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Boletim Conteúdo Jurídico - ISSN – 1984-0454

BOLETIM CONTEÚDO
www.conteudojuridico.com.br

JURÍDICO vol. 1111


(Ano XIV)
(03/09/2022)

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


ISSN - 1984-0454

BRASÍLIA

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Conselho Editorial
VALDINEI CORDEIRO COIMBRA (DF): Mestre em Direito Penal
Internacional pela Universidade de Granada - Espanha. Mestre em
Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Especialista em Direito Penal
e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial
Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor Universitário. Advogado.
Delegado de Polícia PCDF/Ap.
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MARCELO FERNANDO BORSIO (MG): Pós-doutor em Direito da


Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madrid. Pós-
Doutorando em Direito Previdenciário pela Univ. de Milão. Doutor e
Mestre em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade
Católica/SP.
FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em
Direito Administrativo pela UFMG.
RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.
MARCELO FERREIRA DE SOUZA (RJ): Mestre em Direito Público e
Evolução Social u, Especialista em Direito Penal e Processo Penal.
KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em
Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.
SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO (Montreal/Canadá): Advogado com
mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil
Internacional. Professor universitário.
CAMILA ALENCAR COIMBRA: Bacharelanda em Jornalismo.
Colaboradora em editoração.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Endereço: SIG SUL, Q. 01, lote 495, sala 236,
Ed. Barão do Rio Branco, CEP. 70610-410. Tel. (61) 991773598
Contato: [email protected]
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Boletim Conteúdo Júrídico
Publicação semanal em formato digital
Circulação: Livre. Acesso aberto e gratuito

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Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


Boletim Conteúdo Jurídico.

Jurídico, Boletim Conteúdo, vol. 1111, (ano XIV) ISSN – 1984-0454 / Boletim Conteúdo
Jurídico, Brasília, DF. 2022. 545 f.

Revista eletrônica Interdisciplinar com predominância na área do Direito. Obra


coletiva.

Recurso online. Publicação semanal.

ISSN 1984-0454

Coordenação: Valdinei Cordeiro Coimbra.


1. Portal de conteúdo Jurídico. 2. Interdisciplinar. Direito. 3. Filosofia. Educação. 4. Outros.

CDD – 020.5

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SUMÁRIO

COLUNA

O “golpe do cartão trocado”: as vítimas podem obter


ressarcimento do banco?
Heitor José Fidelis Almeida de Souza, 09.
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ARTIGOS
Breve estudo sobre aplicação dos princípios da precaução e prevenção
como instrumentos para uma agricultura sustentável
Antonio Augusto Vilela, 13.

A senexão como mecanismo de garantia do envelhecimento digno


Lais Mello Haffers, 35.

Alguns aspectos sobre a violência obstétrica


Mariana Carla Batista Carrilho, 64.

Acidente de Trabalho e seus reflexos na Previdência Social no Brasil


João Francisco da Silva e Valéria Gaurink Dias Fundão, 79.

Fatores agravantes da violência doméstica na pandemia no Brasil


Jullya Mariany Medrado Nicoletti, 105.

Crimes Cibernéticos: uma pesquisa bibliográfica sobre as problemáticas


enfrentadas diante dos crimes virtuais
Patrícia Gomes Rocha, 119.

O princípio da busca da verdade material aplicado no incidente de


desconsideração da personalidade jurídica em execuções fiscais
Verônica Marcondes, 132.

As formas alternativas de resolução de conflitos no direito do consumidor:


breve estudo sobre formas alternativas de resolução de conflitos no direito
brasileiro
Antonio Augusto Vilela, 157.

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Violência obstétrica: efeitos jurídicos no Direito Penal


Adrianne Silva Dorneles, 174.

A crise no sistema carcerário e a privatização desse sistema como uma


possível solução para a diminuição da massa carcerária brasileira
Lucas Ivan dos Santos Vicente, 196.

Token não fungível: uma análise acerca dos reflexos para os direitos
autorais

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Bruno da Silva Batalha, 211.

Esporte como instrumento de direitos humanos: guerras, apartheid,


organização e participação em grandes eventos
André Galdeano Simões, 240.

Lei nº 11.343/2006: a necessidade de uma diferenciação objetiva entre o


uso e o tráfico de drogas frente aos malefícios da subjetividade da norma
Caio Sanches Fazzio, 256.

O criminal profiling e suas metodologias no auxílio da investigação


criminal
Leticia Carneiro da Costa Ferreira, 269.

Interpretação Constitucional e Legitimidade – O Nascedouro do Ativismo


Nadine Lang da Silva, 288.

A importância do Exército brasileiro para a promoção da segurança pública


Fernando Silva Nascimento, 313.

A Síndrome Da Mulher de Potifar e a relação com direito penal brasileiro


Wesley Pereira dos Santos, 326.

O crime de terrorismo na perspectiva contemporânea: reflexões críticas à


Lei n. 13.260/16
Rebecca Scalzilli Ramos Pantoja, 335.

Ideologias de Carl Schmitt v. Hans Kelsen: Controle de Constitucionalidade


Carmen Ferreira Saraiva, 373.

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A constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública e a


importância da interlocução com os órgãos de Segurança Pública: a
possibilidade de se defender provando como essencial expressão da ampla
defesa
Eraldo Silveira Filho, 392.

Direitos e responsabilidades na adoção em situação de divórcio


Bruno da Silva Amorim, 409.
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(Im) possibilidade de ajuste de cláusula pro solvendo em contratos de


cessão de direitos creditórios celebrados por fundos de investimento em
direito creditório
Camilla Ellen Aragao Costa, 412.

Desafios e propostas de avanços na segurança pública brasileira


Luana Almeida Silva, 430.

Alimentos do menor na multiparentalidade


Ana Gabriela de Aguiar Lima, 443.

O direito animal e a inconstitucionalidade da Emenda Complementar


nº96/2017
Julia Thainá Guimarães Custódio, 456.

Apontamentos sobre o nexo causal à luz da teoria da responsabilidade civil


Felipe Sammarco Milena, 477.

Tomada de decisão apoiada da pessoa com deficiência


Priscila Cortez de Carvalho, 500.

Sistema de precedentes vinculantes e o novo Código de Processo Civil


Rebecca Scalzilli Ramos Pantoja. 510.

Direito sucessório perante as mudanças sociais


Maria Eduarda de Souza Batista Simonato, 531.

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O “GOLPE DO CARTÃO TROCADO”: AS VÍTIMAS PODEM OBTER RESSARCIMENTO DO


BANCO?

HEITOR JOSÉ FIDELIS ALMEIDA DE SOUZA:


Advogado, sócio proprietário do Fidelis Sociedade
Individual de Advocacia (https://fidelisadvocacia.com/),
bacharel em Direito pela USP e pós-graduado em Direito
Empresarial pela FGV-SP.

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A todo instante consumidores do Brasil inteiro são submetidos a tentativas de
golpes financeiros que ocorrem das mais variadas formas. Neste artigo, trataremos sobre
o “golpe do cartão trocado”, fornecendo diretrizes concretas que podem ser adotadas
pelos consumidores que foram vítimas desta fraude. Em suma, trata-se de artifício
astucioso empregado por estelionatários que se camuflam como vendedores ambulantes
à espera de uma oportunidade para fraudar suas vítimas.

Na hora de pagar pela mercadoria adquirida, quando o cliente está distraído, o


fraudador observa a senha que foi digitada na maquineta e sorrateiramente troca o cartão
do consumidor por cartão de terceiro, muitas vezes da mesma bandeira e banco. Há relatos
de que integrantes da quadrilha criam uma distração na rua para desviar a atenção da
vítima enquanto o golpe é perpetrado (p. ex., inicia-se uma discussão, uma briga, alguém
tropeça e cai no meio da multidão, etc.). Tais expedientes dificultam ou impossibilitam que
a vítima se dê conta do golpe imediatamente.

Em posse do cartão e senha, rapidamente os estelionatários realizam diversas


transações financeiras para extrair o máximo de dinheiro possível da conta bancária do
consumidor, antes que ocorra o bloqueio do plástico ou que a vítima tenha chance de
perceber o ocorrido e ligue para o banco para cancelar o cartão.

Obviamente, o modus operandi dos estelionatários não é único e golpe pode variar
caso a caso. Aliás, quando o cliente tem habilitada a função de “pagar por aproximação”,
os fraudadores sequer precisam descobrir a senha para implementar o golpe, bastando
trocar os cartões das vítimas, em um momento de desatenção.

Frequentemente, quando os clientes descobrem que tiveram seus cartões


trocados, já é tarde demais, pois houve concretização de uma série de transações
fraudulentas, resultando em prejuízo astronômico. Em situações como estas, as instituições
financeiras possuem alguma responsabilidade? E é possível ao consumidor recuperar o que
foi perdido? Ambas as indagações serão respondidas abaixo, como base em elementos
jurídicos.

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Pois bem. É certo que os bancos não podem ser responsabilizados pela guarda do
cartão e senha, atribuição que compete exclusivamente ao consumidor. Todavia, se isto é
verdade, também é inegável que as instituições financeiras têm o dever de zelar pela
segurança da conta bancária dos clientes e dos fundos lá depositados.1

Neste panorama, quando as transações fraudulentas são destoantes do perfil de


consumo habitual do correntista, é dever do banco bloquear preventivamente as
operações, até que se possa verificar mais detidamente a autenticidade das mesmas
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diretamente com o cliente, seja por telefone, e-mail, SMS, biometria, autenticação via
aplicativo, etc.

Ademais, é fato que neste tipo de golpe, as transações ilegítimas costumam


ocorrer de maneira sequencial, no mesmo estabelecimento (provavelmente se trata de
empresa fantasma cuja conta bancária é destinada a receptar o produto do crime), em
intervalo de poucos minutos e movimentando elevadas quantias. Tal padrão deveria ser
imediatamente identificado pelo sistema de segurança dos bancos, pois a experiência
demonstra que o homem médio não costuma gastar altas quantias no mesmo
estabelecimento, com intervalo de poucos minutos ou segundos entre cada transação.

E se os bancos não têm um sistema de segurança capaz de detectar este tipo de


anomalia na conta do cliente, caracteriza-se aí um defeito do serviço bancário. Nos dizeres
de VENOSA, “o serviço é defeituoso quando não fornece segurança para o consumidor”2.

O defeito se configura quando o banco não detecta e bloqueia transações de perfil


fraudulento (p. ex., operações, sequenciais, de valor elevado, em curto lapso temporal e
geralmente no mesmo estabelecimento). Certamente não se pode transferir aos
consumidores os prejuízos da não implementação de um sistema de segurança eficaz3.

Ora, se as casas bancárias – que auferem lucros bilionários anualmente – não compartilham
com os consumidores tais ganhos, é patente que também não podem a eles transferir os
riscos inerentes à sua atividade empresarial (p. ex., fraudes).

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, v. 7. 35ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2021, p. 424.
2 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: obrigações e responsabilidade civil, v. 2. 21ª Ed. São Paulo: Atlas,
2021, p. 550.
3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade civil. 11ª Ed., São Paulo: Atlas, 2014, pp. 544/545.

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Na hipótese aqui tratada, a responsabilidade do fornecedor de serviços bancários


incide na modalidade objetiva, isto é, independe de culpa4. Com efeito, o art. 14 do Código
de Defesa do Consumidor (“CDC”) prescreve:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da


existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores
por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

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§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o
consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias
relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.”

Registre-se que o Superior Tribunal de Justiça pacificou que “o Código de Defesa


do Consumidor é aplicável às instituições financeiras” (Súmula 297) e que “as instituições
financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a
fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.” (Súmula 479).

Nesta linha de raciocínio, as fraudes bancárias consistem em risco inerente à


atividade empresarial exercida pelos bancos, cuja responsabilidade não podem se esquivar,
pois se trata de fortuito interno. Sobre o tema, TEPEDINO ensina:

“Nesse cenário, e considerando que, na sociedade cada vez mais complexa e


industrializada, os danos “devem acontecer”, cunhou o conceito de caso
fortuito interno, assim entendido o evento que se liga à pessoa ou à
organização da empresa, ou seja, aos riscos da atividade desenvolvida pelo
agente, e incapaz de exonera-lo. Afinal, cuida-se de fatos que, embora
fortuitos, se encontram contidos no âmbito da atividade em cujo
desenvolvimento deu-se o dano. Passou-se, assim, a entender que os danos
decorrentes dos eventos relacionados à pessoa ou à empresa do agente se

4 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil, v. 4. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2021, pp. 279/280.

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conectam a ela por nexo de causalidade e deveriam por ela ser evitados,
razão pela qual deve por eles responder”.5

E ainda que possa ter havido descuido por parte do correntista, tal fato não exime
as instituições financeiras de zelar pela higidez da conta bancária de seus clientes. Sobre
este tema, GONÇALVES leciona que “só se admite como causa exonerativa da
responsabilidade a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, não a culpa
concorrente”6.
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Em outras palavras, havendo culpas concorrentes (incúria do consumidor na


guarda do cartão e falha do banco em não detectar e bloquear transações fraudulentas),
persiste a responsabilidade integral da instituição financeira, que não se pode valer da
excludente prevista no art. 14, § 3º, II, do CDC.

Em termos concretos, registra-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça de


São Paulo tem reconhecido a tese esposada neste artigo, embora o entendimento não seja
unânime. Confira-se:

“Indenização – Movimentações bancárias não reconhecidas pelo correntista


– "Golpe do cartão trocado" – Aplicação da teoria do risco da atividade –
Responsabilidade objetiva – Dano material configurado, eis que as transações
fogem totalmente ao perfil de consumo do cliente – Dano moral evidenciado
– Dever de indenizar inafastável – Cancelamento das compras realizadas no
cartão de crédito – Sentença reformada – Recurso provido.” 7

Aos consumidores que foram vítimas deste golpe, recomenda-se em primeiro


lugar o bloqueio do cartão fraudado e lavratura de boletim de ocorrência. Na sequência,
com o boletim em mãos, o ideal é formalizar contestação administrativa perante o banco
responsável pelo cartão, objetivando-se uma solução amigável para o problema. Havendo
negativa do banco em ressarcir o prejuízo, a vítima poderá contratar um advogado
especialista em fraudes bancárias para buscar indenização pela via judicial.

5 TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil, v. 4. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2021, p. 110.
6 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil, v. 4. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2021, p.318.
7 TJSP. Apelação Cível nº 1052382-80.2019.8.26.0100, Des. Rel. Souza Lopes, j. em 22.01.2021.

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BREVE ESTUDO SOBRE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PRECAUÇÃO E PREVENÇÃO


COMO INSTRUMENTOS PARA UMA AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

ANTONIO AUGUSTO VILELA: Pós


graduado em Direito Ambiental, Civil,
Constitucional, Consumidor, Famílias e
Sucessões, Imobiliário, Notarial e Registral,
Previdenciário, Processual Civil pelas
instituições "Damásio de Jesus" e "Dom

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Alberto". Bacharel em Administração e Direito
pelas instituições "Faculdade Cidade de
Coromandel" e "Fundação Carmelitana Mário
Palmerio".

RESUMO: A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura a todos um


meio ambiente equilibrado de acordo com os parâmetros ecológicos, competindo ao
Poder Público e à sociedade a sua conervação e proteção para as atuais e vindouras
gerações. Assim, o presente trabalho procurou realizar um estudo a respeito da
agricultura, sua importância no panorama nacional e mundial, bem como a atual situação
da agrícultura como atividade econômica, refletindo sobre o seu histórico e os impactos
ocasionados por esta ao meio ambiente, uma vez que, sob o método indutivo de
abordagem, a partir das averiguações menores para se chegar a deduções mais amplas
sobre o tema . Por fim, o presente trabalho teve como objetivo investidar a
possibilidade de haver uma agricultura sustentável ao ponderar sobre a utilização dos
princípios estabelecidos de Precaução e Prevenção, tornando evidente a necessidade de
associar desenvolvimento sustentável e progresso econômico para a obtenção da
imprescindível sustentabilidade agrícola e, ao mesmo tempo conquistar a garantida
qualidade de vida para a sociedade.

Palavras-Chave: Agricultura; Meio ambiente;Princípios da Precaução e Prevenção.

ABSTRACT: The Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988 assures


everyone a balanced environment according to ecological parameters, with the Public
Power and society in charge of its conservation and protection for current and future
generations. Thus, the present work sought to carry out a study about agriculture, its
importance in the national and world panorama, as well as the current situation of
agriculture as an economic activity, reflecting on its history and the impacts caused by
it to the environment, since that, under the inductive method of approach, from the
smallest investigations to reach broader deductions on the subject . Finally, the present
work aimed to invest the possibility of having a sustainable agriculture when
considering the use of the established principles of Precaution and Prevention, making

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evident the need to associate sustainable development and economic progress to


obtain the essential agricultural sustainability and, at the same time conquer the
guaranteed quality of life for society.

Keywords: Agriculture; Environment; Principles of Precaution and Prevention.

INTRODUÇÃO
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A temática ambiental é de crescente importância dentro do cenário mundial,


atingindo os mais variados aspectos de nossas vidas, entre os quais se inserem o social
e o econômico. O social no sentido de buscar se enxergar as implicações que as
condições ambientais oferecem ao ser humano em seu convívio diário com outras
pessoas, enfim, nas relações interpessoais. E o econômico na análise da riqueza gerada
ou perdida com o bom ou mau uso ambiental.

O direito ambiental surge para ditar normas e diretrizes, visando a tutela do meio
ambiente, recebendo especial destaque os chamados princípios da precaução e
prevenção.

Far-se-á breve análise a respeito da agricultura e seu impacto ambiental. Dessa


relação, buscar-se-á, de maneira minuciosa, formas de aplicação dos mencionados
princípios para auxiliar na construção de uma agricultura sustentável, sempre com o
principal fim de garantir a preservação ambiental.

Ométodo procedimental utilizado foi o método bibliográfico, pois será feita


pesquisa e análise de bibliografia em geral a respeito do tema, no que diz respeitoao
direito ambiental, princípios da precaução e prevenção e sua aplicabilidade. E,
finalmente, foi feita análise das questões referentes à agricultura como uma das

principais exploradoras dos recursos naturais para então, findado isso, aliar tais

ideias à busca de praticas sustentáveis.

1.A AGRICULTURA E O DESAFIO DA SUSTENTABILIDADE

1.1 A possibilidade de uma agricultura sustentável

Antes de ser possível compreender a forma por meio da qual se pode granjear
uma agricultura que seja sustentável, é importante que se esclareça o que é,
efetivamente, o desenvolvimento sustentável. A organização das Nações Unidas (ONU),
no relatório Nosso futuro Comum, publicado em 1987, apresentou uma definição
concisa, objetiva e amplamente utilizada sobre o desenvolvimento sustentável, indicando
ser aquele que satisfaz necessidades da geração em que se vive –geração atual – sem

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que para isto comprometar a possibilidade das gerações futuras atenderem de forma
ampla suas necessidades (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1987, p.64).

Faz-se correta a afirmação de que um para ser desenvolvimento sustentável


necessita aliar o desenvolvimento no aspecto econômico com a precaução dos
diferentes recursos naturais, de modo que seja possível a simbiose entre os setores
sociais, e tal entendimento é assim explanado por Milaré:

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Compatibilizar meio ambiente e desenvolvimento significa
considerar os problemas ambientais dentro de um processo
continuo de planejamento, atendendo-se adequadamente às
exigências de ambos e observando-se suas inter-relações
particulares a cada contexto sociocultural, político econômico e
ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço. Em outras
palavras, isto implica dizer que a política ambiental não deve se
erigir em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus
instrumentos, ao propiciar a gestão racional dos recursos naturais,
os quais constituem a sua base material (MILARÉ, 2009, p.53).

E outras palavras, o desenvolvimento sustentável diz respeito, em especial,às


consequências que podem ocorrer no que tange à qualidade de vida e ao bem- estar
social das sociedades – atual e futura –. O desenvolvimento sustentável,portanto, se apoia
especialmente na atividade econômica, meio ambiente e bem- estar da sociedade (ASSIS,
2009, p.59).

Entretanto, desenvolvimento, por vezes, acaba não sendo sinônimo de bons


resultados, já que há situações que para que aconteça um dado crescimento, para que
se obtenha um determinado resultado amplificado e positivo, se acaba por destruir ou
desestabilizar outra(s) áreas importantes acerca do que se quer desenvolver,
transformando o que era para ser desenvolvimento, em atraso. A ganância humana,
diferente da ambição, acaba por colocar em risco as presentes gerações na busca
incansável por resultados econômicos e financeiros expressivos sem medir, de fato, as
consequências das ações tomadas para a obtenção deste ou daquele desenvolvimento.

Cogitar uma forma de desenvolvimento que não seja agressivo ao


ambiente remete a idéia de pensar numa outra forma de
desenvolvimento que não esteja centrada na aceleração do
crescimento econômico e esteja implicada na não marginalização

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de outros objetivos, como políticos e sociais (MARCHETTI et al,


2009).

Assim, percebe-se a notória e urgente necessidade de se unir, de fato, as duas


palavras, quais sejam, desenvolvimento e sustentável. Elas, obviamente, existem
separadamente, por si só, mas para que haja significação quanto aosresultados positivos
para o meio ambiente, é preciso que o significado de desenvolvimento seja positivo, de
forma que tudo quanto se buscar preservar e desenvolver, a nível ambiental, se de forma
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sustentável, sem perdas, ou que elas sejam mínmas, a fim de salvaguradar presentes e
futuras gerações. O desenvolvimento sustentável é tão importante para o curso da
humanidade quedisse Brunet, ou seja, “[...] o desenvolvimento sustentável tornou-se,
assim, a nova religião de nossas sociedades modernas” (BRUNET, 2008, p. 10).

E uma vez que a agricultura e o setor primário constituem um dos setores


mais importantes da economia, sendo talvez o que mais afete o meio ambiente, quer
negativa ou positivamente, é imprescindível que a agricultura se estabeleça deforma
sustentável, com o principal intuito de garantir a alimentação dos seres vivos de hoje e
de amanhã, pois sabido é que a ausência de alimentos sadios e de uma agricultura forte,
gera não só a possibilidade de morte por inanição como também a facilidade de se
contrair doenças graves como leucemia, entre outras, por parte daqueles que vierem a
sofrer do mal da não sustentabilidade agrícola.

E uma das maneiras que se pode falar da união entre a atividade agrícola e o
desenvolvimento sustentável, diz que

Agricultura sustentável não constitui algum conjunto de práticas


especiais, mas sim um objetivo: alcançar um sistema produtivo de
alimentos e fibras que: aumente a produtividade dos recursos
naturais e dos sistemas agrícolas, permitindo que os produtores
respondam aos níveis de demanda engendrados pelo crescimento
populacional e pelo desenvolvimento econômico; produza
alimentos sadios, integrais e nutritivos que permitam o bem-estar
humano; garanta uma renda líquida suficiente para que os
agricultores tenham um nível de vida aceitável e possam investir
no aumento da produtividade do solo, da água e de outros
recursos e corresponda às normas e expectativas da comunidade
(KAMYIAMA, 2011, p. 20).

Assim, nota-se o objetivo da agricultura sustentável em não se apoiar


especificamente sobre um grupo de práticas diferentes com o que tange à plantação,
à colheita e à pecuária, por exemplo. Lógico que são importantes tais técnicas modernas
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de obtenção de uma eficiência máxima em prol dos seres vivos de modo geral. Mas não
acaba por ser o objeto fim da sustentabilidade agrícola. Oque se almeja é, no entanto,
a produtividade máxima dos seus recursos, e não especificamente do maquinário que os
produzem. E que seja possível o crescimento populacional receber o devido amparo
frente a tal produtividade, sem que haja parte da população sob condições de
subnutrição. Também que possam os alimentos produzidos ser proporcionais às
condições que nossas terras nos oferecem, ou seja,sadios conforme as sadias condições
terrenas. E, finalmente, que os agricultores sejam reconhecidos como aqueles cuja
importância para o desenvolvimento da vida humana é fundamental e absolutamente

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necessária, e que uma vez reconhecida tal importância, sejam estes remunerados de
forma a se empenharem na manutenção da atividade agrícola de forma responsável,
próspera e inteligente

Finalmente, é necessário que se compreenda isso: para que exista o


desenvolvimento de uma atividade agrícola sustentável, é preciso que haja uma
mudança e alteração tanto nas práticas a serem adotadas, quanto na mentalidade dos
agricultores, e também – por que não? – dos consumidores em prol do consumo
consciente dos mais variados insumos. Assim sendo, os princípios da precaução e
prevenção, alhures mencionados, são aliados na busca desta tão desejada agricultura
sustentável, e suas aplicações, bem como suas implicações neste setor (agrícola),
merecem um capítulo próprio.

1.1.1 A aplicação dos Princípios da Precaução e Prevenção na agricultura

Frente a tudo o que foi exposto preconizando o Direito ambiental, sua importância
e a relação do significado dos seus princípios, em especial o da precaução e o da
prevenção, indispensável torna-se a análise da aplicabilidade prática dos mesmos a fim
de se concluir suas reais importâncias e também possíveis riscos na busca de uma
agricultura sustentável.

E quais são as circunstâncias - e por que não – quais as situações particulares, os


momentos candidatos em que um ou outro princípio se encaixa na busca pelo combate
aos danos ambientais iminentes na atividade agrícola?

Ao se analisar o princípio da precaução e sua aplicabilidade prática, deve-se,


novamente, atentar para o fato de que o que se almeja é buscar evitar a ocorrência de
danos ambientais que possam vir a surgir de riscos desconhecidos, riscos os quais o
conhecimento científico, infelizmente, não consegue, ainda, explica-los de forma plena,
esclarecida. E, reforçando, cabe destaque o fato de que a busca aqui, com a precaução
ambiental, é de que as consequências obtidas com a efetiva aplicação de tal princípio
venham a assegurar a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado tanto
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para as presentes como para as futuras gerações, de forma que tal instituto possa ir ao
encontro do que define a Constituição da República do Brasil, em seu artigo 225,
conforme já anteriormente mencionado.

Ora, se “precaução” quer dizer “ação antecipada feita para evitar ou para prevenir
um mal ou algo ruim [...], quem age com cautela e cuidado” (DICIO, 2015) e ainda,
segundo o que dispõe a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio ambiente e
desenvolvimento – a ECO-92 – ao informar em seu princípio 15 que:
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Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da


precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de
acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos
graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não
será utilizada como razão para o adiamento de medidas
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012).

Então parece restar claro que a cautela, ou a antecipação no cuidado para algo
futuro, sempre fez parte da história do homem, quer seja com o principal intuito de evitar,
ou então, quando da não possibilidade de se evitar; minimizar as consequências das
quais não se tem conhecimento; situações de risco ou perigo.

Logicamente que é possível, e também assim se dará, que os níveis de cuidados


para cada caso em concreto poderão variar dependendo da maior ou da menor
possibilidade de acontecimentos; de materialização de um dano (ambiental). “Mas
mesmo o nível de precaução variando, tais medidas, desde sempre, sãoentendidas como
apropriadas diante da incerteza”(FERREIR; AGOSTINI, 2014, p. 555).

Adentrando a aplicabilidade do princípio da precaução, não ainda no que tange a


atividade agrícola, mas sim quando dos primeiros registros da precaução (e não também
do princípio da precaução), acredita-se que este tenha se dado no ano de 1854, na
Inglaterra, quando centenas de pessoas foram contaminadas pelacólera, vindo estas a
óbito em um breve lapso temporal de dez dias. Eis que o físico inglês John Snow, após
estudos acerca da contaminação da epidemia, sugeriu que fosse feita a remoção da água,
possivelmente contaminada, de um reservatório público localizado no centro de Londres.
O que se tinha na época era apenas um estudo, uma análise a qual se encontrava ainda
incompleta. Tal trabalhoapresentava não a certeza, mas apenas indícios de qual seria a
correlação entre a água poluída e o contágio da cólera. Mas é que ainda que não se
tivesse certeza do que havia, de fato gerado a doença, o que se tinha foi considerado
provas suficientes para que pudesse ser implementada uma ação visando o
reestabelecimento da ordem e da saúde pública (HARREMOËS ET AL. 2002, p. 5).

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O caso mencionado é considerado um clássico do século 19 no que diz respeito


a forma com que a precaução se manifestou na sociedade, pois uniu vários aspectos os
quais estreitam os laços da incerteza científica, a ignorância e o processo de tomada de
decisões. Entre eles, encontra-se a diferença entre fundamental entre conhecer a
realidade do risco e acautelar-se, e, paralelamente entender as causas e os efeitos do
risco e de agir tardiamente (HARREMOËS et al., 2002, p.7).

Desde então já se percebia a necessidade de agir em prol do meio ambiente, e,


principalmente na defesa dos seres-vivos cujas vidas poderiam estar em risco. Ouseja,

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ainda que não existisse absoluta certeza científica quanto a real contaminação da água,
buscou-se agir a fim de proteger um bem maior que era a vida, mesmo que tal ação
pudesse gerar alguma consequência negativa para o homem de modogeral. Aí já
residia o intuito da precaução.

Mas e quando foi a primeira vez que o entendimento de precaução surgiu no


Direito? Essa ideia surgiu no ordenamento jurídico há bem menos tempo que a ideia de
precaução no mundo, qual seja, em 1927, quando da Lei Florestal da Índia. Esta, por sua
vez, é responsável pela regularização de questões relativas a formas de exploração
florestal bem como a comercialização dos recursos obtidos com tal exploração. Em
consonância com o disposto no item de nº 69, o qual aparece no Capítulo IX da
mencionada lei, é considerado como pertencente ao governo qualquer recurso obtido
com a exploração da floresta e sobre e sobre o qual recaíam dúvidas quanto à
propriedade. Tal entendimento foi assimilado como medida de conservação florestal,
visando resguardar os recursos naturais existentes de uma desnecessária e indevida
utilização (TROUWBORST, 2002, p.16-17).

Indian Forest Act, Chapter IX, 69- Presumption that forest-produce


belongs to Government: When in any proccedings taken under this
act, or in consequence of anything done under this Act, a question
arises as to whether any forest-produce is the property of the
Government, such produce shall be presumed to be the property of
the Government until the contrary is proved8 (INDIAN FOREST
SERVICE,1927).

8 Lei Florestal da Índia, Capítulo IX, 69 – Suposição de que recursos florestais pertencem ao governo:quando
em qualquer procedimento regulado por essa lei, ou em consequência de qualquer ato praticado sob sua
vigência, surjam questionamentos relativos à propriedade do recurso florestal, esse recurso deve ser
considerado como propriedade do governo até que seja provado o contrário.(tradução nossa)

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Por ora, tem o presente trabalho por objetivo adentrar na aplicabilidade do


referido princípio (precaução) na atividade agrícola. Para tanto, faz-se necessário
esclarecer alguns acontecimentos atuais e de impacto ambiental.

É sabido que o Brasil é hoje o segundo maior país no cultivo de transgênicos,


perdendo apenas para os Estados Unidos da América, sendo que o soja, um dos
principais alimentos da economia e da agroexportação nacional, é 90% geneticamente
modificada em solo brasileiro (UNIVERSO ONLINE, 2014).
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Os transgênicos são alimentos geneticamente modificados, e estes possuem suas


peculiaridades no que dizem respeito ao impacto que podem causar ao meio ambiente
e aos seres vivos de modo geral. Isto porque possuem aspectos positivose negativos
que devem ser levados em consideração sempre que o tema é abordado.

Segundo organizações internacionais como a ONU, uma das principais vantagens


dos transgênicos está no aumento da produtividade dos alimentos, e também por serem
mais resistentes ao ataque de pragas ou de agrotóxicos. Umavez que isto aconteça, a
colheita de tais alimentos se daria de forma mais rápida e efetiva, minimizando a perda
e possibilitando ao agricultor um ganho muito maior. Desta forma, o preço dos produtos
que utilizassem a cultura transgênica sofreria significativa redução, tornando o combate
a fome algo mais fácil e mais palpável.

Mas há também os que enxergam a questão dos transgênicos como prejudicial a


saúde e uma ameaça a existência humana. Isto porque o cultivo e utilização de culturas
modificadas acabaria por gerar um grande desequilíbrio nos ecossistemas agrícolas.
Certo é que ajudariam no combate às pragas, porém ao realizarem este ato, estariam
também impedindo a sadia manutenção de outros ecossistemas os quais dependeriam
exclusivamente da perfeita manutenção ambiental anterior a modificação para que
pudessem manter o ciclo natural de vida que mantinham.

Uma outra problemática é que quando se utiliza a cultura dos transgênicos, se


acaba diminuindo a biodiversidade, já que ao se buscar um aumento na produtividade
em grande escala, algumas espécies de alimentos acabam sendo praticamente extintas
ao serem trocadas por versões geneticamente modificadas (mais resistentes e lucrativas).
Além disto, as espécies transgênicas, por serem mais resistentes, acabariam se
proliferando de forma descontrolada, gerando novamente vários focos de desequilíbrio
ambiental (PENSAMENTO VERDE, 2013).

Já pensando no consumo alimentar humano, o grande temor é de que, em longo


prazo, as modificações genéticas implantadas em alimentos possam de alguma maneira
levar a disfunções orgânicas, promovendo doenças. Dentre as enfermidades poderiam
estar desde alergias, e até mesmo doenças mais sérias

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como o câncer. Quanto às alergias, estas se dão pelo fato de que para a obtençãode
um alimento geneticamente modificado, pode se estar retirando parte de umoutro
alimento a que se é alérgico a fim de introduzi-lo no alimento transgênico, quer seja com
a finalidade de melhoramento ou aumento de produtividade.

Logicamente que todas estas intenções em se produzir alimentos transgênicos


não visam apenas o lado humano do “combater a fome” e “aumentar a produtividade”.
Certamente visa-se o lucro.

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Mas e o que acontece quando tal atitude se depara com a aplicabilidade do
princípio da precaução ambiental? Ora, conforme já analisado anteriormente, se houver
incerteza científica quanto a real existência do dano ambiental (presente ou futuro), se
houver risco (para o homem e para o meio) e se houver a necessidade de se precaver
(agir com cautela antes que algo grave possa acontecer), então se está diante do caso
mencionado.

Entretanto, é preciso que haja uma garantia com o que diz respeito ao dano que
realmente irá ocorrer ou que já ocorreu com a ação humana que realmente o gerou. Do
contrário, resta incerto e até perigoso colocar em xeque a busca pelo crescimento
econômico, a livre iniciativa empresarial e o constante aquecimento do mercado, o qual
gera a livre concorrência entre as nações e torna sadio os setores da economia, no caso
em tela, e em especial, o setor agrícola.

Nas palavras de Rampton e Stauber, compreende-se que conquanto muitos


concebam como um obstáculo à ciência e à tecnologia, convém destacar e perceber-se
que o Princípio da Precaução não é contrário ao desenvolvimento (RAMPTON; STAUBER,
2001, p.297-298).

Ou seja, o lucro acaba sendo sempre o alvo máximo de qualquer atividade


agrícola, exceto, talvez, em alguns casos de subsistência familiar. Mas todo o lavoureiro,
agricultor ou pecuarista tem como intuito modificar a terra e o arado, e emmuitas vezes,
sem medir de forma abrangente as consequências que causará ao meio. E essa
modificação e manuseio se dá na busca do crescimento econômico, quer para si, quer
para a comunidade no qual se encontra inserido, e a cultura dos transgênicos pode
facilmente ser aqui, encaixada.

Mas, e diante de tal situação, o que se pode dizer quanto à aplicação da precaução
ambiental? Há, de fato, um entendimento acerca das circunstâncias em

que o princípio da precaução deva ser acionado? O assunto parece, neste sentido, se
polarizar, e se envolver em um teor não tão fácil de ser assimilado.

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De um lado parecem estar aqueles que defendem o Princípio da Precaução como


sendo uma maneira sem justificativas de impedir o desenvolvimento (econômico ou
não), ou seja, se abrigando no fato de que o crescimento, a produção, a ascensão e tudo
quanto possa, de alguma forma, gerar resultados palpáveis e expressivos, ou para a
economia conjunta ou para o lucro pessoal, deve acontecer antes que seja possível, de
fato, provar a gravidade ambiental do dano o qual se discute em cada presente
momento.
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Mas há também um outro entendimento quanto a aplicabilidade deste princípio


quando da incerteza do dano, uma vez que qualquer que seja o risco, a atitude precautiva
deve se manifestar. E se manifestar na forma de não ação. Na forma de omissão. É este
o ideal daqueles que há muito esperam por uma maneira de proteger as gerações futuras
dos riscos, danos e perigos desconhecidos. E o principal escudo usado por estes adeptos
baseia-se no que fere o nosso bem jurídico máximo, qual seja, a vida. E também a
proteção à vida, com a inclusão da segurança alimentar. No caso da transgenia, na ideia
de que ela deve ser controlada, evitada, já que não se tem absoluta convicção se o seu
impacto afetará, de forma irreversível as gerações futuras, por exemplo, já que não há
garantia total de que atinge as presentes gerações.

Com isto, mesmo que a existência humana simplesmente pareça estar em xeque,
o fato de não se possuir exata certeza se estamos em perigo ou não, acaba por gerar
insatisfação na vida de todos quantos dependem da agricultura e da atividade agrícola
para sobreviver. Tanto pequenas empresas desde o empreendedor individual, quanto
as grandes exportadoras nacionais e internacionais, enfrentam tais problemas ao se
verem, muitas vezes, impossibilitadasde manter a continuidade dos seus negócios em
função da necessidade ambiental científica de terem que provar que suas ações,
definitivamente, não afetarão a vida do amanhã.

Esta tentativa de se provar que a suposta atividade degradante assim não se


constitui, estabelece o bem conhecido instituto da inversão do ônus da prova, o
qual, em direito ambiental, se configura da seguinte maneira “atribui-se ao suposto
degradador o encargo de comprovar o não desenvolvimento de atividade de risco ou a
falta de nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida e o resultado prejudicial ao
meio ambiente” (MENON; BODNAR, 2013).

Será que frente a dúvida sobre a possibilidade de acontecer um dano ao meio


ambiente ou ao ser humano, a solução deve mesmo ser favorável ao meio ambiente e
não à obtenção do lucro imediato?

Os estudiosos ambientais afirmam a existência de duas formas de avaliação dos


impactos ou dos possíveis impactos ambientais gerados. E essas duas formas de se
avaliar, para então tornar tal decisão mais fácil, são as formas qualitativas e quantitativas

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de verificação do princípio da precaução. Ou seja, ao se avaliar as consequências na


aplicação do princípio de forma qualitativa, busca-se, em um caso específico, a
compreensão global, as características principais e peculiares que levaram à utilização de
tal princípio, os pormenores deste(TICKNER; MYERS, 2001).

É possível analisar, em sede de atividade agrícola, a utilização dos agrotóxicos a


fim de se compreender qualitativamente a verificação do princípio (precaução). Assim,
por exemplo, o questionamento deve ser no sentido de se certificar acerca da quantidade
do herbicida utilizado, ou da marca do produto bem como o solo sobre o qual foi

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aplicado, a velocidade com que o maquinário agrícola efetuou a distribuição do veneno
a fim de garantir que este atingisse a plantação na medida adequada e não nociva à
saúde humana e do meio. Enfim, uma análise qualitativa da instrumentalização do
princípio.

Já quando o questionamento sobre os impactos gerados por uma determinada


ação humana, ou em prol do meio ambiente ou do lucro, se dá de forma quantitativa,
nota-se uma abordagem um tanto quanto diferente da qualitativa, por óbvio. No setor
agrícola, podem entrar em cena a monocultura de exportação (plantation), sempre
quando os resultados obtidos com tal cultura tenha sido elevados, ou superados os
valores sobre a meta anterior. Ou seja, se em um solo específico, em uma terra específica,
a monocultura de uma planta gerou total empobrecimento do solo e consequente
aumento da fome ou fraqueza agrícolaneste local, há indícios de que se a mesma ação
for tomada em locais distintos cujosaspectos ambientais sejam semelhantes àqueles,
então é capaz de se induzir que os resultados obtidos nestas regiões venham a se
assemelhar com os daquelas.

Desta forma, percebe-se que a boa combinação da forma qualitativa e


quantitativa é capaz de levar a respostas pertinentes ao fato de se agir em prol da
vida, posto a incerteza jurídica e a existência do risco, ou então agir visando o lucroe o
desenvolvimento econômico, uma vez assegurada a inexistência da dúvida.

Retomando a análise da utilização dos transgênicos na agricultura, e frente asbem


apontadas distinções entre o princípio da precaução e da prevenção, percebe- se, de
forma nítida, que se está diante da possível aplicação do princípio da precaução, já que
por mais que se alegue que esses alimentos modificados geneticamente possam trazer
malefícios à vida em um tempo futuro, nada se pode afirmar em absoluto, dado o fato
da incerteza científica e dos riscos de determinado produto. Quantitativamente falando,
não se conseguiu provar o exercício prejudicial destes alimentos ao redor do mundo, já
que casos isolados e que não consigam ser em ordem numérica suficientes para

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cientificamente provar sua prejudicialidade não podem servir de base indutiva na busca
pelo fretamento ou redução da utilização transgênica.

Isto porque tais produtos seguem sendo utilizados em escala global, fortalecendo
a agricultura e o setor agrícola de um modo geral, permitindo que outras possíveis
soluções ambientais venham a surgir, como o controle e combate à fome no planeta.

Está certo que desde as duas grandes Conferências Internacionais do Meio


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Ambiente, a Estocolmo 72 e a Rio 92, alhures mencionadas, foram vitais e decisivas. A


união dos estados e nações quando da percepção de que se a forma com que o meio
era administrado permanecesse da mesma maneira, levou ao entendimento de que o
colapso ambiental seria o caminho do mundo.

E foi por isso também que tais conferências foram regradas por princípios, os
quais deveriam ser, de fato seguidos. O medo e o temor instaurado entre os povos foi,
de longe, notado. E o que se buscou foi aliar desenvolvimento econômico com
sustentabilidade. Ou seja, é nisto que se firma este trabalho.

E já que o que antes se tinha era uma maneira de manter quase que
exclusivamente a busca pelo crescimento econômico, pouco importando a real
conservação do meio ambiente para as futuras gerações, então notou-se a real
necessidade de que esta mentalidade fosse mudada, em prol da vida e da sadia
continuidade desta. Foi aí que se firmou a nova ideia de que crescimento econômiconão
significava necessariamente a obtenção de aquisições materiais individuais ou coletivas,
mas sim a combinação disto com qualidade de vida.

Assim diz Alemar acerca do exposto:

Nesta nova concepção, a oposição entre os conceitos crescimento


econômico e proteção ambiental fois substituída pela combinação
de desenvolvimento com proteção ambiental. Quer se dizer com
isso que se passou a distinguir crescimento econômico de
desenvolvimento econômico, com privilégio para a última
expressão (ALEMAR, 2014, p.524).

Só que quando se atenta para o termo desenvolvimento econômico, se analisa


os dois lados da moeda, e isto é muito importante. Tanto o fato de se buscar as melhores
condições e estratégias possíveis para manter o meio ambiente sólido e sadio
(sustentável) para as presentes e futuras gerações como a ideia de que a utilização dos
recursos naturais e a exploração destes também deve continuar permitindo a livre
concorrência e o aquecimento do mercado e da economia no mundo, em especial, no
setor agrícola, tema de discussão por ora aqui exposto.
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Acontece que na abordagem dos transgênicos, frente ao instituto da inversão do


ônus da prova, já antes tratado, percebe-se uma certa dificuldade em se conseguir
manter de forma plena a continuidade do progresso econômico junto ao
desenvolvimento sustentável. Logicamente, sem que haja o esquecimento do “in dubio
pro ambiente”, mas resta interessante a união das duas faces desta moeda.

Reforçando o que frisa a inversão do ônus da prova em direito ambiental,


conforme salientado por Mirra, quando

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a inversão do ônus da prova tem aplicação fundamental na
aplicação do Princípio da Precaução. Isso porque, se o possível
degradador não conseguir provar que a atividade questionada não
é potencialmente produtora de riscos, considerar-se-á
caracterizada a possibilidade de degradação ambiental, ou seja, a
impossibilidade de o interessado provar a ausência de riscos
manifesta-se em favor da proteção ao meio ambiente (MIRRA,
2002).

Este é um entendimento genérico acerca da inversão do ônus da prova, oqual


vê por lógico a proteção ambiental na sua forma máxima. E parece bem correta esta
visão. No entanto, deve-se também atentar para o que prevê Saunders “como o
conhecimento científico tornou-se bastante limitado, não é possível buscar, com a
inversão do ônus da prova, a certeza absoluta de que determinada atividade é inócua”
(SAUNDERS, 2001).

O que se percebe é que tal instituto passa a não exigir sob forma mínima
(necessidade de prova científica absoluta) que o degradador comprove de forma

absoluta que cientificamente sua atividade degradante não irá gerar danos ambientais,
trazendo uma mudança no pensamento acerca da matéria, na necessidade de não mais
provar científica e absolutamente que sua ação ao meio ambiente é valida, mas de forma
mais atenuada, mostrar a existência de um alto nível probabilístico de que danos sérios
ou irreversíveis não ocorrerão. É assim que define Trouwborst, dizendo que “se há
impossibilidade de demonstrar a existência de riscos, não se pode exigir do possível
degradador que prove, inequivocamente, a inexistência deles” (TROUWBORST, 2002).

É desta forma que se dá a instrumentalização do princípio da precaução do direito


ambiental. A incessante busca pelo desenvolvimento sustentável acontece, em especial,
pela observância deste princípio, bem como pela atenção dada ao semelhante princípio
da prevenção. O que torna o processo um tanto mais complexoé o que se vê a partir do

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momento em que se atenta profundamente mais para um lado do que para o outro da
balança, ao deixar de se zelar pelo novo sentido de desenvolvimento econômico, aliando
a necessidade de se produzir com a ampla observância da proteção ambiental.

Mais fácil é a observação do princípio da prevenção e sua aplicabilidade, já que se


está diante de danos futuros certos, onde já se é possível mensurar sua extensão. E não
só acerca dos danos futuros, pois quanto a estes, por ser já sabido previamente das suas
consequências, toma-se ações e medidas preventivas, mas também na solução dos
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danos conhecidos e presentes. A maneira que tal princípio se assevera está no fato de
que só se previne aquilo que sabe que há o risco de acontecer e, consequentemente,
que pode acontecer. Do contrário, não há que se falar em prevenção.

É exatamente o que esclarece Alemar, quando diz que:

Pelo Princípio da Prevenção busca-se minimizar o dano causado ao


meio ambiente pelas atividades – econômicas ou não –perpetradas
pelo homem. Acontece que esse dano que se quer minimizar é,
pelo menos conhecido, ou seja, os efeitos provocados pela ação
antrópica já são determinados ou, no mínimo, determináveis
(ALEMAR, 2014, p. 529).

Assim, como exemplo da aplicabilidade preventiva na atividade agrícola, tem- se


a situação da utilização dos agrotóxicos em grande quantidade nas lavouras do Brasil.
Certo é que os danos ambientais e as consequências do uso destes agentes químicos já
são conhecidas previamente, tornando a esquiva dos agricultores,

plantadores e produtores com relação a responsabilidade de reparar os danos ou


indenizar os interessados, algo, no mínimo, mais difícil. Isto tudo porque,novamente, os
riscos da atividade agrícola desempenhada já restam conhecidos e certos, devendo os
empreendedores do setor, não tentar provar a impossibilidade daincidência de um dano,
pois não se está mais no campo da dúvida, mas sim de se resguardar com o maior leque
possível de opções preventivas a fim de impedir, ou minimizar ao máximo, a incidência
de um dano, visto ser conhecido, mensurável e evitável, em muitas situações.

Assim, é imprescindível a harmônica combinação dos princípios da precauçãoe da


prevenção no que tange sua aplicação, e ainda que parte da doutrina os entenda como
semelhantes, isto não significa que sejam idênticos. Por fim, faz-se indispensável atentar
para o exato momento que se se deve precaver ou para a horaem que se deve prevenir.
E a agricultura, uma das principais atividades agrícolas brasileira, merece os devidos
cuidados no momento da escolha de com qual princípio está a se deparar, visto que os
produtores agrícolas, ao buscar o desenvolvimento sustentável, novamente, visando
auferir lucro (indispensável no desenvolvimento econômico), individualmente parecem
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não atentarem tanto para a proteção ambiental, embora coletivamente saibam dessa
necessidade. Desta forma, encontram na precaução ambiental uma forma de proteção
mais abrangente, dado o“escudo” da incerteza científica e a necessidade de não mais
provar de forma absoluta a certeza de que não ocorrerá o dano, mas sim que há
grandiosa probabilidade de que não ocorra. Na prevenção, a garantia inequívoca de que
se esta tomando as devidas medidas, tantas quanto suficientes e necessárias para
impedir o dano, é o que vale, tornando, frise-se, muito mais gravoso para o causadordo
dano, a sua tentativa de se sair juridicamente ileso quando da ocorrência dodano.

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Logo, o desenvolvimento sustentável, tão almejado e sonhado, passa pelo crivo
destes dois princípios, e ao que se percebe, nem meio ambiente nem ação humana
tornam-se “enclausurados” de ação, visto que a produção agrícola e seu grande
contingente precisam manter-se vivos, aquecendo a economia e visando o progresso
econômico, da mesma forma que a qualidade de vida é um pensamento coletivo frente
a aplicação de tais princípios na busca pela sustentabilidade agrícola.

CONCLUSÃO

A importância da realização deste trabalho se deu pela rigorosa análise doque


o Direito ambiental, como gestor das atividades exercidas pelo homem diante doespaço
coletivo ao qual se insere, é capaz.

Logo, restou esclarecida a abordagem dos ambientalistas acerca da rigorosidade


com que os referidos princípios da precaução e prevenção serão aplicados na busca por
uma agricultura sustentável. Isto porque parte da doutrina ambiental considera que em
todas as circunstâncias o empreendedor deve fornecer provas inequívocas de que a
atividade ou ação a ser executada é inofensiva, invertendo por completo o ônus da
prova para o indivíduo degradante, tendo esteque provar o risco zero da sua atividade
ou empreendimento, mostrando-se assim como uma opção radical de possibilitar o
desenvolvimento agrícola. Já a outra parte de ambientalistas tende para o lado da não
necessidade de prova científica de que oagente degradante não causará dano sério ou
irreversível ao meio, mas apenas que demonstre existir grande probabilidade de que o
dano não irá ocorrer. Nesta visão, torna-se muito mais fácil a busca pela sustentabilidade
agrícola para os que desenvolvem a atividade fim (agricultura) já que não acabam
sendo pressionadosem excesso e conseguem, em parte, descartar o ônus da prova.

Concluiu-se também que a necessidade de debates e esclarecimentos na busca


não só de praticas sustentáveis, mas também de mecanismos preventivos e precautivos
no auxilio da satisfação agrícola devem ser criteriosamente estudados e avaliados. A
atividade agrícola passa, sim, pela incessante busca de atualizações no setor, com o
intuito de garantir a melhor e mais efetiva proteção ambiental, dado o aumento
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significativo das populações e a necessidade de que haja evoluções em maquinários e


práticas agrícolas. No entanto, mostrou-se indispensável o zelo que os princípios
preventivos e precautivos devem possuir para não forçar o impedimento do progresso
econômico junto com o desenvolvimento da qualidade devida e consequentemente, a
sustentabilidade agrícola aliada ao desenvolvimento sustentável.

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A SENEXÃO COMO MECANISMO DE GARANTIA DO ENVELHECIMENTO DIGNO

LAIS MELLO HAFFERS: Advogada


devidamente inscrita na Ordem dos
Advogados do Brasil do Estado de São Paulo
(OAB/SP). Graduada em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas
(PUCCAMP). Especialista em Direito de Família
e Sucessões na Pontifícia Universidade Católica

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de São Paulo (PUCSP). Mestranda em Direito
Civil na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUCSP). Advogada em Família e
Sucessões no escritório Regina Beatriz Tavares
da Silva Sociedade de Advogados.

RESUMO: A respeito da função do Direito de buscar solução para atender as constantes


mudanças sociais, o Deputado Pedro Lucas Fernandes apresentou o Projeto de Lei n°
105/2020, que estabelece o instituto jurídico denominado senexão, em resposta ao
crescente abandono material e afetivo de idosos. Deste modo, o presente trabalho tem
como objetivo geral analisar a aplicação do instituto senexão como mecanismo de garantia
ao envelhecimento digno daqueles excluídos pela sua família originária. Sendo sua
principal finalidade, ser uma fonte de pesquisa acessível aos Operadores de Direito, a fim
de se possibilitar o aprofundamento do tema e, consequentemente, a sua aplicação. A
metodologia utilizada no trabalho será o método dedutivo, a partir da coleta de
informações da bibliografia brasileira, com enfoque no retro mencionado Projeto de Lei.
Utilizaremos também bases de pesquisa online, pesquisas jurisprudenciais, bem como
demais fontes que forem pertinentes ao enriquecimento do trabalho, com o intuito de
alcançar o objetivo proposto. Destarte, torna-se imperioso o debate acerca da colocação
de cidadãos de idade avançada em família substituta, como forma efetiva de cumprimento
do disposto na legislação pátria e concretização dos princípios de proteção e amparo da
pessoa idosa e de seu direito fundamental à convivência familiar e comunitária.

PALAVRAS-CHAVE: Senexão. Pessoa Idosa. Abandono Afetivo. Abandono Material.


Direito das Famílias. Família Substituta.

ABSTRACT: The Society is constantly changing, while it is up to the legal system to find
solutions to meet new demands. In this regard, Deputy Pedro Lucas Fernandes presented
Bill of Law No. 105/2020, which establishes the legal institute called senexão, in response
to the growing material and emotional abandonment of the elderly. Thus, the present work
has as general objective to analyze the application of the senexão institute as a mechanism
to guarantee the dignified aging of elderly people who were excluded by their original

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family. Its main purpose is to be a source of research accessible to Law Operators, in order
to deepen the topic and, consequently, its application. The methodology applied in this
work will be the deductive method, from the collection of information of Brazilian’s
bibliography, with a focus on the aforementioned Bill. We will also use online search bases,
jurisprudential research, as well as other sources that are relevant to the enrichment of the
work, in order to achieve the proposed objective. Thereby, the debate on placing elderly
citizens in a surrogate family is necessary as an effective way of fulfilling national legislation
and implementing the principle of protection of the elderly and their fundamental right to
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family life and community.

KEYWORDS: Senexão. Senior. Affective Abandonment. Material Abandonment. Family


Right. Surrogate Family.

INTRODUÇÃO

A Sociedade está em constante mudança. De forma que, a história da estrutura


familiar não pode ser traçada linearmente, tampouco existe um modelo único. O seu
arranjo sempre se adequou às necessidades sociais inerentes de cada época9 e está
diretamente ligado ao desenvolvimento técnico-científico-medicinal e ao natural processo
filosófico do ser humano10. Nesse ponto, os avanços técnicos, científicos e medicinais têm
permitido a prolongação da vida. Em contrapartida, a modernidade tem causado relações
mais efêmeras, inclusive no próprio núcleo familiar, ao passo que o abandono afetivo e
material de pessoas idosas (com mais de sessenta anos) se tornou uma realidade, em
completo desrespeito ao artigo 229 da Constituição Federal de 198811. Enquanto isso, há
pessoas maiores e capazes que demonstram possibilidade e desejo de amparar idosos sem
qualquer vínculo biológico. Ora, o Direito deve acompanhar as conjunturas sociais que o
modificam.

Nessa senda, surge o novo instituto jurídico denominado como senexão, que é o
ato de colocar pessoa idosa em família substituta, em atenção aos princípios de proteção
e amparo ao idoso, bem como mecanismo de garantia ao direito fundamental à
convivência familiar e comunitária.

Imperioso salientar que o instituto difere da adoção, uma vez que a adoção é o ato
civil que firma a relação de pais e filhos, com todos os direitos inseridos, inclusive os

9 VASSAL, M. G. Evolução das Famílias e seus Reflexos na Sociedade e no Direito. Série Aperfeiçoamento
de Magistrado 12, Família do Século XXI, Aspectos Jurídicos e Psicanalíticos, p. 126.
10 FARIAS, C. C. de; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. Vol. 6: famílias. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Atlas, 2015, p. 03/04.
11 Art. 229 da CFRB/88: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores
têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

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sucessórios e registro civil. A senexão é, portanto, a solução encontrada como forma de


amparo de idoso, sem o reconhecimento de laços paterno-filiais e suas consequências
jurídicas, pois tão somente concede à pessoa idosa uma família substituta para suprir a
falta de amparo ocasionada pelos seus familiares.

Em atenção às fragilidades que circulam a senilidade, o Projeto de Lei n° 105 de


2020, proposto pelo Deputado Pedro Lucas Fernandes do PTB/MA, possui como finalidade
a criação de instituto inédito, com nome próprio. Isto porque, em razão de ser fenômeno
novo no direito, cabe ao legislador criar nome próprio. Nesse ponto, a sugestão adotada

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é para a denominação de senexão, cuja “palavra formada da raiz latina “senex”, que
corresponde a idoso e do sufixo “ão” que designa pertencimento, como em aldeia/aldeão,
cidade/cidadão”12, conforme explicativa inserida no bojo do projeto.

Trata-se, pois, de sugestão de acréscimo do instituto de senexão ao Estatuto do


Idoso (Lei nº 10.741 de 1 de outubro de 2003), o qual nasce em razão do envelhecimento
populacional, em conjunto com a exclusão de pessoas idosas pela sua família originária,
criando a necessidade de instituir mecanismos legais que atendam estas pessoas
abandonadas materialmente e afetivamente.

Pois bem, a escolha deste tema está atrelada ao fato do abandono de cidadãos em
idade avançada ser uma problemática de abrangência nacional e de cunho social, que
requer o olhar cuidadoso do Poder Legislativo e o estimulo do meio acadêmico, a fim de
se construir políticas públicas que garantem o envelhecer saudável e que venham a
incentivar a efetividade de direitos fundamentais. Isto porque, embora a velhice seja
decorrente do direito à vida, ao contrário do que acontece com as crianças e adolescentes,
atualmente no Brasil, não há qualquer legislação ou instrumento jurídico que efetivamente
acolha a pessoa idosa marginalizada, de forma a violar seus direitos e garantias
fundamentais. Ora, o envelhecimento se tornou um direito personalíssimo e sua proteção
é um direito social

Diante disto, este estudo tem como objetivo geral analisar o instituto jurídico da
senexão. No que diz respeito aos objetivos específicos, estes, dividir-se-ão em três tópicos:
contextualizar brevemente a evolução das famílias; analisar os direitos e garantias
fundamentais da pessoa idosa; bem como o abandono afetivo inverso; apresentar o Projeto
de Lei n° 105/2020 e as questões que o rodeiam e; averiguar a viabilidade da aplicação da
senexão.

12CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 105/2020. Disponível em:


<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236550>.

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No que tange à metodologia, será utilizado o método dedutivo, a partir de coleta


de informações de bibliografia brasileira, com enfoque no retro mencionado Projeto de
Lei, bem como bases de pesquisas online, jurisprudenciais e demais fontes pertinentes ao
enriquecimento do trabalho, a fim de se fomentar o debate – mais do que trazer certezas
– acerca de maneiras efetivas de concretização dos princípios de proteção e amparo da
pessoa idosa e de seu direito fundamental à convivência familiar e comunitária.

Por ser um tema novo e, por consequência, carente de bibliografia13, busca-se


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ampliar a discussão no meio acadêmico, a fim de contribuir para a construção doutrinária.


De forma que, o presente artigo tem como propósito convidar a comunidade jurídica para
debater o instituto da senexão como uma medida/inovação legislativa adequada para
enfrentar as violações dos direitos e garantias fundamentais da pessoa idosa no Brasil,
especialmente no tocante ao abandono afetivo e material.

1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA EVOLUÇÃO DAS FAMÍLIAS NO BRASIL

A família é a célula base de toda e qualquer sociedade. O seu conceito transcende


a sua própria historicidade, pois ela está sempre se reinventando. As constantes
transformações nas estruturas familiares refletem no campo do Direito das Famílias. Isto
porque, a família não é um grupo natural, mas cultural. “E, nem poderia ser diferente. Por
ser o Direito, e, especialmente, o Direito das Famílias, fruto da cultura, é inquestionável que
as alterações ocorridas na sociedade deveriam refletir sobre o modo de se enxergar e
aplicar as normas jurídicas14”.

Nessa seara, a evolução dos arranjos familiares está vinculada ao avanço do homem
e da sociedade, mutável com o desenvolvimento técnico-científico-medicinal e o natural
progresso filosófico do ser humano15.

De forma a evitar o desfoque da proposta do presente artigo, passa-se a


contextualizar a evolução das famílias, em sua história mais recente e com o olhar voltado
ao Brasil.

A sociedade, antigamente, era conservadora, sendo indispensável no núcleo familiar


a constituição de matrimônio para a obtenção de reconhecimento jurídico e aceitação

13 Rodrigo da Cunha Pereira já se posicionou em sua rede social Facebook abordando a escassez de
referências bibliográficas acerca do tema senexão. Disponível em:
https://www.facebook.com/watch/?v=500902810837530.
14 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 66.
15 HAFFERS, L. M. Multiparentalidade à luz do Direito Sistêmico. Tese (Graduação). Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas,
2016, p. 11.

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social, cujo perfil era patriarcal e hierarquizado. Isto porque, o seu principal objetivo era a
constituição e preservação do patrimônio, logo, entendia-se a família como unidade de
produção, menosprezando-se os laços afetivos16, ao passo que não eram reconhecidos os
filhos havidos fora do casamento. De forma sintética e clara, “a família tinha formação
extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes formando
unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Tratava-se de uma entidade
patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da
família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos”17. Sendo que tais restrições
perduraram até a Constituição Federal de 1988, embora a sociedade já havia se

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transformado.

O reportado cenário não se sustentou com os avanços científicos, revertendo-o,


especialmente, com a Revolução Industrial no século XVIII, que intensificou a necessidade
de mão de obra, inserindo a mulher no mercado de trabalho, exercendo, em conjunto com
o homem, a subsistência da família, modificando a estrutura familiar, ao passo que o
homem deixou de ser a única fonte de renda para a subsistência familiar18. Motivo pelo
qual, Maria Berenice Dias, assevera, com total razão, ter a família se tornado nuclear:

[...] restrita ao casal e a sua prole. Acabou a prevalência do seu caráter


produtivo e reprodutivo. A família migrou do campo para as cidades
e passou a conviver em espaços menores. Isso levou à aproximação
dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que
envolve seus integrantes. Surge a concepção da família formada por
laços afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto deixou de
se limitar apenas ao momento de celebração do matrimônio,
devendo pendurar por toda a relação. Disso resulta que, cessado o
afeto, está ruída a base de sustentação da família, e a dissolução do
vínculo do casamento é o único modo de garantir a dignidade da
pessoa19.

16 HAFFERS, L. M. Multiparentalidade à luz do Direito Sistêmico. Tese (Graduação). Centro de Ciências


Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas,
2016, p. 11/12.
17 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 34.
18 HAFFERS, L. M. Multiparentalidade à luz do Direito Sistêmico. Tese (Graduação). Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas,
2016, p. 12.
19 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 34.

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Ora, a necessidade da inserção da mulher no mercado de trabalho trouxe como


consequência o declínio do patriarcalismo, de forma a retirar da família a sua força como
hierarquia e instituição rígida, deixando de ser considerada um núcleo, em sua essência,
econômico e reprodutivo, para ceder espaço ao companheirismo, ao amor, bem como ser
vista como meio de formação e desenvolvimento de seus indivíduos, garantidor da
dignidade, humanidade e humanização20. “A família matrimonializada, patriarcal, a,
heteroparental, biológica vista como unidade de produção cedeu lugar para uma família
pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva,
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construída com base na afetividade e de caráter instrumental”21.

Pois bem. O ordenamento jurídico não traz a definição de família, tampouco poderia
por ser construção cultural e estar constantemente em mudança. Diante da diversidade
dos modelos familiares atualmente existentes, atrelar um único conceito à família é deixar
à margem/desprotegidos diversos núcleos familiares. Nos dizeres de Rodrigo da Cunha
Pereira:

O afeto e o princípio da afetividade autorizam a legitimação de todas


as formas de família. Portanto, hoje, todas as relações e formações
de família são legítimas. Somente desta forma pode ser alcançada a
cidadania, que tem significado de juízo universal, ou seja, faz cumprir
também o macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, se
a liberdade é a essência dos direitos do homem e de suas
manifestações de afeto, a dignidade é a essência da humanidade22.

Nesse contexto de modificações, o afeto adquire marca relevante para uma


construção conceitual de família, sendo apontado como o principal fundamento das
relações familiares. Destacam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que a família
pós-moderna se funda, “em sua feição jurídica e sociológica, no afeto, na ética, na
solidariedade recíproca entre os membros e na preservação da dignidade deles. Esses são
os referenciais da família contemporânea”23.

No momento em que se começou a casar por amor, ultrapassando a barreira do


patriarcalismo e do caráter reprodutivo, para se propiciar um ambiente familiar
caracterizado pelo amor, solidariedade, companheirismo, formador e estruturador dos
seus membros, o princípio da afetividade foi ilustrado no ordenamento jurídico brasileiro.

20 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 18/19.
21 MADALENO, R. Manual de Direito de Família. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 20.
22 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 98.
23 FARIAS, C. C. de; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. Vol. 6: famílias. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
Atlas, 2015, p. 06.

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De forma que, “o amor está para o Direito de Família, assim como a vontade está para o
Direito das Obrigações”24. Acerca do tema, disserta Rodrigo da Cunha Pereira:

Sem afeto não se pode dizer que há família. Ou, onde falta o afeto, a
família é uma desordem, ou mesmo uma desestrutura. O afeto
ganhou status de valor jurídico e, consequentemente, foi elevado à
categoria de princípio como resultado de uma construção histórica
em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis.
Afinal, o desejo e o amor são o esteio do laço conjugal e parental.

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A entidade familiar deve ser tutelada como meio para a busca da
felicidade de cada um de seus indivíduos. Daí a concepção
eudemonista de família, na qual o afeto é o elo de manutenção entre
os casais25.

O afeto decorre da valorização constante da dignidade humana, trata-se, pois, de


direito fundamental à felicidade26.

Atualmente, com a evolução da estrutura familiar, tem-se a concepção eudomista,


que avança na proporção que retrocede o seu aspecto instrumental, a fim de alcançar o
seu efetivo conceito puro, o amor/afeto que liga cada membro de forma individualizada,
simultaneamente, global para o aprimoramento da família unida que cotidianamente
vivem todas as situações incertas e certas da vida, ou seja, trata-se da despatrimonialização
da comunhão do afeto nos relacionamentos da família contemporânea. Em vista disso,
acentuaram-se as relações de sentimentos entre seus integrantes, valorizando as funções
afetivas da entidade familiar, ao passo, que a família se modifica, adquirindo novo perfil
também para o casamento, haja vista que se voltam mais a realizar os interesses
existenciais e afetivos de seus membros27.

Portanto, na atualidade, os laços paternos-filiais não se limitam mais a


consanguinidade, mas em cuidar, viver, envelhecer juntos, ao passo que, auxiliar seus
membros não deve mais ser atrelado como obrigação biológica, mas socioafetiva.

24 VILLELA, J. B. apud PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 98.
25 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 97.
26 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 55.
27 HAFFERS, L. M. Multiparentalidade à luz do Direito Sistêmico. Tese (Graduação). Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas,
2016, p. 24/25.

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Nesse diapasão, atrelado aos laços socioafetivos, o ordenamento jurídico remeteu


à sua atenção a classe dos mais vulneráveis, que demandam amparo e proteção do
estado28. A este respeito, é do Estado o compromisso de assegurar o afeto aos seus
cidadãos, seja por ações positivas – criando instrumentos (políticas públicas) que cooperam
para as pretensões das pessoas – ou por abstenção de interferências estatais29.

Com efeito, na concepção atual da cultura brasileira, enquadram-se como


vulneráveis, as pessoas idosas, definidas pelo Estatuto do Idoso como maiores de sessenta
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anos. Destaca-se que a “idade avançada não implica em incapacidade ou deficiência. No


entanto, é inegável que traz limitações físicas e psíquicas relevantes”30.

Historicamente a conquista por direitos às pessoas idosas se deu de forma gradual


no Brasil. Sendo que a Constituição Federal de 1988 quebrou paradigmas ao enquadrá-los
como vulneráveis e, por isso, assegurar-lhes direitos e seguridade social pública. Neste
ponto, elenca Patrícia Calmon:

Não raro, tamanha discrepância entre teoria e prática acaba levando


a cenários não ideais, em que os papéis sociais que os idosos
exerceram ao longo de sua história (pai, mãe, filho, trabalhador,
marido, esposa etc) vão se perdendo, fazendo com que, na etapa final
de suas vidas, sejam considerados sujeitos de direitos, mas não atores
sociais. Em muitos desses casos, seus direitos são desrespeitados pela
sociedade e, o que é pior, negligenciados e abandonados justamente
por aqueles que deveriam assegurar fielmente sua observância: o
Estado e a família31.

Tal circunstância exige maior efetivação de políticas públicas direcionadas a garantir


o envelhecimento ativo e saudável. Afinal, como se abordará em capítulos posteriores, a
convivência familiar e comunitária é um direito fundamental da pessoa idosa32:

28 SANTOS, A. S.; THOMASI, T. Z. A aplicação do instituto de Senexão no Brasil. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unibh.br/dcjpg/article/view/3110/pdf99875>. Acesso em 05 de agosto de 2021, p. 17/18.
29 HAFFERS, L. M.. Multiparentalidade à luz do Direito Sistêmico. Tese (Graduação). Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas,
2016, p. 24.
30 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 647.
31 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 65.
32 CF/88 – Art. 230: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

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O envelhecimento como fato social e a vulnerabilidade como uma


condição intrínseca da pessoa idosa são fatores desencadeante de
inúmeras consequências jurídicas: sejam sob a perspectiva do sujeito
idoso, que tem um rol de direitos a chamar para sua proteção, seja
da família, da sociedade e do Estado como os responsáveis para a
garantia desses direitos. Entre eles, está a convivência familiar e
comunitária como instrumento viabilizador da construção, do
fortalecimento e garantia das relações afetivas33.

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Diante do cenário do envelhecimento populacional e dos abandonos afetivos e
materiais inversos, torna-se necessário a criação de mecanismos adequados para a
inserção social plena e o desfrute dos direitos por essa faixa da sociedade.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS IDOSOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Em conformidade ao visto alhures, foi apenas com o advento da Constituição da


República Federativa do Brasil, que o princípio da dignidade da pessoa humana se tornou
relevante e, para a sua concretização, foi implementada normativas. Não por outra sorte,
também foi o ponto de início de discutir mais intensamente a situação da população senil,
em especial, no tocante a sua participação social e o reconhecimento do seu valor34.

Extraiam-se da Carta Magna, os preceitos fundamentais norteadores dos diretos da


pessoa idosa, fundados nos princípios da igualdade, solidariedade, proteção integral, bem
como zelo pela sua dignidade e bem-estar. A lei “além das regras, traz princípios que
tutelam direitos e garantias fundamentais dos idosos, estabelecendo oportunidades e
facilidades para preservação da saúde física e mental e aperfeiçoamento moral, intelectual,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”35.

EI – Art. 3°: É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com
absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte,
ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
33 GIRARDI, V. apud IBDFAM. Abandono afetivo inverso é tema de palestra do Congresso Nacional do
IBDFAM. Notícia publicada em 14 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/7027/Abandono+afetivo+inverso+%C3%A9+tema+de+palestra+no+Cong
resso+Nacional+do+IBDFAM>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
34 SANTOS, A. S.; THOMASI, T. Z. A aplicação do instituto de Senexão no Brasil. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unibh.br/dcjpg/article/view/3110/pdf99875>. Acesso em 05 de agosto de 2021, p. 9.
35 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 506.

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A Constituição Federal de 1988 assegura os direitos dos idosos, fundamentalmente,


em seus artigos 299 e 230, senão vejamos:

Art. 229: Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos


menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais
na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as


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pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,


defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à
vida.

Se não suficiente os preceitos dos princípios da solidariedade e proteção integral


defenderem o dever e essencialidade não apenas da sociedade, mas também do Estado e
da família na inclusão efetiva dos idosos na coletividade, o texto constitucional igualmente
estabelece expressamente tal obrigação.

Nesse ponto, impreterível dizer que as atribuições impostas ao Poder Público,


sociedade e família não se limitam apenas à assistência econômica ou material, mas
também às necessidades psíquicas e afetivas36.

Em compasso com as normas constitucionais, surge o microssistema do Estatuto do


Idoso, Lei n° 10.741/03, cuja importância está atrelada na busca pelo reconhecimento das
necessidades especiais do público senil, de forma a assegurar o convívio social e o direito
ao envelhecimento de maneira digna37.

Ainda, para fins de dizimar o debate, o Estatuto define como idoso a pessoa que
tem mais de 60 anos de idade. O critério escolhido se mostra o mais adequado e prudente.
Isto porque, o raciocínio etário por ser objetivo, desconsidera aspectos personalíssimos,
como físicos, emocionais, psíquicos, econômicos ou sociais, para qualificar a etapa idosa
do ciclo de vida de uma pessoa, o que evita desgastes e debates inviáveis38.

36 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 642.
37 GOMES, V. S. Abandono afetivo de idosos: e o direito ao envelhecimento digno. 2020. Disponível em:
<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/11564/Vers%c3%a3o%20final%20TCC%20Vit%c3%b3
ria-%20Abandono%20afetivo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 11 de agosto de 2021, p. 14.
38 GOMES, V. S. Abandono afetivo de idosos: e o direito ao envelhecimento digno. 2020. Disponível em:
<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/11564/Vers%c3%a3o%20final%20TCC%20Vit%c3%b3
ria-%20Abandono%20afetivo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 11 de agosto de 2021, p. 11/12.

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Aliás, nos termos do artigo 8° do Estatuto do Idoso, o envelhecimento se tornou um


direito personalíssimo e sua proteção um direito social39. Pérola Melissa Viana Braga
observa que “a proteção ao envelhecimento não é direito somente daquele que já
envelheceu, mas também um elemento de segurança jurídica a sociedade como um
todo”40.

Outrossim, o caput dos dispositivos 2°, 3° e 10 catalogam direitos aos idosos e


reiteram o dever constitucional da família, Estado e sociedade em os assegurar. De forma
a estabelecer a importância da família e do convívio familiar, que influenciam diretamente

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a qualidade de vida:

Art. 2o O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à


pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social,
em condições de liberdade e dignidade.

Art. 3°: É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do


Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a
efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Art. 10: É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa


idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e
sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na
Constituição e nas leis.

Sendo que o artigo 9° determina ser obrigação do Estado “garantir à pessoa idosa
a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam
um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”.

Não é só, o mencionado diploma legal reconhece ainda a família substituta por
intermédio de seu artigo 37 ao expor que: “o idoso tem direito a moradia digna, no seio

39 Art. 8°: O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta
Lei e da legislação vigente.
40 Apud IBDFAM. Tratado de Direito das Famílias. 3. ed. Belo Horizonte: Instituto Brasileiro de Direito de
Família, 2019, p. 392.

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da família natural ou substituta, ou desacompanhada de seus familiares, quando assim o


desejar, ou ainda, em instituição pública ou privada”.

Entretanto, embora teoricamente há vasto acervo legal, na prática, a efetivação dos


direitos e princípios fundamentais da pessoa idosa encontram obstáculos. Sobre isso,
Patrícia Calmon comenta:

No campo teórico, talvez até possamos afirmar que existam normas,


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tanto no cenário interno quanto no internacional, visando tutelar os


direitos da pessoa idosa. Contudo, no campo social e, mais
especificamente, no campo da efetiva aplicação da lei brasileira,
muitos desses direitos estão sendo desrespeitados e desprestigiados,
seja por abandono da família ou por omissão do Estado, ao não
estabelecer e executar políticas públicas adequadas.

Entre eles, pode-se citar o direito fundamental à convivência familiar


e comunitária do idoso (art. 230 da CR/88 c/c art. 3º do EI)41.

Ora, embora a velhice seja decorrente do direito à vida, por ser inerente à condição
humana e o envelhecimento populacional um fenômeno mundial, os idosos ainda carecem
de assistência, em especial, ao serem comparados, por exemplo, com as crianças. Isto
porque, soma-se a cultura brasileira de não respeitar a ancestralidade e conceder o valor
devido aos idosos, a maior longevidade da população ocorrida sem os estratos sociais e
atores políticos estivessem prontos para suportar seus custos emocionais e financeiros42.

Ato contínuo, o número das institucionalizações de idosos em abrigos públicos tem


se mostrado em progressão, sendo notório que o abandono material e imaterial (afetivo)
da família originária contribui para esse alto índice43.

2. 1 ABANDONO AFETIVO E MATERIAL INVERSO

41 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 67.
42 IBDFAM. Abandono afetivo inverso é tema de palestra do Congresso Nacional do IBDFAM. Notícia
publicada em 14 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/7027/Abandono+afetivo+inverso+%C3%A9+tema+de+palestra+no+Cong
resso+Nacional+do+IBDFAM>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
43 PIAZZA, M. S. de F.; TOMAZ, L. C. de L. Projeto de Lei n° 105/2020 e sua (in)adequação aos princípios
constitucionais sob a perspectiva dos direitos dos idosos. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unaerp.br/cbpcc/article/view/2129/1656>. Acesso em 06 de agosto de 2021, p. 1122.

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É cediço que há duas formas de abandono: o material, que está ligado aos aspectos
econômicos e financeiros e; o afetivo, que em razão de suas peculiaridades e relevância
para o problema do presente trabalho será analisado mais profundamente a seguir.

De proêmio, cumpre elencar que “o abandono material, considerado um crime de


desamor, caracteriza-se pela omissão injustificada na assistência familiar, ocorrendo
quando o responsável pelo sustento de uma determinada pessoa deixa de contribuir com
a subsistência material de outra, não lhe proporcionando recursos necessários ou faltando
com o pagamento de alimentos fixados judicialmente”44.

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No tocante ao abandono afetivo inverso, trata-se “da abstração da necessidade de
convívio familiar e a negação dos laços de afeto, não se atendo apenas a suprir as
necessidades físicas deste grupo etário, mas também o cuidado psicológico, dando voz e
reconhecendo a pessoa idosa como parte essencial do bom desenvolvimento social”45.
Isto porque:

A responsabilidade afetiva é um dos pilares do bom convívio social e


principalmente familiar. É nela que se fundam princípios morais,
fortalecendo a boa convivência e o bom desenvolvimento do
indivíduo como parte pertencente ao meio que se insere.

A necessidade humana de sentir-se pertencente e validado nas


relações sociais interfere diretamente no bom desenvolvimento em
diversas áreas ao longo de sua vida. Ao ter seu direito à afetividade
negado no seio familiar, a pessoa idosa terá afetadas diretamente
áreas como a saúde, o lazer, cultura, educação, entre outras, pois
deixa de se sentir parte pertencente à coletividade, resultando, assim,
na sua invalidação e marginalização46.

44 FILHOS apud GOMES, V. S. Abandono afetivo de idosos: e o direito ao envelhecimento digno. 2020.
Disponível em:
<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/11564/Vers%c3%a3o%20final%20TCC%20Vit%c3%b3
ria-%20Abandono%20afetivo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 11 de agosto de 2021, p. 20.
45 GOMES, V. S. Abandono afetivo de idosos: e o direito ao envelhecimento digno. 2020. Disponível em:
<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/11564/Vers%c3%a3o%20final%20TCC%20Vit%c3%b3
ria-%20Abandono%20afetivo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 11 de agosto de 2021, p. 21.
46 GOMES, V. S. Abandono afetivo de idosos: e o direito ao envelhecimento digno. 2020. Disponível em:
<https://www.riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/11564/Vers%c3%a3o%20final%20TCC%20Vit%c3%b3
ria-%20Abandono%20afetivo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 11 de agosto de 2021, p. 20/21.

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Não obstante, o artigo 229 da Carta Magna estabelece o dever recíproco entre pais
e filhos no dever de cuidar, sendo denominado como abandono afetivo inverso quando o
filho, em relação aos pais na velhice, age de forma omissiva. É, portanto, o não exercício
do papel de filho no tocante aos seus pais idosos. Isto porque, no imaginário popular é
dos pais a responsabilidade de cuidar dos filhos, por isso, o termo inverso47:

Logo, é visto que o abandono afetivo inverso condiz com a ausência


de cuidado, proteção e assistência às pessoas idosas, respeitando os
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seus direitos expressos e que apesar de não existir um direito que


obrigue a amar o outro, há o dever de assistir estes sujeitos e é por
isso que se discute a possibilidade da colocação dos idosos em uma
família substituta, uma vez que o número de abandonos afetivos é
crescente na sociedade brasileira48.

Portanto, no caso da pessoa idosa, o abandono afetivo se configura pela ausência


de convivência, comunicação e isolamento, a acentuar a circunstância de vulnerável, de
forma a impactar a sua saúde mental, psíquica e emocional49. A falta de afeto e estímulo
só debilita ainda mais quem se tornou frágil e carente com o avanço dos anos50. Ainda,
sobre o tema, comenta Viviane Girardi: “a falta de convivência, contato, comunicação,
atenção e zelo com as demandas psíquicas e emocionais do idoso são os grandes
desencadeadores dos processos depressivos e dos demais quadros de doenças
psicossomáticas em pessoas idosas, sendo de se registrar ainda que essas circunstâncias
são também causas de suicídio na terceira idade”51.

O termo se originou da valorização jurisprudencial e doutrinária do afeto. Motivo


pelo qual, mostra-se indispensável enfatizar a relevância do afeto para aquém das
demandas jurídicas:

47 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 508.
48 PEREIRA, R. L. P. Adoção de idosos: a busca pelo direito da convivência familiar e comunitária da Terceira
Idade. Centro Universitário Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. São Luís, 2020, p. 32.
49 IBDFAM. Abandono afetivo inverso é tema de palestra do Congresso Nacional do IBDFAM. Notícia
publicada em 14 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/7027/Abandono+afetivo+inverso+%C3%A9+tema+de+palestra+no+Cong
resso+Nacional+do+IBDFAM>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
50 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 648.
51 IBDFAM. Abandono afetivo inverso é tema de palestra do Congresso Nacional do IBDFAM. Notícia
publicada em 14 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/7027/Abandono+afetivo+inverso+%C3%A9+tema+de+palestra+no+Cong
resso+Nacional+do+IBDFAM>. Acesso em 10 de agosto de 2021.

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No campo da psicologia, o termo afetividade é utilizado para


designar a suscetibilidade que o ser humano experimenta perante
determinadas alterações que acontecem no mundo exterior ou em si
próprio. (...) Representa o termo perfeito para representar a ligação
especial que existe entre duas pessoas. É, por conseguinte, um dos
sentimentos que mais gera autoestima entre pessoas, principalmente
as jovens e as idosas, pois induz à produção de oxitocina, hormônio
que garante no organismo a sensação perene de bem-estar. (...) De
um modo geral, o afeto pode ser compreendido como um aspecto

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subjetivo e intrínseco do ser humano que atribui significado e sentido
à sua existência, que constrói o seu psiquismo a partir das relações
com outros indivíduos52.

Ante ao exposto, percebe-se a importância do afeto para a concretização das


estruturas familiares contemporâneas, correspondente a reunião dos sentimentos de
cuidado, carinho e amor. Sendo o cuidado uma das facetas do afeto, infere-se seu valor
jurídico53. A exemplificar, colaciona-se decisão do Superior Tribunal de Justiça que
reconheceu o abandono afetivo e revolucionou a jurisprudência. Não se trata da imposição
de obrigar alguém a amar o outro, mas das consequências pelo descumprimento do dever
legal de cuidar:

EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.


COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem
restrições legais à aplicação das regras concernentes à
responsabilidade civil e o consequente dever de
indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor
jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro
não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam
suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3.
Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida
implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma
de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem
juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação,

52 CASSETTARI, 2017, p. 22 apud MALUF, 2012, p. 18 apud PIAZZA, M. S. de F.; TOMAZ, L. C. de L. Projeto de
Lei n° 105/2020 e sua (in)adequação aos princípios constitucionais sob a perspectiva dos direitos dos idosos.
2020. Disponível em: <https://revistas.unaerp.br/cbpcc/article/view/2129/1656>. Acesso em 06 de agosto de
2021, p. 1127/1128.
53 PIAZZA, M. S. de F.; TOMAZ, L. C. de L. Projeto de Lei n° 105/2020 e sua (in)adequação aos princípios
constitucionais sob a perspectiva dos direitos dos idosos. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unaerp.br/cbpcc/article/view/2129/1656>. Acesso em 06 de agosto de 2021, p. 1127/1128.

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educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da


imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear
compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar
das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno
cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um
núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero
cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à
afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e
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inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência


de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem
revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de
reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor
fixado a título de compensação por danos morais é possível, em
recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo
Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso
especial parcialmente provido54.

Nesse diapasão, cumpre salientar o Enunciado 10 do IBDFAM: “É cabível o


reconhecimento do abandono afetivo em relação aos ascendentes idosos”.

Ora, é evidente que a pessoa humana – um ser social e movido por sentimentos,
necessita de ambiente propício a desenvolver toda sua potencialidade. “Muito mais
saudável que a institucionalização, parece ser a colocação da pessoa idosa no seio de uma
família (natural ou substituta), com plenitude para exercer os mais variados direitos
fundamentais que lhe são inerentes, pois assim se garantirá, efetivamente, seu direito à
convivência familiar e comunitária”55.

A finalidade do Direito é garantir a segurança jurídica e paz social, mediante


pacificação das expectativas legítimas das pessoas. Em virtude do constante abandono
afetivo e material inverso, surge a necessidade de aprimoramento das políticas públicas
existentes. Diante do cenário conflitante entre as normas existentes e a prática, mostra-se
de relevante utilidade social o Projeto de Lei n° 105 de 2020, que objetiva o

54 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão de decisão que deu provimento ao pedido de
responsabilidade civil por abandono afetivo. Recurso Especial nº 1.159. 242-SP. Relatora: Ministra Nancy
Andrighi. 24 de abril de 2012. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisa
Generica&num_registro=200901937019>. Acesso em: 02 de julho de 2021.
55 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 69.

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aperfeiçoamento da legislação vigente quanto ao amparo do idoso, ao sugerir a criação


de um novo instituto no Direito das Famílias, conforme se verá em no tópico subsequente.

3. A SENEXÃO E O PROJETO DE LEI N° 105 DE 2020

O cumprimento do processo natural da vida implica dizer que todos irão envelhecer.
Não por outra sorte, em consequência aos avanços científicos, tecnológicos e medicinais,
a longevidade da população está maior, ao passo que de acordo com projeção do IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2040, 25% da população terá mais de 60

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anos. Todavia, o Brasil ainda carece de políticas públicas eficazes para proteger e garantir
essa crescente parcela da sociedade. “O preconceito com os idosos tem produzido
injustiças e equívocos nas políticas públicas de saúde e, consequentemente, de proteção
às famílias. É necessário reconhecer que, se eles já não fazem mais parte da cadeia
produtiva do país, já deram sua parcela de contribuição econômica, significando em última
análise, o reconhecimento e a atribuição de um lugar de merecimento” 56.

Seguindo o viés de que a filiação não se limita ao nascimento, mas em crescer, viver
e envelhecer juntos, é que se enquadra no novo contexto social a senexão, prevista no
Projeto de Lei n° 105/2020, proposto pelo Deputado Federal do Partido Trabalhista
Brasileiro, Pedro Lucas Fernandes, à Câmara dos Deputados.

O instituto da senexão nasce com o intuito de minorar a ausência de políticas


públicas eficientes que acompanham o crescimento exponencial da população idosa, visto
que na hipótese do Estado se manter em defasagem, o envelhecimento se tornará um
problema social em constante agravamento57. “Assim, o novo instituto preserva as
garantias existentes e busca melhorias, ratificando sua viabilidade e necessidade de ser
acrescido positivamente e de forma não colidente ao Estatuto do Idoso, preservando o
princípio do melhor interesse da pessoa idosa e obedecendo aos princípios norteadores
do direito dos idosos; o princípio da proteção integral e o princípio da absoluta
prioridade”58.

Em razão do Direito ser fruto da cultura, e esta, por seu turno, fruto da linguagem,
admite-se a criação de novos institutos pelo Poder Legislativo, com a finalidade de

56 PEREIRA, R. da C. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 505.
57 SANTOS, A. S.; THOMASI, T. Z. A aplicação do instituto de Senexão no Brasil. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unibh.br/dcjpg/article/view/3110/pdf99875>. Acesso em 05 de agosto de 2021.
58 DRUMOND, I. N. P. de C.; FERRAZ, M. Senexão: a colocação de idosos em famílias substitutas como
alternativa para o amparo de idosos órfãos. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasilia. V.
1, n. 19, 2021. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/36862 >. Acesso em
30 de agosto de 2021, p. 673.

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regulamentar situações de fato59. É exatamente o que pretende fazer o Deputado Pedro


Lucas, ao propor acrescentar a senexão ao Estatuto do Idoso, como mecanismo de amparar
e proteger o público senil.

Etimologicamente, a denominação adotada advém da “palavra formada da raiz


latina “senex”, que corresponde a idoso e do sufixo “ão” que designa pertencimento, como
em aldeia/aldeão, cidade/cidadão”60, conforme explicativa inserida no bojo do projeto.
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O Projeto de Lei (PL) define como senexão o ato da colocação de pessoas idosas em
família substituta, sem que haja a alteração no estado de filiação e, por conseguinte, nos
direitos sucessórios, mas, tão somente, a caracterização de laços socioafetivos, a fim de
proporcionar amparo e estabilidade aos idosos em situação de vulnerabilidade ou
abandono, conforme se extrai dos artigos do Projeto:

Art. 45 A: Idosos em situação de vulnerabilidade ou abandono, que


tenham sido encaminhados a abrigos ou estejam desamparados
pelas famílias originárias podem ser integrados em família receptora
pelo instituto da senexão, conforme Art. 55 A e seguintes.

Art. 55 A: Para a colocação de idoso em família substituta, a fim de


proporcionar-lhe amparo e estabilidade de relações sócio afetivas
com a família receptora, admite-se a senexão.

Art. 55 C: A senexão não estabelece vínculos de filiação entre


senector e senectado, nem afeta direitos sucessórios, mas estabelece
vínculos de parentesco sócio afetivo [...]

Nesse liame, cumpre o alerta de que, embora há diversas similaridades, a senexão


difere da figura da adoção, visto que nesta última recai todos os efeitos decorrentes da
filiação, inclusive os aspectos sucessórios, e há o rompimento dos laços parentais
originários. Calha que, em sua maioria, a lacuna do idoso a ser preenchida não é a
necessidade de vincular um pai, mãe ou filho, mas de prover cuidados e companhia61. A
ideia da senexão é facilitar a colocação de idosos em famílias substitutas, bem como evitar

59 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
60CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 105/2020. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236550>.
61 DRUMOND, I. N. P. de C.; FERRAZ, M. Senexão: a colocação de idosos em famílias substitutas como
alternativa para o amparo de idosos órfãos. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasilia. V.
1, n. 19, 2021. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/36862 >. Acesso em
30 de agosto de 2021, p. 668.

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que indivíduos aproveitem do instituto para obter vantagens patrimoniais da pessoa idosa.
Além disso, a adoção exige o respeito a requisitos subjetivos e objetivos que não são
necessários à senexão, ao passo que a senexão seria um método mais simples e célere62,
o que pode refletir em meio mais eficiente para idosos em situação de vulnerabilidade.

Isto porque, a proposta da implementação do instituto da senexão é ser aplicável a


idosos em situação de risco social, por ação ou omissão do Estado e/ou sociedade.
“Presume-se, assim, que por se tratar de uma medida de proteção, seu procedimento deve
ser mais rápido e eficaz em comparação aos demais aqui citados, tendo em vista que seu

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principal objetivo é a garantia do amparo e estabilidade do idoso em suas relações
socioafetivas”63. Ao tratar o assunto, entendem Luiza Gracie Maluf e Regina Beatriz Tavares
da Silva:

[...] É de observar que enquanto a adoção atribui ao adotado a


condição de filho, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessórios, rompendo-se os vínculos de parentesco com a família
natural - salvo os impedimentos matrimoniais –, criando-se vínculos
de filiação com a família substituta, a proposta legislativa em tela não
atribui ao idoso relação de filiação com a família acolhedora.

E também é de notar que a curatela é instituto que se aplica a quem


tem deficiência mental ou intelectual, o que não se pode aplicar, de
modo geral, ao idoso.

A “senexão” do projeto em tela pretende a constituição de vínculos


socioafetivos entre os envolvidos, e não a filiação, implicando a
obrigação do “senector” em manter, sustentar e amparar de todas as
formas materiais e afetivas as necessidades do idoso64.

Observa-se que o PL traz a nomenclatura da “socioafetividade”, para definir o elo


entre os dois envolvidos, em especial nos artigos 55 A, C e F. Da sua leitura, acredita-se

62 PIAZZA, M. S. de F.; TOMAZ, L. C. de L. Projeto de Lei n° 105/2020 e sua (in)adequação aos princípios
constitucionais sob a perspectiva dos direitos dos idosos. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unaerp.br/cbpcc/article/view/2129/1656>. Acesso em 06 de agosto de 2021, p. 1125/1126.
63 MALUF, L. G.; SILVA, R. B. T. da. “Senexão” como novo instituto de família. 2020. Disponível em:
<http://www.reginabeatriz.com.br/post/senex%C3%A3o-como-novo-instituto-de-fam%C3%ADlia>. Acesso
em 30 de agosto de 2021.
64 MALUF, L. G.; SILVA, R. B. T. da. “Senexão” como novo instituto de família. 2020. Disponível em:
<http://www.reginabeatriz.com.br/post/senex%C3%A3o-como-novo-instituto-de-fam%C3%ADlia>. Acesso
em 30 de agosto de 2021.

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que o projeto buscou ampliar o espectro conceitual de socioafetividade para possibilitar o


reconhecimento de laços afetivos sem caracterizar vínculo de filiação, uma verdadeira
inovação para o ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse diapasão, entende-se que o legislador propôs a constituição de parentesco


em sentido amplo (latu senso), de forma que a pessoa idosa ingressa no nicho familiar
substituto como parente atípico, inominado e não filial65.
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Nesse momento, oportuno se faz analisar as prerrogativas do PL. Além das


orientações acima citadas, a sugestão legislativa propõe ser a senexão ato irrevogável (art.
55 B) e registrada em livro próprio no Cartório de Registros de Pessoas (art. 55 A, parágrafo
único), após ter tramitado sua análise pela via judicial, com acompanhamento
multidisciplinar e total preferência de processamento (art. 55 H). Não é só, é necessário
ainda a anuência do idoso envolvido (senectado), por si ou por seu curador e, sendo a
pessoa receptora (senectora) casada, depende da anuência de seu cônjuge (art. 55 C, §1° e
2°)

A senexão, portanto, consistiria em:

[...] mais uma medida protetiva específica do Estatuto do Idoso (art.


45). Consequentemente, seria cabível em casos onde se verificasse
ameaça ou violação aos direitos do idoso, estando este em situação
de risco social, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por
falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de
atendimento, ou, por fim, em razão de sua condição pessoal (art. 43,
I, II e III, EI), tendo por finalidade a tutela de direitos de idosos em
situação de vulnerabilidade ou abandono, que estivessem inseridos
em instituições de longa permanência (ILPI) ou desamparados,
através de sua colocação em uma família substituta, visando lhes
proporcionar amparo e estabilidade em suas relações
socioafetivas66.

No plano do direito material, o Projeto de Lei estabelece direitos e deveres a ambas


as partes, senectado e senector. O senector, pessoa maior e capaz, recebe o senectado em
sua família para proporcionar amparo e assistência de todas as formas materiais e afetivas

65 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
66 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.

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(art. 55 B e 55 C). As obrigações e deveres do senector estão delimitados em dois principais


artigos:

Art.55 D. São obrigações do senector:

I – a mantença do senectado como pessoa da família, provendo todas


as suas necessidades materiais e afetivas;

II – fornecer ao senectado ambiente familiar de acolhimento e

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segurança, tratando-o como parente;

III – cuidar de todas as necessidades de saúde do senectado;

IV – fornecer ao senectado um ambiente propício a sua idade,


estimulando atividades compatíveis com sua capacidade, a fim de
integrá-lo socialmente, estimular sua autonomia e desenvolvimento
de aprendizado, se assim desejar, e fornecer-lhe ambiente de
tranquilidade e segurança.

Art. 55 E. São direitos do senector:

I – inscrever o senectado como dependente para fins tributários;

II– inscrever o senectado em planos de saúde, assistência, seguros ou


previdência pública ou privada;

III – ser declarado herdeiro do senectado apenas no caso de herança


vacante, tendo preferência na ordem sucessória sobre o estado.

Como visto alhures, a senexão se preocupa em resguardar os direitos patrimoniais


do senectado. E, é com base nessa premissa que os direitos do senector foram
estruturados, em especial, ao se prever o afastamento na participação da herança, sendo
permitido apenas em caso vacância.67

Por sua vez, os direitos do senectado também estão definidos:

Art. 55 F. São direitos do senectado:

67 DRUMOND, I. N. P. de C.; FERRAZ, M. Senexão: a colocação de idosos em famílias substitutas como


alternativa para o amparo de idosos órfãos. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasilia. V.
1, n. 19, 2021. Disponível em: < https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/36862 >. Acesso em
30 de agosto de 2021, p. 678/679.

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I - ser recebido voluntariamente como membro da família do


senector, na qualidade de parente sócio afetivo, recebendo todo
amparo devido a pessoa da família;

II - viver em ambiente propiciado pelo senector em que possa realizar


as atividades de que seja capaz e tenha desejo, a fim de manter sua
realização plena como pessoa humana;
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III - receber do senector e sua família todo amparo material e afetivo


necessário, inclusive sendo estimulado à autonomia, enquanto
possível, e recebendo cuidados adequados quando não.

Não é só, caso o senector venha a falecer antes do senectado, todos os direitos e
deveres advindos do instituto serão transferidos aos seus herdeiros (art. 55 I). À vista disso,
indaga-se a possibilidade da legislação impor aos herdeiros tal obrigação, eis que o elo
estabelecido é oriundo de escolha personalíssima das partes envolvidas, sendo que os
herdeiros do senector podem não possuir qualquer laço com o senectado.

No tocante à louvável proposta legislativa, colaciona-se o comentário tecido por


Patrícia Calmon:

Embora a sugestão feita neste texto possa gerar algum incômodo


inicial, é necessário ressaltar que o Direito evolui diante dos fatos que
lhe são apresentados e tais situações – que já estão sendo
judicializadas – precisam de uma adequada tutela, ainda que vá de
encontro a alguns dogmas. Já que o propósito atual é conferir cada
vez mais autonomia aos idosos, proporcionando-lhes o que vem
sendo chamado de “envelhecimento ativo”, sua colocação em família
substituta parece vir justamente ao encontro de tal proposta, já que
proporcionaria sua integração a um núcleo pautado no afeto,
conferindo-lhe dignidade, bem-estar e pertencimento68.

Ainda, há que se ressaltar um importante aspecto do PL quanto ao dever do


senector de cuidar de todas as necessidades de saúde do senectado. Nas hipóteses de
impossibilidade do senectado decidir, cabe ao senector a responsabilidade de decidir todas
as questões acerca de tratamentos médicos e quaisquer atividades, ao passo que afasta da
família biológica poder decisório (art. 55 G).

68 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 76.

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Nesse ponto, nota-se que há, no retro mencionado dispositivo, uma ampliação
semântica perigosa ao direcionar o poder decisório ao senector de quaisquer atividades
do senectado, em caso de sua impossibilidade de decidir69.

Ora, no ordenamento jurídico brasileiro tem como indispensável a propositura da


ação de curatela ou tomada de decisão apoiada, nas hipóteses em que a pessoa, acometida
por alguma causa de incapacidade, está impossibilitada de decidir, resguardando, assim,
os seus direitos. “Nem mesmo a família biológica poderá decidir atos generalizados
daquela pessoa incapaz por si, já que isto seria um ato que atentaria frontalmente contra

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a própria perspectiva de maior autonomia do idoso, sendo o mesmo do que uma
“interdição” sem o devido processo legal” 70.

Diante disso e, considerando que a curatela concerne apenas aos atos relacionados
a direitos patrimoniais e negocial71, a interpretação que parece melhor se aplicar ao artigo
55 G do PL é de abranger apenas normativas existenciais, como é o caso do tratamento de
saúde. “Afinal, pensar de outra forma esbarraria em nítida ilegalidade e, além disso, parece
que projeto de lei não tem por pretensão conferir maiores poderes ao senector do que
aqueles que a própria família biológica possuiria”72.

A ideia da criação do instituto da senexão não é fomentar a correlação entre idoso


e incapacidade, de forma a afetar a sua autonomia e independência, mas em garantir,
dentre os demais, o direito à convivência familiar e comunitária – intrinsecamente vinculada
à moradia digna, que está expressamente previsto no artigo 3° do Estatuto do Idoso, o
qual fortaleceu a proteção estabelecida no artigo 230 da Constituição Federal73.
“Contempla-se tratar-se de substancial avanço, visto que tal previsão legal adstringe-se à
alocação familiar da pessoa idosa, sem implicar-lhe na automática restrição da sua

69 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
70 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
71 Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n° 13.146/15), art. 85: A curatela afetará tão somente os atos
relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
72 CALMON, P. N. Senexão: um novo instituto do direito das famílias?. 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1404/Senex%C3%A3o:+um+novo+instituto+de+direito+das+fam%C3%ADl
ias%3F>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
73 CALMON, P. N. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade?
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37(jan/fev) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 69/70.

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capacidade de autodeterminação, de modo que a capacidade civil mantém-se hígida”74.


Neste contexto:

Com isso, o PL n. 105/2020 ao possibilitar que a pessoa idosa seja


inserida em uma família substituta, visando proporcionar amparo e
proteção, há uma efetivação do que já está disposto na legislação
pátria, mas que, muitas vezes, não é cumprido em sua totalidade,
pois, há um crescente abandono afetivo e material destes indivíduos.
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Assim, com o processo de envelhecimento e o aumento das


demandas por políticas públicas para a pessoa idosa, e em resposta
às diretrizes internacionais, o Brasil avançará ao estabelecer a
inserção do instituto jurídico na “Senexão” em seu ordenamento
jurídico.

Neste sentido, é urgente a necessidade de implementação de um


novo instituto que vise proteger os interesses da pessoa idosa, um
instituto jurídico marcado pelo vínculo socioafetivo, que possibilite a
efetivação dos direitos inerentes aos idoso, protegendo sua
dignidade humana, ou seja, a “Senexão”75.

Neste viés, a adoção do Projeto de Lei n° 105/2020 aprimora o Estatuto do Idoso,


de forma a viabilizar a aplicação e eficácia dos direitos fundamentais da população senil,
em conformidade com os princípios da afetividade, solidariedade, da dignidade da pessoa
humana e da proteção ao idoso76. Por isso, a necessidade do aprofundamento do debate
acerca do tema. Nesse liame, cumpre salientar que a senexão não almeja a minoração da
autonomia ou independência da classe senil. Ao contrário, busca a ruptura da construção
social que atrelou ao idoso a imagem de indivíduo frágil, enfermo ou até mesmo, incapaz,
ao passo que a preocupação existente no projeto em questão recai no suprimento das
necessidades emocionais da pessoa idosa77.

74 REMONTI, L. Do abandono afetivo inverso a senexão. Disponível em: <https://doity.com.br/anais/ii-


simposio-de-direito-contemporaneo-resumos-expandidos/trabalho/159935>. Acesso em 30 de agosto de
2021.
75 SANTOS, A. S.; THOMASI, T. Z. A aplicação do instituto de Senexão no Brasil. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unibh.br/dcjpg/article/view/3110/pdf99875>. Acesso em 05 de agosto de 2021, p. 18.
76 SANTOS, A. S.; THOMASI, T. Z. A aplicação do instituto de Senexão no Brasil. 2020. Disponível em:
<https://revistas.unibh.br/dcjpg/article/view/3110/pdf99875>. Acesso em 05 de agosto de 2021, p. 13/14.
77 REMONTI, L. Do abandono afetivo inverso a senexão. Disponível em: <https://doity.com.br/anais/ii-
simposio-de-direito-contemporaneo-resumos-expandidos/trabalho/159935>. Acesso em 30 de agosto de
2021.

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CONCLUSÃO

Em suma, após os estudos feitos, que embora não tão abrangentes são de grande
valia para os Operadores do Direito, este trabalho é desenvolvido na tentativa de
compreender as questões sobre o tema escolhido, realizado por meio de prévios estudos
sobre o fenômeno mundial do envelhecimento e o consequente abandono afetivo e
material inverso, contemplando o instituto da senexão como um mecanismo adequado na
solução deste problema social, com a principal finalidade de ser uma fonte de pesquisa
acessível aos Operadores de Direito, a fim de se possibilitar o aprofundamento do tema e,

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consequentemente, a sua aplicação.

Como visto alhures, a concepção de família está em constante transformação, sendo


que atualmente, a afetividade é o princípio que norteia o direito brasileiro, cuja diversidade
nos arranjos familiares é caracterizada pelo ideal eudemonista.

Em razão da atenção direcionada a dignidade da pessoa humana – princípio


diretamente vinculado ao afeto, surgiu a necessidade de proteger os grupos mais
vulneráveis, dentre eles, os idosos. Isto posto, o público senil tem especial proteção e
amparo no ordenamento jurídico brasileiro, com seus direitos salvaguardados desde no
escopo da Constituição Federal de 1988 até na criação de Estatuto próprio (Lei n°
10.741/03).

Todavia, há inúmeras dificuldades enfrentadas para a concretização de tais


garantias, principalmente, em decorrência do alto índice de abandono afetivo e material.

Diante disso, mostra-se viável a aplicação da senexão como alternativa para


efetivação dos direitos fundamentais da pessoa idosa, que corresponde a inclusão do idoso
em família substituta, sem que haja o reconhecimento de vínculo de filiação (e
consequentemente direitos sucessórios), mas com a constituição de laços socioafetivos.

Nesse cenário, não há ausência de exoneração obrigacional da família originária, eis


que tal vínculo não é dissolúvel, devendo projetar seus efeitos enquanto o laço perdurar.
Todavia, ao se identificar o abandono, não é plausível manter o idoso à mercê do desafeto,
de forma que, não há a substituição de vínculos, tão somente o acréscimo do socioafetivo.

Dessa forma, o instituto em análise reforça a efetivação dos dispositivos da atual


legislação, no que concernem à proteção e amparo da pessoa idosa. Além de concretizar
os princípios da afetividade, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, bem como
garantir, especialmente, o direito fundamental à convivência familiar e comunitária, que
está umbilicalmente ligado à moradia digna. A senexão se predispõe a assegurar a

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dignificação enquanto ser humano da pessoa idosa, em nada afetando a sua capacidade
civil.

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ALGUNS ASPECTOS SOBRE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

MARIANA CARLA BATISTA CARRILHO:


Discente do curso de Direito do Centro
Universitário de Santa Fé do Sul, UNIFUNEC

LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON


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(orientadora)

RESUMO: O trabalho apresenta como objetivo principal realizar um estudo amplo em


relação a violência obstétrica, entende-se como violência obstétrica qualquer medida e/ou
ato invasivo realizado por qualquer que seja o agente de saúde, sem a autorização da
paciente gestante, lembrando que, nem sempre o ato invasivo é físico, algumas vezes
pode tratar-se de um dano psicológico. Para muitos a temática pode ser considerada um
tanto quanto polêmica, pois para o entendimento de muitos coloca em xeque a boa-fé
dos profissionais da saúde. No entanto, é inegável que a violência obstétrica exista, porque
o que não falta são relatos de pacientes que sofreram e ainda sofrem com os efeitos
colaterais de procedimentos invasivos desnecessários no momento do parto, e é sabido
que a vontade da gestante deve ser preservada no momento do parto. Diante do exposto,
é possível concluir que o tema violência obstétrica, apresenta grande relevância de estudo
atualmente, pois trata a respeito dos direitos, da autonomia sobre o próprio corpo e
também da dignidade da mulher. O trabalho foi realizado com base em revisões de
literatura, com pesquisas em sites, blogs, artigos, livros revistas referência para a área de
estudo, de forma árdua e meticulosa.

Palavras-chave: Mulher. Procedimentos. Violência.

ABSTRACT: The main objective of the work is to carry out a broad study in relation to
obstetric violence, as obstetric violence is any measure and/or invasive act performed by
any health agent, without the authorization of the pregnant patient, remembering that
neither always the invasive act is physical, sometimes it can be a psychological damage.
For many, the theme can be considered somewhat controversial, because for the
understanding of many, it calls into question the good faith of health professionals.
However, it is undeniable that obstetric violence exists, because there is no lack of reports
of patients who have suffered and still suffer from the side effects of unnecessary invasive
procedures at the time of delivery, and it is known that the will of the pregnant woman
must be preserved in the time of childbirth. Given the above, it is possible to conclude that
the subject of obstetric violence has great relevance of study today, as it deals with rights,

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autonomy over one's own body and also the dignity of women. The work was carried out
based on literature reviews, with research on websites, blogs, articles, books, magazines,
reference for the area of study, in an arduous and meticulous way.

Keywords: Women. Procedures. Violence.

INTRODUÇÃO

O assunto abordado neste artigo busca explorar e explanar acerca dos direitos

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assegurados as mulheres gestantes. Como é sabido o parto por muitos anos foi
considerado algo comum entre as mulheres, sendo batizado como um evento feminino.

Desde os primórdios até o início do século XX as mulheres davam à luz nas suas
casas com o auxílio de parteiras ou até membros da família. A partir da segunda década
do século XX, com o aumento da tecnologia, inicia-se a hospitalização do parto, o qual
passa a ser visto como um evento patológico, necessitado de condução médica em
instituições hospitalares.

Atualmente, o parto vaginal é associado à dor intensa e sofrimento e isso se deve


ao atual modelo de assistência obstétrica o termo tecnocrático. O termo é utilizado
quando a gestante deixa de ser a protagonista do seu próprio corpo, ou seja, quando ela
não se impõe diante dos fatos, quando considera a gestação como algo inseguro
requisitado de múltiplas intervenções, muitas vezes desnecessárias e prejudicial para mãe
e bebê. A violência obstétrica começa a ganhar espaço na segunda década do século XXI
através de movimentos feministas e documentários, umas das obras que marcaram foi
“Espelho de Vênus” onde relata o parto institucionalizado como uma vivência traumática
e violenta. Porém, o assunto foi negligenciado devido à grande resistência de profissionais
em reconhecer o tratamento prestado como violência.

O mesmo termo é utilizado para todos os tipos de violência sofridos pela mulher
durante a gravidez, o parto, pós-parto e abortamento. As agressões podem ser físicas,
psicológicas, verbais ou sexuais, além de negligência, discriminação e condutas
excessivas ou desnecessárias, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em
evidências científicas. Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e
muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos naturais
e as impedem de exercer seu protagonismo. Nos últimos anos o Brasil tenha avançado a
violência obstétrica, uma a cada quatro mulheres sofre alguma forma de violência
durante o parto e aproximadamente metade das que abortaramrelatam ter sofrido algum
tipo de violência, principalmente no caso de abortos provocados.

1.ASPECTO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA


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De antemão, de forma sucinta conceitua-se a violência obstétrica como o abuso


sofrido por mulheres durante a gestação, onde seus agressores são os profissionais de
saúde, tais abusos podem ser apresentados como violência física ou psicológica. No que
tange a saúde pública não é novidade a precariedade, segundo o estudo “Mulheres
brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizado pela Fundação Perseu
Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC), em 2010, 1 em cada 4
mulheres sofrem violência obstétrica no Brasil, e as estatísticas continuam, o Brasil é o
segundo país com maior índice de cesárias, com uma taxa acima de 55% do total de
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partos, vale ressaltar que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda uma taxa
de cesáreas entre 10% e 15%. Em média, isso corresponde ao número de nascimentos
em que há complicações que uma cesariana pode eliminar, salvando vidas.

Com o intuito de elucidar ainda mais sobre o conceito, a promotora de Justiça,


Dra.Fabiana Dal'mas Rocha Paes, explica:

Entende-se por violência obstétrica toda ação ou omissão


direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que
cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada
sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua
autonomia. Esse conceito engloba todos os prestadores de serviço
de saúde, não apenas os médicos. Define-se, ainda, como violência
obstétrica qualquer ato ou intervenção direcionada à mulher
grávida, parturiente ou puérpera (que recentemente deu à luz), ou
ao seu bebê, praticado sem o seu consentimento explícito ou
informado e em desrespeito à sua autonomia, integridade física e
mental, aos seus sentimentos e preferências (PAES, online)

Cabe ressaltar-se que a violência física sofrida pela gestante não se limita a
violência genérica ou tratamento agressivo, bruto. A violência obstétrica também é a
utilização de procedimentos não autorizados, a cesárea desnecessária que o médico
optou por fazer ou a falta de tratamento analgésico adequado, por exemplo.

Além da violência física sucintamente explicada acima, existe também a violência


psicológica, a qual é oriunda de comentários maldosos, ofensivos e ridicularizações com
a opção de parto ou posição de dar à luz. Alice Arnoldi (2021, online) explica um pouco
sobre a ocorrência do abuso psicológico:

Existe uma construção hierárquica na relação médico-paciente que


faz com que a mulher se sinta na obrigação de acatar o que os
especialistas dizem, se sentindo envergonhada e até mesmo
culpada ao ser acusada diante de alguma situação. Inclusive, ela
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pode vir a acreditar que os gritos, xingamentos e até mesmo


deboches são merecidos e é preciso se sentir grata porque, mesmo
depois de tudo, o médico ainda salvou seu bebê. (ARNOLDI, 2021,
online)

A violência psicológica caracteriza-se também por ações que causem sentimento


de inferioridade, abandono, medo e instabilidade. A violência obstétrica é praticada não
somente por médicos, mas também por enfermeiros, anestesistas (casos onde o

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profissional ignora a dor da paciente), técnicos de enfermagem e até mesmo
recepcionista e a parte administrativa do hospital.

1.1 Atos obstétricos invasivos

A violência obstétrica é um assunto muito amplo, caracterizado de inúmeras


formas, noentanto, há procedimentos ilícitos que são realizados com frequência, são eles:
episiotomia, manobra de Kristeller, aplicação de ocitocina, restrições nas posições para
o parto e proibição de acompanhante.

Episiotomia, trata-se de um dos procedimentos invasivos e agressivos mais


utilizados, consiste em um corte na região perineal, parte inferior da vagina, para que
facilite a passagem do bebê. O grande problema desse procedimento consiste na
recuperação do tecido lesado, o surgimento de infecções, dores e incômodos na
cicatrização e até mesmo nas futuras relações sexuais da paciente. Além do
procedimento ser feito sem a autorização da gestante, existem também casos em que o
médico que realiza a sutura, opta por dar pontos no corte com o objetivo de fechar a
vagina da gestante, deixando-a mais estreita para que o homem, no ato sexual possa
sentir mais prazer, tudo isso sem o consentimento da mulher.

No que tange a manobra de Kristeller, trata-se do ato em que o profissional usa a


própria força sobre a barriga da gestante para expulsar o feto, é evidente que tal
procedimento é extremamente agressivo com a gestante e a criança, mesmo que a
prática do ato já tenha sido proibida, ainda há muitos profissionais que utilizam do meio.

Os estudos feitos a respeito da manobra de Kristeller informam que, apesar de ser


uma prática muito realizada e passada de geração em geração sem qualquer
fundamento teórico ou técnico, seu uso não tem contribuído de forma positiva no
procedimento do parto, ela não encurta a duração do trabalho de parto e ainda está
relacionada ao aumento do uso de episiotomias e lesões graves na parturiente e na
criança (SENADO, 2012). “A manobra de Kristeller é reconhecidamente danosa à saúde
e, ao mesmo tempo, ineficaz, causando à parturiente o desconforto da dor provocada

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e também o trauma que se seguirá indefinidamente” (REIS, 2005 apud SENADO, 2012, p.
105)

Outro meio ainda muito utilizado é a aplicação de ocitocina, hormônio usado para
acelerar as contrações e aumentar a dilatação, o grande problema desse método deve-
se a utilização sem necessidade, em muito dos casos a aplicação é feita de forma precoce,
fazendo com que a gestante sinta dores muito maiores, sem necessidade.
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As restrições da posição para o parto é uma das violações obstétricas mais


comuns, a gestante é em grande parte ridicularizada, vira chacota por expressar seu
desejo, mesmo sendo garantido a mulher condições de escolha das diversas posições
durante o parto, desde que não existam impedimentos clínicos.

