolorosas é tão


antiga quanto o próprio sentimento de dor. Nas crianças pequenas,
é muito comum a negação de realidades desagradáveis, negação
que realiza desejos e que simplesmente exprime a efetividade do
princípio do prazer. A capacidade de negar partes desagradáveis da
realidade é a contrapartida da “realização alucinatória dos desejos”.
Anna Freud chamou este tipo de recusa do reconhecimento do
desprazer de “pré-estágios da defesa”.

16 – INTROJEÇÃO - Originalmente, a idéia de engolir um objeto


exprime afirmação; e como tal é o protótipo de satisfação instintiva,
e não de defesa contra os instintos. No estágio do ego prazeroso
purificado, tudo quanto agrada é introjetado. Em última análise,
todos os objetos sexuais derivam de objetivos de incorporação. Do
mesmo modo, a projeção é o protótipo da recuperação daquela
onipotência que foi projetada para os adultos. Contudo, a
incorporação, embora exprima “amor”, destrói objetivamente os
objetos como tais, como coisas independentes do mundo exterior.
Percebendo este fato, o ego aprende a usar a introjeção para fins
hostis como executora de impulsos destrutivos e também como
modelo de um mecanismo definido de defesa. A incorporação é o
objetivo mais arcaico dentre os que se dirigem para um objeto. A
identificação, realizada através da introjeção, é o tipo mais primitivo
de relação com os objetos.
Transmissão do Psiquismo entre as Gerações

Ingrid Borba Hartmann; Sidnei Schestatsky

Revista Brasileira de Psicoterapia

"Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo


teu".
Goethe, Fausto.

O debate sobre a transmissão psíquica é contemporâneo ao


nascimento da psicanálise, embora este tema esteja presente
desde a Antiguidade. Na literatura, é possível observar a repetição
de tramas em que tragédias familiares imobilizam o sujeito da ação.
A questão da herança transgeracional e intergeracional é um dos
aspectos das tragédias clássicas, sempre em trilogias,
desenvolvidas a partir do mesmo núcleo - o crime terrível no interior
da família, que exige vingança através de outro crime sangrento,
desencadeando nova vingança e assim por diante, sem a
possibilidade de se interromper a sucessão dolorosa das mortes.

A problemática do Édipo, no plano da tragédia, é transmitida


através das gerações desde seu avô, pai de Laio. Assim, o discurso
de Édipo é também um discurso do outro, que remete ao outro, em
uma articulação interminável que se dirige, por sua vez, a uma
comunidade de homens, deuses e semideuses, cujas origens se
confundem com o próprio mito da criação do mundo.
A inscrição do sujeito em uma cadeia da qual é um elo e à qual se
submete - seu desenvolvimento psíquico em relação àquilo do qual
é herdeiro e que lhe é inconscientemente transmitido e seu forte
pertencimento psíquico a um grupo - todas essas interrogações
abordam a questão da transmissão intergeracional e da imposição,
para o sujeito, de ser herdeiro forçado, beneficiário, mas também
pensador e criador daquilo que lhe foi transmitido.

Para compreender a transmissão do psiquismo entre sujeitos, e


entre gerações, é fundamental compreender a relevância do papel
do outro na formação do psiquismo do sujeito. As considerações
pertinentes à transmissão psíquica entre gerações são encontradas
já em Freud, em Totem e tabu (1913), ao se referir à continuidade
psíquica na série das gerações - e também em Introdução ao
narcisismo (1914), ao destacar que o indivíduo é, em si mesmo, seu
próprio fim, mas se encontra vinculado a uma corrente geracional
como elo da transmissão, sendo herdeiro da mesma.

Essas ideias foram ampliadas por Klein, Bion e Winnicott, e se deve


a eles a introdução dos conceitos de relação de objeto, função alfa
e capacidade de rêverie. Outro conceito, o de sujeito do grupo,
indica que o sujeito do inconsciente está sempre ligado a um
conjunto intersubjetivo de sujeitos do inconsciente, um elo na
cadeia genealógica que herda os desejos que precedem sua
existência e que organizam seu próprio desejo. É assim que as
formações do inconsciente se transmitem pela cadeia das
gerações.

Neste conjunto que recebe a criança e que a nomeia, que terá


sonhado com ela, que nela investe e lhe fala, o sujeito do grupo se
torna sujeito falante e sujeito falado, não somente pelo efeito da
língua, senão pelo efeito do desejo dos que - como... a mãe - se
fazem também porta-vozes do desejo, da proibição, das
representações do conjunto, ou seja, ocorrem inúmeras ações
psíquicas que fazem com que o sujeito, em seu inconsciente,
perceba uma necessidade dupla: de 'ser para si mesmo seu próprio
fim' e também de ser 'o elo de uma cadeia à qual está submetido,
sem a participação de sua vontade'1.

O contrato narcísico de Aulagnier (1997) indica a existência de um


pré-investimento dos pais em relação ao bebê. A criança demanda
ao grupo reconhecimento de que pertence a ele, enquanto o grupo
demanda dela a preservação de valores e leis previamente
estabelecidos. A criança, assim, só pode constituir objetos de
pensamento sob a condição de terem sido transformados pela
"função alfa" da psique materna. Da mesma forma, Winnicott
ressalta a função transformadora e metabolizadora da mãe. Esse
espaço de intermediação marca uma fundamental escolha de
caminhos sobre a forma pela qual a transmissão psíquica vai
acontecer.

A TRANSMISSAO GERACIONAL

Parece haver uma urgência em transmitir, relativa à continuidade


evolutiva de uma geração a outra, que permite a cada um não partir
novamente do zero, e a cada um chegar à vida, tomando seu lugar
com uma herança, depois de muitos outros. Uma geração não pode
existir sem a que a precede e deve criar outra para perpetuar a vida
para além de seu desaparecimento. E "sabemos que o que não
pode ser contido em um sujeito, ou em um grupo, é 'confiado' a
outro ou a outros, ou seja, transmitido".

A transmissão imposta a cada um, desde o nascimento, faz da


criança o elo de uma cadeia geracional e a destina a um lugar
oferecido pelo grupo que a acolhe. Herdeira daquilo que se teceu e
daquilo que se calou nos laços de aliança dos pais, a criança, que
se beneficia do investimento narcísico destes, assegura a
continuidade do conjunto e adquire a possibilidade de sua própria
subjetividade. É a este preço que poderá existir, constituir-se
psiquicamente como sujeito do inconsciente e sujeito do grupo. O
que é oferecido à criança é um lugar a ocupar e uma carga a
assumir. Aquilo de que deve se encarregar é a continuidade do ser-
conjunto da família, herdeira dessa parte lacrada no pacto de
aliança, o "pacto denegativo", que tem por função conter e manter
fora de alcance certas questões negativas da transmissão psíquica
no momento da aliança.

A transmissão nunca é passiva. O que é transmitido por uma


geração será recebido pelos filhos na malha das identificações e no
tecido complexo dos laços familiares, que vão modificar o que foi
transmitido. Certos elementos podem ser impostos aos
descendentes, mas estes sempre terão de adquiri-los em função de
vários fatores em relação ao seu desenvolvimento e seu lugar 2.
O QUE SE TRANSMITE?

O que se transmite são essencialmente configurações de objetos


psíquicos e seus vínculos com aqueles que precedem cada sujeito.
Aquilo que se transmite e constitui a pré-história do sujeito é mais
do que os pilares positivos, que sustentam as continuidades
narcísicas e objetais, manutenção dos vínculos intersubjetivos,
formas e processos de conservação e a complexidade da vida,
como ideais, mecanismos de defesa, identificações, pensamentos e
certezas. Essas configurações de transmissão são também
fortemente marcadas pelo negativo, o que não pôde ser contido,
retido, lembrado, que não encontrou inscrição na psique dos pais e
que vem depositar-se na mente da criança: a falta, a doença, o
crime, os objetos desaparecidos sem traço nem memória e para os
quais nenhum trabalho de luto pôde ser realizado.

Granjon refere que nada pode escapar a ser transmitido de uma


forma ou de outra. Nenhuma falta, nenhuma transgressão,
nenhuma morte, nenhum delito e sua carga de culpa e vergonha
podem ser abolidos; obrigados a serem transmitidos... com os
impedimentos, interditos, mecanismos de defesa que suscitam, e
colocados para evitar que seja conhecido, sabido ou dito o que
deveria não ter sido, o que foi traumático... acontecimentos que
irromperam em um momento da história... (e em que) fracassaram
as formações e os processos capazes de metabolizá-los, de torná-
los pensáveis, de integrá-las em uma psique e em uma história.

O transmitido, então, será o traço daquilo que se passou e não


pôde ser pensado, com seu cortejo de terror, vergonha e
interdiçoes2.