Por fim, a parturiente pode escolher sem qualquer tipo de exceção ou encargos,
quem vai acompanhá-la durante o pré-parto, parto e pós-parto de acordo com a Portaria
n° 2.418/05 do Ministério da Saúde. Afora de caracterizar como violência obstétrica, a
proibição de acompanhante durante o parto é contrária ao direto assegurado pela Lei
11.108/2005, da RDC nº 38/2008 da ANVISA. A presença do(a) acompanhante (inclusive
se este for adolescente) não pode ser impedida pelo hospital ou por qualquer membro
da equipe de saúde, nem deve ser exigido que o(a) acompanhante tenha participado de
alguma formação ou grupo. (BRASIL, 2005)

1.2 Reconhecimento da violência obstétrica

Apesar do índice altíssimo de utilização de procedimentos invasivos para com a


gestante, existe uma discussão muito grande sobre a utilização do termo “violência
obstétrica”uma vez que, a ética dos profissionais da saúde é posta em imprecisão. Alguns
profissionais, com respaldo e chancela de alguns conselhos e sociedades médicas,
afirmam que a utilização do termo seria uma violência contra os médicos obstetras.
Coadunando com essa perspectiva, recentemente houve tratativa do Ministério da Saúde
para que a expressão “violência obstétrica” fosse abolida de documentos públicos.

A polêmica é descabida, posto que o adjetivo “obstétrica” não é exclusivo do


médico. A violência pode decorrer de falhas sistêmicas nos diferentes níveis de atenção
dos sistemas de saúde de modo que não cabe entender a expressão como sinônimo de
“violência cometida pelo obstetra”. Reconhecer, portanto, a violência obstétrica como
uma realidade, não significa culpabilizar nenhuma categoria profissional específica.

1.3 A violência obstétrica atrelada à violência de gênero

A violência obstétrica está atrelada à violência de gênero e outras violações de


direitos cometidas nas instituições de saúde contra suas usuárias. Nesse sentido, ela faz
parte da violência institucional, exercida pelos serviços de saúde, e se caracteriza por
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negligência e maus-tratos dos profissionais com os usuários, incluindo a violação dos


direitos reprodutivos, a peregrinação por diversos serviços até receber atendimento e
aceleração do parto para liberar leitos, entre outros (Gomes, 2014). Por isso, a frase “na
hora de fazer gostou, então agora aguenta” falada pelos médicos e pela equipe se
converte em parte do discurso institucional, relacionando a dor com o preço que devem
pagar pelo prazer do ato sexual e levando a uma banalização dos atos desrespeitosos e
à invisibilidade da violência (Aguiar, 2010).

A violência obstétrica também se relaciona com a escolha das mulheres pela

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cesárea. A mulher perde autonomia nas decisões sobre seu parto e submete-se a
orientações que não compreende totalmente, o que faz que profissionais esqueçam que
é a mulher quem está com dor e que vai parir (Ministério da Saúde, 2001). O parto, então,
tornou-se amedrontador para as mulheres e asséptico para os profissionais de saúde.
Dessa forma, a mulher pode se tornar um objeto de manipulações sem consentimento
ou sem a informação suficiente sobre os processos a serem realizados (Aguiar, 2010).

Sendo assim, faz-se necessário o fortalecimento da compreensão de saúde como


produção de subjetividade com o objetivo de resistir a todas as formas de violência e
investir esforços no sentido do respeito à vida humana.

Como alternativa para essa mudança é necessária a elaboração de políticas


públicas que assegurem a diminuição das desigualdades sociais, a valorização dos
trabalhadores da saúde, a utilização das boas práticas no parto e no nascimento,
baseadas em evidências científicas, e a distribuição de serviços e equipamentos de saúde
que estejam articulados em rede e compreendam os sujeitos de forma integral (Gomes,
2014).

Nesse sentido, esforços institucionais têm sido empreendidos pelo Ministério da


Saúde no sentido de melhorar a assistência obstétrica e neonatal em todo o país, assim
como na melhoria das condições de vida das mulheres, através da incorporação da
perspectiva de gênero nas análises epidemiológicas e no planejamento das ações em
saúde (Ministério da Saúde, 2014). Desde os anos 2000 foi proposta e instituída uma
série de programas e políticas em saúde, entre os quais: o Programa de Humanização do
Parto e Nascimento, a Política Nacional de Humanização – Humaniza SUS, a Política de
Atenção Integral à Saúde da Mulher, entre outros (Ministério da Saúde, 2014).

Em 2011, foi instituída a Rede Cegonha (Portaria n. 1.459/2011), buscando


assegurar o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao
parto e ao puerpério, com objetivo de fomentar a implementação de novo modelo de
atenção à saúde da mulher e da criança, desde o parto até os 24 meses de vida, assim
como reduzir a mortalidade materna e infantil.
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2.LEGISLAÇÃO SOBRE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Diante de tantas correntes ideológicas divergentes, não há de se estranhar que


ainda não exista uma legislação especifica para a violência obstétrica, entretanto, essa
lacuna jurídica, deve ser suprida com legislação geral ou embasada em Doutrinas,
Jurisprudências, Tratados, Costumes entre outros. A Constituição Federal de 1988 tem
como base o princípio da dignidade humana, que estabelece: “Art. 1º. A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
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Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como


fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.”

O princípio da dignidade da pessoa humana é importantíssimo no ordenamento


jurídico brasileiro, ele é visto como um valor moral e é inerente a todo ser humano,
incluindo as gestantes, puérperas e mulheres em situação de abortamento, sendo assim,
as práticas da violência obstétrica violam um fundamento da CF há princípios que devem
ser seguidos.

Um outro amparo legal de extrema importância aplicado nos casos de violência


obstétrica no Brasil é o Código de Ética Médica (CEM), de 2010, cujo texto traz algumas
situações relevantes para o caso em debate. Acerca da responsabilidade do médico, é
vedado ao mesmo causar dano ao paciente (art. 1º), até mesmo por obviedade. O art.
14, por sua vez, muito remete ao procedimento de episiotomia tratado anteriormente,
que é utilizado, sem necessidade, para acelerar o parto, uma vez que o dispositivo veda
ao médico a prática de atos médicos desnecessários. Os arts. 22, 23 e 24 tratam ainda de
vedações ao médico, remetendo ainda a procedimentos realizados sem consentimento
da paciente, a procedimentos que desrespeitem a dignidade da gestante e, por fim, à
violação do direito de escolha da paciente, como se observa nos dispositivos in verbis:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu


representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 23. Tratar
o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua
dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer
pretexto. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do
direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar,
bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. (BRASIL, 2010)

E, por fim, o art. 31, do CEM, também trata da liberdade de escolha do paciente e
de seu representante legal, vedando ao médico desrespeitar o direito dos mesmos de
“decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em
caso de iminente risco de morte”, enquanto o art. 34 dispõe sobre a necessidade de o

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paciente ser informado sobre os riscos e objetivos do tratamento, remetendo novamente


ao exemplo da episiotomia, que deve ser informada à gestante para que a mesma dê o
consentimento de realização do procedimento, e também, por exemplo, a aplicação do
hormônio ocitocina para acelerar o parto, já que este procedimento aumenta de forma
abrupta as dores da contração.

O Código Civil também assegura o bem estar da gestante, uma vez que, existem
alguns dispositivos que tratam da violência contra gestantes, como, por exemplo, o dano
moral e a responsabilização civil dos profissionais da saúde. Abaixo condenação por

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conta da utilização do procedimento proibido, a conhecida manobra de Kristeller:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. AGRAVO RETIDO.


NÃO CONHECIMENTO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. MODIFICAÇÃO
DA MODALIDADE DE PARTO, DE CESÁREA PARA PARTO NORMAL
FORÇADO (À FÓRCEPS E MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DA “MANOBRA
KRISTELLER”). NASCIMENTO DE CRIANÇA COM SEQUELAS.
DISTÓCIA DE OMBRO. LESÃO DO PLEXO BRAQUIAL.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. TEORIA DO RISCO
ADMINISTRATIVO. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS. DANO
MORAL CONFIGURADO. DANO ESTÉTICO. INCLUSÃO NO
CONCEITO GERAL DE DANO MORAL. QUANTUM. OBEDIÊNCIA
AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA
PROPORCIONALIDADE. ADSTRIÇÃO. À NORMATIVA DA EFETIVA
EXTENSÃO DO DANO (CC, ART. 944). SENTENÇA MANTIDA. (TJ-DF
– APC: 20040111065442 DF 0019786-22.2004.8.07.0001, Relator:
ALFEU MACHADO, Data de Julgamento: 29/01/2014, 1ª Turma
Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 03/02/2014. Pág. 79)

Mesmo que a indenização isolada não seja a punição ideal, é uma forma de auxiliar
na reparação do dano causado a paciente gestante, o valor pecuniário jamais será o
suficiente para reparar danos irreversíveis, como por exemplo, a morte do nascituro, mas
é importante buscar algum tipo de punição ao agressor, mesmo que apenas pecuniária.

Por fim, os projetos de lei 7.633/2014, 8.219/17 e 7.867/17, em trâmite no


Congresso Nacional, também dispõem sobre as diretrizes e os princípios inerentes aos
direitos da mulher durante a gestação, pré-parto e puerpério e a erradicação da violência
obstétrica.

2.1 Sob a ótica penal

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Diante das informações conditas nesse tópico, reforça-se mais uma vez a falta de
tipificação para o crime de violência obstétrica. No entanto, é de conhecimento comum
que, na falta de legislação específica, utiliza-se muito da analogia.

Ao realizar pesquisas jurisprudenciais e de julgados dos Tribunais


de Justiça do país acerca do tema, ficou identificado que a maioria
das mulheres vítimas da Violência Obstétrica busca através do
judiciário a reparação cível fazendo referência apenas ao que diz
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respeito à violência psíquica e danos morais. Nessas ações, o


deferimento dos pedidos formulados pelas autoras culmina em
erro médico, não caracterizando ou dando importância às
violências sofridas por essas mulheres. Daí a grande necessidade
da tipificação penal para que hospitais e agentes de saúde sejam
penalizados de forma justa, e, consequentemente que todas as
mães e crianças recebam melhores cuidados nos momentos mais
importantes de suas vidas. (RODRIGUES, TEIXEIRA, 2020)

A vítima de violência obstétrica precisa sim ser amparada na área cível, precisa de
ajuda psiquiatra e psicológica, mas há necessidade de o agressor nessas situações ser
punido, uma vez que, a ausência de punição pode acarretar em mais casos de
imprudência e negligência por conta dos profissionais da saúde.

Partindo dessa premissa, vale destacar alguns casos onde o agente de saúde
deverá ser punido de acordo com as tipificações penais existentes, em crimes de violência
obstétrica. Por exemplo, no procedimento de Episiotomia o qual deve ser realizado após
a gestante ter conhecimento acerca dos benefícios e malefícios e autorizar tal
procedimento, ocorre muito da realização dessa prática sem autorização. Portanto, tal
profissional poderá e deverá ser penalizado em razão das lesões sofridas pela gestão,
conforme prevê o artigo 129 do código penal sobre a lesão corporal, e não longe disso,
há casos onde ocorre a morte da gestante ou nascituro, nessa situação respondera pelo
crime de homicídio culposo, aplicando ainda o aumento de pena conforme o
artigo 121, § 3º do Código penal. Conforme jurisprudência a seguir:

APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO. PARTO NORMAL


COM EPISIOTOMIA. ART. 121, § 3º, DO CP. INCIDÊNCIA DA
MAJORANTE DO § 4º DO MESMO DISPOSITIVO LEGAL.
(INOBSERVÂNCIA DE REGRA TÉCNICA DE PROFISSÃO). PENA QUE
NÃO MERECE REDIMENSIONAMENTO. Demonstrado que o réu
agiu com negligência, imprudência e imperícia, e que dita conduta
levou a paciente a óbito, pois, após o parto com Episiotomia,

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deixou de realizar procedimento de revisão do reto, o que


propiciou a comunicação do conteúdo fecal com o canal vaginal,
culminando com infecção generalizada, que evoluiu com a morte
da vítima, mostra-se correta a sua condenação pela prática do
delito de homicídio culposo. Aplicabilidade da causa de aumento
de pena prevista no § 4º do art. 121 do CP, por inobservância de
regra técnica de profissão. Pena definitiva de dois anos de detenção,
substituída por duas restritivas de direito, consistentes na prestação

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de serviços à comunidade e prestação pecuniária, que se mostra
adequada ao caso, não ensejando redimensionamento. APELAÇÃO
DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70053392767, Segunda Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lizete Andreis Sebben,
Julgado em 14/11/2013) (TJ-RS – ACR: 70053392767 RS, Relator:
Lizete Andreis Sebben, Data de Julgamento: 14/11/2013, Segunda
Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia
28/11/2013)

A manobra de Kristeller, banida pela OMS em 2017, também é ainda muito


utilizada por profissionais negligentes e defasados os quais devem ser responsabilizados
e penalizados conforme também os dispostos no artigo 129, em razão das lesões.

Uma curiosidade sobre as punições se refere ao aborto, tipificado como crime pelo
artigo 124, no entanto, essa tipificação se refere a conduta da gestante e não do
professional de saúde, portanto, nos crimes de violência obstétrica o agente de saúde
será penalizado pelo artigo 129 § 2, visto que a lesão gravíssima resultou no aborto,
conforme inciso V.

Destarte, é de extrema necessidade que haja punição aos profissionais


negligentes, pois a ausência da mesma aumenta ainda mais as infrações, a
responsabilização cível é importante, mas não o suficiente. Portanto, enquanto não
houver uma legislação especifica é necessário buscar auxilio criminal nas previsões que
existem atualmente, evitando a impunibilidade, não eximindo o Poder Legislativo do
Brasil da sua responsabilidade na ausência e morosidade em relação a uma legislação
punitiva e específica.

2.2 Da ótica social

Por muito tempo pouco se falava em violência obstétrica, uma vez que como já
dito anteriormente, colocaria em cheque a ética médica, no entanto, é somente com a
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informação que tabus são quebrados, por isso, a necessidade dos movimentos sociais,
do incentivo a informação e a segurança de direitos.

Segundo dados da Fundação Perseu Abramo (2013), uma a cada 4 mulheres


sofrem algum tipo de violência obstétrica, lembrando que a caracterização de tal ato não
se refere apenas a lesões física, mas também a maus tratos psicológicos.

Para prevenir a violência obstétrica, de antemão, é que a gestante tenha


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informações sobre as possibilidades e ocorrências durante o parto e leve consigo para a


maternidade uma carta de intenções, tal carta discriminará suas vontades em relação a
procedimentos mais invasivos, bem como o consentimento ou não dela para com o
parto. Outro fator importante, é que a paciente após o parto solicite o prontuário médico
dela e do recém-nascido, é uma forma de acompanhamento dos procedimentos que
foram realizados, tendo ciência de que suas vontades fora ou não respeitadas.

No que tange aos meios de denúncia, existe uma Sala de Atendimento ao Cidadão
virtual, disponível no site do Ministério Público Federal (Sala de Atendimento ao Cidadão
(mpf.mp.br)) o qual recebe denúncias, informa sobre os direitos, recebe pedidos dentre
outros serviços. Outro meio de se conseguir ajuda é através da Associação Artemis, uma
organização não governamental que visa a promoção da autonomia feminina e
erradicação da violência contra a mulher, essa organização recebe relato de mulheres
que sofreram qualquer tipo de violência, dentre as violências, a obstétrica. Após o relato,
a organização buscar mapear e elucidar uma forma de solução mais sucinta. Por fim, a
denúncia também pode ser realizada na Secretária de Saúde mais próxima, ou discando
180, 136 ou para 08007019656 da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

É de extrema necessidade que a população tenha acesso a informação, tenha


conhecimento e seja capaz de identificar tal violência, o Estado não só é responsável pela
falta de legislação, mas também pela falta de informação, falta de campanha e assistência
social pós- parto. É impossível relatar qualquer que seja o abuso ou violência sofrida
quando se desconhece o direito, acesso a informação também é um direito básica,
portanto, é necessário que haja uma conscientização maior desde o momento da
realização do pré-natal.

3.CONCLUSÃO

Atualmente no Brasil os órgãos públicos estão mais preocupados em atender a


um pedido das classes dos profissionais de saúde do que de fato combater a violência
praticada contra as mulheres no período gravídico-puerperal. Não é proibindo a
utilização do termo que vai acabar com a violência obstétrica, o tema precisa ser
amplamente evidenciado nas discussões socais, assim como, nas políticas públicas, pois

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é através do conhecimento que as práticas abusivas vão poder ser reprimidas, punidas e
quem sabe até abolidas.

O ordenamento jurídico brasileiro não é completamente omisso às práticas


violentas durante o parto, tendo em vista que, já existem leis estudais, municipais e
projeto de leis no âmbito federal visando combater a violência obstétrica.

É fato que já passou da hora do Estado como figura protetora dos cidadãos
elaborar uma legislação federal efetiva, que vise conscientizar as mulheres no período

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gravídico-puerperal sobre quais são seus direitos e como são dadas as práticas que
caracterizam a violência obstétrica, além de punir de forma rígida os profissionais da
saúde que cometerem os abusos.

A lacuna na legislação pátria tem criado um sentimento de impunidade nas


mulheres, em contra partida os profissionais da saúde têm um sentimento de proteção,
essa situação se explica, pois, são poucos os casos de violência obstétrica que são
denunciados e quando isso ocorre não existe uma lei especifica para punir os agressores,
permitindo dessa forma que os agressores sejam beneficiados apesar de causarem
tantos danos.

Para combater a violência obstétrica é necessário ir além das leis, é preciso que
haja uma conscientização das mulheres acerca dos seus diretos, a reeducação dos
profissionais de saúde e a elaboração de políticas públicas objetivando a humanização
do pré-natal, do parto e do pós-parto. Somente através de mudanças sólidas nessas
bases a violência obstétrica deixará de ser um problema para a sociedade.

REFERÊNCIAS

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hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. Tese de
Doutorado, Programa de Pósgraduação em Medicina Preventiva, Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo, SP. 2010.

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2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. Brasília, 2019.

BRASIL. Lei n. 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei n. 8.080, de 19 de setembro


de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do SUS. Brasília, DF:
Presidência da República. Disponível em: < em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2004- 2006/2005/Lei/L11108.htm > Acesso em 26 de julho de 2021.

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de 2008. Disponível em:
http://www.anvisa.gov.br/divulga/noticias/2008/040608_1_rdc36.pdf. Acesso em: 10 de
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2017. 138 p. Conteúdo: Código penal – Decreto-lei no 2.848/1940. Disponível
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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 21º ed. (aument. E atual. De
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Disponível em: <https://fpabramo.org.br/2013/03/25/violencia-no-parto-na-hora-de-
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Disponível em:
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Acesso em: 05 maio 2021.

REDE PARTO DO PRINCÍPIO. Violência Obstétrica: “Parirás com dor”. Disponível em: >
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
<.Acesso em 29/08/2021.

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responsabilidade penal e garantia de direitos fundamentais. JUSBRASIL. 2020.
Disponível em: <VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: Uma análise sob a ótica da responsabilidade
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penal e garantia de direitos fundamentais - Jus.com.br | Jus Navigandi> Acesso em 11


de novembro de 2021.

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Mínimo Existencial e a Reserva do Possível. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

SENADO FEDERAL. Projetos buscam tornar lei a humanização do


atendimento. Agência Senado. Maio de 2016, atualizado em março de 2019.
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Disponível em:

<https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/congresso-
combate- violencia-obstetrica/projetos-buscam-tornar-lei-a-humanizacao-do-
atendimento>. Acesso em 14 maio 2021.

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ACIDENTE DE TRABALHO E SEUS REFLEXOS NA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

JOÃO FRANCISCO DA SILVA:


Advogado e Mestrando em Direito
do Trabalho na PUCSP.

VALÉRIA GAURINK DIAS FUNDÃO78

(coautora)

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RESUMO: Este artigo tem por objetivo promover uma discussão sobre o acidente de
trabalho e seus reflexos na Previdência Social no Brasil. As normas jurídicas que afiançam
a incolumidade mental e física dos empregados visam o trabalho como uma atividade
segura, pois o empregador é responsável pelas medidas individuais e/ou coletivas para
proteger a saúde e segurança do obreiro. O direito previdenciário é garantidor da
dignidade da pessoa humana e, por sua relevância, foi elevado ao status de direito
humano fundamental, previsto nos artigos 6º e 201 da Constituição Federal.

Palavras-chave: Previdência Social, Acidente de Trabalho, Meio Ambiente do Trabalho,


Direito Fundamental.

ABSTRACT: This article aims to promote a discussion about the work accident and its
effects on Social Security in Brazil. The legal norms that guarantee the mental and physical
safety of employees aim at work as a safe activity, as the employer is responsible for
individual and/or collective measures to protect the health and safety of the worker.The
social security right is a guarantor of the dignity of the human person and, due to its
relevance, it was elevated to the status of a fundamental human right, provided for in
articles 6 and 201 of the Federal Constitution.

Keywords: Social Security, Work Accident, Work Environment, Fundamental Law.

SUMÁRIO: INTROCUÇÃO. 1. DEFINIÇÃO DE ACIDENTE DO TRABALHO. 2. BENEFICIÁRIOS.


3. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DO ACIDENTE DE TRABALHO. 4. RECONHECIMENTO DO
ACIDENTE DE TRABALHO. 5. ENCARGOS DO EMPREGADOR PERANTE A JUSTIÇA DO
TRABALHO. 6. PRESCRIÇÃO DOS BENEFÍCIOS ACIDENTÁRIOS. 7 ACIDENTES DO
TRABALHO E SEUS REFLEXOS NA SEARA PREVIDENCIÁRIA. a. Benefícios previdenciários
acidentários. b. Responsabilidade Acidentária. c. Consequências do infortúnio (acidente de
trabalho). 8. AÇÃO REGRESSIVA PREVIDENCIÁRIA. 9. DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

78 Mestranda em Direito pela PUCSP

79
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LABORAL ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


BIBLIOGRÁFICAS.

INTROCUÇÃO

Ano após ano, infelizmente, ocorrem milhares de acidentes que causam


incapacidade, invalidez ou morte dos trabalhadores urbanos e rurais. A título de exemplo
podemos verificar o que consta do Anuário Brasileiro de Proteção dos últimos anos79,
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onde são registrados acidentes típicos de trabalho, acidentes de trajeto e doenças do


trabalho. Sem sombra de dúvidas, muitos acidentes ocorreram por descumprimento dos
normas de medicina e segurança do trabalho.

Para fins da Lei n. 8.080/1.99080, a saúde do trabalhador é um conjunto de ações


que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos
fatores determinantes e condicionantes da saúde individual ou coletiva, com a finalidade
de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos. 81

O acidente de trabalho tem fundamento na Carta Magna de 1.988 no art. 201, I, §


10 com redação dada pela Emenda Constitucional nº 103/2.019 e nos arts. 19 a 23 da Lei
n. 8.213/1.991. Ainda nos arts. 336 a 346 do Decreto n. 3.048/99 (RPS).

As normas jurídicas que afiançam a incolumidade mental e física dos empregados


visam o trabalho como uma atividade segura, pois o empregador é responsável pelas
medidas individuais e/ou coletivas para proteger a saúde e segurança do obreiro.

A constituição brasileira reconhece tal proteção no local de trabalho (art. 7º, XXII e
XXIII da CF/1988). E, sendo constatada negligência patronal ou até mesmo transgressão a
obrigação segurança e higiene dos trabalhadores, restará configurada contravenção penal,
cuja pena pode ser multa, cabendo ao Ministérios do Trabalho e da Previdência Social
desempenharem a fiscalização (art. 19, §§ 1º, 2º e 4° Lei n. 8.213/1991).

A estatização do seguro de acidentes do trabalho até os dias atuais é público e


prevê a cobertura nos casos de doença, invalidez e morte, sendo a responsabilidade do

79 https://protecao.com.br/category/anuario-de-protecao/, acesso em 20/07/2022


80 Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
81 Marisa Ferreira dos santos, Direito Previdenciário Esquematizado; Coord. Pedro Lenza, Saraiva, 6ª edição,
2016, São Paulo. P. 115

80
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Estado objetiva82. Em 1.919 foi aprovada norma de proteção contra os acidentes de


trabalho, trata-se do Decreto nº 3.724, de 15 de janeiro de 1.919.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pagava os benefícios previdenciários


oriundos dos acidentes de trabalho, por outro lado as empresas saldam a contribuição do
seguro de acidente do trabalho (SAT). As seguradoras privadas, à época não tinham
qualquer participação nessa proteção.

A Emenda Constitucional nº 20/1.998, alterou isso, já que o § 10, do art. 201, da

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CF/1.988, concedeu autorização, agora constitucional, para a cobertura do risco de
acidente do trabalho ser concretizada de forma concomitante entre o Setor público (INSS)
e o setor privado.

Já a EC nº 103/2.019, que tratou da Reforma da Previdência Social, deu nova


redação ao art. 201, § 10, da CF/1.988, que agora prevê que uma lei complementar de
iniciativa do Poder Executivo Federal poderá disciplinar a cobertura concomitante entre o
INSS e a iniciativa privada para todos os benefícios não delineados, abrangendo além dos
benefícios por incapacidade de trabalho, a pensão por morte.

Agora, é possível a cobertura partilhada entre os setores público e privado de


todos os benefícios não programados, inclusive os benefícios acidentários.

No âmbito do Regime Geral o tema acidente de trabalho está nos arts. 19 a 23 do


Lei n. 8.213/1991. Segundo referida norma a empresa é responsável pela adoção e uso de
medidas individuais e coletivas de proteção e segurança da saúde do trabalhador.83

Na hipótese de haver negligência e/ou infração no que pertine ao dever de


segurança e higiene do trabalho poderá constituir contravenção penal, cuja pena será de
multa, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, que deve
exercer a fiscalização (art. 19, §§ 1º, 2º e 4º da Lei n. 8.213/1991).

1. DEFINIÇÃO DE ACIDENTE DO TRABALHO

Os benefícios concedidos pela Previdência Social podem ter origem em alguma


enfermidade incapacitante ou podem ser benefícios acidentários, com origem em acidente
de trabalho típico ou mesmo em doença equiparada a acidente de trabalho.

82 Frederico Amado, Direito Previdenciário, JusPudivm, 9ª Edição, 2018, salvador. P. 304


83 Frederico Amado, Direito Previdenciário, JusPudivm, 9ª Edição, 2018, salvador. P. 305

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Constatada por perícia médica que a causa para a concessão do benefício tenha
ligação com trabalho exercido pelo segurado, o benefício a ser deferido/concedido será
por acidente de trabalho.

Se, por outro lado, a causa do benefício for uma doença incapacitante sem vínculo
com o trabalho realizado a concessão do benefício será previdenciário e não acidentário.

Desta forma a diferença entre um benefício e outro é a causa geradora, que irá
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definir a sua natureza (previdenciário ou acidentário).

Em resumo o benefício previdenciário decorre necessariamente de motivos


acidentários, absolutamente vinculado a atividade laboral do trabalhador segurado, em
assim sendo, é obrigatório o nexo de causalidade entre a incapacidade e o trabalho.

Diz o caput do art. 18 do Lei n. 8.213/1.991:

“O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes


prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente
do trabalho, expressas em benefícios e serviços."

Apesar das espécies de benefícios serem os mesmos, juridicamente há outras


implicações jurídicas que diferenciam os benefícios previdenciário dos benefícios
acidentários.

Não podemos nos esquecer da Lei Complementar n. 150/2.015 que inovou,


garantindo o benefício acidentário também ao empregado doméstico. Dá mesma forma
criou a contribuição SAT que deve ser recolhida pelo empregador doméstico.

As empresas, por imposição da Lei são obrigadas a prevenir que os acidentes de


trabalho venham a ocorrer, sendo inclusive imperativa a criação da Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes (CIPA), em conformidade com instruções expedidas pelo
Ministério do Trabalho, e nos moldes estabelecidos pela CLT em seu art. 163.

A função da CIPA é educar e orientar a todos os empregados; exigir dos


empregadores o respeito às normas de segurança e medicina do trabalho; promover
campanhas educativas; apurar as causas e prevenir que os acidentes não se repitam;
fiscalizar a entrega correta e gratuita dos EPIs, assim como velar para que os empregados
façam uso correto do equipamento individual, a teor do que determina a CLT em seu art.
158, parágrafo único, letra “b”.84

84 Curso de Direito do Trabalho, 12ª edição, São Paulo, Saraiva, 2020, p. 768.

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Sandro Nahmias Melo afirma que os membros da CIPA possuem garantia


constitucional de estabilidade (art. 10, II alínea “a” do ADCT), entretanto tais membros
possuem pouco ou nenhum poder, limitam-se a opinar, apresentar sugestões e solicitações
à direção do estabelecimento. E é grande o medo de represálias contra os chamados
“cipeiros”, o que inibe e muito sua atuação, já que a citada garantia é provisória.85

Homero Batista afirma que os EPIs inserem-se no contexto das medidas de


prevenção de segurança e medicina do Trabalho, já que são referidos na CLT e em tratados
internacionais.86

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Podemos extrair do art. 19 do Lei n. 8.213/1.991, o conceito de acidente do
trabalho:

“Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho


a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo
exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do
art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação
funcional que cause a morte ou a perda ou redução,
permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.

A lei descreve esse conceito tecnicamente. O fato pode ser decorrente do trabalho,
podendo ser um acidente típico, uma doença ocupacional ou uma situação equiparada ao
acidente de trabalho, assim considerada pela legislação.

Legalmente é considerado acidente de trabalho o que ocorre pelo exercício do


trabalho a serviço da empresa ou do empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho
dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a
morte, perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.87

Pelo conceito acima, podemos constatar os seguintes requisitos que caracterizam


o acidente típico de trabalho:

- Acontecimento ocorrido durante a execução do trabalho e no desempenho


do serviço da empresa, nas atividades de doméstico, campesina ou pesqueira
artesanal individualmente, realizada por segurado especial;

85 Meio Ambiente do Trabalho: Direito Fundamental, Editora LTr, São Paulo, 2001. p. 100.
86 Direito do Trabalho Aplicado – Saúde do trabalho e profissões regulamentadas, Revista dos Tribunais,
São Paulo, 2021.p. 85.
87 Frederico Amado, Direito Previdenciário, JusPudivm, 9ª Edição, 2018, salvador. P. 305

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- Decorrente de lesão corporal, funcional ou psíquica;

- Evento morte do empregado, ou ainda redução ou perda capacidade de


trabalho temporária ou definitiva.

Os acidentes típicos são os que decorrem de um evento traumático, que para ser
caracterizado, necessita ser demonstrado o nexo de causalidade entre o acidente e o
trabalho desenvolvido pelo empregado.
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A legislação pátria considera ainda como sendo acidente de trabalho, por


equiparação, as doenças ocupacionais, são elas:

- enfermidades profissionais ou tecnopatias ou ergopatias (art. 20, I, do Lei n.


8.213/1991);

- enfermidades do trabalho ou mesopatias (art. 20, II, do Lei n. 8.213/1991).

O rol de enfermidades ocupacionais que consta no Anexo II do Decreto n. 3.048/99


é meramente exemplificativo, já que o § 2º, do art. 20, do Lei n. 8.213/1.991, diz que é
possível incluir doenças não mencionadas em referido rol.

As enfermidades profissionais são aquelas doenças características, típicas ao


exercício de algumas profissões. A ligação entre a profissão e a doença dispensam a prova
do nexo de causalidade. A título de exemplo, inclusive bem clássico, pode ser citada a
silicose 88, que é uma doença típica de pessoas que trabalham com mineração, por
respirarem a sílica, e é uma doença pulmonar causada pela inalação contínua e constante
da sílica cristalina. Ao longo do tempo, a sílica se deposita nos pulmões e enrijece as
estruturas ali presentes, que precisam ser flexíveis facilitando a entrada e saída de ar.

De outra banda, as enfermidades do trabalho são aquelas doenças que não são
típicas a certos trabalhos, contudo são doenças que se manifestam em razão do ofício
desempenhado ou da forma como o labor é exercido. Não se podendo presumir o nexo
de causal, logo, é exigida comprovação de que a doença é oriunda do trabalho
desenvolvido. Exemplo bem comum trata-se da perda auditiva.

A lei também de forma expressa afasta determinadas doenças deixando claro que
elas não são doenças ocupacionais, segundo o art. 20, § 1º, do Lei n. 8.213/1.991, vejamos:

§1º Não são consideradas como doença do trabalho:

88 Fonte: https://www.rededorsaoluiz.com.br/doencas/silicose, acesso em 20/07/2022

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a) a doença degenerativa;

b) a inerente a grupo etário;

c) que não produza incapacidade laborativa;

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região


em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de
exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

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No caso das enfermidades degenerativas, onde, mediante perícia médica do INSS,
se ficar comprovado que a doença apresenta nexo de causalidade com o trabalho ou com
a função desempenhado pelo empregado, ela será considerada doença do trabalho. A
L.E.R. (Lesão por Esforço Repetitivo) é o exemplo bem comum.

O lapso de tempo para a definição do acidente de trabalho nas enfermidades


ocupacionais consta no art. 23 do Lei n. 8.213/1.991. Referida norma apresenta três
hipóteses, servindo de marco do acidente de trabalho o que acontecer primeiro, vejamos:

- O dia do início da incapacidade laborativa;

- O dia da segregação compulsória;

- O dia em que for realizado o diagnóstico.

O legislador fixou que alguns acontecimentos se equiparam a acidente do


trabalho. Para estes casos considerados equiparados, o exercício da atividade do
trabalhador possui causalidade indireta (concausa), competindo com outras situações
alheias ao labor do empregado. Em rol meramente exemplificativo, o art. 21 do Lei n.
8.213/1.991 trata das circunstâncias em que existem concausas na geração da
incapacidade.

Vale destacar que nos períodos destinados a alimentação, descanso ou para


necessidades fisiológicas, estando no lugar de trabalho, o obreiro estará no exercício de
labor, para fins de acidente do trabalho. Também será considerado como acidente de
trabalho os fatos sofridos pelo empregado por caso fortuito ou força maior na localidade
e horário de trabalho.

2. BENEFICIÁRIOS

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Apenas os segurados, com previsão de contribuição previdenciária adicional; seja


do segurado ou da empresa para custear as prestações acidentárias, é que tem direito aos
benefícios decorrentes de acidente de trabalho.

Logo, os segurados que podem ser beneficiários de acidente de trabalho são o


empregado, empregado doméstico, trabalhador avulso, o segurado especial e seus
dependentes. Evidentemente estão excluídos dessa possibilidade o contribuinte individual
e o médico-residente.89
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Em decorrência de causa acidentária são pagos pelo INSS os seguintes benefícios:

- Pensão por morte por acidente do trabalho;

- Auxílio-acidente por acidente de trabalho;

- Auxílio-doença por acidente de trabalho; e

- Aposentadoria por invalidez por acidente de trabalho.

É perfeitamente admissível a reabilitação do empregado, um serviço do INSS que


tem o objetivo de oferecer aos segurados parcialmente incapacitados para o trabalho, por
motivo de doença ou acidente, os meios de readaptação profissional para o seu retorno
ao mercado de trabalho.

Durante todo o processo de reabilitação, o benefício acidentário que antecedeu a


reabilitação não pode ser cessado, o que ocorrerá ao final do processo de reabilitação, com
o retorno do segurado à atividade laboral.

José Affonso Dallegrave Neto afirma que a Reabilitação Profissional é um serviço


de reeducação e reabilitação profissional, visando auxiliar o segurado acidentado a ser
reinserido no mercado de trabalho, nos exatos termos preconizados pelo artigo 89 da Lei
n. 8.213/91.90

Os demais benefícios incapacitantes são incompatíveis com a causa acidentária,


sendo assim, aposentadorias programadas, salário-maternidade, salário-família e auxílio-
reclusão são incompatíveis com evento acidente do trabalho, logo, não são pagos pelo
INSS.

3. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DO ACIDENTE DE TRABALHO

89 https://d24kgseos9bn1o.cloudfront.net/editorajuspodivm/arquivos/41_site.pdf, aceso em 21/07/2022


90 Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho, Editora Ltr, São Paulo, 2005, p. 168.

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São cinco as principais implicações jurídicas do acidente de trabalho:

1. estabilidade provisória no emprego no mínimo de 12 meses,


cujo prazo inicial é a alta médica ao fim do auxílio doença acidentário (art. 118 do Lei n.
8.213/1.991);

2. possibilidade de elevação do fator acidentário de prevenção –


FAP que pode ser de até 100% da contribuição que incidirá sobre as remunerações dos
segurados empregados, logo, a alíquota da contribuição previdenciária do empregador.

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(art. ,22, II, da Lei n. 8.212/1.991 e art. 10 da Lei n. 10.666/2003);

3. competência da Justiça comum estadual nas ações entre o INSS


e o segurado vítima de acidente de trabalho (art. 109, I, da CF/1988; Súmula nº 501 do
Supremo Tribunal Federal - STF; Súmula nº 15 do Superior Tribunal de Justiça - STJ), nos
casos de demanda envolvendo acidente de trabalho, mesmo sendo INSS uma Autarquia
Federal, o que em tese deveria atrair a competência da Justiça Federal, nas causas de
origem acidentário a competência é da justiça comum estadual;

4. inexistência de carência para a concessão de auxílio-doença e


aposentadoria por invalidez decorrente de acidente de trabalho (art. 26, II, do Lei n.
8.213/1991);

5. obrigatoriedade do empregador depositar o valor referente ao


FGTS na conta vinculada do empregado vitimado, mesmo que ele esteja afastado do
trabalho e recebendo benefício do INSS, conforme o art. 15, § 5º, da Lei n. 8.036/1990.

4. RECONHECIMENTO DO ACIDENTE DE TRABALHO

Nos casos de segurado empregado, empregado doméstico e trabalhador avulso,


é obrigação do empregador, expedir a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), o que
deverá ocorrer até o 1º dia útil seguinte ao do acidente, no caso de ter ocorrido a morte
do empregado, o comunicado deve ser feito imediatamente para a autoridade
competente, se não for feito o comunicado o empregador fica sujeito a aplicação de multa
administrativa.

A CAT necessita ser preenchida em 04 vias a saber:

- Uma para ser levada ao INSS;

- Uma para o empregador;

- Uma para o segurado vítima do acidente ou aos seus dependentes;

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- Uma para ser entregue ao sindicato da categoria vinculada a empresa.

Para os casos de descumprimento ou ser expedida a CAT tardiamente, existe a


possibilidade de aplicação de multa administrativa.

Havendo recusa do empregador em emitir o documento a lei (art. 22, § 2º, do Lei
n. 8.213/1991) determina que outras pessoas podem de forma subsidiaria emitir a CAT.
São eles:
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- O acidentado ou seus, dependentes;

- O sindicato da categoria;

- O médico que socorreu ou assessorou ao trabalhador vitimado;

- Qualquer autoridade pública que tenha tido conhecimento do evento


acidente de trabalho.

Vale destacar que qualquer comunicação subsidiária não inibe a aplicação da multa
ao empregador omisso, já que deixou de emitir o documento, logo, está caracterizada a
infração, já que o comunicado de acidente do trabalho se trata de um dever do
empregador.

5. ENCARGOS DO EMPREGADOR PERANTE A JUSTIÇA DO TRABALHO

Independente de dolo ou culpa do empregador pelo evento acidentário que


vitimou o empegado, a responsabilidade é objetiva, e a demanda deverá ser proposta
perante a Justiça do Trabalho pelo próprio empregado vitimado, ou, em caso de morte,
pela viúva ou por seus dependentes.

Em sendo julgada procedente a ação trabalhista, o empregador poderá ser


condenado ao pagamento de danos morais, danos materiais e ainda ser condenado ao
pagamento de pensão vitalícia pela redução da capacidade laborativa do empregado
vitimado.

Suely Ester Gitelman e Murilo Caldeira Germiniani afirmam que a pessoa jurídica
não se confunde com a pessoa dos seus sócios, já que a sociedade possui autonomia
patrimonial, entretanto, no Brasil existe a possibilidade de relativizar a personalidade
Jurídica da empresa, como consequência disto, os bens dos sócios responderão pelas

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obrigações da empresa, assim que efetivada a desconsideração da personalidade jurídica


da companhia.91

Apesar de entendermos que a responsabilidade é objetiva, Maurício Godinho


Delgado afirma que são necessários três requisitos essenciais para a responsabilização do
empregador: o dano; o nexo de causalidade e a culpa do empregador.92

No que pertine ao dano material, é necessária sua demonstração, ou seja, as perdas


materiais sofridas, inclusive podem ser mensurados e estimados os danos emergentes e os

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lucros cessantes e ainda o dano à imagem, vinculando-os as despesas já realizadas ou às
futuras, decorrentes da lesão sofrida, tudo vinculado à perda patrimonial efetiva ou até
mesmo estimada como consequência da redução da capacidade laborativa.

O mesmo não ocorre com o dano moral, haja vista que não se pode exigir prova
de tal dano, mesmo porque ele é auto evidente, insuscetível de prova, mas por óbvio o
fato causador deve estar devidamente provado. O dano moral é presumido o fato não.

Alexandre Agra Belmonte discorre que o dano moral pode se referir aos efeitos
valorativos da personalidade, aos atributos físicos da personalidade, aos atributos
psíquicos ou intelectuais da personalidade e aos atributos culturais de certa comunidade
ou integridade cultural coletiva.93

No que pertine ao nexo causal deve haver evidência fática entre a conduta do
empregador e o dano sofrido pelo obreiro. Vale destacar que em caso de doenças
profissionais e ocupacionais é possível verificar outras causas, fora da alçada do
empregador.

Mauricio Godinho Delgado chama isso de multicausalidade ou concausalidade, e


afirma ainda referido autor que tais peculiaridades não eliminam a presença do nexo
causal, se constatado que o próprio ambiente de tenha contribuído para o malefício, e se
constatada a concausa, é fato relevante para atenuar o valor de eventual indenização.94

Ocorrido o acidente de trabalho, a culpa do empregador é presumida, se contatada


a existência dos requisitos anteriores, ou seja, o dano e o nexo causal, eis que o
empregador tem a direção e a dinâmica do ambiente de trabalho, sendo o responsável

91 Revista de Direito do Trabalho e Seguridade Social – RDT, ano 48 – 223 – Maio/junho de 2022, Revista
dos Tribunais, São Paulo, 2022. p. 126/127.
92 Curso de Direito do Trabalho, 15ª edição, Ltr, São Paulo, 2016. P. 691.
93 Danos Morais no Direito do Trabalho, 3ª Edição, Recife, Editora Renovar, 2007. p. 103.
94 Curso de Direito do Trabalho, 15ª edição, Ltr, São Paulo, 2016. P. 693

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direto pela prestação de serviço do empregado em seu estabelecimento, por óbvio,


ocorrido o acidente pressupõe a culpa do patrão, vez que o obreiro estava sob suas ordens.

E finalmente é bom destacar que, se a empresa comprovar que o fato ocorreu por
culpa exclusiva do trabalhador, no que se refere ao surgimento da lesão ou do acidente,
sendo exclusiva do obreiro, fica afastada a responsabilidade do empregador, mas se a
culpa for concorrente isso não ocorrerá, não excluirá a responsabilidade patronal, mas
poderá servir como fator atenuante, observadas as circunstâncias do caso concreto, e
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atenuará o valor da eventual indenização a ser paga a título de reparação.

6. PRESCRIÇÃO DOS BENEFÍCIOS ACIDENTÁRIOS

O art. 104, da Lei n. 8.213/1.991, determina que as ações referentes à prestação


por acidente do trabalho prescrevem em cinco anos contados da seguinte data:

- Do acidente, quando dele resultar a morte ou a incapacidade temporária;

- Em que for reconhecida pela Previdência Social, a incapacidade permanente


ou agravamento das sequelas do acidente.

A jurisprudência do STJ entende que, em se tratando de benefício previdenciário,


ocorre a prescrição progressiva, onde apenas as parcelas vencidas antes de cinco anos
anteriores à distribuição da demanda ou do pedido administrativo do requerimento do
benefício protocolado junto ao INSS restarão alcançados pela prescrição. Segundo o STJ:

“Nas ações ajuizadas com o objetivo de obter benefício


previdenciário, relação de trato sucessivo e de natureza
alimentar, a prescrição incide apenas sobre as prestações
vencidas antes do quinquênio anterior à propositura da ação,
não ocorrendo a chamada prescrição do fundo de direito, nos
termos da súmula 85/STJ”. (STJ, REsp nº 1503292/PB, publicado
em 31.03.2015)

7. ACIDENTES DO TRABALHO E SEUS REFLEXOS NA SEARA PREVIDENCIÁRIA

Muito embora, no Brasil, a Segurança e Saúde no Trabalho (SST) tenha evoluído


bastante nas últimas três décadas, com a existência de leis e de profissionais que
asseguram a saúde e segurança dos trabalhadores, os índices de acidentes do trabalho não
têm reduzido de forma satisfatória.

O marco tornou-se oficial em 1.972, depois de regulamentada a formação técnica


em Segurança e Medicina do Trabalho. Em 27/7/1.972, foram publicadas as portarias de nº
3.236, que instituiu o Plano Nacional de Valorização do Trabalhador, e a de nº 3.237, que

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tornou obrigatórios os serviços de medicina do trabalho e engenharia de segurança do


trabalho em todas as empresas com um ou mais trabalhadores.

Vale enfatizar que as Normas Regulamentadoras, relativas à segurança e medicina


do trabalho, são de observância obrigatória pelas empresas privadas e públicas, e pelos
órgãos públicos da administração direta e indireta, bem como pelos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário, que possuam empregados regidos pela Consolidação das Leis do
Trabalho – CLT

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O aumento dos acidentes de trabalho acontece por vários motivos, e englobam os
Empregados, Empregadores e Governo Federal.

Os operários, por desconhecerem ou até mesmo por falta de consciência dos riscos
ocupacionais a que ficam expostos no exercício da sua profissão. Noutro compasso, temos
as empresas, que estão adormecidas, desconhecem as consequências jurídicas que devem
arcar pelo simples fato de não propiciarem a seus empregados ambientes de trabalho
sadios e seguros.

Vale ressaltar que as empresas estão sujeitas à fiscalização trabalhista de segurança


e saúde no trabalho, consequentemente, além de serem notificadas, autuadas/multadas, e
até terem suas atividades paralisadas, por descumprirem a legislação pertinente à
segurança e saúde no trabalho, também, terão um passivo trabalhista, pois têm crescido
significativamente as ações de natureza acidententárias por Danos Materiais e Morais,
englobando as ações de doenças ocupacionais que são equiparadas a acidente de
trabalho. E, ainda, essas empresas podem e devem ser surpreendidas com ação regressiva
em seu desfavor, objetivando todo valor repassado para o Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) em favor dos segurados acidentados ou a seus dependentes.

O Governo, através do Ministério do Trabalho e Emprego precisa elaborar


estrategicamente um conjunto de medidas no intuito de reduzir os Acidentes de Trabalho
no Brasil, contribuindo para a redução dos danos aos trabalhadores, às empresas e ao
Orçamento da União

Vale destacar que o acidente de trabalho, além de acarretar sérias consequências


no contrato de emprego, também gera consequências negativas no orçamento da
Previdência Social, com os gastos em benefícios previdenciários.

a).Benefícios previdenciários acidentários

Convém ressaltar que “A ideia de previdência está intimamente ligada à noção de


risco social. Tal expressão pode ser examinada a partir de duas perspectivas: uma, objetiva,

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que qualifica os riscos como sociais pelo fato de atingirem qualquer indivíduo e serem
inerentes à vida em sociedade; e outra, subjetiva, por compreender riscos cuja prevenção
somente a coletividade é apta a proporcionar e cujos danos somente a ela incumbe reparar,
posto que os indivíduos, isoladamente considerados, carecem de meios técnicos ou
econômicos para lhes fazer frente.”95

Bem frisou o doutrinador que “com o advento da Lei 5.316/67, a proteção


acidentária saiu da esfera trabalhista e adentrou à previdência social, operando-se a
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estatização do seguro de acidentes de trabalho, onde se mantém até hoje, na forma no


artigo 201, inciso I, da CRFB, que prevê a cobertura nos casos de doença, invalidez e
morte”.96

“O Estado assumia, então o monopólio do seguro em questão que, desde a criação


fora gerido pelas empresas privadas e, mais adiante, também pelas carteiras específicas
das autarquias de previdência social’’.97

Por fim, o sistema de seguro de acidente de trabalho encontra-se regulamentado


pela Lei n. 8.213 de 24 de julho de 1991 – Plano de Benefícios da Previdência Social,

Lembrando, que “O direito atual segue a tendência de considerar a proteção social


pelo efeito danoso provocado na pessoa do segurado, sem específica atenção para a causa
relacionada com o fato”.98

Convém relatar que “a proteção previdenciária não é plena, pois tarifada pela Lei
de Benefícios. Não cobre, por exemplo, lucros cessantes e danos emergentes”. 99

“A cargo do empregador ficam as demais reparações/compensações de natureza


estritamente civilista, como os gastos com tratamentos médicos, próteses, danos materiais,
morais e/ ou estéticos e pela perda de uma chance”. ( MELO, 2011, p. 54)

Para a proteção previdenciária, não há necessidade de existência de dolo ou culpa


do empregador, sendo devido o benefício por incapacidade inclusive nos casos de culpa

95 Direito Previdenciário Acidentário: Diogo Lopes Vilela Berbel, e Wagner Balera. Algumas definições – 1.
Ed. – São Paulo: LUJUR Editora, 2022, p. 41
96 Curso De Direito E Processo Previdenciário. Frederico Amado, 12. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2020, p. 405
97 Direito Previdenciário Acidentário: Diogo Lopes Vilela Berbel, e Wagner Balera. Algumas definições – 1.
Ed. – São Paulo: LUJUR Editora, 2022, p. 51
98 Ibidem, p. 55
99 Direito Previdenciário, Lazzari Castro, 2. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021, p. 273

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da vítima. Impõe-se que haja, sim, nexo causal entre o acidente ou a doença e a lesão ou
a morte.”100

Lembrando que o benefício previdenciário é devido até mesmo nos casos de culpa
da vítima, tendo em vista que “O sistema brasileiro adota a técnica do risco-causa. O risco-
causa é o conceito adotado pelo seguro social. Diferentemente do risco-previsão, do
seguro tradicional, que compreende o risco como previsão de cobertura, o risco-causa é
baseado na hipótese de incidência. Nele, o sinistro ocorre pela verificação e concretização
do risco, que, consequentemente, provoca a subsunção do fato ao modelo legal”.101

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A Lei n. 8.213/1.991, por sua vez garante aos empregados/beneficiários-segurados
os seguintes benefícios: Auxílio por incapacidade temporária (auxílio doença);
Aposentadoria por incapacidade permanente (aposentadoria por invalidez), pensão por
morte.

Ressaltando, que salvo em relação à pensão por morte, o auxilio por incapacidade
temporária e aposentadoria por incapacidade permanente são transitórios, ou seja, a
qualquer momento poderá ser cessado o benefício, desde que cessada a incapacidade
para o trabalho, sendo oportuno afirmar que o empregado/segurado deverá retornar ao
posto do trabalho, nesse caso o contrato de trabalho deixa de ser considerado suspenso.

b).Responsabilidade Acidentária

“O art. 121 da Lei n. 8.213/1.991 bem captou esse princípio, ao estabelecer: O


Pagamento, pela Previdência Social, das prestações por acidente do trabalho não exclui a
responsabilidade civil da empresa ou de outrem. Observe-se que foi mencionada a
responsabilidade civil genericamente, o que permite concluir que todas as espécies estão
contempladas”.102

Vale ressaltar que “no caso da reparação civil, pode o empregado obter
indenização quando a empresa, por seus prepostos, tenha incorrido em conduta dolosa
ou culposa que tenha causado o infortúnio (ou quando seja o caso de responsabilização
objetiva), cabendo ao empregador provar a inexistência de dolo ou culpa”. 103

100 Ibidem, p. 274


101 Direito Previdenciário Acidentário: Diogo Lopes Vilela Berbel, e Wagner Balera. Algumas definições – 1.
Ed. – São Paulo: LUJUR Editora, 2022, p. 57
102 Sebastião Geraldo de Oliveira, Indenizações por Acidente do Trabalho Ou Doença Ocupacional, 9ª Edição
São Paulo, LTr, 2016, p. 125.
103 Direito Previdenciário, Lazzari Castro, 2. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021, p. 274

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O artigo 7º, XXVIII, da CRFB estabelece, como direito dos trabalhadores urbanos e
rurais, o “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a
indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.

Pela regra vigente existem três alíquotas básicas para o financiamento do Seguro
de Acidentes de Trabalho (SAT), também conhecido por Risco Ambiental do Trabalho
(RAT), que incidem sobre o total da remuneração paga ou creditada, a qualquer título, aos
segurados empregados e trabalhadores avulsos, sendo elas as seguintes (Lei n. 8.212/91,
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art. 22, II):

a) 1% para atividades de risco leve;

b) 2% para atividades de risco médio;

c) 3% para atividades de risco grave;

Lembrando que o SAT “destina-se, exclusivamente, ao financiamento dos


benefícios concedidos pela Previdência Social para trabalhadores que são acometidos de
acidente de trabalho e que as alíquotas previstas na legislação (1%, 2% ou 3%) são
distribuídas conforme índices médios de cada categoria econômica, conhecidos pelo
Ministério da Previdência Social, mas isso não impede que determinada empresa invista na
melhoria de seu ambiente e que, reduzindo a gravidade do risco, tenha também reduzida
alíquota básica destinada a esse seguro. A ideia é muito mais ampla que a mera
arrecadação de valores”. 104

“O Sistema de Seguridade Social se traduz na ideia de seguros privados, ou seja, a


medida de contribuição ao sistema é diretamente proporcional ao acontecimento do
evento danoso. Portanto, aquele contribuinte que gerar maior probabilidade de causar o
risco social, dever verter contribuições mais elevadas aos cofres da Seguridade Social.” 105

Vale frisar que o INSS somente concede benefícios com código de acidente de
trabalho aos segurados que possuem o pagamento da contribuição SAT em seu favor:
empregado, empregado doméstico (este após a LC 150/2015), trabalhador avulso e
segurado especial.

104 Cláudia Salles Vilela Vianna. Acidente do Trabalho: Abordagem Completa e atualizada. 2. Ed. – São
Paulo: LTr, 2017, p. 197
105 Direito Previdenciário Acidentário: Diogo Lopes Vilela Berbel, e Wagner Balera. Algumas definições – 1.
Ed. – São Paulo: LUJUR Editora, 2022, 92

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Logo, o contribuinte individual, quer autônomo, quer prestando serviços à pessoa


jurídica, não terá deferido pelo INSS benefício por acidente de trabalho, e sim benefício
comum, o mesmo ocorrendo com o segurado facultativo, que sequer trabalha.106

Assim, a Lei 8.212/91, ao instituir alíquota mensal variável sobre a folha de


pagamento, entre 1% a 3%, de acordo com o grau de risco, sugere que a responsabilidade
inicial, em virtudes dos danos causados por acidente do trabalho, seja do empregador.

c). Consequências do infortúnio (acidente de trabalho)

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


O empregado e família sofrem de imediato os maiores prejuízos. O Obreiro pode
ficar incapacitado de forma parcial ou total, temporária ou permanente para o trabalho.

O acidente pode ocasionar outras sequelas além das físicas, pode acarretar
problemas de ordens psicológicas e morais.

E ainda, o acidente pode resultar em morte do empregado, deixando órfãos e


viúvas, quando não chega a esse extremo, a família passa viver com valores inferiores ao
de outrora quando o trabalhador estava em gozo de plena saúde.

Já em relação as empresas além de perderem grandes somas em espécies também


pedem a credibilidade perante a sociedade.

A empresa poderá ser responsabilizada civilmente e criminalmente pelo dano


causado, e, ainda, poderá sofrer uma ação regressiva na forma do artigo 120 da Lei n.
8.213/91.

Frisando que a função social da empresa consiste em um princípio importante para


o devido funcionamento da ordem econômica constitucional, além de contemplar diversas
esferas da sociedade, como o meio ambiente, a propriedade privada, o direito dos(as)
trabalhadores(as), entre outros.

Lembrando, que o Estado e a Sociedade também acabam tendo grandes perdas


com os acidentes de trabalho.

Cada acidente de trabalho ocorrido nas empresas atinge todo o sistema produtivo,
afetando diretamente o Produto Interno Bruto (PIB) do país.

106 Curso De Direito E Processo Previdenciário. Frederico Amado, 12. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2020, p. 420

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Os custos sociais aumentam a cada acidente de trabalho, considerando os gastos


com benefícios previdenciários e ainda, gera o aumento da população inativa,
empobrecimento e queda do poder aquisitivo.

8. AÇÃO REGRESSIVA PREVIDENCIÁRIA

De acordo com o artigo 120, da Lei n. 8.213/91 em caso de acidente de trabalho


causado por negligência do responsável pelo cumprimento das normas de segurança e
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saúde no trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva dos segurados, a


Previdência Social ajuizará ação regressiva contra os responsáveis, não se eximindo o
empregador da sua responsabilidade civil pelo fato de ter a Previdência pagado prestações
decorrentes da incapacidade gerada pelo acidente de trabalho.

O direito de regresso, está previsto de forma expressa nos arts. 120 e 121 da Lei n.
8.213/91 (dispõe sobre os planos e Benefícios da Previdência Social e outras providências),
eis os dispositivos:

“Art. 120. Nos casos de negligência quanto às normas padrão de


segurança e higiene quanto às normas padrão de segurança e
higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a
Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.

Art. 121. O pagamento, pela Previdência Social, das prestações por


acidente de trabalho não exclui a responsabilidade civil da empresa
ou de outrem”

Frisa o doutrinador Frederico Amado, “os acidentes de trabalho e eventos


equiparados ocorridos por culpa do empregador em não seguir as normas vigentes sobre
a proteção do trabalhador gerarão a responsabilidade desde em ressarcir a Previdência
Social o valor que for gasto no pagamento dos benefícios acidentários, até que ocorra a
sua cessação.”107

Como se sabe, as empresas têm a responsabilidade de cumprir com os ditames da


lei em sede de prevenção de acidente de trabalho. A própria Lei n. 8.213/91 reitera a
determinação.

Art. 19 .(...)

107 Curso De Direito E Processo Previdenciário. 12. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p.
422

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Parágrafo 1º. A empresa é responsável pela adoção e uso das


medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do
trabalhador.

A Constituição Federal de 1988, garante a proteção e segurança quando a


acidentes de trabalho:

Art. 7º . São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de


outros que visem a melhoria de sua condição social:

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XXVIII – Seguro Contra acidentes de trabalho, a cargo do
empregador, sem excluir a indenização a que este era obrigado,
quando incorrer em dolo ou culpa.

Lembrando que a cada ano, infelizmente, ocorrem milhares de acidentes que


causam incapacidade, invalidez ou morte dos trabalhadores urbanos e rurais. Muitos
desses acidentes estão ligados à ausência de cumprimento de legislação.

Portanto, a ação regressiva contra o empregador ou ex-empregador é ajuizada


para que seja restituído os valores despendidos com o benefício previdenciário. O caráter
desta é punitivo e pedagógico, visando a criar uma cultura de efetivação de proteção no
ambiente laboral.

O professor Miguel frisa que “A ação regressiva tem natureza preventiva. Num
primeiro momento, visa a proteção do trabalhador contra os acidentes do trabalho, com a
previsão de um mecanismo capaz de forçar o cumprimento das normas-padrão de
segurança e higiene do trabalho, e em um segundo momento, o ressarcimento dos valores
pagos a título de benefícios e serviços acidentários que oneraram os cofres públicos, nos
casos em que estes eventos poderiam ter sido evitados, se as medidas preventivas e
fiscalizatórias tivessem sido adotadas pelo empregador.”108

Convém relatar que “a ocorrência dessas ações tem sido cada vez mais frequente,
e das sentenças emitidas já se podem colher elementos suficientes para o estudo do direito
regressivo da Previdência contra o empregador desidioso no que diz respeito à proteção
à integridade física do trabalhador”.109

108 A ação regressiva acidentária do trabalho como instrumento de efetivação da proteção do meio
ambiente laboral. Revista do advogado – Direito Previdenciário, São Paulo, n. 149, p. (30-36), março de 2021
109 Lazzari Castro, Direito Previdenciário, 2. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021, p. 277

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A fim de evitar uma futura ação regressiva, o empregador deve seguir a legislação
trabalhista bem como as normas regulamentadores que se aplicam ao campo. Além, é
claro, de proporcionar equipamentos de segurança individual e coletivos, bem como sua
fiscalização, capacitação periódica, equipamentos de segurança individual e coletivos,
aperfeiçoamento de canais de comunicação proativos estimulando o diálogo constante no
ambiente de trabalho.

A Justiça Federal possui competência para julgar a ação regressiva (art. 109, I, da
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CF/1.988), vez que se trata de ação entre o INSS e empresa.

É de cinco anos o prazo prescricional e o seu termo inicial é a data da concessão


do benefício acidentário, já que é nessa ocasião que o erário público é lesado. Esse prazo
de cinco anos advém da aplicação analógica do art. 1º do Decreto nº 20.910/1.932,
segundo entendimento do STJ no REsp nº 1.457.646/PR.

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SEGURADO FALECIDO


EM ACIDENTE DE TRABALHO. DEMANDA RESSARCITÓRIA
AJUIZADA PELO INSS CONTRA O EMPREGADOR. PRAZO
PRESCRICIONAL. INCIDÊNCIA DO ART. 1º DO DECRETO Nº
20.910/32. INAPLICABILIDADE DOS ARTS. 103 E 104 DA LEI Nº
8.213/91.

1. Nas demandas ajuizadas pelo INSS contra o empregador do


segurado falecido em acidente laboral, visando ao
ressarcimento dos danos decorrentes do pagamento da
pensão por morte, o termo a quo da prescrição da pretensão é
a data da concessão do referido benefício previdenciário.

2. Em razão do princípio da isonomia, é quinquenal, nos termos


do art. 1º do Decreto nº 20.910/32, o prazo prescricional da
ação de regresso acidentária movida pelo INSS em face de
particular.

3. A natureza ressarcitória de tal demanda afasta a aplicação do


regime jurídico-legal previdenciário, não se podendo, por isso,
cogitar de imprescritibilidade de seu ajuizamento em face do
empregador.

4. Recurso especial a que nega provimento.

(REsp n. 1.457.646/PR, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira


Turma, julgado em 14/10/2014, DJe de 20/10/2014.)

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A título de exemplo bem recente de Ação regressiva, podemos citar a condenação


da Samarco Mineração S/A (Vale) a ressarcir cerca de R$ 11,6 milhões ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) pelo pagamento de benefícios previdenciários a
familiares de vítimas do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG).

O acidente, ocorrido em novembro de 2015, provocou a morte de 19 pessoas, em


uma das maiores tragédias socioambientais do Brasil.110

9. DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE LABORAL ENQUANTO DIREITO

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FUNDAMENTAL

Importante frisar que da mesma forma que todo cidadão almeja um meio
ambiente equilibrado, essencial a sua qualidade de vida, todo trabalhador tem direito a
receber a proteção normativa a um meio ambiente de trabalho seguro e saudável.

Todos os trabalhadores sem exceção, autônomos, eventuais, informais,


domésticos, dentre outros, serão protegidos pelas normas atinentes ao meio ambiente de
trabalho. Referidas normas visam proteger a saúde humana, a pessoa humana, como dito
acima todos sem exceção, e não necessariamente o trabalhador que possui vínculo formal
de emprego.

A proteção do meio ambiente do trabalho, ao mesmo tempo em que é


instrumento garantidor do exercício do trabalho em condições dignas e está vinculada
diretamente à saúde do trabalhador enquanto cidadão, “não é um mero direito trabalhista
vinculado ao contrato de trabalho”, nas palavras de Sandro Nahmias Melo111. Sendo
assim, há um caráter dúplice em sua fundamentalidade, caracterizando-se tanto como
direito social quanto direito metaindividual.

O meio ambiente de trabalho integra a nossa Carta Magna enquanto direito


fundamental. E como bem frisou o professor Miguel Horwat Junior o meio ambiente passa
a ser uma das dimensões da dignidade da pessoa humana.

Lembrando que os riscos do empreendimento pertencem ao empregador e, se


este viola o meio ambiente do trabalho e expõe a risco seu empregado, deve ser
responsabilizado.

110 Fonte: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/rompimento-de-barragem-agu-obtem-


condenacao-da-samarco-a-ressarcir-inss-por-pensoes-pagas-as-familias-das-vitimas. Acesso em
18/07/2022
111 Meio Ambiente do Trabalho: Direito Fundamental, Editora LTr, São Paulo, 2001, p. 31

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Quando ocorrem violações ao meio ambiente do trabalho, não só afetam à saúde


do trabalhador, assim como também a toda a família do obreiro, e ainda, o empregador
não só infringiu direitos trabalhistas, como também desrespeitou os direitos fundamentais,
como dignidade da pessoa humana, saúde e, até mesmo, vida.

O professor Miguel Horwat Junior112, relata que:

“A dignidade da pessoa humana diz respeito às características


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próprias e inerente do ser humano enquanto ser racional e crítico.


Assim todos os integrantes da espécie humana por serem dotados
de racionalidade têm direitos humanos. Direitos humanos devem ser
entendidos como os mínimos existenciais estabelecidos para uma
vivência razoável sem a discriminação em função de raça, cor, local
do nascimento, crença religiosa, linhas filosóficas adotadas. Como os
direitos basilares para que possa ser dar a vida em sociedade. Como
vivemos em um mundo desigual estes mínimos e sua forma e ou
possibilidades de efetivação estão esculpidos em tratados
internacionais. O mais relevante e importante é a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948”.

No Brasil diariamente acontecem acidentes de trabalho, muitas das vezes


acidentes com óbitos, quando não aqueles que incapacitam o trabalhador para o exercício
de suas atividades laborais.

Ainda, temos as doenças adquiridas em função de determinada atividade exercida


que acarretam muitas das vezes sequelas irreversíveis, tais doenças também são
classificadas como acidente do trabalho para fins previdenciários e trabalhistas nos termos
da Lei 8.213/91.

É preocupante o descaso do meio ambiente de trabalho equilibrado por algumas


empresas. A Constituição é clara ao assegurar a redução dos riscos inerentes ao trabalho
por meio de normas de saúde, higiene e segurança visando à integridade física do
trabalhador e o controle dos agentes nocivos do ambiente de trabalho.

O empregador precisa entender que a dignidade do trabalhador deve ser


protegida ao máximo, portanto, o objetivo principal é a eliminação dos riscos. Sabemos
que há uma preocupação dos empresários com a incidências dos encargos, caso não
mantenha o meio ambiente de trabalho saudável e equilibrado, porém a questão maior
deve ser com a vida do trabalhador.

112 A ação regressiva acidentária do trabalho como instrumento de efetivação da proteção do meio
ambiente laboral. Revista do advogado – Direito Previdenciário, São Paulo, n. 149, p. (30-36), março de 2021

100
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Contudo, caso ocorra o inevitável, a ocorrência do dano, deve o empregador ser


responsabilizado a ressarcir o prejuízo de forma a reparar o trabalhador ou em caso de
morte, a família, pelo mau funcionamento do meio ambiente de trabalho.

É salutar frisar que o empregador, além de arcar com os direitos trabalhistas,


poderá sofrer uma condenação civil, penal e uma ação regressiva do INSS para ressarcir
aos cofres públicos os valores gastos com o trabalhador que ficou incapacitado para o
labor ou até mesmo em caso de falecimento do obreiro.

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A responsabilidade civil do empregador por acidentes de trabalho e danos ao meio
ambiente laboral encontra-se alicerçada no art. 7º XXVIII, da Constituição da República que
assim dispõe: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social, seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do
empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado quando incorrer em dolo
ou culpa”.

Impõe-se, urgentemente, a proteção do meio ambiente laboral, o trabalhador não


pode comprometer a sua saúde no labor, a conservação do meio ambiente laboral deve
ser pauta diária dos empresários, oferecer condições mínimas de trabalho aos seus
empregados, e zelar por elas, é de excepcional importância.

CONCLUSÃO

A constituição Federal e as normas infra constitucionais garantem ao trabalhador


um ambiente de proteção e saudável, se o empregador observar as normas de saúde e
segurança do trabalho editadas pelo Ministério do Trabalho e previdência social.

Descumpridas as normas de medicina e segurança do trabalho e tendo ocorrido o


acidente de trabalho, vitimando o trabalhador os danos gerados afetam a todos, ou seja,
o trabalhador, a empresa a sociedade e o sistema previdenciário.

É certo que o empregado poderá ser indenizado financeiramente pela empresa,


inclusive será colocado em gozo de benefício previdenciário, como forma de atenuar os
efeitos do acidente, mas, isso por si só não é suficiente para reparar todo o dano causado
por eventual acidente, já que o sofrimento do trabalhador se reflete em sua família e na
sociedade em geral.

Dá mesma forma, o sistema previdenciário poderá também ser indenizado pelo


empregador que for comprovadamente culpado e deu causa ao acidente causado.

De qualquer forma, o empregador será penalizado pelos acidentes, seja pela


indenização trabalhista que irá suportar, seja pela ação regressiva a ser proposta pelo INSS
101
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visando repor os danos decorrentes do evento acidentário, seja pelo aumento das
alíquotas básicas para o financiamento do Seguro de Acidentes de Trabalho (SAT).

Mesmo com todo esse “prejuízo” que decorre dos acidentes de trabalho, percebe-
se que os infortúnios não tem diminuído, e por via de consequência os custos sociais
decorrentes dos acidentes de trabalho só aumentam, tendo como reflexo disso uma
grande parte da população está ficando inativa por invalidez, parcial ou total, temporária
ou permanente.
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Nossa conclusão é a de que a redução dos acidentes passa diretamente pela


proteção do meio ambiente de trabalho, o descaso com a medicina e segurança do
trabalho acaba por elevar o risco de acidentes.

Os empregadores precisam começar a entender que o aumento na proteção do


trabalhados ocasionará a redução dos riscos acidentários e por via de consequência a
redução dos acidentes e a diminuição dos custos, dos encargos e das indenizações que
terão de pagar no futuro.

É urgente a necessidade de investimento em segurança e medicina do trabalho,


manter o meio ambiente de trabalho seguro para a geração atual e para as próximas
gerações.

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FATORES AGRAVANTES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PANDEMIA NO BRASIL

JULLYA MARIANY MEDRADO NICOLETTI:


Bacharelanda em Direito pelo Centro
Universitário de Santa Fé do Sul-SP
(UNIFUNEC).

LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON

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(orientadora)

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal abordar o tema da violência doméstica
e como os lares se tornaram ainda mais perigosos na pandemia. A violência doméstica
infelizmente está presente em lares do mundo inteiro, porém, no Brasil ao decorrer da
pandemia os números foram alarmantes para tamanha crueldade, tornando as vítimas cada
vez mais invisíveis, desemparadas, reféns de seus agressores, tornando impossível ir até a
delegacia efetuar o boletim de ocorrência e dessa forma, sendo privada de seu direito e
perdendo sua dignidade. Conforme pesquisa, uma em cada quatro mulheres acima dos
dezesseis anos asseguram ter sofrido algum tipo de violência, seja física, psicológica ou
sexual dentro de sua própria residência, apesar do maior número de denúncias, o aumento
da violência doméstica ainda assim foge das estatísticas dos órgãos de segurança pública. É
importante trazer essa informação para que todos tenham consciência e estejam cientes,
até mesmo, para que as outras pessoas possam ajudar essas vítimas ou, ainda, para que a
própria mulher saiba como reconhecer a violência e prosseguir para poder denunciar ou
pedir ajuda. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas em sites, livros e revistas de
referência da área.

Palavras-chave: Violência doméstica. Mulher. Pandemia.

ABSTRACT: This article aims to address the issue of domestic violence and how homes
have become even more dangerous in the pandemic. Domestic violence is unfortunately
present in homes all over the world, however, in Brazil during the pandemic the numbers
were alarming for such cruelty, making the victims increasingly invisible, helpless, hostages
of their aggressors, making it impossible to go to the police station to carry out the police
report and thus, being deprived of their right and losing their dignity. According to a survey,
one in four women over the age of sixteen claim to have suffered some type of violence,
whether physical, psychological or sexual within their own home, despite the greater
number of complaints, the increase in domestic violence still escapes the statistics of the
public security agencies. It is important to bring this information so that everyone is aware,

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and even so that other people can help these victims, or so that the woman herself knows
how to proceed in order to report or ask for help. The work was carried out through
research on websites, books and reference magazine in the area.

Keywords: Domestic violence. Women. Pandemic

1 INTRODUÇÃO
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

As medidas que necessitaram ser adotadas com urgência impostas pela pandemia
do novo coronavírus (COVID-19), mudou consideravelmente a vida de todos os indivíduos,
principalmente a das mulheres, infelozmente, de uma forma totalmente negativa. O
isolamento social no Brasil, nos trouxe vários problemas, entre eles, o aumento da violência
doméstica, o que pôde ser notado ainda nas primeiras semanas de quarentena. Mesmo
antes da pandemia que vivenciamos, a violência doméstica sempre foi algo recorrente e
preocupante, com esse fenômeno só se agravou algo que, em nossa realidade, é algo que
não há como ser controlado.

Dentre os vários setores da sociedade em que o pensamento machista se faz


corrente, a família é um dos mais debatidos atualmente. Isso pelo motivo de que a maioria
dos núcleos familiares, tanto dos países ocidentais quanto dos orientais, é estruturada
colocando a figura do homem em uma posição de superioridade e atribuindo a ele o papel
de sustentar a casa, enquanto que a mulher é submissa à vontade masculina. Por mais que
esse cenário esteja ultrapassado e muitas famílias já não partilham desses pressupostos, a
sociedade ainda é, em grande parte, patriarcal, ou seja, voltada para a figura do homem.

Sabe-se que o machismo dá o privilégio aos homens em relação às mulheres,


colocando-os em uma posição hierárquica superior. Mas as atitudes machistas nem
sempre transparecem essa noção de hierarquia, especialmente quando são justificadas
pela ideia de que as funções distintas entre mulheres e homens é algo natural, alegando
que essas “diferenças” são necessárias, dito isso, começa-se a entender o porquê o Brasil
é um país onde se prevalece essa superioridade do homem, a ideia da submissão feminina
é, pois, um dos motivos pelos quais as mulheres são tratadas com desprezo, discriminação
e preconceito, dessa forma, com esse pensamento retrocesso a violência doméstica contra
mulheres só aumentam cada mais, trazendo assim um aumento significativo na pandemia.

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL

No Brasil, calculasse que cinco mulheres são brutalmente espancadas a cada dois
minutos e os responsáveis por isso são seus companheiros, sejam eles maridos, namorados
ou ex-companheiros que se revoltam com o fim do relacionamento extremamente abusivo,
onde tratam mulheres como posse. A recorrência, no entanto não pode ser apenas
restringida à relações amorosas, é no geral: a relação íntima de afeto prevista na Lei Maria
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da Penha (Lei nº 11.340/2006) pode haver violência doméstica e familiar


independentemente de parentesco, o agressor pode ser o padrasto, madrasta, sogro (a),
cunhado (a) ou agregados, desde que a vítima seja uma mulher, em qualquer idade ou
classe social.Segundo dados divulgados pelo Fórum de Segurança Pública revelou que 4,3
milhões de mulheres (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes
(SEABRA, 2021). Ou seja, a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil.

Mesmo com todos os dados alarmantes, muitas das vezes, essa violência não é
devidamente reconhecida e não se dá a importância que o assunto realmente deve ter, uma

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vez que raças e culturas geram e mantêm desigualdades entre homens e mulheres e
alimentam a ideia de que isso possa ser algo comum e que possamos nos acostumar com
os crimes decorrentes, mesmo vivenciando tempos modernos, infelizmente, ainda há o
pensamento de que os assuntos familiares devem ser discutidos somente entre os
membros da família, quando na verdade, nossa realidade deixa nítido que deveríamos nos
preocupar com o que acontece entre família, quando alguém pode se ferir ou até mesmo
ser brutalmente assassinado, isso se torna um problema de todos.

Violência doméstica e familiar contra a mulher é considerada qualquer ação ou


omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial, conforme dispõe artigo 5o da Lei Maria da Penha,
a Lei nº 11.340/2006:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e


familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a
comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste
artigo independem de orientação sexual. (BRASIL, 2006)

Dessa forma, o artigo citado define cinco formas de violência doméstica ou


violência familiar, são elas citadas nos tópicos abaixo:

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Violência psicológica: onde o agressor xinga, ameaça, humilha, isola, vigia


constante, insulta, chantageia, ridiculariza, ou seja, atitudes que podem prejudicar sua
saúde mentalintimida a vítima, desvaloriza os atos e desconsidera as opiniões ou decisões
de sua vítima, controlar tudo que a mulher pode ou não fazer, manipular para que ela
acredite que o problema sempre será com ela ou faz com que a mesma acredite estar com
distúrbios psicológicos, existe também o que é chamado de gaslighting, que é quando um
homem utiliza dessas manipulações para fazer a mulher se sentir louca ou desequilibrada,
fazendo-a duvidar de seus pensamentos e posicionamentos.
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É uma maneira de abuso psicológico no qual informações são distorcidas,


seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a
intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.

Violência moral: ofender a companheira com comentários baixos na frente de


conhecidos, humilhar e debochar publicamente ou expor em redes sociais, fazendo
acusações falsas e inventando histórias para que o abusador seja visto como vítima, esse
tipo de violência pode ocorrer inclusive pela internet, ou seja, pelas redes sociais.

Violência Patrimonial: controlar ou tirar o próprio dinheiro da mulher, causar danos


propositalmente a objetos que ela almeja, destruir documentos pessoais, instrumentos de
trabalho e todos os outros bens que ela tiver, a falta de independência financeira
principalmente, pode fazer com que muitas mulheres fiquem presas em relacionamentos,
esse é um dos principais motivos que faz as vítimas não denunciarem seu agressor.

Violência Física: bater e espancar; empurrar, atirar objetos, sacudir, morder ou


puxar os cabelos; mutilar e torturar; usar arma branca, como faca ou ferramentas de
trabalho, ou de fogo, as consequências físicas podem causar hematomas, quebrar ossos,
causar fraturas, provocar sangramentos internos.

Violência Sexual: obriga-la a ter relações sexuais quando não quer ou quando
estiver dormindo, inconsciente ou sem condições para consentir, fazer a mulher olhar
imagens pornográficas quando ela não quer; obrigar a mulher a ter relações sexuais com
outra ou outras pessoas que ela claramente não se sente confortável e não quer, impedir
a mulher de prevenir a gravidez, forçá-la a engravidar ou ainda forçar o aborto quando ela
não quiser, esses atos ou tentativas de relação sexual de qualquer natureza sem o
consentimento da mulher e normalmente acontecem de maneiras violentas ou sob coação.

São cometidas, principalmente por conta da cultura do estupro, que silencia e


relativiza a violência sexual contra a mulher. Violência sexual é abuso, assédio e estupro.
Pode ser cometida tanto por pessoas desconhecidas como por pessoas conhecidas,
inclusive os seus próprios parceiros, segundo o Ipea, 70% dos estupros são realizados por

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conhecidos da vítima ou com quem mantém algum tipo de relacionamento, dentro de

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namoros, casamentos ou relações sociais.

Os atos são de quaisquer tipos de relação sexual até mesmo proibir a de mulher
utilizar anticoncepcionais, não utilizar contraceptivos contra a vontade dela, obrigá-la ou
impedi-la de abortar.

Conforme o quadro abaixo mostra:


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Fonte: ALVES, 2005, p. 4.

Para as Nações Unidas a violência contra a mulher engloba especialmente as


ameaças:

Qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que


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resulte em sofrimentos e danos físicos, sexuais e psicológicos da


mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação da
liberdade seja na vida pública ou privada. (Conselho Social e
Econômico, Nações Unidas, 1992)

O medo das mulhres violentadas e ameaçadas de sofrerem consequências pode


fazer com que volte atrás na decisão da denúncia e por terem uma relação de afeto com o
companheiro e toda uma história passada, ou por se preocuparem com a situação dos
filhos, não querem levar o homem à prisão. Seja qual for o caso, a denúncia deve ser feita.
Há soluções personalizadas para cada caso.

As medidas protetivas, criadas pela Lei Maria da Penha, podem levar ao afastamento
domiciliar, proibição de aproximação e obrigação de prestação de alimentos provisórios,
por exemplo. Tudo isso em 48 horas. É sempre necessário ter o apoio de alguém nesse
processo. Inclusive para diminuir o risco de retaliações.

Deve-se utilizar tudo que puder para provar a relação de abuso. As provas mais
comuns são: Conversas de texto com o agressor ou com qualquer outra pessoa; Fotos,
áudios ou vídeos que demonstrem a violência; Exame de corpo de delito (exame realizado
por médico que constata a origem das lesões); Depoimento da vítima: em casos de
violência doméstica, a palavra da mulher tem um peso maior; Testemunhas: qualquer
pessoa que tenha conhecimento ou tenha presenciado situações de violência pode ser útil.
Nos dias atuais, não se pode mais ir até a Delegacia de Polícia para “retirar” a denúncia,
pois o delegado não é a autoridade competente para essa desistência. Essa é uma forma
de proteger a mulher, que muitas vezes pode desistir da denúncia por medo, ou por estar
sendo ameaçada ou coagida.

Inclusive, é importante ressaltar que por unanimidade, a Sexta Turma do Superior


Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de
violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Uma vez que, para efeito de
incidência da lei, mulher trans é uma mulher também, o colegiado deu provimento a
recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas
protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006,

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após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família. Esse com certeza é um avanço
muito grande no poder judiciário.

As mulheres transexuais começam a serem agredidas dentro de seus próprios lares,


principalmente quando começam sua tarnsição, são vulneraveis e não estão seguras dentro
de suas próprias casas e nas ruas, com a pandemia também pôde se notar isso, os dados
da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) apontam ainda que os casos de homotransfobia
passaram de sete registros em 2019 para 26 ocorrências em 2020, o que representa alta
de 271%, as pessoas trans também sofreram intensamente os efeitos da crise sanitária,

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econômica e social da pandemia da covid-19 (PCDF, 2021).

Com dificuldade de acesso a auxílios governamentais e de obtenção de empregos


em empresas, é um sofrimento imensuravel para essas mulheres que além de enfrentarem
tamanha violência ainda são vitímas de um preconceito e machismo irracionais, onde a
sociedade é completamente cega e acreditam que as mesmas não merecem dignidade, é
injusto, que pessoas sejam tratadas de forma tão brutal por serem diferente das outras, o
Brasil apenas responde por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo, e
apontou a necessidade de "desconstrução do cenário da heteronormatividade", para que
permita que as mulheres trans sejam acolhidas e tenham o apoio necessário, o artigo 5°
da Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340/2006 ressalta que refere-se à violência "baseada no
gênero", e não no sexo biológico, ou seja, essas mulheres precisam de proteção (STJ, 2022).

Outras vítimas que acabam se tornando invisíveis quando se fala de violência contra
a mulher são aquelas que têm alguma deficiência. Segundos dados apontados, no estado
de São Paulo, houve queda de 51% nos registros de violência doméstica contra mulheres
com deficiência: foram 467 boletins de ocorrência no ano passado e 708 em 2019,
revelando mais um grande problema durante esse período (Amazônia Real, 2021).

A violência doméstica não afeta só as mulheres, os seus filhos, crianças e


adolescenets também são afetados por essa crueldade, o impacto de presenciar esse tipo
de situação é o que faz esses crimes não cessarem, ou seja, as crianças e adolescentes que
presenciam essas agrassões podem desenvolver sérios problemas psicológicos caso não
sejam acompanhadas com urgência, podem vir a ter sintomas de depressão,
comportamento suicida, problemas de relacionamento e até a reprodução daquela
violência.

A reprodução da violência assistida só nos mostra com mais profundidade como


essa é uma questão que deve ser pensada e trabalhada em toda socidade, já que quando
adulto vão acabar colocando em prática as agressões que assistiram e testemunharam
quando eram apenas crianças, acreditando que aquilo é o correto a ser feito, pois daquela
forma aprenderam sobre o que é um relacionamento, seja ele amoroso ou não.
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Além do artigo no Código Penal que torna mais grave o crime cometido na frente
de descendente ou ascendente da vítima, o Projeto de Lei do Senado 195/2014 altera a Lei
Maria da Penha para obrigar a autoridade policial a colher as provas referentes à presença
de criança ou adolescente, como testemunha ou vítima, nos casos de violência doméstica
e, nesse caso, remeter os autos do inquérito policial ao juiz da infância e da juventude e ao
Conselho Tutelar.

É importante que seja esclarecido que o último estágio da violência é o feminicídio


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que é o homicídio contra uma mulher porque ela é mulher, o crime em que estiver
envolvida a violência familiar e doméstica; o menosprezo e a discriminação à condição de
mulher. Isso porque 35% dos homicídios de mulheres no mundo são cometidos por seus
parceiros, segundo a Organização Mundial da Saúde.

3 POR QUAL MOTIVO HOUVE O CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


DURANTE O ISOLAMENTO?

Não há apenas um só motivo para que a violência doméstica tenha crescido de um


modo tão brusco no isolamento, há vários fatores que infelizmente causam esse
crescimento, um deles é a perda ou a diminuição da renda familiar seja em razão do
desemprego, suspensão das atividades presenciais, sobrecarga das tarefas domésticas,
principalmente o cuidado dos filhos fora da escola, o aumento do consumo de bebidas
alcoólicas e entorpecentes, isolamento da vítima de seus amigos, familiares e colegas de
trabalho, e outras situações que aumentam o tensionamento nas relações domésticas.

Pode-se ressaltar que o motivo econômico nem sempre acaba sendo decisivo. Os
autores da citação abaixo concordan ser sim esta a condição favorável ao acontecimento.

O fenômeno da violência conjugal ocorre em todos os níveis


sócioeconômicos, sobretudo naqueles de baixa renda, pelo fato de
que as dificuldades financeiras, a miséria e as desestruturações
familiares, favorecem o clima de instabilidade no humor,
exacerbando os comportamentos agressivos nos indivíduos.
(LYSTAD, 1975; Prado & Oliveira, 1982; Oliveira et al., 1984; Azevedo,
1985)

E, desse modo, por todos esses motivos, esse aumento não ocorreu único e
exclusivamente no Brasil. A violência doméstica também cresceu substancialmente em
outros países que foram negativamente afetados pela pandemia. Porém, no Brasil, a
resolução de conflitos são resolvidos na grande maioria das vezes com extrema violência,
em 2020 podemos observar que a taxa média de feminicídios por 100 mil mulheres foi de
1,18. Em 2019, a taxa foi de 1,19. Conforme a análise do monitoramento, 16 estados
apresentaram taxas acima da média. Estes correspondem a 45% da população feminina

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dos estados analisados (102 milhões) e foram responsáveis por 61% das mortes ou 735
feminicídios.

Os estados que apresentaram as maiores taxas são Mato Grosso 3,56 e Roraima 2,95
– ambos com o triplo da média dos 24 estados e do Distrito Federal). Na contramão, 11
estados apresentaram taxas abaixo da média: Ceará (0,57), Rio Grande do Norte (0,64) e
São Paulo (0,74). Durante o corrente ano de 2020, menos de 3% do orçamento que seria
usado para iniciativas para mulheres pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos
foi, de fato, gasto, conforme levantamento de Gênero e Número. Isso se reflete na

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realidade das vidas das mulheres (LIMA, 2021).

O atraso no efetivo da polícia somada à pequena quantidade de assistentes sociais


nesses municípios demonstram as falhas da rede de apoio à mulher em situação de
vulnerabilidade, as deixam desamparadas, é um país onde se oprime as mulheres de uma
forma desumana e, principalmente, o descaso e desinteresse priorização da agenda pelas
autoridades em geral, todos esses fatores juntamente com o isolamento social, só poderia
resultar em um cenário catastrófico onde mulheres estão desemparadas, cada vez mais
distantes de seus direitos básicos. De acordo com Bobbio, a justiça é a responsável por
fazer com que a igualdade seja humanamente almejada:

Pode-se repetir, como conclusão, que a liberdade é o valor supremo


do indivíduo em face do todo, enquanto a justiça é o bem supremo
do todo enquanto composto por partes. Em outras palavras, a
liberdade é o bem individual por excelência, ao passo que a justiça é
o bem social por excelência. (BOBBIO, 1996, p. 16).

A situação de violência doméstica mostra que, essencialmente, a descrepância de


todos os valores citados acima, designando um cotidiano
de desigualdade, dominação e injustiça que caracteriza nossa sociedade atualmente,
sendo justamente o contrário de todos os princípios.

4 COMO IDENTIFICAR SE ESTÁ SENDO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA?

A violência é imperceptível no começo, dificilmente conseguimos ter certeza


se ela realmente está ocorrendo, esse tipo de violência acontece entre pessoas que
são intimas, que mantém um relacionamento, ou seja, são ligadas emocionalmente.
Ainda que alguns relacionamentos sejam extremamente tóxicos desde o início, os
abusos começam de maneira sutil, se manifesta aos poucos e vão piorando ao
decorrer do tempo.

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O ciclo da violência foi um termo criado em 1979 por Lenore Walker, psicóloga norte-
americana, onde ela descreve em fases como é esse ciclo repetitivo para que melhor se
possa identificar, começando pela primeira fase que onde começa a gerar uma certa
tensão, com atritos onde o agressor fica tenso e visivelmente irritado por qualquer motivo
ou sem motivos, tendo crises de raiva sem explicações, destruindo objetos da vítima ou
humilhando a mesma.
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Esses conflitos da relação tomam uma proporção de tensão muito grande e causam
insegurança onde a mulher é responsabilizada pelo que acontece de desequilíbrio em sua
relação, onde ela se sente culpada e ela fica sempre em alerta adotando medidas de não
provocação, controlando- se com todos que estão próximos, justificando as agressões
porque o agressor não está bem, quando está relação está assim os sentimentos causados
nas vítimas são tristeza, desencadeia ansiedade, angústia, desilusão e o medo,
principalmente.

A segunda fase é marcada pela explosão do transgressor, onde ele se descontrola e


comete o ato violento, toda a tensão citada na fase anterior se concretiza em algum tipo
de violência, podendo ela ser física, psicológica, moral ou patrimonial, onde a mulher não
consegue reagir, isso traz o sentimento de ódio, o medo já se torna constante e a vergonha
faz com que ela não peça ajuda, mesmo já tendo a consciência de que precisa.

Na terceira e última fase, que é chamada como “lua de mel”, é aquela caracterizada
pelo suposto arrependimento do infrator, onde ele se torna uma pessoa amável para que
ele consiga ter a reconciliação com a vítima, onde ele faz promessas de mudanças e
consegue sustentar essa fase por um tempo, até ganhar a confiança de sua parceira
novamente, a partir daqui a companheira já tem a dependência emocional e o abusador
se aproveita fielmente disso, é quando voltamos para a primeira fase.

É importante estar constantemente alerta desde o primeiro sinal de abuso que pode
vir a se tornar algo extremamente violento e se tornar um ciclo contínuo e vicioso, onde se
tornarámuito difícil sair ou terminar o relacionamento, podendo durar anos e desobedecer
às ordens das fases, é preocupante pois é dessa forma que ocorre a grande maioria dos
casos de feminicídio.

As mulheres vítimas têm suas vidas completamente mudadas de uma forma muito
negativa, onde a insegurança é frequente, a vergonha e o constrangimento são
sentimentos que a vitima carrega, e é justamente esses sentimentos que fazem a mulher
não ir procurar ajuda imediata que necessita, a dependência seja ela emocional ou
financeira ou ainda mesmo pelo amor aos próprios filhos, faz com que adiem essas
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denúncias. Saber reconhecer todos esses sinais e essas várias formas de violência é
relevante para que possam ir atrás de seus direitos, efetuar denúncias, poder ter sua
dignidade de volta e viver em segurança.

Diante desse aumento e da dificuldade de pedirem essa ajuda, foi justamente


pensandonisso que foi lançada a Campanha do Sinal Vermelho no ano passado (2020) pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), com
o apoio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. De início essa

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iniciativa é para que a mulher consiga pedir ajuda em farmácias ou drogarias com um “X”
vermelho na palma da mão, desenhado com batom ou qualquer outro material. Agora,
essa medida se tornou Lei que foi sancionada pelo Presidente da República, Jair Messias
Bolsonaro, no dia 28/07/2021. Essa nova legislação trouxe também a mudança da
modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra as mulheres por razões da
qualidade do sexo feminino e criou o tipo penal de violência psicológica contra a mulher.

5 CONCLUSÃO

Conforme os dados apresentados e das discussões realizadas, pode-se analisar com


mais clareza, que, apesar das várias medidas já existentes para a proteção das mulheres,
ainda assim, a situação é nitidamente pavorosa, principalmente pelo aumento desses casos
de tamanha crueldade, agravou a condição de muitas mulheres que sofrem com toda
violência, relações extremamente tóxicas e não conseguem sair desses relacionamentos, o
isolamento social só mostrou como isso acontece com tanta frequência, o que na verdade
é tão assustador, é a realidade de muitas mulheres.

Para que seja possível o enfrentamento contra essa conduta é distinguir que o real
problema é muito mais complexo e precisa de diferentes atuações, principalmente em
nossa sociedade, que são as principais pessoas que podem ajudar na solução. Para que
esse ciclo de violência contra a mulher seja quebrado, precisa-se que além da divulgação
de canais de denúncia, conhecimento de seus direitos, conhecimento que estão amparadas
pela Lei.

O suporte e contato de familiares, amigos, colegas de trabalho ou pessoas próximas,


as principais soluções a longo prazo são outras, uma delas seria investir na ampliação e
divulgação de serviços de denúncia e fiscalização, pois somente toda a divulgação sem a
fiscalização não há como funcionar essas denúncias, e, por conta disso, as vítimas não se
sentem confortáveis e seguras, uma vez que, mesmo depois de efetuar a denúncia, ainda
há muitos casos em que o feminicídio ainda ocorre.

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A Integração de serviços essenciais também é algo que precisa ser incluído nessa
solução, o que já está bem próximo da realidade como foi citado acima com mulheres
pedindo socorro em drogarias e farmácias usando o “X” vermelho desenhado na palma de
sua mão, mas que esse pedido de ajuda também possa ser feito em outros
estabelecimentos e a sociedade possa dar devida atenção para um assunto tão sério e que
possa ter empatia com essas vítimas de abuso. O fornecimento de abrigos para que as
mulheres prejudicadas tenham um lugar para que possam ficar até que possam se
estabilizar, a criação de abrigos para mulheres e seus filhos que sofrem violência em casa
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era a proposta de combate à violência contra a mulher mais importante que os governos
poderiam fazer, onde também possam fornecer ajuda psicológica pois quando saem de
um relacionamento conturbado onde sofrem todos os tipos de violência, estão em
constante sofrimento psicológico, se sentem culpadas e sozinhas.

A empatia é o que revolucionará esta questão, muitas vezes algumas pessoas tem o
poder de ajudar aquelas que estão necessitam de cuidados, mas não tomam algum tipo
de atitude por receio ou por acreditar que não é um problema dela, quando deveria abraçar
e cuidar da dor do seu semelhante. Conforme tudo que foi citado acima, o probelma é de
toda uma sociedade, desde as mulheres vítimas de violência, até as próprias crianças e
adolescentes que presenciam esses fatores e mais tarde, quando mais velhos venham
reproduzir essa violência também. Ao que tudo indica, a sociedade está caminhando para
um modelo de intervenção do problema da violência doméstica que não se distancia da
utilização do Direito penal, mas que exige a interferência de outros setores para a resolução
do problema, precisa- se de mais investimento em políticas públicas que aprimorem as
práticas de acolhimento.

Por fim, não há como fugir ou fechar os olhos para isso, os operadores do direito
e aqueles que representam as pessoas de nossa sociedade deveriam estar mais
empenhados em mudar a situação desse cenário, que as mulheres estão sendo
assassinadas todos os dias é o um fato. Os responsáveis sejam pelas Leis do nosso país,
pela fiscalização ou por políticas públicas tem a obrigação de lutarem por aqueles que mais
necessitam de socorro, onde possam elaborar medidas que supram a necessidade de
combate contra a violência doméstica e familiar. Essa maior vulnerabilidade das vítimas na
pandemia acaba causando uma dependência muito maior, que os órgãos públicos possam
enxergar isso com maior cautela porque a consequência dessa falta de responsabilidade é
o maior causador de mortes e abusos.

A visão adotada para soluções dessa catástrofe frequente, com o número de mortes
e abusos aumentando deve ser enxergada de uma forma mais ampla e moderna, com
campanhas e propagandas não apenas contra as várias formas de violência mas que
também possam realizar estímulo ao empoderamento econômico e ao empreendedorismo
femininos, há mulheres que vivem em situações tão precárias que não acreditam que

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podem conseguir sua independência financeira sozinha e o seu abusador faz com que ela
acredite que não é capaz de ser uma mulher emponderada, que faz com que ela sinta
medo de sua própria liberdade, precisa estimular cada vez mais essa independência
feminina, onde ela possa ser a protagonista da sua própria vida e não apenas uma
coadjuvante.

REFERÊNCIAS

Amazônia Real. Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios

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aumentou-na-pandemia> Acesso em: 2, ago, 2022.

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CRIMES CIBERNÉTICOS: UMA PESQUISA BIBLIOGRÁFICA SOBRE AS PROBLEMÁTICAS


ENFRENTADAS DIANTE DOS CRIMES VIRTUAIS

PATRÍCIA GOMES ROCHA:


Advogada, graduada pela
Universidade Cândido Mendes, Pós-
Graduada em Direito Público e
Privado Lato Sensu pela Escola da
Magistratura do Estado do Rio de

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Janeiro.

RESUMO: O presente artigo analisa e discute a respeito dos crimes virtuais, abordando a
contextualização, conceituação e a atual legislação dos chamados cybercrimes e destaca
as problemáticas enfrentadas pela polícia e o pelo judiciário no que tange a investigação
e a punição dos criminosos, tentando esclarecer a sensação de impunidade que os
cidadãos sentem com a crescente onda dos crimes virtuais em todo o Brasil. Pretende-se
encontrar uma solução a partir de uma análise legislativa, doutrinária para que se possa
preencher as lacunas e planejar novos métodos para prevenção e punição com o intuito
de coibir a prática desses atos ilícitos, procurando sempre resguardar os princípios
constitucionais e a legislação penal e processual penal.

PALAVRAS-CHAVE: Cybercrimes. Internet. Crimes Virtuais. Impunidade.

ABSTRACT: This article analyzes and discusses about virtual crimes, addressing the
contextualization, conceptualization and current legislation of the so-called cybercrimes
and highlights the problems faced by the police and the judiciary regarding the
investigation and punishment of criminals, trying to clarify the feeling of impunity that
citizens feel with the growing wave of cyber crimes across Brazil. It is intended to find a
solution from a legislative, doctrinal analysis so that we can fill the gaps and plan new
methods for prevention and punishment in order to curb the practice of these illicit acts,
always seeking to protect the constitutional principles and criminal legislation. and criminal
procedure.

KEYWORDS: Cybercrimes. Internet. Virtual Crimes. Impunity.

INTRODUÇÃO

Porque o judiciário brasileiro possui tanta dificuldade em enfrentar os chamados


crimes cibernéticos? A presente pesquisa se mostra importante para que se possa visualizar
quais são os pontos falhos do sistema penal e processual penal no que tange a esses delitos
e assim, se possa procurar as soluções para a melhoria do sistema punitivo estatal.

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É de conhecimento geral que o mundo tecnológico vem se desenvolvendo em


grande velocidade ao longo dos séculos. Os objetos que antes se utilizava, hoje, vêm sendo
substituídos por novos, com tecnologias cada vez mais avançadas, como celulares, tablets
e, por consequência desses avanços, novos crimes vêm surgindo nesse ambiente virtual,
fazendo da sociedade uma crescente vítima dos chamados cibercrimes.

Devido ao gradativo crescimento destes tipos de delitos, a presente pesquisa


científica tem por objetivo abordar o tema dos crimes praticados pela internet através do
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anonimato e a sua falsa sensação de impunidade. Para tanto faz-se necessária a difícil
conceituação dos chamados crimes cibernéticos, a definição de sua autoria, bem como a
legislação até então existente.

Assim, abordam-se, através de uma pesquisa bibliográfica e teórica, a doutrina,


a jurisprudência e as notícias veiculadas acerca do tema, que demonstrem a realística
problemática nos dias atuais no que tange aos crimes cibernéticos.

Essa é a proposta o presente trabalho, estimular a reflexão sobre a velocidade


da evolução tecnológica, estudando a peculiaridades dessas condutas perpetradas no
espaço virtual, bem como o que pode ser feito, sobre o ponto de vista legal, para proteger
os bens ameaçados e se chegar aos verdadeiros autores dos delitos.

1.DO CIBERCRIME: CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITUAÇÃO

Com a facilidade do acesso à internet que a sociedade possui atualmente,


tornou-se contumaz os usuários da rede terem as suas rotinas tornadas públicas por meio
de postagens de conteúdos, fotos ou mesmo de sua localização. Conforme preconiza
Kaminski (2003), a internet abre a oportunidade para que as pessoas mostrem seus
pensamentos sobre os mais variados assuntos, podendo tais informações alcançarem
rapidamente um grande público, sem praticamente nenhum esforço para tanto.

O celular é um grande exemplo de que, embora tenha trazido inúmeros


benefícios ao cotidiano, também tornou possível que a vida privada dos usuários seja
compartilhada para qualquer pessoa ver, uma vez que nestes parelhos são armazenadas
uma considerável quantidade de dados e informações de caráter pessoal dos seus
proprietários. Como tais aparelhos normalmente se encontram a todo momento
conectados à internet, tais dados podem facilmente se tornar alvo de acesso indesejado,
tornando-se dificultosa a tutela dessas informações. (SCHEREIBER, 2014).

FERREIRA (2005 p. 261) conceitua o chamado Cybercrime, Crimes Virtuais como:

Atos dirigidos contra um sistema de informática, tendo como


subespécies atos contra o computador e atos contra os dados ou
programas de computador. Atos cometidos por intermédio de um
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sistema de informática e dentro deles incluídos infrações contra o


patrimônio; as infrações contra a liberdade individual e as infrações
contra a propriedade imaterial.

Já CASSANTINI (2016 p. 51) utiliza a definição:

Crimes virtuais são delitos praticados através da internet que podem


ser enquadrados no Código Penal Brasileiro resultando em punições
como pagamento de indenização ou prisão.

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Dessa forma, sendo a definição a respeito da criminalidade informática bastante
abrangente, parte da doutrina acaba conceituando os crimes virtuais como um recente
fenômeno corresponde a elevada incidência de atos ilícitos, que têm por objetivo lesar ou
obter algum tipo de vantagem indevida de outrem. (CARDOSO, 2017)

Nesse passo, vale destacar a costumeira confusão no que tange as


nomenclaturas cracker e hacker, atribuídas aos criminosos virtuais. Os crackers são
conceituados como pessoas que possuem um amplo conhecimento de informática, e se
utilizam desta condição para cometerem delitos, adquirem informações privadas ou
causarem danos a terceiros, conforme destaca ROSA (2006, p. 61):

O mesmo que hacker, com a diferença de utilizar o seu conhecimento


para o “mal”. Destruir e roubar são suas palavras de ordem. Assim, o
cracker, usa os seus conhecimentos para ganhar algo; roubar
informações sigilosas para fins próprios e destrói sistemas para se
exibir.

Por outro lado, os hackers apesar de também possuírem um vasto


conhecimento informático, não se utilizam destes para causar dano a outrem, visto que,
em diversas situações eles são contratados por empresas para identificarem possíveis
falhas que possam comprometer a empresa, e verificarem a eficácia dos sistemas de
segurança, conforme define NOGUEIRA (2008 p. 52):

Este indivíduo em geral denomina a informática e é muito inteligente,


adora invadir sites, mas na maioria das vezes não com a finalidade de
cometer crimes, costumam desafiar entre si, para ver quem consegue
invadir tal sistema ou página de internet, isto apenas para mostrar
como estamos vulneráveis no mundo virtual.

Desta forma, havendo uma grande expansão dos meios eletrônicos e com
evolução do uso da internet, é cada mais frequente a prática de ilícitos com a finalidade de

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causar danos aos bens jurídicos de outrem. Para tanto, os agentes se valem de todos os
recursos e meios possíveis que a web proporciona para cometerem este tipo de delitos.

Dentre os delitos que se enquadra como cibernéticos podemos destacar


aqueles que versam sobre a honra, como: a calúnia, a injúria, a difamação, insultos,
divulgação de material confidencial, pedofilia, ato obsceno, apologia ao crime, preconceito
ou discriminação. Já em relação aos crimes patrimoniais pode-se citar aqueles que atingem
a propriedade industrial, intelectual, o plágio, o furto, a extorsão, a apropriação indébita, o
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estelionato, a pirataria e a comercialização ilegal de produtos, além da comercialização de


armas e o tráfico de drogas, dentre outros.

Nesta esteira de mudanças na sociedade, o Direito Penal não poderia ficar


estático no tempo, principalmente diante da presente criminalidade que se amoldou
rapidamente à evolução tecnológica, devendo ser fiel ao retrato da ética social.

Resta, contudo, avaliar se a dogmática penal e processual penal atuais, assim


como as formas de investigação, se prestam a proteger de forma suficiente os bens da vida
mais relevantes e se conduzem a mecanismos eficientes de proteção e repressão dessas
novas formas de criminalidade.

É evidente, portanto, que perante os riscos e contradições da era pós-industrial


a delinquência informática passou a ser um fenômeno social que precisa ser controlado.
Nesse prisma, necessário se faz a análise da atual legislação no que tange especificamente
aos crimes cibernéticos.

2.LEIS ESPECÍFICAS A RESPEITO DOS CRIMES CIBERNÉTICOS

Devido ao princípio da legalidade ou da anterioridade da lei penal, a


insuficiência ou a ausência de normal penal para tipificar os crimes informáticos limita o
poder punitivo do Estado, o que por consequência gera a sensação de insegurança e
impunidade, chamando cada vez mais atenção para a necessidade de controle e prevenção
de tais condutas delituosas.

Embora nos últimos anos o Congresso Nacional tenha editado importantes leis
que tratam dos chamados cybercrimes, o ordenamento jurídico brasileiro ainda se
surpreende com situações para as quais não há precedentes, havendo diversas lacunas que
ainda não foram sanadas pelo legislador.

Levando em conta a realidade brasileira em que a criminalidade pelo meio


virtual cresce na mesma proporção que novas tecnologias digitais vem surgindo, a
ausência de uma legislação penal específica para tratar de tais condutas ilícitas constitui
um elemento estimulador para a prática dos ilícitos, conduzindo, assim, a sensação de
descontrole e de impunidade.
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Diante da inexistência de lei penal incriminadora de condutas ilícitas relativas


aos crimes puramente informáticos, o poder punitivo estatal fica impossibilidade de agir,
por contrariar o da reserva legal previsto no art. 5º, XXXIX da Constituição Federal. Tal
princípio, traz ínsito a limitação e a taxatividade, em outras palavras, as leis que tipificam
condutas como crime devem ser claras e precisar quanto à delimitação da conduta que
pretende incriminar, não sendo permitidas leis vagas ou imprecisas, os chamados tipos
penais abertos (DELMANTO, 2002).

Da mesma forma, representa decorrência do princípio da legalidade a vedação

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da aplicação da analogia jurídica, ou a analogia in malan partem, ou seja, nas hipóteses em
que prejudica o réu. Nesse sentido, Mirabete (2005, p.115) afirma que a “tipicidade é a
correspondência exata, a adequação perfeita entre o fato natural concreto e a descrição
contida na lei”. Assim, é requisito de validade a tipicidade penal, e somente esta autoriza
punir os crimes informáticos.

Como já mencionado, no Brasil, as questões ligadas à repressão do cybercrime


vêm sendo alvo de discussões, um tanto atrasadas em relações a outros países. De
qualquer modo, o tema tornou-se objeto de estudos de muitos grupos interessados e do
Poder Legislativo, que, recentemente, editou duas leis e ainda conta alguns projetos em
tramitação que têm como objeto a criminalização de condutas ilícitas no âmbito do
ciberespaço e em sistema de computadores.

Gradativamente foram, introduzidas no Código Penal Brasileiro e em leis


esparsas dispositivos que criminalizam algumas práticas ilícitas através de tecnologias
informáticas e internet. Conforme destaca CRESPO (2011, p. 63) as seguintes disposições:

a) Art. 153, §1º-A – Divulgação de segredo – que incrimina a


conduta de quem divulga informações sigilosas ou reservadas, assim
definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informação ou
banco de dados da Administração Pública; (BRASIL, 1940, Art.153.§1-
A)

b) Art. 313-A – Inserção de dados falsos em sistema de informação


– que incrimina a inserção ou facilitação da inserção de dados falsos
ou modificação de dados verdadeiros em sistemas de informação da
Administração Pública, com o fim de obter vantagem indevida para
si ou para outrem, ou para causar dano; (BRASIL, 1940, Art.313-A)

c) Art. 313-B – Modificação não autorizada de sistema de


informação – que tipifica a conduta do funcionário que altera sistema

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de informação ou programa de informática sem autorização; (BRASIL,


1940, Art.313-B)

d) Art. 325, I – Violação de sigilo profissional – que prevê o ilícito


de facilitar ou permitir o empréstimo ou uso de senha para acesso de
pessoas não autorizadas a sistemas de informação da Administração
Pública; (BRASIL, 1940, Art.325.I)
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e) Lei 8069/90, arts. 241 a 241-E – que incriminam condutas como


as de armazenar fotos com pornografia infantil, garantir o acesso a
tais fotos, trocar, possuir, armazenar, adquirir, fotos igualmente
pornográfico-infantis, entre outras condutas. (BRASIL, 1990, Art.241)

f) Lei 8137/90, art. 2º, V – que proíbe utilizar ou divulgar


programa de processamento de dados que permita ao sujeito
passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa
daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública; (BRASIL, 1990,
Art.2.V)

g) Lei 9296/96, art. 10 – Interceptação não autorizada – que tipifica


realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática
ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização
judicial ou com objetivos não autorizados em lei. (BRASIL, 1996, Art.
10)

h) Lei 9504/97, art. 72 – que incrimina o acesso não autorizado a


sistemas da justiça eleitoral bem como a criação e inserção de vírus
computacional nos sistemas de apuração e contagem de votos,
ambos com o intuito de alterar o resultado do pleito. (BRASIL, 1997,
Art. 72)

Ainda se pode mencionar as alterações no Código Penal Brasileiro ocasionadas


pela inserção de novas infrações cibernéticas através da Lei 12.737/2012, apelidada de “lei
Carolina Dieckmann”. Contudo, cabe esclarecer que a mencionada lei não abrangeu toda
a gama de condutas delituosas existentes no mundo digital.

Além desta também se pode destacar as alterações no ECA (Lei 8.069/90), a Lei
de Software (Lei antipirataria nº 9.609/98), a Lei de Racismo (Lei nº 7.716/89) e a Lei de
Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83), compondo o conjunto das normas mais relevantes
aplicáveis aos cybercrimes.

A legislação brasileira ainda conta a Lei 12.965, denominada de Marco Civil da


Internet, em vigor desde 2014, que prevê princípios, garantias, direitos e deveres para o
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uso da internet no Brasil, e que apesar de estabelecer sanções para alguma de suas normas,
não prevê qualquer tipo de infração cibernética.

Sob este viés, pode-se dizer que há no Brasil uma carência de legislação
pertinente, uma vez que o conjunto de normas brasileiras não acompanha as necessidades
sociais, levando a sensação de insegurança nos meios virtuais.

A Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83), é outra norma que prevê alguns
crimes cibernético, porém, relaciona-se apenas aos crimes contra a segurança nacional, a

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ordem política e social. A Lei de Software dispõe sobre a propriedade intelectual de
programas de computador, mas também não prevê a prática de condutas delituosas
online.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, além de dispor de rol de crimes em


espécies, praticados através da internet contra a segurança, bem-estar e integridade física
e moral da criança e do adolescente, também dispõe acerca dos procedimentos
investigativos a serem realizados por agentes da polícia na internet, sendo um grande
avanço na legislação.

3.AS PROBLEMÁTICAS ENFRENTADAS DIANTE DOS CRIMES VIRTUAIS

Devido aos crimes virtuais possuírem uma vasta amplitude, tanto no que tange
ao seu conceito, como no que tange nas diversas áreas do direito material que pode atingir,
em sendo ainda, um fenômeno relativamente novo para o judiciário, em que ainda não se
possui legislação própria e concisa, diversas problemáticas são enfrentadas para a punição
dos ilícitos virtuais.

Além da falta de legislação que se enquadre na prática de ilícitos virtuais,


também se presencia problemática na falta de tecnologia e mão de obra especializada para
o combate dos cybercrimes. No Brasil, desde que passou a ser utilizadas as mais diversas
tecnologias, não houve preparos e investimentos para combater os ilícitos que já vinham
sendo praticados através da internet, o que facilitou a prática de tais condutas, que vêm
crescendo de forma assustadora nos últimos tempos.

Conforme afirmou Carlos Eduardo Sobral, chefe da unidade de Repressão a


Crimes Cibernéticos da Polícia Federal, o volume dos crimes que ocorrem no país hoje,
supera o número de capacitados para realizar de forma rápida as investigações. (apud.
Canuto, Luiz Cláudio, 2015)

Outro significativo problema enfrentado no que tange investigações diz


respeito ao nosso ordenamento jurídico em que a sanção penal somente pode ser aplicada

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quando houver certeza da autoria e materialidade do crime, ou seja, de sua prática por
determinado infrator ou ao menos a existência de fortes indícios de sua prática.

Nesse passo, caso consiga ser comprovada a materialidade e a autoria do delito,


o juiz deverá absolver o réu, conforme aduz o artigo 386 do nosso Código de Processo
Penal:

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte


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dispositiva, desde que reconheça: I - Estar provada a inexistência do


fato; II - Não haver prova da existência do fato; III - Não constituir o
fato infração penal;IV - Estar provado que o réu não concorreu para
a infração (...) V - Não existir prova de ter o réu concorrido para a
infração penal;

(BRASIL, 1941, Art.386)

Deve ainda ser frisado que, além da comprovação da materialidade e da autoria,


esta deve ser tida de forma lícita, em outras palavras, em conformidade com a lei, o que
dificulta as investigações.

A polícia ao realizar as investigações criminais identifica primeiramente a forma


como o delito ocorreu, o seu local, segundamente busca localizar o endereço do IP
(número que identifica o dispositivo na rede). Após a identificação do IP, se entra em
contato com a empresa que disponibiliza o número na rede para poder identificar o
infrator. Neste momento, a polícia se depara com a primeira dificuldade, a proteção da
privacidade e dados constante no artigo 5, inciso X e inciso XXII da Constituição Federal, o
que na grande maioria das vezes acarreta uma demora vital para conseguir as provas
necessárias. Referida demora é ocasionada pela necessidade de autorização do juiz para
realizar as investigações e comunicações com as empresas responsáveis por armazenar as
informações sobre o criminoso. (CRUZ, RODRIGUES, 2018)

Além do tramite demorado para ter acesso às informações do suspeito, as


empresas que detêm tais informações ainda dificultam as investigações, uma vez que
comumente se recusam a prestar auxílio a polícia e ao judiciário.

Outra problemática enfrentada, envolve a extensa amplitude dos cybercrimes,


uma vez que estas condutas podem atingir diversos níveis sociais e econômicos, e ainda,
pode envolver autor e vítima de jurisdições diferentes ou até mesmo de países distintos
(GOMES, 2003), gerando dúvidas acerca de qual local seria o juízo competente e a
legislação aplicável no caso.