VIAS DE TRANSMISSÃO

Para Correa, que interroga "como um sujeito pode ser atingido pela
história que pertence ao outro? Desde uma perspectiva clínica,
como este fantasma se transforma em uma espécie de organizador
do psiquismo do paciente?", são os diversos mecanismos de
identificação que estão na base do processo.
O mecanismo de identificação, nas suas mais variadas formas e
desdobramentos, alcança o estatuto de alicerce ou fundação das
transmissões psíquicas. Há, porém, diferenças entre os conceitos
clássicos de identificação e o significado que adquirem na
transgeracional idade. Freud partia do princípio de que nosso
aparelho psíquico se es-trutura dentro de um contexto
intersubjetivo, em que o herdado tem um papel de destaque. Em
vários momentos de sua obra, estabeleceu elos entre a psicologia
individual e a grupal, onde é possível entrelaçar os conceitos de
identificação, transmissão, estruturação psíquica e psicopatologia 8.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Freud articula o


conceito de identificação sem nomeá-lo. Destaca o papel do
psiquismo dos pais, transferindo ao bebê seu narcisismo infantil, e
reivindicando que realize, em nome deles, desejos a que
renunciaram8. A identificação narcísica se torna, em Luto e
melancolia (1917), o epicentro das estruturações narcisistas. A
melancolia é resultante de um luto pela perda do objeto escolhido
em base narcísica e ambivalentemente amado. Assim, a libido, que
estivera investida nos objetos, é agora retirada para o próprio ego,
dando origem às autoacusações e sentimentos de desvalia.

Em Psicologia das massas e análise do ego (1921), Freud amplia o


conceito de identificação. Refere-se a uma mente "grupal" como um
fenômeno decorrente de algo que haja em comum entre indivíduos,
um interesse, uma inclinação emocional semelhante, certo grau de
influência recíproca. O grupo é capaz de induzir emoções até um
grau difícil de ser atingido individualmente. O fenômeno
do contágio, antes utilizado para explicar os efeitos da transgressão
dos tabus entre povos primitivos, é agora descrito como fenômeno
em que as emoções vão contagiando os membros do grupo, agindo
como uma compulsão a fazer o mesmo que os outros e permanecer
em harmonia com o grupo. Esse contágio emocional, que conduz à
imitação, é provocado pela influência sugestiva do grupo. Os laços
de amor e as identificações com o líder e com os membros do
grupo serão a base que sustentará a influência do grupo.

O vínculo emocional e o desamparo da criança frente aos genitores


parecem constituir, para Freud, os fundamentos primitivos dos
processos de identificação, de onde emanam as transmissões
inconscientes de um indivíduo para outro e de geração para
geração, formando a base para o funcionamento intrapsíquico 8.
Ferenczi aborda a introjeção como caminho para a identificação,
operando em um vaivém entre o narcísico e o objetal, envolvendo
uma expansão do ego e o resgate do fator traumático na
patogênese das neuroses. Ao abordar o conceito de identificação
sob a égide da agressão do adulto, argumenta que a criança, por
medo, é obrigada a submeter-se à vontade do agressor, a adivinhar
seus desejos, a obedecer-lhe esquecendo-se de si mesma até se
identificar totalmente com ele. Por identificação, digamos, por
introjeção do agressor, ele desaparece como realidade exterior e
torna-se intrapsíquico; mas o que é intrapsíquico vai ser submetido,
num estado próximo do sonho - como é o transe traumático - ao
processo primário, ou seja, o que é intrapsíquico pode, segundo o
princípio do prazer, ser modelado e transformado de maneira
alucinatória, positiva ou negativa. A agressão deixa de existir como
realidade exterior e, no decorrer do transe traumático, a criança
consegue manter a crença em uma situação de ternura anterior. A
personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco
desprazer, não pela defesa, mas pela identificação e introjeção
daquele que a ameaça e agride.

O conceito de identificação projetiva de Melanie Klein assinala o


processo psíquico em que há uma tentativa de borrar os limites, em
que o sujeito, ao projetar suas partes "más" no objeto, estabelece
"relações objetais narcisistas"8. Segundo Etchegoyen,
a identificação projetiva supõe sempre uma confusão, onde algo
pertencente ao sujeito passa ao objeto, com o que aquele perde
sua individualidade, e este fica investido pelo que, em propriedade,
não lhe pertence. Com isto se outorga ao sujeito uma identidade
que lhe é alheia e excêntrica, que borra seus limites, que o
sobrepõe com o outro (apud Trachtenberg, p. 47).

Nos trabalhos de Abraham e Torok, o conceito de identificação tem


um papel secundário, enquanto que a introjeção ocupa um lugar
destacado. Os autores consideram que o "resultado da introjeção é
uma relação com o objeto interno, enquanto que o da identificação
é a designação de um lugar eleito, momentaneamente, como
domicílio pelo sujeito". E acrescentam: "é um processo pelo qual o
sujeito pode se deslocar e ocupar diferentes posições",
diferentemente da introjeção, que indica a via dos conflitos entre
sujeito e objeto, a problemática do dentro e do fora, do estrangeiro e
do próprio8.

A introjeção é considerada como "da ordem do crescimento", pois


expande o ego e o enriquece, introduzindo nele a libido
inconsciente, anônima ou recalcada. O que é introjetado não é o
objeto em si, mas o conjunto das pulsões e suas vicissitudes,
mediadas pelo ego. A incorporação teria outro destino: é a
consequência da perda do objeto "antes que os desejos que lhe
dizem respeito sejam liberados", substituindo a introjeção que não
ocorreu. É um processo mágico, que obedece ao princípio do
prazer e em um estágio próximo ao da realização alucinatória. As
perdas narcísicas que têm a incorporação como destino são
aquelas que não puderam ser confessadas como perdas. Nesses
casos, não aconteceu a introjeção do objeto perdido, surgindo a
incorporação como uma denegação radical, pois se finge que nada
foi perdido8. O conceito de incorporação relaciona-se ao
de cripta e fantasma, discutidos adiante.

Faimberg propõe a existência de uma "identificação narcisista


inconsciente alienante", submetida ao regime de regulação
narcísica, que tem como objetivo evitar a ferida infligida pelo Édipo
(ao manter a ideia de um tempo circular, em que não existem
diferenças geracionais). Nesse processo, é característica a função
de apropriação-intrusão, e por solidariedade aos pais, o sujeito não
tem permissão para existir psiquicamente em nenhum outro
registro, sendo portador de uma história que, em parte, não é sua.
Nesses pacientes, os "pais internos" estão inscritos em seu
psiquismo como pais que consideram o filho parte deles mesmos, e
nessa regulação narcísica, tendem a despojá-lo do que lhes
proporciona prazer e odeiam-no quando o filho se diferencia. Assim,
ao permanecer ligada à história familiar, a identidade do sujeito é
determinada pelo que é rejeitado na história dos pais, organizando-
se sob o sinal da negação - uma identidade negativa.

TRANSMISSAO INTERGERACIONAL

Podemos definir duas modalidades da transmissão psíquica:


a intergeracional e a transgeracional.

Transmitir é fazer passar um objeto, pensamento, história ou afetos


de uma pessoa para outra, de um grupo para outro, de uma
geração para outra. Isso implica que o que é transmitido abandone
um pelo outro, que haja uma distância e um laço entre o
"transmissor" e o "receptor", acolhimento e apropriação pelo
adquirente-herdeiro e, eventualmente, uma modificação daquilo que
é transmitido. O sujeito é beneficiário, herdeiro, servidor forçado,
mas também um adquirente singular do que é transmitido 2.

Esse é um trabalho psíquico que diz respeito ao sujeito e ao grupo.


Os processos de transmissão implicam ligações com, e entre,
diferentes níveis intrapsíquicos e intersubjetivos, intermediadas pelo
grupo, pelos agenciamentos e pelas formações psíquicas
mobilizadas, favorecendo transformações e conduzindo a uma
diferenciação, uma evolução entre o que é transmitido e o que é
herdado e depois adquirido. Isso permite a cada geração situar-se
em relação às outras, inscreve cada sujeito em uma cadeia e em
um grupo, funda sua própria subjetividade, constitui sua história e o
torna proprietário de sua herança. A transmissão
psíquica intergeracional é um trabalho de ligações e de
transformações.

Ela é também estruturante, nucleada na existência de um espaço


de transcrição transformadora, no qual se veicula a herança
intergeracional, constituída pelas fantasias, imagos, identificações,
etc., que organizam uma história familiar e relato mítico, do qual
cada sujeito pode adotar elementos necessários para construir sua
novela individual neurótica. Exemplos dessas transmissões são as
tradições, culturas, o núcleo de pertinência, uma filiação ou um
sobrenome que tenham força de coesao5.

Essa seria a trilha das transmissões psíquicas entre gerações bem-


sucedidas e exitosas, nas quais o escudo protetor materno cumpriu
sua meta a contento, a mãe pôde investir adequadamente no seu
bebê, além de funcionar como transformadora para ele e para si
própria, sem invadir o campo da intersubjetividade com ansiedades
ou lutos mal elaborados de sua história ou pré-história 5.