Conforme CARDOZO (2017, s/p):

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[…] ciberespaço é o território onde acontecem os crimes por meio do


uso da rede de internet, é o lugar onde se realizam as condutas
criminosas que dão vida aos crimes cibernéticos, onde estes são
capazes de ultrapassar os limites territoriais de um país até chegar
em outro, ou ainda atingir localidades dentro de um mesmo Estado,
isso porque o meio virtual proporciona essa amplitude da
criminalidade.

No que diz respeito a jurisdição aplicável, PINHEIRO (2006, s/p) aduz que:

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[…] temos a problemática da jurisdição do ciberespaço, como aplicar
e quem de aplicar a lei. Como vimos no capítulo I, enfrentamos na
Internet um problema geográfico de desterritorialização, pois no
ciberespaço não há fronteiras físicas, e, por isso, o conceito clássico
de soberania do Estado acaba relativizado, assim como é o do tempo.
Isto porque a integração mundial dos computadores é aproveitada
por criminosos, munidos das tecnologias mais modernas, e isso tudo
cria um espaço no qual as prescrições jurídicas nacionais são
insuficientes, pois apenas a cooperação global na Internet pode
trazer resultados positivos eficientes e duradouros. Problemas
globais exigem soluções globais. Providências tomadas por países
em âmbito nacional, ou por diferentes nações em âmbito global,
devem ser harmonizadas entre si, já que as infovias são
internacionais. Somente o trabalho conjunto em nível internacional e
interdisciplinar (ou transdisciplinar) será eficiente para o ciberespaço.
Não é uma tarefa exclusiva do Direito, tão menos podemos esperar,
como foi no início da Internet, por uma auto-regulamentação.

Segundo o princípio da territorialidade expresso no artigo 5 do Código Penal


(1940, s/p) “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratador e regras de
direito internacional, ao crime cometido no território nacional”. Nesse sentido, Capez
(2017, p. 291) leciona que “[...] a lei penal só tem aplicação no território do Estado que a
editou”. Dessa forma, deve-se verificar onde foi cometido o delito para saber se a legislação
brasileira é aplicável ao caso.

No que tange a definição de lugar do crime, esta é estabelecida pelo artigo 6


do Código Penal (1940, s/p), o qual adotou a teoria da ubiquidade, na qual “[...] aduz que
o lugar do crie será o da ação ou da omissão, bem como onde se produziu ou deveria
produzir o resultado” (GRECO, 2012, p.22).

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Já no que diz respeito à competência, apesar do artigo 70 do Código de


Processo Penal (1942, s/p) descrever que a regra para a determinação da competência é
feita em razão do lugar onde a conduta criminosa se consumou, ou se tratando de
tentativa, do lugar em que foi praticado o último ato de execução, a sua aplicação não é
tão simples quando envolve crimes virtuais, uma que o dispositivo somente se aplica nos
casos em que a conduta e o resultado ocorreram em locais distintos dentro do território
nacional (CAPEZ, 2017).
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TOURINHO FILHO (2017, p. 92) explica que:

[…] Nem se pode, nem se deve invocar a regra do artigo 6º do CO,


segundo a qual “considera-se praticado o crime no lugar em que
ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se
produziu ou deveria produzir-se o resultado”, porquanto essa norma
diz respeito, apenas e tão somente, às hipóteses em que se deve
aplicar a lei brasileira, tendo em vista o ordenamento jurídico de
outros Estados soberanos […] para que seja determinada a
competência em razão do lugar em consonância com o previsto pela
lei processual penal brasileira no tocante aos crimes cibernéticos, é
necessário saber antes de qualquer coisa saber se o lugar onde se
deu o resultado ou teve o último ato de execução do crime (tentativa)
faz parte da composição do território nacional brasileiro.

Capez (2011) entende que sobre o crime a distância, ou seja, nos casos em que
o crime se dá em um país e o resultado em outro, aplica-se a teoria da ubiquidade, e os
no caso, os dois países seriam competentes para julgar o delito.

Apesar disso, ainda não existe uma definição concreta acerca da execução do
crime no ambiente virtual. Por se tratar de um ambiente relativamente novo, o cybercrime
ainda não possui conceituações claras, o que leva a uma insegurança jurídica e a uma
sensação de impunidade do criminoso.

Nesse sentido critica o DESEMBARGADOR FERNANDO NETO BOTELHO (2011,


s/p):

Essa engenharia do mal, que monopoliza o conhecimento (da


computação sofisticada e dos protocolos de redes), cresce à sombra
da impunidade gerada pela insuficiência regulamentar de
desatualizados instrumentos legais do país, como o Código Penal de
2010. Para cuidar da nova realidade, só lei atualizada. A tecnologia,
sozinha, não dará conta. Só a lei garante oportunidade de defesa e
prova justa, próprias das Democracias amadurecidas.

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Dessa forma, conclui-se que é questionável a possibilidade de aplicar aos crimes


virtuais o disposto para os crimes a distância, e ainda, qual seria o tratamento legal que
estes devem receber, uma vez que ainda é escassa a legislação brasileira existente acerca
de tais delitos.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento do presente artigo possibilitou demonstrar que a internet,


embora tenha trazido benefícios para todos, também trouxe grandes prejuízos como a

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criminalidade virtual. Diante desse cenário, em que há uma curva crescente de crimes
virtuais, a legislação penal e processual penal deve acompanhar a evolução tecnológica
dos últimos tempos, com novos estudos e buscando a solução das diversas problemáticas
enfrentadas pelo judiciário para solucionar e punir tais delitos virtuais.

A despeito de a legislação já trazer algumas regulamentações sobre os


chamados cybercrimes através de algumas leis, estas não estão sendo eficazes, posto que
ainda nos deparamos com o surgimento de novos crimes, casos em que a conduta
delituosa não se enquadra na legislação existente até então. Para se evitar tal ocorrência,
a legislação deve ser criada de forma antecipada à conduta delituosa e deve haver
conscientização da população acerca das condutas ilícitas.

A falta de legislação ocasiona uma proteção deficiente para os usuários virtuais,


o que leva o Código Penal a punir condutas relativas. A legislação não está avançando
conforme a evolução tecnológica, tendo em vista que ainda existem condutas no âmbito
virtual carentes de regulamentação.

Nesse sentido, pode-se concluir que o que vem causando a sensação de


impunidade no que tange aos cybercrimes é, além da falta de legislação, a dificuldade da
polícia de investigar, uma vez que falta equipamentos, mão de obra especializada para este
tipo de delito, bem como um contato mais direto com o judiciário para mais agilidade na
concessão de autorizações investigatórias.

Nesta era global que leva à constante falta de segurança que a rede possui para
os usuários, o crime cibernético, que se tornou um problema, frisa-se, não só do Brasil, mas
do mundo todo, deve ser visto como uma das lacunas da lei que merece prioridade por
parte dos legisladores e dos operadores do direito, uma vez que a sua crescente ocorrência
tem levado a sensação de impunidade dos infratores, deixando as vítimas sem amparo
judicial.

Para tanto os legisladores devem se debruçar sobre os constantes casos


ocorridos e criar novas leis que tipificam ou impõem novos procedimentos para o combate

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de tais delitos virtuais. Deve haver mais investimentos no que tange ao preparo tanto da
população como de profissionais especializados para que se possa prevenir determinada
condutas, bem como para que se possa gerar novos meios de investigação e assim levar a
punição do criminoso.

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O PRINCÍPIO DA BUSCA DA VERDADE MATERIAL APLICADO NO INCIDENTE DE


DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM EXECUÇÕES FISCAIS

VERÔNICA MARCONDES: Mestranda


em Direito Constitucional e Processual
Tributário pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Direito Tributário pela
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Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo (PUC-SP). Advogada.

JULCIRA MARIA DE M. VIANNA LISBOA113

(orientadora)

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar como o entendimento firmado pelo
Tribunal Regional Federal da 3ª Região, nos autos do Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas nº 0017610-97.2016.4.03.0000, acerca do cabimento do Incidente de
Desconsideração da Personalidade Jurídica em execuções fiscais, contribui para a
efetivação do princípio da busca da verdade material e, consequentemente, dos princípios
constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Começaremos pelo
conceito de verdade, do princípio da busca da verdade material e sua aplicabilidade em
processo judicial tributário. Seguiremos ao estudo da natureza jurídica do IDPJ, do
redirecionamento fiscal, da cognição judicial realizada nos dois institutos e dos motivos
que levaram o TRF3 a entender pelo cabimento do IDPJ às execuções fiscais. Finalizaremos
analisando os benefícios que o referido incidente proporciona, tornando o feito executivo
mais justo e em consonância com as garantias fundamentais.

Palavras-chave: Verdade material. Execução fiscal. Desconsideração da personalidade


jurídica. Redirecionamento fiscal. Cognição judicial. Garantias fundamentais.

ABSTRACT: This article aims to analyze how the understanding signed by the Federal
Regional Court of the 3rd Region, in the records of the Incident of Repetitive Demands
Resolution nº 0017610-97.2016.4.03.0000, about the relevance of the Incidente of
Disregarding Legal Entity in fiscal executions, contributes to the realization of search for
material truth principle and, consequently, of due process of law, full defense and
contradictory constitucional principles. We will start with the concept of truth, of the search
for material truth principle and its applicability in tax court proceedings. We will proceed
to the study of IDPJ’s legal nature, tax redirection, the judicial cognition carried out in the

113 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Diretora-Adjunta do Curso de Graduação da
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada.

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two institutes and the reasons that led the TRF3 to understand for the IDPJ's suitability for
tax executions. We will end by analyzing the benefits that the aforementioned incident
provides, making the executive act fairer and in line with the fundamental guarantees.

Key-words: Material truth. Tax executions. Disregarding legal entity. Tax redirection.
Judicial cognition. Fundamental guarantees.

INTRODUÇÃO

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No dia 10 de fevereiro de 2021, foi concluído, perante o Órgão Especial do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas - IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000.

Ali, restou-se firmado o entendimento da indispensabilidade da instauração do


Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica - IDPJ em execuções fiscais, nas
hipóteses em que a Fazenda Pública requer responsabilização pessoal tributária com
fundamento no art. 135 e incisos, do Código Tributário Nacional114, e também
responsabilização solidária quando houver interesse comum na situação que constitua o
fato gerador da obrigação principal.

É sabido que a União Federal interpôs recurso especial, sustentando a


incompatibilidade do IDPJ com as execuções fiscais e a configuração, do art. 135 do CTN,
como hipótese de redirecionamento fiscal. Interpôs, também, agravo em recurso
extraordinário, por entender que a inclusão de terceiro no polo passivo da execução fiscal
não implica em violação, apenas diferimento do princípio do contraditório e ampla defesa.

Não obstante, não se pode negar que o entendimento firmado pelo TRF3 implica
em importante e significativo avanço na maneira como deve ser tratada a cognição judicial
em execuções fiscais, bem como a satisfação do crédito tributário pelo verdadeiro agente
que praticou o fato gerador das exações.

Isso se dá em razão da instauração do IDPJ em sede de execução fiscal impedir


que seja onerada a esfera patrimonial de terceiro que não compõe a regra-matriz de
incidência tributária, em especial na hipótese prevista no inc. III do art. 135, consistente em

114 Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias
resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II - os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

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atos praticados por diretores, gerentes ou representantes de pessoa jurídica de direito


privado com excesso de poderes ou infração de lei, contratos sociais ou estatutos.

Da análise dos próprios argumentos da União Federal em sua petição inicial no


IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000, a cognição judicial realizada pelos magistrados
quanto ao pedido de redirecionamento em feito executivo fiscal se revela muito mais
sumária – até mesmo rarefeita115 – do que aquelas realizadas em demandas que exigem
primeiro uma declaração judicial e constituição de um título executivo.
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Tanto é assim que a União Federal alega que o redirecionamento é um pedido


muito mais simples em comparação com o IDPJ, constituindo-se uma medida rotineira,
impossibilitando a prática de atos de dilapidação patrimonial dos devedores.

É justamente o que se vê na prática forense: o deferimento dos pedidos de


responsabilização tributária de sócios e gerentes de pessoas jurídicas, fundado no art. 135,
inc. III, do CTN, tendo o magistrado se utilizado tão somente das provas por ela produzidas
para declarar a responsabilidade tributária, de modo a replicar, na fundamentação de sua
decisão, os motivos expostos pela exequente.

Deste modo, vê-se que o reconhecimento da necessidade de instauração do IDPJ


em execuções fiscais implica numa nova perspectiva a ser empregada pelos magistrados
na apuração de responsabilidade tributária pessoal dos diretores, gerentes e
representantes de pessoas jurídicas, a qual exige uma cognição mais profunda e exauriente,
ao invés de deferir os pedidos de redirecionamento tão somente tendo como base os
argumentos expostos pela Fazenda Nacional.

Conquanto seja sabido que os atos administrativos gozam de presunção de


legitimidade e veracidade, e que o art. 374, inc. IV, do Novo Código de Processo Civil,
estabelece não depender de prova os fatos em cujo favor milita a presunção legal de
existência ou veracidade, fato é que o pedido de redirecionamento formulado pela Fazenda
Nacional em execuções fiscais não consiste em ato administrativo.

Consiste, na verdade, em um ato processual que deve respeitar os princípios


constitucionais processuais (como publicidade, devido processo legal, contraditório e
ampla defesa) para que possa produzir os efeitos que dele se espera.

Logo, não se pode presumir legitimidade e veracidade de um pedido de


redirecionamento formulado pela Fazenda Nacional para declarar a responsabilidade
pessoal de diretores, gerentes ou representantes de pessoa jurídica, quando temos, na

115 WATANABE (2012, p. 46) assim leciona: “Sob o critério da cognição, mais coerente seria a classificação,
numa primeira e mais ampla sistematização, em ação de cognição plena, ação de cognição sumária e ação
de cognição rarefeita ou quase inocorrente”.

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verdade, a atuação de um advogado desprovido de imparcialidade. Em virtude das graves


consequências decorrentes, imperiosa é a instauração do contraditório e ampla defesa
antes da formação da convicção do julgador.

Desta forma, a realização de uma cognição mais profunda e exauriente para a


declaração de responsabilidade pessoal, com fundamento no art. 135, inc. III, do CTN,
contribui para a efetivação do princípio da busca da verdade material nos processos
judiciais tributários, princípio este que era comumente associado, unicamente, aos
processos administrativos.

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Ainda, revela-se importante ressaltar os benefícios processuais que a aplicação do
referido princípio em demandas judiciais tributárias proporciona aos cidadãos e à
realização da justiça como um valor social, por ser muito comum a confusão entre o
interesse público primário, aquele que busca a satisfação dos interesses da nação (como
saúde, educação e produção de emprego), e o interesse público secundário, consistente
na mera arrecadação aos cofres públicos.

1. DO CONCEITO DE VERDADE

Antes de analisar os benefícios processuais que a instauração do IDPJ proporciona


nas execuções fiscais, de modo a efetivar o princípio da busca da verdade material em
processos judiciais tributários, importante é estabelecer determinadas considerações sobre
o que se entende por verdade.

Inicialmente, parte-se do pressuposto de que o processo judicial não se presta


apenas para a produção de uma decisão jurídica, mas sim uma decisão jurídica justa, em
consonância com os princípios constitucionais processuais e, em virtude disso, baseada na
verdade dos fatos.

Isso porque, conquanto a Constituição Federal estabeleça princípios que norteiam


a atividade jurisdicional do Estado, como, por exemplo, os princípios do livre acesso à
justiça, devido processo legal, contraditório e ampla defesa e vedação às provas ilícitas,
constata-se, no preâmbulo, que a justiça foi elevada como um valor supremo do nosso
Estado Democrático.

Desta forma, revela-se contraditório, em um Estado Democrático, que possui a


justiça como valor supremo, admitir-se a existência de mentiras nas relações entre aqueles
que estão no poder - por exemplo, os magistrados - e os cidadãos (TARUFFO, 2018, p.
801). Logo, a definição do que se entende por verdade ganha relevo, pois a atividade
jurisdicional deverá nortear-se pelo valor da justiça alçado pela Constituição Federal,
respeitando as garantias e direitos fundamentais de cada indivíduo.

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TOMÉ (2011, ps. 12-16) traz diversas concepções sobre a definição de verdade: a
verdade pragmática, para aquela cujo enunciado somente é verdadeiro se possuir efeitos
práticos; a verdade por consenso, segundo a qual se considera verdade o enunciado que
possuir maior credibilidade dentro de uma cultura; a verdade por coerência, que implica
ausência de enunciados contraditórios e presença de enunciados que possuam conexão
entre si; fenomenalismo, pelo qual inexistiria uma verdade absoluta, pois dependerá dos
sentidos de cada ser humano; e a verdade por correspondência, que exige a adequação, a
identidade de determinada sentença com a realidade por ela referida.
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A crítica feita pela referida autora à verdade pragmática consiste na confusão entre
os conceitos de verdade e utilidade, sendo tal posicionamento carente de cientificidade. À
verdade por consenso, consiste na sua relatividade, já que opiniões dominantes podem ser
alteradas com o passar do tempo. Quanto à verdade por correspondência e
fenomenalismo, realiza a mesma crítica: a de que os fenômenos, as coisas, apenas podem
ser cognoscíveis ao ser humano na medida em que são convertidas em linguagem
competente.

TOMÉ (2011, p. 22) adota a posição de que a verdade se dá pela relação entre as
próprias palavras, motivo pelo qual ela não é descoberta, mas sim criada pelo ser humano,
revelando-se plenamente possível que, mesmo não tendo ocorrido certo acontecimento,
seja este reconhecido pela linguagem.

Não obstante, o conceito de verdade adotado no presente estudo consiste na


verdade por correspondência, aquela que exige adequação de determinado enunciado
com a realidade por ele descrita. Uma vez que o presente estudo gira em torno da busca
da verdade em processo judicial tributário, não há como ignorar o fato de que, quando a
Constituição Federal estabeleceu as competências tributárias de cada ente federativo, o fez
com base no critério material da regra-matriz de incidência.

O critério material, por sua vez, consiste na substância essencial, no estado de fato
descrito pela hipótese de incidência. Assim define ATALIBA (2021, p. 107): “aspecto material
é a imagem abstrata de um fato jurídico: propriedade imobiliário, patrimônio, renda,
produção, consumo de bens, prestação de serviços, ou uma atuação pública (...)”.

Desta forma, se o critério elencado pela Constituição Federal para distribuição da


competência tributária consiste no critério material, e este é entendido como o estado de
fato descrito pela hipótese de incidência, não há como dissociar a verdade do mundo real.

Logo, não é possível reputar como ocorrido um fato tão somente em virtude de
transcrição em linguagem competente, quando essa linguagem não corresponde à
realidade fenomênica. Conforme ensina GONÇALVES (2002, p. 16):

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E, quando a Constituição brasileira optou pela técnica de fazer


referência ao critério material da regra-matriz de incidência para
proceder à repartição constitucional de competência impositiva,
determinou, de modo irrecorrível, que a incidência de norma de
tributação dependeria da efetiva verificação, no mundo fenomênico,
do evento traduzido em fato/ato/estado caracterizador da
materialidade por ela - Constituição – referida.

Sendo assim, se a justiça é elevada como um valor no preâmbulo da Constituição

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Federal, e a justiça, em um Estado Democrático, pressupõe a verdade, toda a interpretação
do texto constitucional deve ser por ela norteada.

Se o critério eleito para repartição de competência tributária é o critério material,


consistente no estado de fato descrito pela hipótese de incidência, o enunciado normativo
cuja linguagem encontra-se totalmente dissociada da realidade fenomênica pode ser
reputado como falso.

Não se desconhece a necessidade de verter em linguagem competente os eventos


ocorridos para que sejam inteligíveis e assim, irradiem os efeitos deles decorrentes – não
obstante, essa linguagem não pode se dissociar da realidade, reputando como ocorridos
eventos não verificáveis.

Logo, a verdade tida no presente estudo consiste na verdade por correspondência,


pela qual apenas há verdade quando o enunciado corresponde ao seu objeto. A verdade
resulta do uso racional de todas as informações disponíveis, sendo a prova um meio pelo
qual se utilizará o juiz para atribuir o valor de verdadeiro ou falso aos enunciados trazidos
pelas partes no curso do processo (TARUFFO, 2018, ps. 804 e 805).

Com isso, desde já pode-se depreender o motivo pelo qual revela-se


imprescindível a efetivação do contraditório, por meio do IDPJ, antes da responsabilização
pessoal de diretores, gerentes e representantes de pessoa jurídica em execuções fiscais,
para que o magistrado possa elaborar uma decisão jurídica de maior qualidade, mais
próxima da realidade, após a colheita de todas as informações e provas possíveis.

2.DO PRINCÍPIO DA BUSCA PELA VERDADE MATERIAL E SUA APLICAÇÃO AO


PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO

Foi estabelecida como premissa inicial a concepção da verdade pela presença da


correspondência entre o enunciado e seu objeto, tendo em vista que, em matéria tributária,
a Constituição Federal elegeu como critério de repartição de competência o critério
material.

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Logo, a incidência de uma norma depende da efetiva verificação da ocorrência do


fato contido na regra-matriz. Para a incidência de uma norma jurídica, ou produção de uma
sentença, necessário é que sejam plenamente verificáveis os fatos descritos nos
enunciados.

Ainda conforme exposto anteriormente, o objetivo dos processos judiciais não se


trata apenas de formar uma decisão jurídica, mas uma decisão jurídica justa, tendo em vista
que a Constituição Federal alçou a justiça como um valor supremo a ser seguido pelo nosso
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Estado Democrático. Por isso, deve o processo judicial não apenas seguir os princípios
constitucionais processuais, como o devido processo legal e contraditório e ampla defesa,
como também perseguir a verdade.

Não obstante, quando se trata da verdade aplicada aos processos judiciais, é muito
comum, entre a doutrina, haver uma distinção entre os conceitos de verdade formal e
verdade material. Por verdade material, entende-se aquela que efetivamente ocorreu no
mundo dos fatos. Já a verdade formal seria aquela alcançada em autos processuais, por
meio da análise do conjunto probatório e em respeito aos ditames legais e constitucionais,
que dá amparo à formação de uma decisão jurídica.

É muito comum, ainda, atribuir-se a busca pela verdade material, ou seja, por
aquilo que efetivamente ocorreu no mundo dos fatos, em processos administrativos
tributários, pois o rigor das formalidades ali é muito menor, como, por exemplo, a
possibilidade do próprio contribuinte apresentar sua defesa e juntar novos documentos a
qualquer tempo, inclusive em seara recursal.

Não obstante, entendemos que o denominado princípio da busca pela verdade


material também deve ser aplicado em processos judiciais, inclusive os tributários, não
sendo restrito aos processos administrativos. A verdade é apenas uma, não se podendo
admitir a existência de uma outra verdade que não seja aquela relativa à ocorrência dos
fatos.

Não é apenas em virtude de haver uma legislação que disciplina, de forma mais
rigorosa, com imposição de prazos e formalidades, os atos a serem praticados em juízos,
que isso implica na existência de uma outra categoria de verdade, que não aquela que
corresponda ao que ocorreu no mundo dos fatos, menos exigente que a verdade material
(MACEI, 2012, p. 38).

Reconhece-se ser impossível chegar ao conhecimento do magistrado o


conhecimento absoluto da verdade pois, considerando que a verdade não se constrói, mas
sim é redescoberta, não pode o ser humano voltar no tempo para adquirir o conhecimento
puro da ocorrência do evento.

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Por este motivo, aceita-se que o conhecimento da verdade é relativo conforme a


investigação empregada, mas que essa investigação deve pautar-se no princípio da
descoberta da ocorrência dos fatos da maneira mais próxima da realidade. Com as palavras
de MACEI (2012, p. 31):

A verificação da Verdade dos fatos pretéritos, aqueles não sujeitos a


repetição, como os fenômenos químicos experimentados em
laboratório, por exemplo, é possível de acordo com as opções de
conhecimento da Verdade escolhidas por aqueles que se ocupam de

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sua descoberta. Não é a verdade que é ou não relativa, mas sim o
conhecimento da Verdade que pode ser relativo de acordo com o
contexto de sua investigação, com a quantidade e qualidade dos
dados disponíveis àqueles que buscam conhecê-la. (grifo no original)

TOMÉ (2011, ps. 27 e 28), por sua vez, ao rejeitar a concepção de verdade por
correspondência, sob o fundamento de que o mundo da experiência não pode ser
integralmente descrito, defende que a verdade a ser buscada, tanto em processos judiciais
quanto administrativos, é a verdade lógica.

A verdade lógica é aquela alcançada mediante a constituição de fatos jurídicos,


pouco importando se o acontecimento efetivamente ocorreu ou não. Havendo a
constituição do fato por meio de linguagem competente, será considerado verdadeiro.

De acordo com o que foi abordado, conquanto seja impossível ao homem voltar
no tempo para obter o conhecimento da verdade absoluta nos casos investigados, não
podemos nos desvincular da necessidade de haver, da maneira mais próxima possível,
correspondência entre os fatos narrados em uma decisão jurídica e os eventos ocorridos.

Entretanto, não se pode negar que a verdade material buscada, por meio das
provas a serem produzidas em autos processuais, também pode ser considerada uma
verdade lógica, justamente em virtude da ausência de contradição entre os enunciados a
serem pronunciados pela autoridade judicial competente e os eventos ocorridos na
realidade.

A lógica aqui não será vista apenas na ausência de enunciados contraditórios e


presença de enunciados que se conectam, mas também na correspondência entre os
eventos do mundo real e os fatos narrados nos enunciados produzidos pelo juiz, no
processo de formação da decisão jurídica.

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É em virtude da lógica presente entre os fatos narrados e os eventos ocorridos,


quando da aplicação do princípio da busca da verdade material em processos judiciais, que
a produção probatória ganha especial relevo.

Conforme explica TARUFFO (2018, p. 803), a correta aplicação das normas


incidentes pressupõe e exige a existência de fatos que fundamentam as situações jurídicas.
Com as palavras do referido autor: “o processo se preocupa com eventos da vida real e do
mundo real, mesmo que trate apenas de enunciados ou narrativas sobre eles e, portanto,
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necessariamente tende a reconstruir esses eventos”.

Logo, o princípio da busca da verdade material também deve ser aplicado aos
processos judiciais, não somente os administrativos, pois a existência de regramento acerca
da produção probatório não elimina o compromisso de manter fiel a linguagem
competente com os eventos do mundo real. A verdade é apenas uma, não subsistindo uma
verdade no plano normativo e outra no plano dos fatos, motivo pelo qual se destaca
importância da produção probatória para efetivação do referido princípio.

3.DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A desconsideração da personalidade jurídica é prevista no art. 50 do Código Civil


de 2002, o qual dispunha, inicialmente, que os efeitos de certas e determinadas relações
de obrigações seriam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da
pessoa jurídica em caso de abuso de sua personalidade, abuso este que poderia se dar
pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Trata-se, portanto, de instituto jurídico que visa proteger os interesses de credores


lesionados por abusos e fraudes provocados pelos gestores de pessoas jurídicas que se
utilizam indevidamente da autonomia patrimonial da empresa para promover o seu
próprio enriquecimento, sem que tenham de comprometer o seu patrimonial pessoal com
relação às dívidas contraídas.

Percebe-se, portanto, que a desconsideração da personalidade jurídica tem como


pressuposto a má-gestão de uma empresa, mas não qualquer tipo de má-gestão. Esta deve
ser oriunda de atos ilícitos consistentes em abuso da personalidade jurídica, praticados
pelos administradores ou sócios, como o desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Por desvio de finalidade, entende-se a utilização da pessoa jurídica para objetivo


diverso daquele constante em seu contrato social, como simulação, fraude e abuso de
direito. A confusão patrimonial, por sua vez, consiste na ausência de separação entre o
patrimônio pessoal dos administradores ou sócios e o patrimônio da empresa, o que se
pode verificar, por exemplo, por meio da utilização do cartão corporativo para compras de

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cunho pessoal e utilização de imóveis em nome da pessoa jurídica para proveitos de lazer
pessoal.

Entretanto, para aplicação do referido instituto, necessário é seja comprovado,


judicialmente, a ocorrência dos atos ensejadores da desconsideração, tendo em vista o seu
caráter excepcionalíssimo, pressupondo a prática de atos ilícitos.

O Código de Processo Civil de 1973 nada dispunha acerca da efetivação do


instituto da desconsideração. Porém, antes mesmo do advento do Código de Processo Civil

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de 2015, a aplicação do referido instituto se dava por meio de incidente processual, em
autos apartados, possuindo a decisão que o resolve caráter de decisão interlocutória,
recorrível por meio de agravo de instrumento, o que ainda permanece.

Com o advento do Novo Código, o art. 134 passou a prever a possibilidade de


requerer a desconsideração da personalidade jurídica em todas as fases do processo de
conhecimento, em cumprimento de sentença ou execução fundada em título executivo
extrajudicial, tanto em petição inicial quanto em caráter incidente, sendo que, nesta última
hipótese, ocorrerá a suspensão do processo principal.

Ainda, em 30 de abril de 2019, veio o Código Civil a sofrer importantes alterações


no tocante ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica por meio da Medida
Provisória nº 881/19, a qual foi convertida na Lei da Liberdade Econômica, de nº 13.874/19,
inserindo o art. 49-A e modificando a redação do art. 50, além de inserir novos parágrafos.

O art. 49-A positivou o entendimento acerca da autonomia patrimonial das


pessoas jurídicas, no sentido de que a pessoa jurídica não se confunde com seus sócios,
associados, instituidores ou administradores.

Dispõe seu parágrafo único, por sua vez, que referida autonomia é instrumento
lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de
estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em
benefício de todos.

O parágrafo único do referido dispositivo encontra-se em absoluta consonância


com a função social da empresa, quando reconhece, com outras palavras, que a autonomia
da pessoa jurídica deve ser preservada para o progresso econômico do Estado Brasileiro,
como uma nação.

Isso porque a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, tendo


como único requisito apenas a existência de dívidas, sem a configuração do abuso da
personalidade, ou a banalização do referido instituto, com sua aplicação sem a estrita

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observação dos requisitos exigidos pela lei, implica em verdadeiro desestímulo à iniciativa
privada, principal geradora de empregos e renda para população e, também, principal alvo
da tributação brasileira.

Logo, por via de consequência, se não há estímulo à exploração de atividade


econômica de iniciativa privada, o Estado também não possui fonte para arrecadar os
recursos financeiros que necessita para promover atividades estatais, como políticas
públicas, educação, saúde, etc.
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Já a nova redação dada ao art. 50 começa em seu caput, dispondo que a extensão
dos efeitos de certas e determinadas relações de obrigações serão estendidos aos bens
particulares, não apenas dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, mas dos
administradores ou sócios que foram beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso da
personalidade jurídica.

Referida alteração apresenta profunda importância, tendo em vista que há a


possibilidade da pessoa jurídica possuir mais de um sócio ou administrador. O benefício
indevido, oriundo de ato ilícito que dá ensejo à desconsideração, pode ter sido usufruído
não por todos, mas apenas por um ou uma parte, implicando assim na responsabilização
dessa parte que agiu de má-fé, e não de todo o quadro societário ou administrativo.

Quanto aos parágrafos, merecem destaque o primeiro e o segundo, que vieram a


positivar os conceitos de desvio de finalidade116 e confusão patrimonial117. O quarto118
destaca-se por corrigir uma distorção causada pela aplicação descuidada do instituto: a
responsabilização patrimonial de todo um grupo econômico pelos débitos inadimplidos
de apenas uma, sem restar comprovados os requisitos do abuso de personalidade. Já o
quinto prevê não constituir desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da
finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Desta forma, depreende-se que o Novo Código de Processo Civil foi cuidadoso ao
tratar do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, com a devida razão, em

116 Art. 50, § 1º Para o disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o
propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
117 Art. 50, § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios,
caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor
proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial
118 Art. 50, § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata
o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

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razão das consequências patrimoniais danosas que sua aplicação de maneira indistinta
pode causar não somente aos sócios e administradores, mas à sociedade como um todo,
desincentivando a iniciativa privada, geradora de empregos e renda à população brasileira.

4.DO REDIRECIONAMENTO FISCAL

Ao contrário do IDPJ, o redirecionamento fiscal não possui previsão legislativa,


nem no Código Tributário Nacional ou na Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80). É
resultado de construção jurisprudencial, na hipótese em que a Fazenda Nacional, vendo

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seu crédito constituído em Certidão de Dívida Ativa não satisfeito pelo principal devedor
(aquele cujo nome consta no título executivo extrajudicial), redireciona a execução fiscal
contra terceiro, identificado como responsável tributário, cujo nome não consta na CDA.

Possui como fundamento o art. 4º da LEF, o qual prevê em seus incs. I e V,


respectivamente, que a execução fiscal pode ser promovida contra o devedor e o
responsável, nos termos da lei, por dívidas, tributárias ou não, de pessoas físicas ou pessoas
jurídicas de direito privado (LIMA, 2018, p. 87).

O devedor, previsto no inc. I, consiste no contribuinte, aquele que teve relação


direta com a ocorrência do fato imponível, praticando o critério material na hipótese de
incidência. Já por responsável tributário, entende-se, com as palavras de ATALIBA (2012, p.
91), aquele que “na verdade, não realiza o fato relevante para determinar o surgimento da
obrigação – tão-só é posto, pela lei, no dever de prover o recolhimento de tributo
decorrente de fato provocado ou produzido por outrem”.

A responsabilidade tributária encontra-se disciplinada no CTN, nos arts. 128 à 138,


e é dividida em responsabilidade dos sucessores, de terceiros ou por infrações. Uma vez
que o objeto do presente artigo se restringe à aplicabilidade do IDPJ às execuções fiscais,
tendo como base o entendimento do TRF3 nos autos do IRDR nº 0017610-
97.2016.4.03.0000, vamos nos ater especialmente, ao disposto nos arts. 124 e 135, inc. III,
este último inserido na Seção III – Responsabilidade de Terceiros.

O art. 135, inc. III, do CTN, estabelece a responsabilidade pessoal dos diretores,
gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado pelos créditos
correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de
poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Embora o entendimento predominante na jurisprudência seja o de que a


responsabilidade prevista referido dispositivo seja solidária ou subsidiária, a redação é
expressa e claro em estabelecer a responsabilidade pessoal, excluindo assim a
responsabilidade da pessoa jurídica. Trata-se de norma sancionatória, que pune os

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praticantes de ato ilícito, motivo pelo qual não faz sentido manter a pessoa jurídica no polo
passivo, já que não cometeu infração alguma (LIMA, 2018, p. 81).

Importante ressaltar que é rotineiro deparar-se com pedidos de redirecionamento


de execução fiscal, requerendo o reconhecimento da responsabilidade não apenas do
sócio, gerente ou representante de pessoa jurídica, como também responsabilidade de
grupo econômico em virtude de interesse comum, que seria o benefício econômico, com
fundamento no art. 124, inc. I, do CTN119.
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Entretanto, é pacífico o entendimento, perante o Superior Tribunal de Justiça, de


que o simples fato de compor grupo econômico, por si só, não configura o interesse
comum120, sendo imprescindível para configuração do referido interesse a atuação de
mais de uma pessoa na conformação do fato gerador do tributo121.

Conforme a própria Fazenda Nacional alegou, quando da instauração do IRDR nº


0017610-97.2016.4.03.0000, o procedimento aplicável aos pedidos de redirecionamento
da execução fiscal é muito mais simples, consistindo numa petição com os fundamentos e
documentos pertinentes.

Ao contrário do que ocorre com o IDPJ, não há citação dos indicados pela
exequente para apresentação de defesa antes da apreciação do pedido. Desta forma, os
diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado são desde
logo incluídos no polo passivo da demanda.

A defesa cabível é a oposição de embargos à execução, caso seja necessária a


dilação probatória, ou a apresentação de exceção de pré-executividade, caso a matéria a
ser tratada for puramente de direito ou cognoscível de ofício pelo juiz.

Destaca-se que, para a oposição de embargos à execução em feito fiscal, o ar. 16,
§ 1º, da LEF, é expresso ao exigir a garantia da execução. No entanto, com o advento do
NCPC, que estabelece, em seu art. 914, que referida modalidade de defesa é oponível
independentemente de penhora, caução ou depósito, passou a haver uma flexibilização da
regra contida na Lei nº 6.830/80. Tornou-se admissível a oposição de embargos à execução

119 Art. 124. São solidariamente obrigadas: I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que
constitua o fato gerador da obrigação principal.
120 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.832.514/PE, Processo
2019/0051039-6, Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Julgamento: 16 de novembro de 2021. Órgão
Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe 18 de novembro de 2021.
121 _______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.273.396/DF, Processo 2011/0200989-7,
Relator: Napoleão Nunes Maia Filho. Julgamento: 05 de dezembro de 2019. Órgão Julgador: Primeira Turma.
Publicação: DJe 12 de dezembro de 2019.

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fiscal quando a garantia não for suficiente, cujo processamento será desprovido de efeito
suspensivo122.

Sendo assim, percebe-se que o pedido de redirecionamento da execução fiscal é


muito mais célere. Ele não exige a instauração do contraditório e ampla defesa antes do
reconhecimento do pedido formulado pela Fazenda Nacional.

No entanto, é também mais custoso aos sócios, gerentes e representantes de


pessoa jurídica, os quais têm que dispor de parcela de seu patrimônio para que oferecer

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embargos à execução, ante a necessidade de dilação probatória para comprovação da
ausência de atos praticados com excesso de poder, infração à lei ou contratos sociais ou
estatutos.

5.DA COGNIÇÃO JUDICIAL

Conforme exposto nos tópicos anteriores, o redirecionamento fiscal e o IDPJ são


dois institutos parecidos, porém que não se confundem. A semelhança entre ambos é que
visam a responsabilização de terceiros acerca de débitos assumidos por pessoas jurídicas,
apenas.

A diferença começa no fato de que o IDPJ pressupõe a responsabilização somente


dos administradores ou sócios da pessoa jurídica em virtude, apenas, de abuso da
personalidade jurídica, que se dá mediante confusão patrimonial ou desvio de finalidade.

Já o redirecionamento fiscal pressupõe a previsão legal de responsabilidade


tributária de terceiro não indicado na CDA, a qual pode surgir, mas não se limita, à hipótese
prevista no art. 135, inc. III, do CTN (prática de atos contra à lei, o contrato social ou o
estatuto por parte dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas).

Ainda, o redirecionamento fiscal, além de poder ser apresentado, obviamente, em


execuções fiscais, é efetivado por meio de petição simples apresentada no curso do
processo pela Fazenda Nacional. O contraditório e ampla defesa se dá posteriormente,
após a inclusão dos responsáveis no polo passivo da demanda.

Isso implica, na maior parte das vezes, na necessidade de garantia do débito


tributário para apresentação de defesa em que se possa exercitar ampla dilação probatória,
apenas com efeito suspensivo quando garantido o débito em sua integralidade.

122 _______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.699.802/RJ, Processo
2017/0248606-5, Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Julgamento: 21 de março de 2019. Órgão Julgador:
Primeira Turma. Publicação: DJe 26 de março de 2019.

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O IDPJ, por sua vez, pode ser instaurado tanto em processo de conhecimento
como em cumprimento de sentença ou execução fundada em título executivo extrajudicial,
tanto em petição inicial quanto em caráter incidente, sendo que, nesta última hipótese,
ocorrerá a suspensão do processo principal, independentemente de garantia.

Logo, antes de ser declarada a desconsideração da personalidade jurídica, é


efetivado o contraditório e ampla defesa, não sendo necessário aos sócios, gerentes ou
administradores da pessoa jurídica dispor de parcela de seu patrimônio para realizar
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atividade probatória em juízo.

Essa é a principal e crucial diferença entre os dois institutos: o momento do efetivo


contraditório e, consequentemente, da produção probatória, o que influencia
profundamente na cognição judicial.

Por cognição judicial entende-se o ato de inteligência (WATANABE, 2012, p. 67), a


atividade mental realizada pelo magistrado no que concerne ao conjunto de argumentos
e de provas juntadas por todas as partes, na qual serão sopesados todos os fatos
comprovados, os princípios e as legislações atinentes ao tema, formando, ao final, os
motivos que sustentarão a decisão judicial.

A cognição judicial possui profunda importância na aplicação do princípio da busca


da verdade material nos processos judiciais, inclusive tributários, em busca da efetivação
da justiça, valor alçado no preâmbulo da Constituição Federal.

Se necessário é, para a realização da justiça, buscar, ao máximo, a verdade dos


fatos, a cognição realizada pelo magistrado será de melhor qualidade quanto mais tiver
acesso aos elementos probatórios trazidos por cada uma das partes que compõem o
processo.

A cognição, de acordo com WATANABE (2012, ps. 118 e 119), pode ser considerada
no plano vertical e horizontal. A cognição horizontal diz respeito a quantas questões, sejam
processuais ou de mérito, são tratadas em uma determinada decisão. Pode ser plena,
quando o juiz analisar a todas, ou parcial, quando analisar apenas parte delas. A cognição
vertical, por sua vez, diz respeito à profundidade da análise, podendo ser exauriente
(completa) ou sumária (incompleta).

Trazendo referida classificação às execuções fiscais, fato é que a cognição se revela


rarefeita, mas ainda assim presente, pois poderá o juiz realizar pronunciamentos de valor
acerca dos fatos que lhe forem narrados. Não é apenas porque a cognição é rarefeita que
isso quer dizer que seja inexistente, e não é apenas porque estamos diante de uma
execução fiscal, de procedimento mais célere, que a cognição não poderá ser plena em sua
extensão e exauriente em sua profundidade.

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Por isso, questiona-se qual o tipo de cognição realizada pelo juiz, quando do
deferimento do redirecionamento fiscal baseado tão somente nas alegações da Fazenda
Nacional, com fundamento no art. 135, inc. III, do CTN, que prevê a prática de atos graves,
como infração à lei, contrato social.

Referida cognição é plena e exauriente o suficiente para decretar a


responsabilidade tributária, de maneira definitiva em primeira instância? A cognição ali
realizada, tão somente com base nas alegações de apenas uma das partes, é compatível
com a gravidade da decisão tomada?

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Outro questionamento que se coloca é se tal procedimento e a cognição ali
realizada são suficientes para averiguar se os indicados como responsáveis solidários
efetivamente praticaram o fato imponível em conjunto.

Importante ressaltar que a responsabilidade tributária com fundamento no art.


135, inc. III, do CTN, é o ponto de convergência entre esse instituto e o IDPJ. Este último
responsabiliza os sócios ou administradores de pessoa jurídica por abuso da
personalidade, consistente no desvio de finalidade e na confusão patrimonial.

Tais modalidades são totalmente compatíveis com a expressão “atos contrários à


lei, ao contrato social ou estatuto”. No entanto, ao IDPJ é dada a oportunidade de
contraditório e ampla defesa antes do pronunciamento judicial sobre o tema, enquanto ao
redirecionamento fiscal não.

O último questionamento que se faz é se o fato de execuções fiscais serem


procedimentos mais céleres que ações de conhecimento – o que torna a cognição judicial
rarefeita – é motivo idôneo para afastar a instauração do IDPJ.

Portanto, revela-se essencial, neste momento, analisar as razões estabelecidas no


julgamento do IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000 que reputaram compatível a
instauração do incidente, quando a responsabilidade tributária estiver fundada no art. 135,
inc. III, e no interesse comum na situação que constitua o fato gerador.

6.DO ENTENDIMENTO FIRMADO NOS AUTOS DO IRDR Nº 0017610-


97.2016.4.03.0000

O julgamento do IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000 iniciou-se com o voto do


relator Baptista Pereira, em 09/10/2019, que propunha a seguinte tese: “não cabe
instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica nas hipóteses de
redirecionamento da execução fiscal fundada em responsabilidade tributária”.

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Entendeu o referido relator pela incompatibilidade do IDPJ nas hipóteses


estabelecidas pelos arts. 124, 133, 134 e 135 do CTN, mas necessidade de sua instauração
nos casos típicos de desconsideração de personalidade jurídica, em razão da dilação
probatória decorrente do ônus da Fazenda Nacional quanto ao abuso da personalidade
jurídica por meio da confusão patrimonial ou desvio de finalidade.

A primeira crítica que logo se faz ao referido posicionamento consistente em que,


conforme abordado anteriormente, há um ponto de convergência entre o
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redirecionamento da execução fiscal e o IDPJ, consiste na hipótese prevista no art. 135, inc.
III, do CTN. Atos praticados com excesso de poderes, infração à lei, contrato social ou
estatuto possuem íntima ligação com abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade
e confusão patrimonial.

Desta forma, justamente por ser o IDPJ um procedimento mais lento que o pedido
de redirecionamento, a Fazenda Nacional nunca iria proceder à instauração do referido
incidente em execuções fiscais, quando possui outro instrumento mais célere à sua
disposição. Todos os atos com aparência de ilícitos poderiam ser encaixados no
redirecionamento com fulcro no dispositivo anteriormente citado.

Fundamentou também o relator Baptista Lopes que a aplicação do CPC/15 à Lei


nº 6.830/80 seria subsidiária, apenas nos casos de compatibilidade. O motivo da
incompatibilidade entre estes dois institutos seria de que a responsabilidade tributária
alcança, apenas, o sócio administrador, enquanto o IDPJ alcança todos os sócios. Ainda, a
execução fiscal não comportaria dilação probatória, sendo a garantia do juízo intrínseca ao
microssistema da Lei de Execuções Fiscais.

Desde logo, importante é salientar que não se vislumbra incompatibilidade entre


os institutos apenas no fato de que o redirecionamento alcança o sócio administrador, e o
IDPJ alcança todos os sócios. Independentemente de qual espécie de cargo que se exerce
em uma pessoa jurídica, deve ser concedido ao responsável o mesmo direito de defesa de
qualquer outro cidadão, em respeito às garantias e direitos fundamentais.

Ainda, tal fundamento não se sustenta quando se observa que a nova redação do
art. 50, do Código Civil, estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica apenas
atingirá os sócios que agiram com abuso da personalidade jurídica, e não todos, podendo
ser tanto um sócio comum ou um sócio com poderes de administração.

O julgamento foi retomado no dia 01/12/2020, iniciando-se com o voto divergente


do Desembargador Wilson Zauhy, cujas razões foram adotadas para fixação da tese
discutida e acolhimento parcial do pedido formulado do IRDR, entendendo-se pela
possibilidade de redirecionamento apenas nas hipóteses dos arts. 132, 133 e 134, do CTN,

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e imprescindibilidade da instauração do IDPJ nas hipóteses do art. 135, do mesmo diploma


legal, e na hipótese de interesse comum.

Referido desembargador iniciou o seu voto explicando que a tese proposta pelo
relator deixaria em aberto diversos pontos atinentes ao redirecionamento fiscal, além de
não se enquadrar à legislação atual, não somente com relação ao CPC/15, mas também
com relação à Lei nº 13.874/19, denominada Declaração de Direitos da Liberdade
Econômica.

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Explica o desembargador que a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica
prevê que o disposto na sua redação, no que for relativo à aplicação e interpretação, não
se aplica ao direito tributário e financeiro123. No entanto, o Direito Processual Civil, que
possui aplicação subsidiária à Lei de Execuções Fiscais, se distingue do Direito Tributário
propriamente dito.

Ainda, de acordo com o desembargador, o art. 4º, § 2º, da Lei nº 6.830/80124,


consiste em previsão expressa e legal de aplicação da legislação civil quando se trata de
assunção de responsabilidade tributária. Logo, não há que se falar em incompatibilidade
da instauração do IDPJ em execuções fiscais quando se trata de responsabilização de sócio
ou administrador pela dívida tributária inscrita no nome de pessoa jurídica.

Em seu voto, também consignou o desembargador aquilo que já foi abordado


anteriormente neste artigo: não há distinção entre as hipóteses de prática de atos com
excesso de poder ou infração à lei e a prática de desvio de finalidade. Prossegue pela
aplicação do IDPJ também em execuções fiscais, nas hipóteses estabelecidas pelo art. 135
do CTN. Com suas palavras: “em verdade o artigo 135, em especial o seu inciso III, é uma
panaceia para todas as expectativas da Fazenda, que, até o presente, sempre a atendeu de
forma deveras benfazeja”.

Ressaltou ser dever do Fisco lançar o tributo com indicação das pessoas jurídicas
que estejam vinculadas ao fato gerador, e não redirecionar a cobrança para pessoa jurídica
estranha ao fato, ainda que integrante do mesmo grupo econômico. O interesse comum
se dá quando os sujeitos, conjuntamente, fazem parte da situação que permite a ocorrência
do fato imponível. A responsabilidade solidária, prevista no inc. II, também não pode estar
desvinculada à ocorrência do fato gerador.

123 Art. 1, § 3º: O disposto neste Capítulo e nos Capítulos II e III desta Lei não se aplica ao direito tributário
e ao direito financeiro, ressalvado o disposto no inciso X do caput do art. 3º desta Lei (grifo no original).
124 Art. 4º, § 2º À Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à
responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial.

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Deste modo, segundo o desembargador, para que terceiro não indicado na CDA
seja incluído no polo passivo da execução fiscal, seja em virtude de interesse comum ou
por atos contrários à lei ou contrato social, deve ser instaurado o contraditório por meio
do IDPJ.

Destacou, inclusive, que ainda que se entenda por suposta incompatibilidade entre
os procedimentos, a exceção de pré-executividade a ser oferecida pelos responsáveis
deverá possuir novos contornos e amplitude temática e ritualística, ou seja, deverá abarcar
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a possibilidade de dilação probatória, neste caso específico.

Veio o desembargador Fabio Prieto a proferir o seu voto, no sentido de que o IDPJ
seria cabível a todas as hipóteses de redirecionamento fiscal, tendo como pressupostos a
proteção constitucional à livre iniciativa e ao desenvolvimento nacional, fazendo parte de
suas razões o argumento de que “o arbítrio fazendário e judicial causa mal imenso ao País”.

Por fim, o desembargador Souza Ribeiro também propôs a tese de


imprescindibilidade de instauração do incidente em todas as hipóteses de
responsabilidade tributária prevista no CTN. Fundamentou que muitos abusos são
cometidos na práxis da desconsideração da personalidade jurídica, sendo o direito de
defesa e todos os seus corolários os princípios mais caros do Estado de Direito. Ressaltou,
ainda, que o IDPJ dispensa a prestação de garantia da execução, assegurando as garantias
constitucionais àqueles que não tiveram a oportunidade de se defender no âmbito
administrativo.

Conquanto os desembargadores Fabio Prieto e Souza Ribeiro tenham adotado o


posicionamento de imprescindibilidade do IDPJ em todas as hipóteses de responsabilidade
tributária, prevaleceu a posição intermediária, os termos do voto do desembargador
Wilson Zauhy.

7. DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Percebe-se, acima de tudo, que o principal objetivo ao entender pela


compatibilidade entre o IDPJ e a Lei nº 6.830/80 consiste na efetivação das garantias
fundamentais estabelecidas em nossa Constituição Federal, em especial o devido processo
legal, contraditório e ampla defesa.

Destaca-se que o próprio desembargador Wilson Zauhy, ao prever a eventual


possibilidade de se entender pela incompatibilidade, faz a ressalva de que a exceção de
pré-executividade deve ganhar novos contornos e amplitude temática e ritualística,
abarcando a possibilidade de dilação probatória, sem que esteja obrigado o contribuinte
a garantir nem que for parte da dívida para tanto.

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Isso porque revela-se injusta a situação em que o contribuinte, indevidamente


incluído no polo passivo de execução fiscal, tenha de dispor parcela de seu patrimônio
para que possa exercer pleno direito de defesa que não lhe foi atribuído em seara
administrativa. Corre ainda o risco de, mesmo garantindo parcialmente o juízo, vir a ter seu
patrimônio constrito por meio de bloqueios judiciais.

O princípio do devido processo legal, previsto no art. 5º, inc. LIV, da Constituição
Federal, revela-se na previsão em lei dos atos a serem adotados na instauração e
procedimento tanto de processo administrativo quanto judicial. Esses atos asseguram às

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partes o contraditório e ampla defesa, princípio previsto no inc. LV, consistente na
oportunidade dada às partes de exporem suas razões e prová-las por todos os meios
cabíveis, sejam legais ou moralmente legítimos, antes que seja proferida sentença.

Referido princípio é antigo, com origem na Inglaterra no ano de 1215, sob o


reinado do Rei João Sem Terra, também conhecido como due processo of law, cujo
significado consiste nas “garantias de natureza processual tendentes a inibir ou eliminar o
arbítrio nas restrições aos direitos à vida, à liberdade e à propriedade” (GONÇALVES, 2002,
p. 114).

THEODORO JUNIOR ensina que o antigo devido processo legal transformou-se no


processo justo, o qual “deverá proporcionar a efetividade da tutela àquele a quem
corresponda a situação jurídica amparada pelo direito, aplicado à base de critérios
valorizados pela equidade concebida, sobretudo, à luz das garantias e dos princípios
constitucionais” (2011, p. 29).

Importante salientar que o devido processo legal também dá ensejo à promoção


da segurança jurídica, o qual visa “proteger e preservar as justas expectativas das pessoas.
Para tanto, veda a adoção de frustrar-lhes a confiança que depositam no Poder Público”
(CARRAZZA, 2019, p. 344).

Conforme já exposto anteriormente, o instituto da desconsideração da


personalidade jurídica possui caráter excepcional, tendo em vista que sua aplicação sem
estrita observância dos requisitos consiste em verdadeiro desestímulo à iniciativa privada,
principal geradora de empregos e renda para a população.

Foi demonstrado também que o redirecionamento da execução e o IDPJ possuem


um ponto de convergência, que consiste na prática de atos contrários à lei, ao contrato
social e ao estatuto, possuindo íntima ligação com o abuso da personalidade jurídica, por
meio do desvio de finalidade e confusão patrimonial.

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Não obstante, conquanto seja reconhecido o cuidado que deve se ter na aplicação
da desconsideração da personalidade jurídica, revelando-se indispensável a instauração do
contraditório e ampla defesa, o mesmo cuidado não se dá na aplicação do
redirecionamento fiscal com fundamento no art. 135, inc. III, do CTN.

Isso porque o redirecionamento fiscal é, na maior parte das vezes, deferido


integralmente, tendo o magistrado como base apenas os argumentos da Fazenda
Nacional, que, com as palavras do próprio desembargador Wilson Zauhy, serve de
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fundamento para todos os requerimentos da referida exequente. E, conforme já abordado


na introdução, é muito comum a confusão entre o interesse público primário e secundário
(arrecadatório). De acordo com CARRAZZA:

Em boa verdade científica, o interesse fazendário não se confunde


nem muito menos sobrepaira o interesse público. Antes, subordina-
se ao interesse público e, por isso, só poderá prevalecer quando em
perfeita sintonia com ele.

O mero interesse arrecadatório não pode fazer tábua rasa da


igualdade, da legalidade, da anterioridade, enfim, dos direitos
constitucionais dos contribuintes (2017, p. 418) (grifos no original)

Desta forma, a instauração do IDPJ em execuções fiscais, ao prestigiar as garantias


do devido processo legal e contraditório e ampla defesa, também prestigia o princípio da
segurança jurídica, o qual visa investigar os fatos jurídicos que dão ensejo à
responsabilidade tributária.

A sujeição passiva dos tributos, antes de tudo, se encontram previstas no próprio


arquétipo constitucional de cada espécie tributária. Não se revela-se lícito, à Fazenda
Pública, redirecionar a execução fiscal desrespeitando a regra-matriz desenhada
constitucionalmente, apenas em virtude de interesses arrecadatórios.

Ademais, tendo em vista que o art. 135, inc. III, do CTN, converge absolutamente
com as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, a cognição judicial a ser
realizada deve ser a mesma, pois revela-se imperiosa a dilação probatória para apuração
da prática de atos tão graves como aqueles previstos tanto no CTN como no CPC.

Logo, a instauração do IDPJ em execuções fiscais não somente fortalece a


efetivação dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa e
segurança jurídica, como também protege o contribuinte de desvirtuamentos da regra-
matriz constitucional dos tributos, a qual exige, para sua incidência, a efetiva verificação da
ocorrência dos eventos e a transformação em linguagem competente, linguagem esta que
deve corresponder à essência da realidade.

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8.CONCLUSÃO

Logo no início do presente trabalho, foi estabelecido que o conceito de verdade


adotado é a verdade por correspondência, segundo a qual a verdade é determinada pela
adequação entre os enunciados e os eventos ocorridos.

Isso porque, em matéria tributária, a Constituição Federal, ao delegar as


competências, desde logo estabeleceu o arquétipo constitucional da regra-matriz de
incidência de cada tributo, demarcando assim o critério material.

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O critério material, por sua vez, consiste no estado de fato descrito pela hipótese
de incidência. Desta forma, se para incidência da norma deve ser efetivamente verificada a
ocorrência do evento caracterizador da materialidade, a transcrição desse evento em
linguagem competente deve ser a mais próxima da realidade possível.

Considerou-se também que a justiça é alçada a valor supremo no preâmbulo da


Constituição Federal, não se podendo falar em justiça quando se admite a subsistência de
enunciado que reconheça a ocorrência de um fato que não corresponde aos eventos do
mundo real.

Desta forma, conquanto a doutrina tradicional tenha por costume distinguir a


verdade em material e formal, a verdade é apenas uma: aquela que corresponde à efetiva
ocorrência dos eventos transformados em fatos. É essa correspondência que deve ser
buscada tanto nos processos administrativos quanto judiciais.

Por isso, defende-se a aplicação do princípio da busca da verdade material nos


processos judiciais, pois a existência de formalidades a serem seguidas não elimina o
compromisso de manter fiel a linguagem competente com os eventos do mundo real.

Assim, revela-se um grande avanço o reconhecimento, por parte do TRF3, acerca


do cabimento da instauração do IDPJ em execuções fiscais, nos autos do IRDR nº 0017610-
97.2016.4.03.0000.

A hipótese de desconsideração da personalidade jurídica em virtude de abuso da


personalidade, que pode ser dar por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial,
possui íntima ligação a prática de atos contrários à lei, contrato social ou estatutos, previsto
no art. 135, inc. III, do CTN.

Sendo duas hipóteses intrinsicamente ligadas, em resposta aos questionamentos


levantados do item 5 (Da cognição judicial), não se revela razoável deferir o
redirecionamento da execução fiscal tão somente com base nos argumentos trazidos pela
Fazenda Pública. Revela-se a cognição realizada, nesta hipótese, sumária e superficial
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diante de acusações tão graves e, por isso, incompatível com a medida judicial concedida,
a qual exige uma atividade probatória mais intensa.

Mesmo posicionamento se adota com relação à cognição judicial realizada tendo


como fundamentação, na decisão jurídica, apenas os fundamentos trazidos pela Fazenda
Nacional, no sentido de reconhecimento de responsabilidade solidária em virtude de
interesse comum.
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Isso porque, se o princípio da busca da verdade material também deve ser aplicado
nos processos judiciais, a cognição a ser realizada na hipótese de abuso de personalidade
jurídica e atos contrários à lei, ao contrato social e ao estatuto deve ser a mesma, por se
tratarem de hipóteses intrínsecas. Em ambas hipóteses deve se proceder ao contraditório,
ampla defesa e instrução probatória, antes de proferida qualquer decisão que venha a
atingir o patrimônio de terceiro.

Isso se dá em razão da necessidade de maior averiguação acerca da ocorrência


dos eventos, por mais que seja impossível ao magistrado conhecer da verdade absoluta.
Sobre ele recai o dever de transformar em linguagem competente os eventos apurados e,
com isso, atrair a hipótese de incidência de cada espécie tributária ao caso concreto. Todo
o cuidado é necessário para que a regra-matriz de incidência não seja distorcida, em
respeito aos princípios, direitos e garantias fundamentais do contribuinte.

O último questionamento levantado no item 6 é se o fato das execuções fiscais


serem procedimentos mais céleres que ações de conhecimento é motivo idôneo para
afastar a instauração do IDPJ. O nosso posicionamento é que não, pois o fato de se tratar
de um procedimento apoiado em título executivo não afasta o dever do magistrado de
realizar cognição exauriente acerca dos fatos que lhe são narrados. O argumento de
incompatibilidade em virtude da celeridade da execução fiscal possui mais caráter de
resguardar o interesse arrecadatório do que o público.

Ainda, não se pode deixar de destacar que a desnecessidade de depósito judicial


para ampla discussão probatória acerca da responsabilidade tributária favorece o princípio
da busca da verdade material.

Deve-se levar em consideração a dificuldade que a maior parte dos contribuintes


possui para dispor de parcela de seu patrimônio, com o objetivo de garantir ao menos uma
parte da dívida tributária, apenas para possibilitar discussões acerca dos fatos, já que às
exceções de pré-executividade não é cabível alegações que demandem dilação probatória.

Deste modo, conclui-se que a instauração do IDPJ em execuções fiscais contribui


para a produção de uma decisão jurídica mais justa, em respeito aos princípios
constitucionais e, em especial, ao princípio da busca da verdade material. Ela propicia ao

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magistrado o desenvolvimento de uma cognição mais profunda e exauriente, evitando


assim a responsabilização de terceiros que não possuem ligação com o sujeito passivo e o
critério material da regra-matriz de incidência tributária.

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AS FORMAS ALTERNATIVAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO DIREITO DO


CONSUMIDOR: BREVE ESTUDO SOBRE FORMAS ALTERNATIVAS DE RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS NO DIREITO BRASILEIRO

ANTONIO AUGUSTO VILELA: Pós


graduado em Direito Ambiental, Civil,
Constitucional, Consumidor, Famílias e
Sucessões, Imobiliário, Notarial e Registral,

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Previdenciário, Processual Civil pelas
instituições "Damásio de Jesus" e "Dom
Alberto". Bacharel em Administração e
Direito pelas instituições "Faculdade
Cidade de Coromandel" e "Fundação
Carmelitana Mário Palmerio".

RESUMO: Os meios alternativos de solução de conflitos têm granjeado espaço


importante no panorama jurídico no transcorrer dos últimos anos. A procura dos seres
humanos por uma resolução mais rápida e as reclames em relação aos processos judiciais
explicam uma cautela particular a matéria,. É patente ainda que o Poder Judiciário
brasileiro vem batalhando com um elevado número de pendências que cresce
excessivamente. Uma presumível modificação de conduta dos cidadãos, que por índole
aspiram a ter uma atitude mais litigante, pode colaborar com o Estado no julgamento
dos casos que verdadeiramente fazem jus a intervenção estatal. O presente trabalho faz
uma análise das formas alternativas de resolução de conflitos, sendo elas a conciliação, a
mediação, a negociação e a arbitragem, conceituando cada uma delas, abordando suas
técnicas, características e a aplicabilidade. Faz uma análise da forma alternativa de
resolução de conflitos, trazendoum breve histórico e demais pontos relevantes diante da
temática suscitada.

Palavras-Chave: Defesa do consumidor. Formas alternativas. Solução de conflitos.

ABSTRACT: Alternative means of conflict resolution have gained important space in the
legal landscape in recent years. Looking for of human beings for a faster resolution and
the complaints in relation to the judicial processes explain a particular caution in the
matter. It is also clear that the Brazilian Judiciary has been struggling with a high number
of pending issues that are growing excessively. A presumptive change in the conduct of

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citizens, who by nature aspire to have a more litigious attitude, can collaborate with the
State in the judgment of cases that truly deserve state intervention. The present work
analyzes the alternative forms of conflict resolution, namely conciliation, mediation,
negotiation and arbitration, conceptualizing each one of them, approaching their
techniques, characteristics and applicability. It analyzes the alternative form of conflict
resolution, bringing a brief history and other relevant points on the raised theme.
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Keywords: Consumer protection. Alternative ways. Conflict resolution.

INTRODUÇÃO

Todas pessoas são consumidores em potencial cliente do mercado , para adquirir


artigos e/ ou serviços, firmando um contrato formal ou até , mesmo informal. Com o passar
dos anos, os vínculos de consumo passaram grandes inovações, ocorreram mutações nas
condições financeira, culturais, sociais e legais, deste modo, ocasionaram uma necessidade
maior de se instituir normas que atendessem essa atividade consumidora da sociedade.

As ações voltadas para a defesa dos consumidores em todo o mundo têm origem
em marcos passados historicamente importantes. Esse marco aconteceu no Brasil, com a
inclusão do tema na Carta Magna de 1988, instituindo a defesa jurídica dos consumidores
como sendo um direito indispensável do ser humano. Posteriormente, Código de Defesa
do Consumidor que foi criado em 1990 o (CDC), regimentando a proteção das relações
de consumo.

Nos dias atuais, o consumidor é um sujeito ativo nas ações consumidoras, buscando
cada vez mais os subsídios e sem aceitar com displicência as imposições que lhe possam
prejudicar. Nesse panorama de consternação, surgem uma imensa gama de processos que
se acumulam desordenadamente no judiciário, permanecendo por anos afim de que sejam
desenvoltos e resolvidos.

Assim, com a criação do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) e tornando


obrigatório as audiências de mediação e/ou de conciliatórias, várias situações e
perplexidade ocorreram ante tais interrogações. Em um mundo moderno e global, em que
cada vez mais as pessoas aumentam suas ligações interpessoais, de modo geral crescem
o surgimento de conflitos sociais, o que têm, resultado na judicialização.

Essa grande procura por judicialização ante os conflitos, oriundos do crescimento


nas relações jurídicas, tem ocasionado uma certa demora do Poder Judiciário,
principalmente no cenário brasileiro, uma vez que o Judiciário nacional nãotem

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possibilidade conduzir, devido ao grande números e com eficiência tal crescimento da


demanda processual. Assim sendo, legislação e doutrina têm procurado estabelecer novas
formas para solucionar conflitos. Neste trabalho de pesquisa, destacam-se a mediação,
conciliação, negociação e arbitragem.

Ressalta-se que no presente trabalho não se esgota os direitos do consumidor,


pois uma vez que tem-se como objetos do estudo “apenas os direitos básicos e
essenciais aos consumidores, não prejudicando a incidência de novos e mais benéficos

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direitos das relações de consumo” (SILVA, 2017, p. 20). Assim, na composição do do rol
de direitos do consumidor em relação a conflitos , alguns se destacam para a elaboração
dessa pesquisa, que não tem a pretensão de tornar os demais menos importantes.

2 FORMAS ALTERNATIVAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOS CONSUMIDORES

O vocábulo conflito traz em seu contexto diferentes sentidos, dentre os quais


pode-se enumerar significados como, enfrentamento, luta, oposição guerra entre
pessoas, , discordância de ideias ou de opiniões altercação, divergência. A respeito do
assunto Morais et al., (2012, p. 45) comentam sobre a origem do termo, ao afirmarem
que:

Nascido do latim, a palavra conflito tem como raiz etimológica a ideia


de choque, ou ação de chocar, de contrapor ideias, palavras,
ideologias, valores ou armas. [...] Na tentativa de uma explicação mais
esmiuçada para a palavra conflito, tem-se que consiste em um
enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma espécie que
manifestam, uns a respeito de outros, uma intenção hostil,
geralmente com relação a um direito. Para manter esse direito,
afirmá-lo ou restabelecê-lo, muitas vezes lançam mão da violência, o
que pode trazer como resultado o aniquilamento de um dos
conflitantes.

No mesmo sentido, afirmam Cintra, et al.,(2010, p. 26) que conflito é uma palavra
que se caracteriza em ocasiões em que um indivíduo, querendo adquirir para si um
certo bem, não pode consegui-lo seja porque a pessoa que poderia possibilitar a posse
não o faz ou porque o próprio direito torna proibida a intensão voluntária da pretensão.

De acordo Sales et al., (2009, p. 75) o conflito é analisado como algo apropriado do
dia-dia, intrínseco ao incremento das relações. Nesse contexto, a acepção de conflito
empenha-se em romper com a resistência do elemento oposto para controlá-la e, deste
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modo, estabelecer o recurso, entretanto, a parte contrária pode protestar diante do desafio
de forma prosaica ou impresumível, conforme os denodos culturais do contexto social dos
abarcados.

Sob este aspecto, a compreensão negativa do conflito provoca uma série de


atitudes e reações também negativas em meio aos litigantes, causando por muitas vezes a
transformação de fundamento do conflito, uma vez que ocasiões de estresse terminam
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tornando difícil a concepção real do problema, por sua vez, quando existe probabilidade
de entender o conflito de uma forma positiva as duas partes podem se beneficiar.

Reconhecendo a problemática da sociedade contemporânea, dada a complexidade


das relações que se estabelecem e, em especial, da complexidade dos conflitos que
eventualmente possam ser delas gerados, há muito vem buscando encontrar soluções
alternativas para resolução destes conflitos.

Neste aspecto, na busca pela solução de conflitos, a tutela jurisdicional tem cedido
lugar, ainda muito gradativamente, a conciliação, a mediação, a negociação ea arbitragem
extrajudicial, consideradas alternativas menos formais, mais céleres, menos onerosas e, por
vezes, mais eficazes do que a via tradicional do processo.

As formas alternativas para resolução de conflitos ocorrem de maneira extrajudicial


e judicial, dependendo do tipo da demanda. As formas alternativas de resolução de
conflitos também chamadas de sistemas alternativos adequados para resolução de
conflitos são: a conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem. São consideradas
como formas consensuais autocompositivas, a conciliação, amediação e a negociação. Já
a arbitragem é considerada como como forma adversarial, ou seja, heterocompositiva.
(Brasil.a, 2015).

2.1 A conciliação

A conciliação é uma técnica autocompositiva que exige a participação de um


terceiro imparcial, chamado de conciliador, que usa métodos apropriados, de forma
participativa e amigável na busca da solução de um conflito, ou seja, para que a
conciliação seja exitosa, é necessário que haja a conciliação, o acordo entre as partes.(CNJ,
2015).

De acordo com Spengler (2016, p. 75) a conciliação é considerada da seguinte forma:

A conciliação é um instituto que tem por objetivo chegar


voluntariamente a um acordo neutro e conta com a participação

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de um terceiro – conciliador – que intervém, podendo inclusive


sugerir propostas para fins de dirigir a discussão. “Na conciliação
o objetivo é o acordo, ou seja, as partes, mesmo adversárias,
devem chegar a um acordo para evitar o processo judicial ou para
a ele pôr um ponto final, se por ventura ele já existe”. Justamente
por isso, o conciliador sugere, orienta, interfere e aconselha as
partes sem analisar o conflito em profundidade.

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O principal objetivo da conciliação é a solução de um litígio, ou seja a busca pelo
acordo entre as partes conflitantes para pôr fim a demanda. Para que o acordo aconteça
é necessária a intervenção do conciliador que procura orientar as partes daimportância
de uma solução amigável, sugerindo propostas que possam ser satisfatórias para ambas
as partes para com isso, finalizar o conflito existente. Para Silva (1999, p. 31) os objetivos
da conciliação são os seguintes:

A conciliação visa a aproximação das partes, as quais chegam em


audiência envolvidas emocionalmente, buscando harmonizar o
equilíbrio emocional, conduzindo-as ao processo conciliatório, de
forma a solucionar amigavelmente o conflito jurídico instalado,
devendo o conciliador esclarecer as partes sobre as vantagens da
conciliação, mostrando-lhes os riscos e as consequências do litígio.

Segundo Barbosa (2003, p. 252) a conciliação é reconhecida como:

O processo que menos ameaça o status quo, posto que


normalmente as partes não tem obrigação de chegar a um acordo.
O que se ofereceé apenas uma oportunidade de discutir e explorar
possibilidades de resolução aceitáveis a todos.

A conciliação é considerada como um procedimento condescendente, ou seja,


“especialmente flexível que permite a exploração dos reais interesses das partes, é
considerado menos impositivo pelas as partes. Numa análise plana, é o programa de
intervenção de terceiros mais simples e fácil de administrar.” (BARBOSA, 2003, p.
252).Conforme menciona Barbosa (2003, p. 252):

A conciliação possui diversas vantagens em relação a


procedimentos tradicionais. A primeira é a pacificação social, pois
neste procedimento o acordo ocorre num ponto de equilíbrio
aceito por todas as partes e logra levar a paz ao próprio espírito
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das pessoas. Ao contrário do que ocorre com a sentença judicial, o


acordo da conciliação não é imposto autoritariamente e logra
ventilar emoções das partes para acalmá-las,podendo atingir a lide
sociológica, em geral mais ampla do que aquela que emergiu como
simples ponta do iceberg.

O conciliador deve orientar as partes das vantagens de fazer um acordo, estimular


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as partes a se expressarem em relação ao litígio apresentado e propor alternativas que


satisfaça a demanda, para com isso, por fim ao litígio em questão. Oconciliador tem que
se comprometer com o procedimento a ser aplicado, através da aplicação das técnicas
que foram treinados a utilizar, neste momento.

“O conciliador terá que ser o ouvinte e o orador, o determinado e o


condescendente, sendo a paciência o ponto fundamental de uma unidade de vivênciana
Conciliação.” (ARAGÃO, 2003, p. 103). Ainda de acordo com o mesmo autor (2003,p. 103),
o conciliador deve ter a seguinte descrição:

Partindo do perfil que deve ter o conciliador para interferir na


operacionalidade do convencimento das partes, alguns requisitos
desempenham esta identidade, tais como: um nível cultural
apropriado, de qualidade; apresentar bom senso e equilíbrio
emocional; ser educado, atencioso, cortês; ético; e sobretudo ter
conhecimento jurídico-social da realidade vivenciada
nacionalmente.

Neste sentido, “A conciliação se mostra eficaz em relações esporádicas,


delimitadas e recortadas em determinado espaço e tempo. Exemplo típico são os
conflitos que envolvem relações de consumo”. (SPENGLER, 2016, p. 106).

A conciliação é uma forma alternativa de resolução de conflitos que pode ser


aplicada em diversas situações. É utilizada principalmente nos juizados especiais cíveis
e criminais, por ser uma técnica que resolve grande parte dos conflitos em uma
audiência, chamada de audiência de conciliação, que passou a ser utilizada em outros
órgãos vinculados a justiça como por exemplo, no atendimento dos Procons e
especialmente no Balcão do Consumidor, conforme será abordado no próximo capítulo.

Com a perspectiva da mudança no judiciário, bem como das formas que serão
tratados os conflitos de acordo com o novo Código de Processo Civil, a mediação é uma
das técnicas que serão aplicadas para a busca da solução do conflito. Sobre ela se
debruça o tópico a seguir.

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2.2 A mediação

A mediação é considerada como uma forma consensual de resolução de


conflitos, pois trata-se de um processo em que uma terceira pessoa, chamada de
mediador, que usa técnicas não propositivas, mas que de alguma forma facilite o
acordo, que deve ser construído pelas partes, interage com elas para com isso, pôr fim
a demanda.

Spengler (2012, p. 131) define mediação da seguinte forma:

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A mediação é geralmente definida como a interferência, em uma
negociação ou em um conflito, de um terceiro com poder de
decisão limitado ou não autoritário, que ajudará as partes
envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo,
mutuamente aceitável com relação as questões em disputa. Dito
de outra maneira, é um modo de construção e de gestão de vida
social graças a intermediação de um terceiro neutro,
independente, sem outro poder que não a autoridade que lhes
reconhecem as partes que a escolheram livremente. Sua missão
fundamental é restabelecer a comunicação.

A mediação pode ocorrer de forma judicial ou extrajudicial, dependendo do tipo


de conflito que se apresenta. É considerada como um processo informal, porque não
tem nenhuma regra que deverá ser seguida em relação a produção de provas daquilo
que está sendo questionado. O importante é que as partes deverão participar
ativamente do processo, expondo sobre sua pretensão.

As principais características da mediação, segundo Spengler (2012, p. 132-


135):

a) a privacidade, uma vez que o processo de mediação


desenvolvido em ambiente secreto. [...]

b) economia financeira e de tempo: em contrapartida aos


processos judiciais que, lentos, mostram-se custosos. [...]

c) oralidade: a mediação é um processo informal. [...]

d) reaproximação da partes: o instituto da mediação ao


contrário Da jurisdição tradicional, busca aproximar as partes. [...]

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e) autonomia das decisões: as decisões tomadas não necessitarão


ser alvo de futura homologação pelo judiciário. [...]

f) equilíbrio das relações entre as partes: grande preocupação


trazidapela mediação é o equilíbrio da relação entre as partes.
[...]

O mediador tem um papel muito importante no processo de mediação, pois aplica


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técnicas de facilitação, para que haja comunicação entre as partes, “estabeleceo contexto
do conflito existente, mediante técnicas da psicologia e do serviço social, identifica
necessidades e interesses, objetivando produzir decisões consensuais, com ajuda do
direito”. (SPENGLER, 2012, p. 136). Segundo Almeida (2003, p. 193), na mediação há duas
modalidade básicas a serem observadas:

A avaliadora e a facilitadora: Mediação facilitadora (também


chamada de

mediação não diretiva) é aquela na qual o mediador exerce tão


somente a função de facilitar a negociação entre as partes, focalizando
os seus interesses e auxiliando a formação de um consenso mais
célere e menos oneroso. [...]

Mediação avaliadora, a seu turno, também chamada de avaliação


diretiva é caracterizada por maior liberdade do mediador. Nesta
modalidade de mediação, o mediador pode opinar sobre questões
de fato e de direito e, além disso, sugerir as partes a solução que
considerar mais justa, bem como os termos de um possível acordo.

Atualmente a mediação é considerada como uma novidade nos meios forenses,


pois ela teve seu espaço em função das mudanças do novo CPC, que trouxea mediação
como uma forma de prevenção e resolução dos conflitos.

Nessa linha, Reis (2015, p. 224) descreve o mediador da seguinte forma:

O mediador é uma pessoa neutra em relação aos interesses


contrapostos, escolhida de comum acordo pelas partes, ou
pertencente a câmara de mediação a que as partes livremente se
vinculam, ou ainda, no caso da mediação judicial, cadastrado no
juízoou tribunal em que distribuído o processo no âmbito do qual
poderá se instalar a mediação. Ao contrário do árbitro, que
funciona como um juiz privado, o mediador não tem a

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incumbência de decidir o litígio, mas sim ajudar, de forma isenta,


imparcial e independente, na construção de uma solução
equilibrada para as partes em conflito. Portanto, o mediador deve
gozar de confiança das partes, sob pena de viciar o processo de
construção de consenso.

Para que a medição tenha o resultado esperado é preciso que o mediador possua
habilidades autocompositivas, para isso, ele deve buscar conhecimentos específicos,

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para facilitar na aplicação das técnicas de mediação, colocando em prática suas
habilidades. Segundo Spengler (2016, p. 32) um bom mediador precisa possuir as
seguintes características:

a) capacidade de aplicar diferentes técnicas autocompositivas. [...]

b) capacidade de escutar a exposição de uma pessoa com


atenção, utilizando determinadas técnicas de escuta ativa;

c) capacidade de inspirar respeito e confiança no processo;

d) capacidade de administrar situações em que os ânimos estejam


acirrados;

e) estimular as partes a desenvolverem soluções criativas [...]

f) Examinar os fatos sob uma nova ótica para afastar perspectivas


judicantes ou substituí-las por perspectivas conciliatórias;

g) Motivar todos os envolvidos [...]

h) Estimular o desenvolvimento de condições que permitam a


reformulação das questões diante de eventuais impasses:

i) Abordar com imparcialidade além das questões juridicamente


tuteladas, todas e quaisquer questões que estejam influenciando
a relação das partes.

O principal objetivo da mediação é o restabelecimento dos vínculos desfeitos em


função do conflito, pois ela visa a aproximação, o resgate da comunicação entre as
partes, para que em consequência disso, se chegar a um acordo. Facilita a continuação
de uma convivência que existia antes de se apresentar o conflito, ou seja,o resgate da paz
social das partes envolvidas. “A mediação é mais aplicada e tem melhores resultados
em relações ditas continuadas, ou seja, aquelas que se manterão ao longo da história
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dos conflitantes como é o caso das relações de parentesco, relações conjugais e de


amizade.(SPENGLER, 2016, p. 105-106).

A mediação é aplicada especialmente nos conflitos que envolvem as questõesde


família, pois estas envolvem a emoção, os sentimentos das partes, por isso, é preciso
que elas mesmas descubram a melhor forma de solucionar o litígio.

Diante da expectativa de satisfação em resolver conflitos de forma consensual,


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rápida e precisa buscou-se uma forma mais simples e objetiva de se chegar a uma
acordo, através do método de negociação, tratada no próximo item.

2.3 A negociação

A negociação também é considerada como uma das formas alternativas de


resolução de conflitos que ganhou espaço na medida em que não possui uma regra
específica a ser seguida, simplesmente é a busca por resolver interesses comuns, deforma
rápida e mais barata para as partes porque não depende necessariamente de intervenção
de terceiros. O conceito de negociação, é definido por Ribeiro (2003, p. 385) da seguinte
forma:

A negociação pode ser definida como a comunicação feita com o


propósito de persuasão. Azevedo entende que a negociação é o
método autocompositivo mais preeminente em razão do seu baixo
custo operacional (ou custo processual) e sua celeridade. Deste
modo, sempre que for possível a utilização da negociação para a
resolução de litígios, esta deve ser escolhida evitando-se o recurso
a instrumentos mais complexos e morosos.

O método de negociação, não se utiliza da intervenção de um terceiro facilitador,


pois a negociação ocorre diretamente entre as partes interessadas em resolver o conflito,
é um método extrajudicial e uma das principais vantagens é de que a solução para a
demanda ocorre pela participação ativa e conjunta das partes. “A negociação é a forma
mais comum de resolução de controvérsia, já que é a mais informal e faz parte do
cotidiano. Na negociação, as partes propõem alternativas e soluções, defendendo, sem
a intervenção de terceiros, seus interesses pessoais”. (ALMEIDA, 2003, p. 194).

De acordo com Sayed (2006, p. 2) O processo de negociação é uma forma de


comunicação entre as partes que possuem interesses comuns que se propõem a
confrontar e discutir propostas claramente com o propósito de atingir um acordo. Por
ser considerado como um processo é fundamental que em qualquer tipo de negociação
se defina os objetivos a serem discutidos e especialmente saber como elaborar

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perguntas para levantar informações úteis para uma adequada elaboração do plano da
negociação conduzida.

As etapas do processo de negociação segundo Sayed (2006, p.3) são as seguintes:

1) Definir objetivos claros: o primeiro passo no planejamento de


cada negociação é determinar os objetivos. [...]

2) Preparação: para negociar com êxito é preciso estar preparado [...]

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3) Abertura: durante a negociação é extremamente importante
criar- se um ambiente favorável ao entendimento desde o início,
reduzindo eventuais tensões, procurando-se um consenso. [...]

4) Exploração: muitas vezes iniciamos uma negociação nesta


etapa, esquecendo-nos das anteriores. Isto poderá ser um erro,
pois o desenvolvimento será mais fácil se precedido da etapa de
planejamento. [...]

5) Acordo: Este momento requer muita sensibilidade. Devem-se


evitara impaciência e a precipitação. [...]

6) Avaliação: Já concluída a negociação e distante do outro


negociador, pode ser interessante verificar o saldo da negociação,
os seus pontos positivos e negativos. [...]

A negociação é classificada em dois diferentes tipos, a negociação integrativae a


negociação distributiva, conforme descrito por Ribeiro (2003, p. 385):

A negociação distributiva é justamente aquela em que um ponto


está sob disputa e as partes tem interesses opostos em relação a
esse ponto, quanto mais uma pessoa receber menos a segunda
obterá. Todavia, a existência de distintos interesses sobre um
mesmo bem da vida não pressupõe que estes interesses sejam
opostos. Na negociação integrativa, as partes não são
necessariamente oponentes e não mais absolutamente verdadeira
a afirmativa de que quanto maisuma receber menos a outra obterá
da negociação. Na negociação integrativa as partes podem
cooperar para aumentar o valor total da operação a ser
eventualmente dividido.

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Considerando-se que a negociação é um método autocompositivo de resolução


de conflitos, presume-se com isso, que haja duas ou mais pretensões em disputa, em
função disso, a vantagem da negociação é a privacidade e a liberdade de decidir em
conjunto com o seu adversário, para se obter um melhor controle sobre a decisão, com
isso, alcançar o resultado desejado.

No processo de negociação, segundo Sayed (2006, p. 5) o negociador precisater


algumas habilidades e características, entre elas:
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a) Distanciamento emocional;

b) Saber ouvir sabiamente, esta prática permite obter muitas


respostas e identificar os interesses envolvidos na negociação,
facilitando a decisão;

c) Utilizar comunicação de forma clara e correta;

d) Movimento corporal e gestual no processo de persuasão;

e) Ser respeitosa, íntegro, justo, responsável, digno de confiança,


ter senso de humor e autodisciplina;

f) Ser paciente, flexível, saber lidar com as diferenças;

g) Procurar o contínuo aperfeiçoamento;

A negociação é uma técnica que se adapta as diferenças, por isso, é aplicada em


diversas situações de conflito, sejam elas em relação a negócios ou até mesmo nas
questões familiares, pois o importante é chegar a um resultado satisfatório quanto as
expectativas das partes.

Nos três itens anteriores, foram apresentadas as formas alternativas de resolução


de conflitos, consideradas como formas autocompositivas consensuais, sendo elas, a
conciliação, a mediação e a negociação. No item seguinte seráanalisada a arbitragem
que é considerada uma forma heterocompositiva de resolução de conflitos, também
chamada de adversarial.

2.4 A arbitragem

A arbitragem é um método de resolução de conflito que possui legislação


própria, determinado pela Lei n° 9.307/96, que descreve em seus artigos as disposições
gerais sobre a arbitragem, desde a convenção de arbitragem e seus efeitos, dos árbitros
e do procedimento arbitral a ser adotado.

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A arbitragem é tida como um dos métodos alternativos de resolução deconflitos,


no entanto, ela é considerada como uma forma heterocompositiva, ou seja,adversarial.
A arbitragem diferencia-se de outros métodos porque nela a decisão é dada por um
terceiro, chamado de árbitro, que é eleito pelas partes e sua decisão é irrecorrível. De
acordo com Barbosa (2003, p. 253) a arbitragem é definida como:

Meio extrajudicial de resolução de controvérsias no qual as partes


outorgam a um terceiro, neutro e imparcial, o poder de decidir de
maneira coercitiva problemas já surgidos ou que possam surgir de

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uma determinada relação jurídica. Percebe-se portanto, que a
arbitragem assemelha-se à decisão judicial, pois em ambos os
casos um terceiro, seja ele árbitro ou juiz, decide com autoridade
acerca de uma controvérsia.

É um método que resolve a lide processual, mas é considerado de certo modo


inconveniente no sentido em que ele não aproxima as partes envolvidas, ou seja, não
busca resolver a lide sociológica, desta forma, prejudicando as relações sociais de
convivência pré-existentes, afastando-se umas das outras.

Para um melhor entendimento deste instituto, vale destacar algumas


características, de acordo com Spengler (2012, p. 223-224):

a) Ampla liberdade de contratação, já que é estabelecida pelo


acordo das partes, que definem o objeto do litígio e podem
escolher até mesmo as regras de direito substantivo e objetivo
aplicável a ele.

b) Pode ser usada em qualquer controvérsia que envolva direito


patrimonial disponível (contratos em geral, tanto na área civil
como comercial).

c) É considerada como justiça de técnicos, na qual uma vez


atendido o pressuposto da capacidade civil, poderão as partes
escolher livremente os árbitros a quem confiem para que deem
tratamento ao litígio.

d) Permite ao árbitro disciplinar o procedimento caso não haja


convenção das partes neste sentido.

e) Transforma a sentença arbitral em título executivo judicial,


tornando-a, portanto, eficaz como sentença declaratória ou
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constitutiva.

A arbitragem é considerada como um método que pode ser aplicado tanto na


forma de direito público, quanto de direito privado, considerando as partes envolvidas.
“Se de direito público, significa que a arbitragem se dá entre estados; se de direito
privado, os envolvidos são particulares; assinale-se que pode ocorrer o tipo misto, no
qual a arbitragem acontece entre um estado e um particular.” (SPENGLER, 2012, p. 225).
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Existem dois tipos de arbitragem, que merecem ser contempladas, a arbitragem


institucional e a arbitragem ad hoc, o que diferencia as duas é a maneira que se realizará
o procedimento, pois este é de grande importância na medida em que os envolvidos
possam escolher a forma mais adequada de resolver o conflito. Segundo Spengler
(2012, p. 225) essa diferença se dá da seguinte forma:

Na arbitragem ad hoc, as partes definem o desenvolvimento da


arbitragem, que poderá ser de direito ou de equidade, inclusive
como se acolherá o árbitro para aquele caso. Optando por uma
arbitragem ad hoc, as partes simplesmente escolhem o ônus de
organizar e administrar todo procedimento arbitral. Na
arbitragem institucionalizada, já há uma instituição especializada
em mediar e arbitrar litígios, com regulamento próprio e lista de
árbitros, tudo previamente conhecido e sabido pelas partes. Nela
as partes optam por submeter-se aos dispositivos constantes no
regulamento arbitral de uma instituição especializada, eu? deverá
ser dotada de organização própria para a condução do caso.

Na arbitragem há procedimentos arbitrais que devem ser observados e seguidos,


assim como os princípios que os regem de forma a assegurar garantias como “o
princípio da igualdade entre as partes, do contraditório e da ampla defesa, oprincípio
da imparcialidade do árbitro, do livre convencimento do julgador, todos contidos no
princípio fundamental do devido processo legal”. (SPENGLER, 2012, p. 233).

A partir do momento em que as partes decidem optar pela arbitragem e seus


procedimentos, é necessário que se pense na figura do árbitro que possui um papel
importante para o resultado esperado. Spengler (2012, p. 241), descreve o árbitro da
seguinte forma:

O árbitro é toda pessoa maior e capaz que estando investido na


confiança das partes é nomeado para tratar de um litígio
prolatando uma decisão que o componha de modo que possa

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permitir a continuidade da relação entre os litigantes após o


término do procedimento arbitral.

A arbitragem por ser considerada como um método decisório mais semelhante


com o processo judicial, porém mais célere e sigiloso que o mesmo, oferece algumas
vantagens em seu procedimento. Pode ser aplicada nos diversos tipos de controvérsias
que envolvam o direito patrimonial disponível, ou seja, nos contratos emgeral.

Uma vez proferida a sentença arbitral, pelo juízo arbitral, de acordo com o

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descrito no artigo 18 da Lei 9.307/96, esta não fica sujeita a recurso ou a homologaçãodo
Poder Judiciário, pois a mesma torna-se uma modalidade de título executivo judicial.

CONCLUSÃO

Nos dias atuais, vivemos em uma sociedade de consumo, pois a oferta por
produtos e serviços disponíveis no mercado, a publicidade empregada como forma de
despertar a vontade de consumir e a facilitação do crédito acaba por gerar uma procura
imensa pela satisfação de adquirir produtos e serviços, que na maioria das vezes não
são de necessidade do consumidor. Como o consumidor é considerado a parte
vulnerável da relação de consumo, acaba caindo na tentação das condições domercado.

Com a preocupação em resguardar os interesses do consumidor, o Estado


buscou uma forma de garantir direitos como forma de proteção ao consumidor, por
isso, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8. 078/90, que é uma norma de
ordem pública, mas que busca a satisfação do interesse social, é uma garantia dosdireitos
dos cidadãos.

Considerando que na atualidade a busca pela solução dos conflitos gerados, tem
aumentado de forma acelerada, e a procura da solução pela via jurisdicional temsido
demorada, devido ao grande número de processos existentes no judiciário, é que se
procurou por formas alternativas de resolução de conflitos através da conciliação,
mediação, negociação e arbitragem. Esses métodos alternativos são menos formais,com
isso, proporcionam uma rapidez na solução e satisfação do litigio, são menos onerosos
e na maioria das vezes mais eficazes que o processo tradicional. Possibilitao diálogo
entre as partes interessadas para se construir uma acordo de forma pacífica,para isso, são
utilizadas técnicas auto compositivas para cada tipo de conflito apresentado.

Enfim, a relação ao direito do consumidor e as relações de consumo também


ocorre a busca por soluções alternativas dos conflitos. Neste sentido, é relevante a
importância dos sistemas estaduais e municipais na execução de políticas públicas
voltadas à proteção e defesa do consumidor.
171
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REFERÊNCIAS

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processual. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação
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RIBEIRO, Rochelle Pastana. A utilização de algoritmos para uma negociação mais justa e
sem ressentimentos – uma análise da obra de Brams e Taylor. In: AZEVEDO, André
Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Editora
Grupo de Pesquisas, 2003. P. 381-395.

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Acesso em 24/03/2022.

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SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação de Conflitos – da teoria à prática. Porto Alegre:


Livraria do advogado, 2016.

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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: EFEITOS JURÍDICOS NO DIREITO PENAL

ADRIANNE SILVA DORNELES:


Bacharelanda em Direito pela
Universidade de Gurupi - UnirG.
JORGE BARROS FILHO
(orientador)
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RESUMO: A violência obstétrica está ligada a um tipo de violência praticada em desfavor


da mulher pelos profissionais da saúde, caracterizando-se pelo desrespeito, abusos e maus
tratos durante a gestação ou no momento do parto. Ela pode ser feita tanto na forma
psicológica quanto na forma física. É a consequência de uma atenção desumanizada, pelos
quais nos dias de hoje milhares de mulheres passam quando solicitam um atendimento ou
cirurgia médica. Por ser uma prática cada vez mais presente nos hospitais e clínicas,
escolheu-se debater o impacto que esse delito possui para o Direito brasileiro. Desse
modo, o presente estudo teve o objetivo de analisar os efeitos que a violência obstétrica
possui na área penal. Na metodologia, tratou-se de uma revisão da literatura baseada em
livros, artigos científicos e legislação ligada ao tema proposto. A coleta de dados se deu
em base de dados como Scielo, Google Acadêmico, dentre outros. Nos resultados, ficou
claro que o Direito Penal vem penalizando a violência obstétrica, ainda que ela não esteja
devidamente normatizada. Nesse caso, a jurisprudência brasileira vem entendendo que se
deve punir médicos e equipe médica que tenham praticado algum ato de violência com a
paciente gestante, com base na responsabilidade civil e penal.

Palavras-chave: Gestação. Parto. Violência. Penalidade. Responsabilidade jurídica.

ABSTRACT: Obstetric violence is linked to a type of violence practiced to the detriment of


women by health professionals, characterized by disrespect, abuse and mistreatment
during pregnancy or at the time of childbirth. It can be done in both psychological and
physical form. It is the consequence of a dehumanized attention, which nowadays
thousands of women go through when requesting medical care or surgery. As it is an
increasingly present practice in hospitals and clinics, we chose to debate the impact that
this crime has on Brazilian law. Thus, the present study aimed to analyze the effects that
obstetric violence has in the penal area. In terms of methodology, it was a review of the
literature based on books, scientific articles and legislation related to the proposed theme.
Data collection took place in databases such as Scielo, Google Scholar, among others. In
the results, it became clear that Criminal Law has been penalizing obstetric violence, even
though it is not properly regulated. In this case, Brazilian jurisprudence has understood that
doctors and medical staff who have committed any act of violence with the pregnant
patient should be punished, based on civil and criminal liability.

Keywords: Gestation. childbirth. Violence. Penalty. Legal liability.


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Sumário: 1. Introdução. 2. Descrevendo a violência obstétrica. 3. O Direito Penal na


violência obstétrica. 4. Considerações Finais. 5. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

A violência é uma das ações que mais denigre o ser humano. É o ato que traz
prejuízos (muitos deles insuperáveis e permanentes) de toda ordem para o indivíduo,
afetando diretamente o principal princípio da Constituição Federal de 1988: o da Dignidade
da Pessoa Humana. Por essa razão, entre os vários tipos de violência existente, para fins

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desse estudo, apresenta-se o da violência obstétrica.

A violência obstétrica é uma terminologia oriunda do Dr. Rogelio Pérez D’ Gregório,


presidente da Sociedade de Obstetrícia de Ginecologia da Venezuela. Formulado o
conceito por esse profissional, esse tipo de violência é entendido como aquela praticada
em desfavor das parturientes, agredindo a sua integridade física, moral e psicológica. Ela
pode ser realizada tanto pelos profissionais de saúde quanto pelas instituições de saúde
(MASCARENHAS; PEREIRA, 2017).

A violência obstétrica perpassa por três momentos distintos de uma gestação: o pré-
parto; o parto e o pós-parto. Por se tratar de uma violência contra a mulher, é a gestante
a principal vítima desse ato. Assim, ela é fundamental nesse cenário, uma vez que possui o
poder decisório no decorrer desses momentos (AZEVEDO, 2017).

A prática da violência contra as gestantes, ainda que já existente desde os


primórdios da civilização, é pouco ou quase nunca abordada em terras brasileiras. Devido
ao fato de ocorrer em grande parte nas maternidades e hospitais, é mínimo o índice de
pesquisas e estudos voltados a analisar e observar esse delito. Somente com os casos
recentes vindo a público pela mídia, é que se tem observado um maior interesse por esse
ato.

A título de exemplo, de acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela


Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), apenas metade das mulheres dá à luz de
acordo com as boas práticas obstétricas (SCHIAVON, 2022).

De todo modo, independentemente de seu interesse público e jurídico, o fato é que


esse tipo de violência é bastante cometido nos estabelecimentos de saúde, o que mostra
o quão vulnerável estão as gestantes nesses locais, que deveria, a priori, ser o mais seguro
e confiável possível, principalmente num momento tão delicado e intimo quanto uma
gestação.

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Os efeitos que essa violência causa à mulher é danoso e perturbador, deixando


sequelas por toda uma vida. Muitas delas adquirem traumas e conflitos por muito tempo,
vide o fato de que elas vivem essa situação solitariamente (FRANCO; MACHADO, 2016).

Frente a esse cenário, nasce algumas questões aos quais ainda precisam ser
debatidas. Dentre as mais notórias, encontra-se: Como se dá a configuração da violência
obstétrica? e; qual a penalidade para aqueles que cometem a violência obstétrica?
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Por meio dessas questões acima apresentadas, o presente estudo teve como
finalidade discorrer a respeito da violência obstétrica no Brasil. Para além de conceituar e
estabelecer as principais características desse ato, buscou-se analisar a criminalização (ou
não) dessa violência na legislação penalista brasileira.

Cabe destacar que a discussão sobre a violência obstétrica é de suma importância,


uma vez que tendo como base a igualdade e dignidade humana, e pressupondo a
vulnerabilidade da mulher frente a essa situação, se faz necessário discutir a
responsabilização dos agentes de saúde que de algum modo realizou atos agressivos que
tenham prejudicado a gestante.

Ademais, no campo metodológico, esse estudo teve base no método qualitativo.


Sendo uma revisão de literatura, esta pesquisa bibliográfica foi feita por meio de leituras
das leis, especialmente o de natureza penal, da Constituição Federal, de revistas jurídicas,
de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.

Esta pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta


de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google,
dentre outros, entre os meses de junho e julho de 2022.

2. DESCREVENDO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Para entender melhor sobre a violência obstétrica, é preciso voltar no tempo e


compreender os movimentos que fizeram a surgi-la. Historicamente, em meados do fim
dos anos 50, nos Estados Unidos foi editada uma reportagem na revista Ladies Home
Journal, que tinha como público alvo, as donas de casa norte-americanas, trouxe uma série
denúncias de graves atos de violência feito por médicos e demais profissionais da saúde
em desfavor de mulheres e seus bebês no decorrer do período gestacional (BEZERRA et al.
2018).

De acordo com a matéria da presente revista, as parturientes eram submetidas a


tratamentos análogos à tortura, onde eram amarradas e algemadas nos seus pés e nas suas
mãos com o intuito de enganchar-se ao leito no período do trabalho de parto. Por conta
disso, surgiam hematomas e lesões em toda parte dos seus corpos (BEZERRA et al. 2018).

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Esses atos eram fundamentados tendo como base no esforço em controlar os


efeitos causados pelo twilight sleep (sono crepuscular – tradução livre), que consistia numa
técnica alemã onde se inseria uma substância constituída de morfina e escopolamina, cuja
consequência era ter quadros de alucinações e fortes agitações psicomotoras no decorrer
do parto e no pós-parto. Com isso, os profissionais de saúde agiam com tortura e violência
com as parturientes (BEZERRA et al. 2018).

Apesar disso, como bem acentua Lansky et al. (2019) esse método que tinha a
alcunha de “parto indolor”, nada mais era do que um mito, uma vez que mesmo que as

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pacientes estivessem em estado de semiconsciência e amnesia, que as tornavam incapazes
de se lembrar dos efeitos recentes, não significava necessariamente que não tiveram dor
no parto.

Ainda sobre esse cenário Tesser et al. (2015) descrevem que as mulheres, em sua
grande maioria, se debatiam e se machucavam, além de gritarem, o que era imediatamente
repreendido pelos profissionais ali presentes, que às prendiam em suas camas, para que
não caíssem no chão. No período em que tivessem que estar nas camas, eram amarradas
sem qualquer conforto ou segurança. Seus bebês eram retirados à força através do uso
irrestrito de fórceps.

Diante desses fatos, houve já naquele período, uma enorme repercussão nos
Estados Unidos. Com a publicação da matéria jornalística, muitas mulheres americanas
começaram a compartilhar depoimentos semelhantes aos expostos na reportagem. Isso
acabou por impulsionar mudanças importantes na maneira como a assistência médica era
realizada com as parturientes (TESSER et al. 2015).

Ainda nesse período, em outras partes do mundo, começou também a publicar


reportagens que mostravam os maus tratos sofridos pelas gestantes no período puerperal.
Como exemplo, na Europa, através do texto do AIMS Journal (2007), foi criado uma
entidade que tinha a finalidade de criar e implementar ações de prevenção à violência
sofrida pelas mulheres grávidas (TESSER et al. 2015).

Tais movimentos foram o ponto inicial para que a discussão acerca desse tipo de
violência começasse a ser debatido pela sociedade e pela comunidade médica. O termo
violência obstétrica, criado pelo Dr. Rogelio Pérez D’ Gregório, presidente da Sociedade de
Obstetrícia de Ginecologia da Venezuela, vem do conceito de disrespect and abuse during
childbirth, e se tornou a base internacional para estabelecer o que seja esse tipo de
agressão (FIORETTI, 2014).

Assim, a violência obstétrica é designada como quaisquer ato de violência realizado


contra a mulher grávida, parturiente ou puérpera exercido no período da assistência
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profissional, afetando a sua dignidade (física, mental e psicológica), autonomia e


preferência (FIORETTI, 2014).

Esse tema foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2014,
como uma questão de saúde pública que atinge diretamente as mulheres e seus bebês125.

Conceitualmente a violência obstétrica pode ser entendida como uma ação ou


omissão voltada à mulher no período mais importante da sua vida: o pré-natal, parto ou
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puerpério. Aqui há a existência de atos agressivos que gerem dor, dano ou sofrimento
desnecessário à mulher. Em grande parte dos casos, esses atos ocorrem sem a sua
anuência, desrespeitando a sua autonomia, escolhas e preferências (PAES, 2019).

Azevedo (2017) em sua definição entende que a violência obstétrica é um ato (ou a
falta dele), dolosa ou culposa, que agride o aspecto físico, mental e psicológico da mulher
grávida e que ao ser exercido por profissionais da saúde, venha lhe causar danos e
prejuízos de toda forma.

Mascarenhas e Pereira (2017) por sua vez destaca que essa ação pode ser ainda vista
nos casos de aborto autorizado legalmente, quando há uma violação ao direito de
assistência médica da mulher, implicando em abuso, maus tratos ou a ausência de respeito
à autonomia feminina sobre o próprio corpo.

Em um conceito mais amplo e formal, destaca-se:

Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos


processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que
se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de
medicação e de patologização dos processos naturais, resultando em
perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu
corpo e sexualidade, impactando negativamente na vida das
mulheres (VENEZUELA, 2007, apud BEZERRA et al. 2018, p. 06).

Além desses conceitos acima apresentados, a violência obstétrica também pode ser
encontrada em diversas situações. Como bem exemplifica Leal et al. (2018) ela é vista na
demora na assistência, na recusa de internações nos serviços de saúde, na falta de cuidado
básico, na negativa na administração de analgésicos, na prática de maus tratos físicos,
verbais e/ou psicológicos, na detenção de mulheres e seus bebês nas instituições de saúde,
entre outros.

125 Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto em instituições de saúde Genebra: Departamento de Saúde Reprodutiva e Pesquisa/OMS;
2014

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Carneiro (2017, p. 03) descreve várias ações que podem ser interpretadas como uma
violência obstétrica; a saber:

- Lavagem intestinal e restrição de dieta


- Ameaças, gritos, chacotas, piadas, etc.
- Omissão de informações, desconsideração dos padrões e valores
culturais das gestantes e parturientes e divulgação pública de
informações que possam insultar a mulher
- Não permitir acompanhante que a gestante escolher

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- Não receber alívio da dor

Na busca por uma melhor compreensão da complexidade que é entender a


violência obstétrica, apresenta-se abaixo o Quadro 1, feito pelos autores Tesser et al. (2015)
onde categorizou de forma sintética as principais formas de violência obstétrica
associando-as aos direitos tutelados.

QUADRO 1 – CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

CATEGORIAS DE DIREITOS EXEMPLOS DE


DESRESPEITO E ABUSO CORRESPONDENTES VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Abuso físico Direito à liberdade Toques vaginais dolorosos


corporal e repetitivos, cesáreas
eletivas e episiotomias
desnecessárias,
imobilização física em
posições dolorosas, etc.

Determinação de Direito à informação, ao Realização de episiotomia


intervenção não consentimento informado em mulheres que
autorizadas e à recusa verbalmente ou por escrito
não autorizaram essa
intervenção; desrespeito
ou desconsideração do
plano de parto, indução à
cesárea por motivos
duvidosos, etc.

Cuidado não confidencial Direito à confidencialidade Exposição de informações


e privacidade e dados particulares e

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alegação de ausência de
privacidade para justificar
o desrespeito ao direito a
acompanhante.

Assistência indigna e Direito à dignidade e ao Maneiras de diálogo


abuso verbal respeito desrespeitosas,
ridicularização da dor,
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desmoralização dos
pedidos de ajuda e
humilhações de caráter
sexual.

Discriminação Direito à igualdade e a não Tratamento diferencial


discriminação com base em atributos
considerados positivos
(casada, com gravidez
planejada, branca, mais
escolarizada, de classe
média, saudável, etc.) em
relação as demais que não
se enquadram nessas
características.

Abandono, negligência ou Direito ao cuidado à saúde Abandono às grávidas que


negação à assistência em tempo oportuno são vistas como queixosas,
descompensadas ou
demandantes.

Detenção nos serviços Direito à liberdade e a Mulheres grávidas que são


autonomia retidas até que saldem as
dívidas com os serviços.

Fonte: Tesser et al. (2015)

Frente ao exposto até aqui, nota-se que uma agressão à mulher grávida no período
gestacional é aquela que fere qualquer indício de sua dignidade, que a deixa em estado
ainda maior de vulnerabilidade e exposição a perigos além da condição ao qual se
encontra. Por essa razão, tem-se discutido formas de responsabilização dos agentes
causadores desses atos. A respeito disso, apresenta-se o tópico a seguir.

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3. O DIREITO PENAL NA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Na legislação brasileira, a violência obstétrica ainda não encontra uma normatização


específica. Essa lacuna acaba por gerar diversas críticas, uma vez que os casos dessa
natureza tem sido cada vez mais evidenciado nos hospitais e clínicas. A cada dia, mais
mulheres são vítimas desse tipo de agressão.

Apesar de o Direito Penal não possuir uma regra específica que discorra sobre essa
prática, é possível encontrar outras normas que se enquadram na presente situação. Dessa

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forma, enfatiza-se que todo profissional de saúde que cometa alguma violência obstétrica
no Brasil, responderá civilmente e penalmente pelo ato.

No âmbito civilista, encontra-se o instituto da responsabilidade civil, formalizado


pelo art. 5º incisos V e X da Constituição Federal de 1988. Assim, com base nesse artigo,
entende-se que qualquer ação que traga danos a um terceiro, deverá ser civilmente
responsabilizado ou indenizado. Aqui, qualquer pessoa, natural ou jurídica e em qualquer
situação, possui a obrigação de se responsabilizar pelos efeitos de um ato, fato, ou negócio
danoso (BRASIL,1988).

Do mesmo modo, o Código Civil solidificou esse entendimento, por meio do art.
186. Nesse caso, há de se falar da responsabilidade civil objetiva, que conforme explica
Schreiber (2022, p. 53) é aquela que tem como fundamento o elemento objetivo, o dano.
Para esta corrente da responsabilidade objetiva, basta apenas que exista o dano, para
surgir o dever de indenizar, dispensando a configuração de culpa por parte do agente
causador do dano, sendo necessária apenas a comprovação da autoria e do dano, para
que fique o autor da lesão abrigado a indenizar a vítima.

Com base nisso, compreende-se que os profissionais de saúde que tenham feito
algum ato de violência obstétrica podem ser responsabilizados civilmente pelos prejuízos
causados às vítimas. Para a justiça brasileira, enquadra-se essa situação em erro médico.

Conceitualmente, entende-se que o erro médico é “a conduta profissional


inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir um dano à vida ou à
saúde de outrem, caracterizada por imperícia, imprudência ou negligência” (RIOS, 2022, p.
25). O profissional nesses casos é responsabilizado tanto na esfera civil quanto na esfera
penal. Além disso, há a possibilidade de aplicação de sanções administrativas do Conselho
Federal de Medicina, que a depender da gravidade do dano, pode resultar na proibição do
exercício da profissão.

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Como exemplo, encontra-se a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM)


de nº 1931, de 17 de setembro 2009, que em seu texto promulga as instruções pelos quais
os médicos devem se guiar no exercício de sua profissão; a saber:

Capítulo I

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
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VI- O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará


sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para
causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano
ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e
integridade.

Capítulo III

RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caraterizável


como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A
responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser
presumida. Art. 14 Praticar ou indicar atos médicos desnecessários
ou proibidos pela legislação no País.

Capítulo IV

DIREITOS HUMANOS

É vedado ao médico

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu


representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração,


desrespeitar sua dignidade ou discriminá-la de qualquer forma ou
sob qualquer pretexto.

Art.24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir


livremente sobre sua esposa ou seu bem-estar, bem como exercer
sua autoridade para limitá-lo.

182
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(BRASIL, 2009)

Ao observar tal trecho acima destacado, verifica-se que o médico (assim como a sua
equipe) possui a obrigação de zelar pelos seus pacientes, seja no período anterior ou
posterior da operação médica (BRASIL, 2009).

Dentro desse cenário, também fica evidente destacar que tanto o médico e sua
equipe quanto os estabelecimentos de saúde são responsabilizados pela ocorrência de
uma violência obstétrica (SILVA; SERRA, 2017).

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No caso dos estabelecimentos de saúde, o artigo 37 § 6° da Constituição Federal
deixa claro que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadores
de serviços públicos responderão pelos atos que seus agentes, nessa qualidade, causarem
a terceiros” (BRASIL, 1988).

Soma-se a isso o texto do art. 43 do Código Civil que enfatiza que as pessoas
jurídicas de direito público interno são “civilmente responsáveis por atos de seus agentes
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvando direito regressivo contra os
causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo” (BRASIL, 2002).

Souza (2020) esclarece, no entanto, que um estabelecimento de saúde pode


ingressar com uma ação judicial contra o médico, no caso de ele periodicamente fazer uso
das instalações do hospital ou clínica para realizar os procedimentos cirúrgicos, uma vez
que existe uma relação entre o médico e o estabelecimento de saúde.

Mais especificamente na área penal, foco central dessa pesquisa, conforme já citado
anteriormente, em seu ordenamento não há um artigo ou lei que disponha sobre a
violência obstétrica. Todavia, isso não afasta a penalização criminal dos agentes causadores
da presente agressão.

A legislação penal possui em seu regramento de artigos e leis, várias condutas


tipificadas que podem adentrar na violência obstétrica. Como exemplo, pode-se citar:
injúria, maus-tratos, ameaça, constrangimento ilegal, lesão corporal e não raramente à
tentativa de homicídio, todos encontrados no Código Penal Brasileiro.

Como forma de explicar essas condutas aplicadas ao tema em debate, apresenta-


se:

Injúria: são as ofensas que a mulher grávida recebe, que tem como
efeito o desrespeito a sua dignidade. Nesse caso a pena é de 1 (um)
a 6 (seis) meses de detenção e multa.

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Maus-tratos: caracteriza-se pela ausência de atendimento básico do


médico e de sua equipe. A pena é de até 1 (um) ano de detenção.

Ameaça: pode ser vista nos casos onde o profissional de saúde


profere frases de cunho ameaçador, onde deixa claro que se a mulher
grávida não “obedecer” sofrerá consequências terríveis que pode
prejudicar a sua saúde e a do bebê. Nesse caso, a pena prevista é de
1 (um) a 8 (seis) meses de detenção.
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Constrangimento ilegal: configura-se com a exposição das partes


íntimas das mulheres grávidas, além da prática de procedimentos
desnecessários ou não autorizados pela mesma; a pena prevista é de
3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção, ou multa.

Lesão corporal: aqui tem-se os casos onde há um dano corporal,


como por exemplo a episiotomia; a pena pode chegar a 8 (oito) anos
de reclusão, conforme a gravidade da situação.

Homicídio: caso mais grave de violência obstétrica, ele pode ocorrer


em razão das graves lesões sofridas pela parturiente; a pena é de
reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte anos).

(OLIVEIRA, 2020, p. 13)

Somados às situações acima previstas penalmente, há ainda outros atos


correspondentes à violência obstétrica que podem ser devidamente penalizados. Lima
(2019) apresenta alguns exemplos, tais como a laqueadura tubária (lesão corporal
gravíssima – art. 129, § 2.º, inciso III. Pena, reclusão de 2 a 8 anos) e a esterilização
compulsória de deficientes (lesão corporal gravíssima pela perda ou inutilização da
função, ibidem).

Além disso, cabe citar o aborto causado por outrem, que no caso presente se
enquadra no art. 125 do códex penal, cuja pena é de reclusão de 3 a 10 anos. Há um
aumento da pena de 1/3 se ocorrer lesão corporal grave, e em caso de morte, será
duplicada (LIMA, 2019).

Dentro da violência obstétrica é muito comum a ocorrência da episiotomia, que é


caracterizado como um procedimento cirúrgico onde há um corte no períneo (localizado
entre o ânus e a vagina) que auxilia a passagem do bebê. Tal procedimento vem sendo
visto como um ato de violência à parturiente, porque gera diversas complicações (SILVA;
SERRA, 2017).

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Com isso, caso seja necessário fazer a episiotomia, é preciso antes, disponibilizar
todas as informações necessárias, além da autorização da parturiente. Caso o médico
realize-o de maneira inadequada, o mesmo deve ser responsabilizado criminalmente, com
base no delito de lesão corporal (art. 129, CP). Se esse procedimento resultar na morte da
mulher ou do nascituro, este profissional responderá pelo crime de homicídio culposo, com
aumento de pena (art. 121, § 3º do CP). (CARVALHO, 2020)

Insta salientar que todo procedimento que não seja devidamente informado à
mulher grávida e posteriormente autorizado, caso haja complicações e danos, o médico

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responsável responderá pelo crime de lesão corporal. Inclui-se também nesses casos, a
prática de abuso numa intervenção, que se enquadra no delito de constrangimento ilegal
(MORAES, 2020).

A respeito dessa situação, cabe destacar a seguinte jurisprudência:

APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO. PARTO NORMAL


COM EPISIOTOMIA. ART. 121, § 3º, DO CP. INCIDÊNCIA DE
MAJORANTE DO § 4º DO MESMO DISPOSITIVO LEGAL. PENA QUE
NÃO MERECE REDIMENSIONAMENTO. Demonstrado que o réu agiu
com negligência, imprudência e imperícia, e que dita conduta levou
a paciente a óbito, pois, após o parto com episiotomia, deixou de
realizar procedimento de revisão do reto, o que propiciou a
comunicação do conteúdo fecal com o canal vaginal, culminando
com infecção generalizada, que evoluiu com a morte da vítima [...].
(Apelação Crime nº 70053392767, Segunda Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lizete Andreis Sebben, Julgado em:
14/11/2013).