TRANSMISSAO TRANSGERACIONAL

Todo o trabalho (de ligações e de transformações) pode falhar, e a


transmissão psíquica pode, então, ser alienante e não estruturante.
O que é transmitido sem distâncias e sem laços, sem
transformação, atravessa as gerações e se impõe em estado bruto
aos descendentes2. Temos então a transmissão transgeracional.
Os acontecimentos mais dolorosos não são necessariamente os
mais alienantes, pois qualquer acontecimento poderá ser traumático
e alienante para os descendentes se não puder ser elaborado, se
for transmitido sem que os afetos que suscita possam ser tolerados,
sem que um pensamento sobre este acontecimento venha contê-lo
e representá-lo2. Várias situações podem destruir a capacidade e a
função parentais: lutos não elaborados, segredos, histórias
lacunares, histórias de violência, vazios, migrações, traumas que
não puderam ser transformados, simbolizados, historicizados.
Essas situações comprometem dramaticamente a capacidade
metabolizadora parental de ansiedades primitivas do bebê. Assim, o
trauma inaugura, na história de muitos sujeitos, as condições para
transmissões transgeracionais, carentes do espaço prévio de
transcrição transformadora.

Quando um acontecimento com potencialidade traumática vem


perturbar ou impedir o processo de integração harmônica, ele cria
lacunas, inclusões, criptas na psique. Estes "passados sob silêncio"
ou "mantidos em segredo", estes "restos insensatos" de um
acontecimento inaceitável estão fora do alcance do trabalho
psíquico e obstruem a psique do sujeito e do grupo, permanecendo
em estado bruto, consagrados à repetição e oferecidos às
identificações da criança com a secreta esperança de que esta,
herdeira e suplente narcísica, possa realizar o trabalho fracassado.
Pode-se dizer que transmitir é mais importante que o que é
transmitido, e o que será encontrado na descendência é o indizível,
o impensável, o processo do segredo mais do que seu conteúdo 2.

As contribuições de Abraham e Torok sobre o luto, a cripta e o


fantasma foram decisivas para as investigações das transmissões
transgeracionais, destacando-se a ideia de que no inconsciente de
um sujeito se enquista uma parte do inconsciente do outro, que o
vem habitar como um fantasma, assim como o mandato imperativo
que o ancestral faz pesar sobre a sua descendência. Surgindo da
cripta e do mandato, do segredo inconfessável e da não
simbolização, o acento passará a ser colocado na falha do
simbólico, no negativo, no "branco", no vazio, nos elementos brutos
(não transformados), na telescopagem, nas identificações
alienantes5.

Essa história, ou não-história, repleta de não-ditos, que precisa ser


dissociada ou clivada pelo sujeito, habitando uma cripta firmemente
lacrada, necessitará encontrar um depósito fora dele próprio. O
indivíduo expulsa de dentro de si seu próprio fardo, as partes
alienadas de si mesmo, e as coloca em alguém narcisicamente
selecionado da geração seguinte. Essa identificação projetiva
(identificação alienante para Faimberg; identificação mórbida para
Pereira da Silva) "liberta" o representante da geração atual,
enquanto "escraviza" o representante da geração seguinte. Este,
vivendo uma história que em parte não é sua, tendo uma parte de
seu psiquismo alienado, estrangeiro a si mesmo, é um dos
protagonistas daquilo que Faimberg denominou telescopagem de
geraçoes5. Ao ser introduzida na constelação traumática dos pais, a
criança cumprirá várias funções para os mesmos. Poderá tomar o
lugar dos mortos, identificando-se com eles, para satisfazer a mãe,
servindo assim de continente para as angústias excessivas do
adulto, invertendo as posições na linha geracional, transformando-
se, por exemplo, em pai de seus pais.

OUTRAS CONTRIBUIÇOES SOBRE TRANSMISSAO

A "transmissão" na obra de Freud

Para Freud, a noção de transmissão é polissêmica. Além do sentido


específico de transferência, que adquiriu no campo
psicanalítico, Übertragung é também empregado para os processos
de transmissão de pensamento, telepatia, indução, fenômenos de
contágio e imitação em funcionamento nas multidões e nas
modalidades de prescrição dos tabus. Übertragung é também
empregado no debate sobre a hereditariedade e etiologia da
neurose, vinculando-as à questão de aquisição (Erwerbung) e da
transmissão, por via psíquica, da doença. São questões que
inauguram a reflexão sobre a histeria e a análise de Dora,
introduzindo a dimensão intergeracional e intragrupal dessa
transmissão" (Kaës, 1985, apud Pereira da Silva, 2003, p. 19).

A transmissão psíquica, para Freud, envolve a questão do sujeito


com sua herança psíquica, social, religiosa e cultural, mas também
a descoberta do complexo de Édipo e tudo que daí deriva. Em A
interpretação dos sonhos (1900), Freud inaugura um novo caminho,
ainda ligado à questão da histeria: o da transmissão inconsciente
por identificação com o objeto ou com a fantasia do desejo do outro.
A discussão refere-se à imitação e ao contágio psíquico entre os
sujeitos, mas também às modalidades intrapsíquicas da
transmissão dos pensamentos (do sonho). Há transmissão
intersubjetiva no movimento pelo qual o sujeito se identifica com o
desejo ou com o sintoma do outro. O que se transmite, de um a
outro, é um traço inconsciente comum3.

Em Totem e tabu (1913), Freud aponta para as investigações sobre


a transmissão transgeracional de patologias:

... podemos presumir, com segurança, que nenhuma geração pode


ocultar à geração que a sucede nada de seus processos mentais
mais importantes, pois a Psicanálise mostrou que todos possuem,
na atividade mental inconsciente, um "apparatus" que os capacita a
interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as
deformações que os outros impuseram à expressão de seus
próprios sentimentos (Freud, 1913, apud Pereira da Silva, 2003, p.
20).

Freud inaugura outro percurso, o que se transmite de geração em


geração: a transmissão do tabu, do crime e da culpa. Retoma o
debate sobre o que é inato e o que é adquirido - a noção de
patrimônio e de herança arcaica, considerando os fatores da
história pessoal e da etiologia específica. Discrimina a transmissão
por identificação aos modelos parentais (história do indivíduo) da
transmissão genética, constituída por traços mnemônicos das
relações com as gerações anteriores (pré-história do indivíduo). Na
pré-história inclui-se a transmissão dos objetos perdidos, enlutados,
fatos congelados e enigmáticos, sobre os quais não houve
elaboração nem simbolizaçao3.

No mesmo artigo, introduz a ideia de uma formação do inconsciente


na própria transmissão do recalcamento, e não apenas dos
conteúdos recalcados. O que se transmite é um traço, mas não só
um traço. Nada pode ser completamente abolido; não há nada que
seja abolido e que não apareça algumas gerações depois como
enigma, como impensado ou como signo do que não pôde ser
transmitido na ordem simbólica3.

Em 1914, em Introdução ao narcisismo, explicita os fundamentos


narcísicos da transmissão entre as gerações e através delas;
desvenda o agenciamento do apoio mútuo entre o narcisismo da
criança e o narcisismo parental; introduz a noção de um sujeito do
inconsciente dividido entre a exigência de seu narcisismo e de se
constituir como sujeito do grupo. Ao opor a condição narcísica do
sujeito à do sujeito da intersubjetividade, articula o apoio do
narcisismo sobre o da geração precedente, sobre a transmissão à
criança dos sonhos de desejos insatisfeitos dos pais. Chama a
atenção sobre os investimentos que são depositados sobre a
criança e que poderão dar lugar e sentido aos projetos não
realizados dos pais, marcando as condições do nascimento
psíquico desse filho3.

Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud afirma que


tudo que se transmite dentro do grupo o é pelas identificações.
Essas proposições asseguram, na sua origem, a importância do
conceito de transmissão, isto é, o processo de tomar conhecimento
da realidade psíquica que se transporta, se desloca ou se transfere
de um indivíduo a outro, entre eles ou através deles, ou nos
vínculos do grupo, ainda que o que foi transmitido psiquicamente se
transforme ou permaneça igual3.

Na obra acima citada (1921) e em O Ego e o Id (1923), o autor


austríaco reelabora a questão da hereditariedade e da herança dos
traços psíquicos, depois de ter acompanhado o destino do objeto
perdido na elaboração das instâncias do aparelho psíquico (3). A
questão da hereditariedade vai acompanhar Freud desde
os Estudos sobre a histeria (1895) até Análise terminável e
interminável (1937) e Moisés e o monoteísmo (1939). O que está
em debate é a etiologia das neuroses e sua transmissibilidade por
via psíquica. Em Moisés e o monoteísmo (1939), Freud sublinha
que a herança arcaica do homem não engloba somente
disposições, mas conteúdos e traços mnêmicos do que foi
vivenciado por gerações anteriores. Dessa maneira, a extensão e a
importância da herança arcaica são significativamente ampliadas 3.
A transmissão intrapsíquica tem como referência o texto A
Interpretação dos sonhos. Sonho, processo associativo,
representação - essas formações são os objetos e os vetores da
transmissão interna da realidade psíquica. Já a transmissão
transgeracional ou intergeracional se dá por meio de mediações
verbais e não verbais, qualquer que seja o nível tópico de onde
parte a mensagem: inconsciente, pré-consciente e consciente 3.
O NEGATIVO

O negativo está presente na obra de Freud em manifestações como


a alucinação negativa, transferência negativa, reação terapêutica
negativa, negação, a recusa ou desmentida (Verleugnun). Em Além
do princípio do prazer (1920), ele propõe que a pulsão de vida tem
a função de ligação e que a pulsão de morte busca o desligamento,
a não-ligação. A transmissão psíquica de elementos traumáticos,
não elaborados, em que predominaram a pulsão de morte e a ação
do negativo, ocorre por um desbordamento narcisista maligno da
mente dos pais sobre a mente do bebê. Não se trata do narcisismo
de vida, necessário à constituição psíquica do bebê, mas de um
narcisismo de morte, corno diz Green.