Conforme apresentado no julgado acima, ficou nítido constatar, com base nos autos
do processo, que posterior à realização do parto com o procedimento de episiotomia, o
profissional de saúde responsável se ausentou de realizar a revisão do reto, que por essa
razão acabou por gerar uma fístola, e em seguida uma infecção generalizada, que no fim
resultou em morte da mulher a 27 dias depois de realizado o parto. Dessa forma, devido
ao fato de que o médico não agiu de forma prudente e correta, foi condenado pelo crime
de homicídio culposo.

Também como exemplo muito comum nessas situações, é a Manobra de Kristeller.


Este é considerado como violência obstétrica ocorrida no parto normal onde se insere uma
excessiva pressão na parte superior do útero com o intuito de acelerar o parto (CARVALHO,
2020).

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A manobra de Kristeller é amplamente criminalizada em várias nacionalidades, tais


como a Venezuela. No território pátrio, o Ministério Público já se posicionou no sentido
pela não indicação desse procedimento, em razão dos efeitos negativos causados à
parturiente e ao nascituro. e, principalmente para a parturiente. No âmbito penalista,
aplica-se o art. 129 (CP) de acordo com a intenção do a gente e o tipo de lesão que venha
ocasionar a paciente. Se porventura essa conduta resultar em uma lesão corporal culposa,
será aplicado o disposto no § 6º, do art. 129 do texto penalista (CARVALHO, 2020).
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A jurisprudência brasileira já vem condenando esse tipo de procedimento, conforme


expõe-se abaixo:

APELAÇÃO. INDENIZATÓRIA. ERRO MÉDICO. Pretensão dos autores


(mãe e filho) de condenação do hospital réu ao pagamento de
indenização por danos morais em razão da falha na prestação de
serviços. Sentença de procedência. Responsabilidade objetiva do
nosocômio (art. 14 do CDC). Ausência de prova da inexistência da
falha na prestação dos serviços ou da culpa exclusiva dos requerentes
pelo dano sofrido (art. 14, §3º, do CDC). Perícia que reconheceu a
falha na prestação do serviço em razão da utilização de manobra de
Kristeller mal executada e que não afastou o nexo causal pelos
danos sofridos pelo concepto (hematoma cerebral). Danos morais
verificados. Indenização mantida em R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil
reais) para cada umdos autores. Adequação do quantum
indenizatório tendo em vista a ausência de sequelas da
prematuridade e da hipoxemia neonatal. Sentença mantida.
RECURSOS DESPROVIDOS. (1123283-44.2017.8.26.0100. TJSP. 3º
Câmara de Direito Privado. Apelação Cívil. Relator: Beretta da Silveira.
Data do Julgamento: 05/11/2021. Data de Publicação: 05/11/2021).
(grifo meu)

No caso presente, ficou evidente constatar a falha na prestação de serviços em razão


da utilização da manobra de Kristeller, prática não recomendada pelo Ministério da Saúde
e pela OMS e que ainda foi realizada de maneira inapropriada, além da perícia confirmar a
falha na prestação do serviço em razão da utilização de técnica que oferece riscos à mãe e
ao concepto. Mesmo porque nenhum indício há de que o hematoma cerebral do recém-
nascido tenha outra causa que não os movimentos bruscos da manobra.

Na decisão proferida, o relator deixou claro que para além do caso concreto
analisado, é de conhecimento geral que a manobra de Kristeller não tem respaldo da
maioria dos profissionais da saúde devido aos riscos que oferece, principalmente se a
técnica não for aplicada da maneira correta, tal como na hipótese vertente.

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Importante destacar, que mesmo que haja a possibilidade de penalização dos


agentes causadores do delito pela norma penal brasileira, nem todos os tipos penais serão
considerados. Essa afirmativa, como explica Moraes (2020) se dá pelo fato de que
determinados delitos podem ser resultado de execução de outros, que nesse caso, o crime
mais grave é o penalizado.

De todo modo, a jurisprudência brasileira é pacífica no entendimento de que a


violência obstétrica é plenamente criminalizada, com base no Direito Civil, Direito Penal e
em determinados casos, no Direito do Consumidor.

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Quando configurado danos à mulher grávida e ao bebê, cabe em sede dos institutos
de Responsabilidade Civil e Danos Morais a aplicação ao caso. A esse respeito, importante
citar a presente decisão judicial:

APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL.


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA.
ERRO MÉDICO. DANO MORAL CONFIGURADO. MAJORAÇÃO
DEVIDA. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE DOS DANOS
MATERIAIS. RECURSO DO DISTRITO FEDERAL CONHECIDO E
DESPROVIDO. RECURSO DA PARTE AUTORA CONHECIDO E
PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A parturiente, a par
da episiotomia intempestiva e indevida, fruto de erro médico com a
insistência na realização de um inviável parto pela via baixa, conforme
expressamente consta do laudo pericial, foi submetida
posteriormente a parto cesariana com manobra de Zavanelli,
intercorrências e internação da recém-nascida em UTIN por 28 dias.
A responsabilidade civil do Estado desponta, diante da prova
escorreita do dano e do nexo causal, guardando amparo jurídico o
dever de indenizar, na hipótese, o dano moral, nos termos do que
dispõem os arts. 37, § 6º, da Constituição Federal e 12 do Código
Civil. 2. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência
como a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento
evitáveis. A identificação com a violência obstétrica e psicológica
sofrida pela parturiente configura o dano moral que deve ser
compensado como um lenitivo à vítima, bem assim à recém
nascida, se presentes os elementos da responsabilidade civil. 3. É
evidente, portanto, que a insistência indevida com o parto inviável
por via baixa, culminando com episiotomia intempestiva e indevida,
bem assim a imperícia e a imprudência a que submetida a autora no
sensível momento do parto, posteriormente efetivado por cesariana

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com manobra de Zavanelli e intercorrências, representou um quadro


de traumático sofrimento, agravado em seguida pela angustiante
permanência da recém-nascida, com saúde comprometida e risco de
vida, em leito de UTIN por 28 dias, a amparar a pretensão de
majoração da indenização fixada para o valor pretendido de
R$50.000,00 (cinquenta mil reais). 4. De igual modo, a indenização
à criança merece majoração para R$40.000,00 (quarenta mil reais), a
despeito de inexistir sequela ou incapacidade permanente atual, isso
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porque, conforme consta expressamente do laudo pericial, padeceu


de sofrimento intenso e injustificado, diante do tocotraumatismo
com anóxia intraparto e sofrimento fetal agudo, com várias
intercorrências durante os 28 dias na UTNI, tais como Infecção
presumida, sepse tardia, hemorragia digestiva alta, flebites em local
de punção venosa. [...]. (00229072120158070018 - (0022907-
21.2015.8.07.0018 - Res. 65 CNJ). 2º Turma Cível. Relatora: SANDRA
REVES. Data de Julgamento: 11/11/2020. Publicado no DJE:
26/11/2020). (grifo meu)

Apesar de muito frequente encontrar julgados na área Civil para o presente tema,
notou-se durante a coleta de dados, pouco material que direcionasse essa temática na área
penal. Isso se deve pelo fato de que não há uma norma penalista mais específica que
penalize especificamente esse crime.

Esse fato ainda é uma lacuna pelo qual o Direito Penal brasileiro precisa preencher.
Ainda que, como bem mostrado no decorrer desse estudo, médicos e equipes médicas
possam ser responsabilizados criminalmente pelos danos causados às parturientes, fica
ainda nítido a sensação de maior formalização da violência obstétrica.

Apesar dessa barreira, é possível encontrar movimentos jurídicos que visem driblar
esse obstáculo. No Brasil, atualmente, já se encontra alguns Projetos de Lei que buscam
criminalizar a respectiva conduta. Para citar um exemplo, o Estado de São Paulo possui o
Projeto de Lei nº 1.130/2017 de autoria da deputada Leci Brandão, onde no seu artigo 6º,
incisos II e III, normatiza a responsabilização administrativa, civil e criminal do profissional
ou agente de saúde; do gestor de saúde, diretor clínico ou responsável pelo
estabelecimento onde o descumprimento da lei ocorreu (BRASIL, 2017).

Além deste, também se cita o Projeto de Lei n° 8.219/17, de autoria do Deputado


Francisco Floriano que penaliza a violência obstétrica, pelo qual a pena seria de detenção
(seis meses a dois anos) e multa. No caso da ocorrência da episiotomia, a pena seria de
detenção (um ano a dois anos) e multa (BRASIL, 2017).

Mesmo que seja necessária uma lei que regule mais especificamente essa violência,

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na doutrina jurídica brasileira esse entendimento não é uniforme. Brandão (2019) explica
que caso se crie uma norma que penalize tal conduta, pode-se correr o risco de haver uma
hipercriminalização do Direito Penal, uma vez que essa matéria já pode ser enquadrada em
diversos tipos penais (citados anteriormente).

Ao explicar esse movimento, Nucci (2014) cita que hipercriminalização está


ancorada no fato de que, devido aos avanços tecnológicos e sociais, o Direito Penal deve
atender esses avanços, criminalizando-os conforme surja novos tipos de condutas ilícitas.

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Novamente Brandão (2019), entende que a criação de novas leis pode gerar uma
excessiva criminalização de condutas que poderiam se enquadrar nas já existentes. Ou seja,
haveria uma criação de mais normas apenas para satisfazer os anseios sociais e não por
um código penalista objetivo e claro.

Essa realidade é vista por Queiroz (1998 apud BRANDÃO, 2019, p. 01) como: “mais
leis, mais penas, mais policiais, mais juízes, mais prisões significa mais presos, mas não
necessariamente menos delitos”.

Apesar desse entendimento, para fins dessa pesquisa, compreende-se necessária


uma legislação própria para a violência obstétrica, em razão de entender que a gravidade
desse ato não atinge somente a mulher grávida e ao bebê, mas a toda a família e a
sociedade.

É preciso que as parturientes se sintam protegidas ao realizar o parto, não podendo


serem vítimas de maus tratos ou de ausência de atendimento. Num momento tão delicado
quanto este, é fundamental que nos casos em que se configure uma violência à sua
dignidade e honra, a vítima obtenha meios específicos que a amparem legalmente.

A hiprecriminalização, ainda que seja de fato um problema na legislação brasileira,


no caso presente, não pode ser impeditivo para que se crie uma lei federal que penalize
severamente médicos e equipes médicas que atuem com extrema violência com as vítimas.

Nesse sentido, oportuno mencionar a Lei nº 18.322/2022 oriunda do Estado de


Santa Catarina, que em seu art. 3º apresenta um rol não taxativo de situações que podem
ser consideradas ofensa verbal ou física a serem classificadas como violência obstétrica; a
saber:

Art. 3º Para efeitos da presente Lei considerar-se-á ofensa verbal ou


física, dente outras, as seguintes condutas:

I - tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não empática,


grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se
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sentir mal pelo tratamento recebido;

II - fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer


comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas;

III - fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou


ato físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e
outros;
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IV - não ouvir as queixas e dúvidas da mulher internada e em


trabalho de parto;

V - tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes


infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz;

VI - fazer a gestante ou parturiente acreditar que precisa de uma


cesariana quando esta não se faz necessária, utilizando de riscos
imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida
explicação dos riscos que alcançam ela e o bebê;

VII - recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma


emergência médica;

VIII - promover a transferência da internação da gestante ou


parturiente sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e
garantia de atendimento, bem como tempo suficiente para que esta
chegue ao local;

IX - impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua


preferência durante todo o trabalho de parto;

X - impedir a mulher de se comunicar com o "mundo exterior",


tirando-lhe a liberdade de telefonar, fazer uso de aparelho celular,
caminhar até a sala de espera, conversar com familiares e com seu
acompanhante;

XI - submeter a mulher a procedimentos dolorosos, desnecessários


ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos
pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque
por mais de um profissional;

XII - deixar de aplicar anestesia na parturiente quando esta assim o


requerer;

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XIII - proceder a episiotomia quando esta não é realmente


imprescindível;

XIV - manter algemadas as detentas em trabalho de parto;

XV - fazer qualquer procedimento sem, previamente, pedir


permissão ou explicar, com palavras simples, a necessidade do que
está sendo oferecido ou recomendado;

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XVI - após o trabalho de parto, demorar injustificadamente para
acomodar a mulher no quarto;

XVII - submeter a mulher e/ou bebê a procedimentos feitos


exclusivamente para treinar estudantes;

XVIII - submeter o bebê saudável a aspiração de rotina, injeções ou


procedimentos na primeira hora de vida, sem que antes tenha sido
colocado em contato pele a pele com a mãe e de ter tido a chance
de mamar;

XIX - retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter o bebê ao


seu lado no Alojamento Conjunto e de amamentar em livre
demanda, salvo se um deles, ou ambos necessitarem de cuidados
especiais;

XX - não informar a mulher, com mais de 25 (vinte e cinco) anos ou


com mais de 2 (dois) filhos sobre seu direito à realização de ligadura
nas trompas gratuitamente nos hospitais públicos e conveniados ao
Sistema Único de Saúde (SUS);

XXI - tratar o pai do bebê como visita e obstar seu livre acesso para
acompanhar a parturiente e o bebê a qualquer hora do dia.

(BRASIL, 2022)

Com o exemplo mostrado acima, fica evidente constatar a importância em se ter


uma norma que regule o máximo possível de condutas degradantes e violentas contra as
mulheres grávidas no período gestacional. Ao sofrerem abusos e demais atos criminosos,
elas precisam que haja justiça pelos danos sofridos.

Além disso, também é importante destacar as medidas de prevenção. In casu, a


própria Lei acima citada traz no seu art. 36 uma possibilidade, ao enfatizar que o Poder

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Executivo, através da Secretaria de Estado da Saúde, tem de criar uma Cartilha dos Direitos
da Gestante e da Parturiente, onde conterá dados, informações e esclarecimentos precisos
para um atendimento hospitalar digno e humanizado, objetivando o saneamento da
violência obstétrica (BRASIL, 2022).

Assim, finaliza-se esse estudo enfatizando novamente a urgência em se ter uma


norma Federal que legalize a violência obstétrica, porque trará segurança às milhares de
mulheres grávidas que tem sido vítimas diariamente desse crime.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como foco central discorrer a respeito da violência


obstétrica. A priori, ficou claro, como bem destaca a Organização Mundial da Saúde (OMS)
que essa violência se refere a abusos, desrespeitos e maus-tratos durante o parto contra
as mulheres e seus bebês nas instituições de saúde, configurando uma clara violação dos
Direitos Humanos.

Não existe uma lei definindo o que é violência obstétrica no Brasil e nem a sua
criminalização. No entanto, ainda, que não tenha uma legislação específica, aqueles que
praticam a violência obstétrica sofrem às responsabilidades civis e penais. Partindo da
possiblidade de responsabilizações, faz-se necessário que a violência obstétrica seja
declarada pelos agentes de Justiça e analisadas nos julgamentos.

No campo penal, área em foco nessa pesquisa, ficou evidente que atualmente, a
violência obstétrica se enquadra em alguns tipos penais existentes, tais como a injúria, os
maus-tratos, a ameaça, o constrangimento ilegal, a lesão corporal e o homicídio.

Em que pese a importância em se discutir esse tema, o que ficou claro é que
praticadas contra o gênero feminino, a violência obstétrica faz com essas pessoas sejam
vítimas de normas e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os
seus corpos e os seus ritmos naturais e as impedem de exercer seu protagonismo.

Muitas mulheres sofrem diariamente algum tipo de violência obstétrica no


momento mais delicado de suas vidas: a gestação. Na busca pela igualdade e dignidade
humana, partindo da presunção da vulnerabilidade da mulher diante de sua assistência
sexual e reprodutiva em especial no período puerperal, fica evidente considerar que é
urgente a criação de uma norma federal que penalize especificamente aqueles que
cometem a violência obstétrica.

Exemplos como a Lei nº 18.322/2022 do Estado de Santa Catarina é um ótimo indicio


de como essa violência pode ser cometida de várias formas, e como é importante uma
norma que atinja a todas as mulheres no território nacional. A criação de uma Lei Federal

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não corresponde a uma hipercriminalização, mas sim um fator de prevenção e justiça a


esses casos.

Desse modo, esse estudo entende que a precisão em estabelecer de modo geral o
que seja uma violência obstétrica, seus tipos, formas e meios de configuração, bem como
a devida penalização de seus agentes é extremamente necessária. Com a norma vigente,
pode-se vislumbrar um melhor entendimento sobre esse tema em solo nacional.

Além da importância em se ter uma norma específica, também se entende que se

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deva dar uma atenção maior à prevenção. Nesse caso, campanhas de conscientização tanto
de mulheres quanto dos profissionais de saúde devem ser feitas, por meio de palestras e
cursos.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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após. Disponível em:
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2>. Acesso em: 28 jun. 2022.

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A CRISE NO SISTEMA CARCERÁRIO E A PRIVATIZAÇÃO DESSE SISTEMA COMO UMA


POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA A DIMINUIÇÃO DA MASSA CARCERÁRIA BRASILEIRA

LUCAS IVAN DOS SANTOS VICENTE:


Acadêmico em Direito, Centro Universitário
de Santa Fé do Sul, UNIFUNEC

ADEMIR GASQUES SANCHES


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(orientador)

RESUMO: O objetivo da presente pesquisa é ponderar sobre o sistema carcerário brasileiro


que enfrenta uma grande dificuldade dentro das penitenciárias, onde será relatado sobre
seus principais problemas assim como as possíveis soluções, trazendo à tona a crise
enfrentada dentro e fora das penitenciárias, onde se vê através das mídias, as situações
que ocorrem por de trás das grades, onde observamos o estado de lástima em que aquelas
pessoas estão encarceradas, sendo expostas a condições desumanas, deixando à mostra a
falha do sistema prisional e do Estado, que deveriam além de apreender, recuperar e
reintegrar o indivíduo a sociedade, com isso, verifica-se um desrespeito aos direitos
previstos na Constituição Federal, como também na Lei de Execução Penal, onde o que
estão previstos nelas não se condizem com a realidade atual, isso devido a uma má
administração que ocorre por falta da fiscalização do Estado, perante isso, percebesse que
é necessário meios efetivos para solucionar essa crise no sistema prisional. Diante de tal
circunstância o presente trabalho traz a privatização das unidades prisionais, como uma
possível solução dos problemas enfrentados, onde as empresas responsáveis buscariam
melhorias dentro e fora das unidades, garantindo os direitos dos detentos e uma melhor
administração carcerária.

Palavras chave: Sistema carcerário. Má Administração. Crise. Privatização. Melhorias.

ABSTRACT: The objective of the present research is to ponder about the Brazilian prison
system that faces a great difficulty inside the penitentiaries, where it will be reported about
its main problems as well as the possible solutions, bringing to light the crisis faced inside
and outside the penitentiaries, where it is seen through of the media, the situations that
occur behind bars, where we observe the state of pity in which those people are
incarcerated, being exposed to inhumane conditions, showing the failure of the prison
system and the State, which should, in addition to apprehending, recover and reintegrate
the individual into society, with this, there is a disrespect for the rights provided for in the
Federal Constitution, as well as in the Penal Execution Law, where what is provided for in
them do not match the current reality, this due to a bad administration that occurs due to
the lack of State supervision, in view of this, he realized that effective means are necessary
to solve this crisis in the prison system. Given this circumstance, the present work brings

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the privatization of prison units, as a possible solution to the problems faced, where the
responsible companies would seek improvements inside and outside the units,
guaranteeing the rights of inmates and better prison administration.

Keywords: Prison System. Maladministration. Crisis. Privatization. Improvements.

1.INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata-se como tema principal a crise no sistema carcerário

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brasileiro e a privatização desse sistema como uma possível forma de solucionar os
problemas enfrentados atualmente, os quais se tornaram uma preocupação não só para o
Estado que é o principal responsável pelos cuidados do sistema carcerário, mas também
para toda a sociedade, a qual se preocupa com o cenário atual dentro das penitenciárias,
onde podemos citar inúmeras rebeliões, onde a barbárie é tremenda, além do estado de
calamidade que os detentos vivem, em condições desumanas, colocando em risco a saúde
e a própria vida desses encarcerados, onde a cada ano que se passa o índice e a massa
carcerária vem aumentando cada vez mais, fazendo com que isso venha a agravar ainda
mais os problemas já enfrentados.

Primeiramente cabe ao Estado a função de punir, assim também, o mesmo torna-se


responsável em disponibilizar aos detentos uma estrutura cabível para o cumprimento de
tal pena, onde devem assegurar aos mesmo todos os direitos que possuem, pois a pena
privativa de liberdade priva-os somente do direito de ir e vir, como podemos encontrar
expresso na legislação brasileira, no entanto, todos seus outros direitos devem
permanecerem assegurados.

O que infelizmente é algo que só vemos na teoria, uma vez que na prática
dificilmente acontece, pois se torna um problema que não consegue se resolver devido ao
tamanho da massa carcerária atual do nosso país, como podemos ver através de inúmeras
notícias e estudos divulgados nos meios jornalísticos através das mídias.

E é em cima desses problemas que ocorrem dentro do sistema prisional, que o


presente artigo toma como base a iniciativa de fazer algumas reflexões para possíveis
soluções de melhorias, não só dentro das celas, mas também em toda a administração,
sendo este o objetivo da pesquisa.

2.CRIME E PUNIÇÃO

Conforme previsto no artigo primeiro da Lei de Introdução do Código Penal e da


Lei das Contravenções Penais, Decreto-Lei n°3.914, de 9 de dezembro de 1941, traz a
definição de crime:

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Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de


reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração
penal a que a lei comina, isoladamente, penas de prisão simples ou
de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (BRASIL, 1941)

A prática de conduta prevista em lei que configura crime não significa a


automaticidade da pena, o ordenamento jurídico brasileiro disciplina com rigorismo essa
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matéria, ninguém será declarado culpado sem o devido processo legal que
obrigatoriamente inclui o contraditório e a ampla defesa, sob pena de nulidade. Superado
esse processo e ao final a sentença for condenatória, é feita a dosimetria da pena seguindo
os parâmetros legais.

Das penas expressas no artigo 32 do Código Penal, que são: privativas de liberdade,
restritivas de direito e de multa. A espécie que vamos relatar no presente artigo é sobre a
pena privativa de liberdade.

Onde conforme previsto no artigo 33 do Código Penal, essa pena pode ser cumprida
em três regimes:

a) regime fechado, a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima


ou média;

b) regime semiaberto, a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou


estabelecimento similar;

c) regime aberto, a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento


adequado.

A medida repressiva pela prática de crime nesse caso tem uma dupla finalidade, que
é, uma demostrar aos criminosos que as condutas realizadas por eles serão punidas de tal
modo, servindo como exemplo para os demais indivíduos e assim, conter-se a
criminalidade e outra a ressocialização do condenado, ou seja, preparar o indivíduo que
após o cumprimento da sua pena, ele venha retornar a sociedade de uma forma melhor,
onde que seja aceito pela mesma.

3.POPULAÇÃO CARCERARIA

Se for analisar através de um contexto histórico sobre a evolução da nossa


sociedade, percebesse que os problemas sociais vêm desde os tempos primórdios, onde
já na libertação dos escravos não existia políticas que acolhessem esse grande número de
libertos com investimentos em algo que fizesse essas pessoas se tronarem dignas
novamente. No entanto, esse fator não diferencia nossas raças, todos somos cientes que
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qualquer um pode ser preso, desde que cometemos algum ato infracional, não há
diferença, se formos negros ou brancos, com baixa renda ou ricos, formados ou sem
nenhuma escolaridade, todos há de pagar pelo ato praticado. Porém, pesquisas ainda
apontam que a maioria da população carcerária se compõe de negros e pardos com baixa
ou nenhuma renda e escolaridade, ou seja, em algumas situações nossa sociedade é
completamente atualizada, e já em outras parece a mesma de muitos anos atrás.

O principal problema encontrado é o número excessivo de presos no sistema


carcerário, que em consequência a isso vem ocasionando uma série de outros problemas,

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onde essas pessoas acabam sendo submetidas a circunstâncias desagradáveis, sendo
expostas a vários problemas de saúde.

Conforme dados atualizados, divulgados pelo site do G1, a população carcerária


diminuiu, mas o Brasil ainda registra superlotações nos Presídios em meio à pandemia, os
dados fazem parte de um levantamento exclusivo do G1, dentro do Monitor da Violência,
e têm como base informações oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Desde o último levantamento sobre o sistema prisional feito pelo G1, publicado em
fevereiro de 2020, foram criadas 17.141 vagas, números ainda insuficientes para dar conta
dos diversos problemas, mesmo havendo uma redução no número de pessoas
encarceradas. Onde antes era aproximadamente 709,2 mil detentos e com essa baixa hoje
são 682,1 mil, mas ainda é uma quantidade muito acima da capacidade de vagas que temos
em todo o sistema prisional, que é para 440,5 mil presos, chegando há 54,9% acima da
capacidade que a estrutura carcerária oferece atualmente. Ou seja, existe um déficit de
241,6 mil vagas no Brasil. O total não considera os presos em regime aberto e os que estão
em carceragens de delegacias da Polícia Civil. Se forem contabilizados esses presos, o
número chega a quase 750 mil no país, com índice alarmante de 322 presos para 100 mil
habitantes.

Um fato que pode ser observado e que contribui para as superlotações dentro dos
presídios, é o fato que muitos detentos que estão ali dentro ainda não foram nem
condenados, ou seja, com isso reúne os presos provisórios com os já sentenciados,
deixando assim um aumento significativo da população carcerária.

Um ponto muito importante que cabe destaque, com o sentido de diminuir e


resolver o problema dessa massa carcerária é o que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
vem realizando desde 2008, quer seja, Mutirão Carcerário, onde o judiciário tem como
objetivo fazer uma revisão dos processos de presos definitivos e provisórios, para que com
isso haja um desafogamento na superlotação dos presídios.

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Segundo o site do CNJ, 21 estados já receberam esses mutirões, onde já foram


analisados aproximadamente 400 mil processos, sendo concedido mais de 80 mil
benefícios, dentre eles progressão de pena, liberdade provisória, direito a trabalho externo,
e mais de 45 mil liberdades foram concedidas, após os responsáveis verificarem que essas
pessoas já haviam cumprido suas penas, fazendo assim com que o número de pessoas em
cárceres diminuísse. Fonte: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerário-e-execucao-penal/pj-
mutirao-carcerario Acesso em: 16 de nov. de 2021.
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4.SOBRE O SISTEMA CARCERÁRIO

O Sistema Carcerário e a Sanção Privativa de Liberdade que encontramos no Brasil


atualmente, na prática é bem diferente daquilo que a lei prevê, pois ela além de punir,
também tem a função de ressocializar e preparar o indivíduo para que o mesmo
regressasse regenerado a sociedade, além que, durante o período em que o mesmo
estivesse detido, todos seus direitos deveriam permanecer assegurados, exceto o direito à
liberdade de ir e vir, como previstos na nossa Constituição Federal de 1988, onde consta
em sua redação o art. 1°:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união


indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III –
a dignidade da pessoa humana e no artigo 5º inciso XLIX – “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”. O
Código penal traz no artigo 38 “O preso conserva todos os direitos
não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as
autoridades o respeito à sua integridade física e moral” e a Lei nº
7.210/84, Lei de Execução Penal, que em seu artigo 41º estabelece 16
direitos do preso: Art. 41 – Constituem direitos do preso: I –
alimentação suficiente e vestuário; II – atribuição de trabalho e sua
remuneração; III-Previdência Social; IV – constituição de pecúlio; V –
proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o
descanso e a recreação; VI – exercício das atividades profissionais,
intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que
compatíveis com a execução da pena; VII – assistência material, à
saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII – proteção contra
qualquer forma de sensacionalismo; IX – entrevista pessoal e
reservada com o advogado; X – visita do cônjuge, da companheira,
de parentes e amigos em dias determinados; XI – chamamento
nominal; XII – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da
individualização da pena; XIII – audiência especial com o diretor do
estabelecimento; XIV – representação e petição a qualquer

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autoridade, em defesa de direito; XV – contato com o mundo exterior


por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de
informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI
– atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da
responsabilidade da autoridade judiciária competente.

Na teoria parece um sistema totalmente eficaz, mas a realidade encontrada


atualmente é bem diferente, onde encontramos um sistema falido e em crise, prestes a
desmoronar tanto a sua estrutura física como sua administração e um dos principais

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motivos para isso acontecer é a superlotação de detentos no sistema carcerário, onde o
número de vagas são limitados e diante disso eles acabam vivendo em condições extremas,
desumanas, sem higiene, expostos aos maus tratos, a criminalidade e a corrupção do
sistema. Onde mesmo sendo um problema antigo, não se vê melhorias muito menos o
índice de pessoas detidas diminuir, que pelo ao contrário aumenta cada vez mais devido
as condições de sobrevivência dos detentos, onde além da reincidência de detentos que
não conseguiram se ressocializar na sociedade e acabaram voltando para as penitenciárias,
há também a saúde precária dentro desses estabelecimentos, que são causadas pela má
administração.

Atualmente sabe-se que grande parte da sociedade brasileira não faz ideia de
quantos indivíduos são presos diariamente, pois muitos casos não são divulgados pela
mídia porque são casos de menor potencial ofensivo, onde não envolve nenhuma
celebridade ou algum bandido que faz parte de alguma facção, muitas vezes tendo
situações em que o indivíduo foi preso preventivamente onde ainda aguarda a fase de
investigação dentro do sistema prisional, essas pessoas acabam passando “despercebidas”
aos olhos da sociedade, mas para o sistema carcerário elas fazem uma grande diferença,
onde pesquisas apontam que hoje em dia no Brasil o número de pessoas detidas podem
chegar a uma estimativa de mais de 3 mil novos presos por mês, onde com isso afeta todo
o sistema carcerário devido à falta de estruturas para poder abrigar todos esses indivíduos.

Com isso, inúmeros detentos ficam aglomerados em pequenos espaços e desde aí


que começa a falha do sistema carcerário, onde essas pessoas de vários lugares diferentes,
que estão chegando as penitenciárias não passam por nenhum tipo de qualificação, onde
todos ocupam o mesmo espaço, seja um ladrão de bicicleta ao qual ainda nem foi
condenado ou um dos maiores ladrões de bancos do país o qual já teve sua pena
decretada, onde dividem ideias e planejamentos sobre as formas de cometerem vários
tipos de crimes, fazendo assim com que o sistema penitenciário se torne uma verdadeira
escola do crime.

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Há muitos debates sobre o que deve fazer e qual a melhor maneira, para preparar
e ressocializar um detento durante o período que cumpre sua pena, pois segundo
especialistas mais de 70% dos que deixam a prisão acabam cometendo novos crimes e
retornando para o sistema prisional, onde fica evidente que a reincidência é uma realidade
fracassada do nosso sistema, deixando claro que o objetivo maior do sistema carcerário,
que é preparar o indivíduo para reinseri-lo a sociedade para se tornar uma pessoa melhor,
não foi atingido, pesquisadores acreditam que a solução para este problema depende de
medidas socioeducativas dentro das prisões, onde os detentos podem ter acesso a cursos
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

profissionalizantes, empregos, educação, atividades físicas, e condições básicas para a


sobrevivência humana, no entanto essas medidas até existem em nosso sistema carcerário,
mas devido a quantidade de pessoas detidas, ela acaba não sendo aplicada a todos os
indivíduos.

A realidade é que poucos sabem como realmente é a verdadeira situação dentro de


uma cela de uma penitenciária e muitos que nunca estiveram ali dentro e não tem o
conhecimento sobre tal lugar, acreditam que pôr os detentos estarem privados do restante
do mundo, eles estão bem protegidos, o que não é bem a verdade, pois pesquisas apontam
que os detentos brasileiros tem muito mais chances de contraírem doenças dentro das
penitenciárias, do que o restante da população que se encontram nas ruas, devido à falta
de saneamentos básicos para a sobrevivência humana, além de estarem expostos a ratos,
percevejos, baratas e outros insetos que causam doenças, eles sofrem também daquelas
que não só afetam a saúde física do corpo mas também daquelas que afetam o sistema
psicológico da pessoa e muitos sofrem com isso, pois na grande maioria cabe aos
familiares enviar medicamentos básicos, para a vivencia deles lá dentro, no entanto muitos
já não tem mais a sorte de poder contar mais com os mesmos, onde ficam à mercê do
Estado.

Diante a essas condições insalubres, os detentos ficam mais vulneráveis a doenças


relacionada ao fator respiratório, conforme relata Damasceno:

Os presos adquirem as mais variadas doenças no interior das prisões.


As mais comuns são as doenças do aparelho respiratório, como a
tuberculose e a pneumonia. Também é alto o índice de hepatite e de
doenças venéreas em geral, a AIDS por excelência. Conforme
pesquisas realizadas nas prisões, estima-se que aproximadamente
20% dos presos brasileiros sejam portadores do HIV, principalmente
em decorrência do homossexualismo, da violência sexual praticada
por parte dos outros presos e do uso de drogas injetáveis. (2007,
p.75)

Diante dessa situação percebesse o quanto é importante que as pessoas privadas


de sua liberdade precisam ter seu direito a saúde de maneira garantida, até mesmo porque,
202
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a saúde é de acesso universal e igualitário e infelizmente mesmo existindo em lei a garantia


desse direito, o mesmo não se faz presente dentro do sistema carcerário devido a falta de
infraestrutura, demonstrando assim uma violação aos direitos fundamentais.

Como ressalta Damasceno:

Dessa forma, a manutenção do preso em estado deplorável de saúde


estaria fazendo com que a pena não só perdesse o seu caráter
ressocializador, mas também estaria sendo descumprido um

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princípio geral do Direito, consagrado no art. 5° da Lei de introdução
ao Código Civil, também aplicável subsidiariamente na esfera
criminal, e, por consequência, na execução penal, que em seu texto
dispõe: na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum. (2007, p.75).

A má administração do sistema carcerário não é causada por uma única coisa em si,
ou um único problema, muito acontece para que uma penitencia seja mal dirigida, e uma
delas que tem o peso maior e é a principal causadora desse problema é o fator das
superlotações, que através daí recai todos os outros problemas, como exemplo as
rebeliões, onde os próprios detentos buscam uma forma de protestar sobre aquilo que
estão propondo a eles ou o estado em que estão sendo mantidos, onde em um passado
recente, mais precisamente no ano de 2017, o Brasil presenciou uma das maiores rebeliões
presenciadas até o momento desde o Carandiru, onde houve um massacre dentro do
sistema prisional contendo mais de 60 mortes de encarcerados, devido ao aumento das
facções criminosas, dificultando assim os objetivos do sistema prisional, que é, em primeiro
lugar, privar o indivíduo de sua liberdade e fazer com que essas pessoas se reeduquem
para poder reintegra-las para conviver em sociedade, o que dificilmente acontece, pois
devido essas má administração onde as pessoas acabam perdendo quase todos os direitos,
muitos se revoltam contra o sistema, onde não colaboram para a melhoria dessas unidades
prisionais, ao oposto, só acabam piorando ainda mais a imagem do sistema carcerário.

Infelizmente é muito alto o número de pessoas desempregadas no Brasil, pessoas


que mesmo tendo formação escolar já tem dificuldades para arranjar empregos, imagina
aqueles que ainda possuem antecedente criminal na ficha, onde muitos de certa forma
acabam sendo discriminados, principalmente no mercado de trabalho onde dificilmente é
bem vistos pela sociedade. Muitos saem do sistema prisional com interesse de mudar de
vida, só que devido ao erro cometido no passado acabam tendo sua imagem manchada,
assim acaba ficando mais difícil deles arrumarem empregos, o que leva a grande maioria
voltar a cometer crimes, onde sabem que dali conseguem tirar um dinheiro fácil para o seu
sustento e com isso, acabam retornando para as prisões, que já estão superlotadas, assim

203
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dificilmente irá abaixar o índice de pessoas encarceradas no Brasil e os problemas ainda se


manterão.

5.A PRIVATIZAÇÃO

Como já ficou expresso acima e é de conhecimento de todos que o sistema


carcerário brasileiro se encontra em estado de lastima, onde já não consegue propor suas
devidas funções e o Estado encontra-se com dificuldades para poder resolver esses
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problemas sozinho, por isso cada vez mais surgem debates sobre a privatização das
unidades prisionais, onde muitos acreditam que com essas empresas privadas assumindo
o controle das unidades, os problemas irão diminuir.

Como relata FERREIRA:

A contemporânea ideia privatizadora dos presídios surgiu com a


falência do sistema prisional, sendo que a pena de prisão se encontra
em declínio não atingindo suas principais finalidades, quais sejam a
retributiva, preventiva e ressocializadora (FERREIRA, 2007, p. 27 apud
BAYER,2013).

Para que se entenda melhor sobre tal ato é necessário que se apresenta um breve
conceito, onde a privatização nada mais é que a contratação de empresas privadas pelo
Estado para que as mesmas passem a administrar o sistema carcerário sobre a fiscalização
do Estado, onde com isso se entrega o serviço público para que seja executado por
terceiros, mediante compensação financeira.

Com base nos índices alarmantes da nossa massa carcerária, que foi aumentando
cada vez mais com o passar do tempo, a privatização começou a ser discutida como uma
alternativa necessária para combater a superlotação e o crescimento da população dentro
das unidades prisionais. Diante de tais acontecimentos, pesquisadores passaram a estudar
e buscaram em outros países modelos de penitenciárias privadas, para que pudesse
ingressar com esses projetos da melhor maneira possível no nosso país e diante desses
estudos feitos notou-se que um dos modelos que mais se adequa na nossa legislação é o
modelo Francês, onde a iniciativa privada atua em conjunto com o poder público ficando
responsável pelos serviços de alimentação, vestuário, limpeza e a segurança interna,
ficando a cargo do setor público a segurança externa e a direção geral, administrando a
pena sob o aspecto jurídico, aplicando punições em caso de faltas ou privilegiando em
caso de merecimento, inclusive esse modelo já foi implantado em algumas unidades
brasileiras, mais precisamente em 32 unidades, onde atualmente em nosso país temos os
dois modelos de empresas privadas, que são as PPPs (Parceria Pública-Privada) onde as
empresas ficam responsáveis por construir o presidio, e o Estado paga pelas obras durante
um longo período de tempo no caso do Brasil o contrato é de 30 anos, e também temos a

204
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Cogestão que é a mais comum em nosso país, onde as empresas que vencem a licitação
assume um presídio já construído pelo Estado e apenas fica responsável pelas sua
administração interna, como exemplo o modelo Francês citado acima.

Lembrando que ambos os modelos foram inseridos no nosso país, na intenção de


ajudar o Estado a resolver as questões pendentes dentro do sistema carcerário, que devido
a quantidade de penitenciárias e de pessoas encarceradas, não estavam dando conta de
manter em ordem, causando assim, cada vez mais problemas dentro da sociedade, onde a
forma que as unidades prisionais estavam sendo dirigidas e mantidas deixavam bem claro

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que precisavam de ajuda.

No entanto esses projetos mesmo que tem a intenção de melhorar o sistema


carcerário, deixa dúvidas em parte da população, diante disso vemos vários
posicionamentos a favor e contra a esse tema, o que acaba gerando polêmicas por
encontrar uma certa resistência por parte de importantes seguimentos da sociedade.

6.PÓS E CONTRA A PRIVATIZAÇÃO

Sabe-se que a privatização já não é algo tão recente, pois os debates sobre tal
função, se iniciaram já há algum tempo, no entanto até os dias atuais tem aqueles que
acreditam que a privatização vai resolver a maioria dos problemas enfrentados pelo Estado
dentro dos Presídios Brasileiros, assim como também tem aqueles que acreditam, que isso
não mudará nada, devido ao seu principal problema que são as superlotações de detentos
dentro das unidades prisionais.

Diante disso, vários órgãos e entidades competentes já expuseram seus


posicionamentos contrários a privatização do sistema carcerário brasileiro, como exemplo,
a OAB do estado de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), o
Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, dentre
outras associações.

Essa primeira corrente acredita que as empresas privadas estão pensando mais no
benefício financeiro que irão receber, do que a satisfação de direitos e garantias
fundamentais. Ou seja, estão interessadas somente pelo valor recebido por cada detento,
onde quanto mais cheio o sistema prisional, mais dinheiro eles ganham, como relata o
autor Ferreira:

O que traz preocupação em relação à privatização das penitenciárias


é o fato de que, quanto maior o sofrimento e a dor, maior será o lucro
obtido. Assim, quanto maior o número de pessoas presas, maior será

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a quantidade de presídios administrados por empresas privadas


(FERREIRA, 2007, p. 33, apud BAYER, 2013).

Os defensores dessa corrente acreditam que essa privatização aumentará também


a insegurança e a violação de direitos as pessoas presas.

Já a segunda corrente acredita que com a privatização das unidades, o Estado


gastaria menos em relação ao setor penitenciário, teriam melhorias no sistema carcerário,
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garantindo todos os direitos que os detentos possuem, que consequentemente faria com
que diminuísse as rebeliões, tentativas de fugas e reincidências.

Como se tem o posicionamento do defensor D´urso (2016), ao qual entende que:

Registro que sou amplamente favorável à privatização, no modelo


francês e as duas experiências brasileiras, uma no Paraná há um ano
e outra no Ceará, há dois meses, há de se reconhecer que são um
sucesso, não registram uma rebelião ou fuga e todos que orbitam em
torno dessas unidades, revelam que a utopia de tratar o preso
adequadamente pode se transformar em realidade no Brasil. […] Das
modalidades que o mundo conhece, a aplicada pela França é a que
tem obtido melhores resultados e testemunho que, em visita oficial
aos estabelecimentos franceses, o que vi foi animador. Trata-se de
verdadeira terceirização, na qual o administrador privado,
juntamente com o Estado fazem parceria administrativa, inovando o
sistema prisional. Já o modelo americano, o qual também visitei, tal
seria inaplicável ao Brasil, porquanto a entrega do homem preso ao
particular é total, fato que afrontaria a Constituição brasileira. […]. De
minha parte, não me acomodo e continuo a defender essa
experiência no Brasil, até porque não admito que a situação atual se
perpetue, gerando mais criminalidade, sugando nossos preciosos
recursos, para piorar o homem preso que retornará, para nos dar o
troco” (D´URSO, 2016, p. 25).

Fernando Capez, ao analisar o sistema prisional e a possibilidade de privatização


também se expressa, onde afirma que a privatização dos presídios é uma alternativa
extremamente necessária. Em seu entendimento aduz:

É melhor que esse lixo que existe hoje. Nós temos depósitos
humanos, escolas de crime, fábrica de rebeliões. O Estado não tem
recursos para gerir e construir presídios, sendo assim, a privatização
deve ser enfrentada não do ponto de vista ideológico ou jurídico, se
sou a favor ou contra, tem que ser enfrentada como uma necessidade

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absolutamente insuperável, ou “privatizamos” os presídios;


aumentamos o número de presídios; melhoramos as condições de
vida e da readaptação social do preso sem necessidade do
investimento do Estado, ou vamos continuar assistindo essas cenas
que envergonham nossa nação perante o mundo. Portanto, a
“privatização” não é questão de escolha, mas uma necessidade
indiscutível é um fato. (CAPEZ, 2002 apud SILVA, 2012).

Diante a essa corrente fica completamente esclarecido que seus defensores

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entendem que o Estado não tem condições de resolver os problemas encontrados no
sistema carcerário sozinho, que também de certa forma se torna um problema da
sociedade em si, com isso as privatizações do sistema prisional são mais do que
necessárias.

Necessárias ao ponto de que recentemente o Governo ressuscita a ideia de


privatizar os presídios, conforme mostra a matéria da revista Veja, onde o delegado
Anderson Torres ressuscitou a ideia de conceder a iniciativa privada aos presídios. No
entanto o fato ainda está sendo discutido para ver qual modelo é o mais adequado para
garantir uma melhor gestão das instituições carcerárias.

Porém tem se em mente que para os presídios de menor porte, dos modelos
apresentados o governo incentiva o da Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (Apac). Que é organização da sociedade civil que tem como ideia inicial a
administração de pequenos presídios onde possui menos detentos e a periculosidade é
menor, e diante dos resultados encontrados, buscarão progressos nas demais
penitenciárias.

7.APAC

O que podemos perceber nessa Apac, é a valorização humana que eles dão aos
reeducandos, algo que não acontece em outras unidades prisionais, onde ali eles fazem
com que essas pessoas se sintam novamente importantes para a sociedade e garantem
que eles realmente estão prontos para serem reinseridos a população.

Diferente de uma prisão normal as celas que acomodam os reeducandos aqui,


possui apenas de 6 a 10 pessoas, onde são todas bem limpas e organizadas, onde cada um
tem sua cama e seu espaço para guardar seus pertences, além do mais, também oferecem
a essas pessoas oportunidades de estudos e de serviços.

Fazendo assim com que essas pessoas consigam uma nova oportunidade de vida,
ao serem reinseridas na sociedade, onde muitos sairão com experiências em algumas áreas

207
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de empregos, além da formação acadêmica, onde muitos acabam finalizando os estudos


dentro das unidades.

Claro que não pode comparar a Apac com o sistema público por operar em
situações diversas. No entanto pode se afirmar que com a privatização das penitenciárias
faria grandes melhorias nas unidades carcerárias.

8.CONCLUSÃO
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É incontestável que a situação que se encontra o sistema carcerário hoje em dia, é


devido a grande massa carcerária que temos em nosso país, que deixa todo o sistema
prisional superlotado, no entanto, não podemos ser omissos em dizer que é só por causa
da quantidade de detentos que esses problemas aparecem, vale ressaltar que também
sofremos as consequências de más administrações, dentro e fora do sistema prisional,
onde o Estado vive tampando o sol com a peneira, deixando de investir em lugares que
realmente são importantes, lugares que realmente precisam que seja alterado alguma coisa
para que futuramente esse caos não venha a piorar.

Certamente a privatização das penitenciárias não resolverá todos os problemas do


sistema carcerário de uma só vez, mas a realidade exige que algo seja feito, e
provavelmente essa privatização mesmo que resolvesse apenas alguns desses problemas,
já seria um passo dado, onde a necessidade é prevalecer o bem da sociedade,
principalmente da pessoa encarcerada.

Há muitos pontos que podem ser alterados pela administração, visando uma
melhoria do sistema, no entanto sabemos que muitas pesquisas e debates ainda serão
realizados, para que isso possa ocorrer.

Mas o nosso sistema não pode ficar mais do jeito que está, uma verdadeira
desordem total, e a realidade atual exige medidas de urgências que solucione ou minimize
o problema carcerário no Brasil, por isso o presente trabalho versa sobre a privatização
carcerária, onde acredita que com isso poderá haver melhorias no sistema carcerário
brasileiro.

Melhorando não só a dignidade humana dos detentos dentro das unidades, como
também faria que diminuísse a reincidência desses indivíduos, que com as devidas
oportunidades dadas a eles, sairiam melhores preparados para a sociedade, e dificilmente
retornariam as prisões.

REFERÊNCIAS

208
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A Crise no Sistema Carcerário Brasileiro - Âmbito Jurídico - Educação jurídica gratuita


e de qualidade. , [s.d.]. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
penal/a-crise-no-sistema-carcerario-brasileiro/>. Acesso em: 16 nov. 2021

A privatização de presídios como mecanismo garante dos direitos fundamentais


constitucionais na execução penal: uma tendência factível ou falaciosa | eGov UFSC.
Disponível em: <https://egov.ufsc.br/portal/conteudo/privatiza%C3%A7%C3%A3o-de-
pres%C3%ADdios-como-mecanismo-garante-dos-direitos-fundamentais-constitucionais-
>.Acesso em: 16 nov. 2021.

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BRASIL. Decreto Lei Nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941. Lei de introdução do Código
Penais (decreto-lei n. 3.688, de 3 outubro de 1Penal (decreto-lei n. 2.848, de 7-12-940) e
da Lei das Contravenções (decreto-lei n. 3.688, de 3 outubro de 1941). Disponível em :<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3914.htm>. Acesso em: 16 de nov.
2021.

CAPEZ, Fernando. Entrevista concedida a revista DATAVENI@, ano VI Nº 55, março de


2002. Apud SILVA, André Ricardo Dias. A privatização de presídios como mecanismo
garante dos direitos fundamentais constitucionais na execução penal: uma tendência
factível ou falaciosa. Disponível
em:http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/privatiza%C3%A7%C3%A3o-de-
pres%C3%ADdios-como-mecanismo-garante-dos-direitos-fundamentais-constitucionais-
Acesso em: 16 de nov. 2021

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Mutirão carcerário. Disponível em:<


http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-mutirao-carcerario>.
Acesso em: 16 de nov. 2021.

Constituição. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 16 nov.
2021.

DEL3914. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-


lei/del3914.htm>. Acesso em: 16 nov. 2021.

D´URSO. Luiz Flávio Borges. Entregar as prisões à iniciativa privada é mais eficiente e
garante os direitos dos internos. 2016. Disponível em:
<http://super.abril.com.br/ciencia/a-privatizacao-dos-presidios/>. Acesso em: 16 nov.
2021.

209
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Em quatro dias, mutirão em Curitiba concedeu benefício em 49% dos processos.


Portal CNJ, 9 abr. 2010. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/em-quatro-dias-mutirao-
em-curitiba-concedeu-beneficio-em-49-dos-processos/>. Acesso em: 16 nov. 2021

FERREIRA, Maiara Lourenço. A privatização do sistema prisional brasileiro. 83 fl. TCC


(monografia) – Faculdade de Direito de Presidente Prudente – SP. 2007. Apud BAYER,
Khristian. A privatização nas penitenciárias brasileiras disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/25731/a-privatizacao-nas-penitenciárias-brasileiras/>4
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População carcerária diminui, mas Brasil ainda registra superlotação nos presídios
em meio à pandemia | Monitor da Violência | G1. Disponível em:
<https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/05/17/populacao-carceraria-
diminui-mas-brasil-ainda-registra-superlotacao-nos-presidios-em-meio-a-
pandemia.ghtml>. Acesso em: 16 nov. 2021.

Presídios privados no Brasil: como funcionam e quanto custam. Especiais, [s.d.].


Disponível em: <https://especiais.gazetadopovo.com.br/politica/presidios-privados-no-
brasil/>. Acesso em: 16 nov. 2021

Ressuscita a ideia de privatizar. Hugo Marques 27 jun 2021, disponível em:


https://veja.abril.com.br/brasil/governo-ressuscita-ideia-de-privatizar-presidios/

210
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TOKEN NÃO FUNGÍVEL: UMA ANÁLISE ACERCA DOS REFLEXOS PARA OS DIREITOS
AUTORAIS

BRUNO DA SILVA BATALHA:


Especialista em Direito Digital pela
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ.

Resumo: À vista das inúmeras possibilidades propiciadas pela web 3.0, questão importante

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que se apresenta é conhecer em que medida as inovações baseadas em blockchain deve
refletir na proteção aos Direitos Autorais. Diante disso, surge o seguinte questionamento:
Quais seriam os reflexos que os NFT’s – Non fungible tokens – acarretariam para os Direitos
Autorais? Desta forma, o objetivo geral é analisar as implicações jurídicas relativas à
interação entre os NFT’s e o sistema de proteção legal de Direitos Autorais. Para tanto,
têm-se como objetivos específicos: expor as repercussões jurídicas que a tokenização pode
causar à propriedade intelectual e ao combate à pirataria, evidenciando as limitações
tecnológicas quanto ao armazenamento centralizado de NFT’s. Em avanço, analisa-se a
interação entre memes, obras artísticas e literárias e os NFT’s, no que se refere aos reflexos
para o Direito Autoral, bem como essa interação se relaciona com as licenças customizadas.
Por fim, examina-se as perspectivas para a indústria de mídia e os potenciais benefícios
para autores, intérpretes e usuários, tendo por base a nova fronteira tecnológica baseada
em contratos inteligentes, NFT’s e metaversos.

Palavras-chave: NFT. Direitos Autorais. Tokenização. Contratos Inteligentes.

Abstract: In view of the numerous possibilities provided by web 3.0, an important question
that arises is to know to what extent blockchain-based innovations should reflect on
copyright protection. In view of this, the following question arises: What would be the
reflexes that the NFT's - Non fungible tokens - would bring to Copyright? In this way, the
general objective is to analyze the legal implications related to the interaction between the
NFT's and the legal protection system of Copyright. To this end, it has as specific objectives:
to expose the legal repercussions that tokenization can cause to intellectual property and
the fight against piracy, highlighting the technological limitations regarding the centralized
storage of NFT's. In advance, the interaction between memes, artistic and literary works
and the NFT's is analyzed, with regard to the reflexes for Copyright Law, as well as this
interaction is related to customized licenses. Finally, the prospects for the media industry
and the potential benefits for authors, performers and users are examined, based on the
new technological frontier based on smart contracts, NFT's and metaverses.

Keywords: NFT. Copyright. Tokenization. Smart Contracts.

211
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Sumário: Introdução. 1. NFT – Breve Definição e Histórico. 2. NFT, Tokenização e Direitos


Autorais 2.1. NFT’s e Pirataria. 2.2. Armazenamento Centralizado de NFT,s – Desafios
Tecnológicos e Jurídicos 3. Memes, Obras Artísticas e Literárias x NFT – Repercussões
acerca dos Direitos Autorais. 3.1. Novas perspectivas e o Creative Commons. 4. NFT,
Blockchain e a Indústria da Mídia. 4.1. Finanças Descentralizadas e Web 3.0 – A importância
das tecnologias integradas ao NFT para a indústria da mídia. 5. Metaverso e Direitos
Autorais – A próxima fronteira para os NFT’s e a Indústria de Mídia. Considerações finais.
Referências.
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INTRODUÇÃO

Atualmente, observa-se o início da transição da internet de plataforma, dominada


por grandes empresas que monetizam com os dados pessoais, para organizações
autônomas descentralizadas126, as quais permitem a retomada do controle de dados
pelos indivíduos. A medida que a internet, gradualmente, migra em direção a web 3.0,
muitos benefícios e alguns desafios se apresentam para a coletividade.

Blockchain é a tecnologia por trás de toda essa inovação, dos NFT’s – Non Fungible
Tokens – ao Metaverso. Ao permitir a descentralização do armazenamento de informações
em nuvem127 e a descentralização de aplicações por intermédio de organizações
autônomas descentralizadas, a tecnologia pode devolver aos indivíduos a privacidade e o
poder de controle sobre os dados pessoais.

O controle dos dados pelos indivíduos e a descentralização de informações


envolvem grandes mudanças e novos desafios jurídicos. Atualmente, muitas barreiras ainda
se impõem para a completa adoção da tecnologia: limitações como experiência do usuário,
escalabilidade, custos e acessibilidade. Tudo isso indica que o caminho é longo para uma
completa transição.

A permanente evolução tecnológica da internet e da criptografia possibilitou o


surgimento dos NFT’s, acrônimo de non fungible token. Pela primeira vez se tornou
possível criar escassez no ambiente digital. Diferentemente de moedas fungíveis, como a

126 A DAO é um sistema baseado em blockchain que habilita as pessoas a se coordenarem e governarem
mediadas por um conjunto de regras auto-executáveis implantadas em blockchain público de governança
descentralizada. Disponível em: HASSAN, Samer; DE FILIPPI, Primavera. Decentralized Autonomous
Organization. Internet Policy Review, v. 10, n. 2, p. 1-10, 2021. Acesso em: 24.fev 2022
127 WILLIAMS, Sam; JONES, Will. Archain: An Open, Irrevocable, Unforgeable and Uncensorable Archive for
the Internet. Publicado em: 2 aug. 2017.

212
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moeda fiduciária e as criptomoedas bitcoin e ethereum, cujo padrão de emissão tornam


todos os tokens iguais,128 tokens não fungíveis por sua natureza não são intercambiáveis.

Ao se criar identidade única e escassez com registro em blockchain, pode se


remodelar toda a estrutura jurídica em torno dos Direitos Autorais. Essa revolução
extrapola as fronteiras da internet ao se proporcionar a representação não somente de
itens do mundo digital, mas também do mundo real.

A tokenização pode causar diversos reflexos aos Direitos Autorais e, especialmente,

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no que se refere ao combate à pirataria. O armazenamento centralizado de NFT’s é uma
importante limitação tecnológica que pode repercutir nos Direitos Autorais, no que pese
projetos em desenvolvimento para corrigir o problema.

Interações sociais de humor registradas por memes agora podem ganhar conotação
e amparo jurídico. Novas possibilidades de obras artísticas como as esculturas imaginárias
podem gerar controvérsias diante da legislação autoral vigente. Contratos inteligentes
podem se aliar às licenças Creative Commons e oferecer muitas outras oportunidades de
customização frente a todos os direitos reservados.

Contratos inteligentes e NFT’s podem gerar novas perspectivas para a indústria de


mídia e novos potenciais benefícios para os detentores de Direitos Autorais. O avanço do
Metaverso, como realidade virtual paralela, pode apresentar uma nova disrupção ao ser
utilizado como espaço para shows e apresentações. Isso tudo torna ainda mais complexa
a relação entre as novas tecnologias e a indústria de mídia, criando reflexos para a
legislação autoral.

Diante disso surge o seguinte questionamento: Quais seriam os reflexos que os


NFT’s acarretariam para os Direitos Autorais? Desta forma, busca-se analisar os reflexos
que a tecnologia de token não fungível e contratos inteligentes provocará no sistema de
proteção aos Direitos Autorais, bem como os acordos e desacordos face à legislação
vigente.

A elaboração do presente trabalho terá por base uma pesquisa teórica e de cunho
exploratório, valendo-se para isso do método dedutivo. Além disso, a pesquisa
bibliográfica e documental será abordada com fundamento nos documentos de projetos

128 A quantidade de tokens emitidos em uma blockchain pode ser limitada por algoritmo, como na rede
bitcoin, cuja emissão máxima será de 21 milhões de criptomoedas. Essa escassez de tokens ou criptomoedas
circulantes na rede não se relaciona com a infungibilidade do token. Na rede bitcoin, todas as criptos
circulantes são iguais, possuindo o mesmo valor de troca. NFT’s, ao contrário, não possuem unidade de troca,
sendo seu valor baseado na utilidade e subjetividade, posto que um token não fungível não se confunde
com o outro em razão do seu registro único.

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baseados em blockchain, bem como a bibliografia, legislação e jurisprudência pátria acerca


do tema, utilizando-se da técnica de análise qualitativa.

1. NFT – BREVE DEFINIÇÃO E HISTÓRICO

Token não fungível pode ser definido como um ativo criptográfico exclusivo,
insubstituível, indivisível e verificável por intermédio de blockchain, podendo representar
um ativo exclusivamente digital ou físico.129 A propriedade infungível130 e rastreável do
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NFT o torna uma excelente opção para representar itens como obras de arte, músicas, itens
de jogos e até mesmo memes.

Alexandre Pesserl131 conceitua NFT no contexto dos Direitos Autorais da seguinte


forma:

Um NFT, Non Fungible Token ou Token Não Fungível, é um registro


único de informação numa blockchain. Um bem é considerado
fungível se for idêntico e intercambiável – como uma saca de soja, ou
uma cédula de dinheiro. A criação do token não fungível, uma
espécie de registro único, imprime escassez a determinado artefato
digital, e, portanto, cria valor na circulação de ativos, entre eles os
direitos autorais.

Em 2014, apareceu o primeiro NFT em um evento de Arte Comteporânea em Nova


York, o Quantum, uma animação criada pelo artista Kevin McCoy. Era a primeira obra com
certificado digital e prova de escassez registrada e verificável em blockchain.132 Pouco anos
depois, em 2017, era proposto o padrão ERC-721133 na blockchain da Ethereum. O padrão

129 Valeonti, F.; Bikakis, A.; Terras, M.; Speed, C.; Hudson-Smith, A.; Chalkias, K. Crypto Collectibles, Museum
Funding and OpenGLAM: Challenges, Opportunities and the Potential of Non-Fungible Tokens (NFTs). Appl.
Sci. 2021, 11, 9931. https://doi.org/10.3390/app1121993.
130 O aspecto infungível do token apresenta conceituação a contrário sensu no Código Civil. “Art. 85. São
fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. (Lei
10.406/2002)”. Outras qualidades inerentes ao NFT como a singularidade e a indivisibilidade encontram
classificação no mesmo diploma legal.
131 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021
132 Sotheby's second NFT auction presents first ever minted NFT from 2014, rare Cryptopunk & more.
Disponível em:<http://www.mutualart.com/ExternalArticle/Sotheby-s-Second-NTF-Auction-
Fi/F2CFBDE1D6A4DDAC?source_page=Artist\Articles&utm_source=mutualart&utm_medium=referra
l>. Acesso em: 13 nov. 2021
133 What is ERC-721? The ERC-721 introduces a standard for NFT, in other words, this type of Token is unique
and can have different value than another Token from the same Smart Contract, maybe due to its age, rarity

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foi responsável por democratizar a criação de tokens não fungíveis na rede blockchain, ao
permitir a implementação de tokens únicos em plataformas de contratos inteligentes.

Em junho de 2017, o estúdio Larva Labs lançou o projeto CryptoPunks, projeto


experimental de cripto-arte baseado em tokens não fungíveis. O projeto compreende 10
mil fotos de personagens punks com características singulares, um deles vendidos por mais
de 40 milhões de dólares. Curiosamente, as imagens que compõem os retratos foram
geradas aleatoriamente por algoritmo.134

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A partir de então, grandes museus, instituições culturais e artistas ao redor do
mundo passaram a adotar os NFT’s. A galeria de arte Uffizi, em Florença, foi a primeira
grande instituição de artes a aderir aos NFT’s. A adesão do museu se deveu às perdas de
receita causadas pela pandemia. Na Inglaterra, o museu Whitworth vendeu seus primeiros
NFT’s, em julho de 2021, os quais representavam a imagem de William Blake “Ancião dos
Dias”.135

Mais recentemente, o lançamento da coleção Bored Ape Yacht Club se tornou muito
popular entre famosos e celebridades. A coleção apresenta desenhos de macacos
entediados gerados a partir de algoritmo. Cada imagem de macaco, conhecidos como
Bored Apes, é representada por um NFT registrado no blockchain da rede ethereum. O
detentor de um Bored Ape terá acesso a benefícios exclusivos a medida que o
desenvolvimento da comunidade avança.136

Outra valiosa obra foi vendida na famosa casa de leilões Christie’s. Trata-se da obra
“Todos os dias - Os primeiros 5.000 dias”(tradução nossa)137, coleção criada pelo artista
Beeple, a qual se tornou conhecida em todo mundo. A obra continha 5.000 obras de arte
digital registradas em apenas um NFT. À época a obra foi vendida pelo preço recorde 69
milhões de dólares.138

or even something else like its visual. Disponível em:


https://ethereum.org/en/developers/docs/standards/tokens/erc-721/. Acesso em: 14/11/2021
134 Disponível em: “https://www.larvalabs.com/cryptopunks”. Acesso em: 24 mar. 2022.
135 Valeonti, F.; Bikakis, A.; Terras, M.; Speed, C.; Hudson-Smith, A.; Chalkias, K. Crypto Collectibles, Museum
Funding and OpenGLAM: Challenges, Opportunities and the Potential of Non-Fungible Tokens (NFTs). Appl.
Sci. 2021, 11, 9931. https://doi.org/10.3390/app11219931
136 Disponível em: https://boredapeyachtclub.com/#/. Acesso em: 25 mar. 2022.
137 “Everydays: the first 5.000 days”
138 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021

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O breve histórico apresenta alguns dos fatos mais marcantes relacionados a recente
história dos NFT’s. Nesse contexto, os colecionáveis e as artes digitais se apresentam como
os primeiros aspectos visíveis das inúmeras possibilidades promovidas pela tecnologia de
NFT’s. Ao se criar identidade única e escassez com registro em blockchain, torna-se possível
remodelar toda a estrutura jurídica em torno dos direitos autorais.

2. NFT, TOKENIZAÇÃO E DIREITOS AUTORAIS


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Quem diria que o whitepaper de Sathoshi Nakamoto, na época em que foi


publicado, teria repercussões tecnológicas e sociais tão além da própria revolução
financeira promovida pelo Bitcoin. Dos ativos físicos aos ativos virtuais, qualquer coisa
pode ser “tokenizada” com base da tecnologia de blockchain. Ativos financeiros, imóveis,
objetos e tudo que possa se atribuir valor no mundo físico ou digital podem ser
representados por tokens fungíveis, ou não fungíveis.139 140 Essa evolução parece causar
um rápido processo de simbiose entre o mundo físico e o virtual, confundindo-os.

Para Heines e Dick141 “a tokenização pode ser entendida como a atividade de


criação de um token em um livro razão público, distribuído e compartilhado, de forma que
esse token possa ser representado de forma única e permanente.”142A tokenização
permite a otimização de processos, maior transparência, democratização, facilidade de
acesso, aumento da liquidez e desintermediação.143

Na atualidade, ainda existe toda uma estrutura e burocracia para comprovação de


autenticidade e propriedade, como cartórios, orgãos públicos, muitos documentos e
papeis. Diversos métodos se propõem a comprovar tais fatos e transações: marca d’água,
registro, assinatura e reconhecimento de firma, entre outros procedimentos em processo
de obsolescência.

Por outro lado, as transações mediadas por contratos inteligentes permitem


transparência, publicidade e registro histórico.144As qualidades criptográficas garantem

139 EVANS, Tonya M. Cryptokitties, cryptography, and copyright. AIPLA QJ, v. 47, p. 219, 2019.
140 HEINES, Roger; DICK, Christian; Pohle, Christian; and Jung, Reinhard, "The Tokenization of Everything:
Towards a Framework for Understanding the Potentials of Tokenized Assets" (2021). PACIS 2021 Proceedings.
40. https://aisel.aisnet.org/pacis2021/40.
141 Id. Heines e Dick.
142 Nos termos originais: “tokenization can be initially described as the process of creating a token on a
shared ledger in terms of a singular identifier that enables a unique and persistent reference.”
143 Id. Heines e Dick.
144 Valeonti, F.; Bikakis, A.; Terras, M.; Speed, C.; Hudson-Smith, A.; Chalkias, K. Crypto Collectibles, Museum
Funding and OpenGLAM: Challenges, Opportunities and the Potential of Non-Fungible Tokens (NFTs). Appl.
Sci. 2021, 11, 9931. https://doi.org/10.3390/app11219931

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autenticidade e rastreio, o que, aliada às características do blockchain, tornam-nos uma


estrutura tecnológica adequada para garantir o direito de uso, gozo e disposição de bens.
Além disso, a supressão dos custos e da burocracia atreladas ao “homem do meio”
melhoram a segurança das transações, negócios e aumenta a usabilidade da
tecnologia.145

A partir dessas características, um token pode representar obras protegidas e


fonogramas, que podem ser registrados em um banco de dados descentralizado e
distribuído. Os contratos inteligentes146, por seu lado, podem se encarregar de

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automatizar as transações e os contratos relacionados aos Direitos Autorais, tais como o
uso, a exploração de conteúdo protegido e a remuneração de artistas.147

Todo o autor possui o direito exclusivo de utilizar, publicar ou reproduzir sua obra,
além de transmitir esse direito aos herdeiros.148 De outro modo, a todos devem ser
proporcionados os direitos de acesso à cultura, a educação e a ciência.149 A tokenização
de obras artísticas, fonogramas e demais itens do mundo da música tende a se conciliar
com os princípios mais sublimes dos direitos autorais, bem como se aliar ao combate à
pirataria, no que pese os desafios do atual estado da arte da tecnologia.

2.1. Pirataria, Blockchain e NFT

O termo “pirataria”, popularizado pelo discurso público e pela mídia, apresenta uma
ampla variação de significados, conforme informa o dicionário de língua portuguesa
Michaelis.150 De bandido dos mares que pilha navios às povoações ao longo da costa que
operam emissora de rádio ou TV clandestinamente. Entre estes, um significado apresenta

145 HEINES, Roger; DICK, Christian; Pohle, Christian; and Jung, Reinhard, "The Tokenization of Everything:
Towards a Framework for Understanding the Potentials of Tokenized Assets" (2021). PACIS 2021 Proceedings.
40. https://aisel.aisnet.org/pacis2021/40.
146 Contratos Inteligentes nada mais são que contratos típicos que foram codificados e colocados em uma
base de dados. Dito isso, esses negócios são “execução automática de um conjunto juridicamente constituído
ou mesmo de contratos mais simples, cuja formação pode se dar de forma verbal, mas que deverão obedecer
a legislação para a sua elaboração” (CAMPOS, 2018, p. 109).
147 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021.
148 “ Art. 5º, XXVII , CF – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de
suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.”
149 “Art. 23, CF - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: V -
proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;”
150 MICHAELIS. Dicionário de Lingua Portuguesa. Disponível em: <Pirata | Michaelis On-line
(uol.com.br)>. Acesso em: 24 jan. 2022

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definição concordante com os ditames dos Direitos Autorais: “Copiar ou imitar produção
intelectual ou produtos em geral, infringindo a lei e desrespeitando a legislação autoral”.

A definição de pirataria também pode ser encontrada no decreto presidencial de nº.


5.244/2004, o qual delimitou o termo no art. 1.º, parágrafo único: “Entende-se por pirataria,
para os fins deste Decreto, a violação aos direitos autorais de que tratam as Leis nos 9.609
e 9.610, ambas de 19 de fevereiro de 1998”. A LDA – Lei de Direitos Autorais, entretanto,
não reproduz o termo, apenas define contrafação como reprodução não autorizada.151
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Determinar o alcance da acepção da palavra ganha importância em razão do


enfoque dado à prática de pirataria como a causadora principal de diversas mazelas.
Situação que contribui para o recrudescimento das normas de Direito Autoral e Penal, a
despeito da existência de qualquer pesquisa séria sobre o tema.152

As primeiras versões da internet foram responsáveis por grandes transformações e


novos desafios para a proteção de direitos autorais. A possibilidade de download, cópia e
distribuição de conteúdo ilegalmente amplificou o debate acerca do combate à pirataria e
realçou a fragilidade da legislação em regular efetivamente o tema.153

A evolução da internet e dos suportes de fixação de obras diminuíram a capacidade


de a legislação autoral em se manter apta a regular os novos fatos e controvérsias surgidas
a partir da evolução tecnológica.154 A legislação autoral foi construída e publicada na
década de noventa, época em que predominava o uso de mídias analógicas como o VHS
e o CD. Naquele contexto, o uso de mídias digitais ainda era residual. A internet começava
a dar os primeiros passos.

Desde então, a internet passou por inúmeras transformações, da web 1.0 à


disrupção em andamento promovida pela web 3.0. Das questões relacionadas às cópias e
distribuição de arquivos digitais até a desintermediação de produção de conteúdo
promovida pela tecnologia de blockchain. Soma-se a isso, mais recentemente, a criação da
tecnologia de NFT para expressar e publicar obras com registro de autenticidade e
escassez. Nesse ínterim, a legislação autoral se manteve praticamente imutável ao longo
de todo o período, salvo alguns ajustes na gestão coletiva de direitos autorais, incluídos
pela Lei n.º 12853, de 2013.

151 “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: VII - contrafação - a reprodução não autorizada;” (Lei n°
9610/98)
152 Direitos autorais em reforma / Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Centro
de Tecnologia e Sociedade. - Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2011. 122p.
153 Id. Direitos autorais em reforma.
154 EVANS, Tonya M. Cryptokitties, cryptography, and copyright. AIPLA QJ, v. 47, p. 219, 2019

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O advento da tecnologia de blockchain e de NFT pode retornar ao produtor de


conteúdo a garantia de seus direitos, especialmente quanto a inibição da pirataria. Seria
possível piratear um NFT? Ainda que seja possível fazer a cópia de um arquivo digital,
copiando, por exemplo, a imagem de um NFT, essa reprodução carece de valor em razão
da ausência de autenticidade conferida pelo registro imutável. Ao se registrar qualquer
obra através de um token não fungível, torna-se muito mais fácil reconhecer a autoria pelo
registro na cadeia de blocos.

Para Tonya M. Evans “o controle do token e a propriedade são garantidas pela posse

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do par de chaves assimétricas público-privada, o que, por sua vez, impede a falsificação e
a pirataria.”155 156 Dessa forma, o recrudescimento estatal em impor leis visando
combater a pirataria - sob justificativa das supostas mazelas causadas por ela -,157 pode
se esvaziar de sentido em razão do design tecnológico da web 3.0. As características
intrínsecas da tecnologia permitem que elas sejam ótimas aliadas em defesa dos direitos
autorais e, sobretudo, contra a pirataria.

No entanto, apesar da garantia de autenticidade e escassez da obra, há discussões


quanto ao fato dos arquivos vinculados ao NFT, sejam de imagem ou som, não estarem
armazenados efetivamente em uma blockchain. De fato, as imagens de um NFT são,
atualmente, armazenadas em servidores centralizados, como o Google Drive, por exemplo,
e hiperlinks as vinculam aos NFT’s.158 Essa situação pode, eventualmente, vulnerabilizar
direitos e garantias dos titulares de direitos autorais.

2.2. Armazenamento Centralizado de NFT,s – Desafios Tecnológicos e Jurídicos

A breve passagem pela temática se justifica em função das implicações quanto a


propriedade da obra e, especialmente, no que toca a conciliação da nova tecnologia e a lei
de direitos autorais. Em uma recente publicação, Moxie Marlinspike, criador do Signal -

155 EVANS, Tonya M. Cryptokitties, cryptography, and copyright. AIPLA QJ, v. 47, p. 219, 2019.
156 Nos termos originais: “It is the creator’s public-private asymmetric key pair that secures ownership and
control of the token and prevents counterfeiting and piracy.”
157 Direitos autorais em reforma / Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Centro
de Tecnologia e Sociedade. - Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2011. 122p.
158 WILLIAMS, Sam; JONES, Will. Archain: An Open, Irrevocable, Unforgeable and Uncensorable Archive for
the Internet. Publicado em: 2 aug. 2017.

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aplicativo de mensagens instantâneas -, publicou um artigo criticando à web 3.0 e, mais


especificamente, os NFT’s.159

O artigo relata que os dados ou imagens não são gravados na cadeia de blocos, mas
são ligados ao NFT por um endereço eletrônico que os vinculam. O experimento se baseou
na criação de um NFT, publicado no marketplace da Opensea e da Rarible, cuja imagem se
alterava com base no IP. Usuários de plataformas diferentes passaram a ver imagens
diferentes de um mesmo NFT (FIGURA 1). Logo após o acontecido, a Opensea removeu o
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NFT de sua plataforma.160

FIGURA 1 – MESMO NFT E IMAGENS DIFERENTES

Fonte: MARLINSPIKE, Moxie161

Interessante observar que as imagens excluídas pela Opensea também se apagaram


nas carteiras que a detinham. A experiência demonstrou a fragilidade do armazenamento
centralizado de imagens vinculadas aos NFT’s. A plataforma de marketplace, ao remover a
imagem sem o consentimento do proprietário, explicitou a precariedade no que se refere
à propriedade do item digital e, além disto, à proteção dos direitos autorais.

Como comprovar a autoria de uma obra em tais circunstâncias? O mero


apagamento de imagens, vinculadas à NFT’s, em servidores seria suficiente para
impossibilitar a comprovação da autoria? E a modificação de imagens relacionadas ao
mesmo NFT, quais prejuízos poderiam acarretar aos direitos autorais? As respostas aos
questionamentos têm o potencial de extrapolar as questões autorais e trazer enormes
implicações até mesmo para a credibilidade da própria web 3.0.

159 MARLINSPIKE, Moxie. My First Impressions of web 3.0. Publicado em: 07 jan. 2022. Disponível em: <
https://moxie.org/2022/01/07/web3-first-impressions.html >. Acesso em: 26 jan. 2022
160 Id. MARLINSPIKE, Moxie.
161 Id. MARLINSPIKE, Moxie.

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A despeito do surgimento do padrão ERC-721 ter permitido a criação de identidade


digital e escassez, as imagens e informações dos NFT´s vinculadas a esses tokens ainda são
armazenadas em servidores centralizados, como da Opensea. Essa situação pode trazer
riscos adicionais à garantia de proteção dos direitos autorais, conforme exposto no
exemplo supracitado, onde a imagem se alterava a depender do IP de acesso.

Um NFT sem obra vinculada é apenas um registro criptográfico na cadeia de blocos.


Comprovar a autoria nesse contexto pode se tornar um grande embaraço. De outro modo,
alterar a imagem de um NFT, como no caso estudado acima, pode incorrer em ofensas

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morais e patrimoniais ao autor.

Blockchain e NFT, como tecnologias emergentes e em construção, apresentam


constante atualização e inovação, além de muitas incertezas, as quais podem trazer
dificuldades para o legislador e o operador do direito mediar em um campo de
permanente transformação. Nessa toada, é importante mencionar a existência de projetos
que se propõem a resolver o problema de armazenamento centralizado de NFT’s, os quais
podem clarear eventuais acordos e desacordos futuros em face da legislação autoral.

Arweave talvez seja o protocolo mais promissor que se propõe a resolver a


problemática. O protocolo está sendo desenvolvido para armazenar dados em
blockweave162, de forma permanente e descentralizada. Desta forma, os usuários de
dados poderão armazenar informações, tal qual a imagem de um NFT, sem a necessidade
de delegar o armazenamento a uma entidade central.163

O armazenamento de informações de forma permanente e descentralizada, além de


devolver o controle de dados ao usuário, pode dificultar sobremaneira a remoção e a
alteração de imagens por terceiros, como no caso da plataforma Opensea.164Assim, os
direitos autorais podem ser mais bem resguardados, tal como o controle pleno sobre a
propriedade de um NFT.

162 Blockweave é uma estrutura similar a um blockchain. Nos termos originais da Fundação Arweave: “The
blockweave is a blockchain-like structure designed to enable scalable on-chain storage in a cost efficient
manner for the first time. As the amount of data stored in the system increases, the amount of hashing
needed for consensus decreases, thus reducing the cost to store data.
163 WILLIAMS, Sam; JONES, Will. Archain: An Open, Irrevocable, Unforgeable and Uncensorable Archive for
the Internet. Publicado em: 2 aug. 2017.
164 WILLIAMS, Sam; JONES, Will. Archain: An Open, Irrevocable, Unforgeable and Uncensorable Archive for
the Internet. Publicado em: 2 aug. 2017.

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3. MEMES, OBRAS ARTÍSTICAS E LITERÁRIAS x NFT – REPERCUSSÕES ACERCA DOS


DIREITOS AUTORAIS

Não apenas as artes se beneficiaram com a tecnologia. Agora tornou-se viável


registrar memes com certificado de autenticidade e escassez. Seja em redes sociais ou
aplicativos de conversa, os memes se multiplicam, principalmente, para expressar opiniões
humoradas frente a uma notícia. Alguns memes tomam proporções que extrapolam
fronteiras, mas até então nenhum registro de autenticidade era possível.
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O meme “Disaster Girl”, que retrata uma menina em frente a uma casa em chamas,
foi vendida como NFT por US$ 480 mil dólares, indicando uma tendência de um novo
negócio.165Até mesmo esculturas imaginárias já são registradas em blockchain. A obra “Io
sono”, de Salvatore Garau, existente apenas no plano das ideias, foi arrematada na Galeria
Art-Rite de Milão pelo valor de 15 mil euros. O Autor da obra estipula um espaço de 150
cm x 150 cm para uma escultura que não pode ser captada pelos sentidos.166

A redação do diploma autoral se mostra sensível à passagem do tempo e a


permanente evolução tecnológica, ao expressar que a obra intelectual e as criações do
espírito podem ser expressas em qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte,
conhecido ou que se invente no futuro.167Nesse sentido, tokens se aliam às regras pátrias
como um novo suporte.

Por outro lado, a expressão através de memes pode gerar controvérsias. A recente
facilidade de registrar um meme como único, abre espaço para seu reconhecimento
autoral. O rol exemplicativo, previsto na lei autoral, revela-se aberto à recepção dos memes
como obras a serem protegidas. Entretanto, o uso de obras, imagens ou frases de terceiros
para ilustrar um meme, quando usados sem a autorização ou em desconformidade com a
lei, pode gerar prejuízos de ordem jurídica.

Nesse contexto, vale a pena destacar que, em recente decisão, o STJ decidiu que
paródias podem ser monetizadas. A decisão se baseou no caso de um influenciador digital

165 FREITAS, Tainá. NFT: como artistas estão vendendo obras através de criptomoedas? Publicado em: 21
mai. 2021. Dísponivel em: < https://app.startse.com/artigos/nft-artistas-vendas-criptomoedas>. Acesso
em: 17 nov. 2021
166 WACHOWICS, Marcos; CIDRI, Oscar. Direitos autorais e a Tecnologia NFT: Esculturas imaginárias e
Destruição Criativa. Publicado em 11 ago. 2021. Disponível em: < https://www.gedai.com.br/direitos-
autorais-e-a-tecnologia-nft-esculturas-imaginarias-e-destruicao-criativa/>. Acesso em: 18 nov. 2021
167 “Art. 7º São obras intelectuais protegidas ascriações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas
emqualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:...” (Lei nº
9610/98)

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que teve dois vídeos removidos por violação de Direitos Autorais. O influenciador tinha um
canal dedicado a criação de paródias de artistas famosos.168

Seriam os memes análogos às paródias? Memes e paródias compartilham o mesmo


tom humorístico ou satírico de algo, podendo ser um vídeo ou uma imagem. A paródia
pode ser realizada, por exemplo, pela alteração de textos originais ou caricaturas com
finalidade jocosa. Já o meme é uma forma de transmitir conteúdos humorados, incluindo
as paródias, instantaneamente por redes sociais, assemelhando-se mais a um veículo de
transmissão, podendo estar um contido no outro.

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Assim, não parece haver impedimento para aplicar a decisão analogamente aos
casos envolvendo memes, desde que o caso verse sobre a suposta ofensa aos Direitos
Autorais. No entanto, os memes parecem indicar um potencial maior de ferir os direitos de
personalidade, dada sua maior difusão e alcance na internet, do que paródias sobre artistas
famosos.

Já o uso de esculturas imaginárias pode gerar uma maior discussão no que se refere
ao seu agasalhamento pelo direito autoral. Seria a escultura imaginária, dentro de um
espaço demarcado em uma determinada paisagem, uma criação do espírito a merecer
proteção? O regulamento autoral é expresso em afirmar que as ideias não são objetos de
proteção.169Embora a escultura imaginária se apresente apenas no plano das ideias de cada
indivíduo, o conjunto da obra intelectual não é todo imaginativo ao se criar a possibilidade
de imaginar algo dentro de um cenário expresso.

Se as criações do espírito são absorvidas pelos sentidos, os quais possibilitam a


representação de realidade através da imaginação, essa não seria uma forma de apreciar
uma obra intelectual - exclusivamente através da imaginação? Essas são perguntas que
merecem maiores reflexões, a despeito de não pertencer ao presente objeto de estudo. As
esculturas imaginárias e os memes existem por si mesmos, independentemente do suporte
– blockchains e NFT’s. No entanto, essas tecnologias permitem uma maior difusão dessas
“obras” ao facilitar o registro único e a criação de escassez.

O registro de obras é livre, não havendo sua obrigatoriedade.170 Entretanto, quando


feita a opção de registro em órgão público encarregado pela atividade, há cobranças de

168 ALVES, Alexandre. SILVA, Priscilla. Impactos do caso do canal “não famoso” na política de governança do
Youtube no Brasil. 10.26668/IndexLawJournals/2526-0049/2018.v4i2.4702. Revista de Direito, Governança e
Novas Tecnologias.
169 “Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: I- as idéias...” (Lei nº
9610/98)
170 Art. 18. A proteção aos direitos de que trata esta Lei independe de registro. (Lei nº 9610/98)

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encargo em razão do custo de intermediação.171Registros distribuídos se conciliam muito


bem no que diz respeito ao registro de obras. Ao se eliminar intermediários os custos de
registro e publicação praticamente se tornam nulos, além de prover maior alcance das
obras em razão da transnacionalidade da tecnologia.

A criação de obras de edição limitada em NFT’s é comparável ao procedimento de


pintura de quadros onde o artista vende cópias numeradas e assinadas.172A cunhagem
do NFT e o registro de suas cópias em edição limitada a partir do blockchain, garante às
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cópias a mesma proteção de que goza a obra original, tal como os títulos, segundo os
ditames da lei de direitos autorais.173 174

As transferências dos direitos do autor, nos termos da legislação autoral, pode


divergir em relação ao que a tecnologia pode oferecer. A transmissão total e definitiva de
direitos do autor, por exemplo, somente se admite quando estipulada mediante contrato
escrito.175 Contrato inteligente deve ser entendido como contrato análogo ao escrito?
Parece que sim. Ao estabelecer acordo capaz de criar, modificar ou extinguir direitos, há
formação de um contrato expresso, cujas obrigações e deveres são ajustadas por códigos
e assinadas criptograficamente.

A validade contratual da cessão de direitos, apenas para o país em que se


estabeleceu o contrato,176parece não haver mais espaço no âmbito da web 3.0. A nova
internet construída em blockchain extrapola as fronteiras nacionais, tal como a internet
precursora, com a diferença da desintermediação e desnacionalização propiciada pelas
plataformas de contratos inteligentes. Dessa forma, lei que condiciona a validade
contratual ao país em que é firmada poderá perder sua eficácia paulatinamente.

Controvérsias acerca dos direitos patrimoniais e morais do autor podem ser


abrandadas. Contratos inteligentes permitem e facilitam a autorização prévia e expressa

171Art. 20. Para os serviços de registro previstos nesta Lei será cobrada retribuição, cujo valor e processo de
recolhimento serão estabelecidos por ato do titular do órgão da administração pública federal a que estiver
vinculado o registro das obras intelectuais. (Lei nº 9610/98)
172 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021
173 Art. 9. À cópia de obra de arte plástica feita pelo próprio autor é assegurada a mesma proteção de que
goza original. (Lei nº 9610/98)
174 Art. 10. A proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e inconfundível com o de obra do
mesmogênero, divulgada anteriormente por outro autor. (Lei nº 9610/98)
175 “Art. 49. II - somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação
contratual escrita;” (Lei nº 9610/98)
176 “Art.49. V - a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;” (Lei
nº 9610/98)

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do autor, para a utilização de sua obra, de forma customizada. Direitos de conservação da


obra, autoria e acesso a exemplar único e raro são praticamente garantidos pelo uso dos
NFT’s. Além disso, tokens e contratos inteligentes permitem maior controle sobre os
direitos de reprodução, duração da obra e prazos de proteção sobre direitos patrimoniais.

A transmissão dos direitos de autor aos sucessores se torna favorecida pelo uso de
chaves privadas. A transferência a terceiros tende a se tornar mais simples pelo uso dos
NFT’s e contratos inteligentes, prescindindo-se acerca da necessidade de documentos e
contratos escritos e onerosos, o que pode tornar leis obsoletas e ineficazes frente às novas

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tecnologias e costumes sociais.

A tecnologia apresenta muito mais pontos de conciliação frente à defesa e a


proteção dos direitos autorais do que o contrário. O sistema legal de direitos autorais foi
construído com fundamento na escassez,177 principal característica atribuída ao NFT. No
entanto, ajustes normativos se tornam importantes perante às grandes transformações
tecnológicas e sociais à vista.

3.1. Novas perspectivas e o Creative Commons

Creative Commons é uma entidade não governamental e sem fins lucrativos, cuja
finalidade é permitir a cópia e o compartilhamento de obras criativas com restrições
customizadas, contribuindo, assim, para a expansão de obras disponíveis.178A fundação foi
criada em 2001, pelo professor Lawrence Lessig, em resposta a rigidez de todos os direitos
reservados. Posteriormente, em 2005, o instituto abrangeu trabalhos científicos e, desde
então, as licenças Creative Commons foram expandidas e compatibilizadas com as leis de
direitos autorais em diversos países,179incluindo o Brasil, que teve a versão 3.0 lançada no
Campus Party, em 2009.180

À primeira vista, pode parecer que as licenças CC constituem uma entidade isolada
e sem qualquer interação com o sistema de proteção aos direitos autorais, ou até mesmo
ser considerada um sistema alternativo, ou substitutivo à legislação vigente. De modo
contrário, as licenças CC foram criadas com base na legislação autoral com a finalidade de
permitir aos autores uma maior gestão sobre os direitos de uso de suas obras. As licenças

177 Branco, Sérgio O que é Creative Commons? novos modelos de direito autoral em um mundo
mais criativo / Sérgio Branco, Walter Britto. - Rio de Janeiro : Editora FGV, 2013. 176 p. (Coleção FGV de bolso.
Direito & Sociedade)
178 Disponível em: <https://br.creativecommons.net/>. Acesso em: 11. Fev. 2022
179 Dowling, John D.H. “Creative Commons.” Encyclopaedia of Social Movement Media
(2011): 1--‐3. SAGE Knowledge, 01 Dec. 2010. Web.
180 Id. Branco, Sérgio.

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CC, ao permitir que os detentores de direitos autorais possam flexibilizar ou restringir


determinados direitos de uso, funcionam como uma extensão do sistema de proteção aos
direitos autorais.

As licenças CC somente devem ser usadas apenas enquanto perdurar as proteções


autorais, uma vez que quando a obra entra em domínio público não há mais proteção
autoral que justifique a aplicação das licenças. Portanto, licenças CC não existem sem o
sistema de proteção aos direitos autorais, o que reforça a relação dependência e
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complementariedade delas em face dos direitos autorais.

A tecnologia de NFT pode se tornar um elemento adicional na relação necessária


entre as licenças CC e os direitos autorais, à medida que oferece originalidade a qualquer
item físico ou digital, inclusive obras autorais que se utilizem de licenças CC, através de
registro em blockchain. Nesse sentido, quais seriam as implicações jurídicas acerca da
interseção entre NFT’s, direitos autorais e licenciamento CC? Seriam as declarações de
vontade personalizadas, a respeito da produção de conteúdos e obras, excludentes em
relação aos NFT’s? Para Lawrence lessig não há nenhum conflito entre as leis de direitos
autorais e as licenças customizadas, mas apenas quanto as restrições impostas pelo
copyright181, as quais restringem a liberdade.182 No entanto, o surgimento da nova
tecnologia já causa muitas dúvidas e perguntas, ainda sem respostas, quanto a sua
interseção com as licenças customizadas e os Direitos Autorais.

A chave para essas respostas pode estar nos contratos inteligentes, cujas regras
podem ser definidas da mesma forma que cláusulas em um contrato particular. A diferença
reside no fato de que as “cláusulas” são aplicadas por códigos de maneira automática e as
interações entre as partes são irreversíveis.183Quanto a irreversibilidade, pouco se
diferencia, em regra, do contrato jurídico uma vez celebrado, por força do princípio da
força obrigatória dos contratos.

Para o direito, o contrato realiza leis entre as partes – “pacta sunt servanda”, ou seja,
visto que não exista violação de lei e não haja defeito no negócio jurídico, as partes se

181 “Espécie de propriedade intelectual que concede ao autor de uma obra direitos exclusivos por um
determinado tempo.” Miller, Frederic P., Agnes F. Vandome, and John McBrewster. Creative
Commons: Non--‐profit Organization, Creativity, Copyright, License, Creative Commons Licenses,
Waiver, Creative Commons International, Copyleft. Beau Bassin, Mauritius: Alphascript Pub.,
2009. Print.
182 No termos originais: “Therefore, Creative Commons and Lessig have no problem with copyright itself,
but the ways that it limits freedom through its restrictions and the constantly extended time periods placed
on the copyright.” Cyberlawyer 2.0.” The Economist 8 Dec. 2007: 31(US). Academic OneFile.
Web.7 Oct. 2013.
183 Disponível em: https://ethereum.org/pt-br/developers/docs/smart-contracts/. Acesso em: 11 fev.
2022.

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obrigam, salvo hipóteses de caso fortuito ou força maior. As mitigações à obrigação do


contrato talvez consista na mais importante diferença entre o contrato jurídico e o contrato
inteligente. A rigidez irreversível dos contratos inteligentes pode causar certa perplexidade
ao jurista e ao operador do direito tendo em vista as flexibilizações às obrigações
contratuais, bem como conflitar com o arcabouço legislativo vigente.

Ainda que não seja objeto do presente estudo, vale ressaltar haver protocolos em
desenvolvimento visando arbitrar disputas em qualquer contrato descentralizadamente a
partir de contratos inteligentes.184Tais iniciativas têm o potencial de aproximar a realidade

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contratual jurídica da realidade da web 3.0, diminuindo a burocracia e os eventuais atritos
com o sistema legal.

Apesar da irretratabilidade dos contratos inteligentes, as licenças Creative Commons


se aliam bem à tecnologia, dado que os sete padrões de licença usados regularmente
podem ser definido em código de contratos inteligentes ou por metadados relacionados
aos NFT’s. Torna-se mais fácil, inclusive, padronizar a obra de acordo com determinados
grupos de usuários ou indivíduos, dada a facilidade de controle e rastreio.

Desta forma, nada impede que criadores e público se utilizem das licenças em suas
relações no âmbito das blockchains. As licenças nasceram de uma maior necessidade de
flexibilização dos direitos do autor diante das limitações e restrições do copyright.

Ronaldo Lemos185 sobre a internet e as transformações na propriedade intelectual:

A grande promessa da Internet era exatamente esta: romper com as


barreiras entre produtor e consumidor da cultura, entre público e
artista. Criar um território neutro, aberto, que tornasse o indivíduo o
centro da informação. Um território em que não necessariamente seria
preciso reproduzir o modelo de concentração da mídia que
predominou em todo o século XX. Em outras palavras, tornar a cultura
um produto da interação entre todos, permitindo a qualquer um
participar criativamente na sua constituição. Substituir o broadcast
puro pela comunicação de um para todos.

Assim, a promessa de uma internet aberta, verdadeiramente descentralizada, sem


barreiras entre produtor e consumidor, surge outra vez. Mais do que se conciliar com as

184 LESAEGE, Clément; AST, Federico; GEORGE, William. Kleros. Short Paper v1.0.7. 2019. Disponível em: <
whitepaper.pdf (kleros.io)>. Acesso em: 20 mai. 2021.
185 LEMOS, Ronaldo. Creative Commons, Mídia e as Transformações Recentes do Direito da Propriedade
Intelectual. Revista Direito GV. V. 1 N. 1 | P. 181 - 187 | MAIO 2005 : 181

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licenças “creative commons”, a tecnologia oferece muitas outras oportunidades a mais


sobre compartilhamentos, distribuição, licenciamento e recombinação de conteúdos.

4. NFT, BLOCKCHAIN E A INDÚSTRIA DA MÍDIA

Direito autoral é tema central no que se refere aos NFT’s. O mundo da música, em 2017,
gerou 43 bilhões de dólares em receita, mas apenas 12% desse valor se reverteu aos
artistas. Atualmente, uma série de desafios são enfrentados pelos artistas para fazer valer
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seus direitos autorais. Pouca transparência em relação às fontes de pagamento dos artistas,
camadas de intermediários que geram atrasos no pagamento e burocracias para
licenciamento são alguns desses problemas.186

Atualmente, ainda existem diversos intermediários cuja finalidade é administrar os


direitos autorais, tais como: gravadoras, licenciadores, editores, associações de gestão
coletiva, entre outros. Essas instituições gozam de importante prestígio, tendo capítulos
exclusivos para regular suas atividades na lei de direitos autorais.

As gravadoras são instituições que visam prover estrutura profissional de gravação,


produção e distribuição de suporte – algo muito difícil para o artista patrocinar por sua
própria conta. Já os licenciadores musicais são responsáveis por garantir a coleta de taxas
em caso de utilização de músicas. A figura do editor, de outra forma, obriga-se a reproduzir
e a divulgar obra literária, artística ou científica, tendo como contrapartida o direito de
explorá-la e publicá-la pelo prazo e condições ajustadas com o autor. Dessa forma, os
artistas podem se manter em posição vulnerável frente aos interesses dos intermediários.

Essas instituições desempenham funções que variaram de importância ao longo dos


últimos anos, na medida da evolução das indústrias de mídia. As gravadoras, outrora
fundamentais - na época que antecedeu a adoção da internet-, tiveram suas atividades
diminuídas pelo avanço tecnológico dos suportes. Os licenciadores musicais, ao contrário,
aumentaram sua atividade nos últimos anos, de modo a acompanharem a evolução
tecnológica. Os editores musicais, igualmente, se adaptaram, prestando serviços de
licenciamento musical via contrato único para outlets de música.187

O poder econômico dessas entidades centralizadas pode gerar distorções no


mercado musical. A prerrogativa de escolher quais artistas devem emergir ao estrelato e
quais devem ser manter no anonimato extrapola a finalidade precípua de gravadoras, o

186 RUMBURG, Roneil; SETHI, Sid; NAGARASH, Hareesh. Audius: A descentralized Protocol for Audio Content.
Publicado em: 8 ago. 2020
187 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021

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que pode ser determinante, inclusive, para os rumos culturais da sociedade, refletindo-se
em comportamentos e costumes.

Além disso, o modelo de negócio das empresas que administram direitos autorais
é construído com base no lucro, cuja mercadoria consiste na arte e criatividade de autores
e interpretes. Essa situação contribui para redução do potencial de ganhos dos autores,
sendo eles remunerados através da participação percentual na forma de royalties, em que
a origem está em contratos de direitos de reprodução e distribuição.

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A digitalização da economia musical transformou drasticamente as relações entre
os tradicionais intermediários e os autores. Plataformas de streaming como o Pandora e o
Spotify, assumiram a liderança do formato de distribuição musical, oferecendo opções de
bibliotecas digitatis através de assinaturas mensais. Os valores são distribuidos numa
relação de 70% para os titulares e 30% para as plataformas, sendo que a fatia dos titulares
são repartidas entre os editores e artistas.188

A internet evoluiu durante os últimos anos e, junto a ela, toda a indústria de mídia.
Antigos intermediários precisaram se reinventar e até mesmo se associar às novas
plataformas de streaming. O que pouco evoluiu foram as relações de dependência entre
os verdadeiros titulares de direitos autorais e as instituições responsáveis por administrar
esses direitos. Atualmente, os intermediários vestem outra roupagem, utilizando-se não
apenas de conteúdo musical, mas também de metadados gerados pelo fluxo de
informações de consumo de conteúdo e hábitos dos usuários. Os produtores de conteúdo,
ao contrário, permanecem na mesma posição de risco assumido e vulnerabilidade frente
às bightechs de entretenimento.

A expectativa de redescentralizar a internet pode trazer novas esperanças para


reequilibrar essa balança em benefício de autores e, inclusive, dos usuários. A possibilidade
de receber royaltes de forma distribuída e direta a partir de contratos inteligentes têm o
potencial de ultrajar o status quo, redistribuindo o poder da rede exclusivamente entre a
comunidade, sejam artistas, usuários ou investidores. As baixas taxas de transação podem
maximizar os ganhos e os usuários podem receber participações e premiações dos seus
artistas favoritos pela medida de interação.189

Toda essa transformação está sendo amplificada pelo uso dos NFT’s, tecnologia
integrada ao blockchain e aos contratos inteligentes. Os NFT’s estão remodelando diversas

188 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021
189 RUMBURG, Roneil; SETHI, Sid; NAGARASH, Hareesh. Audius: A descentralized Protocol for Audio Content.
Publicado em: 8 ago. 2020.

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indústrias, sendo a indústria musical uma das principais. De agora em diante é possível a
retomada do controle criativo pelos artistas em um modelo de negócios que prescinde de
intermediários.

Áudios de músicas já podem ser representados por certificados de propriedade


exclusiva, garantidos por NFT’s. Esse certificado de propriedade pode se verificado a
qualquer instante dentro de uma rede de blockchain, além de estar disponível para ser
transacionada a qualquer tempo, durante as vinte e quatros horas do dia, sem interrupção.
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Assim, os direitos autorais podem ser reivindicados sem a necessidade de dividir lucros
com gravadoras ou outros intermediários.

Dessa forma, artistas podem se conectar ao público através da venda de músicas,


álbuns completos, artes digitais, fotos, ingressos para shows e vídeo clipes, compondo tudo
isso diferentes formas de NFT’s de música e entretenimento. Esse contexto pode oferecer
oportunidades para artistas independentes e sem contratos com gravadoras auferir
receitas através de músicas e conteúdos criativos, além da facilitar a administração dos seus
direitos autorais de forma independente.

4.1. Finanças Descentralizadas e Web 3.0 – A importância das tecnologias


integradas ao NFT para a indústria da mídia.

Diante de tantas notícias sobre o advento da tecnologia do token não fungível, pode
parecer em um primeiro momento que se trata de uma entidade isolada, uma tecnologia
que existe por si mesma. Entretanto, não é possível refletir sobre o NFT sem levar em
consideração sua tecnologia subjacente de blockchain e contratos inteligentes. Da mesma
forma, é de suma importância considerar sua integração com as plataformas de DEFI e
Web 3.0, tendo em vista serem um dos principais meios em que é possível transacionar
NFT’s.

Tendo isso vista, torna-se importante frisar que uma das principais características de
um token é a possibilidade dos indivíduos realizarem a auto-custódia, ou seja, não existe
a necessidade de guarda por terceiros como um título ou uma ação. Os detentores de
token podem armazená-los em uma carteira não custodial190, mantendo as chaves
privadas sob sua posse, tornando a portabilidade um importante atributo.

Adicionalmente, toda a comunidade pode usufruir dos benefícios proporcionados


pelas finanças descentralizadas. A manutenção desses fundos em carteira pode ser
utilizada para prover segurança e apoiar as transações da rede de blockchain por processo

190 Uma carteira de criptomoedas sem custódia é uma carteira em que apenas o titular possui e controla as
chaves privadas. Disponível em: https://academy.binance.com/pt/articles/custodial-vs-non-custodial-
nfts-what-s-the-difference. Acesso em: 22 fev. 2022

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chamado staking191. Esse processo permite que os possuidores dos tokens possam ser
remunerados por apostá-los na rede.

Prover liquidez em exchanges descentralizadas é outra alternativa interessante para


artistas e usuários gerarem renda passiva através de seus tokens. Os participantes do
mercado de finanças descentralizadas quando querem transacionar suas criptomoedas,
trocando um token pelo outro, por exemplo, não mais o fazem pela tradicional lista de
ordens de compra e venda. Agora isso é possível através de uma “liquid pool”.

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A liquid pool ou piscina de liquidez é composta pela formação de uma par de
criptomoedas cuja relação é de 50% para cada. Quando um participante do mercado Defi
– Decentralized Finance - quer trocar um token pelo outro, como, por exemplo, o token
AUDIO pelo token USDC192, ele se utiliza de uma piscina de liquidez formada pelo par
AUDIO/USDC. Ao efetuar essa troca o usuário do mercado Defi paga taxas na moeda nativa
do protocolo. De outra forma, os investidores que proveem liquidez fornecendo o par de
criptomoedas, AUDIO/USDC, por exemplo, recebem as taxas geradas pelos indivíduos que
efetuam as trocas de moedas.

Outro interessante instrumento de Defi utilizado para rentabilizar em cripto é o Yield


Farm ou “Mineração de liquidez. Essa estratégia permite que usuários de platafomas DEFI
depositem seus fundos em contratos inteligentes para receberem recompensas em troca
– um tipo de empréstimo. As recompensas recebidas então são movimentadas para outra
plataforma Defi a fim de serem mais uma vez rentabilizadas através de outra estratégia
financeira, seja de mineração de liquidez, empréstimo ou staking.

Quanto a medida de descentralização, tokenomics ou economia dos tokens é um


importante fator a ser levado em consideração por uma comunidade construída em
blockchain. Trata-se de um ecossistema econômico sustentado por tokens. A “tokenomia”
se relaciona com as funções, recursos, distribuição, utilidade e valor de um token digital. A
partir de então, a comunidade pode participar do desenvolvimento e da governança do
projeto, por exemplo, criando valor para a comunidade.

191 Como o staking funciona? O staking envolve validadores que bloqueiam suas moedas na rede para ter
chance de serem selecionados, aleatoriamente, pelo protocolo para criação de um bloco. Geralmente, os
usuários que fazem staking de maiores quantias, têm mais chance de serem escolhidos como validadores de
bloco. Disponível em: https://academy.binance.com/pt/articles/what-is-staking. Acesso em: 22 fev. 2022.
192 USDC é uma criptomoeda estável que tem por finalidade representar o dólar americano. A criptomoeda
é lastreada em ativos denominados em dólar. Disponível em:
https://www.gemini.com/cryptopedia/what-is-usdc-stablecoin-circle-crypto. Acesso em: 22 fev. 2022.

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A distribuição dos tokens pode ser determinante para os rumos da comunidade.


Uma das medidas de descentralização de um protocolo se refere à concentração de tokens
em posse dos participantes. Essa distribuição pode ser um importante parâmetro para
identificar se determinado protocolo de blockchain é mais próximo de uma DAO –
Decentralized Automation Organization ou de uma empresa transvestida de plataforma
descentralizada. Abaixo observa-se o aumento gradual do suprimento circulante do token
AUDIO temporalmente até julho de 2026 (FIGURA 2).
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FIGURA 2 – SUPRIMENTO CIRCULANTE DO TOKEN AUDIO

Fonte: Audius 193

O gráfico de suprimento do token AUDIO, por exemplo, apresenta uma distribuição


equilibrada entre os participantes da comunidade, investidores, equipe de
desenvolvedores e parceiros. Se parcela considerável dos tokens se concentrar em posse
de alguns poucos, há o risco de perda de controle sobre as decisões e a governança da
plataforma pelos principais interessados, que são os artistas, intérpretes e os usuários. Os
benefícios permitidos pela tecnologia poderiam se esvaziar em benefício daqueles que
sempre controlaram a indústria da música.

Outra forma de concentrar poder em plataformas baseadas em blockchain seria


através da concentração de validadores, elementos necessários em plataformas cujo
algoritmo de consenso seja o proof-of-stake194. Os validadores de nós são responsáveis
por validar transações e decisões da comunidade. A reunião desses nós em posse de

193 Disponível em: https://audius.org/token. Acesso em: 23 fev. 2022


194 Proof-of-stake é um algoritmo de consenso onde a seleção dos validadores de blocos tem por base a
quantidade de moedas que eles travam na rede. Disponível em:
https://academy.binance.com/en/glossary/proof-of-stake. Acesso em: 31 mar. 2022.

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poucos tem o potencial de centralizar os rumos da comunidade, vulnerabilizando os


interesses dos usuários.195

Essa breve consideração sobre DEFI, economia dos tokens e contratos inteligentes
se torna importante por serem as tecnologias que compõem o sistema tecnológico de
sustentação aos NFT’s. Sem essa tecnologia subjacente o NFT não existiria da forma como
existe hoje. O NFT nada mais é do que um token emitido a partir de uma blockchain e que
só pode ser transacionado mediante contratos inteligentes. Todo esse sistema tecnológico
representa o que hoje é conhecido como web 3.0.

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A web 3.0 apresenta uma interessante oportunidade para democratizar o acesso do
público e de artistas de qualquer tamanho. Definir quais artistas serão bem-sucedidos pode
não depender mais dos tradicionais intermediários. Compensações recíprocas entre
artistas e consumidores de conteúdos tende a atrair atenção do mercado artístico,
permitindo a adoção em massa da tecnologia. As finanças descentralizadas pode ser mais
uma oportunidade para maximizar os benefícios.

A legislação autoral se mostra aberta à passagem do tempo e a permanente


evolução tecnológica, o poder da tecnologia de conectar diretamente o público aos
autores pode ter grande influência sobre a forma de comunicação e a utilização das obras.
Além disso, essas novas tecnologias podem influenciar a estrutura social e os valores
culturais, moldando comportamentos e costumes, o que consequentemente pode
influenciar as normas, derrogando-as.

5. METAVERSO E DIREITOS AUTORAIS – A PRÓXIMA FRONTEIRA PARA OS NFT’S E


A INDÚSTRIA DE MÍDIA

A propriedade no mundo virtual somente se tornou possível a partir do advento do


NFT. Agora qualquer item no mundo virtual pode ser individualizado e representado por
tokens não fungíveis. Dessa forma, a propriedade ganhou uma conotação mais própria no
mundo virtual e isso pode mudar tudo. Terrenos, imóveis e qualquer outro tipo de item
pode ser adquirido no metaverso e portado pelo seu proprietário. Dessa forma, a
reprodução da vida em um universo virtual paralelo abre espaço para que as relações entre
público e artista também aconteçam nesse ambiente.

Atualmente, a música ao vivo, baseada em shows e turnês, consiste na mais


importante parcela de arrecadação artística. Nos últimos anos cresceu a quantidade de
shows e superproduções. A facilidade de administração e arrecadação dos recursos obtidos

195 BENEDETTI, Hugo. Public Blockchains and Applications. In: The Emerald Handbook of Blockchain for
Business. Emerald Publishing Limited, 2021.

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através da venda de ingressos é um dos motivos pelo qual houve um grande incremento
na lucratividade e renda de artistas.196

Por outro lado, a integração de tecnologias como blockchain, NFT’s e realidade


virtual aumentada tornaram o desenvolvimento do metaverso possível. O termo
metaverso, até recentemente desconhecido pelo público, ganhou notoriedade a partir da
mudança de nome da empresa Facebook para Meta. O metaverso tem sido entendido
como a próxima fronteira da internet, uma realidade virtual imersiva onde será possível
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interagir, aprender, colaborar e jogar. Para explorar esses ambientes e melhorar a


percepção dos sentidos haverá integração de tecnologias de sensores, óculos inteligentes
e realidade virtual aumentada.197

Em 2019, acontecia o primeiro show em um ambiente virtual imersivo, na plataforma


de jogos, Fortnite, com apresentação do Dj Marshmelo assistida por 10 milhões de pessoas.
No ano seguinte, o artista Travis Scott reuniu 10 milhões de jogadores na mesma
plataforma. Recentemente, a empresa Meta patrocinou shows de grandes artistas no
ambiente de artes e entretenimento, Horizon Venues, um dos espaços que compõem o
metaverso em construção da empresa.198

Diversos outros projetos baseados em blockchain podem ser enquadrados na


categoria de metaverso, de jogos “play-to-earn” às plataformas imersivas de realidade
virtual. Os jogos apoiados em blockchain são, no tempo atual, o aspecto mais próximo da
concepção de metaverso. Essas plataformas de jogos permitem que as pessoas joguem e
sejam remuneradas pelo token nativo da plataforma, consoante a participação delas. A
propriedade de itens é garantida pela posse de NFT’s, os quais podem ser usados para
evoluir na economia do jogo e ganhar mais tokens. A infraestrutura de “bridges”199 e
contratos inteligentes tornam possível a interoperabilidade e a propriedade de bens, além
de taxas mais baixas.

196 PESSERL, Alexandre. NFT 2.0: Blockchains, Mercado Fonográfico e Distribuição Direta de Direitos Autorais.
RRDDIS – Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, Curitiba, v. 1 n. 1, p. 255-294, 2021
197 Disponível: https://about.facebook.com/br/meta/. Acesso em: 25 fev. 2022
198 CARDOZO, Missila Loures. Impactos da Pandemia na Indústria Gamer. Intercom-Revista Brasileira de
Ciências da Comunicação, v. 31, n. 1, p. 1-15, 2020.
199 As Crypto Bridges ou Bridges são responsáveis por podermos interligar as diferentes blockchains
existentes e podermos interoperar entre elas, diversificando e aumentando a usabilidade e o alcance das
criptomoedas e dos ecossistemas que são construídos em torno delas. Disponível em:
https://academy.bit2me.com/pt/o-que-%C3%A9-uma-ponte-de-criptografia/. Acesso em: 30 mar.
2022

234
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Os metaversos em desenvolvimento compartilham da mesma infraestrutura


tecnológica dos jogos “play-to-earn”.200Uma importante diferença reside na maior
imersão que o metaverso pode oferecer aos usuários através de tecnologias que visam
reproduzir as sensações humanas dentro da realidade paralela, ou seja, uma maior
integração entre o usuário e a internet permitida por sensores e realidade virtual
aumentada.

Muitos projetos de metaverso apareceram na carona do avanço do mercado de


criptografia. Alguns deles são notoriamente centralizados, como o Meta de Mark

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


Zuckerberg, empresa de redes sociais que imergirá na nova realidade virtual imersiva.
Alguns outros apresentam a economia de tokens mais concentrada em posse de poucos,
aproximando-se mais da realidade de uma empresa transvestida de plataforma
descentralizada. Por fim, há aquelas administradas mediante organizações autônomas e
descentralizadas.

Resta saber qual ou quais metaversos artistas de todo mundo devem aderir.
Questões relativas às taxas, interoperabilidade e economias dos tokens podem ser
determinantes para a adesão do público e artistas, e até mesmo questões ligadas à
proteção da privacidade. A resposta à pergunta sobre quais metaversos sairão vencedores
tem o potencial de definir se as possibilidades oferecidas pela tecnologia serão desfrutadas
em sua plenitude ou serão deixadas de lado em benefício daqueles que controlam a
indústria da mídia e da tecnologia, perpetuando antigos desequilíbrios em desfavor de
autores e intérpretes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tokenização é um importante instrumento para garantir a autenticidade e o


rastreio de fonogramas, obras artísticas e literárias. De agora em diante perdas autorais
atribuídas à pirataria poderão ser reduzidas por efeito do blockchain e dos contratos
inteligentes. No entanto, o armazenamento centralizado dos arquivos vinculados aos NFT’s
pode trazer novos obstáculos e desafios para a proteção dos direitos autorais.

Nesse contexto, o status quo da indústria de mídia tende a ser severamente afetado.
A descentralização e os contratos inteligentes já permitem novas formas de produzir
conteúdo e artes, seja por memes ou até mesmo esculturas imaginárias, que agora podem
ser registradas por tokens não fungíveis. A conexão direta entre autor e público por
contratos inteligentes, mais do que se aliarem às licenças CC, criarão outras possibilidades
de customização de licenças de uso em oposição ao copyright.

200 ORDANO, Estebam et al. Decentraland: A Blockchain-based Virtual World.

235
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A tradicional indústria da mídia baseada em grandes intermediários, que controlam


o mercado e administram os direitos autorais, deve ter seu espaço reduzido. No entanto,
há o risco de manutenção do controle por grandes empresas a partir da concentração de
tokens e validadores de plataformas voltadas para a indústria musical e artística.

A imersão no Metaverso, como espaço de entretenimento para apresentação de


shows, consolidou-se através do surgimento dos NFT’s. O metaverso pode ser uma
excelente oportunidade para o empoderamento de autores e intérpretes na medida que
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

se torna possível se relacionarem diretamente com os fãs, desonerando os custos de


intermediação. Por outro lado, empresas como a Meta, podem perpetuar essa relação de
dependência para com as “autoridades centrais”, tornando custoso e inviável o acesso para
artistas de menor expressão.

Dessa forma, a web 3.0 proporciona possibilidades que se conciliam fortemente com
os princípios mais elevados de proteção ao autor, bem como os direitos de acesso à cultura
e a informação. Se a finalidade precípua das leis autorais é proteger o vínculo entre o autor
e a sua obra, há de se ter cuidado para as leis não cercearem as oportunidades oferecidas
por essas tecnologias. Afinal, a utilização, publicação ou reprodução de obras são direitos
exclusivos do autor201, cabendo a ele dar lhes o destino que melhor lhe aprouver.

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ESPORTE COMO INSTRUMENTO DE DIREITOS HUMANOS: GUERRAS, APARTHEID,


ORGANIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO EM GRANDES EVENTOS

ANDRÉ GALDEANO SIMÕES: advogado.


Mestrando em Direito Desportivo pela
PUC/SP. Pós-Graduado em Direito
Desportivo – Centro Universitário da
Cidade/RJ e em Gestão Esportiva pelo
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Programa FGV/FIFA/CIES. Membro da


Comissão de Direito Desportivo da OAB/RJ.
Árbitro Desportivo do Centro Brasileiro de
Mediação e Arbitragem (CBMA).

PAULO SÉRGIO FEUZ

(orientador)

“O esporte tem o poder de mudar o


mundo, o poder de inspirar e de unir um
povo de uma forma difícil de conseguir
de outra maneira.” (Nelson Mandela,
1995).

RESUMO: O esporte e a guerra se correlacionam tendo a rivalidade e disputa presente


entre os seus participantes. O esporte é um fenômeno integrativo que agrega distintas
realidades exercendo importante papel social e político, uma vez que engloba diversas
esferas, sejam elas de caráter socioeconômicas, étnicas e/ou raciais. A prática esportiva
desenvolve habilidades físicas, sociais, cognitivas que independem de raça, cor, orientação
sexual, religião e/ou nacionalidade representando relevante papel inclusivo, sendo
fundamental para saúde, educação, turismo e outros setores. O esporte integra o conjunto
de direitos que integram a Declaração Universal dos Direitos Humanos que possui como
fundamentos “da liberdade, da paz e da justiça no mundo”. Significa que o esporte é
cidadania e como tal, deve respeitar os direitos fundamentais. A dignidade da pessoa
humana entre os períodos das duas grandes guerras passou a fazer parte de diversos
tratados e convenções internacionais, entre eles podemos citar a Carta da ONU (1945),
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção Americana de Direitos
Humanos (1978), dentre outros. A doutrina coloca o respeito aos direitos humanos como
princípio e o núcleo entre os demais direitos em um Estado Democrático de Direito que
não pode se afastar da visão humanista em relação a proteção deste e os demais direitos.
Sendo os direitos humanos fundamentais e indisponíveis. Historicamente, o esporte
sempre foi utilizado, seja para o bem ou para o mal, como forma de desenvolvimento de
ideologias e/ou pensamentos das camadas dominantes em seus respectivos períodos. O

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artigo busca refletir sobre esporte como instrumento de direitos humanos ao longo da
história até os tempos atuais.

Palavras-chave: direitos humanos, direito esportivo, guerras, apartheid, direitos


fundamentais

ABSTRACT: Sport and war are correlated because rivalry and dispute are present among
its participants. Sport is an integrative phenomenon that assemble different realities,
playing an important social and political role, since it encompasses several spheres,

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whether of socioeconomic, ethnic, and/or racial nature. The practice of sports develops
physical, social, and cognitive skills regardless of race, color, sexual orientation, religion,
and/or nationality, and plays an important inclusive role, being fundamental for health,
education, tourism, and other sectors. Sport is part of the set of rights that make up the
Universal Declaration of Human Rights, which has as its foundations "freedom, peace, and
justice in the world". This means that sport is citizenship and, as such, must respect
fundamental rights. Between the periods of the two World Wars, the dignity of the human
being became part of several international treaties and conventions, among which we can
mention the UN Charter (1945), the Universal Declaration of Human Rights (1948), the
American Convention on Human Rights (1978), among others. The doctrine places the
respect for human rights as a principle and nucleus among the other rights in a Democratic
State of Law that cannot depart from the humanist vision in relation to the protection of
these and other rights. As human rights are fundamental and unavailable. Historically,
sports have always been used, whether for good or evil, as a way of developing ideologies
and/or thoughts of the ruling classes in their respective periods. The article seeks to reflect
on sport as an instrument of human rights throughout history until current times.

Keywords: human rights, sports law, war, apartheid, fundamental rights

1.Introdução:

O esporte como fenômeno integrativo tem importante papel na sociedade visto que
abrange diversos setores exercendo relevante papel inclusivo, sendo fundamental para
saúde, educação, turismo e outros setores. A prática esportiva desenvolve habilidades
físicas, sociais, cognitivas que independem de raça, cor, orientação sexual, religião e/ou
nacionalidade. Portanto, o esporte possui um caráter de agregar distintas realidades, sejam
elas de caráter socioeconômicas, étnicas e/ou raciais.

A Constituição Federal de 1988, dispõe em seu o artigo. 6° que "são direitos sociais
a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição."
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Para alguns, o esporte é “ópio do povo” em razão de sua utilização política, porém
se trata de um direito do cidadão, conforme acima relatado.202

Não à toa, desde a Grécia Antiga passando pelas duas grandes guerras mundiais até
as ditaduras mais atuais, o esporte sempre teve seu uso político, utilizado pelos
governantes. Por que será que as eleições presidenciais no Brasil, pais do futebol, sempre
ocorrem no mesmo ano da realização da copa do mundo da FIFA?
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Para melhor refletir o assunto acima exposto, trazemos o ensinamento de SIGOLI.


Marcio André que descreve o assunto da seguinte forma:

“As atividades atléticas sempre estiveram relacionadas a instituições


nas sociedades passadas. Na Grécia Antiga elas faziam parte da
religião e da educação grega. Na época do Império Romano, os
Jogos Públicos foram utilizados para alienar o povo, evitando
insurreições populares, na chamada ‘Política do Pão e Circo’ (...) A
regulamentação de jogos populares na Inglaterra fez surgir, em
meados do século XIX, o Esporte Moderno. Este, impregnado de
valores da Revolução Industrial, foi utilizado pela burguesia
industrial para disciplinar os operários. Os Jogos Olímpicos da era
moderna propagaram o esporte por todo o mundo. (...) Com o
desenvolvimento da mídia, o esporte foi englobado pelas
estruturas econômicas do mundo capitalista e tornou-se uma
mercadoria da indústria cultural. ”203

Historicamente, o esporte sempre foi utilizado, seja para o bem ou para o mal, como
forma de desenvolvimento de ideologias e/ou pensamentos das camadas dominantes em
seus respectivos períodos. No limiar do século XXI o governo do estado do Rio de Janeiro,
desenvolveu refeitórios e política de ingressos em eventos esportivos a preços populares,
ou seja, reeditando a prática da política do “Pão e Circo” da Roma Antiga.

Frequentemente as entidades de prática desportiva discutem internamente


questões relacionadas a possibilidade de exercício de cargos públicos por membros de seu
conselho diretor. O esporte deve ser estruturado integralmente de maneira a manter o seu
ambiente isento de interferências alheias, potencialmente lesivas aos princípios que regem
as atividades esportivas.

202 Neste sentido RUBIO. Katia, “Esporte um direito do cidadão ou ópio do povo?” in
https://jornal.usp.br/artigos/esporte-um-direito-do-cidadao-ou-opio-do-povo/.
203 SIGOLI. Marcio André, “A história do uso político do esporte.” in RBCM, Vol. 12 – junho/2004.

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Por outro lado, o movimento associativo do esporte vem se posicionando em


relação os movimentos políticos como a recente guerra entre Rússia e Ucrânia, razão que
nos cabe, neste artigo, tentar refletir sobre tais questões ao longo da história até os tempos
atuais.

2.Dos Direitos Fundamentais e dos Direitos Humanos:

O esporte integra o conjunto de direitos que integram a Declaração Universal dos


Direitos Humanos que possui como fundamentos “da liberdade, da paz e da justiça no

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


mundo.” Significa que o esporte é cidadania e como tal, deve respeitar os direitos
fundamentais.

Os direitos fundamentais têm sua base no pensamento iluminista que culminou com
a revolução francesa de 1789, e podem ser definidos como normas de natureza protetiva,
que garantem o mínimo necessário para que um indivíduo exista de forma digna dentro
de uma sociedade administrada pelo Poder Estatal. Nas lições do Constitucionalista
português Canotilho:

“(...) os direitos fundamentais em sentido próprio são,


essencialmente direitos ao homem individual, livre e, por certo,
direito que ele tem frente ao Estado, decorrendo o caráter
absoluto da pretensão, cujo o exercício não depende de previsão
em legislação infraconstitucional, cercando-se o direito de
diversas garantias com força constitucional, objetivando-se sua
imutabilidade jurídica e política. (...) direitos do particular perante
o Estado, essencialmente direito de autonomia e direitos de
defesa". 204

De acordo com o Professor Jorge Miranda: “direitos fundamentais são os direitos que,
por isso mesmo, se impõem a todas as entidades públicas e privadas” e que “incorporam
os valores básicos da sociedade.”205

Os direitos fundamentais decorrem de um estado democrático de direito, neste


sentido cabe reproduzir as lições do Ministro Marco Aurélio Mello:

“Tais direitos asseguram a contribuição de todos os cidadãos para


o exercício da democracia. Constroem um ambiente livre para essa

204 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição.
Editora Livraria Almedina, 2002.
205 MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional - Tomo IV, Coimbra Editora. Coimbra, 2000.

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participação – os direitos de associação, de formação de partidos,


de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos
do próprio princípio democrático – (...).” 206

Direitos estes, que estão diretamente ligados aos direitos humanos, reconhecidos
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que de acordo com a doutrina, podem
ser divididos em gerações ou dimensões, sendo a liberdade de expressão ligada a um dos
princípios iluministas que é a liberdade. Conforme leciona o Professor Marco Antônio
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

Marques da Silva:

“A primeira geração dos direitos humanos, resultado do


enfraquecimento do autoritarismo e arbitrariedade do governo,
compõe-se das liberdades públicas, constituindo o núcleo dos
direitos fundamentais, integrados pelos direitos individuais e
políticos.” 207

A dignidade da pessoa humana entre os períodos das duas grandes guerras passou
a fazer parte de diversos tratados e convenções internacionais, entre eles podemos citar a
Carta da ONU (1945), Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção
Americana de Direitos Humanos (1978), dentre outros.

A doutrina coloca o respeito aos direitos humanos como princípio é o núcleo entre
os demais direitos em um Estado Democrático de Direito que não pode se afastar da visão
humanista em relação a proteção deste e os demais direitos. Sendo os direitos humanos
fundamentais e indisponíveis.

Em razão da possibilidade de confrontos de princípios constitucionais, passou-se a


adotar a técnica de ponderação de interesses, conforme ensinamento do Ministro Luís
Roberto Barroso:

“Princípios e direitos previstos na Constituição entram muitas


vezes em linha de colisão, por abrigarem valores contrapostos e
igualmente relevantes. como por exemplo: (...) direitos da
personalidade e liberdade de expressão. O que caracteriza esse
tipo de situação jurídica é a ausência de uma solução em tese para
o conflito. fornecida abstratamente pelas normas aplicáveis. (...)

206 MELLO, Marco Aurélio. Liberdade de Expressão, Dignidade Humana e Estado Democrático de
Direito. In Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana. MIRANDA, Jorge et alli (org.). Quartier
Latin. São Paulo. 2009.
207 SILVA, Marco Antônio Marques da. Cidadania e Democracia: Instrumento para Efetivação da
Dignidade da Pessoa Humana. In Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana. MIRANDA,
Jorge et alli (org.). Quartier Latin. São Paulo. 2009.

244
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Veja-se. então: na aplicação dos princípios. o intérprete irá


determinar. in concreto, quais são as condutas aptas a realizá-los
adequadamente. Nos casos de colisão de princípios ou de direitos
fundamentais, caberá́ a ele fazer as valorações adequadas, de
modo a preservar o máximo de cada um dos valores em conflito,
realizando escolhas acerca de qual interesse deverá
circunstancialmente prevalecer.” 208

Portanto, os direitos humanos servem como forma de através dos erros do passado

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se construir um futuro mais digno e próspero para toda a humanidade.

3.Política e Esporte – Casos Concretos:

3.1 Apartheid e o esporte.

Oficializadas em 1948, as políticas de segregação racial da África do Sul —


o Apartheid — geraram uma série de pressões da comunidade internacional. Num
primeiro momento, porém, o Comitê Olímpico Internacional (COI) não se envolveu e
permitiu que os sul-africanos participassem dos Jogos Olímpicos entre aquele ano e 1960.
Apenas atletas brancos eram inscritos para as competições, fato que já causava enorme
impacto e pressão da comunidade desportiva em relação a infração aos direitos humanos.

A pressão subiria em março de 1960, após o assassinato de sessenta e nove


manifestantes no massacre ocorrido em Sharpeville. A Organização das Nações Unidas
(ONU), então, adotou resoluções para dificultar as relações dos países com o governo sul-
africano enquanto durasse o regime de Apartheid.

Essas primeiras pressões tiveram efeito limitado, mas foram suficientes para que o
COI desse um ultimato ao Comitê Olímpico Sul-Africano: o Comitê olímpico daquele país
se colocava contrário às políticas de Apartheid, que afetava também o esporte, ou
deixariam de participar dos Jogos Olímpicos de 1964.

Sem uma manifestação contrária ao regime segregacionista, então, o COI retirou o


convite à África do Sul. O país ficaria banido até os jogos Olímpicos de Barcelona em 1992,
quando competiu com uma bandeira especial após o início da saída do Apartheid.

Até o fim do movimento, as pressões internacionais contra o governo sul-africano


continuaram, e trouxeram outras consequências aos Jogos Olímpicos: Em 1976, o COI se

208 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios
de Ponderação, Interpretação Constitucionalmente Adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Vol. 235, 2004.

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negou a expulsar os neozelandeses que haviam realizado amistoso de rúgbi com os sul-
africanos, argumentando, entre outras coisas, que o rúgbi não era esporte olímpico na
época. Então em protesto, vinte e nove países, a maioria africanos, anunciaram um boicote
aos Jogos Olímpicos de Montreal — o primeiro boicote em larga escala na história das
Olimpíadas.

Símbolo da luta pela igualdade racial na África do Sul, Nelson Mandela usou o
esporte como grande arma para unir negros e brancos num país historicamente dividido
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pelas diferenças étnicas.

Uma nação que ficou quase cinquenta anos (1948 – 1994) segregada pelo regime
do Apartheid – que permitiu que a minoria branca se mantivesse no poder e isolasse as
outras etnias da vida política do país – se viu unida novamente por ocasião de um evento
esportivo, a Copa do Mundo de Rúgbi em 1995.

A África do Sul estava marcada para sediar o principal torneio de rúgbi do mundo,
um ano depois que Mandela foi eleito presidente.

O contexto da África do Sul em 1995, porém, ainda contradizia os ideais do novo


líder sul-africano. O preconceito e a desconfiança entre brancos e negros ainda
predominava nas ruas e havia até mesmo a tensão de que, a qualquer momento, uma
guerra racial pudesse acontecer.

Mandela viu em um dos esportes mais praticados no país a grande oportunidade


de reconstrução de uma identidade, interna e externa unindo a nação inteira pelo mesmo
objetivo.

Usou então, a própria seleção do país para isso. No time que disputou a Copa do
Mundo de Rúgbi e que, historicamente, era formada somente por jogadores brancos,
houve um integrante negro que ajudou Mandela a trazer todas as raças juntas na torcida
pela equipe nacional. O resultado foi o histórico e inédito título do torneio.

Este belo episódio da história que relaciona o esporte com política, como forma de
derrubar barreiras, buscando a igualdade e o respeito aos direitos humanos é bem relatado
pelo filme “Invictus” dirigido por Clint Eastwood (2009).

Cabendo lembrar, ainda, que a África do Sul foi o primeiro país do território africano
a sediar uma Copa do Mundo da FIFA, em 2010, fato que segmentou a união racial naquele
país.

Este é um bom exemplo de relacionamento entre esporte e política, além de respeito


as diversidades e sobretudo aos direitos humanos.

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3.2 As guerras e os cancelamentos dos jogos olímpicos de 1916, 1940 e 1944 e o


Anos 40: A década sem Copa do Mundo.

O início dos conflitos na Europa em 1914 impediu a realização dos jogos olímpicos
designados para Berlim em 1916, sendo realizados apenas em 1920 na cidade de Antuérpia
na Bélgica, em razão do impedimento de participação dos países derrotados na Primeira
Guerra Mundial (Império Otomano).

Embora tenha sido o primeiro país asiático a sediar os jogos olímpicos de 1932, o

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Japão teve seus planos frustrados em razão de seu conflito com a China que durou até
1945.

Desta forma, os jogos olímpicos de 1940 foram sediados em Helsinque na Finlândia,


porém tendo suas pretensões frustradas com o início da segunda guerra mundial que
durou entre 1939 até 1945.

Os Jogos Olímpicos de 1944, designados para Londres, teve sua realização frustrada
em função da continuidade da Segunda Guerra Mundial, porém a capital inglesa obteve o
direito de sediar os jogos olímpicos de 1948.

A quarta edição da Copa do Mundo de 1942, além da edição subsequente deixaram


de ser realizadas em razão dos conflitos da Segunda Grande Guerra e suas consequências
apesar do pós-guerra em 1946, mesmo com os conflitos já finalizados. A questão era que
muitos países europeus estavam muito fragilizados, e o momento não era para se pensar
no futebol.

A proteção a vida e aos direitos humanos está acima da realização de qualquer


evento.

3.3 Jessie Owens silencia o Nazismo através do esporte.

Um dos eventos que melhor simbolizam as questões políticas do tenso período


entre as duas grandes guerras ocorreu durante os jogos de Berlim em 1936. Embora
tenham sido realizados aqueles Jogos Olímpicos era uma tentativa de Adolf Hitler em
impor sua política nazista de supremacia da raça ariana em total desrespeito aos direitos
humanos.

O velocista norte americano Jesse Owens, neto de escravos, calou Hitler e sua
desrespeitosa política ao conquistar quatro medalhas de ouro demonstrando ao mundo,
que o absurdo propagado pelo nazismo não prevaleceria, pois somos todos iguais sem
prevalência de uma raça em relação a outra.

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O movimento nazista na Alemanha e fascista na Itália, no período entre as duas


Grandes Guerras, não poderiam jamais prevalecer. O esporte não tolera o desrespeito aos
direitos humanos, apesar de eventuais diferenças o olimpismo nos demonstra que o
espírito esportivo está acima de qualquer diversidade.

3.4 Boicote e Guerra Fria.

Mesmo após o término da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o bloco


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dos países aliados a União Soviética protagonizaram a denominada “Guerra Fria” que
durou entre 1945 até 1991.

Apesar de períodos mais pacíficos, a invasão soviética ao Afeganistão em 1979


culminou com o boicote aos jogos de Moscou em 1980, por ordem do Presidente
americano Jimmy Carter. Alguns países aliados ao governo norte americano chegaram a
competir sob a bandeira neutra (Austrália) ou de seus comitês olímpicos (Espanha e
Portugal). A Alemanha Ocidental, China e Japão se retiraram dos jogos cedendo a pressão
oriunda da Casa Branca.

As Olímpiadas de 1984, em Los Angeles, como era de se esperar houve a


“retribuição” de boicote agora pela União Soviética e seus aliados através de comunicado
feito pelo Kremlin poucos meses antes da cerimônia de abertura. Foram ao todo dezessete
países que desistiram, entre eles cabe destacar Cuba, Polônia e Alemanha Oriental.

A Romênia furou o boicote e acabou se beneficiando com a segunda colocação no


quadro de medalhas, atrás apenas do anfitrião.

Os líderes soviéticos não alegaram abertamente um boicote aos jogos, mas


disseram que apenas temiam pela segurança de seus atletas.

Independente do viés socialista ou capitalista dos blocos divergentes, ambos os


Jogos Olímpicos trouxeram momentos épicos de suas culturas que permanecem até os
dias atuais em nossas lembranças. Independente da cultura ou ideal político que os
contrastavam as cerimonias de abertura e encerramento, além dos expressivos resultados
esportivos.

3.5 Terrorismo em Munique (1972).

A Alemanha através da organização dos Jogos Olímpicos de 1972, tentou modificar


sua imagem buscando passar uma imagem desassociada dos tristes fatos que marcaram a
história em décadas anteriores durante a Segunda Guerra Mundial.

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Infelizmente, os Jogos Olímpicos daquele ano acabaram marcados por um


massacre: terroristas da facção palestina denominada “Setembro Negro” invadiram a vila
olímpica e fizeram reféns um grupo de atletas e técnicos da delegação de Israel.

Os sequestradores exigiam a libertação de duzentos palestinos presos em solo


israelenses e pediam um avião para fugir de Munique. O governo de Israel não cedeu, e
autoridades alemãs ofereceram saídas diplomáticas, porém nada fizera com que os
criminosos mudassem seu pleito. No decorrer das negociações, um destes reféns foi
assassinado.

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Em uma tentativa de emboscada, a polícia alemã atraiu os sequestradores até o
aeroporto, com a promessa de dar a eles um avião. Com os terroristas já na pista, as forças
de segurança abriram fogo, mas os criminosos devolveram os tiros e mataram os
reféns. No fim, a ação resultou na morte de onze reféns israelenses, um policial alemão e
cinco sequestradores.

A possibilidade de interromper ali os Jogos de Munique chegou a circular pelos


organizadores, mas o COI decidiu seguir adiante após um dia inteiro sem nenhuma
competição. Uma cerimônia no estádio olímpico homenageou os atletas mortos no
massacre, as bandeiras foram colocadas a meio mastro, e as competições foram retomadas
no dia seguinte.

3.6 Iugoslávia.

Após a morte do marechal e estadista Josip Tito, em 1980, as disputas nacionalistas


entre as repúblicas que formavam a unidade da Iugoslávia.

Em 1991 incitaram a guerra de independência com Bósnia-Hezergovina, Croácia e


Eslovênia.

Diversos crimes de guerra repercutiram mundialmente e houve forte pressão em


relação ao Conselho de Segurança da ONU que culminaram com uma série de sanções e
embargos contra o governo iugoslavo.

No âmbito desportivo, a Iugoslávia fora banida de dois grandes eventos esportivos


no ano de 1992.

A UEFA proibiu a participação dando lugar para Dinamarca que se sagraria campeã
daquele torneio em território sueco. A Dinamarca fora escolhida por ter sido a equipe
segunda colocada em seu grupo, cuja Iugoslávia liderou e havia conquistado a vaga.

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Quanto aos jogos olímpicos de Barcelona, o COI encontrou uma solução para que
os atletas classificados pudessem competir. Usando a bandeira olímpica e utilizando o
nome de “Participantes Olímpicos independentes” conquistando um total de três medalhas
(uma de prata e duas de bronze).

Por outro lado, os recém independentes Bósnia-Hezergovina, Croácia e Eslovênia


realizaram suas estreias em Jogos Olímpicos.
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3.7 Coréia do Norte.

Doze anos após boicotar os Jogos Olímpicos de Seul (1988) por rusgas políticas com
os vizinhos, a Coreia do Norte concordou em desfilar em conjunto com a Coreia do Sul na
cerimônia de abertura de Sydney-2000.

As duas delegações representando países teoricamente em guerra — há apenas um


cessar-fogo em vigor, mas ambos têm seus exércitos mobilizados — foram ovacionadas
ao entrar no Estádio Olímpico segurando uma bandeira neutra com o desenho da
Península Coreana em azul. Positiva, a experiência se repetiu apenas nos Jogos Olímpicos
de Atenas, em 2004.

Antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio, inicialmente programados para 2020, porém
adiados em razão da pandemia da Covid-19, foram programados para o ano subsequente.
Em parte, por questões políticas que separam os norte coreanos dos japoneses.

Em abril de 2021, poucos meses antes da realização dos jogos o governo norte
coreano anunciou que deixaria de participar alegando temores relacionados a pandemia
da corona vírus - sendo a primeira desistência desde 1988 pela própria Coreia do Norte.

Pela ausência em Tóquio, o Comitê Olímpico Internacional suspendeu os norte-


coreanos até o final de 2022. Segundo o alemão Thomas Bach, presidente da entidade, a
Coreia do Norte deixará de receber a ajuda financeira que o COI distribuí aos filiados.
Contudo, assegura que os atletas serão preservados para qualquer um que estiver
classificado aos Jogos de Inverno de Pequim.

3.8 China x Taiwan.

A Revolução Comunista Chinesa de 1949 terminou da seguinte forma: os


comunistas, liderados por Mao Tsé-Tung, dominaram todo o território continental e
proclamaram a República Popular da China — nome completo do país que conhecemos
hoje por China. Os nacionalistas, confinados na ilha de Taiwan, mantiveram lá a República
da China — como um governo em exílio.

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Entre os anos 1950 e 1960, a ONU e o Ocidente consideravam Taiwan o verdadeiro


representante da China. Atletas da ilha competiam sob o nome República da China nos
Jogos Olímpicos.

Mas a situação mudou em 1971, quando a ONU deixou de reconhecer Taiwan como
a representação legal dos chineses e transferiu a vaga para os comunistas de Pequim.

Isso ocorreu em meio ao congelamento das relações da China comunista com a


União Soviética e a consequente aproximação de Pequim com os EUA. Os novos laços entre

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chineses e americanos levaram até à desistência da China em participar das Olimpíadas de
Moscou, como parte do boicote ocidental aos soviéticos em 1980.

A solução encontrada para Taiwan, que não poderia usar mais o nome China, foi
passar a competir com a nomenclatura “Taipé Chinesa” a partir de 1984 não só nos Jogos
Olímpicos, mas também em outros eventos.

3.9 Covid-19 e a consolidação da nova ordem social.

A pandemia iniciada na China no final do ano de 2019 paralisou o mundo nos


primeiros meses de 2020 e consequentemente causando o adiamento dos Jogos Olímpicos
marcados para Tóquio em 2020.

Embora o esporte tenha sido uma das primeiras formas de entretenimento a


retornar as suas atividades mesmo sem a participação de público, fato que demonstra sua
força, o Comitê Organizador Local e o COI resolveram realizar os jogos no segundo
semestre de 2021, mas com número reduzido de torcedores visando evitar a disseminação
do coronavírus.

Esta foi uma tentativa de reestabelecer o espírito olímpico, logicamente atendendo


a interesses comerciais também, mas com lado humanista pois nada melhor que o esporte
para diminuir a dor causada por inúmeras vidas perdidas e tantas questões políticas que
dividiram a humanidade durante o período da pandemia.

O lado humanista é um caminho crescente na realidade dos jogos, cabendo registrar


a significativa participação de atletas refugiados que se iniciou nas Olímpiadas de 2016 no
Rio de Janeiro, porém a delegação em Tóquio foi formada por vinte e nove atletas
refugiados de seus países de origem, mas que puderam participar em doze modalidades.

Estes atletas, tiveram que deixar seus países de origem devido a guerras, violações
dos direitos humanos e perseguições sendo acolhidos em novos países. Com o auxílio da
Organização das Nações Unidas, em conjunto ao Comitê Olímpico Internacional, puderam
participar dos jogos olímpicos empenhando a bandeira dos atletas de países refugiados.
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Os atletas refugiados em competições nacionais já não são considerados


estrangeiros em muitos países que assim acolhem seres humanos que escapam das
barbáries de sua nação de origem. Desta forma, se consolida uma nova ordem humanista
em que as desigualdades não são mais acolhidas por movimentos xenófobos que
anteriormente disseminavam a intolerância.

4. Os desafios das entidades de administração desportiva em relação a guerra na


Ucrânia:
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A recente guerra na Ucrânia através de covarde invasão da Rússia, causa impactos no


universo desportivo.

Em um primeiro momento, a FIFA e o COI buscavam um diálogo a fim de evitar que


direitos humanos fossem desrespeitados.

Neste mesmo sentido o sempre brilhante advogado Andrei Kampff em seu artigo
“Guerra na Ucrânia abre paradoxo no esporte: direitos humanos x direitos humanos. O Juiz
será o TAS” a respeito do assunto:

“Precisamos nos concentrar no que estará em jogo. O movimento


esportivo pode banir um atleta pela sua nacionalidade? Pode proibir
alguém de trabalhar por causa de uma guerra em que ele também é
uma vítima? E, mais, uma federação internacional pode obrigar um
atleta a se manifestar contra a guerra colocando em risco a vida de
pessoas como condição de elegibilidade?”209

O banimento de atletas russos da possibilidade de participação em competições


oficiais da Champions League pela UEFA, sendo que alguns desses sequer possuem
nacionalidade russa, bem como o banimento da seleção russa da Copa do Mundo do Qatar
em 2022 sem que os atletas pudessem exercer seu direito de livre manifestação, defesa e
contraditório demonstra um abuso por parte das autoridades.

Cabe lembrar que, os atletas russos que comprovaram não ter qualquer ligação com
o escândalo de dopagem cometido pelo Comitê Olímpico Russo puderam participar das
Olímpiadas de Tóquio realizadas em 2021 sem qualquer alusão a Rússia e ainda utilizando
a bandeira apenas a sigla ROC (Russian Olympic Committe).

Em outras palavras, em razão de eventos ligados diretamente ao esporte os atletas


tiveram seu exercício a prática esportiva permitidos, por outro lado as entidades de

209KAMPFF, Andrei. Guerra na Ucrânia abre paradoxo no esporte: direitos humanos x direitos humanos.
O Juiz será o TAS in https://leiemcampo.com.br/guerra-na-ucrania-abre-paradoxo-no-esporte-direitos-
humanos-x-direitos-humanos-o-juiz-sera-o-tas/, publicado em 22 de março de 2022.

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administração desportiva por razões diversas ao esporte, embora abomináveis,


simplesmente resolvem banir todos os atletas sem que estes possam se manifestar se é
favorável ou não as atrocidades cometidas pelo chefe de estado de seu país.

Não existem alternativas como atuar com portões fechados, sem qualquer alusão
ao seu país ou em locais diversos da Rússia? Mais fácil cometer injustiças do que buscar
alternativas pro competitione, mas injustiças não se apagam com novas injustiças.

O esporte não pode ser meio de vingança. O esporte não pode aplaudir a barbárie

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e cometer injustiças aos atletas que são as vítimas pela tomada de decisões que resolvem
banir esportistas por sua nacionalidade, entendo que no mínimo haveria um desrespeito
ao artigo 50 da Carta Olímpica.

Onde está o espírito contido na Carta Olímpica que visa uma consciência
democrática e humanitária por meio da prática esportiva?

Os regulamentos esportivos que precisam cada vez mais dialogar com princípios de
direitos humanos, pois o esporte sempre atuou como incentivo ao diálogo e respeito aos
direitos humanos.

5. Conclusão:

O esporte e guerra trazem muitas semelhanças, como a rivalidade e disputa entre


seus participantes. Enquanto o troféu é o símbolo do êxito desportivo, a morte e destruição
do inimigo representam a vitória na guerra.

Cabe lembrar que, um dos mais importantes esportes olímpicos possui sua origem
por causa de uma guerra. Em 490 a.c. ocorreu a Batalha de Maratona faz parte da cultura
popular em função da ordem seguida pelo soldado Fidípides, que seguindo as instruções
do General Milcíades correu mais quarenta e dois quilômetros entre Maratona e Atenas
para informar sobre a vitória grega. A lenda diz que, logo após informar a vitória, Fidípedes
teria caído morto de cansaço. É por causa desta batalha, que existem hoje as famosas
provas de corrida de longa distância chamadas de maratona.

Embora possuam semelhanças, guerra e esporte são como água e vinho que não se
misturam. O esporte cada vez mais com seu papel de entretenimento e interesses
econômicos não pode permitir que interesses externos tenham lugar em suas competições.

O esporte possui importe papel de humanista de evolução de princípios que possuem


sua origem no movimento iluminista do século XVIII. Inconcebível que séculos depois e o
aumento de tecnologia não tragam a evolução e respeito as desigualdades.

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Como não lembrar o dia dezoito de agosto de 2004 em que a seleção brasileira de
futebol, única pentacampeã mundial, paralisou por algumas horas a guerra civil no Haiti
para que seus craques pudessem desfilar em Porto Príncipe com sua desigualdade social.

O resultado do “jogo da paz” entre os anfitriões e os então campeões mundiais foi o


menos importante naquele belo dia, mas o que prevaleceu foi que a seleção brasileira pode
levar à aquela sofrida população um pouco de paz, alegria e esperança.
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Este raciocínio não se limita apenas as questões políticas tratadas neste artigo, mas
igualmente a violência nos estádios de futebol, ao preconceito em razão de desigualdades.

O esporte é meio de socialização onde eventuais diferenças são medidas dentro dos
campos e quadras se encerrando ao término da partida. O Fair Play que ocorrer dentro do
esporte deve se transmitir para toda sociedade.

A única guerra que pode haver no esporte é a guerra pela paz em busca de ideais
humanistas e de igualdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da


Personalidade. Critérios de Ponderação, Interpretação Constitucionalmente
Adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro: Vol. 235, 2004.

CALIXTO, Vinicius. Lex Sportiva e Direitos Humanos. Entrelaçamentos


transconstitucionais e aprendizados recíprocos. Editora D’Plácido. Belo Horizonte, 2017.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª


edição. Editora Livraria Almedina, 2002.

KAMPFF, Andrei. Guerra na Ucrânia abre paradoxo no esporte: direitos humanos x


direitos humanos. O Juiz será o TAS in https://leiemcampo.com.br/guerra-na-
ucrania-abre-paradoxo-no-esporte-direitos-humanos-x-direitos-humanos-o-juiz-
sera-o-tas/, publicado em 22 de março de 2022.

MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional - Tomo IV, Coimbra Editora. Coimbra, 2000.

MELLO, Marco Aurélio. Liberdade de Expressão, Dignidade Humana e Estado


Democrático de Direito. In Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana.
MIRANDA, Jorge et alli (org.). Quartier Latin. São Paulo. 2009.

NICOLAU, Jean Eduardo. Direito Internacional Privado do Esporte. Editora Quartier Latin.
São Paulo, 2018.
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RUBIO. Katia, Esporte um direito do cidadão ou ópio do povo? in Jornal da Universidade


de São Paulo, 2019.

SAYEG. Ricardo, & BALERA. Wagner, O Capitalismo Humanista. Editora KBR. São Paulo,
2011.

SIGOLI. Marcio André, A história do uso político do esporte. in RBCM, Vol. 12 – junho,
2004.

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SILVA, Marco Antônio Marques da. Cidadania e Democracia: Instrumento para
Efetivação da Dignidade da Pessoa Humana. In Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da
Pessoa Humana. MIRANDA, Jorge et alli (org.). Quartier Latin. São Paulo. 2009.

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LEI Nº 11.343/2006: A NECESSIDADE DE UMA DIFERENCIAÇÃO OBJETIVA ENTRE O


USO E O TRÁFICO DE DROGAS FRENTE AOS MALEFÍCIOS DA SUBJETIVIDADE DA
NORMA

CAIO SANCHES FAZZIO:


Graduando em Direito, Centro
Universitário de Santa Fé do Sul – SP,
UNIFUNEC
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RODRIGO ANTÔNIO CORREIA

(orientador)

RESUMO: O presente artigo objetiva demonstrar como a política repressiva da guerra às


drogas em vigor na atualidade é um sistema fracassado. Sob o pretexto de diminuir o
tráfico e consumo acaba na realidade por intensificar problemas de saúde pública
escondendo suas verdadeiras motivações, sejam econômicas ou de exclusão social. Para
isso, se faz necessário entender como se desenvolveu esse modelo na história, e as
dificuldades de se aderir a políticas alternativas, apesar do seu fracasso. Através da revisão
bibliográfica da legislação, doutrina, artigos e notícias, analisaremos a Lei 11.343/2006,
especificamente no tocante à diferenciação do usuário e do traficante nos artigos 28 e 33,
para entender seus problemas e incongruências, que vão da esfera judiciária passando pela
carcerária até a de saúde pública. Por fim, demonstrar a necessidade de mudança da
norma, que aliada a campanhas de prevenção sem a intervenção do Direito Penal, tem a
oportunidade de obter resultados significativos no tratamento do problema.

Palavras chave: Drogas; Direito Penal; Guerra às Drogas; Lei de Drogas 11.343/2006;
Diferenciação entre usuário e traficante.

ABSTRACT: This article aims to demonstrate how the repressive “drug war” policy ruling
in the world its a failed system. Under the guise of decreasing drug trafficking and
consumption, ends up in fact intensifying public health problems hiding its true
motivations, whether be economic or social excludent. To do so, it is necessary to
understand how this model was constructed historically, and the difficulty of implementing
alternative policys, despite their failure. Through literature review of law doctrine, articles
and news, we are going to analyse the 11.343/2006 Law, specifically in the matter of
differentiate the drug user and drug dealer, analyzing the law articles 28 and 33, in order
to understand its problems and inconsistencies, that goes from the judiciary scope, passing
through the prisional to the public health. Finally demonstrate the need to change the law,
that combined with prevention campaings, without Criminal Law interventions, has the
opportunity of obtain significant results on this matter.

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Key words: Drugs; Criminal Law; Drug War; Drug Law 11.343/06; Differentiation betwen
user and dealer.

1- INTRODUÇÃO

O tema central do artigo, objeto de estudo desse trabalho, é a política de drogas,


mais especificamente no Brasil. Esse sistema apresenta problemas fundamentais em sua
essência, já que foi construído de maneira equivocada, levando em consideração interesses
diversos aos que deveriam ter sido analisados.

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Essa política, influenciada pela norte americana da repressão, tem como objetivo
combater o tráfico, diminuir o consumo e a demanda, utilizando de todas as ferramentas
disponíveis, incluindo e principalmente a de controle penal.

O sistema se válida na ideia de proteção à saúde pública, mas, na realidade, o que


realmente nos proporciona é a violência generalizada (parcial quanto à raça e gênero), e
superpopulação carcerária, com aumento exponencial dos danos causados aos usuários.

O direito penal nesse aspecto não soluciona questões de saúde pública, apenas
dificulta estratégias de redução de danos e campanhas de educação e conhecimento sobre
o assunto, além de ter um custo de manutenção altamente elevado.

Nesse viés vamos discutir brevemente o desenvolvimento e difusão das “drogas”


e da ideologia proibicionista da “Guerra às drogas”, e como funciona de fato no nosso país,
esclarecendo a Lei 11.343/2006 no sentido da diferenciação de usuário e traficante,
trazendo à tona seus problemas e incongruências deixando clara a necessidade de um
critério mais objetivo que diferencie esses dois tipos penais.

Por fim debater sobre a necessidade da prevenção que, comprovadamente,


conforme exemplos de outros países que adotaram a medida, é muito mais efetiva no
tratamento da problemática das drogas.

2- DEFINIÇÃO DE DROGA

A definição mais abrangente de “droga” fornecida por farmacologistas a conceitua


como qualquer substância capaz de alterar o funcionamento normal de um organismo.
Utilizando essa definição temos como drogas a maconha, cocaína, heroína, assim como,
aspirinas, anabolizantes e até chá de camomila.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu Glossário de Álcool e Drogas, as


define como substâncias “que afetam a mente e os processos mentais” (ARAÚJO, 2012, p.

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14). Utilizando dessa definição temos como drogas o álcool, o tabaco e a cafeína, algumas
das substâncias mais consumidas no mundo todo.

As drogas ainda permitem a classificação entre ilícitas e lícitas as quais podem ser
ou não controladas. Essa é a classificação jurídica, tendo como ilícitas aquelas positivadas
em lei que tem seu uso proibido pelo Estado e por organizações internacionais. Lícitas são
as que são permitidas em lei, e que podem ser controladas: como o caso do álcool e da
nicotina; ou não, como é o caso do café (cafeína).
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O artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, conceitua as drogas como


“substâncias ou produtos capazes de causar dependências, assim especificados em lei ou
relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. ” Dessa
maneira conclui-se que as substâncias não são originárias de nosso organismo e que tem
como resultado alterações no funcionamento deste e dependência, sendo assim definidas
como drogas. (BRASIL, 2006)

Apesar de serem as substâncias mais consumidas do mundo e ainda terem a


capacidade de alterar comportamento e/ou percepção, tendo impactos na saúde, o álcool,
o tabaco e a cafeína, se aplicados os pressupostos dos critérios explicitados acima para
caracterizar uma substância como droga, não seriam definidas como legais por suas
propriedades em si. As circunstâncias que norteiam essa classificação são completamente
desligadas de conceitos relacionados à saúde pública. Esses parâmetros que definem a
ilegalidade de seletas substâncias são de cunho histórico, social, político ou geográfico e
as leis que positivam os critérios de classificação são vagas e inconsistentes. Neste artigo
serão discutidas as drogas ilegais.

3 - A DROGA NA HISTÓRIA

Profissionais antropólogos e arqueólogos, baseados em dados relativos à arte,


como pinturas em cavernas, datadas do período Paleolítico superior, que seria entre 10 mil
e 40 mil anos atrás, estimam que a primeira substância psicoativa utilizada pelo homem
teria sido oriunda de certos cogumelos alucinógenos.

No Egito Antigo, substâncias como mel, alho e inclusive ópio eram utilizados como
medicamentos, além da cerveja egípcia que era utilizada para o lazer em festividades.

Existem relatos da Grécia antiga, onde drogas eram consumidas em rituais, em que
era possível “ver os deuses”, indicativo do uso de substâncias alucinógenas.

Com a propagação do cristianismo, onde as ideias de preservação do corpo e da


mente são pilares a serem seguidos, o uso de “drogas” passou a ser condenado e, por volta
do século IV, com os imperadores cristãos, as primeiras leis antidrogas foram criadas com
uma certa parcialidade, pois elas nessa época eram bastante utilizadas por religiões pagãs
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em seus rituais, que sofriam bastante preconceito por parte dos adeptos ao cristianismo
que era a religião dominante.

Felício (2018, p.11), em sua obra “O fracasso do proibicionismo e da política de


Guerra às Drogas”, faz um paralelo importante entre os atos dos cristãos com a conhecida
Guerra. Segundo ela “[...] os cristãos foram os pioneiros na realização de uma espécie de
guerra às drogas, já que os monges destruíam, profanavam e invadiam templos dessas
religiões que utilizavam de substâncias psicoativas [...]”, porém nem a força nem influência
da Igreja católica conseguiram parar o avanço do uso dessas substâncias.

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Mesmo com o grande poder que o cristianismo exercia nesse momento histórico,
o consumo de drogas perdurou e começou a se difundir. E isso ocorre pelo sentimento do
impacto sofrido na economia global pelas drogas locais, deixando o viés moral de lado.

Com as grandes navegações a Europa expandiu suas relações com grande parte
do mundo, levando e trazendo novas drogas para sua população e para as populações ao
alcance de seus navios, como o ópio vindo da China e da Companhia das Índias Orientais
e o tabaco vindo das Américas.

Ao longo do desenvolvimento do que nós conhecemos hoje como civilização há


ainda vários relatos sobre o uso de substâncias que podem ser consideradas “drogas”
sendo utilizadas para inúmeros fins, mas principalmente medicinal, religioso ou recreativo.

Com a expansão do uso dessas substâncias começam a surgir também as ideias


da proibição e repressão. Além do cunho xenofóbico do cristianismo, pioneiro na ideologia,
outras motivações que não deveriam ser consideradas, foram disfarçadas de preocupações
para justificar a intolerância, como interesses pessoais, econômicos, geográficos e em sua
grande maioria preconceituosos.

Como foi o caso dos Estado Unidos, onde a “Guerra às Drogas” teve seu
agravamento nas mãos de um homem chamado Harry Anslinger, movido por motivos
pessoais e pelo viés econômico.

Anslinger, que trabalhava no escritório encarregado de aplicar a proibição do


álcool, depois que o álcool foi liberado nos EUA em 1933, conseguiu uma transferência
para a FBN – Escritório Federal de Narcóticos. Ao contrário de seu antigo escritório, a FBN
era menor e tinha menos recursos, já que o problema das drogas não era grande como o
do álcool na época para os americanos. Assim, Anslinger em busca de aumentar seu
orçamento e pessoal introduziu uma nova droga até então pouco conhecida no país, a
maconha.

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A partir de reportagens sensacionalistas demonizando a droga e os usuários,


arquitetadas por ele, e vencendo o voto uno, do único médico participante da discussão
no Congresso Nacional, conseguiu a proibição da maconha, somente 4 anos após a
liberação do álcool e também que seu orçamento fosse aumentado e a maconha fosse
reconhecida como uma nova ameaça e uma droga muito pior e mais destrutiva que o ópio
e a heroína.

Importante destacar o pensamento de Valois (2017, p. 34), em seu livro “O direito


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Penal da Guerra às Drogas”: “Os dados científicos são manipuláveis e manipulados


livremente para formar o discurso moral mais interessante para o objetivo almejado, por
pessoas que muitas vezes não tem qualquer preparo ou conhecimento acerca daquele
estudo científico.”. Que se encaixa perfeitamente na situação em foco.

Em sua monografia ‘O fracasso do proibicionismo e da política de “guerra às


drogas”’, Gabriela Felício nos elucida outra verdade, que impulsionou a ajuda popular, por
trás da criminalização na época:

o viés xenofóbico da criminalização da maconha está no fato de que


a maconha era a droga de grande popularidade entre os mexicanos,
que a partir da quebra da bolsa de valores norte-americana, passou
a ser mão de obra competitiva, não desejada em razão da crise
econômica. [...] (2018, p. 21)

Seguindo os ideais americanos recheados de preconceito disfarçado, no ano de


1961, foi assinada a “Convenção única sobre drogas narcóticas”, nos termos de Anslinger,
onde o mundo inteiro se propôs a combater o tráfico.

De modo geral, o mundo não aparenta estar disposto a afastar-se do consumo de


drogas. A maconha, nos últimos 50 anos, se estabeleceu como a droga ilegal mais
consumida, tornando-se popular por onde passava. O álcool mantém seu crescimento
atrelado mais a economia do que algum modismo ou mudanças na lei. O tabaco mesmo
mantendo-se legal, continua sendo regulamentado com cada vez mais afinco, isso dá-se
pela consciência do mal causado por ele, porém seu uso ainda cresce. Novas substâncias
continuam surgindo a cada ano e se difundindo na sociedade.

4 - PROIBICIONISMO NO BRASIL

Atualmente vários países estão buscando modelos alternativos de combate às


drogas. Até mesmo os Estados Unidos, o idealizador do modelo proibicionista, vem
procurando meios diferentes de lidar com o problema. Na contramão do cenário
internacional está o Brasil, que apesar de modestas evoluções, com a sua Lei de Drogas
atual 11.343/06, revogadora das Leis 6.386/76 e 10.409/02, permanece na mesma ideologia

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de ação, propagando o medo e lotando as penitenciárias principalmente de negros e


pobres.

A lei tem como objetivo aumentar a opressão à produção em grande escala e ao


tráfico, reprimindo assim a disseminação das drogas. Tem também como objetivo
proporcionar a assistência ao usuário e dependente químico, impulsionando a sua
reintegração social. Objetivos dignos, tendo em vista o manifesto perecimento da
metodologia que utiliza o direito penal. Porém pela falta de um parâmetro claro que
diferencie o usuário do traficante, o que se alcançou foi o aumento do encarceramento em

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massa.

Observando as determinações iniciais da lei, pode-se perceber seu atributo


generalista e pouco objetivo. Os artigos 1º e 2º estabelecem da seguinte forma:

Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre


Drogas - SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso
indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas; estabelece normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. Parágrafo
único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as
substâncias ou os produtos capazes de causar dependência,
assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas
periodicamente pelo Poder Executivo da União.

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem


como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e
substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas,
ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem
como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas,
sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de
uso estritamente ritualístico-religioso. Parágrafo único. Pode a União
autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no
caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos,
em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas
as ressalvas supramencionadas. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

Pode se perceber também o uso da norma penal em branco, onde utilizam-se listas
controladas pelo estado que podem ser modificadas de tempos em tempos, mantendo o
rol sempre atualizado. A portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998 regula a lista de
substâncias ilegais. Entre as drogas ilegais, podemos destacar: maconha, cocaína, haxixe,

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crack, ecstasy e heroína. As mais populares em nosso país são a maconha e a cocaína.
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1998)

A lei de drogas de 2006 também instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas


sobre Drogas (SISNAD), e em seus artigos 3º ao 17 estipula o funcionamento deste e o
papel dos órgãos estatais na questão, porém a entidade não funciona como deveria, e
antes de a lei entrar em vigor, vários artigos que regulavam o sistema tiveram de ser
vetados, pois contrariavam a Constituição ao criarem obrigações aos entes federados.
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Entretanto nosso foco nesse estudo serão os artigos 28 e 33, que tratam do
consumo pessoal e do tráfico respectivamente.

Enquanto o artigo 28 traz a possibilidade de penas brandas, com medidas


educativas, o artigo 33 prevê penas de reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500
dias multa, sendo excessivamente mais rigoroso, além de o delito do tráfico ter sido
equiparado a crime hediondo (art. 5º, XLIII), não sendo permitida a liberdade provisória
com fiança e também a graça, indulto, e a conversão das penas privativas de liberdade em
restritivas de direito, deixando o abismo entre as sanções ainda maior. O problema é que
a decisão de enquadrar um indivíduo nesses tipos penais acaba ficando na mão dos
agentes do estado, por não existir um critério claro de diferenciação, fazendo com que
condutas muito similares — algumas vezes praticamente iguais — sejam caracterizadas
uma em cada desses tipos penais.

4.2 - SISTEMA CARCERÁRIO LOTADO E ART 28

O artigo 28 da Lei de Drogas versa sobre o usuário ou dependente, que pratica os


verbos descritos na norma com finalidade de consumo pessoal, e altera a previsão anterior
que instituía detenção ou multa para uma sanção mais branda com penas educativas,
vejamos:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou


trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso


educativo.

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§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo


pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o


juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do

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agente. [...] (BRASIL, 2006)

Porém o maior problema está na controvérsia trazida pelo parágrafo 2º deste


artigo, a medida em que deixa ao poder do magistrado o entendimento sobre a natureza
e o destino da droga além das circunstancias sociais e pessoais.

Em outras palavras, são inúteis as penas brandas do artigo 28, se o parâmetro para
caracterização de consumo pessoal está nas mãos de um juiz que, em grande parte, não
sabe distinguir se a quantidade de uma droga específica é razoável para o uso ou não, ou
carrega uma visão estereotipada, sendo preconceituoso ao considerar as “circunstâncias
sociais e pessoais”, restando apenas ouvir o policial que atendeu à ocorrência, para no fim
decidir sobre a pessoa apreendida. Sobre o tema destaca Guilherme Nucci:

“Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença


de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha
é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é
consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo,
atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca
vencedora na avaliação judicial.” (NUCCI, 2016).

Nesse sentido, os policiais que realizam o primeiro nível de controle, exercem em


grande parte, o poder de julgadores, determinando as atitudes que se encaixam ou não
no tipo penal do artigo 28. E levando em consideração que os agentes da polícia, como a
maioria da população, são formados pelo preconceito tradicionalista e estereotipado,
acabam por realizar certa discriminação dos suspeitos.

As consequências da subjetividade discricionária atribuída aos agentes públicos


são relatadas por Araújo, em sua obra Almanaque das drogas:

O tráfico de drogas já é a segunda maior causa de prisão no Brasil,


sendo que 55% dos condenados nas varas criminais e federais de
Brasília e do Rio de Janeiro são réus primários, e 50% deles foram

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pegos com menos de 100 gramas de maconha. Ou seja, eram os


chamados “peixes pequenos” (ARAÚJO, 2012, p. 236)

O resultado da falha normativa destacada é, de forma crítica, penosa ao sistema


carcerário e judiciário como um todo.

Nesse sentido podemos analisar o julgado a seguir auferindo que a quantidade


necessária pra tipificação no crime do tráfico é mínima, e de apenas 4,13 gramas de
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maconha na situação em foco.

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. DECISÃO MANTIDA


POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. HABEAS CORPUS. TRÁFICO.
4,13 GRAMAS DE MACONHA E 8,41 GRAMAS DE CRACK.
EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE COM FUNDAMENTO EM AÇÃO
PENAL EM CURSO. FLAGRANTE ILEGALIDADE. SÚMULA 444/STJ.
ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGAS QUE NÃO JUSTIFICA AFASTAR O
ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1.
Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir
o fundamento da decisão atacada. 2. Agravo regimental improvido.
(STJ - AgRg no HC: 609516 PE 2020/0222380-8, Relator: Ministro
SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 23/02/2021, T6 -
SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/03/2021) (grifo nosso)

O Relator admite a ínfima quantidade de drogas, mas não afasta a conduta do


crime de tráfico tipificado no artigo 33 do Código Penal. E como esse, temos muitos outros
exemplos onde a quantidade de drogas e as circunstâncias são deixadas de lado por não
haver um parâmetro acessível de distinção das condutas.

Desse modo o que atingimos não é uma diminuição do tráfico e dos problemas
causados por ele, mas sim um novo desafio, nefasto e preocupante, que é a lotação das
cadeias com condenados no Art. 33 da Lei 11.343/2006, de homens e mulheres que em
sua grande maioria poderiam ser poupados caso houvesse uma mudança na norma,
trazendo uma nova maneira de diferenciar os tipos.

De acordo com um estudo realizado em 2014 pelo Departamento Penitenciário


Nacional, quando a Lei 11.343 entrou em vigor, em 2006, o número de presos por tráfico
em nossos presídios era de 31.520. Em 2013, esse número teve um aumento de 339%,
passando para 138.366. Apenas um crime teve um aumento maior nesse período: o tráfico
internacional de entorpecentes, com incríveis 446,3% de aumento. (INFOPEN, 2014)

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Embora o tratamento dado ao usuário esteja caminhando para uma abordagem


menos combativa e mais preventiva, o aumento elevado do número de presos tipificados
no tráfico nos faz questionar a real efetividade da Lei no que tange a essa proteção.

Hoje no Brasil um único preso custa ao estado a quantia de R$ 1.800,00 (um mil e
oitocentos reais) por mês. Valor este que representa uma média ponderada considerando
a população carcerária de todo o estado, havendo diferenças gritantes entre estes, tendo
que o custo em Pernambuco é de apenas R$ 955,00 por presidiário enquanto em Tocantins
o valor chega a R$ 4.200. (G1, 2021)

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Assim sendo, o elevado número de indivíduos tipificados no crime de tráfico faz
com que os estados tenham que gastar uma parcela muito maior de seu orçamento com
o sistema prisional, o que poderia ser resolvido com um critério objetivo de diferenciação
entre as condutas de consumo pessoal e tráfico, o qual diminuiria a quantidade de
encarcerados.

Além disso fez com que houvesse um aumento do número de processos nas varas
criminais, prejudicando o andamento e intensificando a morosidade que já é um fator
extremamente preocupante no judiciário, cerceando nesse sistema o direito de muitos
indivíduos, conforme aduz Guilherme Nucci:

o volume de processos criminais gerados, que se acumulam nos


escaninhos forenses de qualquer vara ou tribunal do país, é
impressionante. Em algumas varas criminais e turmas do tribunal os
processos envolvendo tráfico ilícito de drogas já constituem mais de
50% do volume de trabalho. (NUCCI, 2016).

Mais da metade do volume de trabalho das varas criminais é composta por


processos envolvendo o tipo penal do tráfico, sendo muitos desses autos formados por
condutas que, se fossem embasadas numa norma que trouxesse uma diferenciação clara
entre os tipos, não estariam sobrecarregando o poder judiciário.

5 - PREVENÇÃO

O problema da droga não está somente no crime do tráfico, uso, ou produção, na


realidade, há inúmeras outras condutas tipificadas em nosso Código Penal que apresentam
como coadjuvantes as drogas. Como exemplos temos a violência doméstica, onde em
grande parte dos casos, o agressor fez o uso de entorpecentes, ou também os crimes de
furto e roubo que em uma parcela são praticados com o objetivo de obter lucro
instantâneo para bancar o vício

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Ao ser entrevistado pelo MP Debate, Eduardo Cambi, promotor de justiça, nos


trouxe dados sobre uma pesquisa feita com colaboradores do Ministério Público. O estudo
objetivava entender o mecanismo organizacional no tocante as drogas. A maioria dos
promotores que foram submetidos ao estudo, cerca de 75%, informou que uma grande
parcela dos processos de suas comarcas, de algum modo, estava associada às drogas.
(MPPR, 2018)

Dessa forma, pode-se entender que as drogas estão ligadas, de forma direta e
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indireta, a inúmeras situações sociais que causam um efeito negativo na sociedade. Sendo
assim, medidas educacionais e preventivas são muito importantes, tendo que muitos
crimes analisados pelo judiciário, seja furto, agressão doméstica ou homicídio, têm como
agente uma pessoa sob a influência de drogas. A prevenção se faz essencial, por ser a
melhor forma de impedir que crimes como os descritos aconteçam.

Nesse viés, temos três níveis de prevenção que podem ser trabalhadas. A
prevenção primária opera no sentido de evitar que o contato inicial da pessoa com a droga
ocorra. Caso já exista uma relação com alguma substância, será preciso aplicar a prevenção
secundária, que tem o objetivo de não deixar que o uso se transforme em vício, voltada
para os usuários iniciantes. Por fim quando o caso já evoluiu para dependência química,
temos a prevenção terciária, que atua no sentido de recuperar a pessoa
dependente/viciada. (PMGO, 2017)

A definição de um critério específico que diferencie o usuário do traficante precisa


estar aliada à criação de campanhas de informação e prevenção do uso de drogas.
Precisamos conscientizar e informar a população sobre os malefícios e consequências
decorrentes do uso dessas substâncias, tanto para a sociedade, quanto para a saúde
pública e dos indivíduos.

Conclui-se, portanto, que é imprescindível realizar a prevenção, tendo em vista a


sua manifesta relação com todas as etapas do consumo de drogas, sendo considerada
infinitamente mais benéfica na resolução do problema que a repressão e o medo.

6 – CONCLUSÃO

Desde meados do século XX a política repressiva de guerra às drogas em vigor no


mundo todo vem gerando impactos negativos na sociedade, e com o objetivo de combater
a violência acabou se tornando na prática um enorme incentivador dela.

Ao criminalizar várias substâncias, consumidas em larga escala por todos os tipos


de pessoas, a política proibicionista acabou por criar uma economia altamente rentável em
cima do mercado ilícito, que estando à margem de regulamentações gera apenas
consequências nefastas, sem alcançar nem em parte a diminuição do consumo.

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Nesse sentido, podemos considerar que a Lei 11.343/2006 representou um


pequeno avanço em comparação às Leis anteriores. Ainda assim, não apresentou
mudanças significativas, além de não resolver o problema anexo da criminalização do
tráfico e consumo de drogas no Brasil, isto é, diferenciar na prática as duas condutas.

Da mesma forma, os parâmetros fixados pela jurisprudência se mostram


insuficientes, já que, os magistrados e servidores do judiciário os receptam da maneira que
for mais conveniente, dependendo assim, na grande maioria dos casos, mais de suas
crenças pessoais, do que da análise da situação em foco.

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Destarte, a ausência de norma que defina um parâmetro a ser seguido, demonstra-
se bastante perigosa, deixando a classificação de conduta dos casos em que há dúvida
quanto ao tipo nas mãos da Vara, Turma ou Câmara onde o processo está alocado,
dependendo assim do posicionamento liberal ou conservador do julgador.

Concluindo, temos que a prevenção aliada à mudança da norma, estabelecendo


um parâmetro claro de distinção entre a figura do usuário e do traficante, certamente tem
o poder de aliviar o problema de drogas no Brasil, seja na esfera judiciária, carcerária ou
na esfera da saúde pública.

7 - REFERÊNCIAS

ARAUJO, Tarso. Almanaque das drogas. 2ªed. São Paulo: Leya, 2015.

BRASIL. Lei Nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm> Acesso em:
03 abr. 2022.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 28 nov.
2021.

FELICIO, Carolina Lavatori. O fracasso do proibicionismo e da política de “guerra às


drogas”. 2018. 85 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Faculdade Nacional de Direito,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

A HISTÓRIA DAS DROGAS. Direção: Adam Barton. Produção: Bill Johnston; Ron Lillie.
Roteiro: Bryan Carmel. [S.l.]. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mY_C1Z93GUo. Acesso em: 11 mar. 2022

VALOIS, Luís Carlos. O Direito penal da Guerra às drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2019.
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BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, Portaria nº 344, de 12 de Maio de 1998, Disponível


em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html.
Acesso em: 12 abr. 2022

NACIONAL, Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias. Disponível em: <https://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-
nacional-de-informacoes-penitenciarias>. Acesso em: 12 abr. 2022
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CONJUR. Para Guilherme Nucci, não há nada a comemorar nos 10 anos da Lei de
drogas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-04/nucci-nao-nada-
comemorar-10-anos-lei-drogas. Acesso em: 15 jun. 2022

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Regimental no Habeas Corpus: 609516 PE


2020/0222380-8, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento:
23/02/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/03/2021

MPPR, Ministério Público do Paraná. Prevenção às Drogas: metodologias para atuação


estratégica. Disponível em: https://escolasuperior.mppr.mp.br/2018/05/604/MP-Debate-
Prevencao-asdrogas-metodologias-para-atuacao-estrategica-.html. Acesso em: 17 jun.
2022

PMGO, Polícia Militar do Estado de Goiás. Apostila de Prevenção e Repressão às


Drogas e Entorpecentes. Disponível em:
https://acervodigital.ssp.go.gov.br/pmgo/bitstream/123456789/414/10/Apostila%20%
20Preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20Repress%C3%A3o%20%C3%A0s%20Drogas%20e%
20a%20Viol%C3%AAncia.pdf. Acesso em: 17 jun. 2022

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O CRIMINAL PROFILING E SUAS METODOLOGIAS NO AUXÍLIO DA INVESTIGAÇÃO


CRIMINAL.

LETICIA CARNEIRO DA COSTA FERREIRA:


Graduanda em Direito pelo Centro
Universitário de Santa Fé do Sul - SP.

REGINA MARIA DE SOUZA210

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(orientadora)

RESUMO: Para que haja um melhor desempenho nas investigações criminais, muitas
técnicas estão sendo criadas, uma delas é conciliar a psicologia à área criminal, o que, por
meio das análises comportamentais dos criminosos, e informações a respeito do crime, cria
um perfil criminal, que serve como um instrumento para a investigação. O perfil adiciona a
investigação criminal algumas abordagens metodológicas, como Análise da Investigação
Criminal - CIA, Perfil Geográfico, Psicologia Investigativa e a Análise dos Vestígios
Comportamentais - AVC. Consequentemente, combinando essas metodologias se tem
uma ferramenta relevante para o processo investigativo. O artigo em questão possui a
finalidade de analisar a técnica de criminal profiling, definindo e exibindo seu
aproveitamento nas investigações no Brasil e no mundo. Como meios de pesquisa foram
utilizadas revisões bibliográficas do assunto proposto, em livros, sites e artigos acadêmicos,
resultando em informações que sustentam a relevância da utilização dessa técnica em
questão, assim como da junção da Psicologia ao Direito, a fim de trazer uma maior eficácia
para as investigações.

Palavras-chave: Investigação Criminal. Profiling Criminal. Técnica Forense.

ABSTRACT: To perform better in criminal investigations, many techniques are being


created, one of which is to reconcile psychology to the criminal area, which, through
behavioral analysis of criminals, and information about crime, creates a criminal profile,
which serves as an instrument for investigation. The profile adds to the criminal
investigation some methodological approaches, such as Criminal Investigation Analysis -
CIA, Geographic Profile, Investigative Psychology and Behavioral Traces Analysis - Stroke.
Consequently, combining these methodologies has a relevant tool for the investigative
process. The article in question has the purpose of analyzing the technique of criminal

210 Docente do Centro Universitário de Santa Fé do Sul – SP, UNIFUNEC, Economista-IEUF,


Psicóloga/UNIFUNEC, Mestre e Doutora-UNESP/FRANCA, especialista em: Direito de Família e das
Sucessões, Direito Penal, Direito Processual Civil/UNIARA, especialização em: Terapia Cognitiva
Comportamental/UNIARA e especialização em: Gestão de Pessoas/UCDB

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profiling, defining, and exhibiting its use in investigations in Brazil and worldwide. As means
of research, bibliographic reviews of the proposed subject were used, in books, websites
and academic articles, resulting in information that supports the relevance of the use of
this technique in question, as well as the combination of Psychology and Law, to bring
greater effectiveness to the investigations.

Keywords: Criminal Investigation. Criminal Profiling. Forensic Technician.


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SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2. CRIMINOLOGIA. 3 CIÊNCIAS FORENSES. 4 PSICOLOGIA


INVESTIGATIVA. 5 BREVE HISTÓRICO DO PERFIL CRIMINAL. 6 CRIMINAL PROFILING. 6.1
ELABORAÇÃO DE UM PERFIL CRIMINAL. 6.2 VALIDADE DO CRIMINAL PROFILING. 7
ANÁLISE DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. 7.1 VICAP - VIOLENT CRIMINAL APPREHENSION
PROGRAM. 8 PERFIL GEOGRÁFICO. 9 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS COMPORTAMENTAIS. 9.1
COMPORTAMENTO CRIMINAL ORGANIZADO E COMPORTAMENTO CRIMINAL
DESORGANIZADO. 9.1.1 COMPORTAMENTO CRIMINAL ORGANIZADO. 9.1.2
COMPORTAMENTO CRIMINAL DESORGANIZADO. 10 CASOS REAIS QUE TEVE AUXÍLIO
DOS PERFILS CRIMINAIS. 10.1 GEORGE METESKY, O MAD BOMBER. 10.2 TED BUNDY. 11 O
CRIMINAL PROFILING NO BRASIL. 12 O CRIMINAL PROFILING COMO PROVA PERICIAL DE
ACORDO COM A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. 13 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos sempre se viu a importância de esclarecer crimes hediondos,


com isso nasceu a necessidade de entender o comportamento desses criminosos. Para que
isso ocorra foi necessária a criação de algumas metodologias capazes de fornecer esse
entendimento, como é o caso do criminal profiling ou perfil criminal. Essa técnica se utiliza
alguns recursos da psicologia e criminologia, para distinguir as prováveis características
que um ou mais criminosos possam ter, utilizando a análise dos comportamentos deles
que são deixados na cena de crime.

Profiling é uma das técnicas de investigação criminal que tem seu fundamento na
Criminologia, nas Ciências Forenses, na Psiquiatria, e na Psicologia. O perfil é esboçado
através da interpretação dos conhecimentos sobre os padrões de comportamento do
criminoso marcando possíveis características do suspeito. Essa técnica tem o objetivo
ajudar os investigadores a avaliar as características de delinquentes desconhecidos que
cometeram crimes bárbaros, desenvolvendo a vitimologia, e preparando uma lista de
suspeitos.

Porém não são todos os crimes que essa técnica é adequada. Alguns critérios
devem ser observados, como o fato do ser crime violento ou não possuir nenhum vestígio
forense, ou ainda não serem conclusivos, ou quando os criminosos apresentarem alguma

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uma psicopatologia quando praticava o crime, ou ainda se todas as diversas pistas de


investigação que já foram analisadas se revelaram inconclusivas.

É possível o perfil fazer parte da investigação policial ou do processo judicial, ele


apenas precisa ser um registro autêntico da investigação alcançada para que possa ser
exibido em Tribunal. Porém ele não pode suprir um indício físico, mas pode ajudar a
compreender e a explicar dados da prova.

A ideia inicial do perfil é a de que todo comportamento revela traços da

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personalidade do criminoso, portanto é na cena de crime que esses comportamentos e
características se expressam. Com a análise da cena de crime, mais a caracterização que a
vítima faz do infrator, isso se for possível essa descrição, podem sugerir o tipo de pessoa
que cometeu o crime.

2. CRIMINOLOGIA

O termo Criminologia provém do latim crimino e do grego logos, logo tem o


significado de estudo do crime. A primeira vez que tal termo fora mencionado foi por Paul
Topinard em 1883, contudo, apenas tornou-se internacionalmente conhecido e utilizado
após Raffaele Garófalo telo aplicado como título de sua obra em 1885. Penteado Filho
(2019) conceitua a criminologia como ciência empírica, ou seja, ela tem por base a pesquisa
e a experiência, e interdisciplinaridade, buscando vislumbrar o delito de forma geral,
analisando o crime, a vítima, o criminoso e as consequências causadas pelo ato praticado
na sociedade, a cena do crime. Foi no final do século 19 que a criminologia passou a ser
conhecida como ciência autônoma.

A criminologia observa o crime de forma diferente do direito penal, pois para o


direito o crime é uma conduta atípica, para qual é necessária uma punição fixa. Ele classifica
o crime como conduta de ação ou omissão típica, antijurídica e culpável. Porém a
criminologia analisa o delito como um problema social, que envolve quatro recursos
constitutivos como: incidência massiva na população, ou seja, não se tipifica como crime
um fato isolado; a incidência aflitiva do fato praticado, isto é, quando crime tem que causar
sofrimento à vítima e à sociedade; a persistência espaço-temporal do fato delituoso, ou
melhor, é indispensável que o dolo ocorra regularmente por uma quantidade significativa
de tempo dentro do mesmo território; e o consenso inequívoco acerca de sua etiologia e
técnicas de intervenção eficazes, que quer dizer que a criminalização dos fatos depende
de uma observação meticulosa desses dados e sua repercussão na comunidade.
(PENTEADO FILHO, 2019)

Com os passar dos anos a criminologia sofreu algumas modificações, em especial


ao que diz respeito a seu objeto de estudo. Anteriormente, abordava-se somente o delito
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e o delinquente, todavia, seu objeto de estudo se ampliou após 1950, englobando também
o controle social e a vítima, estando na atualidade fracionada, contendo estes quatro
objetos de estudo.

3 CIÊNCIAS FORENSES

Para a consolidação da ordem jurídica, o Direito procurou ajuda de outras ciências


para oferecer confiança às provas e aos fatos que foram produzidas no processo. Por isso
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as Ciências Forenses são um conjunto de técnicas e conhecimentos práticos, teóricos e


científicos que têm como alvo principal dar embasamento técnico as decisões nos
tribunais.

Trata-se de um grupo de diversas áreas, como antropologia, criminologia,


entomologia, psicologia, odontologia e patologia, podendo ser entendida, de forma
simplificada, como as ciências naturais aplicadas ao exame dos vestígios, no intensão de
contestar às demandas judiciais (VELHO, GEISER E ESPINDOLA, 2013).

As ciências forenses, acabou se tornando uma ciência precisa com equipamentos e


técnicas especializadas, e conta sempre com cientistas qualificados.

4 PSICOLOGIA INVESTIGATIVA

A Psicologia Investigativa teve seu início por meio dos trabalhos de elaboração de
perfis criminais feitos pela Unidade de Ciência Comportamental do FBI. Todavia, sua origem
científica se deu por meio dos trabalhos do, até então considerado pai da Psicologia
Investigativa, o Psicólogo David Victor Canter em 1985. (NOVO, 2018)

O termo profiling surge dentro das atribuições da psicologia utilizadas nas


investigações de delitos. O profiling é um método de investigação criminal, que analisa e
determina hipóteses a respeito da personalidade e comportamento do criminoso. O
principal objetivo ao utilizar essa técnica é rumar as investigações, por meio das ciências
humanas, conectando os casos que possuam semelhantes características criminais,
definindo o perfil do infrator, por meio da análise do seu comportamento e da causa do
crime, podendo então estabelecer orientações para a área da criminologia.

Existe outra ramificação da Psicologia Investigativa utilizada para a elaboração de


hipóteses dos crimes que é o perfil criminal geográfico. Com ele se analisa os fatos mais
proeminentes que ocorreram no local do crime, oferecendo mais informações, podendo
até revelar o local onde ouve o preparo do criminoso para a prática delituosa.

5 BREVE HISTÓRICO DO PERFIL CRIMINAL

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Diferente de outras práticas forenses, como as impressões digitais ou o DNA, o Perfil


Criminal teve seu início na investigação de crimes singulares, anormais, que em geral
apontam um sujeito com uma conduta desviante, cujos as causas se apresentam padrões
atípicos da polícia judiciária e dos processos de investigação.

De acordo com Rodrigues (2010) o princípio do uso dos perfis criminais aconteceu
quando o Dr. Langer, que era psiquiatra, foi chamado pelo Office of Strategic Services (OSS)
para fazer um perfil de Adolph Hitler. Após conter os dados sobre Hitler, Langer
desenvolveu um perfil da personalidade psicodinâmica, enfatizando as decisões que Hitler

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pode ter tido, e que se mostrou ser muito preciso. Os perfis depois de ser utilizado na
Segunda Guerra Mundial, só foram documentados novamente em 1957, quando o New
York City Police Department solicitou a James Brussels, que era psiquiatra, que os
ajudassem a descobrir quem era o “Mad Bomber”, culpado de mais de 30 explosões
criminosas no decorrer de 15 anos.

Para Soeiro (2009), os perfis criminais começaram a ser utilizado pelo FBI, em 1972,
como auxílio da Unidade de Ciência Comportamental (BSU- Behavioral Science Unit). O
professor da Academia do FBI, Howard Teten, criou os perfis para os agentes que estavam
investigando crimes. Após isso, a utilização dos perfis se iniciou formalmente. Porém só foi
depois de 1978 que o FBI definiu um Programa de Perfis Psicológicos (Psychological
Profiling Program).

Segundo Rodrigues (2010) o segundo maior avanço da história dos perfis ocorreu
em 1985, quando foi requerido ao Dr. David Canter, psicólogo da Universidade de Surrey,
na Inglaterra, que assessorasse a Polícia de Surrey, a Polícia Metropolitana de Londres e a
Polícia de Hertfordshire na investigação de uma sequência de 30 estupros e 02 homicídios.
Dr. Canter fez o perfil criminal do suspeito que foi chamado pela imprensa como o
estuprador da ferrovia. Dr. Canter desenvolveu um perfil incrivelmente preciso e demostrou
ser bastante útil na captura do estuprador-homicida John Duffy.

Alguns dados atuais apontam que a técnica dos perfis criminais é aplicada pelo FBI
em mais de mil casos por ano. A polícia do Reino Unido também associaram a técnica dos
perfis criminais nas suas investigações com mais frequência. (PENTEADO FILHO, 2019)

Embora não tenha um cálculo exato da predominância da técnica de Perfis


Criminais, a sua utilização tem sido documentada em vários países, incluindo a Alemanha,
Austrália, Canadá, Finlândia, Holanda, Japão, Portugal e Suécia.

6 CRIMINAL PROFILING

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O criminal profiling é empregado ainda que não haja traços físicos deixados na cena
de crime, e nas últimas fases da investigação. É utilizado para diminuir a lista de suspeitos.

O Perfil criminal não deve ser comparado perfil feito pelos psicológico, que diz
respeito ao diagnóstico de um paciente. De modo diferente deste perfil, o Perfil criminal
não lida com um paciente e sim, com a análise de um crime para interpretar os indícios
comportamentais e deles gerar uma descrição, que não seja a apenas psicológica, de um
sujeito suscetível de apresentar essas condutas e será provável que tenha realizado o crime
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em questão.

De acordo Heusi (2016) a técnica de perfilamento envolve uma análise dos traços,
comportamento, características físicas, todas as ações que o criminoso comete, antes,
durante e depois do crime. Também acrescenta informações sobre a possível idade, o
gênero, a raça, a profissão, o passado criminoso, os passos dados pelo transgressor para
evitar a sua detecção, os métodos de assassinato do criminoso, essas informações da
vítima.

De acordo com Ebisik (2008) existe duas formas atuante no criminal profiling:

a) Modus operandi (M.O) é a ideia de que um indivíduo comete


uma espécie particular de crime de maneira peculiar ou similar.
Assim, o M.O é capaz de mostrar pistas do criminoso e as
descrições da cena do crime podem mostrar a personalidade
dele.
b) Comportamento: o comportamento do criminoso auxilia a
prever a personalidade ou os motivos do crime.

Penteado Filho (2019, p. 49) diz que:

Por meio do profiling estrutura-se a autópsia psicológica do autor de


um delito, com o fim de obter respostas a três questões principais:

c) O que se passou na cena do crime?


d) Por quais razões os fatos se deram?
e) Que tipo de indivíduo está envolvido?

Dessa forma, pode-se dizer que o criminal profiling é a junção virtual de um perfil
psicológico, físico, social, tipológico e geográfico do sujeito não identificado, apto de ter
realizado um ou mais crimes, e poderá também ser revelado sua área de atuação.

6.1 Elaboração de um Perfil Criminal

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O perfil criminal tem como seu principal objetivo o apoio à investigação policial,
utilizando sempre como parâmetro as ciências humanas e as ciências criminais auxiliares,
que serão utilizados para descobrir crimes análogos que abranjam as mesmas informações
e características, fornecendo dados que auxiliam na investigação de crimes violentos e
aparentemente insolúveis.

Segundo Penteado Filho (2019, p. 49):

“A técnica ou arte de elaboração de um perfil criminal, tendo em conta

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os objetivos tradicionais associados, pretende responder às cinco
questões nucleares da investigação criminal:

a) Quem cometeu o crime?


b) Quando cometeu o crime?
c) Como foi executado o crime?
d) Qual a motivação que está na base deste(s) comportamento(s)?
e) Onde foi cometido o crime?”

Silva e Gracioli (2016) diz que o profiling é usado sobretudo nos casos de crimes
violentos podendo eles ser sequenciais ou não, evidentes, sem motivação aparente, e não
elucidados.

O criminal profiling pode ser empregado nos casos de homicídio que pode ser em
serial ou não, ou em qualquer crime disposto na lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei
de Crimes Hediondos), além de quaisquer crimes que deixem vestígios, sejam eles
comportamentais ou físicos.

“Na elaboração de perfis, cada investigação de crime inicia-se com um meticuloso


estudo dos laudos necroscópicos, com o tempo provável da morte e sua causa; a descrição
das lesões sofridas pela vítima, incluindo as de defesa; eventuais vestígios de violência
sexual etc. Em seguida, verifica-se pormenorizadamente o relatório preliminar de
investigação e a recognição visuográfica do local de crime, com a descrição da cena do
crime, posição do corpo, localização de objetos, armas, projéteis, manchas de sangue,
esperma, urina, fezes etc.; se há indícios de luta; se há janelas e portas abertas ou fechadas
ou danificadas (local interno); se há pegadas, marcas de pneus, trilhas etc. Caso haja algum
objeto subtraído, este pode ter sido levado como souvenir pelo agressor e, dependendo
do caso, ser sua própria assinatura.” (PENTEADO FILHO, 2019, p. 52)

Embora a elaboração de perfis não serve apenas para homicídios em série, é


principalmente nesses casos que os resultados se mostram mais eficiente.

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6.2 Validade do Criminal Profiling

Um dos maiores problemas a respeito à validade do profiling, é o fato de não existir


uma base científica suficiente que possa confirmar que é uma técnica válida de
investigação criminal. Porém, é plausível dizer que essa técnica ainda está em fase de
validação.

Embora em outros países o Criminal Profiling siga tendo ainda sua validade
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questionada, sua utilização em investigações tem sido comprovada, recomendada e


aprimorada. Já no Brasil, falta uma sólida cultura que entenda a importância desse trabalho
pericial.

7 ANÁLISE DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A análise de investigação criminal tem como base a revisão das evidências da cena
de crime, das vítimas e das testemunhas e é produzida tanto numa perspectiva
investigativa como numa perspectiva comportamental. Esta análise pode colaborar com
informações sobre o criminoso mostrando suas características e traços, como também
pode dar algumas indicações de investigação e estratégias de como proceder nas
entrevistas de testemunhas.

Burgess et al., (1992, p. 310 apud Turvey, 2012, p. 73) diz que “O FBI determina
análise de investigação criminal é um processo de investigação que identifica a grande
personalidade e as características comportamentais do infrator com base nos crimes que
ele ou ela tenham cometido”.

Como diz Toutin, (2002, apud Correia et al., 2007, p. 595): “Pode-se distinguir o
termo profiling Criminal do termo Análise Criminal, no sentido em que o primeiro se refere
a dimensão psicológica, psiquiátrica e psicanalítica do crime e do criminoso, enquanto o
segundo diz respeito às sugestões e conselhos de investigação.”

O profiling criminal nada mais é que um exame do crime, que explica os


comportamentos que ficaram evidentes no quando o crime foi cometido. Porém é na
análise criminal dos comportamentos que surge a descrição do indivíduo suscetível de os
ter cometido.

Segundo Correia et al., (2007, p. 596) a “Análise da Investigação Criminal (CIA) do


FBI resume os seus processos em quatro fases: assimilação de dados; classificação do crime
com base em elementos convergentes acumulados; reconstituição do crime e a elaboração
do perfil criminal.”

Douglas e Burgess (1986, p. 2) sugere que:

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“O procedimento da análise de investigação criminal (CIA) envolve


sete etapas: avaliação do ato criminal; avaliação compreensiva das
características especifica da cena do crime; análise compreensiva da
vitimologia; avaliação dos relatórios policiais preliminares; avaliação
do relatório da autópsia e das perícias forenses; elaboração de um
perfil com as características mais críticas do ofensor e por fim
sugestões para a investigação com base na elaboração do perfil.”

Apesar desse método de não admitir uma identificação rápida do ofensor, ele

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atende as principais necessidades para orientar a investigação criminal, pois com ele se
consegue expor as principais características do criminoso através de suas ações.

7.1 VICAP - Violent Criminal Apprehension Program

Por causa dos perfis o FBI desenvolveu um programa com bases metodológicas que
facilita aplicação dos profiling, e que pode ser utilizada por todos os policiais e agentes em
todo o território dos EUA. Segundo Soeiro (2009), este programa sugere uma mudança em
alguns aspectos da aplicação dos Perfis Criminais, criando assim uma base de dados
totalmente informatizada, o Violent Criminal Apprehension Program (Programa de
apreensão de Criminosos Violentos), ou VICAP, traz com sigo algumas facilidades, como o
caso de que os policiais podem as verificar as informações contidas nele sempre que for
necessário.

Este programa foi projetado pela BSU, a Unidade de Ciência Comportamental do


FBI, e ele une dados recolhidos de casos que foram resolvidos pela polícia que permite que
sejam comparados estatisticamente com crimes violentos que não foram resolvidos
(KOCSIS, et al. 2000).

O uso desse programa, que foi destinada para a Análise de Investigação Criminal,
admite a criação de hipóteses sobre o ofensor, sobre as características da personalidade,
particularidades pessoais e desenvolvimento do comportamento criminal, assim, em casos
que há uma grande complexidade, simplifica a investigação criminal deixando-a mais
organizada.

8 PERFIL GEOGRÁFICO

O perfil geográfico ou geoprofiling tem como intuito a estruturação de um perfil


geográfico, assim ao utilizar as localizações dos crimes como homicídios e estupros em
serie poderia determinar uma provável área de atuação do criminoso, sendo
representado por mapa.

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De acordo com Rossmo e Velarde (2008), o crime não acontece de forma eventual
e têm padrões espaciais que conjeturam a personalidade e a vida do agressor. Konvalina
–Simas, (2014. p. 79) diz “quando um indivíduo comete uma série de crimes deixa
informações acerca do seu mapa mental, o que, por sua vez, permite deduzir informações
acerca do agressor”.

A ideia dos estudos científicos do geoprofiling teve seu início através da


Criminologia Ambiental, que tem como maior preocupação saber quando e onde
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acontecerá o crime.

De acordo com Carter e Larkin (1993) o caminho que o criminoso percorre possui
uma certa ligação com o tipo de delito cometido, sem contar que eles se sentem mais
confortáveis e no controle da situação se estiverem em uma área por eles conhecida.

Segundo Rossmo e Velarde (2008), as localizações dos crimes não são distribuídas
por acaso, e estes locais recebem influências das características do ambiente e do seu
espaço físico.

De acordo com Canter e Larkin (1993) o profiling geográfico possui dois tipos de
extensão: a primeira, descrita como alcance residencial, ou seja, o local onde o criminoso
habita e é conservado pelo elevado risco de ser apanhado ou reconhecido, por isso nessa
área não o criminoso não comete crimes, se calcula que aproximadamente, oitocentos
metros em torno da residência; já a segunda extensão é descrita como alcance criminal,
que é a abrangência da área que acontecem os crimes.

Ainda segundo Canter e Larkin (1993) existem dois padrões comportamentais


diferentes na área do alcance criminal, são chamados de Maraude que é o mais comum
e Commuters. Os padrões Maraudes são os criminosos que têm suas “rotas de conforto”
como ir para o trabalho, ou passear no shopping, visitar um amigo. O crime acontece
durante rota até essas localizações e as com isso as ruas entre elas acabam se
configurando como “zona de conforto”, por isso aplica o princípio da familiaridade, ou
seja, por terem o conhecimento da área os criminosos acabam se sentindo confortáveis
para escolher seus alvos, configurando o Alcance Criminal do Marauder. Ainda de acordo
com Canter e Larkin (1993), os crimes geralmente ocorrem ao máximo de 3 km de suas
residências. Outra probabilidade, pode ser o desenvolvimento do
criminoso Marauder, que, depois cometer vários crimes pertos a sua casa, a área estaria
“suja”, de tal modo aumentando o risco de ser apanhado pela polícia e a distância seria
uma saída.

Já os Commuters não utilizam apenas a “rota de conforto”, eles se distanciam e


viajam para longe das suas localizações presentes no seu cotidiano. Para Meaney (2004), a

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origem da distância trilhada pode ser devido à falta de alvos perto de casa ou a descoberta
de vítimas mais interessantes em outra região.

Por não abranger o perfil psicológico do criminoso ou provas comportamentais, o


perfil geográfico é elaborado através de programas específicos de computador. Esse é
um ponto que este procedimento falha, pois existem algumas percepções e análises que
somente o conhecimento humano pode refutar. Em todo caso, o entendimento dos
padrões geográficos dos agressores pode contribuir para gerar a uma área provável que
a residência do ofensor se localiza e assim ajudar em casos de difícil solução.

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9 ANÁLISE DOS VESTÍGIOS COMPORTAMENTAIS

A metodologia da Análise dos Vestígios Comportamentais (AVC) estuda a partir de


fatos empíricos todos os sinais comportamentais que têm a capacidade de ser
evidenciados. Após uma análise minuciosa, os vestígios são encontrados a partir de todas
as evidências sejam elas físicas, testemunhais ou documentadas que estejam relacionadas
ao crime.

Segundo Paulino (2013) o perfil criminal se aproveita dos resultados das AVCs que
foram descobertos para produzir padrões comportamentais a fim de sugerir características
do suspeito.

De acordo com Turvey (2012) é com suporte de três fontes de dados que são feitas
as análises para conclusão dos casos sem a necessidade de ideias pré-concebidas do
suspeito. A primeira fonte é exame forense que nada mais é que a averiguação e
interpretação de evidências físicas relacionadas ao crime; é onde o profiler inicia o seu
trabalho de produzir os vestígios comportamentais. A segunda fonte é a vitimologia mede
as características da vítima, o grau de risco e a exposição ao risco para poder identificar
características do suspeito, como sua motivação e o grau de risco que ele se colocou
quando cometeu o crime. A última fonte é a análise do crime, que nada mais é, que todo
o processo de investigação e sobre o tipo de crime atentado, os seus procedimentos e suas
características do local do crime, assim como a análise da vitimologia e dos exames
forenses que se conectam ao final para a construção do perfil.

É necessária uma análise profunda e criteriosa das pistas comportamentais para que
seja feita um a conclusão de um perfil criminal com resultado confiável e completo.

9.1 Comportamento Criminal Organizado e Comportamento Criminal


Desorganizado

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O estudo do comportamento é de estrema importância, pois se consegue identificar


características relevante do criminoso. Existe dois grupos de comportamento distintos que
se pode classificar os ofensores, são eles, o comportamento organizado e o desorganizado.
De acordo com Turvey (2012), o comportamento organizado e desorganizado tem como
teoria uma hipótese bem simples, pois em um local de crime desordenada, confusa ou
caótica, com várias evidências físicas, pode indicar um criminoso desorganizado, porém
um local de crime sem ou com pouca evidência, e que não parece ou é menos confusa,
pode indicar um criminoso organizado.
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Segundo Douglas et al. (1992, apud Canter, et al, 2004) existe uma terceira categoria,
que seria o Agressor Misto, uma mistura de organizado e desorganizado, pois existe
algumas razões para os que os criminosos não sejam facilmente discriminados como
organizado ou desorganizado, já que o crime pode ter mais de um autor, ou pode aparecer
alguns imprevistos que o autor do crime não tenha planejado como no caso de a vítima
resistir, ou ainda o ofensor pode alcançar um diferente resultado durante seu delito.

A tendencia é que o agressor misto com o tempo se torne mais organizado ou


desorganizado.

9.1.1 Comportamento Criminal Organizado

As análises de cenas de crime onde um comportamento criminal organizado


aparece, mostra que o ofensor possui uma personalidade com igual características, ou seja,
são criminosos que praticam o delito de forma cautelosa, que premeditam o crime,
deixando assim menos vestígios, sem contar que geralmente escolhem vítimas
desconhecidas.

De acordo com Soeiro (2009), os criminosos matam, ao que parece, sempre depois
que passam por algo estressante, como um relacionamento amoroso fracassado,
problemas financeiros, ou problemas no local de trabalho. As ações destes sempre
espelham um nível alto de planejamento e controle. Por isso a cena do crime vai refletir,
uma abordagem sistemática e metódica.

O criminoso organizado possui como característica ser qualificado socialmente, e


consegue lidar muito bem com situações interpessoais. Segundo Canter et al. (2004) os
criminosos organizados são mais predispostos a conversar com a vítima antes de cometer
o crime.

Uma cena de crime cometida por criminoso organizado, nem sempre vai ser oculta,
pois muitas vezes o ofensor planeja a descoberta apenas para que fique implícito seu
controle. Porém toda cena de crime não oculta tem sempre um sentido de organização,
para que o autor do crime não seja descoberto. De acordo com Girod (2004, p. 33) “o

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ofensor toma precauções contra a sua própria descoberta. Poucas, se algumas, armas ou
impressões digitais são encontradas. O crime aparenta ser deliberado, calculado e pré-
planejado”.

Um criminoso organizado é tão ou mais perigoso do que um criminoso


desorganizado, já que pela premeditação do crime, os vestígios encontrados são
puramente calculados pelo autor, fazendo com que seja dificultada sua captura.

9.1.2 Comportamento Criminal Desorganizado

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Diferente do comportamento organizado, o criminoso que possui o comportamento
criminal desorganizado, indica que possui uma menor capacidade cognitiva, e demostram
a falta de planejamento na forma de organizarem e praticarem o crime, muitas vezes
fazendo o delito de forma espontânea e improvisada.

Segundo Douglas et al. (1992, apud Canter, et al, 2004), o criminoso provavelmente
estará bem próximo da cena do crime. A falta de planejamento durante todo o crime, seja
antes, durante ou após, será repetida no estado caótico do delito cometido e da cena do
crime. Por não ter um relacionamento social saudável e normal, pode aumentar a
possibilidade de ignorância sexual, fazendo assim como componente dos atos homicidas,
o aumento do grau de perversões sexuais ou disfunções.

A cena do crime considerada desorganizada sugere que o delito foi praticado de


forma improvisada, ou seja, o crime foi de repente, sem planejamento e principalmente
sem uma tentativa de evitar a prisão. De acordo com Girod, (2004, p. 33 e 34) “A arma está
constantemente presente na cena. Não houve nenhuma tentativa de ocultar o corpo. Há
frequentemente uma grande quantidade de provas para usar na investigação”.

Portanto, quando se fala em comportamento criminal organizado sempre irá se


averiguar se o criminoso tentou dificultar a investigação, coisa que com o comportamento
criminal desorganizado não irá acontecer, pois este é socialmente imaturo, desempregado,
desleixado com sua aparência e suas atitudes, e principalmente não se preocupa se as
vítimas são conhecidas ou não. Criminosos considerados psicopatas estão propensos a
pertencer ao grupo dos organizados, já os criminosos considerados psicóticos tendem a
pertencer ao grupo dos desorganizados.

10 CASOS REAIS QUE TEVE AUXÍLIO DOS PERFILS CRIMINAIS.

10.1 George Metesky, o Mad Bomber

George Metesky, o Mad Bomber de Nova York, foi culpado por implantar mais de
30 bombas caseiras na cidade de Nova York durante por 15 anos.
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As bombas de Metesky causavam danos as propriedades, porém também feriu e


matou algumas pessoas que estavam perto quando a bomba era detonada. (MEDEIROS,
2018).

O psiquiatra James Brussel desenvolveu o perfil criminal de um homem que


estivesse entre 40 e 50 anos, fosse solteiro e católico, robusto fisicamente e que tivesse
nascido fora do país. Ainda descreveu que o suspeito moraria com um irmão ou irmã e
seria um descontente empregado ou um ex-empregado da Consolidated Edison, a
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companhia de energia elétrica que teve sua sede como palco para o primeiro atentado da
cidade. Além disso, o homem teria paranoia progressiva, sem contar que seria uma pessoa
introvertida, porém não seria antissocial, seria hábil como mecânico, além de astuto e
habilidoso com ferramentas. O suspeito deveria demonstrar um desprezo por outras
pessoas e um ressentimento disfarçado com relação a críticas sobre seu trabalho, e não
seria interessado em mulheres, sem contar que teria uma educação que correspondesse
ao ensino médio. Por fim, o suspeito sempre usaria um terno com uma fileira dupla de
botões, e totalmente abotoado (VIANA, 2016).

Metesky foi preso em janeiro de 1957, onde confessou o crime. Ele foi condenado a
25 anos de prisão, onde cumpriu apenas 2/3, e mandando para uma clínica psiquiátrica.
Porém foi liberado em 1973. Ele morreu em 1994, em casa, aos 90 anos.

10.2 Ted Bundy

Ted Bundy foi um dos assassinos em series mais conhecido, seu método de atrair
universitárias até o carro fingindo ser deficiente físico, para estuprá-las e depois matá-
las, foi descoberto por dois especialistas do FBI que estudaram seus padrões
comportamentais, ou seja, como agia, tanto escolhendo suas vítimas, tanto como as
atraía e as matava. (MEDEIROS, 2018).

Ted Bundy, possuía transtorno de personalidade narcisista, era ambicioso, se


imaginava sempre no topo, não suportava a rejeição, possuía dificuldades em lidar com as
críticas, se via superior, e sempre acima das regras, e tendo os outros como fracos e
inferiores. Possuía uma necessidade de admiração e falta de empatia, além de atitudes
arrogantes e insolentes. (SILVA, 2014).

Ted Bundy, foi preso em 1978 e sentenciado a execução por cadeira elétrica. Ele
confessou 30 mortes, porém as autoridades acreditam que ele possa ter matado muito
mais. Ele foi executado em 1989.

11 O CRIMINAL PROFILING NO BRASIL

No Brasil, quando se fala em perfil criminal, poucas são as referências que se


encontra. Mesmo que a mídia aborde o tema, por aqui isso ainda é muito escasso. São
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poucos os profissionais que possuem qualificação para atuar como profiler. Além disso a
literatura a respeito do tema é quase inexistente em português, fazendo com que as
referências sempre venham de outros países, principalmente dos EUA.

De acordo com Penteado Filho (2019) a Academia de Polícia de São Paulo, começou
a ter conversas com o FBI a respeito de implementar um projeto de perfilamento criminal,
em 2007, porém o projeto não foi para a frente por conta do descaso e ignorância sobre o
assunto das autoridades governamentais. Em 2011 a Academia voltou ao projeto, criando
a disciplina Perfilamento Criminal, que se tornou obrigatória na formação de novos

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policiais civis em 2012; e elaborou um curso de aperfeiçoamento em perfis criminais que
era designado para policiais veteranos, assim como criou de um Programa de Pós-
graduação lato sensu em Perfilamento Criminal. Em contrapartida, também começou uma
cooperação com FBI, onde consistia em realizar um curso sobre perfis criminais, fornecidos
pelos norte-americanos. Porém em julho de 2015, o projeto foi abandonado.

A Polícia Civil de Goiás (2021) possui um projeto em andamento para pôr em pratica
a Unidade de Ciências Comportamentais, Análise e Observação de Suspeitos (UCCAOS),
onde visa estudar as evidências psicológicas e os vestígios comportamentais do criminoso
que se que se transmite na forma de cometer os crimes.

No Brasil ainda possui o CECCRIM - Centro de Estudos do Comportamento


Criminal, que é uma instituição envolvida na capacitação e pesquisas sobre o tema
violência, onde oferece cursos para a polícia civil, as forças armadas, para profissionais que
trabalham em presídio, estudantes em universidades, a secretarias de estado e ainda da
assessoria no sistema prisional e na cena de crime. (CECCRIM, 2022). O centro tem atuado
em várias consultorias auxiliando na criação de perfis criminais, incluindo dos
narcotraficantes Fernandinho Beira-mar e Carlos Abadia.

Apesar de haver uma instituição e um projeto para criação de perfis em um estado


do país, percebe-se que o Brasil possui problemas quando se trata das ciências jurídicas
criminais e sociais pela falta de conhecimento e de desenvolvimento da matéria. Com isso
percebe, que essa carência em relação ao perfil criminal vem do não investimento por parte
do Estado.

12 O CRIMINAL PROFILING COMO PROVA PERICIAL DE ACORDO COM A


LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

A elaboração de um Perfil Criminal tem como base as Ciências Humanas e


Comportamentais. Sendo uma técnica de investigação evolutiva, ela é de extrema
importância para processo penal. Apesar no Brasil existir uma polícia judiciaria bem-

283
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intencionada, na maioria dos casos, por deficiência material e técnica, várias investigações
acabam não tendo uma resolução.

Apesar de ser muito pouco utilizado para auxiliar algumas investigações em


território nacional, o Perfil Criminal não possui nenhuma restrição que o impeça de utilizar
os resultados da técnica como prova no processo. Porém, fica a cargo do Juiz admitir o
perfil como prova. Esta que pode ajudar na fixação da pena base. De acordo com art. 59
do CP “o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
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personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem


como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente
para reprovação e prevenção do crime.” Como foi dito anteriormente o perfilamento
criminal da a resposta a basicamente todos os itens listados no artigo, e não tendo os
dados no inquérito ou no processo a sentença condenatória poderá não espelhar a
realidade do fato.

Assim, percebe-se a importância dos perfis para o Direito Penal e Processual Penal,
já que o Juiz precisa que as considerações dos investigadores a respeito do
comportamento do criminoso sejam incisivas, colaborando para uma aplicabilidade da lei
mais junta.

13 CONCLUSÃO

O criminal profiling e suas metodologias foi e continua sendo um instrumento


importante na resolução de crimes violentos, com isso proporciona o descobrimento da
autoria dos atos ilícitos, evitando assim mais crimes sejam cometidos. Além de ser uma
área que engloba vários aspectos da investigação é de estrema importância para o
Judiciário durante julgamentos e na parte pré processual.

O criminal profiling já é empregado para auxiliar algumas investigações em solo


nacional. Sob o apoio da CF de 88 e do CPP brasileiro não há exceções categóricas que
previnam a utilização dos resultados da técnica como prova no processo. Portanto fica
encarregado ao magistrado a admissibilidade do perfil como prova, pois esta não é
disciplinado pela lei.

Com isso se percebe que a descrição do processo investigativo é essencial para a


compreensão do delito, porque não é permitido olhar somente uma parte do crime, ou a
cena, a vítima ou o criminoso, é necessário reunir todas as informações para que o quebra-
cabeça consiga ser juntado de forma completa.

O estudo do perfil criminal e suas metodologias seria interessante no Brasil, uma


vez que poderia começar uma discussão sobre as questões sociais e ambientais que são
capazes de diferenciar os crimes por localização ou auxiliar a provar os padrões

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comportamentais já criados. O criminal profiling é a chance de o direito penal brasileiro


adotar modelos mais experimentais em suas investigações criminais, permitindo assim a
criação de normas legais que possam ajudar a combater a criminalidade com maior
sucesso.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E LEGITIMIDADE – O NASCEDOURO DO


ATIVISMO

NADINE LANG DA SILVA.


Graduada pela Universidade
Regional do Noroeste do Rio
Grande do Sul.
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Resumo: O presente artigo trata sobre a interpretação constitucional na modernidade,


considerando o debate sobre a legitimidade e os sujeitos ativos da atividade interpretativa,
realizado a partir de assuntos atuais e calorosos que trouxeram novos direitos e obrigações,
bem como novas formas de encarar os problemas e soluções sociais. Analisa-se a parte
introdutória do estudo interpretativo, as origens e princípios que permeiam a temática,
seguido sobre o debate a respeito da legitimidade e os intérpretes da constituição,
notadamente aqueles que sentem na prática a influência normativa. Posteriormente,
abarca-se a interpretação jurídica diante dos novos direitos, abordando de que forma as
técnicas interpretativas acabaram por originar o ativismo judicial e o ativismo congressual.
O presente trabalho tem caráter descritivo e explicativo, utilizando como instrumento a
pesquisa exploratória, com emprego de dados disponíveis em fontes bibliográficas físicas
e eletrônicas. Ao final, seguem as considerações finais e as referências bibliográficas.

Palavras-chave: Interpretação jurídica. Intérprete. Diálogo. Ativismo.

Abstract: This article deals with constitutional interpretation in modernity, considering the
debate on the legitimacy and active subjects of the interpretive activity, carried out from
current and warm issues that brought new rights and obligations, as well as new ways of
facing problems and solutions. social. The introductory part of the interpretive study is
analyzed, the origins and principles that permeate the theme, followed by the debate about
the legitimacy and the interpreters of the constitution, notably those who feel the
normative influence in practice. Subsequently, the legal interpretation in the face of new
rights is covered, addressing how interpretive techniques ended up giving rise to judicial
activism and congressional activism. The present work has a descriptive and explanatory
character, using exploratory research as an instrument, using data available in physical and
electronic bibliographic sources. At the end, the final considerations and the bibliographic
references follow.

Keywords: Legal interpretation. Interpreter. Dialogue. Activism.

Sumário: Introdução. 1. Princípios orientadores da interpretação jurídica. 2. O debate da


legitimidade. 3. Influência da interpretação e novos valores jurídicos. 4. O papel do ativismo
judicial e ativismo congressual. Considerações Finais

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Introdução

Com a escalada do progresso tecnológico e da globalização, novos direitos e novos


valores se avizinham. Da interpretação, assim, exige-se muito mais do que mera atribuição
de significado para as palavras, englobando também a troca de experiências, a criação de
novas técnicas, um diálogo inclusivo e um discurso fundamentado e legitimado.

Um mundo multi-informado traz muitos desafios na busca de uma sociedade livre,


justa e igualitária, notadamente quando a interpretação destes termos pode ter origem e

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destino distintos, dependendo de diversos fatores determinantes e mutáveis, uma vez que
o arquétipo de assuntos sensíveis ao corpo social vem ficando cada vez mais plural e
complexo.

Igualmente, o Direito precisou mudar e se adaptar, criar sistemas, portais e sites.


Tutelar direitos antes inimagináveis, como, por exemplo, a recente Lei Geral de Proteção
de Dados. E com isso, a interpretação jurídica também mudou, pois agora ela é pública,
notória, reconhecível e onipresente. Um texto pode ser interpretado de uma ou outra
maneira, talvez não pela maneira original, mas é certo que pode atingir pessoas,
comunidades ou sociedades de formas diversas.

Ainda, quando grandes temas envolvem decisões do Poder Legislativo, Executivo ou


Judiciário, é tudo questionável, pois a sociedade, diante de portais de transparência, de
noticiários 24 horas e de redes sociais, passa a exigir e, sobretudo, questionar a
legitimidade dos Poderes para uma ou outra decisão.

Este trabalho tem como problema a análise central da interpretação jurídica diante
das diversas e multifacetadas demandas modernas, tendo por norte as técnicas
interpretativas como método fundante de soluções legislativas e judiciais. Diante desse
problema, a hipótese parece ser complexa, multitarefada e, como tal, social, sendo que
analisar as diversas formas de interpretação jurídica frente a diversidade de demandas
modernas, passa a ser uma tarefa essencial, difícil em sua consecução, legitimidade e
aceitação.

1. Princípios orientadores da interpretação jurídica

A interpretação jurídica é ferramenta elementar, inicial, instrumental e de


aplicabilidade de qualquer ordenamento jurídico, notadamente diante de um democrático
estado formado por uma nação de proporções étnicas e geográficas continentais. Mas,
muito antes disso, a interpretação é onipresente ao longo dos séculos, revelando os valores
e objetivos de determinada sociedade no espaço e no tempo.

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Toda interpretação é produto de uma época, de uma conjuntura que


abrange os fatos, as circunstâncias do intérprete, e, evidentemente, o
imaginário de cada um. Ao longo dos séculos, o homem tem
recorrido à mitologia, ao sobrenatural, ao panteísmo, à fé monoteísta
e de diversos credos e à obsessão do racionalismo (BARROSO, Luis
Roberto, 1996, p. 1).

A atividade interpretativa está presente em todos os âmbitos, não sendo, contudo,


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estanque. É mutável tal qual a sociedade. Também é adaptável, flexível e sensível.

Como qualquer instituto jurídico, mas muito mais que isso, a interpretação jurídica
é compreendida ao redor de alguns princípios, que auxiliam na construção de respostas, e
também de (re) perguntas.

O catálogo de princípios atualmente conhecido foi originalmente proposto por


Konrad Hesse e, posteriormente, difundido e ajustado por José Joaquim Gomes Canotilho
(SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel, 2017, p. 282).

Primeiramente, o princípio da unicidade revela um caráter uno na norma


fundamental, de forma que ela represente a partida e a chegada da interpretação, não
deixando margens para ser entendida em partes. Nesse sentido:

O princípio da unidade da constituição implica que no âmbito da


interpretação constitucional cada norma constitucional deve ser
interpretada e aplicada de modo a considerar a circunstância de que
a constituição representa uma unidade, um todo indivisível. 546
Como bem disse Eros Roberto Grau, trata-se de levar a sério a noção
de que a constituição (o que se aplica ao direito em geral) não pode
ser pura e simplesmente lida em tiras, aos pedaços isolados (SARLET,
MARINONI, MITIDIERO, 2017, p. 282).

Já o princípio do efeito integrador, tem relação com o acima descrito, pois orienta
um entendimento de pertencimento, de forma que a resposta deve ser encontrada pelo
exercício da integração política e social.

O princípio do efeito integrador tem uma ligação estrita com o da


unidade da constituição, por justamente significar a primazia da
integração política e social como critério fundamental na resolução
dos problemas jurídico-constitucionais, o que, posto de outro modo,
implica que se deve dar preferência aos critérios ou pontos de vista
que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade
política (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2017, p. 283).

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O princípio da máxima efetividade, como a própria designação literal, alude ao


sentido de se dar a maior efetividade social possível. Pedro Lenza (2020, p. 134), citando
Canotilho, afirma: “é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas
constitucionais”.

A força normativa da constituição, termo amplamente cunhado, é extraída do


princípio da justeza/conformidade funcional. Isso porque o intérprete não pode chegar a
um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório funcional que foi
estabelecido constitucionalmente, pois em momentos de crise deve prevalecer a fidelidade

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e adequação à norma fundamental (LENZA, 2020, pg. 135).

Sobre o princípio da concordância prática ou harmonização:

Partindo da ideia de unidade da Constituição, os bens jurídicos


constitucionalizados deverão coexistir de forma harmônica na
hipótese de eventual conflito ou concorrência entre eles, buscando,
assim, evitar o sacrifício (total) de um princípio em relação a outro em
choque. O fundamento da ideia de concordância decorre da
inexistência de hierarquia entre os princípios (LENZA, 2020, pg.135).

Como a essência da interpretação é dar sentido às normas, o princípio da


interpretação conforme a Constituição extrai de normas plurissignificativas ou polissêmicas
um resultado que se aproxime da Constituição, sendo implementada pelo judiciário,
quando instado, considerando-se as dimensões da prevalência da constituição, da
conservação das normas, exclusão da interpretação contra legem, existência de espaço de
interpretação, rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais e a impossibilidade
do intérprete atuar como legislador positivo. (LENZA, 2020, pg. 135/136).

Por derradeiro, na presente análise, o princípio da proporcionalidade ou


razoabilidade, que reflete uma importância extrema, notadamente em situações de colisão
entre valores constitucionalizados (LENZA, 2020, pg. 136). Nesse sentido:

Com efeito, proporcionalidade e razoabilidade guardam uma forte


relação com as noções de justiça, equidade, isonomia,
moderação, prudência, além de traduzirem a ideia de que o Estado
de Direito é o Estado do não arbítrio. Por outro lado, apenas na
aplicação desses princípios (e critérios) é que se logra obter a
construção de seu significado, legitimação e alcance, pois a cada
situação solucionada amplia-se o âmbito de sua incidência.
Originário do direito administrativo prussiano, o princípio da
proporcionalidade (assim como, na tradição anglo-americana, a
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noção de razoabilidade = reasonableness), na sua forma inicial e até


hoje reconhecida (embora reconstruída ao longo do tempo), guarda
íntima vinculação com a ideia de um controle dos atos do Poder
Público, buscando precisamente coibir excessos de intervenção na
esfera dos direitos dos cidadãos, evoluindo, todavia, para servir
de critério de aferição também da legitimidade constitucional dos
atos legislativos e mesmo de decisões judiciais. Não é à toa, portanto,
que se fala em uma evolução da reserva legal para uma reserva de lei
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proporcional, no sentido de que o próprio legislador está vinculado


pelo dever de proporcionalidade e com base neste pode ser
controlado (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2017, p. 287).

Assim, a proporcionalidade, além de princípio instrumental interpretativo, é um meio


de coibir excessos, garante direitos fundamentais, bem como confere legitimidade aos atos
legislativos e decisões judiciais.

Por oportuno, é preciso destacar que a interpretação não é ilimitada e desnorteada.


É nesse contexto que a doutrina menciona o tema dos limites à interpretação
constitucional.

Não se pode desconhecer a realidade atual e inevitável de, muitas


vezes, criação judicial do direito, já que entre a declaração de
nulidade absoluta total da lei ou ato normativo e o não conhecimento
da ação, em termos de segurança, preferem-se as decisões
interpretativas com efeitos modificativos ou corretivos. Nesse
sentido, o texto constitucional apresenta-se como porto seguro para
os necessários limites da interpretação, destacando-se a
interpretação conforme a Constituição como verdadeira técnica de
decisão (LENZA, 2020, pg. 137).

Portanto, na interpretação judicial que propriamente cria a decisão, pois encontra


um resultado consubstanciado no sentido auferido, é preciso tomar por norte algumas
técnicas que, muito mais que princípios orientadores, vinculam sua a análise e limitam a
conclusão para que o judiciário não incorra em uma atividade absolutamente inventiva na
legislação.

Assim, os limites e o alcance da atuação dos poderes constituídos, em


especial no que concerne à posição do Poder Judiciário em relação
aos Poderes Legislativo e Executivo, devem ser determinados a partir
da noção de que o princípio da separação dos poderes implica uma
posição de deferência em relação aos demais órgãos estatais e, no
que diz com a postura adotada pelo Poder Judiciário, até mesmo uma

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espécie de autorrestrição, na linha do assim chamado judicial self


restraint praticado nos Estados Unidos da América (SARLET;
MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 294).

Essa observância da autorrestrição não significa reduzir competências judiciais,


mesmo porque o princípio da separação dos poderes vale especialmente para as relações
entre o legislador e a jurisdição constitucional, de modo que a esta incumbe apenas uma
função de controle da legislação (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 294).

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No ínterim da análise de interpretação constitucional à luz dos princípios como
normas, imperioso destacar a notável crítica ao “pamprincipiologismo” (Lenio Luiz Streck)
e a realidade de uma inegável “Supremocracia” (LENZA, 2020, pg. 142). Como um
argumento universal, cada vez mais se observa a banalização dos princípios, de forma que
tudo nasce e tudo se esvai em principiologia.

Lenza (2020, pg. 143), mencionando Daniel Sarmento, destaca que “no Estado
Democrático de Direito, não só os princípios, mas também as regras devem ser ‘levadas a
sério’, evitando-se a ‘anarquia metodológica’ e a ‘carnavalização’ da Constituição”. É que a
abertura para que todos os temas se tornem princípios, pode vir acoplada a um problema
de legitimidade, pois, na falta de leis, qualquer princípio serviria como base para qualquer
decisão.

Lenio Luiz Streck, sobre esse tema, em seu dicionário sobre hermenêutica jurídica,
argumenta de forma contundente:

Percebe-se, assim, uma proliferação de princípios, circunstância que


pode acarretar o enfraquecimento da autonomia do Direito (e da
força normativa da constituição), na medida em que parcela
considerável (desses “princípios”) é transformada em discursos com
pretensões de correção e, no limite, como no exemplo da
“afetividade”, um álibi para decisões que ultrapassam os próprios
limites semânticos do texto constitucional. O “pamprincipiologismo”
se transformou em um caminho perigoso para um retorno à
“completude” que caracterizou o velho positivismo novecentista, mas
que adentrou ao século XX, a partir da tese – simplista e mistificada –
de que na “ausência” de “leis apropriadas” (a aferição desse nível de
adequação é feita, evidentemente, pelo protagonismo judicial), o
intérprete “Deve” lançar mão dessa ampla principiologia, sendo que
na falta de um "princípio" aplicável, o próprio intérprete pode criá-lo
(2017, pg. 151).

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É preciso entender que, embora as importantes críticas, o ordenamento jurídico é


formado por regras e princípios, formando toda normatividade que gravita o Estado
Democrático de Direitos, e cada qual possui sua seara de aplicação. Não se pode, em
medida drástica, criar um princípio qualquer para fundamentar uma decisão, mas deve se
usar a importância dos preceitos principiológicos para cotejar os princípios e as regras em
uma aplicação harmônica, proporcional e adequada.

Um sistema harmônico de aplicação normativa é sem dúvida o caminho para


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soluções sociais, legítimas e adequadas, pois cada método usado de maneira fidedigna ao
seu arquétipo original, só pode redundar em aplicação congruente com o ordenamento. É
nesse sentido que a doutrina trabalha com a ideia de limite à interpretação:

As decisões, sem dúvida, devem encontrar sustentação na


Constituição, que, como afirmamos (item 3.7), deve ser o porto
seguro para os necessários limites da interpretação, evitando-se,
assim, os riscos de uma ditadura do Poder Judiciário. As regras devem
ser prestigiadas, mas, diante de colisão e impossibilidade de
convivência, os princípios deverão ser destacados (aliás, inimaginável
o sistema sem os princípios). As soluções devem ser com base
nos verdadeiros princípios, que encontram fundamento histórico na
luta por uma Constituição democrática (essa a grande dificuldade,
qual seja, a identificação desses princípios). Devem ser evitados os
pseudoprincípios, que serviram, muitas vezes, de álibis teóricos para
as decisões sem fundamentação firme (LENZA, 2020, pg. 143).

Citando Humberto Ávila, Lenza prossegue:

A solução proposta por Humberto Ávila, já lançada, mostra-se


bastante equilibrada. Conforme sustenta, a interpretação e a
aplicação de princípios e regras dar-se-ão com base nos postulados
normativos inespecíficos, quais sejam, a ponderação (atribuindo-se
pesos), a concordância prática e a proibição de excesso (garantindo
a manutenção de um mínimo de eficácia dos direitos fundamentais),
e específicos, destacando-se o postulado da igualdade, o da
razoabilidade e o da proporcionalidade (LENZA, 2020, pg. 143).

Com efeito, a atividade interpretativa exige técnica e experiência, e não é baseada


exclusivamente de modo automático decorrente da simples leitura. O exercício é
trabalhado com toda a existência do ordenamento, aplicando-se as regras quando
suficientes, incluindo a fundamentação principiológica quando necessário, sempre
atendendo aos fins almejados pelo ordenamento, em uma busca de significação fiel aos
valores constitucionais e democráticos.

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2. O debate da legitimidade

Indissociável do debate acerca da hermenêutica jurídica é a abordagem dos sujeitos


que realizam a comentada atividade, notadamente a influência do entendimento de Peter
Häberle quando da compreensão da sociedade aberta de intérpretes. Pedro Lenza (2020,
pg. 145) aborda de maneira cristalina a intenção da teoria hermenêutica:

Häberle observa que, dentro de um conceito mais amplo de


hermenêutica, “cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público

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e a opinião pública (...) representam forças produtivas de
interpretação (...); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato,
atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (...). Subsiste
sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece,
em geral, a última palavra sobre a interpretação (...). Se se quiser, tem-
se aqui uma democratização da interpretação constitucional”.

Esse aspecto de interpretação ampla reflete a pluralidade da sociedade em que a


interpretação é exercida. Assim, quanto mais pluralista ela for, mais aberto é o critério de
interpretação.

É certo que a interpretação, então, dá legitimidade à democracia, pois nada mais


legítimo e puro para um ambiente democrático do que o amplo debate no seio da
sociedade, e é nesse sentido que ganha importância as figuras do amicus curiae e as
audiências públicas, materializando-se a ideia de amplitude do discurso e debate
diversificado (LENZA, 2020, pg. 145).

Impende destacar que a teoria dos diálogos constitucionais ganha grande território
para discussão, visto que em um ordenamento jurídico lapidado na ideia de freios e
contrapesos, a troca de informações e o exercício da argumentação nas mais diversas
hipóteses de decisão, constroem o tipo de exercício democrático existente.