Para Aulagnier:
(...) a ação desse narcisismo de morte se dá através de um radical
desinvestimento afetivo e representacional. O desinvestimento
ameaça qualquer encontro, qualquer objeto, qualquer experiência
que, para ter uma existência psíquica, implique a possibilidade de
uma atividade de ligação. Qualquer trabalho de desinvestimento
bem-sucedido não deixa traço algum que possa indicar que algo
existiu, que algo ocorreu. Esse algo é substituído pelo vazio.
Nenhuma saudade, nenhum traço de um objeto perdido. Nada de
representações recalcadas (apud Trachtenberg, 2005, p. 61).

O SUJEITO DO GRUPO, PACTO DENEGATIVO, TRANSMISSAO


INTERSUBJETIVA E TRANSPSIQUICA

Em relação ao conceito do "sujeito do grupo", Kaës descreve que


o inelutável é que somos postos no mundo por mais de um outro,
por mais de um sexo, e que nossa pré-história nos faz, muito antes
do nascimento, o sujeito de um conjunto intersubjetivo cujos sujeitos
nos têm e nos sustentam como os servidores e herdeiros de seus
'sonhos de desejos irrealizados', de suas repressões e de suas
renúncias na rede de seus discursos, de suas fantasias e de suas
histórias. De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o
inconsciente nos terá feito contemporâneos, porém só chegaremos
a ser seus pensadores por ressignificação. Essa pré-história, de
onde se constitui o originário, está arraigada à intersubjetividade
(Kaës, 2001, apud Trachtenberg, 2005, p. 25).

Sobre a transmissão, Kaës distingue dois tipos, a intersubjetiva e


a transpsíquica. A primeira é uma transmissão que envolve
relações imaginárias, reais e simbólicas entre os sujeitos. O grupo
familiar é o espaço originário da intersubjetividade; ele precede o
sujeito singular, está estruturado por uma lei constitutiva e seus
elementos estão em relação de diferença e de complementaridade.
Aí se enunciam as proibições fundamentais, relações de desejo que
estruturarão os vínculos, identificações e o complexo edípico. Já
na transmissão transpsíquica, há uma abolição dos limites e
espaços subjetivos, não existe a experiência de separação entre
sujeitos, que ficam à mercê das exigências do narcisismo. Esses
conceitos relacionam-se, respectivamente, aos conceitos de
transmissão intergeracional e transgeracional já descritos.

O pacto denegativo refere-se às diversas operações (recalque,


denegação, recusa, desmentida, rejeição ou enquistamento) que se
requerem ao sujeito para que o vínculo intersubjetivo se constitua e
se mantenha1. Esse acordo inconsciente é imposto para que:
1) o laço se organize e se mantenha em sua complementaridade de
interesse; e
2) seja assegurada a continuidade dos investimentos e dos
benefícios ligados à subsistência dos ideais, do contrato ou do
pacto narcísico.
O pacto denegativo comporta duas polaridades: uma
é organizadora do laço e do conjunto intersubjetivo, a outra
é defensiva. Cada conjunto se organiza positivamente sobre
investimentos mútuos, identificações comuns, comunidade de ideais
e de crenças, contrato narcísico, modalidades toleráveis de
realizações de desejos. Mas também se
organiza negativamente, sobre uma comunidade de renúncias e de
sacrifícios, apagamentos, rejeições e recalcamentos, sobre um
"deixado de lado" e sobre "restos". O pacto contribui para essa
dupla organização, cria, no conjunto do não-significável e do não-
transformável, zonas de silêncio, bolsões de intoxicação, espaços-
lixeiras ou linhas de fuga que mantêm o sujeito estrangeiro à sua
própria história. Nos casais, nas famílias, nos grupos e nas
instituições, as alianças, contratos e pactos inconscientes
sustentam, principalmente, o destino do recalcamento e da
repetiçao. O pacto é um tipo de aliança inconsciente e fala de tudo
aquilo que se impõe nos laços intersubjetivos, relacionado ao
negativo, em suas várias formas; é a expressão do negativo no
âmbito da intersubjetividade9.

CRIPTA E FANTASMA

Nicolas Abraham e Maria Torok são considerados precursores dos


estudos sobre a transgeracional idade. O conceito de cripta,
cunhado por eles, define um lugar psíquico destinado a manter as
perdas (narcísicas) não elaboradas, que não puderam ser
confessadas como perdas; sua formação ocorre quando a
incorporação se dá com a impossibilidade da introjeção, impedindo
que a dor da perda seja transformada em linguagem, proibindo-a de
adquirir significação. Instala-se então uma negação radical.

Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que
não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não
puderam ser vertidas, serão engolidas, assim como, ao mesmo
tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em
conserva. O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura
secreta (Abraham e Torok, 1995, p. 248).

Na cripta está viva, reconstruída a partir de lembranças, palavras,


imagens e afetos, a imagem da pessoa, com tópica própria, bem
como os momentos traumáticos - efetivos ou imaginados - que
tornaram a introjeção impraticável. Cria-se um mundo fantástico,
inconsciente, que leva uma vida separada e oculta. A incorporação,
como consequência de um luto vergonhoso, ocorre em um estado
em que o ego já estaria acuado, após uma experiência objetal de
decepção. A cripta, por sua estrutura, mantém essa montagem, e é
resultante de um segredo partilhado, segredo vergonhoso de um
objeto que desempenhava o papel de ideal de ego .

O fantasma não é resultado de um luto falho, como no caso da


melancolia, mas das lacunas que os segredos dos outros deixam.
Esses segredos retornarão nos descendentes como uma espécie
de túmulo escondido. O fantasma é uma formação do inconsciente
com a particularidade de nunca ter sido consciente, produto da
passagem de conteúdos do inconsciente dos pais ao inconsciente
do filho. A aparição do fantasma indicaria, pois, os efeitos sobre seu
descendente, daquilo que tivera, para o pai ou para a mãe, valor de
uma ferida ou catástrofe narcísica. O fantasma tem manifestamente
uma função diferente da do recalcado dinâmico. Seus retornos
periódicos, compulsivos, vão além da formação dos sintomas sob a
perspectiva do retorno do recalcado; funciona como um ventríloquo,
como um estranho com relação à tópica própria do sujeito 9.

Haydée Faimberg: telescopagem de gerações

A telescopagem das gerações é um tipo especial de identificação


inconsciente alienante, que condensa três gerações e que se faz
revelar na transferência. O termo "telescopagem", embora não
exista em português, se refere, em francês e em inglês, aos objetos
que se encaixam entre si, uns dentro dos outros, como as bonecas
russas9.

Cisão do ego e a desmentida: "Eu sei, mas mesmo assim..."

A desmentida é o mecanismo de defesa predominante nas


perversões, mas também presente, de maneiras e em graus
diferentes, em outras patologias. Diversamente da negação, que
age a serviço da repressão sobre os representantes verbais, a
desmentida atua sobre os significantes não verbais e se dirige a
representações que guiam os comportamentos e que, por se
colocarem em contradição, coexistem graças a uma clivagem do
ego.

No artigo Fetichismo (1927), Freud fala da recusa do sujeito em


reconhecer a percepção da realidade da ausência de pênis na
mulher, fonte de angústia de castração que pode ser insuportável.
Junto com o mecanismo defensivo de clivagem, o sujeito desmente
essa percepção, mantendo no psiquismo duas posições
inconciliáveis: recusa a falta do pênis na mulher, mas sabe que
essa falta existe, o que deu origem à conhecida fórmula: "Eu sei,
mas mesmo assim...". Segundo Freud (1940[l938]-b), essas duas
forças "persistem ao longo da vida, lado a lado, sem se
influenciarem reciprocamente. É o que podemos chamar de uma
divisão do ego".

Por razoes adversas, em momento precoce do desenvolvimento, se


abriria uma fenda no ego para fazer frente às demandas pulsionais.
A demanda teria a ver com a satisfação de uma exigência pulsional,
ao mesmo tempo em que a experiência externa lhe ensina que tal
satisfação representa um perigo real. Estabelece-se um conflito
entre pulsão e realidade, e através da cisão do ego, a criança
imagina que possa satisfazer ambas condições, fórmula que lhe
parece válida e eficaz. Por um lado, rejeita a ameaça que vem de
fora, não acatando sua proibição; por outro, reconhece que essa
ameaça existe, mas assume o risco através de um sintoma,
negando seu medo e originando um inconsciente cindido (mas não
reprimido) e instalando dentro do ego a desmentida e a estrutura
narcisista13.

Que situações adversas induzem à cisão? Para Baranes, o


mecanismo da desmentida se instala a partir de um exagero do
negativo5. As situações negativas que induzem essa cisão estão
relacionadas com desejos parentais não elaborados, que atingem o
psiquismo do filho de forma violenta e intrusiva.

Para Freud, a compulsão à repetição caracterizará as neuroses de


destino e repetirá não só o Édipo, mas as primeiras marcas
mnêmicas, a fusão narcisista, a identificação primária, que
imprimiram no sujeito um desejo alheio a suas pulsões e que se
repete automaticamente. Repete-se não só o prazeroso, mas
também aquilo que nunca o foi. Repetem-se desejos e histórias
alheias às pulsões do sujeito13.

O objeto externo, representado na maioria das vezes pelos pais,


toma uma importância decisiva na constituição do ego do sujeito,
principalmente quando se encontra envolvido em situações
traumáticas anteriores ao nascimento do filho, importância no
sentido de invadir o seu psiquismo, influindo na cisão do ego
incipiente e criando a desmentida como mecanismo de
sobrevivência13.

Enríquez acredita que o resultado dessas invasões torna-se mais


deletério quando acontece de forma insidiosa e continuada, no
vínculo afetivo diário entre pais e filhos, em que se tecem
identificações, se organizam tramas fantasmáticas e se instaura
"uma confusão de línguas", através das quais as palavras ditas
transmitem, de forma latente, mensagens delirantes 5. É possível
que uma situação aguda, um surto psicótico de um dos pais, em um
momento circunscrito, não ocasione um efeito tão desastroso
quanto este na mente do filho.
Laplanche utiliza o termo "significantes enigmáticos" para essas
mensagens que assaltam os filhos, de todas as formas e por todos
os lados. Enigmáticos porque a criança não possui o código para
decifrá-los, mas, sobretudo, porque o mundo mental dos pais está
impregnado de significações inconscientes cujo código eles próprios
desconhecem. Estabelece-se uma relação narcisista alienante,
fusionada, sem fronteiras, em que pensamentos se confundem.
Há uma necessidade de não distinguir ego de não-ego.

Esses conceitos, fundamentais para a compreensão da transmissão


do psiquismo entre gerações, parecem relevantes para a
compreensão do caso clínico descrito a seguir.

CASO CLINICO

Vera tem 61 anos, viúva e ex-professora. Tem os cabelos


embranquecidos e sem pintura, aparentando mais idade. Há 25
anos trabalha em uma fazenda terapêutica para dependentes
químicos, fundada por ela e vinculada a uma instituição religiosa, da
qual é membro. Mora na fazenda e é responsável por sua
administração, embora sua principal fonte de renda seja a pensão
do marido, falecido há seis anos.

Relata ter tido uma infância difícil, com um pai alcoolista e


agressivo, que não a aceitava em casa por achar que não era sua
filha e sim fruto de uma suposta traição da mãe. Suicidou-se
quando ela tinha 10 anos. Vera é a 3ª de quatro filhos. A mãe é dita
como pouco confiável e mentirosa.

Aos 5 anos de idade, vivia com a irmã mais velha em um orfanato;


um dia, receberam a visita da mãe, que, sem explicações, sem
aviso e sem se despedir, levou consigo a irmã e a deixou sozinha
na instituição. Depois, Vera morou em diversas casas, com
diferentes famílias, convivendo com a família biológica por curtos
períodos.

A mãe a "dava para os outros com facilidade". Se alguém


comentasse que era uma criança "bonitinha", a mãe já a oferecia:
"quer ficar com ela?" Aos 7 anos, foi afinal adotada por um casal de
médicos, que já tinha uma filha biológica. Aos 10 anos, a mãe a
procurou para comunicar que o pai se suicidara.
P - Quando soube do suicídio dele, achei que ia voltar pra casa,
porque a mãe dizia que, se voltasse enquanto ele estivesse vivo, o
pai me mataria; mas aí, quando morreu, em vez de me levar pra
casa, ela me deu de papel passado pra minha família adotiva. Foi
aí que comecei a odiá-la e a achar que era ela (e não o pai) que
não me queria em casa...

Quanto aos os pais adotivos, médicos (ele ginecologista, ela


anestesista), descreve-os como rígidos e distantes (mas reconhece
que foi tratada como a irmã, filha biológica deles, tendo as mesmas
oportunidades de estudo). Viveu com eles até os 17 anos, quando
fugiu para se casar, pois os pais adotivos "não aprovavam seu
namorado". Dos 17 aos 18 anos, morou com a mãe e os irmãos
biológicos, relatando "mentiras e enganos" por parte da mãe (que
esconderia comida dela para deixar para as outras filhas) e conflitos
com os irmãos. Sem maior explicação, não voltou a ter contato com
a família que legalmente a adotara.

Atualmente tem quatro filhos biológicos e dois adotivos. Mas Pedro,


um dos "filhos adotivos", não foi de fato adotado: tem 21 anos, é ex
dependente químico e vive desde os 17 anos na fazenda.
No momento, é "monitor", com a função de orientar outros internos
e auxiliar em atividades administrativas simples. Pedro sempre foi
"muito apegado" à ela, mas há algum tempo Vera percebeu que o
amor de Pedro "não era mais o amor de um filho pela mãe".

Falou que estava "apaixonado" por ela, que correspondeu a esses


sentimentos. Mas se sente angustiada em assumir o
relacionamento, pois teme a reação dos filhos. Ela e Pedro estão
"aguardando um sinal de Deus" para se casarem. Por enquanto,
embora durmam juntos, só se permitem toques nas mãos e beijos
no rosto, pois sua religião não permite sexo antes do casamento.
Pedro ainda chama Vera de mãe, o que a deixa "um pouco
desconfortável".

Um dos seus temas recorrentes é a questão das consequências de


assumir publicamente esse relacionamento. Diz que Pedro é a
única pessoa que se interessa por ela e lhe dá atenção. As vezes
demonstra interesse e até ciúmes de Vera, outras vezes se
envergonha do relacionamento por ela estar "ficando muito velha"
(a diferença entre eles é de 39 anos).
No passado, Vera conta que o marido (estiveram casados por 37
anos) traiu-a continuadamente com suas duas irmãs. Quando o
marido lhe contou, em 1979, Vera teve uma "crise" com internação
psiquiátrica, "mas não se lembra direito do que ocorreu". Converteu-
se durante a internação e "nunca soube ao certo o que se passou
entre o esposo e as irmãs", nunca perguntou e nem quis saber.

Outro evento da época foi uma relação incestuosa entre seu filho e
a filha, que tinham 15 e 12 anos na ocasião. Só ficou sabendo anos
mais tarde, quando a filha, durante um retiro religioso, contou para
um pastor da igreja, pedindo-lhe ajuda para falar aos pais. A reação
da paciente foi enviar os filhos para dois retiros para jovens
diferentes (ela e a filha recolheram-se juntas em um deles). Não
sabe explicar a decisão de então isolar os filhos, por quase um ano,
já que o incesto ocorrera muitos anos antes. Diz que talvez
"suspeitasse" que a filha ainda pudesse ter algum interesse sexual
pelo irmão.

Durante o tempo em que ela e a filha permaneceram no retiro,


quase não falaram sobre o incesto. Em uma das conversas em que
o assunto foi abordado, a filha se queixou de ter tentado lhe contar
(reclamara, na época, de que o irmão estava "caindo em sua
cama"), mas não ter recebido atenção. Vera ficou "revoltada", não
se recordava de a filha ter dito nada, e como poderia esperar que
ela compreendesse algo dito desta maneira: "o irmão está caindo
na minha cama"? "Que mãe poderia imaginar algo assim?" Disse à
filha que "quando um não quer, dois não brigam". Romperam entre
si e pouco se falam até hoje. Vera pouco sabe do que se passou,
explicando que "não quis saber mais nada", pois "não saberia como
lidar com a situação".

Após a volta do retiro, o assunto do incesto foi proibido. Vera


suspeita que os filhos mais novos tenham também sabido, pois
"estavam em casa na época", mas não sabe, pois nunca mais se
falou sobre isso.

Aos 22 anos, o filho saiu de casa. Mais adiante, a filha saiu para se
casar, dizendo que jamais voltaria àquela casa. A paciente mantém
hoje um relacionamento mais próximo somente com a filha mais
nova, que também mora e administra outra fazenda terapêutica, ao
lado da de Vera. Essa filha (Elisa), ao saber do relacionamento da
mãe com Pedro, também se afastou da mãe.
No segundo ano de psicoterapia, Vera menciona estar observando
modificações de comportamento em uma das netas, de 5 anos. Diz
estar preocupada, mas "não sabe bem por quê". A neta vem
apresentando comportamentos hipersexualizados, dançando,
rebolando e utilizando linguajar que não é comum na família,
estando "muito apegada" a outro dos internos da fazenda.