Assim, em importante conclusão, observa que “a interpretação do


sentido e do alcance das disposições constitucionais não pode ser
vista como apanágio exclusivo do Supremo Tribunal Federal, em uma
leitura anacrônica e arrogante do princípio da separação de poderes.
Ao revés, a interpretação constitucional passa por um processo de
construção coordenada entre os poderes estatais — Legislativo,
Executivo e Judiciário — e os diversos segmentos da sociedade civil
organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano,
em que cada um destes players contribui com suas capacidades
específicas no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da
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empreitada constitucional, sem se arvorar como intérprete único e


exclusivo da Carta da República e no aperfeiçoamento das
instituições democráticas” (fls. 28 do acórdão lavrado na ADI 5.105)
(LENZA, 2020, pg.76).

Assim, forçoso reconhecer que, a depender do intérprete e da sociedade em que


está inserida a resolução dada pela interpretação, alguns temas se tornam mais ou menos
sensíveis. A leitura de uma obra literária não exige a demonstração do porquê foi escolhido
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um caminho e não outro. E é justamente essa a essência da interpretação jurídica, pois,


além de exigir técnica, demanda um exercício de influência no corpo social. Portanto, a
solução prática conferida pelo intérprete à norma (sentido amplo) influencia a sociedade
de maneira contundente e perceptível.

Isto vai ao encontro da ideia de que atividade interpretativa deve passar por aqueles
que sentem a norma, que vivem no cotidiano as consequências práticas do arranjo
normativo democrático. Por tal razão, ampliar os legitimados no debate para além daqueles
formalmente institucionalizados é encontrar genuinamente a solução adequada para a
realidade social.

Härbele (1997, p.23) defende também que é própria da força


produtiva da interpretação, a opinião pública democrática e
pluralista, obtendo um importante papel, nesse processo, a mídia
(imprensa, rádio, televisão, etc..), e também os cidadãos, as
associações, os partidos políticos, igrejas, editoras, teatros, escolas,
dentre outros. A participação do indivíduo é potencialmente
integradora de todas as forças da comunidade política no processo,
em que a ampliação desse círculo de intérpretes decorre da
necessidade de integrar a realidade no processo interpretativo.
Neste o cidadão formula um recurso constitucional, ou seja,
atua como intérprete direito do texto da Lei Maior, já que essa
interpretação é uma atividade que, em geral, diz respeito a todos.(
CAMPOS, Ana Karina, 2017).

Dentro de uma sociedade cada vez mais pluralista e multifuncional e, ao mesmo


tempo, encantada pelas facilidades da tecnologia e pelo encurtamento do caminho entre
a informação e a transmissão, torna-se cada vez mais difícil legitimar decisões em um
Estado no qual os três poderes passam a se contrariar, tendo entendimentos divergentes e
conflitantes, colocando em xeque a confiança da população em relação às instituições
estabelecidas.

3. Influência da interpretação e novos valores jurídicos

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Pelo arranjo democrático existente é possível observar que o Legislativo cria a


norma, o Executivo a aplica, mas quando, sua aplicação ou criação não obedecem aos
ditames constitucionais e legais, o Poder Judiciário entra em cena.

Um dos maiores desafios a ser enfrentado é aquele decorrente da


dificuldade de se justificar e aceitar o modelo de revisão judicial pelo
qual se invalida a vontade do povo materializada no trabalho
legislativo fruto da atuação do parlamento. Este conhecido
fenômeno tem sido denominado pela doutrina clássica de

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“dificuldade contramajoritária” (ou seja, a palavra final na
interpretação sendo dada por juízes destituídos de legitimidade
democrática). Souza Neto e Sarmento, ao analisarem o modelo
constitucional dos Estados Unidos e também reconhecerem
a supremacia da Constituição como “um princípio jurídico
judicialmente tutelado” (Marbury vs. Madison) e não apenas uma
proclamação política, também destacam a tensão entre supremacia
judicial e “constitucionalismo popular” (LENZA, 2020, pg. 74)

Para acirrar ainda mais a questão, a sociedade experimenta uma explosão de novos
direitos, que claramente gravitam o discurso sensível de diversas searas, por vezes
envolvendo religião, orientação sexual, ambiente, capitalismo e tecnologia.

O debate ampliado acaba por polarizar uma sociedade naturalmente plural,


dividindo cidadãos que vivem em um mesmo território com os mesmos problemas sociais,
mas com diferentes fatores determinantes.

É certo que alguns valores jurídicos vêm se modificando ao longo dos anos, outros
se extinguindo, e muitos se criando. Isto se denota da própria natureza da sociedade e de
sua característica de constante evolução.

Avançando, por outro lado, modernamente, sobretudo em razão da


evidenciação de novos direitos e das transformações do Estado (de
autoritário/absolutista para liberal e de liberal para social, podendo-
se, inclusive, falar em Estado pós-social de direito), cada vez mais se
percebe uma forte influência do direito constitucional sobre o direito
privado (LENZA, 2020, pg. 64).

É que muitas questões que eram meramente legais ou mesmo que ficavam apenas
na seara da retórica, transformaram-se em direitos constitucionais. Isto foi percebido
quando da constitucionalização do direito, após experimentos autoritários que
redundaram em guerras e traumas sociais. Daí surge o que a doutrina chama de
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neoconstitucionalismo:

A doutrina passa a desenvolver, a partir do início do século XXI, uma


nova perspectiva em relação ao constitucionalismo, denominada
neoconstitucionalismo, ou, segundo alguns, constitucionalismo pós-
moderno, ou, ainda, pós--positivismo. Visa-se, dentro dessa nova
realidade, não mais apenas atrelar o constitucionalismo à ideia de
limitação do poder político, mas, acima de tudo, busca-se a eficácia
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da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente


retórico e passando a ser mais efetivo, sobretudo diante da
expectativa de concretização dos direitos fundamentais (LENZA,
2020, pg. 68).

Nathalia Masson, abordando os tipos de constitucionalismo, menciona a ampliação


do famigerado tema de gerações de direitos fundamentais (destaquei), os quais tiveram
origem nas nefastas consequências das duas grandes guerras:

Tendo como matriz o princípio da dignidade da pessoa humana, tal


fase do constitucionalismo (que começa a se desenvolver após o
encerramento do trágico período das duas Grandes Guerras
Mundiais) traz novos grupos de direitos fundamentais, notadamente
relacionados à necessidade de respondermos satisfatoriamente às
novas ameaças, reveladas pelas barbáries cometidas durante os
conflitos bélicos. Assim, surgem os direitos fundamentais de 3a, 4a e
5ª geração (...) na 3ª geração estão consagrados os direitos de
solidariedade/fraternidade; na 4ª os relacionados ao pluralismo, à
diversidade, à democracia e à informação; na 5ª teríamos o direito à
paz (2020, pg. 38).

É neste contexto que se fala na força normativa da constituição, pois no momento


em que a norma fundamental passa a ser realidade, há uma relevância e força prática na
vida dos sujeitos integrantes do corpo social. O texto tem força, e não é apenas figurativo.
Isto implica concluir que a interpretação deve se dar em razão da consecução dos
determinantes constitucionais e democráticos.

O surgimento de direitos relacionados à solidariedade, pluralismo, diversidade,


democracia, informação e à paz escancararam as novas necessidades de uma sociedade
complexa, ferida em diversos direitos que nem se notavam por serem existentes (MASSON,
2020, pg. 38).

Decorrência de direitos da isonomia, por exemplo, o julgamento paradigmático que


garantiu a possibilidade de mudança de sexo sem cirurgia ou sem qualquer outro requisito

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que não a identificação do sujeito com si próprio, exarado no Recurso Extraordinário


670.422.

Direito Constitucional e Civil. Transexual. Identidade de gênero.


Direito subjetivo à alteração do nome e da classificação de gênero no
assento de nascimento. Possibilidade independentemente de cirurgia
de procedimento cirúrgico de redesignação. Princípios da dignidade
da pessoa humana, da personalidade, da intimidade, da isonomia, da
saúde e da felicidade. Convivência com os princípios da publicidade,

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da informação pública, da segurança jurídica, da veracidade dos
registros públicos e da confiança. Recurso extraordinário provido. [...]
5. Assentadas as seguintes teses de repercussão geral: i) O
transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu
prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se
exigindo, para tanto, nada além da manifestação da vontade do
indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial
como diretamente pela via administrativa. ii) Essa alteração deve ser
averbada à margem no assento de nascimento, sendo vedada a
inclusão do termo ‘transexual’. iii) Nas certidões do registro não
constará nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo vedada
a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do
próprio interessado ou por determinação judicial. iv) Efetuando-se o
procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de
ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados
específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos
ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a
origem dos atos. 6. Recurso extraordinário provido (STF, 2018, on-
line).

O direito ambiental, um exemplo quase que onipresente nas constituições


modernas, acabou por criar um sistema de princípios e regras, o qual também exige a
construção de um sistema interpretativo peculiar.

Quando o mundo experimenta, na prática, consequências nefastas da má gerência


dos recursos naturais a custo do desenvolvimento, a necessidade assente de se normatizar
condutas e políticas é evidente e progressivamente necessária. Destaca Frederico Amado
(2020, pg. 25):

Há uma crescente tendência mundial na positivação constitucional


das normas protetivas do meio ambiente, notadamente após a

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realização da CNUMA - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio


Ambiente (Estocolmo, 1972) pela ONU. Esse recente fenômeno
político decorre do caráter cada vez mais analítico da maioria das
constituições sociais, assim como da importância da elevação das
regras e princípios do meio ambiente ao ápice dos ordenamentos, a
fim de conferir maior segurança jurídico-ambiental. Logo,
começaram a nascer as constituições "verdes" (Estado Democrático
Social de Direito Ambiental), a exemplo da portuguesa (1976) e da
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espanhola (1978), que tiveram influência direta na elaboração da


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, notadamente
na redação do artigo 225, principal fonte legal do patrimônio
ambiental natural no nosso país. (...) A interpretação das regras e
princípios ambientais é tão peculiar que justifica o desenvolvimento
de uma hermenêutica especial, a exemplo da adoção da máxima in
dubio pro ambiente, sendo defensável que o intérprete, sempre que
possível, privilegie o significado do enunciado normativo que mais
seja favorável ao meio ambiente.

Ainda, trazendo a análise para o âmbito capitalista, o direito do consumidor


necessita de constantes transformações, notadamente pelo fato de que a tecnologia, que
se altera diuturnamente, exige uma atitude constantemente fiscalizatória, para que os
direitos do indivíduo desprivilegiado da cadeia de consumo sejam protegidos, tendo em
vista multiplicidade de ofertas, de produtos e de preços.

O fenômeno pós-moderno, com enfoque jurídico, pode


ser identificado por vários fatores. O primeiro a ser citado é a
globalização, a ideia de unidade mundial, de um modelo geral para
as ciências e para o comportamento das pessoas. Fala-se hoje em
linguagem global, em economia globalizada, em mercado uno, em
doenças e epidemias mundiais e até em um Direito unificado. Quanto
ao modo de agir, o ocidente se aproxima do oriente, e vice-versa. A
China consome o hambúrguer norteamericano, e os Estados Unidos
consomem o macarrão chinês. Alguns se alimentam de macarrão
com hambúrguer, fundindo o oriente ao ocidente, até de forma
inconsciente, em especial nos países em desenvolvimento. No caso
do CDC brasileiro, tal preocupação pode ser notada pela
abertura constante do seu art. 7º, que admite a aplicação de fontes
do Direito Comparado, caso dos tratados e convenções
internacionais, in verbis: “os direitos previstos neste Código não
excluem outros decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna

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ordinária, de regulamentos expedidos pelas


autoridades administrativas competentes, bem como dos que
derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e
equidade”. A par dessa unidade mundial, como afirma Erik Jayme, os
Estados não seriam mais os centros do poder e da proteção da
pessoa humana, cedendo espaço, em larga margem, aos mercados.
Nesse sentido, as regras de concorrência acabariam por determinar a
vida e o comportamento dos seres humanos. De toda sorte, como
prega o próprio doutrinador em outro texto, ao discorrer sobre a

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realidade do Direito Internacional Privado, é preciso que os Estados
busquem, em sua integração, para uma crescente unificação do
Direito, a conservação da identidade cultural das pessoas, para
proteger e garantir a sua personalidade individual. Em suma,
segundo Erik Jayme, o Direito Internacional Privado deve levar em
consideração, baseado em critérios de proximidade, as diferenças
culturais incorporadas aos respectivos ordenamentos jurídicos,
prestando-se a se tornar também um direito fundamental ligado à
personalidade dos cidadãos. Nesse contexto, surge a proteção dos
direitos dos consumidores, fazendo um cabo de guerra contra a
excessiva proteção mercadológica (TARTUCE, Flavio; NEVES, Daniel
Amorim Assunção, 2020, pg. 39).

Como não mencionar, no âmbito da abordagem de novos direitos, a importante


ascendência do discurso feminista e da presença da mulher na seara prática jurídica. Em
seu livro sobre processo penal feminista, Soraia da Rosa Mendes aborda os diversos temas
que envolvem a mulher como sujeito falante (e não falada) e estuda assunto de maneira
hisórica, cirúrgica e crítica:

O poder tem o específico efeito de produzir desigualdades


consistentes tanto nas relações de assimetria de poder/dever, quanto
no não reconhecimento das identidades. E a igualdade – ou melhor,
seria dizer a desigualdade – para as mulheres é uma questão que
cruza a história, de um modo bem especial no campo jurídico, no qual
o lugar reservado a nós sempre foi preferencialmente o “canto”
destinado ao banco das rés. No século XIX, o exercício da advocacia
por mulheres, por exemplo, foi motivo de grande agitação no restrito
círculo europeu. Justificando-se a exclusão da mulher deste espaço
público com argumentos retóricos que iam desde a
“pudicitia” (modéstia ou virtude sexual), a capacidade de sedução das
mulheres, que colocariam os juízes “em risco”, até ao descontrole
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feminino que nenhum magistrado seria capaz de conter.

Veja-se, ainda, que um tema muito relevante foi o estatuto da pessoa com
deficiência, que trouxe uma correção hermenêutica no que tange à tutela da pessoa com
deficiência. A lei consagrou a capacidade plena dos indivíduos deficientes, estabelecendo
que os absolutamente incapazes são apenas os menores de 16 anos, o que trouxe inúmeras
questões práticas para a vida dessas pessoas dentro da sociedade e perante os demais com
os quais convive. Nesse ínterim, Vitor Almeida:
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Nessa ótica, a capacidade civil é a liberdade de ser do indivíduo


no mundo jurídico, que, portanto, deve-se voltar à proteção e
emancipação das pessoas com deficiência. A dignidade humana
como autodeterminação é que justifica o fim do discriminatório e
excludente regime das incapacidades, que sacrificava o livre agir das
pessoas com limitações intelectuais ou psíquicas, relegando o
controle de suas vidas a um curador nomeado para tanto, que sequer
era obrigado a buscar o melhor interesse do curatelado ou
reconstruir os desejos e preferências revelados ao longo da vida, no
caso em que a deficiência tenha sido adquirida (2019, pg.187).

Desses importantes, mas não exaurientes temas dentro do âmbito jurídico, é


possível perceber a implicância prática da interpretação no progresso de uma sociedade,
observando-se os ditames da Constituição Federal.

É certo que muitas vezes o progresso e a atividade interpretativa não são elaborados
e aplicados de maneira pacífica, o que resulta na necessidade de intervenção judicial
pontual para que, em tese, seja cumprida a vontade do legislador em cotejo com os valores
de uma sociedade progressiva.

Curioso destacar que não só o Judiciário vem resolvendo pontualmente questões


polêmicas: o Congresso Nacional passa a exercer uma atividade legiferante enfrentadora
de decisões judiciais, como se verá adiante.

4. O papel do ativismo judicial e ativismo congressual

Como um sistema complexo de regras e princípios, é preciso que a interpretação


jurídica tenha arrimo em um Estado Democrático de Direitos, para que a sociedade confie
nas significações dadas pelas instituições estabelecidas. Ocorre que, como já analisado, a
atividade interpretativa é influenciada por fatores e valores diversos, motivo pelo qual é
possível encontrar diferentes formas de iniciá-la, desenvolvê-la e limitá-la.

Vicente de Paulo e Marcelo Alexandrino trazem uma importante classificação


destacada por J. J. Gomes Canotilho nos Estados Unidos, dentro da teoria da interpretação
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jurídica, a qual envolve o papel do juiz na atividade interpretativa sob dois aspectos
conflitantes: um defendendo o caráter limitado ao captar o sentido das normas, e outro
endossa uma atitude mais ampla, invocando e aplicando valores e princípios substantivos.
Tratam-se das correntes interpretativistas e não interpretativistas. Veja-se:

As correntes interpretativistas consideram que os juízes, ao


interpretarem a Constituição, devem limitar-se a captar o sentido dos
preceitos expressos na Constituição, ou, pelo menos, nela claramente
implícitos. O interpretativismo, embora não se confunda com o

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literalismo - segundo o qual a competência interpretativa dos juízes
vai apenas até onde o texto claro da interpretação lhes permite-,
aponta como limites de competência interpretativa a textura
semântica e a vontade do legislador. Enfim, para os interpretativistas,
o controle judicial dos atos legislativos tem dois limites claros: o da
própria Constituição escrita e o da vontade do poder político
democrático. As correntes não interpretativistas defendem a
possibilidade e a necessidade de os juízes invocarem e aplicarem
valores e princípios substantivos - princípios da liberdade e da justiça
- contra atos da responsabilidade do Legislativo em
desconformidade com o projeto da Constituição. Deve-se, portanto,
apelar para os valores substantivos - justiça, igualdade, liberdade - e
não apenas ou prevalentemente para o princípio democrático, a fim
de permitir aos juízes uma competência interpretativa (2017, pg. 65).

Trazendo o debate para seara pátria, podemos observar um termo muito presente
no debate jurídico atual: o ativismo judicial. Trata-se de uma conduta progressista, a qual
faz com que o Poder Judiciário atue ativamente na sociedade, não se limitando na mera
obediência aos literais ditames legais. O ativismo vai além, busca sentidos e valores
importantes para uma determinada sociedade, protagonizando, de fato, a consecução dos
direitos consagrados pelo constituinte. Segundo Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto
Viana Alves Ferreira (2016, pg. 567, tomo II):

Há quase consenso em que a função por desempenhada pelos juízes


não pode mais restringir-se às rígidas definições da
clássica tripartição de Poderes concebida por MONTESQUIEU, para
quem a atuação dos juízes não deveria ir além da mera repetição do
direito ("boca da lei"). Todavia, hoje se discute se o judiciário deve
assumir maior protagonismo na relação institucional com os demais
Poderes, rejeitando a tradicional posição de mero espectador ou
executor das políticas públicas elaboradas pelo Legislativo e pelo

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Executivo, ou se deve autoconter-se em respeito aos limites clássicos


dos princípios da separação e da independência entre as funções
estatais.

Por outro lado também temos, como já relatado em alguns julgados, a posição de
autocontenção, a qual defende uma atitude contida do Poder Judiciário que, de maneira
conservadora, endossa um ideal restritivo, de não intervenção, atuando em estrita
obediência ao espaço expressamente determinado constitucionalmente. Citando o
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Ministro Barroso, Bernardes e Ferreira (2016, pg. 568):

Já a autocontenção é a postura oposta ao ativismo. Para


BARROSO, trata-se da "conduta pela qual o judiciário procura reduzir
sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes
e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a
situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa,
aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam
critérios rígidos e conservadores para a declaração de
inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de
interferir na definição das políticas públicas".

Muito além do debate teórico a respeito dos limites da interpretação jurídica, há um


efeito prático sentido pela sociedade. Uma posição mais ativa do Poder Judiciário faz com
que ele seja, de fato, a última palavra para questões não resolvidas em outros âmbitos.

Veja-se que por vezes, inclusive, o Judiciário passa a ser instado para resolver
questões afetas aos outros poderes, em políticas públicas, assuntos partidários internos
entre outros. Observa-se a seguir algumas influências práticas das decisões do Supremo
Tribunal Federal sob aspecto do ativismo judicial:

No Brasil, mesmo após a Constituição de 1988, o STF vinha


adotando boa dose de autocontenção no trato de assuntos que
envolviam a atuação dos demais Poderes. Postura que explicava, por
exemplo, o rígido apego a dogmas separatistas de Poderes, mesmo
nos casos de omissão inconstitucional reconhecida em mandados de
injunção (Ml 107/DF, Plenário). Mas essa postura cuidadosa não
impediu posições jurisprudenciais avançadas- e inimagináveis nos
países considerados mais "desenvolvidos" institucionalmente -
como o próprio avanço pretoriano dos institutos do controle judicial
de constitucionalidade (tanto o concreto quanto o abstrato), cujo
alcance tornou possível fiscalizar não só certos atos interna corporis
de outros Poderes, como até emendas constitucionais, inclusive
durante o processo legislativo. Especialmente nos últimos anos,

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contudo, sob aplausos de parte da doutrina, a nova composição do


STF incorre em elevadíssimo grau de ativismo judicial. Exemplo são
as várias decisões polêmicas proferidas pela Corte em tempos
recentes, tais como: (a) a confirmação da tese que ampliou os casos
de perda de mandato parlamentar às hipóteses de infidelidade
partidária (MS 26.602/DF, MS 26.603/DF e MS 26.604/DF, Plenário);
(b) a virada de jurisprudência acerca dos efeitos decisórios do
mandado de injunção, aceitando- se a possibilidade de o judiciário
regulamentar provisoriamente o direito fundamental violado pela

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omissão do Poder Público (MI 670/ DF, Ml 708/DF e Ml 712/DF,
Plenário); (c) a atribuição jurisprudencial de status supralegal aos
tratados internacionais sobre direitos humanos (RE 466.343/SP,
Plenário); (d) as tentativas de atribuir (d.1) efeitos vinculantes às
razões determinantes das decisões de mérito proferidas no controle
abstrato de constitucionalidade (Rei 1.987/ DF, superada no AgRg na
Rei 2.475/MG, todos do Plenário); e (d.2) efeitos erga omnes a
decisões proferidas no controle concreto de constitucionalidade
(votos dos Ministro GILMAR MENDES e EROS GRAU na Rei 4-335/AC);
(e) a edição de súmulas vinculantes tendo por objeto - e não por
mero parâmetro - a própria Constituição Federal, tal como a Súmula
Vinculante n. 11, pela qual a Corte praticamente "regulamentou" o
uso de algemas; e (f) o reconhecimento, como entidade familiar, da
união estável entre pessoas do mesmo sexo, a despeito da redação
sectária do art. 226, § 3°, da Constituição (ADPF 132/DF, Plenário)
(BERNARDES, FERREIRA, 2016, pg. 570).

A questão do ativismo judicial também gravita na discussão a respeito da


transformação do Poder Judiciário em uma arena de discussão e consecução de todo e
qualquer direito. Dessa maneira, a consequência é levar para o estado-juiz assuntos
comezinhos e cotidianos que deveriam ser resolvidas na alçada do convívio social. É
exatamente o que discorre Carlos de Alexandre Azevedo Campos (2020, pg. 93):

É fato que quando uma corte constitucional ou suprema decide


muito e sobre muitas coisas, relevantes ou pouco importantes, ela
acaba tornando-se personagem especial da vida cotidiana da
respectiva sociedade. Nesses casos, das decisões mais determinantes
até as mais rotineiras, a corte constitucional se apresenta como arena
fundamental para o debate sobre os temas.

O autor continua destacando que tal prática é evidente em países com constituições

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abrangentes, que disciplinam praticamente quase toda vida política e social e, por isto, a
constituição ubíqua acaba por tutelar grandes e pequenas questões (CAMPOS, 2020, pg.
93). Ainda segue:

Com a expansão de poder sobre os demais atores relevantes e no


âmbito de solução das grandes questões morais e políticas, as cortes
tornam-se, inevitavelmente, personagens centrais dos sistemas de
governo e suas decisões interferem sobre os mais importantes
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processos políticos desses sistemas. Daí não haver como enxergá-las,


de outra forma, senão como autênticos atores políticos, claro que,
com singularidades e fundamentos diversos em relação ao Legislativo
e ao Executivo. As cortes ativistas, diante da relevância e dos efeitos
de suas decisões, não fazem apenas parte do sistema político
de determinado país, mas são hoje verdadeiros centros de poder que
participam, direta ou indiretamente, da formação da vontade política
predominante. Aliás, como as ricas experiências dos Capítulos I e II
revelaram, as cortes podem servir para a tomada de decisões políticas
não só em oposição ao governo, mas como aliada, legitimando as
medidas da política majoritária ou decidindo em seu lugar questões
que lhe causariam sérios custos políticos.

Uma das dimensões mais importantes do ativismo judicial é justamente a


interpretação ampliativa das normas e princípios constitucionais. Isto porque, diante de
uma gama de poderes implícitos, vaguezas, determinações abertas, para que sejam
garantidos os direitos fundamentais para a sociedade, o Poder Judiciário tem a
possibilidade de exarar decisões que regulam a conduta do corpo social, adequando-as à
melhor forma de consecução e materialização de direitos (CAMPOS, 2020, pg. 99).

Nesta atividade interpretativa ativista, a Constituição é encarada de forma dinâmica,


adequando-se às circunstâncias sociais apresentadas e que estão em constante
transformação. Nesses termos:

O Supremo Tribunal Federal tem avançado bastante, em particular,


esta dimensão de ativismo judicial (Capítulo V, item 2, infra). Os juízes
ativistas não se sentem restringidos nem mesmo presos ao sentido
literal das constituições. Ao contrário, eles se sentem muito à vontade
com a plasticidade das normas constitucionais e as possibilidades de
juízos políticos e morais que esta característica normativa cria. Esses
juízes assumem que seu papel é o de manter a constituição
compatível com as circunstâncias sociais sempre em transformação e
defendem que a interpretação criativa de normas
constitucionais indeterminadas se mostra como o mais importante
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meio de cumprir esse papel. Os juízes ativistas enxergam a


constituição como uma força dinâmica e, por isso, sentem a
necessidade de se afastar, caso necessário, do sentido literal do texto,
de sua estrutura ou de seu entendimento histórico para poder
aproximá-la da realidade social subjacente. Transformações
sociais pedem mudanças constitucionais e os juízes ativistas
assumem a condição de arquitetos sociais, sendo a
interpretação criativa das constituições o instrumento legítimo desta
atuação (CAMPOS, 2020, pg. 99).

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É claro que não é prudente encarar o ativismo judicial como via única para solução
dos problemas sociais, sob pena de subjugar o poder criador e aplicador da norma
(Poderes Legislativo e Executivo) a meros coadjuvantes no arquétipo democrático.

Como já mencionado, quando temas chegam ao Poder Judiciário absolutamente


deslocados e independentes da magnitude da questão, a decisão judicial passa a ser a
única forma aparentemente legítima e respeitável de solução de conflitos, por menor ou
maior que seja o direito envolvido. Em um regime democrático, é possível sentir as
consequências de um judiciário extremamente ativo, que atua em substitutividade muito
mais do que o esperado (CAMPOS, 2020, pg. 99).

É certo que o tema é de alta complexidade e exige análise de casos concretos, não
bastando meras conjecturas para fundamentar a aceitação ou rejeição de um modelo
ativista. Observa-se, então, que algumas decisões judiciais estão sendo alvo de uma reação
legislativa, de forma que o Poder Legislativo, diante de um provimento confrontante com
os ideais dos representantes do povo, edita normas que revertem frontalmente a decisão
judicial anteriormente encampada. Trata-se do efeito backlash, explicado didaticamente
por Lenza, citando o Ministro Luiz Fux (2020, pg.79)

Conforme observa Fux, a verdade é que a jurisprudência do STF nesta


matéria vem gerando fenômeno similar ao que os juristas norte-
americanos (...) identificam como backlash, expressão que se traduz
como um forte sentimento de um grupo de pessoas em reação a
eventos sociais ou políticos. É crescente e consideravelmente
disseminada a crítica, no seio da sociedade civil, à resistência do
Poder Judiciário na relativização da presunção de inocência para fins
de estabelecimento das inelegibilidades”.

O fenômeno acima descrito, também conhecido como reação do Poder Legislativo


ou ativismo congressual, foi possível de ser observado no caso da vaquejada. O caso
envolveu uma decisão do Supremo Tribunal Federal que posteriormente foi revertida pelo
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Poder Legislativo.

Na ADI 4983/CE, portanto, de relatoria do Min. Marco Aurélio, julgado em


06/10/2016, foi decidido pela inconstitucionalidade da lei estadual que regulamenta a
atividade da vaquejada, pois os animais envolvidos nesta prática sofriam tratamento cruel,
razão pela qual haveria ofensa ao art. 225 §1º VII da Constituição Federal. Contudo, na
sequência, o Congresso editou uma nova lei seguida de uma emenda constitucional. Nas
didáticas palavras de Márcio André Cavalcante (2019), é possível analisar a exata forma
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cronológica e específica do caso:

Pouco mais de um mês após esta decisão do STF acima explicada


(ADI 4983/CE) o Congresso Nacional editou a Lei nº 13.364/2016,
prevendo que o Rodeio e a Vaquejada devem ser considerados como
expressões artístico-culturais e manifestações da cultura nacional e
de patrimônio cultural imaterial.Foi uma “reação” do Poder
Legislativo à decisão do STF. A Lei nº 13.364/2016, acima
mencionada, sozinha, não teria força jurídica suficiente para superar
a decisão do STF. Isso porque, na visão do Supremo, a prática da
vaquejada não era proibida por ausência de lei. Ao contrário, a Corte
entendeu que, mesmo havendo lei regulamentando a atividade, a
vaquejada era inconstitucional por violar o art. 225, § 1º, VII, da
CF/88.Assim, essa Lei nº 13.364/2016 não ajudava muito os
partidários da vaquejada e era certo que o STF iria manter a proibição.
Ciente disso, o Congresso Nacional decidiu alterar a própria
Constituição, nela inserindo a previsão expressa de que são
permitidas práticas desportivas que utilizem animais, desde que
sejam manifestações culturais. Foi uma tentativa de superação
legislativa da jurisprudência (reversão jurisprudencial), uma
manifestação de ativismo congressual.

Neste ínterim, é possível citar o julgamento que concluiu pela criminalização da


homofobia, a qual enquadrou as condutas homofóbicas na lei de racismo (Lei 7.716 de
1989) enquanto o congresso nacional não editar lei específica sobre o tema (ADO 26, STF,
2019, on-line).

Apesar de a decisão ter alta relevância no cenário social, há certo perigo na análise
técnica do caso. Isto porque o Supremo Tribunal Federal acabou por legislar positivamente,
criando um crime, ofendendo-se, teoricamente, o princípio da legalidade penal, a qual
dispõe que normas incriminadoras devem ser editadas mediante lei.

Muito embora a decisão da criminalização das condutas decorra de


interpretação conforme à Constituição, “em face dos mandados

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constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art.


5.º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia,
qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos
penais definidos na Lei n. 7.716/89, até que sobrevenha legislação
autônoma, editada pelo Congresso Nacional”, parece-nos que estaria
sendo criado um novo tipo penal e, por isso, a dificuldade de se
sustentar, apesar da maioria formada de oito Ministros, a observância
ao princípio da estrita legalidade penal já estudado (art. 5.º, XXXIX,
CF/88). Essa nossa crítica deve ser mantida, mesmo que se esteja

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diante de interpretação conforme, pois, no caso, pensamos que o STF
“legislou” criando um novo tipo penal. (LENZA, 2020, pg. 824).

Assim, nota-se que o ativismo judicial, bem como a reversão jurisprudencial (ou
ativismo congressual) são formas práticas nas quais o Poder Judiciário ou Legislativo
interpretam as normas do ordenamento, tendo por base suas compreensões como
instituições democráticas.

Veja-se que, em pouco tempo, uma decisão do Supremo Tribunal Federal foi
revertida pela atividade inventiva dos representantes do povo, que entenderam por bem
dar uma interpretação que atenda aos anseios culturais da sociedade, notadamente pela
importância da atividade em determinadas regiões do país. Já o Tribunal, por fundamento,
teve o bem estar animal como arrimo para sua decisão, valor fundamental (proteção ao
meio ambiente) encampado em um capítulo exclusivo da Constituição Federal de 1988.

A atividade interpretativa, mesmo fundamentada e legitimada, não possui caminho


certo ou errado, e isso retorna às discussões a respeito da importância de uma sociedade
aberta de intérpretes (Peter Härbele), na qual há um diálogo de troca de experiências.

Peter Härbele defende uma democratização da hermenêutica


constitucional, propondo, em sua tese fundamental, para essa
finalidade, que no processo de interpretação constitucional estejam
potencialmente ligados todos os órgãos estatais, as potências
públicas, todos os cidadãos e grupos sociais, não se estabelecendo
assim um número limite aos participantes do processo hermenêutico,
sendo estes as forças produtivas de interpretação, sem as quais seria
impossível uma interpretação democrática da Constituição. De
acordo com o autor, a hermenêutica da Lei Maior é muito atribuída
apenas a uma “sociedade fechada”, ao passo que concentra-se o seu
campo de análise e investigação na interpretação de juízes e nos
procedimentos formalizados. Härbele (1997, 13) afirma que “quem

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vive a norma acaba por interpretá-la, ou pelo menos co- interpretá-


la”, dessa forma, toda atualização do texto constitucional pela ação
de qualquer indivíduo constitui, ainda que em parte, uma
interpretação antecipada. (Ana Karina Campos, 2017).

Em um país multicultural, a questão mais difícil da atividade legislativa ou judicial é


o atendimento equânime de uma sociedade multifacetada, que vem progressivamente
participando mais da vida política, exigindo respostas rápidas e eficientes, em um exercício
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legítimo da cidadania, na busca pela justiça social, e por uma convivência igualitária.

Assim, como bem fundamenta Haberle, ninguém melhor para exercer a atividade
interpretativa do que aqueles que vivem a norma, aqueles que sentem os efeitos práticos
de todo arquétipo normativo institucionalizado.

Considerações Finais

Conquanto seja utópico imaginar uma interpretação ideal e perfeita para uma
sociedade multifacetada, a verdade é que a evolução democrática legitimou diversos
discursos, multiplicou o debate, e deu origem a uma sociedade complexa, com exigências
tais quais.

Neste aspecto, é possível perceber o crescente interesse geral em assuntos sensíveis


(meio ambiente, tecnologia, finanças, políticas públicas, saúde, etc.), na medida em que
posições importantes passam a ser conquistadas no arranjo político e social. O debate se
legitima na medida em que os integrantes da vida social, por sentirem em suas vidas a
incidência normativa, também participam do discurso (Haberle).

Isso demonstra a relevância da interpretação em cotejo com a essência da norma


constitucional que, por muitas vezes, assume uma faceta polissêmica e destoada da
realidade, haja vista a promulgação da Constituição Federal datada de 1988 e os ideais
presentes na época. Portanto, exige-se uma compreensão ampla, de acordo com os fatores
reais existentes e relevantes para a sociedade atual, resultando em mudanças de
entendimentos enraizados na sociedade e nas instituições.

Indissociável do progresso humanitário está a interpretação, pois é ela que traduz


os significados e os sentidos da vida real, transformando a linguagem em um dos poderes
mais transformadores da atualidade.

É certo que o progresso social vem acoplado com diversas dificuldades. Como seria
possível legitimar a mesma decisão, a mesma aplicabilidade e a mesma norma para um
país tão multifacetado. O importante é garantir a representatividade em todas as órbitas
dos poderes constituídos, para que o diálogo seja fidedigno às especificidades da vida. É
preciso conhecer a realidade local, de forma que se legitime um discurso inclusivo e
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adequado.

A interpretação não é estanque, não é una e não é efetivada por uma única pessoa
ou por um grupo de pessoas. A atividade interpretativa deve ser realizada por toda
sociedade, cada qual em seu âmbito de atuação, em sentido micro e macro social, pois os
poderes institucionalizados não detém da sensibilidade da vida em sociedade, afinal, são
representantes abstratos.

Portanto, a presença do cidadão no debate político, como destinatário protagonista

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do arranjo democrático, é de fulcral relevância para o progresso e para a consecução dos
valores constitucionais e democráticos.

Referências

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curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

AMADO, Frederico. Direito ambiental – sinopses para concursos. Salvador: JusPodivm,


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uma dogmática constitucional transformadora. Editora Saraiva, 1996.

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aberta de intérpretes para a consolidação e efetividade da democracia no Brasil
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PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 16ª


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STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da


Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG):
Letramento, 2017.

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A IMPORTÂNCIA DO EXÉRCITO BRASILEIRO PARA A PROMOÇÃO DA SEGURANÇA


PÚBLICA

FERNANDO SILVA NASCIMENTO:


especialização em direito e processo
administrativo da Universidade Federal
do Tocantins. Assessor jurídico do
Exército brasileiro

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RESUMO: O presente estudo buscou demonstrar acerca da possiblidade de emprego
efetivo das forças armadas na segurança pública. No Brasil, o tema segurança pública vem
sendo cada vez mais explorado por todos os setores da sociedade, certamente é de total
importância para a instabilidade de qualquer governo, como também para a sociedade.
Nesse cenário, é necessário fortalecer o controle da atividade policial tendo em vista que
o Estado detém o monopólio do uso da força para manter a ordem e a preservação de
direitos e bens. E para a realização da atividade de segurança pública, o faz por meio das
polícias. É certo que este monopólio deve seguir rigorosamente os ditames da legalidade,
o que faz com que seja objeto de controles internos e externos constantes, principalmente
para fiscalização e repressão de desvios no exercício da atividade policial, uma vez que esta
atividade às vezes coloca em risco os direitos constitucionais individuais. A segurança é um
direito inviolável ao brasileiro e estrangeiros residentes no país, institucionalizada pela
própria Constituição Federal em seu artigo 5º. No estudo se verificou que com a crescente
criminalidade, as forças de segurança pública preceituadas no Artigo 144 da Constituição
Federal, por si só restam como insuficientes para fazer frente a essa realidade. Nesse
contexto, o Exército Brasileiro, demonstra ser cada vez mais indispensável para combater
o crime. Com isso, o presente estudo busca demonstrar a importância do Exército Brasileiro
na salvaguarda do Estado Democrático de Direito, na proteção da segurança individual e
coletiva dos brasileiros.

Palavras-Chave: Exército. Segurança Pública. Defesa Social.

ABSTRACT: The present study sought to demonstrate about the possibility of effective
employment of the armed forces in public security. In Brazil, the issue of public security has
been increasingly explored by all sectors of society, and it is certainly of total importance
for the instability of any government, as well as for society. In this scenario, it is necessary
to strengthen the control of police activity, considering that the State has a monopoly on
the use of force to maintain order and the preservation of rights and assets. And to carry
out the public safety activity, it does so through the police. It is true that this monopoly
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must strictly follow the dictates of legality, which makes it the object of constant internal
and external controls, mainly for inspection and repression of deviations in the exercise of
police activity, since this activity to it sometimes jeopardizes individual constitutional rights.
Security is an inviolable right for Brazilians and foreigners residing in the country,
institutionalized by the Federal Constitution in its article 5th. In the study, it was found that
with the increasing criminality, the public security forces provided for in Article 144 of the
Federal Constitution, by themselves, remain insufficient to face this reality. In this context,
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the Brazilian Army proves to be increasingly indispensable to fight crime. Thus, this study
seeks to demonstrate the importance of the Brazilian Army in safeguarding the Democratic
Rule of Law, in protecting the individual and collective security of Brazilians.

Keywords: Army. Public security. Social Defense.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo busca esmiuçar a importância do Exército Brasileiro para a


segurança pública brasileira. De uma maneira mais específica, o estudo pretende: Explanar
os aspectos legais do Exército Brasileiro; Ressaltar as forças policiais existentes no
ordenamento jurídico pátrio, com enfoque na atribuição de cada uma delas; Explicitar
exemplos relacionados à salvaguarda da segurança pública pelo Exército Brasileiro, sendo
esta uma de suas atribuições subsidiárias.

Metodologicamente, é sabido que existem diversos tipos de métodos científicos,


que são aplicados na forma da linha do procedimento da pesquisa a ser realizada, tais
como: indutivo, dedutivo, hipotético-dedutivo e dialético. O método a ser utilizado no
trabalho monográfico será, sem descartar outras possibilidades, o dedutivo, partindo-se
de uma situação já existente para uma particularidade específica.

O Estado no desempenho de suas funções nas três esferas executivo, judiciário e


legislativo, através da administração pública, impõe o interesse coletivo sobre o interesse
individual. Conceituar o termo nos remete a compreender que o poder de polícia é a
atividade do Estado em limitar os direitos individuais, portanto em benefício do coletivo,
de forma a interferir na dimensão do direito individual (SILVA JÚNIOR, 2008).

O Legislativo transfere a missão ao Executivo, através dos ordenamentos, onde a


Administração seria responsável pela regulamentação das leis e sua aplicação mediante
ordens, licenças, autorizações e notificações, portanto de caráter repressiva e de certa
forma preventiva. Passando a discorrer mais próximo da questão segurança pública ligada

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ao trabalho da polícia, temos o personagem estatal da polícia judiciária que na aplicação


das normas legais, incide sobre pessoas (MOREIRA NETO, 2001).

Faz isso com seu aparato das polícias militar e civil entre outras. O poder de polícia
vem para garantir o bem-estar geral da coletividade, embasado nas sanções legais busca
impedir o comportamento antissocial e as práticas negativas à coletividade.

Assim, ao contrário do que se pode imaginar a princípio, é decorrente dos próprios

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misteres estatais, não sendo exclusivo das forças policiais. Qualquer servidor, seja da
vigilância sanitária, da fiscalização de transporte, do corpo de bombeiros, ao executar, nos
termos da lei, condutas de fiscalização e controle estarão, geralmente, exercendo o
chamado poder de polícia. Ressalta-se que esse poder também diz respeito à atividade
policial, desenvolvida pela polícia administrativa e a polícia judiciária.

2 A VIOLÊNCIA ENQUANTO FENÔMENO SOCIAL E A FALÊNCIA DO ATUAL MODELO


DE SEGURANÇA PÚBLICA

Além do desafio de compreender as dimensões da violência, sobretudo a sua


origem na marginalização gerada pelas desigualdades sociais, a sociedade contemporânea
tem o desafio de garantir que as políticas que persigam a redução da violência urbana,
sejam justas e não seletivas, tornando o Estado mais um elemento de repressão contra os
seres humanos que já são castigados pelas mazelas sociais.

E sendo os organismos policiais, os principais instrumentos no combate direto à


criminalidade (SILVA, 2012), as atenções sobre a institucionalização da violência contra os
mais pobres, se voltam para esses órgãos policiais.

Vale ressalvar que a polícia isoladamente não é autossuficiente para essa missão
de combater a violência, sendo que o Sistema de Segurança Pública deve ser concebido
de forma ampla, abrangendo inclusive, outros setores como a justiça, sistema prisional,
Ministério Público e não menos importante, a comunidade.

Nas ações da polícia, deverão prevalecer os princípios de proteção, apoio e


respeito aos cidadãos e a preservação dos direitos humanos, pois são direitos indisponíveis,
estando inclusive, acima da soberania dos estados nacionais (BARATTA, 2011).

Curiosamente, ocorre que por vezes, setores da própria população se manifestam


desfavoráveis às políticas incorporadoras dos direitos humanos aos autores de delitos, pois

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numa ilusão, acreditam estar a salvo do desrespeito destes direitos. Para que a polícia seja
empregada como instrumento de garantia da cidadania e não apenas como instrumento
de luta contra o crime, é necessário retirar-lhe o papel acessório atribuído pela sociedade
para canalizar a sua ira contra a marginalidade.

Contudo, é dificultoso o alcance deste objetivo, considerando que depende não


apenas da polícia, mas também da vontade e compreensão de toda a sociedade para a
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aplicação e vivência de uma verdadeira democracia. Como consequência disso, a realidade


constatada da institucionalização da violência urbana, as vítimas dos confrontos policiais
são quase em sua totalidade, pessoas de baixa renda, baixa escolaridade, negros e
moradores dos bairros com menos oferta de serviços públicos e infraestrutura urbana.

Ao comparar as ocorrências de violência envolvendo forças policiais, com países


que investem no trabalho de polícia científica, a exemplo dos Estados Unidos, vislumbra-
se o maior número de casos desvendados, o menor índice de violência policial e o maior
número de condenações, pois quando submetidos a julgamento, os trabalhos
investigativos, amparados por provas técnicas, possibilitam ao juiz da causa sentenciar com
maior tranquilidade.

No Brasil, além da insuficiência de estrutura e recursos pessoais nas áreas


científicas das polícias, há outro empecilho enfrentado na manutenção da segurança
pública que é falta de uma cultura de integração entre as polícias, sendo que estas
raramente compartilham informações e suas bases de dados. Agem como se as
informações fossem exclusivas de determinada instituição, muitas vezes fazendo o possível
para a ocultar das demais (PALLAMOLLA, 2017).

Com isso é factível deduzir que quanto menos técnica seja a polícia, mais violenta
será, pois é bem verdade que muitas vezes esta, agindo sob pressão popular, acaba por
usar meios condenáveis para a elucidação de crimes, que não raras vezes acabam por
comprometer o resultado do trabalho investigativo.

A sociedade brasileira de forma gradativa sofre com a violência urbana. A precária


presença do poder público nas comunidades, a falência do sistema penal e as
desigualdades sociais agravam este contexto fático, o qual não é facilmente revertido com
apenas com a existência das forças policiais (BEZERRA, 2006).

Nesse cenário, é necessário fortalecer o controle da atividade policial tendo em vista


que o Estado detém o monopólio do uso da força para manter a ordem e a preservação
de direitos e bens. E para a realização da atividade de segurança pública, o faz por meio

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das polícias. É certo que este monopólio deve seguir rigorosamente os ditames da
legalidade, o que faz com que seja objeto de controles internos e externos constantes,
principalmente para fiscalização e repressão de desvios no exercício da atividade policial,
uma vez que esta atividade às vezes coloca em risco os direitos constitucionais individuais.

Wilson Odirley Valla, ensina que controle da atividade policial é o “acompanhamento das
ações e operações da Corporação por todos os que exercem comando, de forma a
assegurar o recebimento, a compreensão e o cumprimento das decisões do escalão

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superior pelo órgão considerado, possibilitando, ainda, identificar e corrigir desvios”
(VALLA, 2014, p. 54).

A própria Constituição Federal, em seu inciso VII, do artigo 129 estabelece que o controle
externo da atividade policial é uma das funções institucionais do Ministério Público.
Portanto, o que não falta são instituições destinadas à promoção do controle externo e
interno das Polícias, sendo que falta ainda a necessária coordenação e interação entre os
diversos órgãos para uma melhor efetividade da atividade de segurança pública.

O controle da atividade policial, equacionando "segurança ou controle social versus


liberdade individual" tem se apresentado como um dos problemas cruciais, não só nos
países em desenvolvimento, com também naqueles que já atingiram maior grau de
desenvolvimento econômico e social.

Pressionados pelo clamor público que exige solução para os problemas de


segurança, principalmente nos crimes praticados mediante violência contra a pessoa,
membros de organismos policiais têm recorrido a práticas condenáveis, com o intuito de
dar uma resposta rápida à sociedade. Um dos principais problemas enfrentados por
instituições policiais de todo o mundo tem sido a corrupção de seus agentes. Fazendo uso
das prerrogativas de policiais, alguns integrantes passam a receber dinheiro de criminosos
para deixar ocorrer determinados tipos de crimes. Esses tipos de crimes estão intimamente
ligados ao exercício da atividade policial (SILVA, 2012).

Membros de organizações policiais juntam-se entre si ou com pessoas estranhas à


corporação para o cometimento de crimes. Muito embora, na maioria dos casos, esses
indivíduos quando da prática de atos criminosos, não façam uso da estrutura policial, mas
devido ao fato de pertencerem a ela, denotam profundo desgaste perante a opinião
pública.

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A apuração de crimes cometidos por policiais merece especial atenção, face serem
pessoas preparadas e conhecedoras dos métodos investigativos, e justamente por essa
razão, usam do conhecimento para evitar deixar pistas que indiquem a autoria; quando
identificados, beneficiam-se do silêncio de vítimas e testemunhas, face ao temor de
represálias. Adiante, restará a conclusão de que todos os métodos de controle da atividade
policial (internos e externos) apresentam determinadas deficiências que acabam por
comprometer sua finalidade (SANTOS, 2018).
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O descontrole e a falta de entrosamento entre os diversos órgãos controladores


fazem com que policiais desvirtuados da efetiva missão, cometam irregularidades e
somente são flagrados e excluídos da corporação após longos anos de desvios e os
discursos dos políticos, de uma forma geral, sempre buscam convencer de que as medidas
de segurança buscam a paz. Todos os grandes gênios militares do mundo e os
conquistadores do passado, de Júlio Cezar a Napoleão, matavam em nome da paz.

O Brasil, por sua vez, não permaneceu adormecido ao impetuoso avanço da


criminalidade organizada ao longo de décadas. De modo determinante, nosso país
contribuiu para criar um ambiente fecundo à reprodução da violência. Com base na
crendice de que o rigor das penas e de sua execução poderia intimidar o delinquente,
foram criadas diversas leis. Mesmo assim, o país assistiu a despontar do PCC (Primeiro
Comando da Capital) e outras facções criminosas dentro de estabelecimentos prisionais.
Nunca se prendeu tanto e nem tantos presídios foram construídos.

Apesar disso, os índices de criminalidade ascendem sem descanso. Crimes ganham


repercussão. Quanto à ação a ser perpetrada, muitos acreditam que é preciso endurecer,
acreditando que penas mais duras tolherá eficazmente a delinquência. Mas sabe-se que a
resposta para a violência não é tão simples. É preciso primeiro descobrir as causas da
violência (SILVA, 2012).

Pedro Franco de Campos, ex-Secretário de Segurança Pública em São Paulo, citado


na obra de Valla (2014) relata que as causas da violência urbana estão, entre outras, no
“desordenamento das cidades grandes e a consequente falta de saneamento, habitação,
escolas e hospitais” e mais “que o desemprego e a desagregação familiar ajudam a
engrossar o caldo da violência”.

Essa correlação da causa da violência e a falta de um crescimento ordenando das


cidades afeta frontalmente as pessoas menos abastadas pois elas residem justamente nas
regiões onde o poder público envida menos esforços para garantir a presença de

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infraestrutura que interage com a prevenção da violência como iluminação pública e


equipamentos de esporte, lazer e convivência social.

Dezoito dos vinte municípios com maior taxa de homicídios se localizam nas regiões
Norte e Nordeste, foco de guerra entre facções. As dez cidades com mais homicídios por
100.000 habitantes, conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) são: 1-
Maracanaú (CE) – 145,7;2- Altamira (PA) – 133,7; 3- São Gonçalo do Amarante (RN) –
131,2;4- Simões Filho (BA) – 119,9; 5- Queimados (RJ) – 115,6; 6- Alvorada (RS) – 112,6; 7-

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Marituba (PA) – 100,1; 8- Porto Seguro (BA) – 101,6; 9- Lauro de Freitas (BA) – 99,0; 10-
Camaçari (BA) – 98,1 (IPEA, 2019) .

Isto posto, pode-se afirmar que o Brasil, mesmo não estando em guerra, possui
indicadores de morte violenta semelhantes aos dos países que estão envolvidos em
conflitos armados.

Nesse contexto, ressalta-se que a violência caracterizada pelo grande número de


homicídios é, inicialmente, uma questão racial. Explica-se: Os altos e crescentes índices de
homicídios contra a população negra, em especial contra jovens negros, têm sido uma
pauta central das organizações do movimento negro nas últimas cinco décadas.

O Mapa Violência de 2014 contabiliza os homicídios de 2012: cerca de 30 mil jovens


de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil, e 77% deles são negros (pretos e
pardos), sendo a taxa de homicídios entre jovens negros quase quatro vezes maior do que
a verificada entre os brancos. Esses dados iniciais podem ser racionalizados em três
interfaces: vulnerabilidade social, racismo institucional e criminalização.

Em 2018 houve quase 58 mil homicídios no Brasil. Nesse contexto, a taxa é de 27,8
mortes para cada 100 mil habitantes. Esse era menor nível de homicídios naqueles últimos
quatros anos. A redução em relação ao ano anterior foi de 12%. Em 2020, no entanto,
notou-se nova crescente, em alguns estados, em especial durante a pandemia do Corona
Vírus. Entre os homens, 77% foram mortos por arma de fogo, enquanto a taxa das mulheres
é de quase 54%. O risco de um homem negro ser assassinado é de assustadores 74%
maior, se comparado com pessoas de outras raças, e para as mulheres negras a taxa é
próximo a 65%.

Na última década, a taxa de homicídio de mulheres negras cresceu 12%, enquanto


a taxa de homicídio de não negras caiu quase 12% no mesmo período, com isso aumenta-
se o abismo entre os dois grupos estatisticos analisados. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2020).
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Diante dos dados sobre a violência no Brasil e estudos realizados por especialistas,
é possível afirmar que os índices de violência no Brasil estão acima do nível tolerância dos
órgãos internacionais. O número de mortes no Brasil de 2008 a 2011 chegou a ser maior
que a soma de mortes dos 12 maiores conflitos armados no mundo, de 2004 a 2007.

As diferenças de índices entre as Unidades da Federação mostraram que, nesta


escala de abordagem, o fator econômico não apresentou significância na correlação com
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a violência, como visto na comparação dos dados entre o Estado de São Paulo e Piauí.

As taxas de homicídios no Brasil pouco variaram desde 1997 até 2013, tendo em
vista a redução a níveis toleráveis estamos longe de alcançá-los. A grande dificuldade em
se pôr um fim a essa problemática é a grandeza de suas causas. Existe um ciclo vicioso que
envolve a desigualdade social, crimes, violência, ineficiência institucional e impunidade.

Essa realidade estatística não é fato novo. Isso porque ainda em 2000, 45.233 brasileiros
foram assassinados, a taxa nacional de 27 homicídios por 100 mil habitantes, o que coloca
o Brasil entre os países mais violentos do mundo.

Para os jovens em áreas urbanas pobres, a taxa é de 230 mortes por 100.000
habitantes, o que quase equivale a um genocídio. A sociedade civil tem vindo a responder
cada vez mais a essa violência com demonstrações, projetos, programas e iniciativas locais
como formas de combater o problema e promover a segurança pública (SOUZA, 2016).

3 O IMPORTÂNCIA DO EXÉRCITO BRASILEIRO PARA A PROMOÇÃO DA SEGURANÇA


PÚBLICA

No Brasil, a discussão sobre os limites da segurança pública e da atuação do exército


denota do fato de que a Defesa Social é muito mais ampla do que a Segurança Pública.
Enquanto está se preocupa com a ordem pública, aquela tem uma missão muito mais
nobre que é a paz social, e essa abrange a intervenção do Estado não apenas para evitar
conflitos individuais, mas também socorrer em situações de calamidades, desordens
humanitárias, catástrofes. Em tais casos, as forças armadas são fundamentais, em especial
por conta de sua logística e capilaridade em todo o território nacional.

Ora, nesse contexto, se verifica que o Executivo necessita não apenas do poder de
polícia, mas também de outros setores, como defesa civil, assistência social, entre outros,
sendo que tais incumbências poderão ser desempenhadas pelo exército.

Historicamente há uma nítida associação entre exército e polícia. Contextualizando,


a concepção atual de polícia surgiu na Roma Antiga, quando teria sido constituída uma
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estrutura composta por soldados que, além de outras atribuições, entre as quais a de salvar
vidas em incêndios, também desempenhava vigilância noturna com o escopo de evitar a
prática de ilícitos penais, como roubos. Por outro lado, também em Roma, mas no tempo
do Império, foram encarregados funcionários para que levassem as primeiras informações
de ilícitos empreendidos, aos juízes (TOURINHO FILHO, 2009).

O Estado detém o monopólio do uso das forças armadas para manter a ordem e a
preservação de direitos e bens. E para a realização da atividade de segurança pública, o faz

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através das polícias. É certo que este monopólio deve seguir rigorosamente os ditames da
legalidade, o que faz com que seja objeto de controles internos e externos constantes,
principalmente para fiscalização e repressão de desvios no exercício da atividade policial,
uma vez que esta atividade às vezes coloca em risco os direitos constitucionais individuais
(CÂMARA, 2014).

Wilson Odirley Valla, Coronel Reformado da Polícia Militar do Paraná, em sua obra
Doutrina de Emprego de Polícia Militar e Bombeiro Militar, ensina que controle da atividade
policial é o “acompanhamento das ações e operações da Corporação por todos os que
exercem comando, de forma a assegurar o recebimento, a compreensão e o cumprimento
das decisões do escalão superior pelo órgão considerado, possibilitando, ainda, identificar
e corrigir desvios” (VALLA, 2014, p. 54).

A própria Constituição Federal, em seu inciso VII, do artigo 129 estabelece que o
controle externo da atividade policial é uma das funções institucionais do Ministério
Público. Portanto, o que não falta são instituições destinadas à promoção do controle
externo e interno das Polícias, sendo que falta ainda a necessária coordenação e interação
entre os diversos órgãos para uma melhor efetividade da atividade de segurança pública.

O controle da atividade policial, equacionando "segurança ou controle social versus


liberdade individual" tem se apresentado como um dos problemas cruciais, não só nos
países em desenvolvimento, com também naqueles que já atingiram maior grau de
desenvolvimento econômico e social.

Pressionados pelo clamor público que exige solução para os problemas de


segurança, principalmente nos crimes praticados mediante violência contra a pessoa,
membros de organismos policiais têm recorrido a práticas condenáveis, com o intuito de
dar uma resposta rápida à sociedade.

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Um dos principais problemas enfrentados por instituições policiais de todo o mundo


tem sido a corrupção de seus agentes. Fazendo uso das prerrogativas de policiais, alguns
integrantes passam a receber dinheiro de criminosos para deixar ocorrer determinados
tipos de crimes. Esses tipos de crimes estão intimamente ligados ao exercício da atividade
policial (SILVA, 2012).

Membros de organizações policiais, juntam-se entre si ou com pessoas estranhas à


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corporação para o cometimento de crimes. Muito embora, na maioria dos casos, esses
indivíduos quando da prática de atos criminosos, não façam uso da estrutura policial, mas
devido ao fato de a ela pertencerem, à infligem profundo desgaste perante a opinião
pública (BATELLA, 2018).

A apuração de crimes cometidos por policiais merece especial atenção, face serem
pessoas preparadas e conhecedoras dos métodos investigativos, e justamente por essa
razão, usam do conhecimento para evitar deixar pistas que indiquem a autoria; quando
identificados, beneficiam-se do silêncio de vítimas e testemunhas, face ao temor de
represálias. Adiante, restará a conclusão que todos os métodos de controle da atividade
policial (internos e externos) apresentam determinadas deficiências que acabam por
comprometer sua finalidade (SANTOS, 2010).

Nesse contexto, o Exército adentra como uma força arma de inevitável proeminência
na segurança pública, principalmente ante o grave descontrole da criminalidade e da
violência, onde as forças policiais do estado encontram óbices para atuar, perdendo sua
capacidade operativa de controlar a criminalidade e de oferecer segurança à população

Com isso, o Exército combate tanto o inimigo externo quanto o interno, agindo com
o bojo de trabalhar em parceria com as forças constitucionais de segurança pública, de
modo que sejam diminuídas as lacunas inerentes a tais forças de atuação, considerando o
treinamento e atribuições de cada uma delas. Garantir a lei e a ordem significa assegurar
o cumprimento da lei e a manutenção da ordem interna, objetivando a preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, após o reconhecimento
formal da indisponibilidade, inexistência, insuficiência ou falência dos órgãos de segurança
pública competentes para tal (CARVALHO, 2015).

A missão do exército norteia todas as suas atividades e estará sempre sendo


orientada e condicionada por sua destinação constitucional, por leis complementares (LC)
e por diretrizes do Presidente da República, sendo o principal fundamento da missão do
Exército o previsto no Caput do art 142 da CF/88. Para cobrir a lacuna deixada pelo § 1°,
do art 142, da CF/88, foi criada a Lei Complementar n° 97, de 09 de junho de 1999, que

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dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças
Armadas, a partir da criação do Ministério da Defesa, adequando-se, portanto, à nova
estrutura político-administrativa adotada pelo Governo Brasileiro no tocante à condução a
sua Política de Defesa Nacional, na qual se buscou simultaneamente, a maior integração
operacional entre as três forças singulares e a ampliação da sua subordinação ao poder
civil. Esta Lei Complementar, por sua vez, veio a ser alterada, sofrendo acréscimo de alguns
dispositivos, pela Lei Complementar n 117, de 02 de setembro de 2004 (SOUZA, 2012).

Ressalte-se ainda que, por ser uma ação que envolve o emprego de Força Armada,

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implica na utilização do Código Penal Militar, o que representa que, os delitos relacionados
às atividades de Garantia da Lei e da Ordem serão considerados crimes militares. Fácil
perceber tal situação, pois os crimes praticados neste período (observe-se que se trata dos
crimes que tenham ligação com as operações), envolverão militares em atividade ou
mesmo, serão praticados contra patrimônio sob a jurisdição militar, hipóteses previstas no
Art 9° do Código Penal Militar e que caracterizam o fato como sendo crime propriamente
militar (CASALI, 2016).

Ora, a missão do Exército é, juntamente com as demais Forças Armadas, defender a


Pátria , garantir os Poderes Constitucionais, garantir a lei e a ordem, cooperar com o
desenvolvimento nacional e com a defesa civil e participar de operações internacionais.
Sob esse contexto jurídico de emprego, a competência legal – no que se refere ao trato
com pessoas, bens e patrimônio particular – deverá ser propiciada pela atuação integrada
da Força Terrestre com os órgãos de segurança pública e de justiça, federais e estaduais,
de modo que sejam cumpridos os preceitos legais e processuais vigentes.

3 CONCLUSÃO

Em sede de conclusão, se verifica que a sociedade brasileira enfrenta atualmente


um de seus mais graves problemas sociais, a sensação de insegurança, onde o estado com
seus órgãos de segurança pública mostra-se limitados diante do aumento do poder e da
violência de pessoas ligados ao mundo do crime, fatos estes que fazem com que o Estado
brasileiro procure alternativas, visando o controle e a redução da criminalidade, que põem
em instabilidade o Brasil e sua população. Neste contexto, a possibilidade de emprego das
forças armadas, em especial o Exército Brasileiro em conjunto com outros órgãos do poder
público na proteção do cidadão se mostra um debate cada vez mais pertinente.

Nesse contexto, o presente estudo buscou demonstrar acerca da possiblidade de


emprego efetivo das forças armadas na segurança pública. No Brasil, o tema segurança
pública vem sendo cada vez mais explorado por todos os setores da sociedade, certamente

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é de total importância para a instabilidade de qualquer governo, como também para a


sociedade. A segurança é um direito inviolável ao brasileiro e estrangeiros residentes no
país, institucionalizada pela própria Constituição Federal em seu artigo 5º.

Portanto, o tema apresentado neste trabalho é de suma importância, pois pretende


ao logo de seu desenvolvimento tornar mais visível a conjuntura atual em relação a
segurança pública e subsidiar ideias para auxiliar as autoridades brasileiras a darem mais
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ênfase à questão de melhor proteção da segurança pública.

REFERÊNCIAS

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sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BATELLA, Wagner Barbosa; DINIZ, Alexandre Magno Alves Diniz. Análise espacial dos
condicionantes da criminalidade violenta no Estado de Minas Gerais. Disponível em <
https://www.scielo.br/pdf/sn/v22n1/11.pdf. Acesso em 11 de abril de 2021.

BEZERRA, Angélica Gonçalves. Quem cria a criminalidade é o criminoso?. Trabalho de


conclusão de curso (Serviço Social) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2006.

CÂMARA, Bartira Macedo Santos. Defesa social: uma visão crítica. São Paulo: Estúdio
Editores.com, 2014.

CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2015.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2016.

CASALI, Cláudio Tavares. O emprego da Força Terrestre em operações de garantia da


lei e da ordem. Rio de Janeiro, Quadrim. 2016.

GUIMARÃES, Gabriela Almeida. O impacto da implementação do estatuto do


desarmamento sobre a taxa de homicídios no Brasil. Disponível em <
https://app.uff.br/riuff/handle/1/10022> Acesso em 11 de abril de 2021.

PALLAMOLLA, Rafaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São


Paulo. IBCCrim, 2017.

324
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SANTOS, Carlos Gomes Sousa. O perfil da violência contra crianças e adolescente,


segundo registro dos conselhos tutelares: vítimas, agressores e manifestações de
violência. Ciência e Saúde Coletiva. 2018.

SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Polícia e Policiamento no Brasil: mudanças recentes
e Tendências Futuras. Boletim IBCCRIM, nº. 113, 2002.

SILVA, Maria Carmelita Maia e et al . Caracterização dos casos de violência física,

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psicológica, sexual e negligências notificados em Recife, Pernambuco, 2012. Epidemiol.
Serv. Saúde, Brasília , v. 22, n. 3, p. 403-412, set. 2013.

THUMS, Gilberto. Estatuto do desarmamento: fronteiras entre racionalidade e


razoabilidade, comentários por artigos (análise técnica e crítica). Imprenta: Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2005.

VALLA, Wilson Odirley. Doutrina de Emprego de Polícia Militar e Bombeiro Militar.


São Paulo: AVM, 2014.

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A SÍNDROME DA MULHER DE POTIFAR E A RELAÇÃO COM DIREITO PENAL


BRASILEIRO

WESLEY PEREIRA DOS SANTOS:


Bacharelando do curso de Direito pela
Universidade Brasil Campus Fernandópolis

ELOÍSA DA SILVA COSTA


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(orientadora)

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a Síndrome da Mulher de Potifar
e suas implicações probatórias nos crimes contra a dignidade sexual. Tal figura jurídica que
demonstra a capacidade de culpar outrem por crimes devido à recusa, de apresentar
denúncias inverídicas com a intenção de punir a pessoa causadora de tal desilusão, bem
como das consequências que acarreta e dos critérios que a desencadeiam na esfera
administrativa e judicial. Na perspectiva, detalha os sistemas de apreciação de provas,
como o do livre convencimento motivado, que é adotado pelo Brasil, e a versão de quando
a palavra da vítima é falsa. O Capítulo VI do Código Penal Brasileiro regulamenta os crimes
contra a dignidade sexual, pois nesses casos típicos, o sistema penal brasileiro atribui
grande importância à fala da vítima como mecanismo de avaliação de provas de tais crimes
(art. 201, CPP), e como isso pode acarretar danos ao acusado. E como a descoberta da
falsidade, inverte o papel de acusado ao de vítima, alvo de dois possíveis crimes o de
denunciação caluniosa e calúnia, este último dependendo do meio ao qual foi propagado.
Para discutir a frequente ocorrência de falsas denúncias de crimes sexuais nesse contexto,
este artigo foi desenvolvido na medida em que busca analisar a questão e as consequências
para os réus de tais delitos, abordando também uma provável institucionalização da prisão
preventiva ou medidas cautelares diversas como obrigatórias e automáticas no judiciário
brasileiro, e como a relevância da opinião pública nestes casos, torna a situação do falso
autor do delito extremamente delicada, fazendo com que o mesmo seja jogado no rol dos
culpados sem direito ao devido processo legal. Como também o princípio da presunção
de inocência.

Palavras-chave: Síndrome, injustiça, criminologia, vitimização, denúncia.

ABSTRACT: The present work aims to analyze Potiphar's Woman Syndrome and its
evidentiary implications in crimes against sexual dignity. Such a legal figure that
demonstrates the ability to blame others for crimes due to refusal, to present untrue
complaints with the intention of punishing the person causing such disillusionment, as well
as the consequences it entails and the criteria that trigger it in the administrative and
judicial sphere. In perspective, it details the evidence assessment systems, such as the
motivated free conviction, which is adopted by Brazil, and the version of when the victim's

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word is false. Chapter VI of the Brazilian Penal Code regulates crimes against sexual dignity,
because in these typical cases, the Brazilian penal system attaches great importance to the
victim's speech as a mechanism for evaluating evidence of such crimes (art. 201, CPP), and
as this may cause harm to the accused. And as the discovery of falsehood, inverts the role
of accused to that of victim, target of two possible crimes: slanderous denunciation and
slander, the latter depending on the medium to which it was propagated. To discuss the
frequent occurrence of false reports of sexual crimes in this context, this article was
developed as it seeks to analyze the issue and the consequences for the defendants of such
crimes, also addressing a probable institutionalization of preventive detention or various

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precautionary measures as mandatory. and automatic in the Brazilian judiciary, and how
the relevance of public opinion in these cases makes the situation of the false offender
extremely delicate, causing him to be placed on the list of culprits without the right to due
process. As well as the principle of presumption of innocence.

Keywords: Syndrome, injustice, criminology, victimization, denunciation.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa será desenvolvido com a pretensão de estudos,


com o seguinte entendimento, em razão de uma grande divisão de pensamentos acerca
do uso exclusivo da palavra da vítima em crimes de natureza sexual, coloca em voga a
figura criminológica da mulher que, ao ser rejeitada, imputa, falsamente, àquele que a
rejeitou, conduta criminosa relacionada à dignidade sexual.

A questão referente a Síndrome da Mulher de Potifar e a relação com o direito penal,


crimes contra a dignidade sexual e sua dificuldade probatória devida às suas características
próprias, tal síndrome é uma configuração jurídica na qual a criminologia desenvolveu a
teoria de que vítimas prestam falsas denúncias contra desavenças. Esta terminologia tem
como referência uma passagem do antigo testamento, aonde um eunuco general egípcio
chamado Potifar teria comprado como escravo José filho de Jacó, em resumo da história a
esposa de Potifar teria tentado seduzir José que não teve o mesmo interesse.

“Eis que meu amo não sabe nem o que há comigo na casa, e tudo o
que tem ele entregou na minha mão. Não há quem seja maior do
que eu nesta casa, e ele não me vedou absolutamente nada, exceto
a ti, porque és sua esposa. Portanto, como poderia eu cometer esta
grande maldade e realmente pecar contra Deus? ” (Gênesis 39:8, 9)

E com isso a esposa disse ao marido ter sido vítima de violência sexual, por tanto a
doutrina penal usando analogicamente este fato batizou com este nome, sendo um termo

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utilizado para se referir a todas às acusações falsas e enganosas a prática de estupro ou de


qualquer outro delito que envolva violência sexual.

Segundo Cleber Masson ensina (MASSON, 2013, p. 27) ...

"...para análise da verossimilhança das palavras da vítima,


especialmente nos crimes sexuais, a criminologia desenvolveu a
teoria da “síndrome da mulher de Potifar”, consistente no ato de
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acusar alguém falsamente pelo fato de ter sido rejeitada, como na


hipótese em que uma mulher abandonada por um homem vem a
imputar a ele, inveridicamente, algum crime de estupro (MASSON,
2013, p. 27).

Neste contexto se tem a síndrome da mulher de Potifar, teoria que busca analisar
a credibilidade do depoimento da vítima no direito penal e no processo penal, buscando
a validade e seriedade na investigação notadamente nos delitos sexuais, sendo via de regra
crimes praticados na clandestinidade por muitas vezes sem testemunhas, e com isto, temos
a palavra da vítima contra a do acusado, trazendo à tona fatos com maior veracidade a
narrativa acusatória prestada e impedir a possível prática da denunciação caluniosa, crime
descrito no artigo 339 do Código Penal, quando se dá causa à instauração de investigação
policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou
ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe
inocente, evitando a injustiça gerada.

O presente artigo possui métodos de revisão bibliográfica do tema por autores e


publicações com procedimentos descritivos e abordagem estimativa e indutiva.

2 OBJETIVO

Com o presente trabalho objetiva-se apurar a relação entre o direito penal brasileiro
e a síndrome da mulher de Potifar, trazendo à tona informações pertinentes quanto a
implicações probatórias da palavra da vítima contra o acusado e mostrando como em
muitos casos há o prejuízo ao instituto do in dubio pro reo.

A intensão é mostrar que através de investigação minuciosa dos fatos em caso de


insuficiência da prova testemunhal, aliada ao conteúdo da legislação constitutiva e
infraconstitucional, esta não deverá ser suficiente para proceder à uma sumária
condenação, preservando - se os direitos fundamentais do indivíduo. E o uso de métodos,
como a avalição psíquica da vítima no curso da ação penal, para acompanhamento e
aconselhamento ao órgão julgador, haverá uma grande probabilidade de a decisão ser
justa trazendo segurança jurídica a sociedade.

3 O FENÔMENO DA VITIMIZAÇÃO NA SÍNDROME DA MULHER DE POTIFAR


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Para entendermos mais sobre a Síndrome da Mulher de Potifar e como ela interage
no direito penal, vislumbraremos o fenômeno da vitimização, que tem classificação de
acordo com a teoria sociológica criminológica que faz com que esta vitimização seja
encarada como primária, secundária e terciária. A vitimização primária são os efeitos
decorrentes da própria prática do crime ou os sofridos pela própria vítima decorrentes da
adoção por um terceiro da conduta socialmente inadequada. A vitimização secundária ou
sobre vitimização é a necessidade de lembrar dos fatos como aconteceram afim de permitir
a instrução de procedimentos investigatórios ou mesmo procedimentos judiciais e
apuração da responsabilidade penal das pessoas envolvidas. Na vitimização terciaria há

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uma falta de amparo dos órgãos públicos às vítimas; nesse contexto, a própria sociedade
não acolhe a vítima, e muitas vezes a incentiva a não denunciar o delito às autoridades. O
fenômeno da vitimização terciária é interpretado não somente do ponto de vista do
desconhecimento do Estado da prática criminosa, como também da estigmática que a
vítima sofre em relação a própria sociedade, quando muita das vezes principalmente em
relação aos crimes contra a dignidade sexual se atribui a própria vítima a razão de ter
sofrido o crime, ou seja, ela é punida duas vezes, uma por ter sofridos os efeitos diretos
(vitimização primária) e a outra por ter assumido ou terem imposto a responsabilidade por
ter sofrido a conduta criminosa. Mas se o fato imputado pela vítima não for verdadeiro,
poderá ser responsabilizada penalmente? A resposta é sim! E essa conduta em princípio
encontra adequação típica no artigo 339 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 (Código Penal), denunciação caluniosa...

“Art. 339. Dar causa à instauração de inquérito policial, de


procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de
processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de
improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime,
infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente:
(Redação dada pela Lei nº 14.110, de 2020).

Outra hipótese de crime praticado advindo dessa síndrome, seria o de calúnia,


mas dependeria de qual meio é divulgado pela suposta vítima, como exemplo ser
postado em redes sociais da internet, previsto no artigo 138 do Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 (Código Penal) calúnia...

“Art. 138. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido


como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

§ 1º Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a


propala ou divulga.

§ 2º É punível a calúnia contra os mortos. ”


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Com todo o contexto exposto, torna-se possível, com que a Síndrome da Mulher
de Potifar não se atenha apenas aos registros bíblicos, mas seja alvo de discussões na vida
real.

4 PROVA TÉCNICA E CREDIBILIDADE DA PALAVRA

O estupro ou qualquer outro delito que envolva violência sexual normalmente é


praticado na clandestinidade, longe da vista e dos ouvidos de outras pessoas, deixa
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margem a palavra da vítima como meio de prova, conforme art. 201 do Código de Processo
Penal, que dispõe:

[…] existem indicadores (vulnerabilidade, experiência limitada,


labilidade, aspectos de imaginação e simbolização, dentro outros)
sugestivos de que crianças de tenra idade são mais suscetíveis a
influências tanto de ordem exterior quanto de ordem interior – estas
advindas de seu próprio mundo interno (fantasias) –, seja pelas
características da etapa do ciclo vital em que se insere a infância, seja
porque a criança ainda está pouco equipada com a carga de
experiências que a vida pode emprestar.” (TRINDADE2013, p. 59).

Com base na perspectiva de Jorge Trindade, casos em que as vítimas são


vulneráveis prescritos no Artigo 217 A do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940,
demonstra a importância de ser abordado por especialistas preparados para expor a
verdade sobre o fato ocorrido. Se a avaliação psíquica de crianças e adolescentes vítimas
de abusos sexuais teria capacidade probante capaz de inferir condenação criminal, a
mesma avaliação poderia resultar em absolvição, contudo demonstrado a contradição ou
a impossibilidade de prova da admissibilidade do citado pela suposta vítima. Incorre na
mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, enfermo,
deficiente e pessoas em situação ou estado que impossibilite o oferecimento de
resistência”. Desse modo com os artigos mencionados, nos dias de hoje a palavra da vítima,
tem uma maior força probatória, mesmo que seja a única prova da acusação. Tal imputação
torna a situação do suposto autor do delito precária, pois, há um pré-julgamento perante
a sociedade, como culpado, e sem direito ao devido processo legal e o princípio da
presunção de inocência.

Conforme ensina Rogério Greco (GRECO, 2011, p. 482) ....

“ O julgador deverá ter a sensibilidade necessária para apurar se os


fatos relatados pela vítima são verdadeiros, ou seja, comprovar a
verossimilhança de sua palavra, haja vista que contradiz com a
negativa do agente. A falta de credibilidade da vítima poderá,
portanto, conduzir à absolvição do acusado, ao passo que a

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verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto


condenatório. ” (GRECO, 2011, p. 482).

Neste contexto da síndrome, a conclusão de que é muito importante não se apegar


em questões indiciárias com pontos frágeis em tais delitos, contendo outras provas além,
como exemplo a avaliação psíquica da vítima, já que a Lei nº 12.015/2009, que juntou a
tipificação do art. 213 do Código Penal, as condutas de estupro e violação sexual, a
Síndrome da mulher de Potifar ganhou força no nosso ordenamento jurídico, já que o
crime de estupro passou a não exigir em todas as suas modalidades a conjunção carnal

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


para se configurar ato delituoso.

6 QUESTÕES INDICIÁRIAS

Como quase todos os crimes de natureza sexuais aconteçam muitas vezes sem
testemunhas e também na clandestinidade, tal avalição seria uma forma de
complementação de prova da ocorrência do abuso, pois, muitas vezes não é suficiente para
a comprovação da materialidade do delito, com tal complementação tribunais e juízes de
direito utilizarem desse meio para afirmar com maior segurança e com isso consistência a
veracidade do depoimento acusatório.

No cenário atual do direito brasileiro temos decisões favoráveis a absolvição por


falta de provas técnicas e com base em laudo psicológico colocando em voga a validade
da declaração acusatória.

Como exemplo segue julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

“APELAÇÃO-CRIME. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL.


ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO. Absolvição. A absolvição é
medida impositiva, ante o contexto probatório que se apresenta. Não
existem provas técnicas a referendar a efetiva existência do crime. O
laudo psicológico. A conclusão do laudo psicológico em uma das
vítimas indicou não haver “possibilidade da aplicação da análise de
validade da declaração para tentar estabelecer a credibilidade das
informações e a existência de nexo causal”. […]. Assim sendo,
havendo dúvida insuperável sobre a efetiva configuração do fato
descrito na denúncia e suas circunstâncias, necessária a absolvição
dos acusados. […] RECURSO PROVIDO. (ACR nº 70048486203, Quinta
Câmara Criminal, Rel. Desembargador Diogenes Vicente Hassan
Ribeiro, Julgado em 30/01/2013) grifou-se”

331
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A análise de jurisprudências e entendimentos jurisdicionais expõe como os fatos


são restabelecidos por meio da narrativa dos envolvidos, cabendo interpretação dada
pelos operadores de direito, e como forma de complementação à prova física vem a
avaliação psíquica da vítima como importante instrumento apurador da verdade.

Nesse Sentido leciona (Gonçalves; 2016)

“É evidente, entretanto, que existem falsas vítimas que simulam o


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estupro com a intenção de prejudicar outra pessoa (um parente, ex-


marido, uma pessoa abastada a fim de lhe exigir dinheiro etc.). Por
isso, é sempre relevante que o juiz analise com cuidado as palavras
da vítima a fim de verificar eventuais contradições com os
depoimentos anteriores por ela prestados ou a existência de alguma
razão concreta para querer prejudicar o acusado, hipóteses em que
a análise das provas deverá ser feita ainda com mais cautela, para se
evitar eventuais injustiças. Em suma, é possível a condenação de um
estuprador com base somente nas palavras e no reconhecimento
efetuado pela vítima, desde que não haja razões concretas para que
se questione o seu depoimento. Há uma presunção de que suas
palavras são verdadeiras, sendo, contudo, relativa tal presunção. ”

A ocorrência iterada de falsas acusações é comum porque há uma certa


dificuldade para os juízes sentenciarem crimes sexuais por falta de provas e porque é
possível obter uma sentença punitiva simplesmente confiando na palavra da vítima. O
estupro sendo o tipo mais grave de abuso sexual. Segundo a legislação brasileira, vai além
da penetração (conjunção carnal), de forma constrangedora e sem consentimento, sexo
oral, masturbação, toques íntimos e introdução forçada de objetos, por exemplo, também
se enquadram nessa categoria de violência sexual. Este delito é caracterizado pelo uso de
violência física ou psicológica, no qual o agressor ameaça a vítima para satisfazer o seu
prazer, diante da gravidade de tal crime e a forte relevância social, o magistrado deve
sempre analisar a veracidade da palavra da vítima e ter uma análise mais nítida do fato
em si quanto a admissão como prova exclusiva para condenação do acusado, pois, não
pode ser um inocente condenado com dúvidas perante sua inocência, ainda mais diante
de meios que permitem a possibilidade de sua defesa em ação penal.

7 CONCLUSÃO

No decorrer do presente artigo têm-se a afirmação da necessidade de motivação


específica e concreta nas decisões que decretam a prisão cautelar, bem como o exame do
fundamento constitucional de toda e qualquer decisão judicial, cabe destacar que a
referida necessidade surge com muito mais destaque na decisão que ordena a prisão de

332
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um indivíduo acusado de cometer um crime específico, porém, não são raros os casos de
ausência de fundamentação para as prisões preventivas ou medidas cautelares.

No cerne do direito penal a avaliação do in dubio pro reo fica contaminada, tendo
exposto que a palavra da vítima teria maior peso contra a do acusado, como exemplo claro
dessa dissonância probatória, temos o crime de estupro e sua abrangência nos termos da
Lei nº 12.015/09 que quando descoberto causa um forte clamor social em favor da vítima
e quase que instantaneamente torna o acusado culpado, operando-se um pré-julgamento
em volta de quaisquer delitos de natureza sexuais, relembrando assim os dias sombrios do

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sistema inquisitório, sem chance ao direito da ampla defesa.

O presente trabalho visa demonstrar critérios que deveriam ser observados antes
da valoração da palavra da vítima, que à luz das provas, conclui-se que nos crimes contra
a dignidade sexual, a pena não tem caráter absoluto, e que no caso em questão, bem como
todas as provas apresentadas pela suposta vítima do crime, devem ser completamente
perscrutadas, assim ao examinar os fatos relatados pela vítima o juiz deve ser cauteloso.
Ressalta - se que o objetivo deste estudo não é argumentar que tal crime não deva ser
punido, mas sim demonstrar que, em determinadas circunstâncias, a vítima pode criar um
cenário de violência com o objetivo de condenar um indivíduo.

Em suma traz à tona o papel do Estado em utilizar-se de todos os meios cabíveis na


defesa do direito, como a avaliação psíquica da pretendente vítima, conforme vem sendo
estudado pela psicologia e criminologia com reflexo direto ao direito penal e
principalmente ao processo penal no que se refere ao valor da prova e da credibilidade da
versão da suposta vítima, tendo como ideia uma participação de psicólogos ou psiquiatras
no curso da ação penal, para acompanhamento da vítima e aconselhamento ao órgão
julgador, para tomada da melhor decisão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA: Tradução de João José Pedreira de Castro. 51 ed. São Paulo: Ave Maria,
f. 87 e 88, 2004. 1110 p. (Velho Testamento e Novo Testamento).

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: dos crimes contra
a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 6 ed. São Paulo: Saraiva, v. 4 rev. e
ampl, 2012.

BREIER, Ricardo; TRINDADE, Jorge. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. 3. Ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013;

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BRASIL. Lei nº 8.072de 25 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm. Acesso em: 30 set. 2021.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Parte Especial, Esquematizado, 6 ª Ed, São
Paulo, Editora Saraiva, 2016.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: Parte especial. Rio de Janeiro: Impetus, v. II, 2017.
99 p.
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MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado: parte especial. Cleber Masson.
6. ed. rev. e atual ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: Forense, v. 2, 2014.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Quinta Vara Criminal. Apelação Crime
ACR n. 70048486203. Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro. Julgamento em 30 de
setembro de 2021.

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O CRIME DE TERRORISMO NA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA: REFLEXÕES


CRÍTICAS À LEI N. 13.260/16

REBECCA SCALZILLI RAMOS PANTOJA:


Graduada em Direito pela Universidade
Federal Fluminense - UFF. Advogada.

RESUMO: A definição de terrorismo é uma tarefa difícil no cenário mundial, seja em razão
da alta complexidade do fenômeno, seja pela possibilidade de sua manifestação de

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diversas formas, a depender de fatores culturais de uma determinada localidade e do
período histórico considerado. O trabalho objetiva o desenvolvimento de temas essenciais
ao estudo do terrorismo, para, ao final, realizar comentários críticos à Lei n. 13.260/2016,
concluindo pelo êxito geral desta, apesar da observância de algumas imperfeições.

Palavras-Chave: Terrorismo – Fenômeno comunicacional – Instrumentalização das vítimas


– Finalidade política – Tratamento penal – Lei Antiterrorismo.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O TERRORISMO NA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA. 1.1. A


BUSCA POR UM CONCEITO JURÍDICO-PENAL DE TERRORISMO. 1.1. ELEMENTOS
CARACTERÍSTTICOS DO TERRORISMO. 1.1.1. O DISCURSO DO TERROR. 1.1.2. A
QUALIDADE ORGANIZACIONAL. 1.1.3. A FINALIDADE POLÍTICA. 1.1.4. BEM JURÍDICO
TUTELADO. 1.1.5. DELITOS-MEIOS DE GRAVIDADE.1.2. DISTINÇÕES RELEVANTES.1.2.1. O
TERRORISMO E O CRIME POLÍTICO. 1.2.2. O TERRORISMO E A GUERRA. 1.2.3. O
TERRORISMO E AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS. 2. O TRATAMENTO PENAL DO
TERRORISMO. 3. COMENTÁRIOS À LEI N. 13.260/2016. 3.1. ELEMENTO ESTRUTURAL. 3.2.
ELEMENTO TELEOLÓGICO. 3.3. CAUSA DE EXCLUSÃO DO CRIME. 3.4. FAVORECIMENTO
PESSOAL NO CRIME DE TERRORISMO. 3.5. ATOS PREPARATÓRIOS DO CRIME DE
TERRORISMO. 3.6. FINANCIAMENTO DO TERRORISMO. 3.7. CAUSA ESPECIAL DE
AUMENTO DE PENA. 3.8. ANTECIPAÇÃO DOS INSTITUTOS DO ART. 15 DO CP. 3.9.
COMPETÊNCIA INVESTIGATIVA E PARA PROCESSO E JULGAMENTO. 3.10. A HEDIONDEZ
DO CRIME DE TERRORISMO. 3.11. ADMISSIBILIDADE DA PRISÃO TEMPORÁRIA. 3.12.
APLICAÇÃO DA LEI DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva o desenvolvimento de temas essenciais ao estudo do


terrorismo, buscando, em um primeiro momento, estabelecer um conceito eminentemente
jurídico-penal do fenômeno, com enfoque não apenas na caracterização deste, como
também na sua distinção de outras figuras criminais e de manifestações sociais de caráter
diverso.
335
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Nesse passo, debruçar-se-á, especialmente, na doutrina espanhola, que apresenta


maior grau de aprofundamento no estudo da matéria, para abordar os elementos
indicados como constitutivos do terrorismo, que, necessariamente, devem ser observados
para a sua configuração, merecendo destaque a mensagem de terror e a natureza
comunicacional do ato.

Após serem explanados os pressupostos básicos atuais para a compreensão do


terrorismo, comumente apontados pela doutrina, serão traçadas algumas diferenciações
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relevantes, a fim de que se possa complementar a construção do conceito jurídico-penal


de terrorismo e de que se evitem equívocos em relação ao tratamento destinado ao
fenômeno em tela.

Em um segundo momento, considerando-se o destaque mundial reservado à


discussão a respeito do combate ao terrorismo, correntemente acompanhada da defesa
de medidas extremadas de persecução e punição, reflexos do que se conhece por
expansionismo penal, serão esmiuçadas algumas questões atinentes ao tratamento do
delito.

Ao final, no terceiro e último capítulo, serão realizados alguns comentários críticos


à Lei 13.260/2016, publicada em 16 de março de 2016, também conhecida como Lei
antiterrorismo, que representou o atendimento, com certo atraso, ao mandado
constitucional de criminalização estampado no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal.

1. O TERRORISMO NA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA

1.1. A busca por um conceito jurídico-penal de terrorismo

A conceituação do terrorismo tem se mostrado uma tarefa árdua no cenário


mundial, em razão da alta complexidade do fenômeno, que não apresenta uma forma
definitiva e imutável, mas, ao contrário, verdadeiro caráter transmutável, demonstrado ao
longo da história. Com isso, urge, de plano, registrar a inexistência, bem como a
impossibilidade, de uma definição universal do tema em estudo.

O fenômeno do terrorismo ostenta diversas facetas, alternando-se a sua forma de


manifestação a depender de fatores culturais em um mesmo período da história, ou se
modificando o modelo de terrorismo no decorrer da história em um mesmo local do
mundo. Na medida em que ocorrem mudanças no contexto social, novas concepções
acerca do terrorismo emergem.

Com efeito, os ataques ocorridos em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001,


evidenciaram um novo formato do terrorismo, de escala global e tendente a refletir no
mundo inteiro, o que não se verificou nas manifestações de terrorismo do século XX, mais
modestas, notadamente, no tocante à repercussão.
336
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Diante da impossibilidade de se traçar, com segurança, uma definição universal do


fenômeno em tela, a solução encontrada foi o direcionamento do estudo à análise de um
conceito eminentemente jurídico-penal do terrorismo, não se desconhecendo, entretanto,
a existência de uma concepção mais ampla acerca do tema.

Nesse exato sentido, Manuel Cancio Meliá aduz que o ponto de partida de qualquer
análise do conceito de terrorismo consiste em não se confundir a sua definição jurídico-
positiva com qualquer outra que lhe possa ser atribuída, em pontos de vista distintos de
uma análise estritamente dogmática.211

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Atendo-se, pois, a essa conceituação especificamente jurídica do terrorismo, a
doutrina costuma identificar duas classes de características do fenômeno. De um lado,
indica aspectos que dizem respeito ao elemento estrutural, destacando a forma de
configuração do terrorismo; e, de outro, indica aspectos relativos ao elemento teleológico,
cujo enfoque corresponde aos objetivos traçados por quem pratica o ato.

Nessa linha, de acordo com as lições de L. Arroyo Zapatero: “(...) puede ensayarse
una definición del problema ‘terrorismo’ conjugando dos elementos. De una parte, los
medios empleados y los resultados producidos por los autores de las prácticas terroristas
y, de otra, la finalidad que se persigue.” 212

A partir do referido método conceitual, o Grupo de Estudos de Política Criminal, de


origem espanhola, concluiu que, em termos gerais, o terrorismo pode ser classificado como
sendo uma negação de direitos fundamentais, por meio da utilização da violência como
meio de promoção do terror, o que se dá no âmbito de estruturas organizadas e com fins
políticos. 213

Atendendo, igualmente, aos critérios estrutural e teleológico, Mariona Llobet Anglí


esclarece que terrorismo é a conduta delitiva violenta, reiterada e indiscriminada, em um
processo de instrumentalização das pessoas, com o objetivo de alcance de um objetivo
político. 214

211
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010.
212
ARROYO ZAPATERO, L., 1985 apud CAPITA REMEZAL, Mario. Análisis de la legislación penal
antiterrorista. Madrid: Editora Colex, 2008. p. 25.
GRUPO DE ESTUDIOS de Política Criminal. Uma alternativa a la actual política criminal sobre terrorismo.
213

Málaga: Grupo de Estudios de Política Criminal 2008. v. 9.


LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
214

Madrid: La Ley, 2010. p. 66.

337
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Corroborando tais entendimentos, Ana Isabel Pérez Cepeda, professora titular de


direito penal na Universidade de Salamanca, ensina que o fenômeno em questão tem por
objetivo provocar terror na sociedade, o que se concretiza com a prática de crimes,
exigindo-se o cumprimento de alguma reivindicação política para fazer cessar a violência.
215

Pode-se extrair das definições supramencionadas alguns componentes relevantes, a


saber, o caráter comunicacional do ato terrorista, que, assim, estabelecerá um verdadeiro
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diálogo de terror, bem como a prática de crimes comuns, a estrutura organizacional e a


finalidade primordialmente política.

Adiantada uma breve noção acerca do conceito - frise-se: eminentemente jurídico-


penal - do terrorismo, passaremos, agora, à análise mais detida de cada um dos elementos
comumente apontados pela doutrina como sendo constitutivos do fenômeno ora em
exame.

1.2. Elementos característicos do terrorismo

1.2.1. O discurso do terror

O primeiro fator que se exige para a configuração do terrorismo, alcançado pelo


consenso doutrinário, consiste na utilização do discurso do terror. Trata-se da finalidade
de criação de uma atmosfera de pânico, que se mostra necessária para o alcance de outro
objetivo maior, majoritariamente entendido como sendo um objetivo político.

Nesse passo, pode-se afirmar que o terrorismo tem por objetivo imediato a difusão
do sentimento de terror, isto é, a promoção generalizada de um estado psíquico de grande
medo ou pavor, que corresponderia ao meio capaz de levá-lo ao seu objetivo último ou
mediato, a ser estudado em tópico subsequente.

Ressalte-se a carga fortemente subjetiva do terrorismo, vez que a sua experiência se


destina à manipulação de sentimentos, acarretando efeitos no campo psicológico. Assim
sendo, verifica-se que o cerne do ato terrorista não está no dano material, embora seja este
de fácil observação, mas na própria mensagem que acompanha o ato, apta a abalar a
estrutura psíquica de uma sociedade.

Cumpre salientar que, para além da mensagem pretendida pelo ato terrorista, deve
haver a sua efetiva disseminação, ou seja, a ocorrência de um verdadeiro fenômeno
comunicacional. Na contemporaneidade, o que se percebe é uma relação de cumplicidade

PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del Derecho penal
215

postmoderno. Madrid: Editora Iustel, 2007. p. 161

338
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entre o terrorismo e a mídia, responsável pela divulgação dos atentados terroristas, o que
viabiliza a configuração prática do fenômeno em análise.

Especial relevo merece o caráter aleatório de identificação das vítimas do terrorismo.


Estas não possuem nome, nem rosto. Para que o discurso terrorista atinja a proporção
devida, revela-se necessária a indiscriminação de seus efeitos, que não se limitam às vítimas
diretas de seus danos (aquelas afetadas diretamente pelo disparo de um artefato explosivo,
por exemplo).

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Lembre-se de que o presente estudo é desenvolvido sob uma perspectiva
contemporânea do terrorismo, sobretudo considerando o novo formato adquirido pelo
fenômeno após os ataques ocorridos em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Antes
desse marco, não se observava a referida aleatoriedade na identificação das vítimas, vez
que estas representavam, em regra, uma face do Estado a ser combatida, a exemplo da
figura do governante, do embaixador e do juiz.

Modernamente, percebe-se que, mesmo quando o ato terrorista se dirige a uma


pessoa em especial ou a um grupo previamente identificado, exige-se que tantos outros
indivíduos figurem como vítimas indiretas, isto é, vítimas da mensagem de terror, sendo
estas pessoas indeterminadas.

Nessa esteira, Mariona Llobet Anglí, ao diferenciar o crime de ameaça do crime de


terrorismo, explana, com êxito e simplicidade, que a mensagem constante na ameaça seria
“vou tocar em você, sujeito determinado, se não cumprir determinada imposição.” Por sua
vez, a mensagem própria do terrorismo seria “posso tocar em você, sujeito indeterminado,
em uma próxima vez.”. 216

É de se notar que as vítimas diretas do terrorismo, que tiveram, por exemplo, a vida
ou a integridade física atingida, são tomadas como meros instrumentos necessários para o
alcance da disseminação do terror. As pessoas atacadas diretamente assumem o papel de
instrumento, funcionando como portadoras da mensagem terrorista.

Em um segundo momento, criada a atmosfera de terror, são todas as vítimas –


diretas e indiretas – manuseadas como instrumento para que a mensagem terrorista
alcance o Estado, com o objetivo de impor determinada intenção do grupo terrorista. A
instrumentalização das vítimas ocorrerá, portanto, em dois níveis.

LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
216

Madrid: La Ley, 2010. p. 82.

339
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Por fim, como último desdobramento da necessidade de disseminação do terror,


verifica-se a possibilidade de reiteração dos atos. Ora, o que justamente torna o medo do
terrorismo de tamanha grandeza é a perspectiva de que aquele ato específico e já
consumado tenderá a se repetir.

Frise-se que, ainda que se tenha cometido um único ato, não restará prejudicada a
sua classificação como terrorista, pois, conforme os ensinamentos de Mariona Llobet Anglí,
o sentimento de pânico gerado pelo terrorismo não depende da pluralidade de atos
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concretos, mas de uma perspectiva de repetição do ato217, o que se traduz pelos


sentimentos de angústia e incerteza em relação ao futuro.

1.2.2. A qualidade organizacional

No tocante à possibilidade de caracterização de um ato individual como terrorista,


ao contrário do item antecedente, não há voz pacífica na doutrina. De um lado, há quem
defenda a viabilidade do denominado “terrorismo individual”, levando-se em consideração
o grau de destruição que podem alcançar algumas armas modernas. De outro, há quem
encontre dificuldade em se enxergar, no ato cometido por um único agente, o terrorismo,
dada a sua alta complexidade e capacidade comunicacional.

Mariona Llobet Anglí, a quem se fez e ainda se fará outras referências ao longo do
presente estudo, não considera a ocorrência de um ato individual como um empecilho à
configuração do terrorismo, desde que o agente empregue meios de atuação poderosos,
capazes de alcançar a lesividade e operacionalidade próprias de uma organização
terrorista.218

Data venia, entendemos derivar da própria dimensão da mensagem do terrorismo


a sua necessária qualificação organizacional, havendo uma incapacidade de o agente
isolado atingir toda a amplitude abarcada pelo terrorismo. A nosso ver, somente as ações
praticadas por um grupo organizado poderiam ensejar uma significação política
considerável, de modo a caracterizar o fenômeno do terrorismo.

Nesse sentido, Myrna Villegas Días, professora de direito penal da Universidade do


Chile, concebe o terrorismo como um ato de violação massiva e sistemática aos direitos
humanos, que não poderá ocorrer sem uma estratégia, em razão da sua amplitude e

LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
217

Madrid: La Ley, 2010. p. 71.


LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
218

Madrid: La Ley, 2010. p. 88.

340
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complexidade. Conclui a autora que tudo isso só se faz possível no seio de uma
organização, demonstrando, assim, a necessária estrutura coletiva do terrorismo.219

Não obstante, não se afasta a possibilidade de um único sujeito ser capaz, por meio
de seu ato, de difundir o sentimento de medo em grande escala. Sobretudo na sociedade
moderna, em que a instantaneidade de informações é realidade, o medo é facilmente
disseminado, ainda que o ato ocorra em local isolado e distante do receptor da notícia.
Ocorre que não nos parece que esse medo, ainda que generalizado, poderá atingir a
magnitude típica do terrorismo.

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Dois são os modelos de organização percebidos no âmbito da atividade terrorista:
pirâmide e rede. A estrutura piramidal pressupõe maior hierarquização e capacidade de
controle, havendo uma clara divisão de funções entre seus membros. Já na estrutura de
rede, em razão da menor hierarquização, observa-se uma maior flexibilidade, existindo
diversas células ou grupos que atuam com relativa independência e que, geralmente, não
travam contato entre si.

A título de exemplo, a conhecida organização terrorista Al Qaeda, fundamentalista


islâmica e responsável pelos atentados de 11 de setembro, segue a estrutura de rede,
sendo esta a forma de organização que mais se adapta numa escala internacional, vez que
permite um maior alcance operativo de atuação, tornando-se mais difícil de ser
desarticulada. 220

1.2.3. A finalidade política

Um terceiro elemento caracterizador do terrorismo, amplamente apontado pela


doutrina e já mencionado em linhas precedentes, diz respeito ao seu objetivo último, que
seria primordialmente político. Conforme já visto, a organização terrorista, promovendo a
disseminação do terror na sociedade, pretende que o Estado, receptor final da mensagem
terrorista, seja compelido a acatar uma imposição política do grupo.

Para a configuração do terrorismo, pois, não basta a instrumentalização de primeiro


grau do ato, suscetível de atemorizar o público. Exige-se, em um segundo momento, a
instrumentalização de segundo grau, direcionada a estabelecer uma comunicação com o

VILLEGAS DÍAS, MYRNA. Elementos para um concepto jurídico de terrorismo. Santiago, Chile, 29 maio
219

2011. Disponível em: < http://www.humanas.cl/wp


content/uploads/2014/Minutas/Minutas%202010/16.%20Observatorio%20MINUTA%20CONCEPTO%2
0TERRORISMO%20Comision%20Mixta%2029sept2010.pdf >. Acesso em: 22 abr. 2022.
GABBELINE, Rogério Batista. O delito de terrorismo no Ordenamento Penal Lei n. 13.260/2016.
220

Campinas: Millennium, 2016. p. 8.

341
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Estado, para, ao final, ocasionar uma alteração política, sem o respeito às formas
democráticas de consecução de resultados políticos (lê-se: manifestações sociais, exercício
do voto, greves, etc.).

Mariona Llobet Anglí chama a atenção para o fato de a finalidade política do


terrorismo servir, muitas vezes, como elemento diferenciador de, por exemplo, uma
organização criminosa apenas destinada ao narcotráfico ou a atividades mafiosas de
qualquer tipo.221 Ao passo que a organização terrorista não aceita a ordem política vigente
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e objetiva, por meio de atos de violência, a sua alteração forçada, as demais manifestações
do crime organizado sobrevivem na ordenação política local e, dessa forma, pretendem
seguir.

Nesse ponto, não merecem retoques as ponderações de Myrna Villegas Díaz, para
quem o terrorismo é: “(...) cometido con la finalidad de conmover los fundamentos del
Estado democrático alterando la estructura política, social, econômica y/o medioambiental
del país (que podría concretarse en un bien jurídico como el ordenamiento constitucional
democrático)”.222

1.2.4. Bem jurídico tutelado

Dada a complexidade do fenômeno do terrorismo, observa-se, com a sua


experiência, a ofensa não somente a um bem jurídico específico, mas a uma pluralidade
deles. Assim, em um primeiro momento, o ato terrorista violará os mesmos bens jurídicos
protegidos pelo crime comum do qual se utiliza, sendo a vida, a integridade física, a
liberdade e o patrimônio os mais fáceis de serem visualizados.

A posteriori, em razão da difusão do sentimento de terror generalizado em um


grupo social, ou seja, do efeito psicológico do terrorismo, haverá o inconteste ataque à
chamada paz pública, que pode ser entendida como a sensação de segurança geral, de
tranquilidade social.

Por fim, o terrorismo se consubstancia na agressão à própria democracia, mais


especificamente no tocante à tomada de decisões políticas de maneira legítima, haja vista

LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
221

Madrid: La Ley, 2010. p. 57.


222
VILLEGAS DÍAS, MYRNA. Elementos para um concepto jurídico de terrorismo. Santiago, Chile, 29 maio
2011. Disponível em: <
http://www.humanas.cl/wpcontent/uploads/2014/Minutas/Minutas%202010/16.%20Observatorio%20MINU
TA%20CONCEPTO%2 0TERRORISMO%20Comision%20Mixta%2029sept2010.pdf >. Acesso em: 22 abr.
2022.

342
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que, como já exaustivamente explicitado, o ato terrorista possui como objetivo final forçar
o Estado a adotar a sua vontade imposta.

Importa salientar que não se deve aceitar, como meio suficiente para a configuração
do terrorismo, a lesão unicamente à propriedade, seja privada ou pública.

Entende-se que, para que o ato tenha capacidade de afetar ou ameaçar de forma
concreta a ordem democrática, deverá atingir bens jurídicos essenciais ao homem, como a
vida, a integridade física e a liberdade.

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


Ainda a respeito dos bens jurídicos salvaguardados, vale a pena a transcrição da
seguinte passagem da Convenção Interamericana contra o Terrorismo, ratificada pelo Brasil
no ano de 2005: “(...) o terrorismo constitui uma grave ameaça para os valores democráticos
e para a paz e a segurança internacionais (...)”. 223

1.2.5. Delitos-meios de gravidade

Conforme já esclarecido em momentos anteriores deste estudo, o terrorismo se


utiliza de crimes comuns para disseminar o sentimento de terror generalizado nas pessoas,
com o objetivo último de impor ao Estado determinada intenção do grupo terrorista.

Destaca-se que tais meios são, em regra, os crimes que atentam contra os bens
jurídicos dotados de extrema importância às pessoas, quais sejam, a vida, a liberdade e a
integridade física. Isso porque somente o ataque aos bens mais essenciais do indivíduo
tem o condão de criar uma verdadeira atmosfera de terror, capaz de, em um segundo
momento, afetar ou ameaçar de forma concreta a ordem democrática.

Por conta disso, para Mariona Llobet Anglí, os atos que atentem exclusivamente
contra a propriedade ou outros bens materiais não são capazes de ser qualificados como
terroristas, incluindo-se, nesse grupo, por exemplo, os atos de grupos ecologistas que
produzam danos contra bens públicos ou grupos que produzam desordem pública. 14

Destarte, ao se verificar a ofensa tão somente ao patrimônio, público ou privado,


não há que se falar em hipótese de terrorismo, que apenas será observada quando da
223
Convenção Interamericana contra o terrorismo: ratificada em 26 de setembro de 2005. Disponível em:
<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-
deapoio/legislacao/segurancapublica/conv_interam_contra_terrorismo.pdf >. Acesso em: 25/04/2022.
LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
14

Madrid: La Ley, 2010, p. 78.

343
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violação aos bens jurídicos fundamentais de caráter individual, a exemplo dos já


supramencionados.

1.3. Distinções relevantes

Como já exposto, não existe um conceito preestabelecido sobre o terrorismo, sendo


certo que, apesar de todos os esforços por parte da doutrina, ainda se está longe de uma
definição exata, inequívoca e aceitável do fenômeno em tela pela maioria dos Estados.
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

Uma proposta para suplantar as deficiências conceituais de terrorismo, ao menos


para efeitos penais, é apresentada por Walter Lauquer, que se preocupa em estabelecer,
em sua obra, o que não é terrorismo, tendo em vista que, embora os atos terroristas sejam
evidentes formas de violência, por inequívoco, nem toda forma de violência configura
terrorismo.

Nesse linha, Lauquer afirma que tal distinção “(...) is vitally important to recognize
that terrorism, although difficult to define precisely, as this brief history will show, is not a
synonym for civil war, banditry, or guerrilla warfare.”. 224 Veja-se que o autor, não obstante
reconheça a imprecisão do termo, afasta a possibilidade de o terrorismo ser sinônimo de
guerra civil, banditismo ou combates de guerrilha.

Seguindo essa vertente do estudo de Lauquer, depois de desenvolvidos os


elementos constitutivos do terrorismo, correntemente apontados pela doutrina, faz-se
necessário, para uma melhor compreensão do tema, explicitar algumas diferenciações nos
pontos a seguir, a fim de que se possa complementar a construção do conceito jurídico de
terrorismo que aqui se defende.

1.3.1. O terrorismo e o crime político

Em virtude da finalidade eminentemente política do terrorismo, já examinada em


ocasião anterior, pode-se dizer que tal fenômeno guarda semelhança com o crime político,
cujo conceito, segundo a doutrina clássica, abrange não apenas os crimes de motivação
política (aspecto subjetivo), como também os que atentam contra a existência do Estado,
ou de sua organização político-jurídica (aspecto objetivo). 225

A despeito da mencionada semelhança, a jurisprudência do STF é firme no sentido


de que o terrorismo não pode ser compreendido como crime político, imune ao poder de
extraditar do Estado, haja vista que a Constituição Federal, em seus artigos 4º, VIII e 5º,
224
LAQUEUR, Walter. The New Terrorism: Fanaticism and the Arms of Mass Destruction. New York:
Oxford University Press, 1999, p.8.
225
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte Geral. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2000, p.436-437.

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XLIII, prevê que o Brasil repudia internacionalmente o terrorismo e que considera este crime
inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Como se depreende dos dispositivos supracitados, o Brasil assumiu perante a


comunidade internacional o compromisso ético-jurídico de repúdio ao terrorismo, sendo
inadmissível, por conseguinte, que a prática terrorista seja amparada pela norma de
proteção constante do art. 5º, LII, da Constituição, que veda a extradição de estrangeiro
por crime político.

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


Nesse sentido, ressalte-se o seguinte excerto do voto do Ministro Celso de Mello,
na Extradição 855:

“Vê-se, deste modo, que os novos parâmetros constitucionais


inscritos no art. 4º, VIII e no art, 5º, XLIII da Constituição da República
demonstram que o Estado brasileiro assumiu, perante a Nação,
expressivo compromisso de frontal hostilidade às práticas terroristas,
tanto que, ao proclamar os princípios fundamentais que regem as
relações internacionais do Brasil, enfatizou, de modo inequívoco, o
seu repúdio ao terrorismo e, mais do que isso, a Constituição do
Brasil também determinou ao legislador comum que dispensasse, ao
autor do crime de terrorismo, tratamento penal mais severo,
compatível com aquele já previsto para os delitos hediondos.

(...)

O total desprezo constitucionalmente manifestado pelo Estado


brasileiro aos delitos de índole terrorista impede que se aplique, a
estes, a norma de proteção constante do art. 5º, LII, da Constituição,
que veda a extradição de estrangeiro por crime político.”

Em se tratando de crimes políticos puros, isto é, crimes que apresentam motivação


política evidente e predominante, e que não envolvem atos de violência, forçoso se mostra
o reconhecimento da hipótese excludente de concessão de extradição, conforme ensina
Artur de Brito Gueiros Souza.226

A questão se torna discutível no caso de crime político complexo, ou seja, quando


o delito fere o bem jurídico ordem política e, simultaneamente, atinge bens jurídicos

SOUZA, Artur de Brito Gueiros. As novas tendências do direito extradicional. 2ª edição. Rio de Janeiro:
226

Renovar, 2013. p. 189.

345
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comuns227, ou no caso de crime político conexo. Nestas conjunturas, a solução desvendada


foi a aplicação do critério da preponderância ou da principalidade, segundo o qual, nas
lições de Nelson Hungria, “o motivo ou fim político não exclui a extradição quando o fato
imputado constitui, prevalentemente, um crime comum (...)”.228

Nesse passo, se restar observada a prevalência do caráter político dos fatos, a


extradição não poderá ser concedida, em respeito à norma constitucional do art. 5º, LII, da
Constituição. Em contrapartida, se a lesão ao bem jurídico de natureza comum se
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sobrepuser ao bem jurídico político-estatal, haverá a extraditabilidade, não obstante a


existência de motivação política.

É exatamente esse o raciocínio que vem sendo utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal quando da distinção entre terrorismo e crime político, com vistas à extradição ou
não do estrangeiro. Na Extradição 399, a mero título exemplificativo, prevaleceu o caráter
de crime complexo no tocante ao sequestro do Diretor da Fiat-France, conduta pela qual
foi condenado o extraditando na França, o que viabilizou o afastamento da hipótese
excludente de concessão de extradição.

1.3.2. O terrorismo e a guerra

Igualmente, não se confundem ato de terrorismo e ato de guerra, apesar de, em


casos concretos, haver dificuldade notável em se distinguir os dois fenômenos. Manuel
Cancio Meliá aduz que, justamente por não equivaler à guerra, o terrorismo carece de
poderio militar, afastando-se da ideia de um conflito armado de grande intensidade,
porquanto, normalmente, expressa a estratégia do grupo mais débil. 229

Sob uma perspectiva sociológica, Zygmunt Bauman assinala uma realidade


produzida especialmente por conta de uma luta de poder e dominação, em que o “nós”
reflete um grupo subjugado, enquanto o “eles”, um grupo explorador dominante, em razão
do poderio militar deste. 230 Nesse cenário, o terrorismo se apresenta como uma verdadeira
arma de resistência do grupo mais frágil.

227
BARBOSA, Renata da Silva Athayde; COSTA, Rodrigo de Souza. O terrorismo na Constituição brasileira e
seu tratamento na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
228
HUNGRIA, 1960 apud SOUZA, Artur de Brito Gueiros. As novas tendências do direito extradicional. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 190.
229
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010,
p.70.
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.
230

158.

346
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Na busca por um artifício equivalente à força militar que não possui, o terrorismo
encontra na disseminação de pânico, de prejuízos e de vulnerabilidade a arma para
compelir o grupo mais forte a recuar em sua política de dominação. Nesse sentido, Manuel
Cancio Meliá menciona que o equivalente ao uso da força militar desvendado pelo
terrorismo é a seleção de objetos distintos como alvos de sua agressão, com o objetivo de
gerar uma ameaça generalizada. 231

Isto posto, resta patente que guerra e terrorismo não refletem um mesmo
fenômeno. Ora, possuísse o grupo de agentes terroristas um poderio militar, típico dos

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atos de guerra, não seria necessário o apelo à estratégia de disseminação do terror, a fim
de que seus objetivos últimos fossem alcançados.

1.3.3. O terrorismo e as manifestações sociais

Com base na análise já realizada, em oportunidade passada, dos elementos


característicos do terrorismo, pode-se distinguir com clareza os atos terroristas das
manifestações sociais, mesmo quando estas tomam proporções violentas, na medida em
que não satisfazem todos os requisitos necessários à configuração do terrorismo.

Em regra, as manifestações sociais objetivam provocar a alteração de alguma


situação política, ou seja, convergem com o terrorismo no que diz respeito à finalidade
eminentemente política do ato. No entanto, o que se observa, de plano, é que, nas
manifestações sociais, o ato é dirigido diretamente ao Estado, a fim de se exigir soluções
às reivindicações lançadas pelo grupo manifestante.

Quando verificada alguma violência em manifestações sociais, é ela exercida contra


o próprio Estado, geralmente atingindo o seu patrimônio. Com o direcionamento do
ataque a bens públicos, não há que se falar em violação a bem jurídico de extrema
importância ao homem, tornando-se inviável, pois, a consideração do ato como terrorista.

De mais a mais, percebe-se que, nas manifestações sociais reivindicatórias, a


característica do discurso do terror não se faz presente. Ainda que algumas manifestações
acarretem o sentimento de amedrontamento, interferindo, muitas vezes, no direito de ir e
vir das pessoas, este não é um objetivo perseguido do grupo manifestante, como o é do
grupo terrorista quando da instrumentalização de suas vítimas.

Desse modo, não se pode perder de vista que a mensagem da manifestação social,
diferentemente daquela emitida pelo terrorismo, tende a ser enviada diretamente ao
231
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010,
p. 70-71.

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Estado, sem perpassar pela ocorrência do fenômeno comunicacional, capaz de abalar a


estrutura psíquica de uma sociedade.

2. O TRATAMENTO PENAL DO TERRORISMO EM DETRIMENTO DE UM TRATAMENTO


BELIGERANTE

No que concerne ao campo do combate ao terrorismo, indaga-se, assim como fez


Francesco Viganò, se um “Código Penal de paz” é capaz de obstar a prática do
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terrorismo.232 Nesse passo, buscar-se-á, no presente capítulo, abordar algumas questões


atinentes ao tratamento destinado ao fenômeno ora em exame, defendendo, adianta-se, a
aplicação de medidas de Direito Penal comum, próprias de uma atividade criminosa.

Atualmente, observa-se, especialmente no que diz respeito às atividades delituosas


que mais alteram o ânimo social em razão de sua gravidade, a exemplo do terrorismo, uma
forte tendência ao agravamento da resposta legal aos crimes em geral. Nesse diapasão, a
própria sociedade passa a clamar por respostas penais severas por parte do Estado para
os diversos problemas sociais aos quais se depara.