As netas (5 e 4 anos), que moram na fazenda da filha, convivem


com os dependentes químicos internados. Reconhece que, por
mais que Elisa procure cuidar, as crianças se afastam com
frequência da sede da fazenda. Não há nenhum adulto não
dependente químico supervisionando as crianças e só há internos
homens.

Elisa, seu marido (também ex dependente, que a conheceu quando


era interno da fazenda de Vera) e sua irmã adotiva são os únicos
responsáveis pelo local. Em face da repetida negação de Vera e de
Elisa, a terapeuta interveio, sugerindo que as crianças não
convivessem com os internos sem a supervisão constante de
alguém da família. Os riscos a que as netas estavam sendo
expostas pareceram ser uma ideia surpreendente para a paciente.

Elisa, a mãe das crianças, tampouco se dava conta daquilo a que


expunha as filhas (talvez por ela mesma ter se exposto a risco
semelhante quando jovem).

Vera não sabe explicar por que se afastou da família adotiva, com a
qual morou por 10 anos. Somente uma vez os procurou: estava
com um forte prurido vulvar e achou que o pai, ginecologista,
poderia tratá-la. Conta, ressentida, que a mãe se recusou a atendê-
la como paciente, "mas que já esperava ser rejeitada pela mãe".

Quanto ao inusitado da situação (de, como filha, procurar o pai para


um exame ginecológico), Vera considerou a situação "natural": o pai
já teria feito o pré-natal e o parto da outra filha (irmã adotiva de
Vera) - mas, Vera ressalta, "sem fazer o exame de toque".

DISCUSSAO

Como compreender negações tão extensas e graves dos limites


entre as gerações que se observam nessas famílias e repetições
significativas de situações incestuosas ou quase incestuosas entre
indivíduos de gerações diferentes e entre membros de uma mesma
geração? Ou a negação dos fatos envolvendo a sexualidade e a
erotização dos laços intrafamiliares e das consequências dos
mesmos, e, o que se impõe com maior urgência, a negação dos
riscos a que estão agora expostos os membros mais jovens da
família (as netas)?

Apesar das poucas informações disponíveis sobre as gerações


anteriores da paciente e seu marido, o que impossibilita identificar o
início desta cadeia de traumas e repetições, chama a atenção como
relacionamentos incestuosos, negações e segredos se repetem,
seja de forma consciente (como a paciente nunca querer saber o
que ocorreu entre o marido e as irmãs), seja inconscientemente
(não se dar conta do incesto dos filhos, achar natural casar com um
filho adotivo ou ser genitalmente examinada pelo pai e, agora, não
perceber o risco de abuso das netas).

São vários os exemplos do inusitado de situações perversas e suas


repetições:

1. O pai adotivo de Vera que decide acompanhar o pré-natal e parto


da filha biológica, sem que houvesse nenhuma situação de
emergência que o justificasse: foi uma escolha do pai e da filha,
autorizada pela mãe, que também serviu de anestesista...

2. A negação, por parte de Vera, da longa relação entre o marido e


suas duas irmãs, dentro da própria casa, sem que percebesse
"nada" até que o marido lhe contasse. A parte uma crise inicial
(histérica?), a paciente também não quis saber de mais nada sobre
o assunto e manteve o casamento inalterado.

3. A negação do aspecto incestuoso do relacionamento com Pedro,


seu "filho adotivo", que a chama de mãe enquanto estão deitados
juntos, e a persistência, sem crítica, de planos de casamento com o
mesmo.

4. A negação da relação incestuosa entre os filhos, na


adolescência, só revelada anos mais tarde pela filha, com o auxílio
de uma pessoa de fora da família para poder ser ouvida.

As situações promíscuas, não faladas, por parte da geração dos


pais e tias (o "ménage" entre o marido, a esposa e as duas
cunhadas), se mantiveram "secretas" por anos, com o beneplácito
(por negação) da paciente - seria só coincidência que os filhos, na
mesma época, também passassem a atuar, entre si, a erotização
incestuosa de todo o grupo familiar? O filho tinha 13 anos na
ocasião da descoberta da relação do pai com as tias e a paciente
acredita que todos os filhos presenciaram as brigas que se
seguiram à "revelação".

A reação da paciente à outra revelação, a do incesto dos filhos, foi


separá-los da família (e ela junto, identificada com a filha), anos
depois do incesto. A paciente a explica dizendo que "não soube o
que fazer, não lhe ocorreu outra atitude, não teve sabedoria",
exemplificando, dinamicamente, como processos mentais
traumáticos, não simbolizados e não pensáveis, só podem ter o
destino de serem evacuados, sob a forma de atos e ações
impulsivas - o que não impede sua repetição no futuro.

A separação dos membros da família foi uma tentativa de solução


fóbica para a consumação da relação edípica, com o objetivo de
evitar que a "catástrofe" fosse reconhecida e elaborada dentro do
possível. Como uma desmentida perversa, soube-se do que
aconteceu, mas, ao mesmo tempo, se fez de conta que não
aconteceu nada! Impediu-se, portanto, que esses eventos
pudessem ser "metabolizados" pela família, pelos filhos (e agora
pelas netas), mantendo-se como um segredo e um assunto familiar
proibido, cujo destino talvez seja o de uma reprodução interminável.

Pode-se pensar que a origem do rancor da paciente com a filha não


seja esta não ter lhe contado explicitamente sobre o incesto com o
irmão na época da sua ocorrência. O "pecado" da filha foi ter
finalmente feito a denúncia a alguém externo e assim violado
o pacto denegativo dos segredos familiares. Sua suspeita de que a
filha ainda hoje nutra desejos incestuosos pelo irmão possivelmente
expressa uma projeção dos próprios desejos edípicos pelo pai da
infância, que a rejeitou quando criança, "telescopado" no projeto
atual de casamento com o filho adotivo (que às vezes a paciente,
quando se distrai, chama de neto).

Embora a denúncia da filha não possa ter sido ignorada, pôde, por
outro lado, ser "enterrada" em uma "cripta" do grupo familiar, não
falada, e levando, finalmente, à deterioração dos vínculos familiares
que se estendeu até hoje e que atualmente ameaça a implosão final
do que restou da família se a paciente vier efetivamente a se casar
com seu filho adotivo - ou se for permitido que as netas sejam
abusadas pelos demais dependentes químicos com quem convivem
na fazenda. Afinal, eles são também "filhos adotivos" da paciente,
que ficam excitando suas "irmãzinhas" (como ocorreu entre seus
filhos biológicos) e a família, novamente, escotomizando a provável
repetição de uma perversa e iminente situação de incesto
transgeracional.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Cadmo, trisavô de Édipo, funda Tebas e dá início à sua


descendência. Nas gerações anteriores a Édipo, desde a fundação
de Tebas, a sucessão se dá sempre por assassinatos e parricídios.

Segundo Faimberg, o nó da tragédia de Édipo reside na mentira, já


que Édipo não consegue evitar a consecução do parricídio e do
incesto por ser seu destino regido por ela. E se Édipo, ao final de
sua vida, pôde elaborar seus conflitos e, como diz o mito,
reconciliar-se com os "deuses", o mesmo não foi possível a seus
filhos.

Para eles não houve qualquer possibilidade de elaboração, e todos,


com exceção de Ismene, buscaram, ainda jovens, uma morte
violenta. Repete-se, portanto, através das gerações, o infortúnio da
transmissão transgeracional, proveniente de uma estrutura familiar
narcísica.

Benghozi, que disserta sobre a problemática do trauma a partir de


catástrofes comunitárias, afirma que o risco constante quando há
um traumatismo psíquico não metabolizado é a repetição da cena
da violência, mesmo depois de várias gerações.

A vítima se torna carrasco. O fenômeno pode ser encontrado nas


terapias tanto de famílias com relações incestuosas como daquelas
com violência intrafamiliar. O trabalho de elaboração é, portanto, um
trabalho preventivo da saúde psíquica também das crianças ainda
não nascidas. Esta é uma das funções, não negligenciáveis, da
ajuda que pode ser trazida a vítimas e vetores dessas experiências
traumáticas.
O autor alerta que, quando nos confrontamos com situações
extremamente traumáticas, nossas próprias capacidades mentais
de conter a "insustentável crueldade do ser" podem nos levar a um
autêntico revisionismo psíquico, induzindo-nos a duvidar da
realidade das "atrocidades extremas".

O INCONSCIENTE EM SIGMUND FREUD


Everton Fernandes Cordeiro

Núcleo Psicanalítico – Faculdade Gaio

Quando pensamos em Sigmund Freud, logo vem a associação do


nome com a Psicanálise que foi sua criação. O conceito de
inconsciente está intrínseco à Psicanálise, de modo que se fosse
resumir em uma palavra todo o saber psicanalítico, essa palavra
seria o inconsciente. Freud elabora a teoria psicanalítica no fim do
século XIX e primeira metade do século XX. O inconsciente penetra
na cultura ocidental e na ciência, ora sendo usado para entender os
vários sinais do comportamento humano, ora sendo banalizado e
ignorado pela psicologia da consciência. Ao mesmo tempo em que
Freud é enaltecido pela sua ousadia em criar uma nova ciência, é
também escorraçado e criticado por aqueles que não aceitaram a
psicanálise. Porém, pode-se odiar e contestar Freud e tudo aquilo
que ele representa para a história do saber pós-moderno, mas é
preciso admitir sua necessidade para a compreensão da sociedade
e do psiquismo humano.

Procurou-se neste artigo situar o surgimento da psicanálise no


contexto histórico e filosófico, onde viveu Freud, a Viena vitoriana
do fim do século XIX, cujo espírito é marcado por uma grande fé na
ciência, iluminada pelas luzes da razão, da racionalidade; O
conceito freudiano do inconsciente e seu papel no interior do
aparelho psíquico, bem como suas formas de manifestação na
consciência através dos atos falhos, lembranças encobridoras e
sonhos.

2.O CONTEXTO DO SURGIMENTO DO SABER PSICANALÍTICO

A Psicanálise é a ciência criada por Sigmund Freud a pouco mais


de cem anos. Freud era um médico judeu, neurologista e psiquiatra
da Viena da segunda metade do século XIX. Compreender o
contexto histórico e filosófico do surgimento da psicanálise é muito
importante, pois a psicanálise não surgiu do nada. Ela é fruto de
estudos profícuos sobre os fenômenos psíquicos relacionados com
a neurologia, a medicina, a psiquiatria, a fisiologia e a filosofia, bem
como o seu ponto de partida está nas idéias antigas e sugestões
anteriores que foram desenvolvidas e aperfeiçoadas. A partir
desses estudos é que Freud edifica a teoria psicanalítica que se
expandiu no século XX e penetra o século XXI com todo o vigor de
uma ciência que busca a compreensão do sujeito em relação com o
seu próprio corpo, e a partir desse relacionamento, entender suas
relações com o mundo externo e a sociedade, procurando entender
as causas do adoecimento psíquico através da teoria ligada à
técnica.

Freud nasceu e cresceu numa sociedade marcada por uma grande


fé na ciência iluminada pelas luzes da razão, da racionalidade. A
Viena de Freud é do Iluminismo, da Ilustração (Aufklärung), que
embora tardiamente chegada (Séc. XIX) ao território alemão, tem o
seu vigor no plano cultural e filosófico. A Ilustração é uma filosofia
que tem otimismo no poder das luzes da razão para reorganizar o
mundo humano, este se sabe capaz de encontrar soluções para
seus problemas baseado em princípios racionais, podendo usá-los
em todos os aspectos: políticos, econômicos, morais e religiosos
(ARANHA & MARTINS, 1993).

Freud é um intelectual, nascido no berço dessa Ilustração


progressista. Sua formação na escola de medicina alemã da época
é, portanto, fisicalista e mecanicista. Porém a sua genialidade e
curiosidade científica o levam a uma investigação que até o
momento, a ciência racionalista não tinha como objeto de interesse.
A partir de sua experiência clínica com a histeria, através da
hipnose, frutos de seus estudos com o célebre francês Jean-Martin
Charcot, Freud percebeu que na histeria os pacientes exibem
sintomas que são anatomicamente inexplicáveis, concluindo que os
sintomas histéricos se baseiam em reminiscências que causaram
grande comoção e foram esquecidas. Ele utilizou a hipnose para
fazer com que o paciente reproduzisse as experiências passadas.
Porém, como se sabe, Freud troca a hipnose pela técnica de
associação livre (FADIMAN & FRAGER, 2004).

Com o conceito de Inconsciente, Freud vai de encontro a uma


grande resistência da intelectualidade e da inteligência da época,
herdeira de uma concepção racionalista do homem como um ser
unitário identificado com a consciência e dominado pela razão. A
psicanálise opera uma clivagem na subjetividade, não colocando a
questão do sujeito da verdade, mas da verdade do sujeito. Divide a
subjetividade humana em dois sistemas – o Inconsciente e o
Consciente – e que é dominada por uma luta interna. Freud
desloca-se dos ideais da Ilustração, indo interessar-se pelos
fenômenos da vida afetiva que apresentavam dificuldades de
estabelecimento conceitual. Começa a investigar os aspectos
pulsionais, as forças obscuras que movem o ser humano, de modo
que a racionalidade não se enraizava profundamente, sendo
apenas uma camada de superfície, um verniz, e que não tem as
rédeas sobre o comportamento humano. O mundo, pensado
racionalmente, era escorregadio e não oferecia explicações para
certos fenômenos (GARCIA-ROZA, 2007).

Com a psicanálise e a teoria do Inconsciente, Freud realiza a


terceira grande ferida ao narcisismo humano. A primeira ferida foi
feita séculos antes por Copérnico com a teoria heliocêntrica,
descentralizando o planeta Terra, onde o homem habita, do centro
do Cosmos. A segunda ferida foi realizada por Darwin, que tira o
homem do patamar de senhor e centro da criação, para o qual tudo
foi feito, uma espécie única e destacada, e afirma que o homem é
uma espécie superior que é proveniente de formas inferiores da
vida animal. Freud realiza a terceira ferida narcísica ao criar a
psicanálise, descentrando o sujeito de si mesmo ao afirmar que o
homem não é senhor da sua própria casa, mas coabita com forças
conflituosas existentes no sistema inconsciente. O homem, antes
visto como posseiro de um local privilegiado (o lugar do
conhecimento e da verdade), agora é visto como um ser movido por
forças que sua própria razão desconhece e sobre as quais ele tem
pouco ou nenhum controle, portanto, o homem não é um agente
racional sobre a própria vida, como se pensava. A psicanálise,
portanto, promove uma ruptura com o saber existente, derrubando a
razão e a consciência do lugar sagrado em que se encontrava
(SCHULTZ & SCHULTZ, 1992).

De fato, para a psicanálise, a consciência é mero efeito de


superfície do inconsciente, não é o lugar da verdade, mas da
mentira, do ocultamento, da distorção e da ilusão. Freud coloca a
consciência sob suspeita. Ela propõe falar do homem como um ser
singular, através da escuta desse sujeito, de sua verdade e de sua
experiência subjetiva, interessando-se pelo desejo que o
racionalismo recusou.

3.O INCONSCIENTE FREUDIANO

O conceito de Inconsciente (Unbewusste) é ponto central da teoria


psicanalítica, a sua pedra angular, na qual se concentra toda a
descoberta freudiana. Freud, através de sua experiência clínica diz
que o psiquismo não se reduz ao consciente e que certos
conteúdos só são possíveis à consciência após serem superadas
certas resistências. Revelou que a vida psíquica é povoada de
pensamentos eficientes embora inconscientes, de onde se
originavam os sintomas. Freud localiza o inconsciente não como um
lugar anatômico, mas um lugar psíquico, com conteúdos,
mecanismos e uma energia específica. O inconsciente faz parte da
Primeira Tópica do Aparelho Psíquico construída por Freud a partir
da Traumdeutung (Interpretação dos Sonhos) publicada em 1900.
Em muitos textos freudianos o inconsciente é assimilado ao
recalcado, porém, reserva-se um lugar para conteúdos inatos,
filogenéticos, que constituem o núcleo do inconsciente. Os
conteúdos do inconsciente são os representantes da pulsão que
estão fixados em fantasias, histórias imaginárias, concebidas como
manifestações do desejo, que é um dos polos do conflito defensivo.
Os desejos inconscientes tendem-se à uma realização,
restabelecendo os sinais ligados às primeiras vivências de
satisfação, através do processo primário (LAPLANCHE &
PONTALIS, 2001).

Freud propõe explicar o funcionamento do aparelho psíquico como


uma construção tópica. Assim sendo, de acordo com o lugar que
ocupa dentro do aparelho psíquico, o inconsciente só pode ter
acesso à consciência por meio do sistema
Pré-consciente/Consciente. Na passagem a este último sistema, os
conteúdos inconscientes são submetidos às exigências dele, de
modo que qualquer conteúdo do Ics só pode ser conhecido se for
transcrito, de modo distorcido e modificado pela sintaxe ditada pelo
Pcs/Cs (GARCIA-ROZA, 2007).

Segundo Kusnetzoff (1982), o Inconsciente é a parte mais arcaica


do aparelho psíquico. As representações contidas no inconsciente
são chamadas de representações de coisa. Essas representações
são fragmentos de reproduções de antigas percepções de todos os
sentidos, dispostas como uma sucessão de inscrições, como um
arquivo sensorial: um conjunto de elementos despidos de palavras,
cuja inscrição foi feita numa época em que não existiam palavras
(na primeira infância do sujeito). Por isso as representações
inconscientes formam "verdadeiros fantasmas, carregados de
energia proporcionada pelas pulsões" e as representações de coisa
operam em conjunto com a energia pulsional. Elas possuem um
fácil deslocamento e livre descarga, através do processo primário,
passando de uma representação para outra por meio dos
mecanismos de deslocamento (substituição e descentramento de
importância dada ao conteúdo) e condensação (abreviação,
omissão e combinação de conteúdos) (pág. 124-125).