Ocorre que não há qualquer evidência de que um tratamento penal mais rigoroso
representará de fato uma maior eficácia preventiva. Nas lições de Manuel Cancio Meliá, a
atuação do Direito Penal em caráter preventivo possui uma complexidade muito maior do
que supõe o discurso político-criminal que prevalece no cenário moderno, segundo o qual
haveria uma relação correspondente entre o maior nível de severidade do ordenamento
jurídico-penal e níveis superiores de eficácia preventiva. 233

No tocante especificamente ao terrorismo, objeto deste estudo, deve-se ter claro


que determinadas formas mais excessivas de repressão, como aquelas próprias dos atos
de guerra, podem apresentar-se, em verdade, contraproducentes 234, provocando,
inclusive, o agravamento da situação a que se quer repelir, em vez de representarem um
modelo bem-sucedido de controle do fenômeno.

Isso porque, considerando que o objetivo do terrorismo é a difusão do terror para


o alcance posterior de uma finalidade política, o ato terrorista encontrará na própria
ideologia agressiva de seu combate um fator que contribuirá com a criação da atmosfera
de pânico pretendida.

232
VIGANÒ, Francesco. Terrorismo, guerra e sistema penale. In: Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale,
Milão, v. 49, p. 655, abr./jun, 2006.
233
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010,
p. 57.
234
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010,
p. 73.

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Noutro giro, note-se que a finalidade última do terrorismo de alvejar a democracia


é atingida quando o delito é combatido com medidas próprias de atos de guerra. Ou seja,
o terrorismo será, com efeito, beneficiado com a política de guerra ao próprio terrorismo.

Outrossim, é de se notar a função, muitas vezes, meramente simbólica da legislação


penal. Nesses casos, o que se observa como resultado prático da criação de medidas
demasiadamente rígidas pelo legislador é tão somente o incremento de uma aparente
sensação de segurança na sociedade, sem que haja, todavia, compromisso com a
efetividade do texto normativo.

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


A esse respeito, José Luis Díez Ripollés aduz que o simbolismo penal atua no âmbito
legislativo, fazendo com que o legislador pretenda refletir na legislação penal o atual
estado de ânimo social, a opinião coletiva a respeito de determinada realidade, o raciocínio
privado em relação à capacidade da medida em solucionar o problema para o qual se dirige
(ou deveria se dirigir). 235

Winfried Hassemer aponta justamente as leis contra o terrorismo como exemplos


de direito simbólico, incluindo-as nas denominadas “leis de crise”, que possuem o objetivo
de tranquilizar a população.236 Assim, muito embora, aos olhos da sociedade, a adoção de
medidas de gravidade excessiva seja vista como arma eficiente na luta contra o terrorismo,
trata-se, deveras, de mais uma manifestação do simbolismo que assola o Direito Penal.

Corroborando o entendimento no sentido de se rechaçar a aplicação de medidas de


gravidade consideravelmente elevada, como aquelas próprias de guerra, no combate ao
terrorismo, Manuel Cancio Meliá adverte para a propensão da legislação antiterrorista em
contaminar a legislação ordinária. 237

Na perspectiva do autor, é ilusório o pensamento de acordo com o qual as


alterações e criações legislativas relativas à luta contra o terrorismo, que, geralmente,
manifestam-se por medidas drásticas, limitar-se-ão, a curto e longo prazo, aos atos de
terrorismo. O que se apura, na prática, é a expansão dessa legislação, que, depois de passar
por um “período de testes” na disciplina do terrorismo, acaba por ser admitida como
medida aplicável também aos demais crimes.

DIÉZ RIPOLLÉS, José Luis. Política criminal y derecho penal: estúdios. 2. Ed. Valencia: Tirant lo Blanch,
235

2013, p. 47.
HASSEMER, Winfried. Derecho Penal simbólico y protección de bienes jurídicos. In: BUSTOS RAMIREZ,
236

Ruan (dir.). Pena y Estado. Santiago: Editora Jurídica ConoSur, 1995, p.26.
237
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Editora Reus, 2010,
p. 77.

349
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Percebe-se que, com o passar do tempo, boa parte das “leis de exceção” tendem a
perder a natureza de exceção para se tornarem comuns. É o que ocorre, por exemplo, com
o rol de crimes considerados como hediondos, que se encontra em constante expansão,
abrangendo cada vez mais tipos penais e, por conseguinte, despindo-se de seu caráter de
exceção.

Por todo o exposto, imperioso se faz o reconhecimento da qualidade de atividade


criminosa do terrorismo, que se mostra, por isso, merecedor do tratamento do Direito
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

Penal, afastando-se a aplicação de medidas extremadas, como as próprias de guerra. Ora,


o terrorismo configura uma atividade ofensiva à vida, à integridade física, à liberdade das
pessoas, dentre outros bens jurídicos, que também recebem o tratamento do Direito Penal,
com os limites típicos de um Estado Democrático de Direito. 238

É bem verdade que, sozinho, o Direito Penal não é suficiente ao combate de uma
forma de criminalidade tão complexa como é o terrorismo. Nas palavras de Manuel Cancio
Meliá: “Parece que en el caso de estos grupos, es especialmente claro que resulta imposible
desarticular – usando sólo medios de persecución criminal y duraderamente – una
organización multicéntrica y carente de una verdadera estructura funcional en su
conjunto.” 239

Nesse sentido, uma vez que o fenômeno terrorista não se consubstancia


unicamente em uma questão penal, resolúvel pela atuação do Direito Penal isolado, dada
a sua natureza de extrema complexidade, Luigi Ferrajoli destaca a necessidade conjunta de
medidas de política internacional bem coordenadas, a fim de que se combata, bem como
se previna, os atos terroristas. 240

Dessarte, na tentativa de combate ao terrorismo, não se mostra a melhor solução


elevar o fenômeno terrorista a uma questão de guerra, considerando o agente terrorista
como um combatente beligerante e não como um criminoso. Como já referido, o
tratamento do terrorismo como se ato de guerra fosse apenas alimenta ainda mais o
próprio terrorismo, na medida em que colabora veemente com a disseminação do
sentimento de terror nas pessoas.

Ao revés, deve-se primar pela aplicação do Direito Penal comum, com o respeito
aos limites impostos por um Estado Democrático de Direito, aliada, ainda, a uma ação

LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
238

Madrid: La Ley, 2010, p. 140-141 e 145.


CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injunto. Madrid: Editora Reus,
239

2010, p. 61
240
FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoria del diritto e della democrazia. 2. Teoria della democrazia. Itália,
Bari: Ediroti Laterza, 2007, v. 2, p. 507.

350
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policial coordenada internacionalmente, a fim de que se estabeleçam estratégias de


investigação do grupo terrorista e de neutralização do seu exercício.

3. COMENTÁRIOS À LEI ANTITERRORISMO

A Lei n. 13.260/16, publicada em 16 de março de 2016, também conhecida como


Lei antiterrorismo, representou o atendimento, com certo atraso, ao mandado
constitucional de criminalização estampado no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal241,
que equiparou o terrorismo aos crimes hediondos, estendendo àquele as mesmas

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


vedações previstas a estes.

Os mandados constitucionais de criminalização, denominação convencionada pela


doutrina, indicam matérias sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de
legislar, mas sim a obrigatoriedade de tratar, protegendo determinados bens jurídicos ou
interesses de forma adequada e, dentro do possível, integral, conforme preceitos
constitucionais.

Nas lições de Luciano Feldens, o mandado constitucional de criminalização "centra-


se, a princípio, em uma obrigação de caráter positivo dirigida ao legislador, para que
edifique a norma incriminadora, ou, quando esta já existe, em uma obrigação negativa, no
sentido de que se lhe é vedado retirar, pela via legislativa, a proteção já existente”.242

Saliente-se que, até a edificação da Lei n. 13.260/16, as únicas previsões acerca do


terrorismo, no âmbito infraconstitucional, encontravam-se no artigo 20, da Lei n. 7.170/83
243
, conhecida como Lei de Segurança Nacional, e no art. 1º, §1º, II, da Lei n. 12.850/13 244,
denominada Lei de Organizações Criminosas.

Contudo, os referidos dispositivos citam o termo “ato de terrorismo” de forma vaga


e lacônica, deixando de precisar o que vem a ser, por certo, o terrorismo. Assim, até o
241
Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los,
se omitirem;”.
FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas
242

penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 50.


243
Art. 20, da Lei n. 7.170/83: “Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado,
incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por
inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas
clandestinas ou subversivas.”.
Art. 1º, §1º, II, da Lei n. 12.850/13: “Esta lei se aplica também: às organizações terroristas, entendidas
244

como aquelas voltadas para a prática dos atos de terrorismo legalmente definidos.”.

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advento da Lei Antiterrorismo, verificava-se uma flagrante inércia por parte do legislador
ordinário em relação ao mandado de criminalização consubstanciado no art. 5º, XLIII, da
Constituição Federal.

Diante da inequívoca decisão do Estado brasileiro no sentido de conferir um


tratamento penal ao fenômeno do terrorismo, com a criação de um complexo normativo
voltado a esse fim, mostra-se relevante o estudo crítico e detalhado da Lei. 13.260/16, de
16 de março de 2016, o que será feito nos parágrafos subsequentes.
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3.1. Elemento estrutural

O artigo 2º, da Lei n. 13.260/16, a fim de conceituar o terrorismo, utiliza-se das duas
classes de características comumente identificadas pela doutrina e já mencionadas em
oportunidade anterior. De um lado, indica aspectos que dizem respeito ao elemento
estrutural, destacando a forma de configuração do terrorismo; e, de outro, indica aspectos
relativos ao elemento teleológico, cujo enfoque corresponde aos objetivos traçados por
quem pratica o ato, nos seguintes termos:

Art. 2o O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos


dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia,
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando
cometidos com a finalidade de provocar terror social ou
generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou
a incolumidade pública.

§ 1o São atos de terrorismo:

I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer


consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos,
químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou
promover destruição em massa; II – (VETADO);

III - (VETADO);

IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência,


grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos
cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo
temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos,
aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de
saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais
onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de
geração ou transmissão de energia, instalações militares,

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instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e


gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções


correspondentes à ameaça ou à violência.

§ 2o O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou

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coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais,
sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional,
direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a
contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender
direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da
tipificação penal contida em lei.

No que concerne ao elemento estrutural, as condutas típicas capazes de ensejar o


terrorismo estão estabelecidas nos incisos do §1º, do artigo 2º, da Lei. Trata-se, pois, de
crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, o que significa dizer, de acordo com
Rogério Greco, que a ocorrência de mais de uma dessas condutas, no mesmo contexto
fático, caracterizará tão somente crime único, não havendo que se falar em concurso de
infrações penais. 245

Ressalte-se que muitas das condutas indicadas no referido artigo já são


incriminadas de forma autônoma pelo Direito Penal, a exemplo da conduta de portar
explosivos, que encontra previsão no art. 16, parágrafo único, III, da Lei nº 10.826/03.246
Nesses casos, aplica-se o princípio da consunção, segundo o qual o crime-fim (terrorismo)
restaria por absorver os delitos correspondentes à fase necessária de sua consumação, em
observância ao princípio do non bis in idem.

No entanto, em seu preceito secundário, o art. 2º dispõe que a pena é de “reclusão,


de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou violência”. Ou seja,
nas hipóteses em que se observar o emprego de ameaça ou violência, ocorrerá uma
245
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Niterói: Impetus, 2012, p. 32.
246
“Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que
gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório
ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou
regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas
incorre quem: III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;”

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verdadeira concorrência de leis, devendo-se aplicar o tipo penal referente à ameaça ou à


violência concomitantemente ao tipo penal de terrorismo.

Nesse ponto, critica-se veemente o afastamento do já mencionado princípio da


consunção. Ora, se os crimes-meios (violência ou grave ameaça) mostram-se um rito de
passagem necessário para a prática do crime-fim (terrorismo), não deveria admitirse a
dupla incriminação do autor que pratica o terrorismo nessas circunstâncias, sob pena de
violação ao princípio do non bis in idem.
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Da leitura dos incisos I a V, do §1º, do artigo 2º, da Lei, extraem-se as condutas por
meio das quais o ato terrorista será praticado, devendo-se ter sempre em mente que a
exposição a perigo de pessoa, patrimônio, paz pública ou incolumidade pública, prevista
no caput do art. 2º, é exigida para a configuração do crime de terrorismo, na forma de
qualquer dos seus incisos.

O inciso I 247
, da Lei, refere-se a substâncias danosas em geral, como “explosivos,
gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou demais meios que
possam causar danos ou promover destruição em massa”, sendo certo que se está diante
de um rol meramente exemplificativo.

No inciso em questão, são adotadas figuras criminais de mera conduta (“usar ou


ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo”), isto é, crimes em que o
comportamento do agente, por si só, configura o crime, independentemente de qualquer
alteração no mundo exterior. Ocorre a consumação do crime, pois, com o simples agir
previsto no tipo, não se exigindo qualquer resultado naturalístico. 248

Note-se, com isso, a presença de um Direito Penal voltado à tutela do futuro,


apresentando a norma um viés preventivo, a fim de se evitar danos incorrigíveis e situações
catastróficas. Nesse sentido, Massimo Donini aduz que não se criminalizam condutas
intoleráveis em si mesmas, mas sim pelas consequências que elas poderiam produzir. 249

Ainda no que diz respeito ao inciso I, merece destaque a figura do bioterrorismo,


espécie de terrorismo correspondente ao ataque ocorrido nos Estados Unidos da América
em 2001, após o atentado praticado em 11 de setembro do mesmo ano, em que foram
247
“I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos,
venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover
destruição em massa;”.
248
GREGO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Niterói: Impetus, 2012, p. 247.
249
DONINI, Massimo. El derecho Penal frente a los desafíos de la modernidad. Perú: ARA Editores, 2010, p.
33.

354
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enviadas cartas a pessoas e agências de notícias, contendo em seu interior um pó químico


venenoso, causando a morte ou a infecção de alguns indivíduos.

Os incisos II250 e III42 foram vetados quando da sanção da Lei Antiterrorismo. Em relação à
redação do inciso III, havia a previsão do que se denomina, no mundo moderno, de
ciberterrorismo, que, nas lições de Mariona Llobet Anglí, constitui-se pelo uso da
tecnologia com o objetivo de disseminar um estado psíquico de terror na população.251

Por fim, o inciso IV 252 estabelece como conduta-meio para a prática do terrorismo

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aquela referente à sabotagem ou apoderamento de serviços, apresentando um rol extenso
de possibilidades para a sua incidência. Já o inciso V 253 traz tão somente a alusão ao
atentado contra a vida ou a integridade física de pessoa.

Frise-se que, para que os incisos supramencionados sirvam à tipificação do crime de


terrorismo, devem estar combinados aos requisitos essenciais dispostos no caput do artigo
2º, da Lei, relativos às motivações e à finalidade dos atos, a serem estudadas no tópico
seguinte, bem como à exposição a perigo de pessoa, patrimônio, paz pública ou
incolumidade pública.

Na Lei em análise, não há referência alguma à necessidade de uma estrutura de


grupo para a prática das condutas descritas nos incisos I a V, do §1º, do artigo 2º. Muito
pelo contrário: no caput do referido artigo, faz-se menção à prática do ato de terrorismo
“(...) por um ou mais indivíduos (...)”, o que evidencia a opção do legislador brasileiro pela
aceitação da figura do terrorismo individual.

Contudo, defendeu-se, em momento antecedente do trabalho, a impossibilidade do


chamado terrorismo individual, em razão de derivar da própria dimensão da mensagem do
250
“II – incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou
privado;” 42 “III – interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados;”
LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derecho penal del terrorismo: límites de su punición en un Estado democrático.
251

Madrid: La Ley, 2010, p. 85.


252
“IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de
mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de
comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas
de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos
essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de
exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
253
“V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa.”

355
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terrorismo a sua necessária qualificação organizacional, havendo uma incapacidade de o


agente isolado atingir toda a amplitude abarcada pelo terrorismo. A nosso ver, somente as
ações praticadas por um grupo organizado poderiam ensejar uma significação política
considerável, de modo a caracterizar o fenômeno do terrorismo.

3.2. Elemento teleológico

Adentrando na análise do elemento teleológico do terrorismo, o caput do art. 2º,


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da Lei 13.260/2016, aponta, em sua redação, as motivações exigíveis para que se configure
o ato de terrorismo, bem como o objetivo ou a finalidade que deve se fazer presente no
mesmo ato.

Para o filósofo José Ferrater Mora, a motivação do ato consiste puramente na


circunstância subjetiva que faz mover a vontade.254 A título de exemplo, a insatisfação de
um indivíduo em razão do crescente número de imigrantes em seu país pode servir como
força motriz para a tomada de alguma medida, que poderá se consubstanciar em um ato
de terrorismo.

Já por objetivo ou finalidade, diversamente, entende-se o resultado pretendido pelo


cometimento do ato terrorista. Tomando como exemplo o mesmo caso anterior, pode-se
imaginar o objetivo político da conduta como sendo o de coagir o Estado a alterar a sua
forma de tratamento para com os cidadãos estrangeiros que desejem entrar em seu
território.

Em relação às motivações do ato terrorista, compulsando o art. 2º, da Lei n.


13.260/2016, resta claro que legislador exige a natureza discriminatória dessas motivações
para a tipificação do terrorismo, ao referir que o terrorismo consistirá em atos praticados
“(...) por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião
(...)”.

No tocante à finalidade do ato, a Lei em exame não faz alusão, de forma expressa,
à finalidade eminentemente política do ato de terrorismo, sustentada exaustivamente em
linhas precedentes, limitando-se o art. 2º a estabelecer como finalidade do crime de
terrorismo “provocar terror social ou generalizado”.

Deveras, a provocação do terror social ou generalizado corresponde a um objetivo


característico do terrorismo. No entanto, trata-se de um objetivo imediato, sendo certo que
o terrorismo também deve atingir a uma finalidade política, em comunicação com entes
254
FERRATER MORA, José. Diccionário de filosofia. 5. Ed. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1964. Tomo
2, p. 236.

356
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públicos, considerada essa finalidade como seu objetivo final ou mediato, embora,
aparentemente, ausente do dispositivo legal.

3.3. Causa de exclusão do crime

Como já explanado em oportunidade passada, os atos terroristas não se confundem


com as manifestações sociais, mesmo quando estas se utilizam de meios desproporcionais,
incompatíveis ou inadequados a sua finalidade, na medida em que não satisfazem todos
os requisitos necessários à configuração do terrorismo.

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A mensagem da manifestação social, diferentemente daquela emitida pelo
terrorismo, tende a ser enviada diretamente ao Estado, sem perpassar pela ocorrência do
fenômeno comunicacional, capaz de abalar a estrutura psíquica de uma sociedade. Não se
observa, portanto, nas manifestações sociais, o ataque indiscriminado à população, com o
objetivo inequívoco de causar terror generalizado, elementos essenciais à tipificação do
terrorismo.

Por essa razão, o §2º, do artigo 2º, da Lei Antiterrorismo255, afasta cabalmente a
aplicação do tipo penal de terrorismo à conduta individual ou coletiva de pessoas no
contexto de manifestações diversas, resguardando o livre exercício de manifestação e
evitando futuros enquadramentos equivocados do tipo penal de terrorismo. Todavia, ao
final do dispositivo legal, há ressalva quanto à possibilidade de responsabilização criminal
por outros fatos criminosos eventualmente praticados no ato.

Destarte, o problema da criminalização de manifestações sociais como atos de


terrorismo será resolvido, via de regra, no âmbito da tipicidade, quando se poderá afastar
a incidência da Lei n. 13.260/2016, pela ausência de algum elemento essencial do crime de
terrorismo.

3.4. Favorecimento pessoal no delito de terrorismo

Prosseguindo no exame dos dispositivos da Lei Antiterrorismo, o artigo 3º


estabelece o crime de favorecimento pessoal no terrorismo, punindo as condutas de
“Promover, constituir, integrar ou prestar auxílio, pessoalmente ou por interposta pessoa,
a organização terrorista”.

255
“§2o O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em
manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional,
direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar,
com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação
penal contida em lei.”.

357
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O referido artigo segue a tendência amplamente criticada pela doutrina penal,


adotando o que se convencionou chamar de “Direito Penal do autor”, afastando-se do
paradigma da punição pela prática de um fato e se aproximando da ideia de punição de
um simples status do sujeito, como o pertencimento a um grupo determinado. Para Claus
Roxim, esse modelo de criminalização próprio do Direito Penal do autor é propulsionado
pela preocupação em se evitar futuros delitos. 256

Convém registrar que a punição de atos que não necessitam de resultado material
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reveste de técnica legislativa já conhecida no sistema penal brasileiro, em que se pune o


fato de o agente integrar a organização que tenha como finalidade a prática de crimes. É
o que ocorre, por exemplo, com o disposto no artigo 288, do Código Penal, correspondente
ao crime de associação criminosa, assim como com o disposto na Lei 12.850/2013,
consistente em integrar organização criminosa.

Mesmo que a referida organização e o agente não venham a praticar delitos,


finalidade precípua da organização ou associação, o simples fato de integrar esta já
configura delito punível em nosso ordenamento, haja vista o perigo representado por esta
forma de agrupamento. O simples animus associandi já conduz à lesão a bem jurídico,
sendo, por isso, merecedor de tipificação autônoma. 257

Empregando a mesma sistemática, a Lei 13.260/2016 prevê a punição ao agente que


integre organização destinada a prática de atos terroristas, por entender o legislador que
a formação de uma organização terrorista equivale a um comportamento grave o suficiente
para justificar tipificação autônoma e independente dos delitos visados por ela.

3.5. Atos preparatórios do crime de terrorismo

É digna de especial relevo a modalidade de terrorismo prevista no artigo 5º, da Lei


13.260/16, que traz a possibilidade de adiantamento da intervenção penal, permitindo a
punição dos atos preparatórios, o que conduz à tentativa de implementação de um Direito
Penal voltado ao futuro, de caráter preventivo ao fato punível.

Dispõe o caput do artigo 5º 258 que será considerado como crime, inclusive, a prática
pelo agente de atos preparatórios ao terrorismo, estabelecendo para a sua caracterização
256
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría Del Delito.
Traducción y notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Diaz y Garcia Conlledo y Javier de Vicente Remesal.
Madrid: Civitas, 1997. p. 177.
257
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – parte geral (arts. 1º ao 120). – 3ª Ed. Vol. Único.
Editora Juspodivm, 2015.
“Art. 5o Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:
258

Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.”.

358
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a demonstração clara e inequívoca da intenção do agente de consumação do delito, sendo


que a pena, nestes casos, será diminuída de um quarto até a metade.

Note-se que o legislador quis evitar que fosse passível de punição o agente tão
somente a partir do início da execução de atos materiais destinados à realização do ato
ilícito. Ao contrário, antecipou-se na configuração do delito, punindo o ato preparatório ao
terrorismo, mesmo antes do início de qualquer ato executório, desde que demonstrado o
propósito de consumar o crime.

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É bom frisar que não se trata de tentativa do delito, mas sim de tipo penal autônomo,
punível por si só. Lembre-se de que, para a configuração do crime tentado, faz-se
necessário que o agente tenha iniciado a prática de atos executórios, mas, por circunstância
alheia a sua vontade, não tenha logrado êxito na consumação do delito.

Ou seja, na tentativa, o agente já ultrapassou a fase preparatória, tendo dado início


aos atos de execução, com a realização material das elementares descritas no tipo penal,
diversamente do que ocorre com a modalidade de terrorismo que pune a preparação para
a realização das condutas previstas no artigo 2º, §1º, da Lei n. 13.260/16.

Com o advento da Lei antiterrorista, emergem muitas correntes doutrinárias


discordando da criminalização dos atos preparatórios aqui expostos, sob a alegação de
que estaria sendo violado o princípio da ofensividade, inerente ao direito penal, assim
como de que poderia se estar priorizando o Direito Penal do autor em face do Direito Penal
do fato.

Nesse sentido, Enrique Bacigalupo critica duramente a concepção de “punição de


ato preparatório”. Segundo o entendimento do autor, não se pode falar em punição de ato
preparatório ao crime, pois, optando o legislador por tipificar “ato preparatório”, o mesmo
passaria, então, a ser considerado verdadeiro ato de execução. 259

Data venia, parece que a tipificação de atos preparatórios de terrorismo mostra-se, em


verdade, adequada e proporcional, tendo em vista não estarmos diante de crimes comuns,
mas sim de condutas que, não raras vezes, abalam a estrutura psíquica de toda uma
sociedade, merecendo, portanto, atenção especial e a adoção de mecanismos próprios
para que sejam, ao máximo, evitadas.

Com efeito, o combate ao terrorismo deve escapar dos sistemas clássicos de


punição, havendo a necessidade de se buscar instrumentos efetivos de controle destes

BACIGALUPO, Enrique. Derecho Penal. Parte general. 2. Ed. Buenos Aires: Editora Hammurabi, 1999, p.
259

462-463.

359
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atos. Evidentemente, deve-se manter a dignidade da pessoa humana e todas as garantias


constitucionais, penais e processuais penais do sujeito incriminado, haja vista que o
contrário é rechaçado por nosso ordenamento constitucional.

É bem verdade que, no que tange à antecipação da punibilidade do agente, a Lei


n. 13.260/16 aproxima-se de um direito penal do inimigo, sustentado por Gunter Jakobs,
eis que não se espera a realização efetiva do fato material, sendo a sua preparação já
considerada como ilícito penal. Nas palavras de Jakobs:
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Dito de outro modo, o lugar do dano atual à vigência da norma é


ocupado pelo perigo de danos futuros: uma regulação própria do
Direito penal do inimigo. O que, no caso dos terroristas – em
princípio, adversários – pode ser adequado, isto é, tomar como ponto
de referencia as dimensões do perigo, e não o dano à vigência da
norma, (...) 260

Urge ressaltar que não se quer defender a toda razão a doutrina do direito penal do
inimigo, na forma como preconizada por Jakobs. No entanto, não há como se negar que a
antecipação da configuração do delito de terrorismo mostra-se, a princípio, condizente
com a gravidade e a complexidade do crime em questão.

No §1º 261, do artigo 5º, da Lei n. 13.260/16, estabelece-se a punição do


recrutamento, organização, transporte e municiamento de indivíduos que viagem de seu
país de origem a país diverso, bem como o fornecimento ou recebimento de treinamento
em país diverso daquele de residência ou nacionalidade do agente, ambas as incriminações
dependentes da demonstração da intenção de prática de atos terroristas.

Por fim, encerrando a análise da redação polêmica do art. 5º, da Lei n. 13.260/16,
quando o ato criminoso previsto no §1º 262 não envolver países distintos, mas permanecer
em um âmbito nacional, haverá a incidência do § 2º do mesmo artigo, da Lei.

3.6. Financiamento do terrorismo

260
JAKOBS, Gunter. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 2ª Ed. Tradução: André Luis Callegari, Nereu
José Giacomolli. Editora: Livraria do Advogado. 2007, p. 44.
261
“§ lo Incorre nas mesmas penas o agente que, com o propósito de praticar atos de terrorismo: I -
recrutar, organizar, transportar ou municiar indivíduos que viajem para país distinto daquele de sua
residência ou nacionalidade; ou II - fornecer ou receber treinamento em país distinto daquele de sua
residência ou nacionalidade.
262
“§ 2o Nas hipóteses do § 1o, quando a conduta não envolver treinamento ou viagem para país distinto
daquele de sua residência ou nacionalidade, a pena será a correspondente ao delito consumado,
diminuída de metade a dois terços.”

360
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Como é patente, a organização terrorista demanda aporte financeiro para o


planejamento, a preparação ou a execução de suas empreitadas criminosas. Na tentativa
de combate efetivo ao terrorismo, que depende de investimentos financeiros para a sua
realização, buscou o legislador impedir que tais recursos cheguem até o grupo terrorista.

A resposta penal destinada ao financiamento do terrorismo está prevista no artigo


6º, da Lei n. 13.260/16, punindo o recebimento, a promoção, a oferta, a obtenção, a guarda,
o depósito, a solicitação e o investimento de qualquer natureza reservado ao planejamento,
à preparação ou à execução dos crimes previstos na Lei em tela. 263

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Também incorrerá, nas mesmas penas, quem oferecer ou receber, obtiver, guardar,
mantiver em depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção
de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente,
pessoa, grupo de pessoas, associação, entidade, organização criminosa que tenha como
atividade principal ou secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes
previstos na Lei em exame. 264

Saliente-se que, para a configuração do crime de financiamento do terrorismo, não


importa a prática ou não do ato terrorista em si, bastando o desempenho de uma das
diversas condutas assinaladas no caput do artigo 6º, bem como em seu parágrafo único,
da Lei n. 13.260/16.

3.7. Causa especial de aumento de pena

O artigo 7º, da Lei antiterrorismo, prevê uma causa especial de aumento de pena
para os crimes anteriormente previstos, em razão de eventual produção de lesão corporal
grave ou morte, salvo quando tais resultados constituírem elementares da prática do crime.
265

263
“Art. 6 o Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer
modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza,
para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei: Pena - reclusão, de
quinze a trinta anos.”
264
“Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber, obtiver, guardar, mantiver em
depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, bem ou recurso
financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, associação,
entidade, organização criminosa que tenha como atividade principal ou secundária, mesmo em caráter
eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei.”.
265
“Art. 7o Salvo quando for elementar da prática de qualquer crime previsto nesta Lei, se de algum deles
resultar lesão corporal grave, aumenta-se a pena de um terço, se resultar morte, aumenta-se a pena da
metade.”

361
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A ressalva feita pelo legislador no início da redação do artigo 7º (“Salvo quando for
elementar da prática de qualquer crime previsto nessa Lei”) impossibilita a sua incidência
no delito de terrorismo consubstanciado no artigo 2º, que já prevê como modalidade do
crime, em seu inciso V, “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”.

Importa anotar que, ainda que não existisse a previsão do inciso V, do artigo 2º, da
Lei, ou a ressalva do artigo 7º, levando-se em consideração a gravidade inerente ao crime
de terrorismo, mostrar-se-ia desarrazoado o aumento de pena em caso de observância
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dessas circunstâncias – lesão corporal grave ou morte.

Ora, em atos de terrorismo, ao menos um desses resultados normalmente se faz


presente, vez que, como já elucidado em tópico anterior, o terrorismo deverá,
necessariamente, atingir os bens jurídicos essenciais ao homem, como a vida e a
integridade física. Não se trata o resultado morte ou lesão corporal grave, pois, de uma
excepcionalidade, mas de uma circunstância corriqueira no crime em estudo.

3.8. Antecipação da desistência voluntária e do arrependimento eficaz

Outra inovação trazida pela Lei n 13.260/16 corresponde à antecipação dos


institutos conhecidos como desistência voluntária e arrependimento eficaz, previstos no
art. 15, do Código Penal 266. Dispõe o art. 10, da Lei Antiterrorismo 267, que, mesmo na
hipótese de atos preparatórios de terrorismo, estabelecida pelo art. 5º, da Lei, aplicam-se
as disposições do art. 15, do Código Penal.

O detalhe fundamental, quando do estudo da desistência voluntária e do


arrependimento eficaz, é que se exige que o agente já tenha ingressado na fase dos atos
de execução. No primeiro caso, o agente se encontra, ainda, praticando atos de execução
e, voluntariamente, interrompe-os. No segundo caso, o agente pratica todos os atos de
execução que entende como suficientes e necessários à consumação da infração penal,
mas arrepende-se e impede a produção do resultado. 268

Percebe-se que o art. 10, da Lei n. 13.260/16, anuncia uma hipótese de antecipação
do marco inicial da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, restando a chamada
266
“Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado
se produza, só responde pelos atos já praticados.”
267
“Art. 10. Mesmo antes de iniciada a execução do crime de terrorismo, na hipótese do art. 5o desta Lei,
aplicam-se as disposições do art. 15 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.”
268
GREGO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Niterói: Impetus, 2012, p. 271.

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ponte de ouro 269 habilitada desde antes dos atos de execução, ainda durante os atos
preparatórios, o que amplia a incidência do benefício de política criminal.

Assim, se, por exemplo, um terrorista compra artefatos explosivos, preparando um


futuro ato terrorista, mas desiste de prosseguir naquela preparação, não responderá pelo
art. 5º, da Lei n. 13.260/16, mas apenas pelos atos já praticados – no caso, posse de
artefatos explosivos –, em razão da aplicação do instituto da desistência voluntária, nos
termos do art.10, da Lei. Antecipa-se, pois, a denominada ponte de ouro.

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3.9. Competência investigativa e para processo e julgamento

O art. 11, da Lei n. 13.260/16, estabelece a competência investigativa da Polícia


Federal e a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento dos crimes de
terrorismo, previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º, da Lei, pois, para todos os efeitos, observar-
se-ia presente o interesse da União.

O referido dispositivo, no entanto, vem sendo alvo de severas críticas, havendo,


inclusive, entendimento doutrinário no sentido da sua inconstitucionalidade, vez que não
poderia a lei presumir o interesse da união quando da prática de um crime de terrorismo.
Em verdade, não necessariamente a prática terrorista irá representar interesse da União.
Este, previsto no artigo 109, IV, da CF, deve ser demonstrado “de fato” ou “in concreto”, e
não imposto abstratamente pela lei ordinária.

Registre-se que nem mesmo a previsão em tratado internacional do crime de


terrorismo é suficiente para estabelecer, por si só e de plano, a competência Federal com
base no artigo 109, V, da CF, sendo certo dever ser constatada repercussão internacional
no caso em concreto. Não por outra razão é que não são todos os ilícitos previstos em
tratados internacionais (v.g. tortura, violência doméstica e familiar contra a mulher, tráfico
de drogas, etc.) de competência da Justiça Federal e atribuição da Polícia Federal.

No sentido de se exigir repercussão internacional a justificar a atração da


competência da Justiça Federal, Edilson Mougenot Bonfim aduz que “para que se atraia a
competência da Justiça Federal, é necessário que a prática de crime previsto em tratado ou
269
Para Franz Von Liszt, pode a lei “por considerações de política criminal, construir uma ponte de ouro
para a retirada do agente que já se tornara passível de pena”. (VON LISZT, Franz apud GREGO, Rogério.
Curso de Direito Penal. Parte Geral. Niterói: Impetus, 2012, p. 266).

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convenção internacional extrapole a mera repercussão interna, atingindo patamares


internacionais”. 270

Ressalte-se, ainda, que eventual violação aos direitos humanos também não implica,
automaticamente, a competência da Justiça Federal, pois deve haver a inércia ou ineficácia
dos órgãos estaduais, bem como a representação do Procurador Geral da República
devidamente acatada pelo STJ, para que se processe o respectivo incidente de
deslocamento de competência, nos estritos termos do artigo 109, § 5º, da CR/88.
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Nessa exata acepção, Hidejalma Muccio dispõe que:

Há necessidade de que se demonstre, concretamente, que o Estado


– membro, por suas instituições, em razão da inércia, da negligência,
ou por falta de vontade política, ou até mesmo por falta de condições
materiais e reais, não possa se desincumbir da tarefa persecutória
satisfatoriamente, havendo risco de descumprimento de obrigações
firmadas pelo Brasil em tratados internacionais. 63

Isto posto, inobstante o disposto no artigo 11, da Lei antiterrorismo, a atribuição e


competência Federal para, respectivamente, investigar e processar e julgar o terrorismo
somente se dará quando, concretamente, for verificada alguma motivação
constitucionalmente prevista para tanto, sendo a atribuição e a competência, em regra, da
seara estadual.

No entanto, isso certamente não se pode firmar por mera injunção dogmática. Aos
tribunais e, mais especificamente, ao STF, cabe firmar esse entendimento, sendo dada a
interpretação do artigo 11, da Lei 13.260/16, conforme a Constituição, ou mesmo
declarando-se a sua inconstitucionalidade. Enquanto isso não acontece, a questão, a
princípio, é de atribuição da Polícia Federal, na fase investigatória, e de competência da
Justiça Federal, na fase processual.

3.10. A hediondez do crime de terrorismo

Como já mencionado anteriormente, a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso


XLIII , determinou serem equiparados a crime hediondo, sofrendo as mesmas
271

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 274. 63
270

MUCCIO, Hidejalma. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 467.
271
Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los,
se omitirem;”.

364
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consequências e o mesmo tratamento deste, o tráfico ilícito de entorpecentes e droga afins,


a tortura e o terrorismo.

Com o advento da Lei n. 13.260/16, dúvida logo emergiu em relação a qual ou quais
dos crimes previstos na referida Lei é ou são equiparados aos crimes hediondos, nos termos
do artigo 5º, XLIII, da CF, surgindo na doutrina dois entendimentos diversos quanto ao
ponto.

Uma primeira corrente, aderida por Renato Brasileiro, adotando uma visão restritiva,

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sustenta que apenas os crimes elencados pelo art. 2º, § 1º, da Lei antiterrorismo, que
consistem, de acordo com o texto do dispositivo, em atos de terrorismo, seriam
equiparados aos crimes hediondos, sofrendo os consectários da Lei n. 8.072/90 – Lei dos
crimes hediondos. 272

Já uma segunda corrente, defendida por Rogério Sanches, é no sentido de que todos
os crimes previstos na Lei n. 13.260/16 devem ser equiparados aos delitos hediondos. Isso
porque a Constituição Federal equipara aos crimes hediondos não os atos terroristas, mas
sim o terrorismo, seja este estampado em atos, no financiamento da atividade, em atos
preparatórios ou em qualquer outra modalidade.

Segundo o mencionado autor, a Lei n. 13.260/16 é uma norma de regência,


encerrando, pois, tipos penais abrangidos por uma mesma matéria – o terrorismo. Assim
sendo, há terrorismo em todos os tipos penais incriminadores com previsão na Lei, que,
frise-se, é uma lei antiterrorismo, devendo combater todos os comportamentos atinentes
ao terrorismo. 273

De mais a mais, não parece razoável equiparar a crime hediondo o artigo 2º, § 1º,
da Lei 13.260/16, que trata dos atos de terrorismo, e não equiparar a crime hediondo o
art. 6º, da mesma Lei, que dispõe acerca do financiamento do terrorismo, punindo mais
severamente o agente, com pena de reclusão de quinze a trinta anos.

Como se não bastasse, o artigo 17 274, da Lei 13.260/16, determina a aplicação da


Lei 8.072/90 – Lei dos crimes hediondos – “aos crimes previstos nesta Lei” e não apenas
272
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2022, p. 1008.
273
Chat realizado na Especialização em Ciências Criminais da Estácio em parceria com o CERS, conduzido
pelo professor Rogério Sanches. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ZvYmIS7XfXU>. Acesso em: 12/06/2022.
274
“Art. 17. Aplicam-se as disposições da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, aos crimes previstos nesta
Lei.”

365
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aos crimes definidos pelo art. 2º, § 1º, da Lei. Se quisesse o legislador restringir a incidência
da Lei 8.072/90, certamente o faria de maneira expressa.

3.11. Admissibilidade da prisão temporária nos crimes de terrorismo

A prisão temporária consiste em espécie de prisão cautelar decretada pela


autoridade judiciária competente durante a fase preliminar de investigações, com prazo
determinado de duração, quando preenchidos os requisitos do art. 1º, da Lei n. 7.960/89,
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objetivando assegurar a eficácia das investigações criminais quanto a alguns crimes graves.
275

O artigo 18, da Lei n. 13.260/16, alterou a Lei n. 7.960/89 - Lei sobre prisão
temporária -, para permitir essa modalidade de prisão aos crimes previstos na Lei

Antiterrorismo, acrescentando a alínea “p” ao rol de crimes passíveis de prisão


temporária do inciso III, do art. 1º, da Lei n. 7.960/89.

Em verdade, desde o advento da Lei 8.072/90 – Lei de crimes hediondos –, a prisão


temporária já era cabível em relação aos crimes hediondos e equiparados, a exemplo do
terrorismo. Isso porque a lei dos crimes hediondos, em seu art. 2º, § 4º, passou a dispor
que a prisão temporária, “nos crimes previstos neste artigo”, terá prazo de trinta dias,
prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

Portanto, a alteração da Lei n. 7.960/89, pela Lei Antiterrorismo, não representou


propriamente uma novidade, vez que, já a partir da Lei n. 8.072/90, a prisão temporária
passou a ser autorizada não só no tocante aos crimes previstos no inciso III, do art. 1º, da
Lei n. 7.960/89, como também no tocante aos crimes previstos no caput do art. 2º, da Lei
8.072/90, quais sejam, os crimes hediondos e equiparados (tortura, tráfico de drogas e
terrorismo). 276

3.12. Aplicação da Lei de Organização Criminosa no crime de terrorismo

Finalmente, o artigo 16 277, da Lei antiterrorismo, determina a aplicação extensiva da


Lei n. 12.820, Lei de Organizações Criminosas, para fins de investigação, processo e
275
FREITAS, Jayme Walmer. Prisão temporária. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 102.
276
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p.1009.
277
“Art. 16. Aplicam-se as disposições da Lei nº 12.850, de 2 agosto de 2013, para a investigação, processo
e julgamento dos crimes previstos nesta Lei.”

366
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julgamento dos crimes de terrorismo. O art. 19 278, da Lei, ainda, altera a referência da Lei
de Organizações Criminosas em sua menção ao terrorismo.

Com isso, todas as ferramentas de investigação e instrução com previsão na Lei de


Organizações Criminosas, com destaque para a colaboração premiada (art. 4º), a ação
controlada (art. 8º) e a infiltração de agentes (art. 10º), serão igualmente empregadas nos
crimes previstos na Lei Antiterrorismo, não importando a modalidade de terrorismo. A
colaboração premiada, na lição de Renato Brasileiro:

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(...) é uma técnica especial de investigação por meio da qual o coautor
e/ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento
em ato delituoso, fornece aos órgãos responsáveis pela persecução
penal informações objetivamente eficazes para a consecução de um
dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contrapartida,
determinado prêmio legal. 279280

Já no tocante à ação controlada, faz o autor as seguintes considerações:

A depender do caso concreto, é estrategicamente mais produtivo,


sob o ponto de vista da colheita de provas, evitar a prisão prematura
de integrantes menos graduados de determinada organização
criminosa, pelo menos num primeiro momento, de modo a permitir
o monitoramento de suas ações e subsequente identificação e prisão
dos demais membros, notadamente daqueles que exercem o
comando da societas criminis. Exsurge daí a importância da chamada
ação controlada, que consiste no retardamento da intervenção do
aparato estatal, que deve ocorrer num momento mais oportuno sob
o ponto de vista da investigação criminal. 281

Em relação à infiltração de agentes, Renato Brasileiro esclarece que:

278
“Art. 19. O art. 1o da Lei no 12.850, de 2 de agosto de 2013, passa a vigorar com a seguinte alteração:
‘Art.1o .......................................................................
§2o .............................................................................
II - às organizações terroristas, entendidas como aquelas voltadas para a prática dos atos de terrorismo
legalmente definidos.’”.
279
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p.
280
.
281
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p. 813.

367
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Integrantes da estrutura dos órgãos policiais, o agente infiltrado é


introduzido dissimuladamente em uma organização criminosa,
passando a agir como um de seus integrantes, ocultando sua
verdadeira identidade, com o objetivo precípuo de identificar fontes
de prova e obter elementos de informação capazes de permitir a
desarticulação da referida associação. 282

CONCLUSÃO
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A definição de terrorismo corresponde a uma tarefa extremamente difícil no cenário


mundial, seja em razão da alta complexidade do fenômeno, seja pela possibilidade de sua
manifestação de diversas formas, a depender de fatores culturais de uma determinada
localidade e do período histórico considerado. Está-se, pois, diante, da inexistência de um
conceito universal de terrorismo, o que parece ser, inclusive, impossível de se alcançar.

A partir da análise cuidadosa dos elementos comumente apontados pela doutrina


como constitutivos do terrorismo, resta claro que não se está à frente de uma delinquência
comum ou dita normal, mas sim de um crime que apresenta características bastante
peculiares, como a finalidade eminentemente política do ato, a existência de uma
organização, que confere especial periculosidade às condutas, e a intimidação massiva, que
incrementa o injusto pela despersonalização das vítimas. 283

À vista disso, deve o Direito Penal incidir nos casos de terrorismo, tipificando
adequada e proporcionalmente cada conduta e empregando instrumentos efetivos de
controle, a fim de que os atos delituosos sejam, ao máximo, evitados. Evidentemente, deve-
se observar o sistema constitucional-penal vigente, para que se preserve a dignidade da
pessoa humana e todas as garantias constitucionais, penais e processuais penais do sujeito
incriminado.

Mais do que isso seria, como já referido, alimentar o próprio terrorismo, vez que a
opção por medidas extremadas de repressão, como aquelas próprias dos atos de guerra,
provoca, na realidade, o agravamento da situação a que se quer repelir, encontrando o ato
terrorista na própria ideologia agressiva de seu combate um fator que contribuirá com a
criação da atmosfera de pânico pretendida.

O legislador, com a edição da Lei n. 13.260/16, publicada em 16 de março de 2016,


também conhecida como Lei antiterrorismo, cumpriu, finalmente, o mandado
282
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p. 818.
CANCIO MELIÁ, Manuel. Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto. Madrid: Reus, 2010, p.196-
283

197.

368
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constitucional de criminalização estampado no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal284,


que equiparou o terrorismo aos crimes hediondos, estendendo àquele as mesmas
vedações previstas a estes.

É bem verdade que a Lei apresenta algumas falhas, como: (i) a previsão, no preceito
secundário do seu art. 2º, da aplicação do tipo penal referente à ameaça ou à violência
concomitantemente ao tipo penal de terrorismo, afastando o princípio da consunção; (ii) a
ausência de previsão expressa, em seu art. 2º, da finalidade eminentemente política do ato,
característica essencial do terrorismo; e (iii) a determinação, em seu art. 11, da competência

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investigativa da Polícia Federal e a competência para processo e julgamento da Justiça
Federal, presumindo, em todo e qualquer caso de terrorismo, o interesse da União, que,
no entanto, deve ser demonstrado “de fato” ou “in concreto”.

A despeito das referidas imperfeições, a Lei n. 13.260/16 representou avanços


louváveis, sobretudo em razão da preocupação do legislador em definir o que vem, por
certo, a ser o ato terrorista, prevendo penas graves para quem incorrer nessa situação. Da
mesma forma, fê-lo para aqueles que se associarem para o cometimento de tais atos e
para aqueles que, direta ou indiretamente, financiarem essas atividades.

No que diz respeito à criminalização dos atos preparatórios do terrorismo, apesar


das duras críticas recebidas pela Lei nesse ponto, parece-nos que a antecipação da
configuração do terrorismo é condizente com a notória gravidade do delito, tendo em vista
não estarmos diante de crimes comuns, mas sim de condutas que, não raras vezes, abalam
a estrutura psíquica de toda uma sociedade, fazendo-se necessária, pois, a adoção de
mecanismos efetivos de combate do fenômeno em tela.

Com efeito, a partir do advento da Lei Antiterrorismo, abre-se a possibilidade do


aperfeiçoamento da legislação brasileira no que concerne ao tratamento de um evento de
escala global, de constante mutação e de rumos imprevisíveis. A tendência é que a
legislação acompanhe a evolução do terrorismo, de modo a se manter eficiente e eficaz na
luta contra o mesmo.

Por fim, espera-se que a aplicação da Lei não se mostre necessária tão cedo, mas o
cenário mundial atual, em que se verificam, reiteradamente, atentados terroristas violentos,
marcados pela instrumentalização de vítimas diretas e indiretas, sobretudo no Oriente
284
Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los,
se omitirem;”.

369
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Médio e na Europa, não permite ao Brasil ter uma visão passiva e romântica em relação ao
que ocorre além de suas fronteiras.

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IDEOLOGIAS DE CARL SCHMITT V. HANS KELSEN: CONTROLE DE


CONSTITUCIONALIDADE

CARMEN FERREIRA SARAIVA:


Mestranda em Direito pela FUMEC.
Especialização em Direito pela
PUC/Minas, pela Unicid, pela UGF e pela
UnP. Graduação em Administração de

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Empresas e Ciências Contábeis pela
UFMG e em Direito pelas Faculdades
Milton Campos. Funcionária Pública
Federal.

ANTÔNIO CARLOS DINIZ MURTA 285

Resumo: O constitucionalismo consolida-se nos séculos XVII e XVIII. O controle de


constitucionalidade foi inaugurado em 1803 no julgamento do caso Marbury versus
Madison nos EUA. Esses eventos contribuíram para que em 1931 houvesse um embate
sobre quem deve ser o guardião da Constituição. Carl Schmitt na Alemanha defende que
esta função cabe ao Presidente do Reich. Hans Kelsen na Áustria defende que um Tribunal
Constitucional com jurisdição extraordinária, independente e neutra é o órgão adequado
para promover a defesa dos direitos fundamentais. Essas teorias contribuíram para o
desenvolvimento da sistemática do controle de constitucionalidade dos atos normativos.

Palavras-chave: Constitucionalismo. Controle de Constitucionalidade. Carl Schmitt. Hans


Kelsen. Evolução Sistêmica.

Abstract: Constitutionalism was consolidated in the 17th and 18th centuries. Constitutional
control was inaugurated in 1803 in the Marbury versus Madison trial in the US. These events
contributed to the 1931 clash over who should be the guardian of the Constitution. Carl
Schmitt in Germany argues that this role belongs to the President of the Reich. Hans Kelsen
in Austria argues that a constitutional court with extraordinary, independent and neutral
jurisdiction is the appropriate body to promote the defence of fundamental rights. These

285 Doutor em Direito pela UFMG. Especialização em Direito pela UFMG. Graduação em Direito pela UFMG.
Procurador do Estado de Minas Gerais. Professor Titular da FHC e da FUMEC.

373
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theories contributed to the development of the systematic control of the constitutionality


of normative acts.

Keywords: Constitutionalism. Judicial Review. Carl Schmitt. Hans Kelsen. Systemic Evolution.

Sumário: Introdução. 1. Contexto Histórico. 2. Proposições de Carl Schmitt. 3.


Contrarrazões de Hans Kelsen. 4. Considerações Finais. Referências
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Introdução

O controle de constitucionalidade tem por escopo verificar a adequação das leis e


dos atos normativos, nos aspectos formais e materiais, às normas constitucionais. Nesse
sentido, desde os séculos XVII e XVIII essa matéria vem sendo objeto de análises profundas
culminando na quebra de paradigmas com o fenômeno de descentralização funcional do
poder estatal. O controle de constitucionalidade estabelece-se pelo precedente ocorrido
no julgamento em 1803 do caso Marbury versus Madison pela Suprema Corte dos Estados
Unidos da América. Em 1931 houve o marcante embate entre Carl Schmitt na Alemanha e
Hans Kelsen na Áustria de quem deve ser o guardião da Constituição: se Presidente do
Reich, acumulando das funções executivas e legislativas ou se um Tribunal Constitucional
independente, neutro e com prerrogativa judicante extraordinária, diferenciado das
atribuições legislativas, executivas e jurisdicionais ordinárias, respectivamente.

Pretende-se realizar a análise pela linhas metodológicas jurídicas dogmáticas e


sociológicas das teses referenciais defendidas por Carl Schmitt a partir da Constituição
alemã e de Hans Kelsen com base na teoria pura do Direito e da Constituição austríaca.
Amparando-se no raciocínio dialético entre estes juristas, procura-se demonstrar a
proposição defendida e a contrariedade ela e finalmente constatando o que legitima cada
corrente doutrinária. Tenciona-se investigar sinteticamente a evolução do
constitucionalismo no espaço e no tempo procurando deliminar a discussão entre os
doutrinadores decompondo a controvérsia em seus diversos aspectos.

Para alcançar o objetivo utiliza-se a pesquisa bibliográfica em conjunto com o


método dedutivo e comparativo a partir do exame da legislação, dos entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais.

Espera-se demonstrar a importância das teorias de ambos os juristas para a


evolução da sistemática do controle de constitucionalidade como técnica de limitação do
poder estatal com a finalidade de proteção dos direitos e garantias fundamentais que

374
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normatizam os valores materiais compartilhados por uma sociedade e a relevância jurídica


destas teorias para o direito contemporâneo.

No contexto histórico examinam-se os principais eventos históricos sobre o


surgimento do constitucionalismo, que por sua vez propiciaram as divergências
apresentadas em 1931 entre Carl Schmitt e Hans Kelsen de quem deveria ser o guardião
da Constituição.

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Busca-se demonstrar os argumentos de Carl Schmitt constantes em sua obra no
sentido de que, em conformidade com sua a tese antiliberal, o Presidente do Reich tem
legitimidade para desempenhar a referida função.

Analisam-se as contrarrazões de Hans Kelsen oferecidas em face dos argumentos


do seu predecessor, com base na sua Teoria Pura do Direito, manifestando-se em favor da
imprescindibilidade da existência de um Tribunal com jurisdição neutro para a defesa da
Constituição.

1. Contexto Histórico

O constitucionalismo é o sinal distintivo delimitador do poder estatal aperfeiçoado


pelo princípio da primazia da lei e “pela organização do Estado e limitação do poder estatal,
por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais” (MORAES, 2015, p. 996).

Após o período renascentista marcado pela separação da religião e da política,


esse regime estabiliza-se no século XVII na Inglaterra “quando as Cortes judiciárias
proclamaram a superioridade das leis fundamentais sobre o Parlamento”.

No século XVIII esse sistema firma-se nos Estados Unidos da América “quando
iniciaram a codificação do direito constitucional e instituíram aquela moderna forma de
Governo democrático” e na França com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789.

A ruptura revolucionária que sucedeu na época culminou na transição da


monarquia absolutista para o regime constitucional do Estado Liberal do Direito.
Consolida-se o constitucionalismo contemporâneo com a “ocorrência da ideia de
separação dos Poderes, garantia dos direitos dos cidadãos, crença da democracia
representativa, demarcação entre a sociedade civil e o Estado e a ausência do Estado no
domínio econômico” (CARVALHO, 2015a, p. 267-277). O “liberalismo triunfou sobre o

375
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absolutismo porque limitar o poder político era (e é) a própria condição da defesa da


liberdade e da cidadania” (BRITTO, 2003, p. 81-82).

Com o desígnio harmônico, o sistema do ordenamento jurídico está direcionado a


alcançar a concordância e a unidade. Qualquer discrepância faz irromper o instrumento de
concertamento a fim de restaurar a congruência ameaçada. Essa é a natureza jurídica do
controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais em que se verifica a sua
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adequação às regras constitucionais. O escopo é fazer de cessar os efeitos daquela que é


imprópria à sistemática paramética por força da supremacia constitucional. Em especial,
destina-se à proteção dos direitos fundamentais qualificados como valores sociais
distributivos (BARROSO, 2019a, p. 352-373).

O controle de constitucionalidade consagra-se no julgamento em 1803 do caso


Marbury versus Madison pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Em síntese
pode-se historiar que o então Presidente John Adams, já no final do seu mandato nomeou,
entre outros, William Marbury, para ocupar cargo de juiz, sem contudo entregar os atos da
investidura aos juízes. Com a posse, o novo Presidente Thomas Jefferson determinou ao
seu Secretário de Estado, James Madison, que não os empossasse mediante a recusa da
apresentação dos documentos.

Com fundamento na Lei de 1789, Jucidiary Act, que dava à Suprema Corte o poder
de conceder mandados, Marbury, ajuizou ação, writ of mandamus, pedindo a posse no
cargo de juiz. Porém o pedido foi negado com amparo no fato de que a mencionada lei é
inconstitucional, por criar uma competência não prevista nas normas constitucionais. O
controle de constitucionalidade instituído com a clássica denominação de judicial review
em prevalência ao princípio da supremacia constitucional, dado que a norma considerada
inconstitucional com os efeitos ex tunc de retorno ao satus quo ante tendo em vista a
declaração de nulidade da norma infraconstitucional (BARROSO, 2019a, p. 393-424).

Luis Roberto Barroso (2019a, p. 424-428) ensina que

Marbury v. Madison foi a primeira decisão na qual a Suprema Corte


afirmou seu poder de exercer o controle de constitucionalidade,
negando aplicação a leis que, de acordo com sua interpretação,
fossem inconstitucionais. Assinale-se, por relevante, que a
Constituição não conferia a ela ou a qualquer outro órgão judicial, de
modo explícito, competência dessa natureza. Ao julgar o caso, a
Corte procurou demonstrar que a atribuição decorreria logicamente
do sistema. A argumentação desenvolvida por Marshall acerca da
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supremacia da Constituição, da necessidade do judicial review e da


competência do Judiciário na matéria é tida como primorosa.

Entre as consequências jurídicas dessa decisão pode-se identificar a fixação da


competência do Poder Judiciário para rever atos dos demais poderes de acordo com as
diretrizes constitucionais. Inaugura-se controle de constitucionalidade moderno assentado
na “prevalência dos valores permanentes da Constituição sobre a vontade circunstancial
das maiorias legislativas” (BARROSO, 2019a, p. 461-488).

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No século XIX o constitucionalismo monárquico propagou-se pela Europa.
Especificamente na Alemanha e na Áustria “o constitucionalismo não logrou êxito
completamente, pois os seus governos conseguiram resistir às concepções liberais e
democráticas” (CARVALHO, 2015a, p. 46). Esses eventos muito contribuíram para o embate
entre Carl Schmitt na Alemanha e Hans Kelsen na Áustria de quem deveria ser o defensor
da Constituição, ou seja, qual seria o órgão fiscalizador.

Com o fim da primeira guerra mundial, a Constituição do Reich da Alemanha


aprovada em 1919 na cidade de Weimar foi o marco histórico do movimento
constitucionalista. Inspirada por Carl Schmitt houve a instituição do Parlamento soberano
em contrapartida a um Executivo forte no contexto de um regime político de democracia
indireta em que há participação popular representativa na formação da vontade política
estatal. Promoveu a liberdade do homem perante o Estado, com base na tripartição dos
poderes e a promoção do Estado Social sancionando direitos sociais. Consagrou um
sistema difuso de controle de constitucionalidade e um modelo de parlamentarismo
democrático liberal em que o Presidente da República eleito nomeava o Chanceler, chefe
do Poder Executivo.

O Parlamento era responsável pelo Poder Legislativo. Ao Tribunal de Justiça do


Estado competia a resolução de das lides constitucionais. Embora inexistisse
expressamente o controle de constitucionalidade, a lacuna foi suprida pela integração
jurisprudencial (MENDES, 1999, p. 8).

Nessa ocasião o Tribunal do Reich, representado pelo seu Presidente, era


considerado o defensor e vigia da Constituição e responsável por apresentar projetos de
leis. Ainda acumulava a função de decidir em processo judicial, inclusive sobre litígios
constitucionais. Em 1933 é formalmente implantado o regime nazista com a ascensão de

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Adolf Hitler como Chanceler e lhe conferir poder ilimitado, que foi legitimado pelo próprio
sistema legal existente à época.

A Áustria, depois de derrotada no primeiro grande armistício, torna-se um Estado


Federal republicano com um sistema de governo semipresidencial. A Constituição da
Aústria de 1920, revisada em 1929 e reintegrada em 1945, originalmente sob influência de
Hans Kelsen, implementou um sistema de controle de constucionalidade como função
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constitucional e não judicial, seja de ofício ou a requerimento do governo federal. Trata-se


de órgão especial que se organiza em um sistema de competência em que o Tribunal
Constitucional, primeiro na história, com a função de se pronunciar, com força normativa,
sobre a constitucionalidade das normas, de forma independente dos Poderes Legistivo e
Executivo (SCHMITT, 2007, p. IX-XVIII e 01-15; KELSEN, 1995, p. IX-XLIV).

O embate ideológico gerou um “antagonismo do austríaco Hans Kelsen, para


quem deveria haver um controle jurisdicional, e do alemão Carl Schmitt, para quem o
controle deveria ficar a cargo do Presidente do Reich” (MORAES, 2019, p. 872).

Tem cabimento analisar o célebre debate ideológico travado no período


entreguerras no século XX sobre quem deve ser o guardião da Constituição. Para Carl
Schmitt na Alemanha seria o poder político representado pelo Presidente do Reich.
Diversamente para Hans Kelsen na Áustria seria o poder judicial consubstanciado no
Tribunal Extraordinário.

2. Proposições De Carl Schmitt

Carl Schmitt elaborou a Teoria da Constituição que serviu de base dogmática para
a doutrina do direito e do estado nacional socialista. A carta magna é a compilação das
decisões políticas fundamentais do Poder Constituinte Originário, que por sua vez exprime
a realidade social. Várias são as acepções da Constituição, a saber: absoluta que a
reconhece como um todo unitário, relativa que a identifica como uma pluralidade de leis
absolutas, positiva que a distingue com o conjunto de decisões políticas e ideal que a
classifica como tendo um conteúdo específico (CARVALHO, 2015a, p. 61-62).

Em sua obra intitulada O Guardião da Constituição de 1931 o renomado jurista


registra toda sua tese sobre a questão, com base na Constituição da Alemanha que adotou
o parlamentarismo democrático perdurando durante o período de 1919 a 1933, quando
Adolf Hitler assume o cargo de Chanceler. A estrutura da conhecida República de Weimar
é dualista, pois a primeira parte tem por escopo determinar a estruturação do Estado e a
segunda parte estabelece o rol dos direitos e deveres fundamentais, inclusive de conteúdo

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social, seja educacional, seja trabalhista. Por outro lado, seu artigo 48 marcou a intervenção
estatal com a criação do estado de exceção, pois no caso de a segurança e a ordem públicas
estivessem seriamente ameaçadas o Presidente do Reich, como defensor constitucional,
poderia tomar as medidas necessárias a seu restabelecimento com auxílio de força armada,
podendo, para esse fim, suspender os direitos fundamentais.

Kildare Gonçalves Carvalho (2015a, p. 437) expõe que

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Segundo Schmitt, não compete aos tribunais exercer o controle de
constitucionalidade [...], porquanto a justiça constitucional tem uma
ficção nitidamente de caráter político, o que faz com que se politize
a jurisdição constitucional levando ao comprometimento do
equilíbrio constitucional do Estado de Direito [...]. Os poderes do
Presidente do Reich o tornam independente dos órgãos legislativos,
embora esteja vinculado, simultaneamente, à referenda dos ministros
dependentes do Parlamento. [...] A decisão sobre o conteúdo da
Constituição é uma manifestação completamente distinta da decisão
de uma pretensão conflitiva com fundamento na lei.

Na compreensão de Carl Schmitt, os órgãos do Poder Judiciário não exercem


propriamente a função judicante, mas tão somente o exame material da legislação, ou seja,
são instâncias que decidem os litígios instaurados, admitindo-se um sistema difuso de
controle de constitucionalidade modesto, já que havia a previsão de que o juiz estava
vinculado à lei. Existia portanto a possibilidade de uma não aplicação da lei ordinária ao
caso concreto em decorrência das determinações constantes em norma constitucional
como somente uma justificativa da liberdade de decisão, conforme se depreende da
marcante sentença judicial de 4 de novembro de 1925.

Alexandre de Moraes (2019, p. 442) instrui que

Ao comentar a questão sobre a opção política do legislador


constituinte sobre a escolha de um órgão para interpretar a
Constituição, Carl Schmitt aborda a discussão sobre o preceito da
inamovibilidade dos magistrados, defendendo-o, para que os
magistrados não sejam expostos a uma prova de resistência política.

O limite objetivo deve ser observado para o exercício da jurisdição, uma vez que
tem um caráter político, seja na esfera civil ou administrativa em que a proteção judicial
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serve ao interesse jurídico de um dos litigantes, seja na esfera penal em que o delito é o
objeto da lei penal, que tutela valores sociais. A decisão judicial é proferida sempre depois
do evento ocorrido, ou seja, refere-se a fatos passados e aplicável ao caso concreto objeto
dos autos do processo judicial, tendo como escopo a formação de jurisprudência e
eliminação autoritária da dúvida surgida.

Pouco prudente é outorgar ao juiz a decisão política, que é função do Poder


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Legislativo, pois no Estado de Direto, a justiça, assim entendida como decisão judicial,
sempre deve ser exarada com base na norma, tendo tem vista o princípio da legalidade ao
qual o Poder Judiciário está vinculado, de modo a diferenciar a aplicação do direito e a
função jurisdicional. O conceito de justiça tinha como limite o fato de que a norma
constitucional é dificilmente emendável, ainda que seu conteúdo seja equívoco. Este
conflito não pode ser resolvido mediante a aplicação da teoria de há uma hierarquia entre
as leis, devendo, neste caso ser adotada a interpretação autêntica. Uma norma deve se
autoproteger normativamente, uma vez que não é concebível que uma norma
necessariamente tenha que ter fundamento de validade em outra norma. Não há que se
falar em justiça constitucional em um sistema de aplicação de norma sobre norma, de
forma a distinguir o Direito e a atividade legislativa.

O conceito de Constituição, que se origina de uma decisão política de um povo


sobre a existência de um Estado, tem uma relação objetiva com a jurisdição constitucional
decorrente da sua realização normativa formalizada pela divergência da norma
constitucional definida pela matéria litigiosa. Há limites objetivos da justiça constitucional
efetivada pelo Tribunal do Estado, já que este se defrontando com infrações indubitáveis
contra a Constituição sempre fará uma justiça sobre fatos passados que levantam
suposições o que leva geralmente a uma sentença imperfeita e obscura sobre a legislação,
conforme se pode exemplificar pela decisão de 17 de fevereiro de 1930 a respeito a
constitucionalidade da lei eleitoral alemã. A resolução de uma divergência por um Tribunal
de Estado somente poderia ser válida se a Constituição fosse um contrato, ou seja,
decorrente de uma situação jurídica plurilateral. Se deste órgão for reconhecida uma
decisão como uma lei política unilateral, que por sua vez arbitrária, seria elevado ao
patamar de Senhor da Constituição, o que não pode ser aceito.

A Constituição distingue divergência entre: o Reich e os Estados, entre Estados e


dentro do próprio Estado. O âmbito de atuação do Tribunal de Estado limita-se à
pacificação dos conflitos dentro do próprio Estado, já que se sua organização não pode
ser apartado. Seria Inadmissível expandir sua atribuição ao Reich, haja vista que esta
competência somente pode ser implementada mediante emenda constitucional. Ainda

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assim o mencionado Tribunal teria que ter uma essência totalmente diversa, já que a
Constituição do Reich é autônoma em relação às Constituições dos Estados que o compõe.

A atuação de um Tribunal como conciliador de litígios tende a transformar a


Constituição em um acordo, o que é solenemente rejeitado pelo Reich. O pluralismo
partidário é afastado de seus princípios por ser inadmissível a existência de vários titulares
de poder que poderiam formar alianças interpartidárias indesejáveis. Diferentemente, a
Constituição do Reich provém de um ato unilateral proferido pelo Poder Constituinte e

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decorrente de uma decisão política positivada e ainda como forma de prevenir um
armistício entre a classe operária e a classe burguesa e conservar a homogeneidade do
povo alemão como detentor do poder legislativo constitucional.

Analisando a situação concreta do Reich, pode-se concluir que se caracteriza por


três institutos: pluralismo pela existência de extratos sociais de poder solidamente
organizados, federalismo pela justaposição e cooperação entre os Estados e policracia pela
presença de grupos econômicos autônomos, que limitam a autonomia estatal. A coalizão
destas forças instabiliza o Reich, podendo a qualquer tempo apoiá-lo ou miná-lo, o que
não pode ser concebido. A situação constitucional pouco mudou desde o século XIX, época
em que foi instituída a monarquia constitucional. O Poder Legislativo de representatividade
popular não se defronta com o Estado, mas, sim, integrá-lo. Desabona-se um contrato
entre o monarca e o povo, já que a Constituição trata-se de um todo jurídico, cujos
destinatários são os cidadãos e que deles deve limitar a propriedade e liberdade. Também
é inadmissível o Estado Liberal neutro e não intervencionista, uma vez que deve haver a
implementação da “auto-organização da sociedade” e de que o Estado o sociedade devem
ser “fundamentalmente idênticos”. Assim, potencialmente acabariam todas as
divergências, já que não havia mais sentido separar o Estado da economia, da política, da
escola, do contrato de trabalho, da religião, do Estado de Direito, dentre outros. O Estado
seria a própria sociedade sempre preocupado com o bem-estar.

Na esfera da economia não seria diferente, já que a existência de uma economia


público-financeira influenciaria decisivamente a situação política do Estado. Enfim, certo é
que um Estado total quebre o paradigma da monarquia constitucionalista do século XIX.
Deve se estabelecer como um Estado econômico e cuidar do bem-estar social, não mais
podendo alimentar os tribunais com energia política. Somente com a formação da unidade
Estado-sociedade representado por uma auto-organização haverá um complexo social
sólido, imune à contaminação originária do pluripartidarismo e da liberdade de
propaganda. Neste contexto, a Constituição do Reich ignora o partido político para evitar
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o nascimento de um produto ideologicamente pouco sólido, ou seja, um Estado partidário


de coalização gerador de instabilidade, que impregna desordem na economia pública.

A neutralidade é muito discutida em seus vários aspectos. No seu sentido de


imparcialidade e objetividade foi implementada para sustentar um sistema organizacional
que propicie realizar a vontade estatal e um governo capaz de administrar o Estado. Assim,
o exercício de um estado de exceção passível de suspender os direitos fundamentais é
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plenamente aceitável e previsto nas normas constitucionais, mediante a edição de decreto


presidencial com força de lei, inclusive nas situações de emergência e perigo de cunho
econômico e financeiro.

A função de Presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo e o verdadeiro


guardião da Constituição, tem como característica basilar a teoria pouvoir neutre de
Benjamin Constant que orienta no sentido de que a sua posição deve ser neutra,
intermediária, reguladora e defensora de modo a muni-lo de poderes que o tornem
independente dos órgãos do Poder Legislativo, embora a ele vinculados, criando um
peculiar equilíbrio.

A “expansão ilimitada da justiça não transformaria o Estado em jurisdição, mas sim,


inversamente, os tribunais em instâncias políticas. Isso não jurisdicizaria a política, mas sim
politizaria a justiça” (BARROSO, 2019a, p. 6968)

Estes argumentos de Carl Schmitt foram veementemente contestados por Hans


Kelsen no estudo La Defesa de la Constituición publicado em 1931 relativamente à função
do Tribunal Constitucional que compreendia as atribuições judicante e de legiferação com
o escopo de limitar o poder estatal estruturado e de valorizar os direitos e garantias
fundamentais, tendo como fundamento inclusive seus estudos prévios sobre o Direito.

No Brasil, o controle político de constitucionalidade é efetivado preventivamente


pelos Poderes Executivo e Legislativo (inciso V do art. 49 e § 5º do art. 62 da Constituição
da República Federativa do Brasil - (CRFB) (BRASIL, 1988).

3. Contrarrazões De Hans Kelsen

Hans Kelsen inicia os estudos do controle de constitucionalidade como uma função


constitucional de atividade legislativa negativa com efeitos constitutivos e propectivos de
modo declarar a anulabilidade a lei e a impedir a efetividade do governo de juízes. Apoia-
se na concepção que vinha desenvolvendo há duas décadas no sentido de que a
Constituição, afastada da política, é um conjunto de leis impostas por seres humanos e a

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eles destinadas com força coercitiva e de cumprimento geral, ou seja, um verdadeiro dever
ser baseado em uma norma fundamental. Nessa denominada Teoria Pura do Direito é
implantado o princípio da supremacia da Constituição por uma sistemática positivista em
que uma norma jurídica tem como fundamento de validade outra norma, já que Estado é
uma personificação metafórica da ordem jurídica. O “ordenamento jurídico forneceria, em
muitos casos, apenas uma moldura, um conjunto de possibilidades decisórias legítimas,
[pois a] escolha de uma dessas possibilidades [...] seria um ato político, isto é, plenamente
discricionário”, o que justifica a sentença judicial pautada na lei editada pelo Poder

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Legislativo (KELSEN, 2011b, p. 05-27; BARROSO, 2019a, p. 597 e 5486).

Esse jurista há muito vinha desenvolvendo estudos sobre as relações intrínsecas


entre o Direito e o Estado, que foram compilados em 1934 com a designação de Teoria
Pura do Direito. Assim, o jurista, em apertada síntese, defende que o Direito deve ser
examinado como uma ciência de forma sistemática mediante a avaliação lógica dos
aspectos formais e materiais das normas. O juízo de valor deve ser afastado do Direito,
que, como um conjunto de regramento jurídico, estabelece condutas por via da motivação
indireta pela ameaça de coação independente da vontade. Pode-se dizer que esta
proposição inaugurou a reconhecida estrutura dual das normas, a primária, que contempla
as situações juridicamente qualificadas caracterizadas pelas constantes deônticas de
proibição, permissão e obrigação e a secundária, que prevê o efeito sancionador pelo
descumprimento da conduta previamente estipulada (VILANOVA, 2005, p. 105).

O Direito também é entendido como o próprio Estado, que por sua vez é a
personificação metafórica da ordem jurídica. Suas duas faces são a estática, que atende ao
conteúdo da norma em si mesma e a dinâmica, em que a norma é sempre recriada com
base em lei anterior por um órgão estatal previamente estruturado para o desempenho
desta função.

No topo da pirâmide do Direito pode-se encontrar a Constituição, que é uma


norma que repousa em uma situação hipotética, sob a suposição de que ela tem condições
de produzir os efeitos esperados conferidos a ela pelo primeiro legislador, que lhe qualifica
com o sentido dever ser, em que juridicamente uma condição está atrelada a uma
consequência no próprio enunciado. É a regra fundamental, superior e ponto de partida
que serve de fonte comum e de fundamento de validade para todo o ordenamento jurídico
infraconstitucional positivado.

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Influenciado por todos seus estudos prévios sobre o Direito, Hans Kelsen em 1931
apresenta suas contrarrazões à tese de Carl Schmitt suscitando que o guardião da
Constituição deve ser um órgão estatal denominado Tribunal Constitucional, com as
funções estatais próprias do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, que criam e aplicam
as normas jurídicas de forma genérica e de forma individual, respectivamente.

Em seu livro Quién deve ser el defensor de la constituición?, o doutrinador vem


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explicar a importância da função de um guardião da norma fundamental, de uma justiça


constitucional, que valida as demais normas positivadas contra violações, mediatas ou
imediatas, em um Estado de Direito. Partindo da premissa de que a Constituição é o
instrumento de segurança e de limitação jurídica ao poder estatal. No século XIX a
Constituição era defendida pelo monarca e assim ocultando a sua verdadeira intenção de
compensar a perda de poder do Chefe de Estado ocorrida na transição da monarquia
absolutista para a monarquia constitucional. Nestas circunstâncias a neutralidade do
monarca, como inclusive o titular do Poder Legislativo, não poderia ser eternamente
reconhecida, porque seria um contrassenso o mesmo órgão ter a função de defendê-la
acumular o poder de pô-la em perigo.

Kildare Gonçalves Carvalho (2015a, p. 438) esclarece que

Kelsen, ao sustentar a necessidade de um controle concentrado de


constitucionalidade, a cargo de um Tribunal Constitucional, reafirma
que a defesa da Constituição visa justamente evitar sua violação pelo
defensor proposto por Schmitt, isto é, o Presidente do Reich, cuja
legitimidade advém apenas de uma maioria no momento da votação,
nada mais garantindo.

Daí a necessidade de criação de órgão estatal independente e neutro denominado


Tribunal Constitucional para garantir o liberalismo e a democracia moderna. Deve-se negar
a possibilidade do exercício de um estado de exceção como manobra para suspender os
direitos fundamentais e ainda a rotulação dos velhos ideais ideológicos da monarquia
constitucional do século XIX com supostos novos contornos. Tão lógica esta conclusão que
o próprio Carl Schmitt pode perceber o perigo de propiciar um inimaginável poder
ilimitado ao Chefe do Poder Executivo em uma eventualidade. Não se pode conceber no
século XX que a Constituição seja inspirada na teoria pouvoir neutre de Benjamin Constant
que acrescenta um quarto poder, neutro, preservador ou real, à clássica teoria de
tripartição dos poderes do Estado desenvolvida por Montesquieu.

José Joaquim Gomes Canotilho (2001, p. 869) ensina que


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À ideia de um controle concentrado está ligado o nome de Hans


Kelsen, que [...] diverge substancialmente da judicial review
americana: o controlo constitucional não é propriamente uma
fiscalização judicial, mas uma função constitucional autónoma que
tendencialmente se pode caracterizar como função de legislação
negativa. No juízo acerca da compatibilidade ou incompatibilidade
(Vereinbarkeit) de uma lei ou norma com a constituição não se
discutiria qualquer caso concreto (reservado à apreciação do tribunal

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a quo) nem se desenvolveria uma actividade judicial.

Certamente um Tribunal independente com jurisdição constitucional de controle


para decidir em procedimento contencioso a constitucionalidade dos atos do Poder
Legislativo e do Poder Executivo anulando-os, se for o caso, e eventualmente imputando
responsabilidades. Embora possa não ser um órgão que propicie uma garantia absoluta,
ainda assim é um Colegiado com função tipicamente jurisdicional e independente dos
demais poderes estatais, nos moldes de sua famosa teoria geral do Direito. Por ter
jurisdição constitucional afasta-se incluive do Poder Juridiciário no excercício de sua função
de dizer o direito de forma ordinária.

Hans Kelsen (2003a, p. 169) leciona que

[...] não é impossível que um tribunal constitucional chamado a se


pronunciar sobre a constitucionalidade de uma lei anule-a por ser
injusta, sendo a justiça um princípio constitucional que ele deve por
conseguinte aplicar. Mas nesse caso a força do tribunal seria tal, que
deveria ser considerada simplesmente insuportável. [...]. É claro que a
Constituição não entendeu, empregando uma palavra tão imprecisa
e equívoca quanto a de justiça, ou qualquer outra semelhante, fazer
que a sorte de qualquer lei votada pelo Parlamento dependesse da
boa vontade de um colégio composto de uma maneira mais ou
menos arbitrária do ponto de vista político, como o tribunal
constitucional.

Há uma distinção essencial entre uma função jurisdicional e uma função política.
O controle de constitucionalidade das normas legais “é reservado a um único tribunal [que
detém a] competência para anular a validade da lei reconhecida como inconstitucional não
só em relação a um caso concreto mas em relação a todos os casos a que a lei se refira”. A

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“norma jurídica, em regra, somente é anulada com efeitos para o futuro, de forma que os
efeitos já produzidos que deixar para trás permaneçam intocados” (MORAES, 2019, p. 789
e 823).

No exercício da função política jamais será feita justiça, já que é própria do Poder
Legislativo, sendo um equívoco pensar que o Poder Judiciário poderia dela se valer como
atribuição autêntica. Ilustrando, na jurisdição internacional há por certo um conflito de
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interesses políticos entre Estados soberanos, mas este evento não tem o condão de lhe
retirar a natureza de uma disputa tipicamente jurídica.

Hans Kelsen (2003a, p. 263) esclarece que

A anulação de uma lei se produz essencialmente como aplicação das


normas da Constituição. A livre criação que caracteriza a legislação
está aqui quase completamente ausente. Enquanto o legislador só
está preso pela Constituição no que concerne a seu procedimento -
e, de forma totalmente excepcional, no que concerne ao conteúdo
das leis que deve editar, e mesmo assim, apenas por princípios ou
diretivas gerais -, a atividade do legislador negativo, da jurisdição
constitucional, é absolutamente determinada pela Constituição.

A jurisdição ordinária propriamente dita está vinculada à subsunção do fato


concreto às normas de regência. Distintamente, o Tribunal Constitucional busca a justiça
no caso em que a norma infraconstitucional tem um conteúdo duvidoso em relação à lei
fundamental. A Constituição não só determina o rito do processo legislativo como também
de alguma maneira indica o conteúdo das futuras leis. Por esta razão a decisão a respeito
da constitucionalidade das leis não pode ser tratada como um exame do conteúdo
duvidoso de uma norma infraconstitucional a partir de seu próprio ou do conteúdo de lei
da mesma estatura, porque assim não há jurisdição alguma. Tem cabimento explicar que
entre uma lei e uma sentença judicial não há uma diferenciação qualitativa, já que ambas
são geradoras de Direito.

Aflora a contradição intrínseca constante na tese de Carl Schmitt ao defender que


a existência concomitante de um Tribunal com a função de guardar a Constituição é
incompatível em um Estado tipicamente legislativo. A justiça nunca seria posta em perigo
simplesmente pela implementação de um sistema de controle de constitucionalidade em
um Estado que adota a república forma de governo. As decisões proferidas por um Tribunal
Constitucional, em verdade, contribuem para o desenvolvimento da própria lei
fundamental no sentido em que dirime conflitos entre interesses opostos, mediante a
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valorização de um em detrimento de outro com o escopo de defender a própria


Constituição e os direito fundamentais por ela positivados.

O Estado total, embora contenha um aspecto social, ainda assim é caracterizado


pela política autocrática centralizada, ou seja, uma ficção de neutralidade e da
representação popular, que eleva o Presidente do Reich parcial e com poder ilimitado à
estatura de guardião da Constituição. Por outro lado o pluralismo partidário é um
instrumento de oposição da sociedade contra o poder ilimitado do Estado permitindo a

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democracia e a descentralização política. O mencionado pluralismo em nada propicia a
desintegração do conceito de Estado, ao contrário, promove o desenvolvimento de sua
soberania. Também o Tribunal Constitucional, como guardião da Constituição
independente e neutro, é compatível com a ampliação das competências dos Poderes
Legislativo e Executivo, já que com eles se harmoniza na repartição funcional do poder
estatal.

No Brasil o controle judicial de constitucionalidade é levado a efeito


repressivamente pelo Poder Judiciário (arts. 97 e 102 da CRFB) (BRASIL, 1988).

4. Considerações Finais

O constitucionalismo contemporâneo firma-se a partir do século XVII na Inglaterra


e no século XVIII nos Estados Unidos da América e na França como sucedâneo da ruptura
revolucionária da monarquia absolutista para o regime constitucional do Estado Liberal do
Direito. Em 1803 houve a consagração do controle de constitucionalidade no julgamento
em 1803 do caso Marbury versus Madison pela Suprema Corte dos Estados Unidos da
América.

Esses eventos muito contribuíram para o embate ideológico entre Carl Schmitt na
Alemanha e Hans Kelsen na Áustria de quem deveria ser o defensor da Constituição no
contexto do Estado Liberal de Direito ocorrido no período histórico entreguerras no século
XX.

Em 1931, Carl Schmitt defende a tese antiliberal de que o Presidente do Reich tem
legitimidade para desempenhar a função, inclusive legislativa, de guardião de Constituição,
questionando veementemente o papel do Poder Judiciário politizado, por considerá-lo
uma instituição que almeja garantir a segurança e as liberdades da burguesia,
desequilibrando o sistema constitucional do Estado. Deste modo, no controle político da
constitucionalidade não se pode conceber um Tribunal independente para revisão de atos
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legislativos e executivos em face da Constituição, pois seria uma forma de afrontar a


soberania estatal. O pluripartidarismo é gerador de instabilidade e impregna de desordem
a economia pública.

A posição de superioridade do Estado é indiscutível em relação à norma jurídica e


portanto a atuação do Presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo e o verdadeiro
guardião da Constituição, vem consolidar a auto-organização do Estado-sociedade tendo
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como característica sua posição de neutralidade, intermediação, regulamentação e


defensoria com poder de decretar um estado de exceção passível de suspender os direitos
fundamentais.

Para Hans Kelsen, com base na sua Teoria Pura do Direito e na supremacia da
Constituição, ainda em 1931, em resposta direta às proposições de Carl Schmitt, manifesta
seu posicionamento liberal no sentido de que uma democracia moderna, que visa a
liberdade e o pluripartidarismo, não pode prescindir de um Tribunal com prerrogativa
judicante extraordinária, diferenciado das atribuições legislativas, executivas e
jurisdicionais ordinárias.

O controle jurisdicional de constitucionalidade, assim entendido o conjunto do


poder que legifera e cria lei abstrata e o poder judicante que dá origem a norma no caso
concreto, é um mecanismo assecuratório de atuação de forma neutra na defesa da
Constituição, com atribuição de fazer o controle da constitucionalidade das leis. Rechaça
que no século XX ainda haja doutrina que se inspire na teoria pouvoir neutre, que
acrescenta um quarto poder, neutro, preservador ou real, à clássica teoria de tripartição
dos poderes do Estado. A criação de um Tribunal Constitucional como guardião propicia
um sistema de controle próprio do processo democrático e garante a legitimidade do
exercício das funções de forma harmônica e limitadora do poder estatal.

A teoria de Carl Schmitt é relevante já que atualmente alguns Estados adotam o


controle político de constitucionalidade. Em muitos outros Estados democráticos é
incorporado o ideal desenvolvido por Hans Kelsen em relação à criação de um Tribunal
com jurisdição específica de controle de constitucionalidade. Ambas as ideologias são
amplamente analisadas e servem de paradigmas estruturais.

Sem sombra de dúvida, as teorias de ambos os juristas são notadamente


analisadas até os dias de hoje e muito contribuíram para a evolução do controle de
constitucionalidade como um mecanismo de verificação da adequação das leis e dos atos
normativos, nos aspectos formais e materiais, à Constituição e precipuamente instrumento

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limitador do poder estatal previamente estruturado e garantidor dos direitos


fundamentais, inclusive no Brasil.

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A CONSTITUCIONALIDADE DO PODER DE REQUISIÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA E


A IMPORTÂNCIA DA INTERLOCUÇÃO COM OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA: A
POSSIBILIDADE DE SE DEFENDER PROVANDO COMO ESSENCIAL EXPRESSÃO DA
AMPLA DEFESA

ERALDO SILVEIRA FILHO:


Defensor Público do Estado de
Alagoas. Pós-graduando em:
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Perícia Criminal.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar o percurso e construção


histórica do poder de requisição da Defensoria Pública, que culminou na improcedência
Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.852/DF, proposta pelo Procurador-Geral da
República, na tentativa de invalidar tal prerrogativa institucional, e julgada pelo Supremo
Tribunal Federal, ocasião em que houve a confirmação do poder de requisição, a ser
pautado pela responsabilidade e pela ética de cada membro defensorial, como
instrumento institucional. Foram utilizados elementos históricos, legais e jurisprudenciais.
A partir desse fluxo de raciocínio, é que se construiu a reflexão acerca do contexto histórico
desde a antiga figura romana do tribunus plebis, e da importância da concretização da
ampla defesa, munida de isonomia e capacidade eficiente em realizar, por todos os meios
legais, sua maior expressão, qual seja, o direito à produção probatória.

Palavras-chave: Defensoria Pública; Poder de Requisição; Direito à Prova;


Constitucionalidade.

Abstract: The present work aims to present the trajectory and historical construction of
the Public Defender's requisition power, which culminated in the dismissal of Direct Action
of Unconstitutionality 6.852/DF, proposed by the Attorney General of the Republic, in an
attempt to invalidate such institutional prerogative, and judged by the Federal Supreme
Court, when there was confirmation of the power of requisition, to be guided by the
responsibility and ethics of each defense member, as an institutional instrument. Historical,
legal and jurisprudential elements were used. Based on this flow of reasoning, the reflection
was built on the historical context since the ancient Roman figure of the tribunus plebis,
and on the importance of achieving a broad defense, equipped with isonomy and efficient
capacity to carry out, by all legal means, its greatest expression, namely, the right to
produce evidence.

Keywords: Public Defender; Requisition Power; Right to Proof; Constitutionality.

Sumário: Introdução. 1.Sentido histórico e constitucional da Defensoria Pública. 1.1.


Tribunus plebis, percursos da Defensoria Pública. 1.2. A regulação dos serviços
institucionais de assistência judiciária gratuita. 2. Interlocução institucional com os órgãos

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de segurança pública como expressão inafastável do direito à prova. 2.1. A relevância da


Defensoria Pública. 2.2. Atribuições de controle social da Defensoria Pública. 3. Poder de
requisição como instrumento institucional. 3.1. Perfil institucional da Defensoria e os
poderes decorrentes deste. 3.2. O julgamento do poder de requisição da Defensoria
Pública no Supremo Tribunal Federal. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

Ao iniciar os levantamentos derivados das inquietações para escrever o presente

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texto, podemos constatar que o direito a uma defesa de qualidade decorre, primeiro, de
uma evolução natural da sociedade, em termos de civilização mesmo, quando se começa
a conscientização da racionalidade da limitação do uso do poder, que depois vai ficar
consagrada histórica e constitucionalmente no cânone do devido processo legal; e,
segundo, decorre, a rigor, de um passado histórico de certa forma imemorial, como sói
ocorrer com a construção e a consolidação das instituições sociais e, mais propriamente
ainda, dos chamados institutos jurídicos.

É dizer, o direito a uma defesa jurídica de qualidade (que nasceu como a direito a
uma defesa, sem adjetivação), irradiado do cânone do devido processo legal, nasceu
difusamente, podendo-se concluir, originado da lenta evolução civilizatória, ou até mesmo
do sentimento caritativo de matriz religiosa.

Na transcrição dos pensamentos componentes desta reflexão, buscamos, mesmo


que de modo ainda incipiente, conjugar elementos históricos, legais e jurisprudenciais que
estabeleçam um fio condutor direcionado à estima e à valorização desse direito
fundamental, que é o direito universal, isto é, para todas as pessoas, sem exceção, a uma
defesa jurídica de qualidade.

No primeiro capítulo, pois, tentamos buscar um contexto histórico da origem e da


verdadeira importância desse direito, busca esta que encontrou referência identitária na
remota e peculiar figura do tribunus plebis (tribuno da plebe), que desempenhou uma
magistratura sui generis de fundamental relevo na atmosfera da República Romana.

Nesse mesmo intento, girando o molde para terras brasileiras, assinalamos


referência nas Ordenações Filipinas, na atuação caritativa estimulada pelo Instituto
Brasileiro de Advocacia e na gestação da institucionalização da Defensoria Pública
inicialmente dentro das estruturas organizacionais do Ministério Público e da Advocacia
Pública.

No segundo capítulo, desdobramos e enaltecemos a indispensabilidade do


aprimoramento da interlocução institucional com os órgãos de segurança pública, para

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além de uma exclusividade do Ministério Público, como inafastável expressão do direito à


prova. A propósito, contrastamos o caráter privativo da titularidade da ação penal com a
ausência da mesma nota de exclusividade na interlocução institucional e nem mesmo
quanto ao controle externo da atividade policial, que a rigor trata-se deveria se tratar de
um, por que não, rigoroso controle social de prestação de contas de caráter abrangente,
como possibilitado pela Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), a qual, como se sabe,
resulta dos marcos de controle da atividade da administração pública insculpidos
constitucionalmente.
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Por fim, no terceiro capítulo, pautados pelo posicionamento do Supremo Tribunal


Federal na ADI 6852, cujo acórdão foi publicado em 29.03.22, enaltecemos a
responsabilidade institucional e ética que incumbe à Defensora Pública ao lhe confirmada
a prerrogativa do poder de requisição como instrumento institucional, em decorrência do
seu regime normativo, fixado em seu estatuto nacional (Lei Complementar 80/94) e
amparado com realce constitucional, sempre direcionado à concretização horizontal do
devido processo legal.

Adicionalmente, na esteira da análise dos votos escritos na ADI 6852, frisamos que
o STF reconheceu o poder de requisição à Defensoria Pública como poder implícito,
expressão do princípio da isonomia em similitude e paralelismo com o mesmo poder
conferido ao Ministério Público, para equiparação de forças institucionais, dentre outros
argumentos também referenciados no decorrer do capítulo.

1. SENTIDO HISTÓRICO E CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

A atual Constituição Federal brasileira consagra a Defensoria Pública, na condição


de órgão público e instituição permanente, como indiscutível elemento orgânico e
estrutural do seu texto, integrada na arquitetura essencial de todo o sistema de justiça,
com peculiaridades institucionais próprias e distintas, paralelamente a outros também
relevantes órgãos e funções essenciais à justiça, como Ministério Público, advocacia pública
e advocacia privada, consoante as disposições do Capítulo IV do Título IV da Lei Maior,
arts. 127 a 135 (LENZA, 2020, p. 103).

Sobretudo após a Emenda Constitucional 80/14, que alterou o disposto no art. 134
da Lei Maior, delimitou-se com maior clareza a distinção da atividade institucional da
Defensoria Pública em relação à advocacia privada, assim como se tonificou o perfil
institucional e constitucional da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro,
como instituição independente, dotada de unidade corporativa entre seus ramos e, por
isso, indivisibilidade representativa.

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A rigor, tal consagração e tonificação institucional atualizada e conferida pelo texto


constitucional converge com o próprio horizonte originário da Defensoria Pública como
instituição de Estado, como ilustraremos a seguir.

Ao se buscar no referencial histórico a gênese simbólica do ofício público de defesa


dos necessitados, conforme contextualiza a clássica e reverenciada obra de Fustel de
Coulanges (1830-1889), chamada A Cidade Antiga, edição impressa de 1961, p. 471,
encontraremos na atmosfera da República Romana a longínqua institucionalização do
tribunado da plebe, com a figura do tribunus plebis, que assumia uma magistratura sui

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generis cujo exercício consistia em reclamar igualdade jurídica, no sentido de direitos
fundamentais, às pessoas excluídas.

1.1. Tribunus plebis, percursos da Defensoria Pública

A peculiaridade do tribunus plebis em relação aos magistrados tradicionais restava


traduzida no fundamento de legitimidade. Os defensores da plebe tinham sua legitimidade
de atuação fundamentada em literalmente corporificarem verdadeiro instrumento de
acesso a direitos pela plebe, haja vista os direitos da plebe somente poderiam ser
respeitados se um defensor da plebe estivesse presente pessoalmente.

De outra mão, os magistrados tradicionais tinham sua autoridade fundamentada


no culto da cidade patrícia (elite derivada da ancestralidade), nas cerimônias religiosas e
nos auspícios dos deuses invocados pelos patrícios.

Dito de outra forma, os defensores da plebe exerciam importante poder e


ascenderam em conquistas para a plebe que vivia às margens de Roma, porém nunca
tiveram os privilégios simbólicos da coroa de louros, do manto de púrpura e da cadeira
curul (espécie de trono móvel) reservados aos então tidos como verdadeiros e tradicionais
magistrados romanos.

Singrando o tempo e chegando às origens do serviço de assistência judiciária no


Brasil, verificamos que a ideia moderna de instituição da Defensoria Pública como órgão
estatal, em seu período embrionário, foi concebida como um ramo dentro do organograma
institucional do Ministério Público ou da advocacia pública e respectivas procuradorias.

O percurso, num primeiro momento, restou esboçado com a previsão da


assistência judiciária gratuita como direito abstrato, desvinculada de um órgão
especializado e responsável pela prestação regular e contínua, inaugurada em passado
praticamente imemorial, tendo como marco referido um decreto datado de 5 de maio de
1897, para vigência no então Distrito Federal, na época a cidade do Rio de Janeiro, ou mais
remotamente ainda, até mesmo, nas Ordenações Filipinas, Livro III, Título 84, § 10, em que

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havia a previsão de isenção de custas, para a pessoa reconhecidamente pobre, sob a


condição de que esta rezasse o pai-nosso pela alma do rei na audiência (Defensoria Pública
do Estado do Rio de Janeiro, 2022).

Quando muito, na culminância deste longo período embrionário em solo


brasileiro, havia uma praxe forense de apoio do Instituto Brasileiro de Advocacia, precursor
da OAB, no sentido de possibilidade de uma atuação caritativa da advocacia no serviço de
assistência judiciária. No entanto, a imposição de um encargo contingente e sem
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contraprestação pecuniária, a título de mera caridade, a profissionais liberais da iniciativa


privada mostrou-se um modelo inadequado e deveras insuficiente. Tal assertiva fica mais
evidente ainda num país marcado por severo contraste social, consectário do passado
escravocrata, como o Brasil (CAPPELLETTI, 1974, p. 134 apud GIANNAKOS, 2008, p. 65).

1.2. A regulação dos serviços institucionais de assistência judiciária gratuita

Posteriormente, no transcurso do século XX, para além das disposições meramente


abstratas acerca da assistência judiciária, como concessão estatal genérica, desprovida de
órgão especializado para a prestação regular e concreta do serviço, foram concebidos os
primeiros marcos normativos da prestação do serviço de assistência judiciária
institucionalizado.

Como referenciado anteriormente, tal institucionalização foi concebida


inicialmente nos organogramas das carreiras de promotores e procuradores, isto é, dentro
das estruturas organizacionais do Ministério Público e das Procuradorias Estaduais,
citando-se, a título de exemplo, a história institucional do próprio Distrito Federal e de
estados como Rio de Janeiro (ou Guanabara, antes Distrito Federal), Bahia, Rio Grande do
Sul, Rio Grande do Norte, São Paulo, Alagoas (GIANNAKOS, 2008, p. 115/120).

Não obstante a previsão abstrata e denominada como assistência judiciária a título


de isenção estatal para postulação judicial constar a nível constitucional desde a Carta de
1934, cumpre acentuar que, apenas na Constituição Federal 1988, houve o estabelecimento
institucional da Defensoria Pública no ápice da pirâmide normativa brasileira, com previsão
expressa no art. 134 do texto constitucional.

A partir de então, desencadeou-se uma cronologia histórica de consolidação da


Defensoria Pública como instituição estrutural e funcionalmente especializada. Na esfera
nacional, a evolução legislativa com a LC 80/94 e depois a LC 132/09; bem ainda a evolução
constitucional com a EC 80/14, fora as ECs 45/04 e 74/13, concretizaram um desenho
institucional de autonomia administrativa e orçamentária, como órgão independente e
essencial à Justiça, a par do Ministério Público, replicando expressamente inclusive os
mesmos princípios institucionais e constitucionais de unidade, indivisibilidade e
independência funcional.

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A LC 80/94 deu concretude à matriz constitucional do § 1º do art. 134 da CF acerca


da exigência de lei complementar para a organização institucional no âmbito da União e
do Distrito Federal, assim como o estabelecimento de normas gerais para a organização
institucional no âmbito dos estados, consolidando importante rol de prerrogativas
funcionais, tais como prazo em dobro, vista pessoal e poder de requisição.

A LC 132/09, ao seu turno, aprimorou o texto da LC 80/94, enfatizando a atribuição


de atuação institucional na esfera de direitos coletivos e difusos, conferindo amplo
espectro postulatório para essa finalidade.

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Por sua vez, a EC 80/14 distinguiu, em relação à advocacia privada, mais do que de
maneira expressa, de forma emblemática a natureza de órgão público, extrapoder,
independente e especializado, como verdadeira magistratura instrumental e expressão do
regime democrático.

Repare-se, a propósito, que, ao se ter em mente o processo penal, neste atual


cenário normativo-constitucional, a Defensoria Pública é concebida como atividade
transversal e inclusiva, entre a acusação, com seu exercício do poder punitivo estatal, e a
advocacia, com sua atuação marcantemente representativa dos interesses do respectivo
contratante.

Com toda essa evolução constitucional e legislativa, no atual cenário normativo-


institucional, a Defensoria Pública passa a se assumir como verdadeira instituição
transversal e inclusiva, a quem compete, para além da defesa passiva de interesses
individuais, fiscalizar, também a título de atuação coletiva, o regular exercício dos órgãos
públicos que atingem os interesses de toda a população, inclusive no âmbito do direito
penal, em que o exercício do poder punitivo estatal tem o condão de impor ao cidadão,
considerado individualmente, a mais grave das sanções, assim como o aniquilamento da
sua cidadania.

2. INTERLOCUÇÃO INSTITUCIONAL COM OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA


COMO EXPRESSÃO INAFASTÁVEL DO DIREITO À PROVA

2.1. A relevância da Defensoria Pública

Nessa linha de consagração e realce da Defensoria Pública, como relevante


expressão e instrumento do regime democrático, com destaque para a incumbência
fundamental da primazia da orientação jurídica, ressai a necessidade de se estabelecer
constante e profícuo diálogo interinstitucional, acentuando-se a necessidade desse diálogo
com os órgãos de segurança pública, no intuito de se manter ininterruptamente
sedimentada a atmosfera de concretização do estado democrático de direito e respeito

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aos direitos fundamentais, notadamente a igualdade de tratamento de todos perante a lei,


sobretudo a lei fundamental da nação que se traduz na Constituição Federal.

De se notar, a propósito, que a Constituição Federal (art. 129) confere ao Ministério


Público também uma importante atribuição, qual seja, a titularidade da ação penal pública,
com a ressalva do texto constitucional para o caráter privativo desta atribuição (inciso I).
Assim, cumpre divisar que, de fato, a titularidade da ação penal pública (dominus litis) é
uma competência privativa do Ministério Público. No entanto, tal ênfase de exclusividade
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não é repetido, por exemplo, no que diz respeito ao controle externo da atividade policial
(inciso VII), à realização de levantamentos investigativos ou menos ainda à interlocução
interinstitucional.

É dizer, a estrutura normativa da atribuição de controle externo da atividade


policial e menos ainda a respectiva interlocução interinstitucional não trazem consigo a
mesma delimitação de exclusividade encerrada na atribuição de titularidade da ação penal
pública. Do mesmo modo, nesse ponto do controle externo da atividade policial, ao se
atentar para o que preceituado no inciso VII do art. 129 da CF, observa-se a remissão à
legislação infraconstitucional de caráter complementar.

Nesse âmbito, seguindo como referência, a título ilustrativo, a Lei Complementar


75/93, que traduz o estatuto de organização e atribuições do Ministério Público da União,
para além do aspecto de indispensabilidade da persecução penal, conjugado com a
atribuição de titularidade da ação penal, constatam-se atribuições que guardam
pertinência com funções institucionais também inerentes à Defensoria Pública (Lei
Complementar 80/94), como, por exemplo, a afirmação do estado democrático de direito,
a prevalência dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, assim como a
concretização da comunidade de princípios decorrentes do devido processo legal, tais
como os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, dentre outros
assegurados constitucionalmente e normativamente.

2.2. Atribuições de controle social da Defensoria Pública

Em sincronização com a evolução legislativa, para além de previsão legal no


próprio estatuto da Defensoria Pública ou até mesmo da advocacia, cumpre ter em mente
que atribuições de controle social relacionadas à condição de se ter acesso a amplas e
relevantes informações, encontram atualmente guarida na Lei 12.527/11, conhecida como
Lei de Acesso à Informação.

Por oportuno, esclarecendo melhor esse ponto da Lei de Acesso à Informação,


cumpre acentuar que justamente na esteira do direito fundamental à informação (art. 5º)
e à publicidade dos atos de exercício de poder (art. 35) é que tal diploma legal (Lei
12.527/11) subordina todos os órgãos públicos expressamente ao seu regime.

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Apenas em caráter excepcional, realmente existem hipóteses em que seja possível


a restrição de acesso à informação, entretanto com a condição de que ao mesmo tempo
seja respeitada a disciplina existente para tais hipóteses dentro da própria Lei de Acesso à
Informação, com as disposições gerais, específicas e detalhadas de classificação de
informação previstas nos seus arts. 21 e seguintes.

Contudo, nesses mesmos termos, os casos de restrição de acesso não podem


caracterizar obstáculo ao exercício de direitos fundamentais, bem como necessitam de
procedimento de classificação em decisão formalizada por escrito, contextualizada,

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fundamentada, com indicação do prazo de sigilo e identificação da autoridade responsável
pela classificação, ainda sendo passível de reavaliação por órgão colegiado supervisor.

Desse modo, considerando a larga amplitude da atribuição institucional da


Defensoria Pública concernente à efetividade dos princípios constitucionais da ampla
defesa e do contraditório, especialmente no processo penal, em que tal atribuição tem
alcance universal (art. 261, CPP) para além do critério de insuficiência de recursos (CF),
resulta imprescindível a interlocução constante e eficiente da Defensoria Pública com os
órgãos de segurança pública.

Essa interlocução tem por escopo a vital e ininterrupta concretização do devido


processo legal como verdadeira pedra angular da afirmação do estado democrático de
direito, conferindo espessura concreta à missão institucional de exercer a defesa técnica e
fundamentada por meio de sua maior e inegável expressão que é o direito à prova (Brady
v. Maryland), alcançando-se todas as circunstâncias que possibilitam o esclarecimento
detalhado do caso concreto, quer sejam de interesse da acusação, quer sejam de interesse
da defesa.

3. PODER DE REQUISIÇÃO COMO INSTRUMENTO INSTITUCIONAL

3.1. Perfil institucional da Defensoria e os poderes decorrentes deste

Com efeito, o perfil institucional desenhado à Defensoria Pública, como específica


expressão e instrumento do regime democrático, à qual incumbe primordialmente a
orientação jurídica e a defesa dos necessitados, sobre a pedra angular do devido processo
legal, reserva-lhe em caráter prioritário uma nobre e sensível função: evitar situações de
extrema injustiça no âmbito da persecução penal. Não por menos, possui ampla gama de
atribuições, assumindo a defesa de todos que não tenham advogado, essa previsão vem
desde a redação original do CPP, independente do critério econômico que baliza a atuação
institucional na esfera cível, cabendo-lhe corporificar aprimorada e pública defesa ética, a
repercutir inclusive na legitimidade do chamado poder de requisição, a instrumentalizar e
potencializar o exercício altamente qualificado de sua nobre missão institucional.
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Falando nisso, num paralelo de inspiração com o direito comparado, é muito


comum se remeter à consagrada doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema
Corte dos Estados Unidos, notadamente a partir do famoso precedente McCulloch v.
Maryland, de 1819, em que se assentou o entendimento jurisprudencial de que uma
atribuição pode muito bem ser inferida quando necessária e própria para o desempenho
de outras competências inequívocas do respectivo órgão (BARROSO, 2015, p. 44). O caso
McCulloch v. Maryland tratou de aspectos do sistema financeiro e bancário norte-
americano, naquela ocasião. Todavia, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal também já teve
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a oportunidade de repercutir a mesma doutrina dos poderes implícitos em diversos


julgamentos, dentre eles julgamentos envolvendo interpretações ampliadas de atribuições
do Tribunal de Contas da União (MS 24.510, MS 33.092) e do Ministério Público inclusive
(HC 93.930, RE 593.727).

Indo além, a previsão expressa do poder de requisição como instrumento de


atuação funcional da Defensoria Pública vem desde a redação original da lei orgânica
nacional da Defensoria, qual seja, a Lei Complementar 80/94, que organiza a Defensoria
Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal, assim como prescreve normas
gerais para a organização nos estados.

Apesar disso, no ano de 2021, o respectivo Procurador Geral da República, Augusto


Aras, ajuizou diversas ações diretas de inconstitucionalidade, questionando todas as
legislações estaduais que conferem tal prerrogativa institucional à Defensoria Pública, além
da Lei Complementar 80/94, questionada em caráter protagonista, porque inegavelmente
a mais representativa dessa controvérsia, por meio da ADI 6852.

Para tanto, impingiu que esse importante instrumento de atuação institucional


seria incompatível com as atribuições da Defensoria Pública, porque violaria notadamente
o princípio da isonomia com a advocacia privada, devendo tal poder instrumental ser
reservado apenas em caráter diferenciado ao órgão acusatório e às nobres funções do
Ministério Público.

3.2. O julgamento do poder de requisição da Defensoria Pública no Supremo Tribunal


Federal

No entanto, a Corte Constitucional brasileira rechaçou esse pleito de exclusividade


ministerial, pelo largo placar de votação de dez votos a um (sendo esse um, ainda, apenas
parcialmente divergente). A propósito, o acórdão restou assim ementado:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO


CONSTITUCIONAL E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO.
DEFENSORIA PÚBLICA. LEI COMPLEMENTAR 80/1994. PODER DE
REQUISIÇÃO. GARANTIA PARA O CUMPRIMENTO DAS FUNÇÕES

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INSTITUCIONAIS. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ASSISTÊNCIA


JURÍDICA INTEGRAL E EFETIVA. ADI 230/RJ. ALTERAÇÃO DO
PARÂMETRO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. ADVENTO
DA EC 80/2014. AUTONOMIA FUNCIONAL E ADMINISTRATIVA DAS
DEFENSORIAS. IMPROCEDÊNCIA. 1. O poder atribuído às Defensoria
Públicas de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus
agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos,
documentos, informações, esclarecimentos e demais providências
necessárias ao exercício de suas atribuições, propicia condições

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materiais para o exercício de seu mister, não havendo falar em
violação ao texto constitucional. 2. A concessão de tal prerrogativa
à Defensoria Pública constitui verdadeira expressão do princípio
da isonomia e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a
prestação de assistência jurídica integral e efetiva. 3. Não subsiste
o parâmetro de controle de constitucionalidade invocado na ADI
230/RJ, que tratou do tema, após o advento da EC 80/2014, fixada,
conforme precedentes da Corte, a autonomia funcional e
administrativa da Defensoria Pública. 4. Ação Direta de
Inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF - ADI: 6852 DF
0054388-26.2021.1.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de
Julgamento: 21/02/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação:
29/03/2022)” (grifo nosso)

Como se percebe da ementa acima destacada, a rigor, a parametrização da


isonomia da Defensoria Pública deve ser com o próprio Ministério Público. Isso porque a
Defensoria Pública corporifica, dentro do sistema de justiça, verdadeira magistratura
instrumental correspondente à maior expressão do regime democrático e do devido
processo legal, como instituição estatal essencial à justiça e, por excelência, garantidora da
ampla defesa e do contraditório, em face do poder punitivo estatal corporificado pelo
Ministério Público.

A esse respeito, no transcurso de seu voto como relator da aludida ação direta (ADI
6852), o Min. Edson Fachin diversas vezes pontuou tal paralelismo institucional como
pertinente para o exercício de poderes equivalentes, como na seguinte passagem: “Em
diversas ocasiões esta Suprema Corte tratou de apontar o paralelismo traçado pelo
constituinte entre Ministério Público e Defensoria Pública.”

Outrossim, no mesmo diapasão, asseverou: “Entendo, portanto, que assim como


ocorre com o Ministério Público, a prerrogativa de requisição atribuída aos membros da
Defensoria Pública apenas corrobora para que a instituição cumpra sua missão

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constitucional, ao viabilizar o acesso facilitado e célere da coletividade e dos


hipossuficientes à documentos, informações e esclarecimentos.”

Colheu-se o mesmo posicionamento, além do relator, igualmente, de todos os


ministros que apresentaram votos escritos (Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Nunes
Marques), relembrando-se que a votação se encerrou de forma praticamente unânime,
apenas com a ressalva de posicionamento parcialmente divergente da Min. Cármen Lúcia.
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Ilustrativamente, respeitando a sequência dos votos, vale conferir algumas


relevantes passagens dos respectivos votos vogais que compuseram o posicionamento
deliberado pelo Pretório Excelso sobre o assunto.

O Min. Alexandre de Moraes pontuou a incidência da teoria dos poderes implícitos


como pertinente à compreensão da amplitude das atribuições institucionais da Defensoria
Pública: “Incorporou-se, em nosso ordenamento jurídico, portanto, também em relação à
Defensoria Pública, a pacífica doutrina constitucional norteamericana sobre a teoria dos
poderes implícitos – inherent powers –, segundo a qual, no exercício de sua missão
constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções
necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados
Unidos – US 272 – 52, 118 ), consagrando-se, dessa forma – e entre nós aplicável também
à Defensoria Pública –, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que
permitam o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites
estruturais da Constituição Federal.”

Em digressão, referiu à clássica obra do direito constitucional brasileiro, composta


pela magistral lente de José Afonso da Silva: “dramática questão da desigualdade da
justiça, consistente precisamente na desigualdade de condições materiais entre
litigantes, que causa profunda injustiça àqueles que, defrontando-se com litigantes
afortunados e poderosos, ficam na impossibilidade de exercer seu direito de ação e de
defesa assegurado na Constituição” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São
Paulo: Malheiros, 2020, p. 614) (grifo nosso).

Com precisão, no desenvolvimento do voto, aduziu acerca da distinção do regime


jurídico entre Defensoria Pública e Advocacia, com o estabelecimento de maior semelhança
e equiparação daquela com o Ministério Público, especialmente a partir da EC 80/14:

“O Poder Constituinte Reformador evidenciou, inclusive, a distinção


entre as atividades da Defensoria Pública e da Advocacia, ao
estabelecer seções diversas, na alocação do texto constitucional, para
cada uma dessas funções essenciais à justiça, as quais, antes da
promulgação da EC 80/2014, estavam disciplinadas conjuntamente.

402
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(...)

O paralelismo deontológico e axiológico entre a Defensoria Pública


e o Ministério Público foi muito bem ressaltado pelo SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL na ADI 5296, no voto condutor da eminente
Relatora, a Ministra ROSA WEBER (...).”

Por sua vez, o Min. Gilmar Mendes enfatizou a relevância da EC 80/14 para o
fortalecimento de um regime jurídico diferenciado à Defensoria Pública:

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“Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, qualquer
possibilidade de crise identitária da instituição foi sanada. (...)

Nesse ponto, é claro que não se pode limitar a Defensoria Pública,


nos atuais moldes, a um mero conjunto de defensores dativos. Tal se
consubstancia em visão ultrapassada, que ignora a interpretação
sistemática a ser feita. A topografia constitucional atual, ademais, não
deixa margem a dúvidas de que são funções essenciais à Justiça, em
categorias apartadas, mas complementares: Ministério Público,
Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública.”

Mais que isso, em arremate, pormenorizou a fixação do entendimento de que o


poder de requisição abrange a defesa de direitos individuais: “Após analisar os
fundamentos trazidos nos votos divergentes dos Ministros Edson Fachin e Alexandre de
Moares, bem como as manifestações juntadas aos autos pelos amici curiae, me convenci
de que, apesar do poder de requisição configurar uma prerrogativa não conferida aos
advogados, sua previsão legal, mesmo que utilizada para a defesa de direitos individuais
dos assistidos, encontra justificativa nas peculiaridades institucionais da Defensoria
Pública.”

Ao seu turno, o Min. Nunes Marques, citando a renomada obra do saudoso jurista
italiano Mauro Cappelletti, somou a observação de que a Defensoria Pública deve
corporificar verdadeiro instrumento de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional:
“Aponto também que a criação da Defensoria Pública atende a um dos pressupostos de
aperfeiçoamento do acesso à justiça, inserindo-se nas suas respectivas ondas renovatórias,
conforme lição de Mauro Cappelletti (CAPPELLETTI, GARTH, 1988).”

E, por fim, nessa mesma esteira da necessidade de uma consciência pública de


verdadeiro compromisso de contribuição para esse aperfeiçoamento da prestação
jurisdicional, acentuou: “Com o reconhecimento de uma prerrogativa que atribui poder
instrumental à Defensoria, tenho que seu exercício deve ser realizado com parcimônia e

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prudência, evitando-se sempre quaisquer excessos ou abusos, os quais, se ocorridos,


poderão ser apurados e punidos na forma da lei.”

No que diz respeito ao voto da Min. Cármen Lúcia, convém lembrar, primeiro, que
notadamente em julgamentos de maior relevo e repercussão dificilmente se obtém
unanimidade no plenário de uma corte constitucional, como os 11 votos no plenário da
Corte Suprema brasileira; segundo, que a ministra foi relatora do entendimento anterior
proclamado na ADI 230, julgada em 01.02.10, que foi superado pelo julgamento da ADI
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6852, julgada em sessão virtual de 11.02 a 18.02.22.

No julgamento da ADI 6852, a ministra modificou seu entendimento anterior,


acompanhando a maioria formada desta vez em sentido diverso, todavia ainda
ressalvando, no respeitável entendimento isolado dela, o poder de requisição apenas na
atuação institucional da Defensoria Pública em caráter coletivo.

Em resumo, o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal assegura o


poder de requisição da Defensoria Pública plenamente, tanto em demanda de interesse
coletivo quanto em demanda de interesse individual. No detalhe, quanto ao poder de
requisição da Defensoria Pública em atuação de demanda de interesse coletivo, a votação
encerrou-se em 11x0; e, quanto ao poder de requisição abranger tanto atuação de
demanda coletiva quanto demanda individual, encerrou-se em 10x1.

No detalhe, em relação às mesmas impugnações realizadas quanto às legislações


estaduais, observou-se exatamente o mesmo destino, com o mesmo resultado de
improcedência, como a título de exemplo a ADI 6874, que tratou da lei complementar
regente da Defensoria Pública do Estado de Alagoas e manteve hígida a vigência e a
validade das disposições da legislação local que, em linhas gerais, reflete o mesmo padrão
de organização institucional preconizado desde a Lei Complementar 80/94.