O Id, conceito elaborado após 1920 na Segunda Tópica Freudiana


do aparelho psíquico, é a instância que tem o inconsciente como
seu equivalente. O Id é o núcleo original da personalidade, no qual
se encontra o campo pulsional, reservatório e fonte de energia
psíquica. Referente às pulsões, Freud, a essa altura, já diferencia
em pulsões de vida e de morte com a publicação de Além do
Princípio do Prazer. A função do Id é de reduzir a tensão, aumentar
o prazer e minimizar o desconforto, compreendendo estímulos
somáticos que exigem do psiquismo uma satisfação imediata. Do Id
é que se originam as outras instâncias: ego e superego (Ibid.pág.
129).

4.AS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE

Somente pode-se ter acesso ao inconsciente através de sua


manifestação na consciência. Nesta, ele está vestido com uma
roupagem imposta pela censura dos sistemas Pcs/Cs. Por isso, a
manifestação de conteúdos do inconsciente está distorcida, e
modificada na consciência.

Nasio (1993) considera que o inconsciente só pode existir no campo


da psicanálise, no seio do tratamento analítico. O inconsciente se
revela num ato que surpreende e ultrapassa a intenção daquele que
fala, de modo que o sujeito diz mais do que pretende dizer e, ao
dizer, revela a sua verdade. O "dizer mais" produz e faz com que o
inconsciente exista e, para que o ato de existência do inconsciente
se efetive é necessária a existência de um outro sujeito que o
escute e o reconheça. Este sujeito é, portanto, o psicanalista
(pág.50).

Freud, em seu artigo de 1915 sobre O Inconsciente, justifica o


conceito de inconsciente como necessário, partindo de um dos
pressupostos de que os dados da consciência apresentam um
grande número de lacunas. Seja em pessoas sadias ou doentes,
ocorrem atos psíquicos, para os quais, a consciência não oferece
explicações. Algumas dessas lacunas são as lembranças
encobridoras, os atos falhos (ou parapraxias), os sonhos e os
sintomas psíquicos que só podem ser elucidados pela via do
inconsciente (FREUD, [1915] 1996).

Garcia-Roza (2007) comenta que os fenômenos lacunares trazem à


investigação psicanalítica o que Lacan chamou de formações do
inconsciente. São indicadores da ordem do inconsciente. Os
chistes, os sonhos, os atos falhos, os sintomas produzem uma
descontinuidade no discurso consciente, mas também, um
sentimento de ultrapassagem, fazendo com que o sujeito se sinta
atropelado por um outro sujeito que ele próprio desconhece, mas
que o domina e impõe a sua fala, o que acarreta a troca de nomes e
esquecimento que se escapam a um sentido. Esse outro sujeito ao
qual pertencem os atos e as manifestações é o sujeito do
inconsciente. Falemos sucintamente sobre as manifestações do
inconsciente nos atos falhos, nas lembranças encobridoras e nos
sonhos.

4.1 Os atos falhos

Os atos falhos ou lapsos foram um dos primeiros fenômenos para


os quais Freud voltou a sua atenção. Eles são indícios seguros do
determinismo psíquico e dos motivos inconscientes, ou seja, que
tais comportamentos possuem um significado e não ocorrem
casualmente. Esquece-se o nome de alguém, mas sabe-se que
outros nomes que são lembrados ou sugeridos não correspondem
ao nome esquecido. Ouve-se algo que não foi dito realmente,
escreve-se o que não era intenção de escrever. Todos os atos
falhos baseiam-se no esquecimento, porém, nenhuma pessoa sadia
está alheia a esses esquecimentos (GARCIA-ROZA, 2007).

De acordo com Laplanche & Pontalis (2001), os atos falhos


consistem naquilo cujo resultado visado não foi atingido. O sujeito
atribui às ações que ele não conseguiu realizar bem, como
derivadas de sua distração ou ocorridas por acaso. Freud
demonstrou que os atos falhos possuem compromisso entre a
intenção do sujeito e o recalcado. Sendo assim, o ato falho é um ato
bem sucedido ao nível do inconsciente, pois o desejo inconsciente
realiza-se nele de uma forma clara e visível numa análise.

4.2 As lembranças encobridoras

Em A Psicopatologia da Vida Cotidiana, Freud dedica um capítulo


do livro para chamar atenção para o fato de algumas lembranças
remotas que temos da nossa infância serem fragmentárias e de
conteúdos indiferentes e sem importância. Ele postula que nossa
memória possui uma natureza tendenciosa e que ela seleciona as
impressões que recebe. Na infância, as lembranças indiferentes
surgem pelo processo de deslocamento, ou seja, as lembranças
não importantes substituem as lembranças importantes, cuja
recordação seria desconfortável e impedida pela resistência, porém,
tornando-se possível através de uma análise. O conteúdo
aparentemente insignificante das lembranças encobridoras possui
um vínculo associativo com outro conteúdo que está recalcado
(FREUD [1901] 1996, pág.59; LAPLANCHE & PONTALIS, 2001).
4.3 Os sonhos

Freud aponta os sonhos como o caminho mais rico de investigação


do inconsciente, a estrada real que leva aos seus conteúdos. É na
Interpretação dos Sonhos que Freud elabora a sua teoria dos
sonhos e a técnica de interpretação. Os sonhos são realizações
disfarçadas de desejos proibidos e inconscientes.

Os sonhos se inscrevem em dois registros: aquilo que é lembrado e


contado pela pessoa constitui o conteúdo manifesto do sonho;
aquilo que é oculto e inconsciente que sugere uma interpretação,
constitui o conteúdo latente do sonho. A interpretação dos sonhos
consiste num percurso que vai do conteúdo manifesto ao conteúdo
latente. Esse trabalho de interpretação dos sonhos se realiza ao
nível da linguagem, do discurso do sujeito e não das imagens
oníricas que o paciente recorda. Os enunciados do sonho
apresentados pelo analisando dão lugar a outros enunciados, mais
primitivos e ocultos que expressam os desejos do paciente
(GARCIA-ROZA, 2007).

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se no presente ensaio elucidar de forma sucinta alguns


aspectos básicos sobre o inconsciente psicanalítico e suas formas
de manifestação nos atos falhos, lembranças encobridoras e
sonhos.

O inconsciente é o fio condutor que perpassa toda a obra freudiana


do início da psicanálise com os estudos sobre os fenômenos
histéricos até os últimos trabalhos de Freud, na década de 30. Em
diversos momentos Freud retoma o inconsciente, ora
aprofundando-se e ligando-o aos casos clínicos dos pacientes que
ele investiga, ora complementando o conceito. Um exemplo disso é
a construção da Primeira Tópica, onde Freud postula o aparelho
psíquico sob o ponto de vista topográfico, ou seja, o psiquismo é
dividido em três instâncias (lugares psíquicos): o inconsciente, o
pré-consciente e o consciente. Sob o ponto de vista dinâmico,
essas três instâncias estão em constante conflito de forças de
desejos inconscientes que querem ser manifestados e emergidos
no campo consciente e contraforças que operam para a não
satisfação desses desejos, impedindo sua manifestação
(recalcamento).
Anos mais tarde, Freud reformula a teoria do aparelho psíquico e
postula a Segunda Tópica nomeando as instâncias em Id, Ego e
Superego. Segundo Kusnezoff (1982), a Segunda Tópica não anula
a Primeira, mas integra as instâncias Cs, Pcs e Ics a atributos e
qualidades. O Ego é Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente; o
Superego é uma pequena parte Pré-consciente, e o resto se
enraíza no Inconsciente; o Id é todo Inconsciente. Com a Segunda
Tópica, Freud postula um novo sistema que dá ao aparelho
psíquico um aspecto antropomórfico, parecendo que "as instâncias
falam". Por exemplo, o superego é censor, "sádico", uma parte do
Ego "luta" contra outra e assim por diante. Com isso há "uma
aproximação analógica entre a teoria do aparelho psíquico e a vida
fantasmática que habita dentro do sujeito" (pág. 127-129).

Contudo, após o falecimento de Freud em 1939, a Psicanálise


tomará um rumo diferente daquele proposto por Freud. Há uma
ênfase norte-americana nos estudos centrados no Ego (Psicologia
do Ego), subestimando o inconsciente em sua originalidade
freudiana, o que provocará dissensões entre os discípulos de
Freud, que dividirão a comunidade psicanalítica em todo o mundo.
O surgimento da Psicologia do Ego é deste contexto intelectual.
Porém, é importante considerar que, a partir dos anos 1950, o
francês Jacques Lacan retomará o percurso de Freud, naquilo que
ele denominará de "retorno a Freud", resgatando a psicanálise dos
rumos controversos em que ela se embrenhava. Lacan propõe uma
releitura do texto freudiano e enfatiza a grande descoberta da
genialidade de Freud que é o inconsciente, e que, por sua vez, será
concebido como “estruturado como uma linguagem”, a partir das
contribuições lacanianas, que ele extraiu do campo da linguística
estrutural. Assuntos que, no entanto, por limites metodológicos, não
poderão ser abordados no presente artigo.

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