Fixadas essas coordenadas de raciocínio, ponto digno de percepção é que, no


âmbito do direito penal e no exercício do poder punitivo estatal que se dá o centro de
gravidade da reflexão jurídico-filosófica, tendo em mira que é no âmbito desse poder que
se manifesta de forma mais conflitante o relacionamento entre o Estado e o cidadão, entre
autoridade e liberdade, entre arbítrio e certeza (FERRAJOLI, 2010, p. 08).

Justamente daí que nasce a ideia institucional da Defensoria Pública, a exemplo da


remota figura do tribunus plebis, isto é, para além da reivindicação da cidadania, como
necessária institucionalização de uma oposição qualificada ao exercício do poder punitivo
estatal, corporificado pelo Ministério Público, na condição de titular da ação penal pública.

Nesse intento, o poder de requisição certamente pode contribuir para a noção de


se defender provando como maior expressão da ampla defesa e do devido processo legal,

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seja em procedimento apuratório institucional a título de investigação defensiva, seja,


cumulativa ou exclusivamente, por meio da interlocução interinstitucional com os órgãos
de segurança pública como expressão inafastável do direito à prova.

CONCLUSÃO

Ao final desse breve percurso reflexivo, temos como indiscutível normativa e


jurisprudencialmente a vigência e a validade constitucional do poder de requisição da
Defensoria Pública.

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Todavia, como o antagonismo argumentativo é inerente uma sociedade
saudavelmente democrática, sabemos da resistência reacionária à expansão do poder da
Defensoria Pública por uma parcela de intérpretes com referência formativa mais
longínqua, anterior mesmo ao marco legislativo que firmou tal previsão expressamente no
estatuto defensorial, qual seja, a LC 80/94, ou até mesmo, menos longínqua, porém anterior
à compreensão da tonificação da divisão constitucional com o regime da advocacia
privada, conforme a Emenda Constitucional 80/14.

Não obstante, o fato é que a controvérsia e tal resistência reacionária foi proposta
pelo chefe do Ministério Público Federal, o Procurador Geral da República, e a Corte
Suprema brasileira sedimentou que tal prerrogativa é inerente às funções institucionais
corporificadas pela Defensoria Pública, tanto no julgamento da ADI 6852 quanto das
mesmas ações (ADI) contra todas as leis estaduais que reiteram as mesmas disposições
(Ministério Público Federal, 2021), por maioria absolutamente representativa, incluindo
unanimidade no aspecto da tutela coletiva (diga-se de passagem, também antes atacada
pela Associação Nacional do Ministério Público – Conamp, e já derrotada no julgamento
da pretérita ADI 3943, julgada pelo STF em 07.05.15).

Para encerrar, é sempre oportuno reforçar que o instituto jurídico hoje traduzido
na Defensoria Pública, como órgão constitucional e autônomo, deriva das primeiras raízes
históricas da percepção da importância do devido processo legal, isto é, do direito a uma
defesa. E, nessa linha do tempo, cada vez mais, tem-se evoluído para o direito a uma defesa
eficientemente adjetivada, defesa de qualidade, defesa necessariamente comprometida
com valores éticos e sobretudo com a ideia de justiça substancial que contribua para um
tratamento de efetiva igualdade perante a lei para todos os cidadãos, assim como colabore
para a melhor organização do sistema de justiça e da vida em sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Saraiva, 2015.

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da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua
organização nos Estados, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,
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BRASIL. Lei Complementar 132, de 7 de outubro de 2009. Altera dispositivos da Lei


Complementar 80/94 e da Lei 1.060/50, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência
da República, [2022]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp132.htm. Acesso em: 16 maio 2022.

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previsto na Constituição Federal. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível

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Impetrante: José Sérgio Gabrielli de Azevedo e Outro. Impetrado: Tribunal de Contas da
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investigação do Ministério Público. Poderes implícitos. Meios necessários à integral
realização dos fins. Impetrante: Anílton Loureiro da Silva. Coator: Superior Tribunal de
Justiça. Relator: Min. Gilmar Mendes, 7 de dezembro de 2010. Disponível em:
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realização dos fins. Recorrente: Jairo de Souza Coelho. Recorrido: Ministério Público do
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408
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DIREITOS E RESPONSABILIDADES NA ADOÇÃO EM SITUAÇÃO DE DIVÓRCIO

BRUNO DA SILVA AMORIM:


Acadêmico de Direito e Gestão
Pública.

RESUMO: O presente artigo busca analisar a problemática da adoção da criança e do


adolescente no que tange a situação antes, durante e após divórcio, bem como a necessária
postura do Estado e da sociedade civil frente a tal situação. Os Direitos e responsabilidades

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legais dos pais adotivos, após o divórcio ou processo de divórcio durante a adoção, são
tópicos presentes nesta pesquisa que buscam evidenciar e esclarecer tais questionamentos
acerca da adoção. O tribunal pode considerar o vínculo biológico a um padrasto que adota
o filho de outro pai? Como são feitas as determinações de guarda dos filhos, atribuída por
juiz ou mediação? Abordaremos essas e outras perguntas ao longo deste artigo.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Adoção e Divórcio. Vínculo biológico. Criança e


Adolescente.

ABSTRACT: The present work seeks to analyze the problem of the adoption of children
and adolescents regarding the situation before, during and after divorce, as well as the
necessary posture of the State and civil society in the face of such situation. The legal rights
and responsibilities of adoptive parents, after divorce or divorce proceedings during
adoption, are topics present in this research that seek to highlight and clarify such
questions about adoption. Can the court consider the biological link to a stepfather who
adopts another parent's child? How are child custody determinations made, assigned by a
judge or mediation? We will address these and other questions throughout this article.

Keywords: Fundamental Rights. Adoption and Divorce. Biological bond. Child and
teenager.

Direitos e responsabilidades dos pais adotivos

Quando os pais optam por adotar uma criança, assumem certas obrigações
relacionadas a essa criança, bem como adquirem certos direitos, perante a face legal, uma
vez finalizado o processo de adoção. O progenitor tem o dever de cuidar e sustentar a
criança, assim como faz com os filhos nascidos de um casamento. Além disso, os pais têm
o direito de tomar decisões relacionadas ao filho adotivo, incluindo decisões sobre sua
educação, atividades extracurriculares e outros aspectos de sua vida.

Em algumas situações, ambos os pais adotam uma criança que não é


biologicamente relacionada a nenhum deles. Em outros casos, um padrasto adota o filho

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do outro pai. O tribunal pode considerar o vínculo biológico e há quanto tempo o padrasto
é pai legal da criança como parte da consideração, porém todas essas informações podem
não ser definitivas na determinação da guarda da criança.

Direitos e responsabilidades legais após o divórcio

Esses direitos e obrigações continuam após o divórcio. Os pais adotivos podem


receber a guarda conjunta, ou um dos pais pode receber a guarda unilateral. Em muitos
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casos, ambos os pais mantêm a custódia legal total, mas um dos pais pode receber uma
quantidade maior de custódia.

Determinações de Custódia Infantil

Como nos casos envolvendo filhos nascidos do casamento, as determinações de


guarda dos filhos podem ser feitas de várias maneiras. Os pais podem concordar com os
arranjos de custódia e ter um juiz a assinar este acordo como parte do acordo de
divórcio. Alternativamente, os pais podem discordar inicialmente, mas depois chegar a um
acordo por meio de mediação. Por fim, poderá ser litigado o caso em que o juiz
determinará quem deve ter a guarda primária com base no melhor interesse da criança.

Divórcio durante a adoção

Em muitos casos de adoção, a mãe adotiva não está em um relacionamento estável


e deseja que seu filho esteja em uma casa com dois pais. O seu consentimento pode
basear-se nesta condição. Se os pais adotivos se separarem ou estiverem se divorciando
antes que a adoção seja finalizada, os pais biológicos podem optar por interromper o
processo antes que ele seja legalizado. Além disso, o tribunal responsável pela adoção
pode considerar como o divórcio afetaria a criança. Nesses casos, o juiz pode decidir que
a adoção pode continuar se os pais biológicos ainda consentirem, um dos pais pode
prosseguir com a adoção ou a adoção pode ser negada.

Intenção de divórcio

Outra maneira potencial de afetar a adoção é se os pais já estavam antecipando o


divórcio quando começaram ou estavam no meio do processo de adoção. Um pai
biológico pode alegar que os pais adotivos cometeram fraude ou deturparam que a criança
seria criada em uma casa com dois pais quando sabiam que não seria o caso. Se o tribunal
constatar que a fraude ocorreu, a adoção pode ser considerada nula e sem efeito, e o pai
biológico pode reivindicar seus direitos parentais.

Conclusão

410
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Encerro o caráter científico e crítico do artigo, rememorando que todos os recursos


e procedimentos ao longo da adoção devem ser feitos sustentando o máximo de coesão
e sensibilidade, sem apresentar chances de corromper emocionalmente a criança ou
adolescente, que o qual é a peça chave da adoção e para garantir seu posterior êxito na
fase adulta. A posição empática do casal que transcorre em um divórcio, deve ser de
extrema importância para não deixar, se houver, seus sentimentos tempestuosos pelo seu
ex-cônjuge afetarem a criança, se tornando uma vítima no processo de adoção. O papel
do Estado é fundamental para intermediar e remediar a situação, priorizando o caráter sã
e físico de todas as partes.

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Referências bibliográficas

FILHO, Arthur Marques da Silva. ADOÇÃO. 4ª ed. REVISTA DOS TRIBUNAIS. 2019. 300 p.

FLÓRIDO, Fernando de Albuquerque. Abandono afetivo no Direito Brasileiro. Lumen


Juris. 2021. 130 p.

GINZBURG, Natalia. Léxico Familiar. Companhia das Letras. 2018. 256 p.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família. 5ª ed. Editora Forense. 2022. 888 p.

411
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(IM) POSSIBILIDADE DE AJUSTE DE CLÁUSULA PRO SOLVENDO EM CONTRATOS DE


CESSÃO DE DIREITOS CREDITÓRIOS CELEBRADOS POR FUNDOS DE INVESTIMENTO
EM DIREITO CREDITÓRIO

CAMILLA ELLEN ARAGAO COSTA: Advogada


inscrita na OAB/SE sob o n° 12.583, Bacharel em
Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT) e
militante na área Cível. Aluna especial do
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Programa de Pós-Graduação em Direito (Curso


de Mestrado Acadêmico) da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Direito
Processual Civil pelo Complexo de Ensino Renato
Saraiva. Advogada do Departamento Jurídico do
Grupo Delcred/Castro Lima. Membro da
Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da
OAB/SE, triênio 2022/2024.

RESUMO: O estudo em questão tem por objetivo analisar a (im)possibilidade de ajuste, no


bojo de contratos de cessão de direitos creditórios celebrados por Fundos de Investimento
em Direito Creditório (FIDC’s), de cláusula pro solvendo, que consubstancializa direito de
regresso, dando alicerce à responsabilidade do cedido e dos eventuais devedores
solidários pela inadimplência dos sacados. Com vistas a melhor arrimar as conclusões
oferecidas ao final, proceder-se-á, utilizando-se do método dedutivo e através de
pesquisas sob o método exploratório-qualitativo e por meio da análise bibliográfico-
documental, à apreciação do que constitui o instituto de securitização de recebíveis, e, mais
especificamente, os Fundos de Investimento em Direito Creditório (FIDC’s), estabelecendo
posterior diferenciação em relação à operação do factoring, para, então, se debruçar sobre
a cláusula pro solvendo e a celeuma acerca da sua validade, a fim de averiguar se é válida
a sua pactuação em contrato de cessão de crédito celebrado com Fundos de Investimento
em Direito Creditório (FIDC’s).

Palavras-chave: Fundos de Investimento em Direito Creditório. Cláusula pro solvendo.


cessão de direitos creditórios.

1 INTRODUÇÃO

A cessão civil de crédito caracteriza-se como o tipo de contrato em virtude do qual


o credor cedente transfere a outrem, o cessionário, a sua qualidade creditória contra o
devedor, recebendo o cessionário o direito respectivo, com todos os acessórios e garantias,
salvo disposição em contrário.

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Em regra, nas cessões onerosas, o cedente responde pela existência do crédito


(cessão pro soluto) e não pela solvabilidade do devedor (cessão pro solvendo), de modo
que a responsabilização pela solvência do devedor deve ser expressamente pactuada
através da cláusula pro solvendo, que, como o próprio termo denota, dá alicerce à
responsabilidade do cedido e dos eventuais devedores solidários pela inadimplência dos
sacados no âmbito dos contratos de cessão creditória.

A pactuação da aludida cláusula, no entanto, deu ensejo à intensa controvérsia


doutrinária e jurisprudencial acerca da sua validade no bojo dos contratos de factoring,

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com posterior extensão do entendimento aplicado às aludidas operações às cessões
firmadas por FIDC’s. O entendimento, por sua vez, é no sentido de julgar pela vedação da
possibilidade de regresso, ainda que seja expressamente contratado, recusando validade à
cláusula pro solvendo quando pactuada em contratos de fomento mercantil.

Ocorre que o entendimento pacificado acerca da impossibilidade de regresso no


âmago das aludidas operações, sob pretexto de situação análoga, vinha sendo
indiscriminadamente estendido à securitização de recebíveis, mais especificamente, ao
FIDC, sem devido aprofundamento acerca da matéria, tampouco das particularidades desta
última operação.

Nesta perspectiva, o propósito desse trabalho - ao revisitar o tema – é contribuir


para a sedimentação do debate acerca da matéria, levantando o conceito e a concepção
do instituto de securitização de recebíveis, e, mais especificamente, os Fundos de
Investimento em Direito Creditório (FIDC’s), com a posterior diferenciação em relação à
operação do factoring, porquanto referida distinção traga significativa repercussão no
direito de regresso, matéria ora sob foco, como se identificará das passagens voltadas à
análise da decisão recém proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.

2 CONCEITUAÇÃO DA SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS E DOS FUNDOS DE


INVESTIMENTO EM DIREITO CREDITÓRIO (FIDC’S)

A securitização de recebíveis traduz-se em uma operação financeira em que o


originador de determinados direitos e crédito promove sua cessão para terceiros, que
poderá revestir-se da forma de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, ou de
uma Sociedade de Propósito Específico, fornecendo lastro para emissão de títulos e valores
mobiliários, os quais, por sua vez, serão disponibilizados para os investidores, com acesso
à poupança popular. Os recursos obtidos via captação pública serão revertidos ao cedente,
de forma a liquidar a cessão promovida, resultando em uma antecipação de receitas para
o credor originário do título e em uma diluição do risco entre os participantes da operação.

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Uinie Caminha compreende que a securitização, em sentido amplo, pode ser


entendida como a substituição das formas tradicionais de financiamento bancário pelo
financiamento através do mercado de capitais, enquanto, em sentido restrito, é uma
operação complexa, que envolve alguma forma de segregação de patrimônio, quer pela
cessão a uma pessoa jurídica distinta, quer pela segregação interna, e uma emissão de
títulos lastreada nesse patrimônio segregado.286

A securitização de recebíveis, portanto, é uma outra possibilidade atrativa de


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estrutura de financiamento para os empresários que necessitam de recursos para o seu


negócio, especialmente porque, pela ausência de intermediação por instituição financeira,
dentre outros motivos, os custos de captação através do modelo de securitização são, em
geral, reduzidos quando comparados aos de um financiamento bancário. 287

Nesse contexto, a securitização, atrelada à ideia de se buscar financiamentos


outros que não os do sistema bancário (desintermediação financeira), democratiza o
acesso à poupança popular por meio do mercado de capitais, além de inexoravelmente
contribuir para a ampliação da oferta de crédito a empresas de todos os portes, na maioria
das vezes, repita-se, de forma mais barata do que o financiamento bancário, exercendo um
importante papel no crescimento econômico do país.288

Os fundos de investimento, por sua vez, operam no mercado financeiro mediante


a securitização de recebíveis, tendo sido criados a partir da Resolução nº 2.907, de 29 de
novembro de 2001, por meio da qual o Banco Central do Brasil (BACEN) autorizou sua
constituição e o funcionamento, nos termos de regulamentação que viria a ser criada pela
CVM, que assumiu a competência para regulamentar plenamente a matéria.

A CVM editou, então, a Instrução nº 356, de 17 de dezembro de 2001, que


regulamenta a constituição e o funcionamento dos FIDCs, configurados, nos termos do art.
2º, III, da referida Instrução, como uma comunhão de recursos reunidos por seus quotistas,
destinados à aplicação preponderante em “direitos creditórios”:

Objetivamente, pode-se dizer que o FIDC nada mais é do que mais


um instrumento de captação de recursos no mercado de capitais. Um
instrumento útil e bastante apropriado, principalmente para

286 Uinie Caminha, Securitização, 2a ed., cit., pp. 37-38.


287 SILVA, Ricardo Maia da. Securitização de Recebíveis: uma Visão sobre o Mercado dos Fundos de
Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Centro
Tecnológico da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010, p. 18.
288 É nesse sentido a manifestação da ANBIMA – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DOS
MERCADOS FINANCEIRO E DE CAPITAIS (“ANBIMA” ou “Associação”) no âmbito do Recurso Especial nº.
1.726.161/SP.

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empresas que tenham alto comprometimento de dívidas bancárias


em seu balanço ou uma grande capacidade de geração de recebíveis.
Assim, por meio do FIDC, as empresas podem captar recursos e
amortizar suas dívidas, melhorando bastante seus balanços. Isso
acontece à medida que a empresa efetua uma redução de seu
passivo bancário, via diminuição dos ativos de curto prazo, ou seja,
consegue tal objetivo exatamente cedendo seus recebíveis.289

Significa dizer, noutros termos, que se trata de veículo criado com o objetivo de

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dar liquidez ao mercado de crédito, surgindo na seara econômica como inovação do
tráfego negocial, cuja natureza, segundo Arnoldo Wald, é especialíssima:

(...) um condomínio de natureza especialíssima, que tem patrimônio


próprio, escrita específica, auditoria nas suas contas, representação
em juízo e administração por uma espécie de trustee. A propriedade
dos bens pertence ao Fundo e as cotas é que são da propriedade dos
condôminos. 290

Do ponto de vista dos cedentes, como já destacado, o FIDC é uma alternativa


interessante de acesso ao capital, em geral, menos custosa do que o financiamento
bancário. Do lado dos investidores, por sua vez, o FIDC é um investimento que pode
combinar alta rentabilidade com baixo risco, quando em comparação com outras
possibilidades disponíveis no mercado291, sendo justamente por isso considerado,
atualmente, o principal veículo de securitização no mercado de capitais brasileiro.

3 A CLÁUSULA PRO SOLVENDO E A CELEUMA ACERCA DA SUA VALIDADE

A cessão civil de crédito caracteriza-se como o tipo de contrato em virtude do qual


o credor cedente transfere a outrem, o cessionário, a sua qualidade creditória contra o

289 FORTUNA, Eduardo. Mercado financeiro: produtos e serviços, 19ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro:
Qualitymark Editora, 2013, p. 839.
290 WALD, Arnoldo. Da natureza jurídica do fundo imobiliário. In: Revista Forense, 309, p. 9-14.
291 “Do ponto de vista do investidor [...] o interesse pelo fundo se justifica pelo fato de os FIDCs
oferecerem rentabilidade superior à dos ativos disponíveis no mercado financeiro com nível de risco
equivalente combinado com colateralização pelas cotas subordinadas ou outra modalidade de garantia,
que mitigam o risco da carteira. ” (ANBIMA. Estudos Especiais – Produtos de Capitação: Fundos de
Investimento em Direitos Creditórios. Rio de Janeiro: ANBIMA, 2015, p. 11).

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devedor, recebendo o cessionário o direito respectivo, com todos os acessórios e garantias,


salvo disposição em contrário.292

Em regra, nas cessões onerosas, o cedente responde pela existência do crédito


(cessão pro soluto) e não pela solvabilidade do devedor (cessão pro solvendo), de modo
que a responsabilização pela solvência do devedor deve ser expressamente pactuada e,
nas cessões a título gratuito, o cedente é responsável pela solvência do crédito apenas se
tiver procedido de má-fé.
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A cláusula pro solvendo, nesse sentido, consubstancializa direito de regresso, e,


como o próprio termo denota, dá alicerce à responsabilidade do cedido e dos eventuais
devedores solidários pela inadimplência dos sacados no âmbito dos contratos de cessão
creditória.

Trata-se de cláusula voltada à distribuição e à alocação dos riscos do negócio de


forma antecipada e consensual entre as partes, encontrando alicerce nas disposições
expressamente contempladas pelo legislador quanto à distribuição dos riscos da cessão
entre cedente e cessionário, mais especificamente na disciplina do art. 296 do Código Civil,
além do que se prevê de modo principiológico em relação ao Direito Empresarial, em
especial a livre iniciativa e a liberdade contratual, ratificadas pela edição da Lei da Liberdade
Econômica (Lei nº. 13.874/2019). Especificamente quanto às cessões de crédito firmadas
por FIDC’s, o alicerce ainda se estende ao arcabouço regulatório acerca do tema, como de
forma pormenorizada se demonstrará.

Em contramão às disposições e aos princípios que dão lastro à possibilidade do


ajuste da cláusula, no entanto, se identificou acesa controvérsia doutrinária e
jurisprudencial acerca da sua validade no bojo dos contratos de factoring, com posterior
extensão do entendimento aplicado às aludidas operações – hoje, pacificado no Superior
Tribunal de Justiça –, às cessões firmadas por FIDC’s. O entendimento, por sua vez, com
aderência quase que unânime, e recentemente ratificado no âmbito do julgamento do
Recurso Especial nº 1711412/MG293 (Informativo n° 695), é no sentido de julgar pela
vedação da possibilidade de regresso, ainda que seja expressamente contratado,
recusando validade à cláusula pro solvendo quando pactuada em contratos de fomento
mercantil.

292 PEREIRA, 2017, p. 351; CARVALHO SANTOS, 1951, p. 310.


293 A empresa faturizada não responde pela insolvência dos créditos cedidos, sendo nulos a disposição
contratual em sentido contrário e eventuais títulos de créditos emitidos com o fim de garantir a solvência
dos créditos cedidos no bojo de operação de factoring. STJ. 3ª Turma. REsp 1.711.412-MG, Rel. Min. Marco
Aurélio Bellizze, julgado em 04/05/2021 (Info 695).

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Ocorre que, sem prejuízo das necessárias críticas à posição atualmente adotada,
por ausência de substrato fático ou legal relevante que confira razoabilidade à forte
intervenção judicial nas relações mantidas no âmbito do fomento mercantil, o que se tem,
voltando-se ao escopo do presente trabalho, é que o entendimento pacificado acerca da
impossibilidade de regresso no âmago das aludidas operações, sob pretexto de situação
análoga, vinha sendo indiscriminadamente estendido à securitização de recebíveis, mais
especificamente, ao FIDC, sem devido aprofundamento acerca da matéria, tampouco das
particularidades desta última operação.

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De fato, não raramente os Tribunais pátrios invocavam precedentes relativos a
escritórios de factoring para solucionar a controvérsia acerca de cessão de crédito em
operação de securitização, tendo por cessionário um FIDC.

Daí a importância do destaque: os Fundos de Investimento em Direito Creditório


(FIDC’s) e as operações de fomento mercantil não se confundem.

O Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL), representado pelos doutrinadores


Gustavo Tepedino e Ana Frazão, já apontou as seguintes distinções:

O FIDC se diferencia das empresas de factoring, porém, na medida


em que não fornece ao cessionário os serviços de gestão de créditos
e cobranças que com frequência são oferecidos pelas faturizadoras,
restringindo-se à aquisição (com deságio) de créditos como forma
de aplicação financeira dos recursos aportados pelos seus quotistas.

Observa-se, portanto, que outra importante diferença é que, ao


contrário dos faturizadores, o FIDC promove a efetiva securitização
dos direitos creditórios adquiridos, considerando que estes passam a
integrar seu patrimônio – e o qual, por sua vez, é representado por
suas quotas, que poderão circular no mercado de capitais.

Podemos destacar, ainda, as seguintes diferenças entre o factoring e a


securitização de recebíveis mercantis:

(a) a atividade de factoring é fiscalizada, principalmente, pelo


Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF), enquanto a
securitização pelo Banco Central, Conselho Monetário Nacional
(CMN) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM);

(b) a atividade de securitização é mais complexa do que a atividade


de factoring, na medida em que exige inúmeras contratações

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acessórias, tais como contrato de agência de rating, contrato de


auditoria, contrato de serviços de custódia dos valores mobiliários,
dentre outros;

(...) (d) a sociedade de factoring não utiliza os créditos adquiridos do


cedente para emissões de valores mobiliários, enquanto a
securitizadora os utilizará como lastro para essas emissões;
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(...) (f) a operação de factoring não distribui o risco, mas o concentra


numa sociedade de factoring, que a adianta receitas, por meio da
aquisição de títulos a vencer, enquanto na securitização há dispersão
dos riscos entre diversos investidores;

(g) o FIDC tem como maior objetivo vender cotas para investidores,
ele possui CNPJ, mas não é uma empresa; ao contrário, a sociedade
de factoring é uma empresa independente, cujo objetivo principal é
adquirir os recebíveis dos seus clientes.294

De fato, embora possuam semelhanças, especialmente por ter como espinha


dorsal o contrato de cessão de créditos, são estruturas de crédito absolutamente diversas,
possuindo inclusive natureza jurídica distinta. As diferenças entre as operações, não por
acaso, têm reflexos sensíveis na matéria ora sob foco, em que pese o tratamento até então
predominantemente indistinto pelos tribunais, a reclamar urgente revisão jurisprudencial,
portanto.

Minudenciando, além da tímida jurisprudência que já admitia a contratação da


cláusula de regresso nas cessões firmadas por FIDC’s, as decisões majoritárias eram em
sentido contrário, negando validade às cláusulas pro solvendo no bojo dos contratos
celebrados pelos reportados fundos, lastreando-se, fundamentalmente, nas equivocadas
premissas de que (i) apesar de o artigo 296 do Código Civil levar ao entendimento de que
o cedente a título oneroso possa assumir contratualmente a responsabilidade pela higidez
econômica do devedor, as particularidades da operação levam a conclusão diversa, pois a
obrigação de recompra desnatura a cessão onerosa, que pressupõe a assunção do risco
do negócio pela cessionária; (ii) se da operação inicial já existe ganho com o deságio, a
existência de cláusula relacionada ao regresso extrapolaria os limites do negócio, violando
a boa-fé objetiva e lesando o cedente, vez que o negócio é nitidamente de risco.

Perlustrando as reportadas razões, infere-se que se tratavam de mera reedição dos


argumentos expedidos no âmbito das operações de fomento mercantil, em que pese,

294 CASTRO, Rogério Alessandre de Oliveira. Factoring e securitização de recebíveis mercantis. In: O direito
brasileiro em evolução: estudos em homenagem à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto[S.l: s.n.], 2017.

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insista-se, tratarem-se de operações distintas. Necessário, então, cotejá-las com as


disposições do Código Civil, princípios, institutos e arcabouço regulatório aplicável à
operação reitora do presente parecer.

De início, voltando-se à primeira razão (i), importa destacar: não há, no


ordenamento jurídico brasileiro, previsão legal que vede os Fundos de Investimento em
Direitos Creditórios de estipular a responsabilidade do cedente pelo pagamento do débito
em caso de inadimplemento do devedor, circunstância que deve ser analisada sob a ótica
do art. 5°, II da CF, que assegura que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma

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coisa, senão em virtude de Lei.

Em contramão, como balizadora primeiro em relação à validade dos negócios


jurídicos, está a disciplina do art. 104, do Código Civil, que dispõe sobre a liberdade de
contratar, desde que realizada na forma prescrita em lei ou, de outro modo, sem ofender
expresso comando legal negativo.

Mais especialmente, por se tratar de cessão de crédito, a fazer incidir,


rigorosamente, os dispositivos do Código Civil aplicáveis à espécie, é de rigor o destaque
à existência de importante dispositivo a regular a transmissão das obrigações; trata-se,
repita-se, do art. 296 do CC/02, que preceitua que “salvo estipulação em contrário, o
cedente não responde pela solvência do devedor”.

Como se infere do destaque realizado no dispositivo acima, o texto legal admite a


estipulação de regresso, ao passo que somente o considera indevido quando ausente a
pactuação neste sentido; em outras palavras, entende-se que a pactuação do regresso não
é ofensiva à ordem normativa, porquanto expressamente admitida.

Destarte, havendo estipulação contratual nesse sentido, forçoso reconhecer a


responsabilidade do cedente acerca do cumprimento da obrigação inadimplida, seja
porque referido ajuste encontra respaldo no Código Civil, seja, máxime, pelo que prevê a
instrução normativa que rege a matéria (IN 356/2001).

Como já destacado, o FIDC tem sua constituição, sua administração e seu


funcionamento regulados pela Instrução Normativa da CVM n. 356/2001, cuja atividade
que desempenha propicia uma alternativa ao financiamento bancário, proibitivamente
oneroso às sociedades empresárias de pequeno e de médio porte.

Nesse passo, e valendo-se de excerto de voto emblemático proferido pelo Ministro


Luis Felipe Salomão quando do julgamento do Recurso Especial nº. 1.726.161/SP, que será
alvo de análise posterior:

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(...) é bem de ver que o art. 2º, II, da Instrução CVM n. 356/2001, com
prudência e trazendo mais segurança jurídica à operação,
expressamente se abstém de imiscuir-se na disciplina legal, ao prever
que a cessão dos direitos creditórios é a transferência pelo cedente,
credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o FIDC,
mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação
obrigacional.
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O seu art. 2º, XV, por sua vez, vai além, ao trazer expressamente o conceito de
coobrigação, nos termos a seguir:

XV - coobrigação: é a obrigação contratual ou qualquer outra forma


de retenção substancial dos riscos de crédito do ativo adquirido pelo
fundo assumida pelo cedente ou terceiro, em que os riscos de
exposição à variação do fluxo de caixa do ativo permaneçam com o
cedente ou terceiro.

É certo que tal previsão foi incluída na Instrução Normativa com a finalidade de
referendar a higidez da cláusula ora sob foco, buscando dar cabo à polêmica doutrinária e
jurisprudencial instaurada acerca do tema.

Tal entendimento é ainda corroborado, na forma do que dispôs a Comissão de


Valores Mobiliários (CVM) no bojo do supracitado Recurso Especial nº. 1.726.161/SP, na
qualidade de amicus curiae:

(...) pelo art. 3° da Instrução CVM n° 489, de 14 de janeiro de 2011,


ao prever que para fins de classificação contábil no âmbito do FIDC,
as aquisições de crédito nas quais o cedente garanta, ainda que
parcialmente, o adimplemento, devem ser classificadas como
“operações sem aquisição substancial dos riscos e benefícios”.

Daí se extrai, com espeque no voto da Ministra Nancy Andrighi, quando do


julgamento do Recurso Especial nº 1909459–SC, que replica entendimento sufragado no
multicitado Recurso Especial nº 1.726.161/SP, “que seria um contrassenso concluir pela
invalidade dessa espécie de disposição contratual quando a própria entidade responsável
pela regulamentação e fiscalização dos FIDCs fez constar expressamente da normativa que
os regulamenta o conceito acima colacionado”.

Além de contrassenso, é certo dizer que representaria, retomando análise das


contribuições da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no já referido Recurso Especial
nº. 1.726.161/SP:

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(..) inaceitável usurpação da discricionariedade técnica da CVM em


matéria cuja regulação foi expressamente atribuída por lei à
Autarquia, contrariando entendimento do próprio STJ, conforme
acórdão da C. Segunda Turma do E. STJ, à luz do r. voto condutor da
lavra da Exma. Ministra Eliana Calmon, no julgamento do Recurso
Especial nº 1.105.993 - PR (2008/0261954-3), ressaltando que não
cabe ao Poder Judiciário substituir um órgão administrativo técnico.

As decisões voltadas à negativa de validade da cláusula pro solvendo em operação

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de securitização tendo por cessionário um FIDC, como se vê, ignoram as normas do Código
Civil e da CVM que expressamente permitem a coobrigação do cedente, e, especialmente,
interferem indevida e injustificadamente na autonomia privada das partes, causando
insegurança jurídica não apenas na indústria de FIDC, mas, de forma macro, no segmento
de securitização e no mercado de capitais como um todo.

Havendo cláusula, portanto, dispondo que o cedente garante a solvência do


devedor original, exigível respeitar a vontade que dirigiu as partes em seu negócio,
especialmente quando em cotejo às modificações introduzidas no Código Civil pela Lei da
Liberdade Econômica, em especial, na parte que mais interessa a este parecer, aquelas
concernentes à nova redação do art. 421 e à inclusão do art. 421-A no Código Civil:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função


social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais
privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários


e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem
o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos
previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes
negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a
interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de
revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes
deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente
ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

Este é o entendimento do Professor BUNAZAR sobre o inciso I do novo art. 421-A


do Código Civil:

Ao reconhecer expressamente que as partes têm o direito de


estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos
421
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pressupostos de revisão e de resolução do negócio jurídico, o inciso


I do artigo 421-A fornece importante instrumento de alocação e,
consequente, redução de riscos. Quando cabe a um terceiro a
prerrogativa de concretizar expressões como excessivamente
onerosa e acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, é
praticamente impossível às partes qualquer previsibilidade do que
será ou não considerado como tal no caso concreto. A
indeterminação dos conceitos não raras vezes possibilita, e talvez até
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mesmo estimule, demandas que a pretexto de pretenderem a revisão


ou resolução de um contrato veiculam o exercício de um inexistente
direito potestativo de arrependimento. Para evitar os
inconvenientes da indeterminação legal, nada mais eficiente do
que deixar às partes a gestão dos próprios interesses; se não o
fizerem ou optarem por não o fazer, submeter-se-ão ao disposto na
lei.295

E, ainda, sobre o parágrafo único do artigo 421, que objetiva dar maior concretude
à liberdade contratual:

O parágrafo único do artigo 421 reforça a mais fundamental


característica do contrato: sua obrigatoriedade. Desde que se
constate que a intervenção heterônoma na relação jurídica contratual
significa afastar, ainda que parcialmente, o produto da autonomia
privada, convém assentar que isso só deverá ocorrer quando graves
razões o exigirem. Embora o disposto no parágrafo único do artigo
421 já fosse regra no direito positivo brasileiro, sua explicitação não
é inútil; ao contrário, tem o mérito de aumentar consideravelmente o
ônus argumentativo de quem pretenda a intervenção heterônoma na
relação jurídica contratual.

Desse modo, como corolário da autonomia privada, faculta-se às partes a definição


da melhor forma de alocação de riscos, aí inclusa a cláusula que possibilita o direito de
regresso, sendo referida interpretação não apenas alicerçada nos comandos legislativos
amoldados à hipótese, como também a que melhor se coaduna com os princípios que
regem o Direito Empresarial, em especial a livre iniciativa e a liberdade contratual,
ratificadas, como demonstrado, pela edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº.
13.874/2019).

É de se dizer, ainda, que tal configuração de cessão de crédito não pressupõe lesão
ao cedente, voltando-se à outra razão (ii) que alicerça as posições contrárias à estipulação

295 BUNAZAR, 2019, p.140-156.

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da cláusula. Não pressupõe lesão, primeiro, porque não estamos diante de relação
assimétrica.

Referidos julgados terminam por revelar, com o devido acatamento, sensível


desconhecimento quanto às particularidades do negócio, considerando que, pela própria
transparência ínsita à operação, notadamente pelas regras impostas pela direta regulação
da CVM, o cedente e eventuais garantidores são conhecedores das exatas condições
pactuadas com o Fundo e utilizam de sua autonomia privada para entabular tais
negociações, sobretudo porque trata-se de contrato essencialmente empresarial, o que,

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


como é de comezinho conhecimento, pressupõe paridade de condições, análise conjunta
e assunção dos riscos envolvidos.

Aqui, não se pode deixar de referir os notáveis apontamentos registrados pela


Associação Nacional dos Participantes em Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios
Multicedentes e Multissacados (“ANFIDC”), cuja participação, na qualidade de amicus
curiae, também foi oportunizada no supracitado apelo nobre (REsp 1.726.161/SP):

Ademais, não apenas o cedente e o FIDC são especializados nesses


mercados, mas também os investidores. Além de contarem com um
amplo assessoramento pelos administradores do fundo e terem as
mais amplas informações à sua disposição para conhecerem
exatamente onde estão aportando capital, os investidores precisam
ser considerados profissionais ou qualificados nos termos da
Instrução CVM nº 554/2014 já mencionada acima. Trata-se de
mercado em que as partes que o compõem são eminentemente
especializadas, de forma que o pressuposto básico do qual é
estabelecida toda a dinâmica técnico-profissional que rege os
investimentos e as transações realizadas é o de que as partes
negociam todos os termos contratuais em condições equânimes.

Mas vai além. Referida configuração da cessão de crédito, com garantias acopladas
aos títulos mais robustas, ao fornecer maior segurança ao cessionário na aquisição do
crédito, considerando que isso enseja uma diminuição do risco de inadimplência,
proporciona cenário propício à celebração de referidas operações, com potencial para o
desenvolvimento e a expansão de um mercado que, em última análise, permite aos titulares
de direitos creditórios obter, quando necessário, liquidez a partir dos créditos que
possuem, contribuindo para o crescimento da economia como um todo.

Ainda quanto à alocação de riscos, a Associação Brasileira das Entidades dos


Mercados Financeiro e de Capitais (“ANBIMA”), no bojo do multicitado Recurso Especial,
diante da relevância econômica do tema, foi instada a se manifestar, fazendo considerações
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que merecem destaque, sobretudo pelo inequívoco conhecimento técnico a respeito da


operação ora discutida:

Na avaliação do risco do investimento, considera-se uma série de


fatores, dentre eles, a reputação do gestor do FIDC, o histórico do
desempenho da carteira de créditos e as garantias constituídas, além
dos eventuais riscos existentes, inclusive jurídicos.
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No momento em que foi realizado o investimento nos FIDC, porém,


muito provavelmente não se considerou o risco de que as garantias
vinculadas aos créditos pudessem ser invalidadas por decisão
judicial, uma vez que não havia nenhuma lei ou normativo que
indicasse qualquer risco nesse sentido.

A existência de garantias, de modo geral, ajuda a mitigar o risco


de crédito relacionado ao investimento. Ademais, a coobrigação
do cedente ou de suas partes relacionadas promove um
alinhamento de interesses entre o cedente e os cotistas do FIDC,
mesmo após a cessão dos direitos creditórios ao FIDC.

Há uma relação direta entre a percepção de risco dos investidores e


o retorno por eles exigido no investimento. Em outras palavras,
quanto maior o risco, maior o retorno exigido e,
consequentemente, maiores os custos de captação dos cedentes.

A depender do risco envolvido, é possível, ainda, que os investidores


tomem a decisão de não investir no FIDC, independentemente da
rentabilidade esperada das cotas. Nessa hipótese, os investidores
buscariam outras oportunidades de investimento.

Da perspectiva dos cedentes, a provável consequência seria uma


redução na oferta para aquisição de direitos creditórios pelos
FIDC, bem como uma elevação das taxas de desconto praticadas,
de modo a permitir o pagamento do prêmio de risco adicional
exigido pelos investidores. Em outras palavras, uma série de
empresas que atualmente têm o FIDC como fonte de recursos
teria um acréscimo no custo desse capital, ou teria que buscar
recursos em outros segmentos, como o bancário ou o de
fomento mercantil.

Somado a isso, ainda no que se refere à posição (ii), no sentido de que, se da


operação inicial já existe ganho com o deságio, a existência de cláusula relacionada ao

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regresso extrapolaria os limites do negócio, é de se destacar que as taxas de deságio


praticadas pelos FIDCs devem estar em consonância com as adotadas pelas instituições
financeiras do mercado nacional, havendo, inclusive, fiscalização das operações pela CVM.

Quanto a esse ponto, retome-se a análise do voto proferido pelo Ministro Luis
Felipe Salomão quando do julgamento do Recurso Especial nº. 1.726.161/SP:

Por outro lado, no tocante especificamente ao contrato de factoring,


alguns dos fundamentos da corrente que não admite o

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estabelecimento de garantia para a operação de fomento comercial
consistem justamente no fato de que essa operação costuma cobrar
taxa maior de desconto (deságio maior) e de que isso serve também
para não se confundir com o contrato privativo de instituição
financeira.

(...)

No caso, como há a captação de poupança popular dos próprios


cotistas, além da eficiência da engenhosa estrutura a envolver a
operação dos FIDCs, que prescinde de intermediação, o deságio pela
cessão de crédito dos direitos creditórios é menor que nas
operações de desconto bancário, razão pela qual é descabida a
tese exposta na exordial acerca de que a operação se distancia
do desconto bancário, a justificar a nulidade da garantia, em
prejuízo dos condôminos do Fundo recorrente.

Por fim, imprescindível, mais uma vez, promover destaque das ponderações do
amicus curiae Instituto Brasileiro de Direito Civil - IBDCIVIL:

9. Observa-se, portanto, que outra importante diferença é que, ao


contrário dos faturizadores, o FIDC promove a efetiva securitização
dos direitos creditórios adquiridos, considerando que estes passam a
integrar seu patrimônio – e o qual, por sua vez, é representado por
suas quotas, que poderão circular no mercado de capitais.

10. Tais quotas consubstanciariam, ainda, ativos com precificação


mais precisa e associados a maior segurança jurídica que os direitos
e títulos de crédito adquiridos, assegurado pelas normas de
compliance próprias aos fundos de investimento (como, no caso dos
FIDCs, a obrigatória avaliação trimestral da carteira por agência de
rating).

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(...)

13. Normalmente, em tais arranjos contratuais, o risco do


inadimplemento do crédito cedido corresponde ao ágio percebido
pelo cessionário.

14. Por outro ângulo, o fato de o cessionário assumir este risco e os


custos de cobrança, afastando-os do cedente, igualmente justificaria
Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454

que este recebesse menos que o valor integral do crédito.

Significa dizer que, quando da contratação das cessões de crédito por esses FIDC,
as partes negociaram, em boa-fé e com base nas normas vigentes, os respectivos termos
e condições, incluindo a eventual prestação de coobrigação pelos cedentes ou por suas
partes relacionadas, sendo referida existência ou não de coobrigação fator essencial para
aquisição do crédito, pois indica a quais riscos os direitos creditórios estão expostos, além
de ser elemento crítico para a justa precificação desses direitos na carteira de fundo.

As decisões, portanto, que a despeito de todo o exposto, negam validade à


cláusula livre e expressamente pactuada, terminam por, na forma do que asseverou a
autarquia federal Comissão de Valores Mobiliários – CVM no REsp 1.726.161/SP:

i) ignorar as normas da CVM que permitem claramente a


coobrigação do cedente;

ii) interferir indevidamente na autonomia privada das partes após


o aperfeiçoamento da cessão, causando insegurança jurídica nos
agentes do mercado, em especial sobre muitos fundos já
constituídos e em operação, e que contaram de boa-fé com previsão
autorizativa expressa da regulamentação da CM para a estruturação
de seus produtos nessas condições;

iii) impactar diretamente a precificação dos créditos hoje detidos


por esses veículos, visto que ela é influenciada por quaisquer
garantias existentes, inclusive eventual coobrigação do cedente; e

iv) frustrar o investimento dos cotistas do FIDC, uma vez que a


exclusão dessa coobrigação aumenta indevidamente a possibilidade
de inadimplemento do crédito cedido", sendo certo que "a
confirmação da mencionada tese para o mercado dos FIDCs
evidencia relevante risco de esvaziamento desse veículo de
securitização, por incrementar, sem justificativa razoável ou
fundamentação econômica, o risco de inadimplemento dos créditos
cedidos, alterando inclusive as características de cessões já realizadas
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de boa fé no passado sobre fundos já em operação, fato que poderia


afrontar, a nosso ver e inclusive, o instituto do ato jurídico perfeito,
nos termos do art. 5º, XXXVI, do art. 5º, da Constituição Federal".

Foi nessa linha de intelecção que a Corte Especial, quando do julgamento do


aludido apelo nobre (REsp 1.726.161/SP), proferiu emblemática decisão acerca da validade
da cláusula contratual por meio da qual o cedente garante a solvência do devedor
originário (cláusula pro solvendo). Transcreva-se a íntegra da ementa:

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RECURSO ESPECIAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS
CREDITÓRIOS. MERCADO DE CAPITAIS. VALOR MOBILIÁRIO.
DEFINIÇÃO LEGAL QUE SE AJUSTA À DINÂMICA DO MERCADO.
SECURITIZAÇÃO DE RECEBÍVEIS. CESSÃO DE CRÉDITO EMPREGADO
COMO LASTRO NA EMISSÃO DE TÍTULOS OU VALORES
MOBILIÁRIOS. PACTUAÇÃO ACESSÓRIA DE FIANÇA. POSSIBILIDADE.
CONFUSÃO ENTRE AS ATIVIDADES DESEMPENHADAS POR
ESCRITÓRIOS DE FACTORING E PELOS FIDCs. DESCABIMENTO.
CESSÃO DE CRÉDITO PRO SOLVENDO. VIABILIDADE. 1. Com a edição
da MP n. 1.637/1998, convertida na Lei n. 10.198/2001, houve a
introdução no ordenamento jurídico de conceituação próxima à do
direito americano, estabelecendo que se constituem valores
mobiliários os títulos ou contratos de investimento coletivo que
gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração,
inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos
advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros. A definição
de valor mobiliário se ajusta à dinâmica do mercado, pois abrange os
negócios oferecidos ao público, em que o investidor aplica seus
recursos na expectativa de obter lucro em empreendimento
administrado pelo ofertante ou por terceiro. 2. Os Fundos de
Investimento em Direito Creditório - FIDCs foram criados por
deliberação do CMN, conforme Resolução n. 2.907/2001, que
estabelece, no art. 1º, I, a autorização para a constituição e o
funcionamento, nos termos da regulamentação a ser estabelecida
pela CVM, de fundos de investimento destinados
preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos
representativos desses direitos, originários de operações realizadas
nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de
hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços,
bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na
referida regulamentação. 3. Portanto, o FIDC, de modo diverso das
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atividades desempenhadas pelos escritórios de factoring, opera no


mercado financeiro (vertente mercado de capitais) mediante a
securitização de recebíveis, por meio da qual determinado fluxo de
caixa futuro é utilizado como lastro para a emissão de valores
mobiliários colocados à disposição de investidores. Consoante a
legislação e a normatização infralegal de regência, um FIDC pode
adquirir direitos creditórios por meio de dois atos formais: o endosso,
cuja disciplina depende do título de crédito adquirido, e a cessão civil
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ordinária de crédito, disciplinada nos arts. 286-298 do CC, pro soluto


ou pro solvendo. 4. Foi apurado pelas instâncias ordinárias que trata-
se de cessão de crédito pro solvendo em que a recorrida figura como
fiadora (devedora solidária, nos moldes do art. 828 do CC) na cessão
de crédito realizada pela sociedade empresária de que é sócia. O art.
296 do CC estabelece que, se houver pactuação, o cedente pode ser
responsável ao cessionário pela solvência do devedor. 5. Recurso
especial provido. (REsp 1726161/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE
SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/08/2019, DJe
03/09/2019).

Como se destacou, a ausência de enfrentamento das disposições e dos


argumentos sobre a inexistência da vedação à contratação desta espécie de garantia,
especialmente no que concerne às operações envolvendo os FIDC’s, ensejavam não apenas
decisões particularmente carentes de substrato fático/legal, mas, especialmente, danos
nocivos à operação, com possibilidade concreta de retração do negócio.

O julgamento supra, portanto, que, pela relevância econômica do tema, contou


com a participação de diversas entidades com inequívoca representatividade, cujas
contribuições foram oportunamente trasladadas ao longo deste Parecer, reflete,
finalmente, profunda inflexão sobre a matéria – até aquela ocasião, ainda não detidamente
abordada na jurisprudência do STJ296 –, a enveredar na necessária distinção entre os FIDCs
e as empresas de factoring297, e, por consequência, julgar válida a cláusula de regresso
nas cessões firmadas pelos fundos, conferindo maior segurança jurídica às operações, além
de prestigiar não só a legislação e a normatização infralegal de regência, mas, sobretudo,
os princípios norteadores da relação, nitidamente de caráter empresarial.

296 O tema já voltou a ser objeto de análise da Corte, mediante julgamento do REsp 1.909.459-SC em
18/05/2021. Referida decisão, como dito, replica entendimento sufragado no âmbito do apelo nobre REsp
1.726.161/SP, no sentido de ser valida a cláusula pro solvendo. Vide Informativo nº 0697 do STJ, com
publicação em 24 de maio de 2021.
297 Distinção necessária, máxime pelo entendimento consolidado acerca das operações de factoring,
recentemente ratificado no bojo do REsp 1.711.412-MG, julgado em 04/05/2021 (Info 695).

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista de todo o exposto, através de análise jurisprudencial e da legislação


amoldada à espécie - embora concisa devido à limitação intrínseca à extensão desse
trabalho - é possível inferir que é válida a cláusula contratual inserida em contrato de
cessão de crédito celebrado com um FIDC que consagra a responsabilidade do cedente
pela solvência do devedor, seja pelo que prevê a legislação, em especial, o artigo 296 do
Código Civil, seja pelo arcabouço regulatório acerca da matéria (IN 356/2001), seja, ainda,
pelos princípios que imperam na relação empresarial, como cuida a espécie.

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Andou bem, nesse sentido, a Corte Especial, quando do julgamento do apelo
nobre REsp 1.726.161/SP, e, mais recentemente, quando da consolidação do
entendimento mediante julgamento do REsp 1.909.459-SC (Informativo nº 0697 do STJ),
porquanto referida pactuação de cláusula pro solvendo, considerada válida no bojo dos
aludidos recursos, encontra farto respaldo legislativo e principiológico, de forma que as
decisões voltadas à negativa de sua validade representam interferência arbitrária e
injustificada na autonomia privada das partes, causando sensível insegurança jurídica,
afronta ao instituto do ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição
Federal, e, em última análise, possível esvaziamento desse veículo de securitização, por
incrementar, como já destacado, sem justificativa razoável ou fundamentação econômica,
o risco de inadimplemento dos créditos cedidos.

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DESAFIOS E PROPOSTAS DE AVANÇOS NA SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRA

LUANA ALMEIDA SILVA:


Bacharelando em Direito pelo
Centro Universitário de Santa
Fé do Sul/SP.
WALTER MARTINS MULLER
(orientador)
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RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar o aumento da criminalidade no país,
bem como entender por qual motivo as tentativas de inovações em que gestores da
segurança pública vêm utilizando não estão contribuindo para diminuição da violência
urbana, tampouco aumentando a sensação de segurança do povo brasileiro, pelo
contrário, está subindo a taxa de violência, principalmente em crimes contra a vida, que é
o bem jurídico tutelado de maior importância no nosso ordenamento. Em seguida, será
citado dados, a sua identificação, as consequências e as formas de prevenção e melhoria
da gestão de segurança pública. Este artigo foi elaborado por meio de pesquisas realizadas
em artigos científicos, sites da internet e debates realizados por pesquisadores da área de
segurança, obtendo seu desenvolvimento através da análise de dados, reflexão e leitura de
outros pesquisadores, visando analisar e explorar a causa, consequências e propostas de
melhorias na segurança pública brasileira.

Palavras-chave: Segurança Pública. Brasil. Violência Urbana. Gestão.

ABSTRACT: This article aims to analyze the increase in crime in the country, as well as to
understand why the attempts at innovations that public security managers have been using
are not contributing to a reduction in urban violence, nor are they increasing the sense of
security of the Brazilian people , on the contrary, the rate of violence is rising, mainly in
crimes against life, which is the most important legal asset under our legal system. Next,
data will be cited, their identification, consequences and ways of preventing and improving
public safety management. This article was elaborated through research carried out in
scientific articles, internet sites and debates carried out by researchers in the field of
security, obtaining its development through data analysis, reflection and reading of other
researchers, aiming to analyze and explore the cause, consequences and proposals for
improvements in Brazilian public safety.

Keywords: Public security. Brazil. Urban violence. Management.

1 INTRODUÇÃO

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No Brasil, as polícias são órgãos do Estado que possuem como finalidade


constitucional a preservação da ordem pública, proteger as pessoas e o patrimônio, bem
como realizar investigações, repressão de crimes e controlar a violência.

O tema Segurança Pública é discutido há anos no Brasil, no entanto não há uma


evolução considerável de melhorias nesse âmbito. A segurança pública é um direito de
todo cidadão brasileiro, assim como é um dever do Estado, conforme preceitua a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144:

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

VI - polícias penais federal, estaduais e distrital. (BRASIL, 1988)

As atribuições da Polícia Federal são apurar infrações penais contra a ordem política
e social, assim como outras infrações que tenham repercussão interestadual ou
internacional; reprimir e prevenir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; exercer
funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras, bem como exercer as funções
de polícia judiciária da União.

A Polícia Rodoviária Federal, tem como função o patrulhamento ostensivo das


rodovias federais e Polícia Ferroviária Federal no patrulhamento das ferrovias federais.

Já as Polícias Civis, que são comandadas por Delegados de Polícia de carreira, têm
como funções a de polícia judiciária e apuração de infrações penais, salvo as militares.

Às Polícias Militares cabe a função de polícia ostensiva e a função da ordem pública


e aos Bombeiros Militares, a defesa civil.

Por fim, às Polícias Penais, cabe a segurança dos estabelecimentos penais.

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Temos ainda o artigo 5º da Constituição Federal que trata a respeito dos direitos e
deveres individuais e coletivos, que em seu caput dispõe:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,


garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade (…) (BRASIL, 1988)
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Por outro lado, é possível analisar no transcorrer dos anos que esse direito não está
sendo garantido de forma eficiente pelo Estado, visto que as medidas que são utilizadas
não trazem a sensação de segurança para os cidadãos, pelo contrário, a população
brasileira está imersa no medo e na insegurança de ir e vir livremente, dado que a violência
vem aumentando cada vez mais, bem como progressivamente, a justiça brasileira insere
cada vez mais indivíduos dentro de um sistema prisional precário, insalubre e sem
ressocialização efetiva, contribuindo assim, para um indivíduo mais violento.

Apura-se, ainda, que os Estados tem investido cada vez mais na contratação de
novos policiais, o que deveria ser positivo, entretanto, uma grande parcela da população
não se sente segura com esses servidores, dado que existem muitos policiais que em suas
operações utilizam-se de força excessiva e letal, bem como os lamentáveis casos de
corrupção policial. Em contrapartida, no militarismo, por exemplo, superiores hierárquicos
ainda compactuam com a cultura de fazer com que os novos soldados na escola de
formação, recebam treinamentos humilhantes, viris, violentos e vexatórios, para assim criar
agentes violentos e de fácil manipulação, o que colabora com o índice de suicídio de
policiais, por não resistirem a pressão da corporação.

Dito isso, será que o Estado está investindo e trabalhando de forma a diminuir os
índices de violência no país ou está indo na contramão do que realmente deve ser feito? A
longo prazo, seria a prevenção da violência, evitando que jovens ingressem no mundo do
crime, ou seja, através de políticas públicas, assim como estão investindo na criação de
policiais mais eficientes, íntegros e profissionais?

Em resumo, este artigo abordará sobre o aumento da criminalidade,


desmilitarização das polícias, o aumento da violência policial e o que está por trás disso,
bem como analisará propostas de soluções e inovações para a segurança pública do Brasil.

2 A POLÍCIA BRASILEIRA, DESAFIOS NA SEGURANÇA E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA


SOLUÇÃO

Sabe-se que existem várias instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal,
como o Poder Judiciário, o Ministério Público, os órgãos de Segurança Pública e do Sistema
Penitenciário. Entretanto, no presente trabalho, será dado ênfase às polícias brasileiras,

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visto que são as organizações mais visadas e acessíveis pela população, simplificando, são
a “linha de frente”.

Antes de o Brasil ter sua independência de Portugal, foi quando surgiram as


primeiras polícias, sendo nesse período que houve o surgimento de duas principais
instituições que são reconhecidas no Estado: Polícia Civil e Policia Militar.

Na prática, considerando as atividades de segurança pública nas ruas, a instituição


mais conhecida é a Polícia Militar. Destarte, a maioria dos brasileiros não confiam nas

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instituições militares e grande parte da população não está satisfeita com a sua atuação,
tendo uma visão negativa desses servidores.

Acontece que, a atribuição das Polícias Militares de enfrentarem e diminuírem a


violência, não vem sendo muito efetiva, dado o que se pode analisar atualmente.

A Polícia Militar tem um histórico truculento de ações letais, como ocorreu no


episódio conhecido como o “Massacre do Carandiru”, quando 111 detentos que foram
assassinados pela Polícia Militar de São Paulo dentro da Casa de Detenção. Mais
recentemente, 9 jovens foram mortos por essa mesma polícia, durante um baile funk, na
comunidade de Paraisópolis, na zona sul do Município de São Paulo.

Somente em 2018, 6.220 pessoas foram mortas por agentes de segurança civis e
militares, representando um aumento de aproximadamente 20% em relação ao ano
anterior, segundo dados de 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Esses policiais recebem treinamento de uma política de extermínio daqueles que


são considerados inimigos da nação, no entanto, através de noticiário e de estatísticas,
percebe-se que esses “inimigos”, que são suspeitos, presos e mortos pelo Estado,
encaixam-se em apenas um perfil: jovens, pretos, moradores de periferia, pobres e sem
educação básica, conforme indica o relatório de julho de 2020 da Rede de Observatórios
da Segurança, onde mostra que negros e pardos são 75% dos mortos pela polícia no país.

Por outro lado, a academia de formação desses policiais, proporciona para os alunos
tratamentos humilhantes, rudes, viris e violentos, com a finalidade de desconstruir o lado
humano daqueles seres, para que se tornem o militar superior a tudo, e que fará tudo em
nome da segurança, como por exemplo, utilizar habitualmente a força letal em suas
operações. Dito isso, esse tratamento traz consequências severas para muitos policiais,
visto que grande parte desenvolve transtornos psicológicos devido à pressão militar, a
baixa remuneração e ao alto risco de vida, levando muitos a buscarem tratamento
psiquiátrico e outros a cometerem suicídios como única alternativa.

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Por conseguinte, no dia 16 de maio de 2018, foi aprovado no Senado Federal o


projeto de lei 19/2018 para a criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), o qual
objetiva a integridade das pessoas e do patrimônio e a preservação da ordem pública, por
meio da atuação conjunta, inteligente, integrada e sistêmica dos órgãos de segurança
pública nas esferas Federal, Estadual e Municipal. A lei nº 13.675, permite que todas as
forças de segurança pública se integrem para promoverem a prevenção e o controle da
violência e criminalidade no país. A lei traz também a concepção da Política Nacional de
Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) que tem como objetivo monitorar, avaliar e
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fomentar as atividades desenvolvidas pelos órgãos que compõem o SUSP.

O Brasil carece de implantação de políticas públicas inteligentes que englobam o


investimento não só em policiamento, mas precipuamente em esporte, lazer, educação,
saúde e acesso ao trabalho, onde será possível realizar a prevenção da violência e do
cometimento de crimes.

Segundo Jorge da Silva (2004, p.15), é necessário ter consciência de que a segurança
pública não é um simples problema policial, muito menos uma responsabilidade exclusiva
do Poder Executivo, sendo também um problema de toda a sociedade e dos demais
poderes.

3 DESMILITARIZAÇÃO DAS POLÍCIAS

A Polícia Militar é uma instituição policial vinculada à hierarquia do Exército. Sendo


que alguns aspectos da lei militar se repassam aos policiais, como: o uso de fardas; a
disciplina; a lei militar; a hierarquia rígida e o uso da força para preservar a ordem pública.

A Desmilitarização da Polícia significa retirar da Polícia Militar os aspectos que a


vinculam com o exército, ou seja, os policiais não responderiam mais à disciplina do
Exército Brasileiro. Na prática, possuiriam liberdade para expressar críticas à polícia,
organizar-se em sindicato e serem julgados em tribunais civis.

A forma como a Polícia Militar é organizada, é única no mundo, já que elas não
conduzem investigações, ou seja, é também um modelo ineficiente, visto que não garante
segurança à população e aos próprios policiais. Costumeiramente, as polícias militares são
pequenos exércitos desviados da função.

Uma hierarquia rígida, é proporcionalmente adequada ao trabalho das forças


armadas, os quais são responsáveis pela defesa nacional, defender a honra, a integridade
e a soberania da Pátria contra agressões externas.

As policiais militares não possuem essa função, visto que elas existem para evitar a
violação de direitos, tendo como objetivo garantir a segurança da população. Dito isso, a

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desmilitarização da polícia, significa rever como as polícias são organizadas, a fim de que
elas estejam prontas para prevenir crimes e não combater uma guerra.

No Brasil, as polícias militares são as que possuem o efetivo mais numeroso e são
cobradas a serem produtivas. No entanto, as polícias militares entendem por essa cobrança
de produtividade como uma cobrança por mais prisões. Em maior parte dos casos, sob a
acusação de tráfico de drogas, das quais são uma das causas da superlotação dos presídios
brasileiros. O policial militar está propenso a grandes operações, como as realizadas em
periferias e favelas, onde na maioria das vezes, segundo dados, resultam na morte de

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jovens, negros e pobres. Dito isso, o que parece, é que o policial é lançado numa eterna
guerra às drogas em que ele tem autorização para matar.

Importante ressaltar que desmilitarizar é diferente de desarmamento ou extinção da


polícia. Desmilitarizar a polícia militar, é transformá-la numa instituição civil, como acontece
com todas as outras instituições que fazem parte da segurança pública, para ser possível
que seus membros possuam os mesmos direitos e deveres inerentes ao restante da
população.

Ademais, essa proposta de desmilitarização das polícias militares, garante que todos
os direitos trabalhistas sejam mantidos, pois o que é visado, é que os policiais sejam
corretamente valorizados perante a sociedade e o Estado. Vejamos exemplos de alguns
direitos individuais que policiais civis possuem e que policiais militares não possuem:
liberdade de expressão; não ser arbitrariamente preso no quartel; poder se organizar em
sindicato para defender coletivamente seus direitos e interesses.

Outro ponto importante, é que o sistema militar é extremamente oneroso para os


cofres públicos, onde o Brasil é um país que gasta em torno de R$24 bilhões em
policiamento e apenas R$1,3 bilhões em inteligência.

Dito isso, uma pesquisa divulgada em 2014 pela Fundação Getúlio Vargas em São
Paulo e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com a Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão do Ministério da Justiça, é de que 73,7%
dos praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) são favoráveis à desmilitarização.

Foi em 2013 quando a primeira proposta de desmilitarização apareceu em forma de


Proposta de Emenda Constitucional, através da PEC-51/2013, pelo senador Lindbergh
Farias (PT-RJ), o qual apresentava uma forma que as polícias Militares e Civis constituíssem
um único grupo policial e que eles tenham uma formação civil. Com essa PEC, os estados
iriam ter o poder de realizar a organização da polícia conforme suas necessidades e essa
autonomia poderia se estender aos municípios também. A PEC 51/2013, foi arquivada em

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21/12/2018, no entanto, desde 21/03/2019 o Senador Humberto Costa (PT-PE) solicita o


desarquivamento da presente matéria.

Por fim, em alguns modelos defendidos por estudiosos da área, o policial que está
presente nas ruas, deveriam atuar como um gestor local da segurança pública. Sendo capaz
de manter diálogo com a população e com o governo, a fim de diagnosticar os principais
problemas de segurança daquela região, ou seja, alertaria a prefeitura, quais regiões
necessitam de investimentos locais, como por exemplo em iluminação pública e lazer para
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crianças e adolescentes. Esse novo tipo de trabalho para os policiais, exigirá um novo perfil
policial, com maior investimento em sua formação e mais valorização salarial para esses
funcionários, bem como seria fundamentado no diálogo e na investigação, aproximando e
conquistando a confiança da população local.

4 ESTRATÉGIAS DE APRIMORAMENTO NA SEGURANÇA PÚBLICA

A violência no Brasil está diretamente ligada à desigualdade social e ao fato de o


Estado ser ausente em questões básicas como saneamento, saúde, educação e na geração
de empregos. O governo enfrenta a cada dia, maiores desafios na hora de aplicar de forma
efetiva, a segurança social. É necessário investir nessas outras áreas para ser possível
melhoria na segurança pública a longo prazo.

Uma das ações mais urgentes é a necessidade da mudança de consciência por


partes dos gestores públicos que são os responsáveis pela Segurança Pública, visto ser eles
que lidam diretamente na criação e planejamento de estratégias para a segurança pública
brasileira. Além de que, como já dito anteriormente, a segurança pública é um assunto
interseccionado com outros setores da sociedade. E, entender isso, é fundamental para
elaboração de ações e estratégias eficazes por meio desses gestores.

Outra ação importante, é analisar e entender que os fenômenos criminológicos são


reflexos do quadro político. Porque, ao pensar em ações preventivas, elas necessitam ser
direcionadas de forma ampla, ou seja, ter investimentos em hospitais, escolas, esportes,
lazer e empregos, é uma das melhores maneiras de pensar em uma segurança pública de
qualidade a longo prazo. Muitos países desenvolvidos mostram que a qualidade de vida
da população, está diretamente associada aos menores índices de criminalidade nas
regiões.

Também é importante salientar que, uma ação fundamental a ser tomada, é investir
na reinserção social de ex-detentos. É possível realizar essa ação, por meio de qualificações
para essas pessoas e mais oportunidades de empregos, para que não haja reincidência.
Atualmente, já é utilizada uma política de reinserção através de cursos profissionalizantes,
porém, ainda não é tão abrangente porque não há um investimento adequado nessa área.

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Outro ponto sobre a reinserção dos ex-apenados, é investir em debates políticos com a
população para que a sociedade extinga o preconceito contra essas pessoas.

A ação de reestruturação de políticas de drogas, também é um fator importante,


visto que o tráfico de drogas tem uma enorme contribuição no encarceramento
desenfreado de pessoas, trazendo prejuízos a sociedade e a segurança da população.
Assim, reestruturar a política antidrogas pode ser uma ação de melhoria efetiva.

Por fim, outra ação que poderia ser analisada, é o estudo por parte dos gestores e

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funcionários da área de segurança pública, na área de psicologia criminal, pois ter um
embasamento nessa área, irá permitir e contribuir na melhor capacitação desses
profissionais na tomada de decisões e elaborações de políticas eficientes. Desse modo, ter
essa formação irá se tornar mais pertinente para a sociedade, ao pensar que os números
da criminalidade crescem de forma progressiva, tornando-se necessária a construção de
profissionais qualificados.

5 SOLUÇÕES, INVESTIMENTOS E TECNOLOGIAS PARA CIDADES MAIS SEGURAS

É sabido que, cada vez mais o mundo digital e físico está sendo interligado, trazendo
soluções mais eficientes e céleres para diversas situações. A inteligência e tecnologia vem
se mostrando como os principais aliados de todos os setores, públicos e privados, e no
aparato da segurança pública não é diferente, é um dos principais aliados das forças
policiais, dado que ajuda a combater e a prevenir à criminalidade, através da investigação
inteligente.

Não obstante, já existe vinculação entre órgãos, no sentido de contribuir para a


inserção de tecnologias no setor de segurança pública, como a Secretaria da Segurança
Pública e Defesa Social (SSPDS) e a Superintendência de Pesquisa e Estratégia da Segurança
Pública (Supesp) vem apresentando importantes resultados em pouco tempo de
funcionamento. Tem-se ainda alguns institutos que vem contribuindo com o avanço de
tecnologias no setor de segurança pública, como o Instituto Igarapé e o Instituto Tellus.

Algumas cidades do Brasil já usufruem de inovações da tecnologia em suas


operações, como por exemplo, as câmeras utilizadas nos uniformes, que tem como função
melhorar a transparência das ações policiais e aproximar a polícia e cidadão. Existe também
um sistema que foi desenvolvido nos Estados Unidos onde possibilita a rápida revisão das
políticas públicas na área de segurança, chamado Sistema de Detecção de Disparos de
Armas de Fogo (SDD), já implementado no estado do Rio de Janeiro, que é por meio de
um sistema acústico com sensores de áudio camuflados que são instalados em inúmeras
regiões de áreas urbanas, captando assim as ondas, identificando onde tiros são
disparados.
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Existem alguns projetos de tecnologias desenvolvidas em parceria com o Instituto


Igarapé: 1º o CopCast. É um aplicativo Android para aparelhos celulares que monitora
áudio, vídeo e localização GPS, para assim aumentar a transparência das ações policiais,
diminuir o uso da força policial e melhorar a segurança pública em regiões de média e
baixa renda. Ele possui um painel de controle, onde é possível acessar o policial nas
operações em tempo real. Esse aplicativo foi testado em 3 países e foi feito uma
metodologia de avaliação de impacto em Nova Jersey e Santa Cataria para ver qual a
possibilidade de escalar. Não foi possível escalar no Rio de Janeiro devido à falta de
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infraestrutura. 2º exemplo é o Observatório de Prevenção da Violência que é uma


plataforma que associa informações dos diversos serviços de atendimento da Prefeitura,
como educação, assistência e saúde, sendo possível realizar a localização dos indivíduos e
famílias mais vulneráveis que podem se tornar vítimas ou causadores da violência, de modo
a orientar políticas públicas de prevenção. Já foi introduzida na cidade de Paraty/RJ. Ele
junta dados de saúde, educação, assistência social, para possibilitar que o prefeito saiba
onde a política pública social dele não pode deixar de chegar. Exemplos: locais em que o
médico da família tem que ir mais vezes; quando tem que ser acionado o conselho tutelar;
qual o papel do diretor de escolas para um aluno que está evadindo; como é que ajuda
uma mãe que tem 5 filhos, está sozinha e é dependente química, etc. Esse painel ajuda
achar essas pessoas e, poder trabalhar no lado mais eficaz que menos se faz, que é a
prevenção e é no município que é possível transformar o cenário atual. Necessita-se agora
que o Estado se utilize desses projetos e invista neles para melhorar sua situação atual.

Para Bueno de Jesus (2044, p.16), é certificado que é de grande importância que o
Estado conceba as políticas para a Segurança Pública, envolvendo os demais setores da
Administração Pública, em uma gestão democrática com toda a sociedade, visto que
ajudará impedir a solução de continuidade das ações, a qual se verifica justamente pela
inexistência de uma política séria e eficiente para a Segurança Pública.

6 CONCLUSÃO

Finalmente, ao abordar alguns temas relacionados à segurança pública, foi possível


verificar diversas falhas da ação estatal, no entanto, foram apresentadas algumas medidas
para contribuir com a melhoria do sistema, como, por exemplo, elaborar uma política de
segurança pública séria e eficaz, realizar o investimento em políticas sociais de modo a
contribuir na prevenção da criminalidade, agregar mais funções e políticas sociais nos
municípios, investir na qualificação de profissionais da área de segurança e estabelecer
harmonia e articulação entre os variados órgãos policiais, investir na desmilitarização das
policias, bem como, investir em inteligência e tecnologia, contribuindo assim, para um país
mais avançado e seguro.

Lisboa (1997, p. 9), complementa que a Constituição Federal estabeleceu que cabe,
precipuamente aos Município, a função de atuar socialmente, incumbindo aos Estados e à
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União as funções de polícia. Ele apresenta também diversas alternativas para o


aperfeiçoamento do sistema de Segurança Pública do país, como por exemplo o
engajamento da comunidade na prevenção ao crime, a dedicação e esforço das prefeituras
para prover adequadamente os serviços sociais, a ajuda dos Municípios em campanhas
contra a violência e na recuperação de infratores.

Por derradeiro, importante salientar que o estudo desse artigo não possui a
pretensão de exaurir todo o tema, pelo contrário, este é apenas o início de uma extensa
discussão que ainda está por vir sobre o assunto, uma vez que a segurança é um direito

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difuso e inerente a toda coletividade.

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ALIMENTOS DO MENOR NA MULTIPARENTALIDADE

ANA GABRIELA DE AGUIAR LIMA:


advogada, pós graduada em direito civil
e empresarial pela UFPE e pós graduada
em direito de família e sucessões pelo
complexo de ensino Renato Saraiva.

EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO

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(orientadora)

SUMÁRIO: Introdução. 1. Multiparentalidade: Conceito. 2. A Multiparentalidade no


Brasil. 3. Alimentos: Breve digressão. 4. Deveres oriundos da multiparentalidade. 4.1.
Dever Alimentar. Considerações Finais. Referências.

Introdução

A sociedade no seu caminhar veio trazendo novas formações familiares, não


havendo um modelo de família apenas, mas de famílias, por essa razão chama-se Direito
das Famílias, pois há uma pluralidade de entidades familiares, que vem desafiando as
categorias jurídicas, uma vez que não há mais um modelo padrão de família. As
constantes transformações na organização familiar demandam um novo olhar sobre a
forma de interpretar o Direito de Família e as relações de parentalidade. Dessa forma,
necessário se faz adequar as novas categorias para essa nova realidade que surgiu, a saber:
a multiparentalidade.

Tem sido hoje frequente o enfrentamento de situações que envolvem o


reconhecimento de que alguém pode ter mais de um pai, mais de uma mãe, ou ambos.
Talo que se determina pela recompreensão das estruturas familiares, pela multiplicidade
de suas formas de constituição e que acaso levam à entrevisão de uma real
multiparentalidade. A própria socioafetividade, que impõe vínculo parental tanto quanto
a consanguinidade, acabou levando à admissão dessa conjuntura que também pode ser
chamada de pluriparentalidade. (Godoy, 2018)

1. Multiparentalidade: Conceito

Durante muito tempo a única família era a resultante do casamento entre um


homem e uma mulher. Filho era somente quem havia nascido no âmbito desta família.
Era assim chamado de filho legítimo. Os demais não podiam ser reconhecidos e nem
tinham direito algum. Quem era registrado somente no nome da mãe, era
pejorativamente chamado de “filho da mãe”, expressão que carregava forte colorido
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discriminatório contra a mulher que teve um filho sem ter um marido. Mas nada disso
mais subsiste em um mundo plural, em que o amor tornou-se líquido e o afeto passou
a ser o elemento identificador das relações familiares e parentais. Tanto uma como a
outra são se constituem pelos elos de convivência e não estão sujeitas a modelos pré-
moldados ou condicionadas a qualquer vinculação genética. (Dias, 2016)

As famílias brasileiras veem enfrentando diversas mudanças em sua formação.


Não há mais prevalência do modelo tradicional de família e o direito vem se adequando
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a essa nova realidade social. A multiparentalidade, por sua vez, é resultado desses novos
arranjos familiares.

Quando o vínculo de filiação socioafetiva se constitui concomitante ou


sucessivamente, possível a declaração da multiparentalidade com a inclusão, no registro
de nascimento, do nome de quem também passou a exercer a paternidade (DIAS, 2021)

O termo Multiparentalidade significa múltipla paternidade ou maternidade


socioafetiva cumulada com a paternidade ou maternidade biológica, havendo a
possibilidade de mais de um pai ou mãe constarem na certidão de nascimento.

É a possibilidade de ter dois pais e duas mães no seu registro de nascimento. Trata-
se basicamente de uma questão atual, a partir de um julgamento no Supremo Tribunal
Federal, no qual se reconheceu na decisão a possibilidade de se ter dois pais.

A multiparentalidade é uma realidade da jurisprudência pátria e existe por força


de disposição expressa no Código Civil Brasileiro quando diz que o parentesco pode ter
uma “outra origem”:

Art. 1.593. O Parentesco é natural ou civil conforme resulte de


consanguinidade ou outra origem.

Nos moldes da Constituição Federal, o Código Civil de 2002 albergou o princípio


da igualdade da filiação (art. 1.596) e da afetividade, enquanto critério balizador das
demandas sobre as guardas dos filhos (art. 1.583, §5º). Nessa dimensão houve o
reconhecimento do parentesco civil proveniente de outra origem (art. 1.593) e pela
inscrição da filiação socioafetiva no rol das hipóteses de presunção de filiação. (art. 1.597,
V). (Lobo, 2021).

Nesse sentido, tem-se que da paternidade socioafetiva decorre todos os direitos


e deveres inerentes à paternidade, mais especificamente quanto a prestação de
alimentos, uma vez que, o parentesco pode resultar da consanguinidade ou de outra
origem.

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Sobre o tema, bastante comum e disseminado é o ditado popular: “Mãe e pai é


quem cria”, trata-se, na verdade, da pessoa que de fato dá condições para formação
humanística, de caráter, e de educação da criança.

Ainda que a biologia – ao menos por enquanto – reconheça que uma criança tem
origem da junção de material genético reprodutivo de um homem e uma mulher, nem
sempre são os genitores que assumem as funções parentais. Pais são aqueles que têm
um vínculo afetivo de tal ordem que assumem as funções parentais. Assim, pai e mãe,
não necessariamente têm uma vinculação biológica com o filho. Daí a diferenciação

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levada a efeito pela doutrina. Genitor é quem gera. Pai é o que cria, cuida, se preocupa...
(Dias, 2020)

A partir da premissa de que família é uma estruturação psíquica em que a


parentalidade se consubstancia no exercício das funções de paternidade e maternidade
por pessoas que não sejam, necessariamente, os pais biológicos e que exercitem,
faticamente, a autoridade parental por meio de condutas aferíveis objetivamente,
correspondendo às funções de educar, assistir e criar os filhos, conforme o art. 229 da
Constituição Federal, a realidade evidencia que uma pessoa pode ter mais de dois pais
e duas mães exercendo estas funções parentais. (Franco, 2021)

Berenice Dias, por sua vez, defende que o reconhecimento da multiparentalidade


sana uma lacuna, que há muito o direito de família reclamava, principalmente levando-
se em consideração as famílias recompostas e os casos de procriação proveniente das
técnicas de reprodução assistida. Para ela, a multiparentalidade configura uma verdadeira
revolução em matéria de filiação, pois o modelo parental binário não acolhe a realidade
das entidades familiares. Por esta razão, afirma que proibir famílias multiparentais só

prejudica os filhos, pois a estes é imposta uma prova de lealdade: amar o pai biológico,
ou o padrasto. Ao final um juiz decidirá quem é o pai. Questiona então: Será que precisará
optar somente por um deles ¿ E, conclui afirmando que “Um é pouco, dois é bom e três
não é demais” (Dias, 2016)

Com isso, tem-se que o reconhecimento da multiparentalidade é mais um degrau


nos avanços do reconhecimento do afeto enquanto um valor jurídico. Se a pessoa vivencia
uma situação de variados vínculos afetivos em sua ancestralidade, não há como deixar de
reconhecermos efeitos jurídicos nessa relação. Segundo o Ministro Fux, relator do
processo, não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs
dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e
duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender
decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente
é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia
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transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros


determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário.
(Rosa, 2021)

2. A Multiparentalidade no Brasil

A respeito da multiparentalidade nos deparamos com uma pequena produção


doutrinária anterior a Tese de Repercussão Geral, sugerindo que esse instituto já ocorria
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na realidade fática das famílias e do direito brasileiros. Nessa direção a família


homoafetiva, a filiação proveniente das técnicas de reprodução heteróloga e alteração
naLei de Registro Público pela Lei Clodovil de 2009 são exemplos de relações constituídas
por vínculos múltiplos, que teriam servido, segundo esse entendimento, para indicar o
surgimento da multiparentalidade no direito brasileiro. (Lobo, 2021).

Entretanto, é sabido que a inserção da multiparentalidade no Direito brasileiro se


deu através da via jurisprudencial, mais precisamente através do julgamento da Tese 622
pelo Supremo Tribunal Federal.

Após a tese surgiram várias outras contribuições doutrinárias. Principiamos com


as reflexões trazidas por Ricardo Calderón. Segundo ele, os principais reflexos da tese de
repercussão geral foram o reconhecimento jurídico da afetividade, o vínculo socioafetivo
e biológico em igual grau de hierarquia jurídica e, a possibilidade jurídica da
multiparentalidade. Quanto a este último aspecto, considera que o acolhimento da
tese representa uma conquista e “coloca – mais uma vez- o Supremo Tribunal Federal
na vanguarda do direito de família. (Lobo, 2021)

3.Alimentos: Breve digressão

O Direito aos alimentos está, primeiramente, previsto na Constituição Federal de


1988, dentro do Capítulo dos Direitos Sociais, como sendo um dos direitos essenciais à
manutenção e existência humana. Trata-se de um instituto de suma importância, tendo
em vista que o seu inadimplemento possibilita a única forma de prisão civil por dívida. O
Código Civil, por sua vez, traz no seu art. 1.694, a seguinte redação: “Podem os parentes,
os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos que necessitem para
viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às
necessidades de sua educação”.

O conceito de alimentos abarca todas as necessidades vitais do ser humano para


se viver com dignidade e não se reduz à noção daquilo que é comestível apenas. Desse
modo, a noção de alimentos deve abranger desde aquilo que o ser humano necessita
para se alimentar, passando pela moradia, vestuário, saúde, educação e, findando,
inclusive, no lazer. (Queiroz, 2018)

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De forma simples e didática, os alimentos não são devidos somente para atender às
necessidades básicas de sobrevivência. Alimentos tem significado de valores, bens ou
serviços destinados as necessidades existenciais de pessoas, em virtude de relações de
parentesco, do dever de assistência ou de amparo.

Trata-se, ainda de um direito pessoal extrapatrimonial, e tem um fundamento ético-


social, pois o alimentando não tem interesse econômico, uma vez que a verba alimentar
não aumenta seu patrimônio, não servindo também de garantia aos seus credores,
sendo por sua vez, uma manifestação do direito à vida, que tem caráter personalíssimo.

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Quanto a relevância e atualidade do tema, Maria Berenice Dias ensina que: “Das
mazelas que aportam aos tribunais, não há quem duvide que as demandas de alimentos
são as mais recorrentes e as que exigem uma resposta mais imediata: rápida solução e
eficaz execução. Afinal, de todas as necessidades do ser humano, o direito à sobrevivência
é o mais premente, o mais urgente, pois ninguém vive sem alimentos. Apesar de todas
estas verdades, pouco ou quase nada assegura efetividade a este direito tão
fundamental,que, ao fim e ao cabo, preserva a dignidade humana. Não há como esquecer
que o direito à alimentação tem sua matriz no direito da personalidade, que assegura a
inviolabilidade do direito à vida, à integridade física. Inclusive, é reconhecido entre os
direitos sociais (CR, art. 6º).” (Dias, 2020)

Os alimentos têm como finalidade garantir o direito à vida, que por sua vez é um
direito da personalidade, além de ser o maior direito resguardado pela Constituição
Federal de 1988.

Para o Professor Christiano Cassettari, os direitos sociais previstos no art. 6º da


Constituição Federal influenciam no valor dos alimentos, corroborando a tese de Luiz
Edson Fachin sobre a necessidade da existência de um patrimônio mínimo para a pessoa,
que possa garantir a dignidade da pessoa humana. Assim, os alimentos devem garantir
acesso à educação (escola), à saúde (plano de saúde), à moradia (aluguel, condomínio),
ao lazer (cinema, teatro), à segurança, dentre outros direitos. (Cassettari, 2018)

Posto isso, verifica-se que alimentos não está relacionado apenas à alimentação,
mas a um gênero maior que abrange os direitos sociais acima descritos.

Quanto a obrigação alimentar e o dever de sustento, a doutrina diferencia obrigação


e dever alimentar. O art. 1.566, inciso IV do Código Civil de 2002, ensina que são deveres
de ambos os cônjuges, ou seja, dos pais, o sustento, a guarda e a educação dos filhos,
obrigação decorrente do poder familiar. Por outro lado, a obrigação alimentar, decorre
da mútua assistência e da solidariedade familiar, com fundamento no art. 1.694 do
Código Civil, com a seguinte redação: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros
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pedir uns aos outros os alimentos que necessitem para viver de modo compatível com
sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”

Quanto ao fim da obrigação alimentar, Maria Berenice Dias traz uma importante
distinção sobre o tema: “Merece ser feita uma distinção entre a extinção do direito a
alimentos e exoneração do encargo alimentar. A morte de qualquer das partes leva à
extinção da obrigação. Quando da morte do credor, havendo eventual crédito alimentar
devido e não pago, os herdeiros do alimentado têm legitimidade para cobrá-lo. Com o
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falecimento do alimentante, a obrigação alimentar transmite-se aos seus herdeiros (CC,


art. 1.700). Doutrina e jurisprudência ainda não se entenderam quanto ao alcance da
transmissibilidade prevista na lei. Como os alimentos são estabelecidos em atenção ao
binômio necessidade- possibilidade, desaparecendo um dos vértices desta equação,
possível o alimentante buscar a exoneração do encargo de pagar alimentos. A exoneração
não é definitiva: ressurgindo a necessidade do credor ou a possibilidade de pagar do
devedor, pode ser restabelecido o encargo.” (Dias, 2020).

A obrigação alimentar será extinta diante das seguintes situações: Quando o


alimentando alcança a maioridade civil; quando ocorre a morte do credor de alimentos;
quando há casamento, união estável ou concubinato do credor; e por fim, se o credor tiver
procedimento indigno em relação ao devedor.

Para Maria Berenice Dias, no momento em que os filhos atingem a maioridade,


cessa o poder familiar, o que não leva à extinção automática do encargo alimentar. Entre
pais e filhos surge o dever recíproco de alimentos, em decorrência da solidariedade
familiar. Desse modo, estabelecidos alimentos em razão do poder familiar, o fato de o
filho completar a maioridade não livra o genitor do dever de continuar pagando o encargo,
que deriva da relação paterno-filial. Ele não pode simplesmente parar de pagar alimentos.
É necessário que busque judicialmente a extinção do encargo. Até a maioridade do filho
sua necessidade é presumida. Trata-se de presunção absoluta (juris et de jure), ou seja,
decorre da lei, não admitindo prova em contrário. Depois dos 18 anos, a presunção passa
a ser relativa (juris tantum). (Dias, 2020).

Outra situação que enseja da extinção da obrigação alimentar, se dá quando ocorre


a morte do credor, isto porque nas palavras da Professora Mônica Queiroz, essa
possibilidade surge como corolário lógico do caráter personalíssimo da obrigação de
alimentos. Ademais, o fato de o credor casar-se, viver em união estável ou concubinato,
também extingue a obrigação de prestar alimentos, isto porque o art. 1.708, caput do
Código Civil prevê que com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor,
cessa o dever de prestar alimentos.( Queiroz, 2018).

Por fim, o art. 1.708, no seu parágrafo único, traz a possibilidade de extinção da
obrigação alimentar quando há o procedimento indigno em relação ao devedor, ou seja,

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aquele que paga os alimentos: “Com relação ao credor cessa, também, o direito a
alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor. Para Maria Berenice
Dias, o reconhecimento de indignidade pode gerar a extinção total ou parcial da obrigação
alimentar, de modo a assegurar o mínimo existencial ao credor. Além disso, é possível o
restabelecimento dos alimentos caso o credor comprove ter ocorrido o perdão por parte
do alimentante.” (Dias, 2020)

4. Deveres oriundos da Multiparentalidade

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4.1 Dever Alimentar

Como principal consequência jurídica da Multiparentalidade tem-se a inclusão no


registro civil de mais de um pai e mais de uma mãe, entretanto, a multiparentalidade tem
efeitos jurídicos na Sucessão, na Previdência, no estado e no nome, e por fim, nos
Alimentos.

De maneira incipiente, cumpre destacar que o presente artigo se limita as hipóteses


em que um filho possui um pai socioafetivo e posteriormente descobre um vínculo
biológico com outrem ou, ao contrário, quando se tem primeiramente um vínculo
biológico, mas no decorrer da vida é presenteado por um vínculo afetivo.

De acordo com o Enunciado de número 09 do Instituto Brasileiro de Direito de


Família – IBDFAM, a Multiparentalidade gera efeitos jurídicos. Dentre esses efeitos
jurídicos está a obrigação de caráter alimentar.

Por sua vez, o enunciado 341 da CJF, prevê que para os fins do art. 1.696, a relação
socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar. Vale salientar que
conforme o art. 1.609 do Código Civil brasileiro, o reconhecimento de um filho é ato
irrevogável.

A Filiação socioafetiva que, atualmente, pode ser reconhecida até mesmo de


forma extrajudicial, tem como norte, entre outros fatores, a igualdade entre as filiações,
independentemente de origem. Assim não há dúvidas de que o filho socioafetivo tem
direito aos alimentos. Nessa esteira, estabelece o enunciado n. 341 das Jornadas de Direito
Civil: para “os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador da
obrigação alimentar”.

Reconhecida a parentalidade socioafetiva, imperioso admitir a possibilidade de


coexistência da filiação biológica e da filiação construída pelo afeto. Não há modo melhor
de contemplar a realidade da vida do que abrir caminho para a multiparentalidade. Afinal,
é impossível negar que alguém possa ter mais de dois pais. E todos eles devem assumir

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os encargos decorrentes do poder familiar. Neste sentido enunciado do IBDFam: A


multiparentalidade gera efeitos jurídicos. (Dias, 2016)

Importante esclarecer que na Multiparentalidade, a existência de um vínculo


afetivo não exime a responsabilidade daquele que possui o vínculo biológico, sendo todos
igualmente responsáveis de forma compartilhada, pela educação, sustento, e proteção
do individuo em formação, uma vez que o dever alimentar está amparado no princípio
do melhor interesse da criança e do adolescente.
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A prevalência da paternidade socioafetivo foi reconhecida pelo Supremo Tribunal


Federal. Quando mais pessoas são reconhecidas como pais ou como avós, surge, com
relação a todos, obrigação alimentar concorrente. (Dias, 2021)

Adentrando ao cerne do tema, a doutrina de Paulo Lôbo é no sentido de que os


alimentos devem ser partilhados pelos pais socioafetivos e biológicos em igualdade de
condições; em caso de conflito, o juiz deve considerar a partilha proporcional do valor de
acordo com as possibilidades econômicas de cada um, segundo os critérios da justiça
distributiva. (Franco, 2021)

Diante do reconhecimento da parentalidade exercida, seja biológica ou


socioafetiva, decorre o dever de alimentos de forma recíproca, bem como todos os demais
efeitos jurídicos inerentes à relação filial. (Franco, 2021)

Nesse sentido tem-se alguns julgados para elucidar melhor o tema:

APELAÇÃO CIVEL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. PRINCÍPIO DO MELHOR


INTERESSE DO MENOR. DIREITO AO CONHECIMENTO DA PRÓPRIA
ASCENDÊNCIA. DIREITO ABSOLUTO. IRRENUNCIÁVEL. NOME DO
GENITOR NO REGISTRO. POSSIBILIDADE. MULTIPARENTALIDADE.
POSSIBILIDADE. ALIMENTOS. DEVER CONSTITUCIONAL. FILHO.
MENOR IMPÚBERE. NECESSIDADE MANIFESTA DE ALIMENTOS.
DISTANCIAMENTO AFETIVO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS.
NÃO ADEQUAÇÃO. SENTENÇA REFORMADA. 1. O princípio do
melhor interesse do menor tem por objetivo garantir os direitos
inerentes ao menor, assegurando-lhe o pleno desenvolvimento e
sua formação cidadã, impedindo os abusos de poder pelas partes
mais fortes da relação jurídica que envolve a criança, já que o menor,
a partir do entendimento de tal princípio, ganha status de parte
hipossuficiente, devendo ter sua proteção jurídica maximizada. 2. O
direito ao conhecimento da própria ascendência ganha supremacia
constitucional à medida que, como componente do direito ao livre
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desenvolvimento da personalidade, conjugado como o princípio


constitucional da dignidade humana, consubstancia-se numa
garantia da realização da esfera de vida íntima da pessoa e na
conservação das condições fundamentais para a compreensão e o
desenvolvimento da sua individualidade, sendo este direito um
direito inato, absoluto, imprescritível e, entre outras características,
irrenunciável. 3. O nome do genitor no registro de nascimento da
criança lhe assegura a efetivação do princípio do melhor interesse do

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menor, bem como o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, conjugado como o princípio constitucional da
dignidade humana.

4. A tese de multiparentalidade foi julgada pelo STF em sede de


repercussão geral, onde decidiram que a paternidade socioafetiva,
declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento
do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica
com os efeitos jurídicos próprios. 5. O reconhecimento da
paternidade biológica não exclui a possibilidade de reconhecimento
da paternidade socioafetiva, caso haja interesse. 6. Segundo o art.
229 da constituição Federal, os pais têm o dever de assistir, criar e
educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar
e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 7. Ainda que
não haja pedido de uma parte para que seja estabelecido encargo
alimentar à outra parte, em se tratando de filho menor impúbere, a
necessidade de alimentos é manifesta. 8. Uma vez demonstrado o
grande distanciamento afetivo entre pai biológico e filho, bem como
a ausência de afeto entre as partes, a regulamentação de visitas não
se mostra medida adequada ao melhor interesse do menor. 9. O
indeferimento da regulamentação de visitas hoje, não impede a
postulação desse direito pelo pai biológico em ação autônoma,
quando for possível a ele fazer a apresentação de provas hábeis de
alteração da situação de fato, a confirmar que a eventual introdução
da convivência representará, guardadas as regras cabíveis, uma
medida benéfica ao desenvolvimento psicológico do menor,
observando-se uma gradativa adaptação. 10. Recurso conhecido e
parcialmente provido. (TJ-DF 00032002320178070010 - Segredo de

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Justiça 0003200-23.2017.8.07.0010, Relator: GISLENE PINHEIRO,


Data de Julgamento: 20/06/2018, 7ª Turma Cível, Data de
Publicação: Publicado no PJe: 22/06/2018. Pág.: Sem Página
Cadastrada.)

APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C


PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO DE
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NASCIMENTO. REGULARIDADE DA CITAÇÃO EDITALÍCIA DO PAI


REGISTRAL. PRESCINDIBILIDADE DA PROVA DA PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DA
MULTIPARENTALIDADE. DEVER DE PAGAMENTO DE ALIMENTOS
CONFIGURADO. MAJORAÇÃO DO VALOR DA PRESTAÇÃO MENSAL.
EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS PELA MAIORIDADE DO
AUTOR. INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA PELO ÍNDICE
INPC. ANULAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO. MUDANÇA DO
NOME DO AUTOR. DISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS.
AMBOS OS RECURSOS CONHECIDOS E PARCIALMENTE
PROVIDOS. 1. Trata-se de recursos de apelação interpostos em
face de sentença proferida pelo juízo da 8ª Vara de Família da
Comarca de Fortaleza/CE, que julgou parcialmente procedente a
ação de investigação de paternidade c/c Alimentos c/c anulação de
registro de nascimento, reconhecendo a paternidade biológica do
autor da ação, fixando alimentos, anulando o seu registro de
nascimento e determinando a confecção de uma nova certidão com
a respectiva alteração de nome do autor. 2. A paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na
origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. Precedentes. 3.
O registro efetuado pelo suposto pai afetivo não impede a busca
pelo reconhecimento registral também do pai biológico, cujo
reconhecimento do vínculo de filiação, com todas as consequências
patrimoniais e extrapatrimoniais, é seu consectário lógico.
Precedentes. 4. Nos termos da súmula 277 do Superior Tribunal de
Justiça, "julgada procedente a investigação de paternidade, os
alimentos são devidos a partir da citação". 5. Quanto ao termo final,
o advento da maioridade não extingue, de forma automática, o
direito à percepção de alimentos, mas esses deixam de ser devidos

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em face do Poder Familiar e passam a ter fundamento nas relações


de parentesco, em que se exige a prova da necessidade do
alimentado. No caso, como o autor não fez prova da sua
necessidade alimentícia após o advento da maioridade, a obrigação
do réu deverá durar até os dezoito anos do autor. 6. Pensão
alimentícia majorada de 3 (três) para 5 (cinco) salários mínimos
mensais, a incidir desde o dia 05/12/2005 (primeiro "dia 5" após a
citação do alimentante, ocorrida em 25/11/2005, vide fl.68) até o dia

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05/10/2007 (último "dia 5" antes da maioridade do autor, ocorrida
em 27/10/2007, vide fl.31), totalizando, 23 prestações mensais. 7.
Por ser a correção monetária mera recomposição do valor real da
pensão alimentícia, é de rigor que conste, expressamente, da
decisão concessiva de alimentos - sejam provisórios ou definitivos -
, o índice de atualização monetária, conforme determina o art. 1.710
do Código Civil. Na hipótese, para a correção monetária, faz-se mais
adequada a utilização do INPC, em consonância com a
jurisprudência do STJ, no sentido da utilização do referido índice
para correção monetária dos débitos judiciais. Precedente. 8. É
prescindível o prévio ou concomitante ajuizamento do pedido de
anulação do registro de nascimento do investigante, dado que esse
cancelamento é simples conseqüência da sentença que der pela
procedência da ação investigatória. Precedentes. 9. Distribuição dos
ônus sucumbências. Reconhecida a sucumbência recíproca, as
custas processuais deverão ser dividas igualmente entre os litigantes.
Em relação aos honorários advocatícios, os advogados do autor
deverão ser remunerados na ordem de 10% (dez por cento) sobre o
valor da condenação da prestação de alimentos. Em relação aos
advogados do réu, arbitra-se, por equidade a quantia de R$5.000,00
(cinco mil reais), considerando o longo tempo de duração do
processo (quinze anos) e o grau de zelo dispensado pelos
causídicos. 10. Ambos os recursos conhecidos e parcialmente
providos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de nº
0056570-88.2005.8.06.0001, acorda a 4ª Câmara Direito Privado do
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, pela unanimidade de seus
membros, em conhecer e dar PARCIAL PROVIMENTO a ambos os
recursos, nos termos do voto do relator. Fortaleza, 15 de setembro
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de 2020. FRANCISCO BEZERRA CAVALCANTE Presidente do Órgão


Julgador RAIMUNDO NONATO SILVA SANTOS Desembargador
Relator (TJ-CE - AC: 00565708820058060001 CE 0056570-
88.2005.8.06.0001, Relator: RAIMUNDO NONATO SILVA SANTOS,
Data de Julgamento: 15/09/2020, 4ª Câmara Direito Privado, Data
de Publicação: 15/09/2020)
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O maior prestígio da filiação socioafetiva não subtrai as obrigações do pai registral


ou do pai biológico. Daí a possibilidade de serem reivindicados alimentos do genitor
biológico, diante da impossibilidade econômico-financeira, ou da menor capacidade
alimentar do pai socioafetivo, que não está em condições de atender satisfatoriamente
as reais necessidades do filho que acolheu por afeição. O pai socioafetivo tem amor, mas
não tem dinheiro. O filho afetivo tem direito aos alimentos dos pais genéticos não apenas
quando ocorre a impossibilidade de alimentação pelos pais afetivos, mas também
quando há necessidade de complementação da verba alimentar. (Dias, 2020)

Considerações Finais

Nas palavras do professor Conrado Paulino, não podemos esquecer que o direito
de filiação é imprescritível (art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente) e que, se for
o caso, é um direito incontestável da prole em buscar o reconhecimento do vínculo
parental. Todavia, esse deve atender o melhor interesse dos filhos e não, por outro lado,
dos genitores. Imperioso referir que, a partir da constituição de um vínculo multiparental,
não há dúvidas que o filho contará com todos os direitos inerentes ao estado de filiação,
entre eles, convivência familiar e alimentos, mas também, as consequências sucessórias.
O que não pode ser esquecido que embora esse filho que obtenha o reconhecimento
de sua ancestralidade multiparental aparentemente conte com certa “vantagem”, em
comparação ao tradicional modelo biparental, é o fato de que, na velhice de seus
ascendentes, a Constituição Federal, no artigo 229, imputar-lhe o dever de amparo de
todos eles. Quanto maior o direito, maior a obrigação e, em breve, tais demandas
certamente estarão batendo às portas do judiciário. (Rosa, 2021)

Conclui-se pelo presente artigo que trata-se de direito de todas as crianças e


adolescentes após o reconhecimento judicial da família multiparental, todos os efeitos
jurídicos decorrentes desse reconhecimento, a saber: herança dupla ou tripla (direitos
sucessórios), guarda com convivência familiar, mudança do patronímico, direitos
previdenciários, e por fim, direito a alimentos, tema bastante tratado ao longo deste artigo.

Referências

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16/08/2021.
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BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em 16/08/2021.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 16/08/2021.

CASSETTARI, Christiano. Elementos do Direito Civil – 6. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

DIAS, Maria Berenice. Proibição das famílias multiparentais só prejudica os filhos. 2016.

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Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016/processo-familiar-proibicao-
multiparentalidade-prejudica-filhos. Acesso em: 23/08/2021.

DIAS, Maria Berenice. Alimentos – Direito, Ação, Eficácia, Execução – 3. Ed. Rev. Ampl. e atual.
– Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

FRANCO, Karina Barbosa – Multiparentalidade: uma análise dos limites e efeitos jurídicos
práticos sob o enfoque do princípio da afetividade – Belo Horizonte: Fórum,2021.

GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Atualidades sobre a parentalidade socioafetiva e a


multiparentalidade. Direito Civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. 1. Ed. – São
Paulo: Atlas, 2018.

LOBO, Fabiola Albuquerque – Multiparentalidade: efeitos no direito de família – Indaiatuba,


SP: Editora Foco, 2021.

LÔBO, Paulo – Parentalidade Socioafetiva e multiparentalidade. Questões atuais. Direito


Civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. 1. Ed. – São Paulo: Atlas,2018.

QUEIROZ, Mônica. Direito Civil – 3ed. – Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2018.

ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. Ed. Ver., ampl. e atual. – São
Paulo: JusPodivm, 2021.

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O DIREITO ANIMAL E A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA COMPLEMENTAR


Nº96/2017

JULIA THAINÁ GUIMARÃES CUSTÓDIO:


Graduanda em Direito pelo Centro
Universitário de Santa Fé do Sul-SP

RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA298


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(orientador)

RESUMO: O presente artigo possui como objetivo principal analisar a constitucionalidade


da Emenda Complementar nº96/2017, delineando sobre a relação antropocêntrica do
homem com o animal e sua origem. Analisando a natureza jurídica do animal nas
legislações brasileiras e outros países que versem sobre sua proteção. Expondo os
posicionamentos do STF em relação aos direitos dos animais não-humanos; relacionando
a referida Emenda a estes posicionamentos e ao princípio da Proibição de Retrocesso do
Direito Ambiental. A metodologia utilizada para a elaboração da pesquisa é a revisão
bibliográfica, foram realizadas pesquisas na internet, consultas em doutrinas que dispõem
sobre o assunto, análise de Leis e artigos acadêmicos. Inicialmente foi realizado um estudo
quanto ao surgimento das ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) que ao proibirem
certas manifestações formaram um movimento que desencadeou a criação da referida
Emenda. Observou-se a inconstitucionalidade da Emenda Complementar 96/2017, devido
aos inúmeros posicionamentos dos Tribunais, posicionamentos estes demonstrados
principalmente pela aprovação de diversas ADIs que proibiam as práticas já reconhecidas
como cruéis, foi observado também a falta de regulamentação dessas práticas, que abre
lacunas, criando um conceito normativo de crueldade ao descaracterizar uma crueldade
concreta por decreto normativo.

Palavras-chave: Crueldade. Prática Desportiva. Animal.

ABSTRACT: The main objective of this article is to analyze the constitutionality of


Complementary Amendment No. 96/2017, outlineing the anthropocentric relationship of
man with the animal and its origin. Analyzing the legal nature of the animal in Brazilian
andother Latin American laws that see about its protection. Exposing the Supreme Court’s
position in relation to the rights of non-humananimals; relating Co mplementary
Amendment No. 96/2017 to these positions and to the principle of the Prohibition of
Retrogression of the Right Ambiental. The methodology used for the preparation of the
research is the literature review, internet research, consultations on doctrines on the
subject, analysis of laws and academic articles were conducted. Initially, a study was carried

298 Docente do Centro Universitário de Santa Fé do Sul-SP,

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out on the emergence ofThe ADIs (Direct Actions of Unconstitutionality) that by


prohibiting certain manifestations formed a movement that triggersor the creation of said
Amendment. It was observed the unconstitutionality of Complementary Amendment
96/2017, due to the numerous positions of the Courts, positions demonstrated mainly by
the approval of several ADIs that prohibited practices already recognized as cruel, it was
also observed the lack of regulation of these practices, which opens gaps,creating gaps,
creating a normative concept of cruelty by mischaracterizing a concrete cruelty by
normative decree.

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Keywords: Cruelty. Sports Practice. Animal.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo ponderar a respeito da Emenda


complementar nº 96 de 2017, avaliando se as práticas desportivas realizadas com animais,
mesmo que abrangidas no rol de patrimônio cultural, ou seja, regulamentadas, que foram
autorizadas pela Emenda são constitucionais.

Analisar a relação do ser humano com o animal, a origem e fundamentos para a


visão do animal como objeto de uso para a realização das vontades do ser humanos, assim
como as diferentes relações: conservadora, reformista e abolicionista.

Tratar brevemente sobre a evolução da legislação brasileira sobre os animais e


uma comparação com outros países, o status jurídico dos não-humanos na legislação
brasileira, principalmente na Constituição Federal, Código Civil e normas ambientais,
comparando as diferentes proteções com algumas legislações estrangeiras.

Tem como objetivo analisar o texto da emenda complementar nº 96/2017 que


determinou que as práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis,
se consideradas bens de natureza imaterial do patrimônio cultural brasileiro.

Ponderar sobre as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) anteriores, que


proibiram as manifestações culturais, de que trata a emenda, especialmente sobre a
posterior reação à decisão do STF na ADI 4983 (que julgou inconstitucional a Lei nº
15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva
e cultural no estado), que atuando como legislador constituinte e representante do povo,
o Congresso Nacional brasileiro aprovou a Emenda nº 96/2017.

Diante disso, analisar sua incompatibilidade com o artigo 225 da Constituição


Federal, que trata sobre o direito ao meio ambiente e a proteção aos dos animais, e com

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os entendimentos já consolidados pelo STF de proteção as garantias e direitos individuais


relativos ao meio ambiente e a vedação dos maus tratos com os animais.

2 A RELAÇÃO ENTRE O SER HUMANO E O ANIMAL

A relação entre o homem e o animal é de predominância dos interesses humanos


sobre a vida desses seres, desde os ensinamentos bíblicos, que colocam os animais como
objetos de servidão as vontades humanas, até os pensamentos filosóficos como o do
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filósofo René Descartes (1596 a 1650), que em sua tese, o mecanicismo cartesiano, definia
os animais como meras máquinas que não possuíam sentimentos, capacidade de raciocinar
e de sentir dor ou prazer, a ideia é de que o papel do animal é de ser usado para satisfazer
a vontade humana, mesmo que essa ultrapasse seu bem-estar.

Segundo Melo e Rodrigues (2019) há três formas de interação entre os seres


humanos e os animais não-humanos: a dos conservadores, a dos reformistas e a dos
abolicionistas.

A corrente conservacionista, é baseada na visão antropocêntrica de que todo


direito é para o homem, que passa a ser referencial de medida para todas as coisas, os
animais são tratados como meros objetos cujo objetivo único é servir a ele.

A corrente reformista afirma que o tratamento dado aos animais deve ser
gradualmente alterado através de estudos científicos e alterações legislativas. Como
animais são seres sencientes, Singer (2004) alega que estes possuem interesses, pelo
menos o de viver sem sentir dor ou maus-tratos, de acordo com ele, seria o suficiente
garantir um status ético.

A corrente abolicionista apoia a abolição total do uso de animais pelo ser-humano.


Propõe o reconhecimento de seus direitos e assim sua libertação total. Tal corrente,
apoiada por Tom Regan, pressupõe que os animais não humanos são detentores de direito
e devem poder experimentar a vida de forma plena, ampliando os direitos fundamentais
aos animais não-humanos. Segundo Regan, indivíduos que são sujeitos de uma vida
merecem ser tratados com respeito, com o intuito de que seus bens mais importantes
sejam protegidos (REGAN, 2006 apud SILVA, 2007).

3 O DIREITO DOS ANIMAIS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Para Ataíde Junior (2018), o direito animal é o conjunto de princípios e normas que
estabelecem os direitos fundamentais dos animais, independentemente da sua função
ecológica. Este conceito se baseia na apreciação da Constituição que assegura proteção
aos animais e que não sejam sujeitados a tratamentos que ponham em risco os submetam
a crueldade, possam provocar sua extinção ou prejudiquem sua função ambiental.

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Quando se refere aos animais o artigo 1º, caput da Lei nº 5.197/67 (BRASIL, 1967),
Lei de proteção à fauna, define os animais silvestres como bem de uso comum do povo. Já
os animais domésticos são classificados pelo Código Civil (BRASIL, 2002) como semoventes
suscetíveis de direitos reais, eles possuem direito à integridade física, mas não à vida e à
liberdade.

Na Constituição Federal (BRASIL, 1988) tem-se o tratamento dos animais por duas
visões: a de fauna, visão do Direito Ambiental, com base no valor ecológico e o valor
enquanto indivíduo senciente, com dignidade própria, visão do Direito animal. Assim é

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possível distinguir o Direito Ambiental e o Animal, mesmo que com princípios e regras
compartilhadas.

Em seu artigo 225, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) expressa o protecionismo


animal, estabelecendo a proteção dos maus tratos e tratamentos cruéis aos mesmos e
incentiva à educação ambiental, demonstrando uma contradição por garantir direitos a
seres que são classificados como coisa, o princípio lógico é de que coisas não têm direito.

A necessidade do reconhecimento da dignidade animal vem do fato de ele ser


senciente, ou seja, ter a capacidade de sentir dor e sofrimento, físico ou psíquico. Como a
dignidade se enquadra nos direitos fundamentais é dever do Estado regulamentar meios
de proteção a ela.

Os animais podem ser considerados objeto de direito ou sujeitos de direito, são


considerados seres sensíveis ou sencientes e, por esta condição, merecem uma proteção
diferenciada em nosso ordenamento jurídico.

A base legal para o posicionamento que os considera como seres sensíveis é o


artigo 225, VI da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que proíbe toda e qualquer prática
que submeta os animais à crueldade e artigo 32 da Lei nº 9.605/1998 (BRASIL, 1998) que
considera crime todo comportamento que os submeta a maus-tratos.

Contudo, a exploração dos animais é permitida por outras Leis no Ordenamento


Jurídico brasileiro, a exemplo temos o Código Civil (BRASIL, 2002), que em seu artigo 441,
§2º, trata os animais como bens semovente, bem como o artigo 1.442 do mesmo Código,
que permite que os animais sejam matéria de penhor agrícola.

A Lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998) permite que os animais sejam utilizados em


experiências científicas quando não existirem recursos alternativos, considerando pelo
senso comum como um “mal necessário” para promover inovações médicas que curem a
sociedade.

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Mesmo com essa atitude cruel, a Lei não admitia que os animais fossem tratados
desta forma, ou seja, que a sua integridade física fosse violada apenas para satisfação e
entretenimento de indivíduos.

As doutrinas que ainda se mostram apoiadoras destas atitudes geralmente se


baseiam nos pensamentos de Immanuel Kant, que em sua tese alegava que os animais
eram meras máquinas, que não sentiam sequer dor e que apenas os seres racionais teriam
direitos inerentes a sua condição, os direitos humanos, porque o atributo da razão
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conferiria aos animais humanos uma superioridade jurídica em relação aos outros.
Baseados neste pensamento fica o questionamento a respeito da situação dos bebês e de
pessoas que não possuem condições mentais de demonstrar suas vontades claramente.
Esses indivíduos, mesmo sem conseguir desenvolver um raciocínio complexo, não perdem
a condição de humanos, nem os direitos advindos dela.

Em contrapartida aos pensamentos de Kant temos o pensamento Utilitarista, que


é uma teoria ética caracterizada pela ideia de que as condutas adotadas devem promover
a felicidade ou prazer do coletivo, de forma que o bem-estar de cada indivíduo importa.
Os primeiros teóricos utilitaristas defenderam a consideração moral dos animais não
humanos, afirmando que seus interesses deveriam ser respeitados tanto quanto os
interesses dos humanos.

Para o utilitarismo, o uso de animais pode ser aceitável apenas se a felicidade


causada pela sua exploração for maior do que o dano causado, o que não é possível, já
que é necessário muito sofrimento para produzir prazeres momentâneos como o uso de
animais para o entretenimento. Logo, não se pode considerar essa exploração moralmente
legítima para o utilitarismo.

4 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ANIMAIS NO DIREITO ESTRANGEIRO

Comparando a legislação brasileira com outros países percebe-se que apesar da


evolução ocorrida recentemente, a legislação brasileira está atrasada, há a necessidade da
criação de Lei específica para a proteção dos animais não-humanos, tutela diversa e mais
adequada do que a do meio ambiente.

No Chile a proteção animal é regulamentada pela Lei 21.020 de 2017 – Lei de posse
responsável de animais de companhia e também pelo artigo 291 do seu Código Penal. De
acordo com o Código Penal chileno (CHILE, 1874) é possível que haja a inabilidade
perpetua para possuir animais, também há a individualização do termo animal, podendo
diferenciar o crime cometido contra uma ou mais animais e assim punir adequadamente
Ainda assim, a Lei chilena não mudou o status legal do animal e assim como no Brasil são
colocados como propriedade.

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A Colômbia também possui Lei própria para a proteção animal, o Estatuto Nacional
de Proteção dos Animais de 1989, que foi alterado pela Lei 1.774/16 (CHILE, 2016), que
alterou também o Código Civil Colombiano, reconhecendo os animais como seres
sencientes. A Lei colombiana descreve taxativamente as condutas consideradas como
crueldade, mas classifica o crime de maus tratos como material. Semelhante a Lei brasileira
e chilena, a Lei colombiana também mantem o status legal do animal como coisa.

Em 2015 a França alterou seu Código Civil, através da Lei 177, de 28 de janeiro de
2015, conferindo maior proteção aos direitos dos animais, rompendo com a teoria

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cartesiana do animal-máquina e estabelecendo um status jurídico intermediário para os
animais, entre as pessoas e as coisas. “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade.
Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime de bens”
(FRANÇA, 2015).

A nova lei de bem-estar animal regulou temas como a proibição gradual do uso
de animais em circos, a proibição da venda de cães e gatos em sites e pet shops, a exigência
para novos donos de animais que devem assinar um certificado confirmando que
entendem as responsabilidades e custos envolvidos, a lei também trouxe penalidades mais
severas para o abandono de animais.

5 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E USO DE ANIMAIS NÃO-HUMANOS NO BRASIL

A carta magna promulgada em 1988 buscou efetivar a democracia, estabelecendo


os direitos fundamentais. Um dos direitos elencados foi a proteção ao patrimônio cultural
que estabelece um extenso conjunto de valores, princípios e normas que protegem à
cultura, com o objetivo de garantir seu acesso, a liberdade de criação, a transmissão e a
igualdade dos bens culturais.

Clifford Geertz (2006) conceitua a cultura como “a própria condição de existência


dos seres humanos, produto das ações por um processo contínuo, através do qual, os
indivíduos dão sentido à suas ações”.

A sociedade tem passado por modificações em todas as áreas do conhecimento


ao longo da história. A cultura também sofreu com a influência de tais transformações que
ocorreram de forma lenta e gradual. Podemos então assegurar que a cultura é passível de
mudança.

No Brasil, com o desenvolvimento da cultura em diversas regiões foram criadas


manifestações culturais que se utilizam de animais, a vaquejada, o rodeio e o laço são
práticas rotineiras da sociedade brasileira, possuindo festas de expressões nacionais, como
a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos com um público de 800 mil pessoas em 2019,

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movimentando cerca de R$ 900 milhões com o turismo. A tradicional Festa da Vaquejada


em Serrinha, na Bahia, que ocorreu com um público de 300 mil pessoas em 2019.

Com a evolução do Direito animal muitas destas Manifestações foram proibidas


por um período, através da criação de Leis, haja vista que em sua realização as atividades
configuram crime de maus-tratos.

A Farra do Boi, por exemplo, consiste em perseguir e bater com uma vara no
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animal, boi, depois matá-lo e repartir a carne entre os participantes, mesmo que
explicitamente se reconheça as barbaridades realizadas somente para o entretenimento
humano, por estarem arraigadas a Cultura ainda há grupos que discutem e apoiam a
legalidade de suas realizações, alegando que essa proibição fere o exercício dos direitos
culturais, e que o dever do Estado é proteger as manifestações das culturas populares (art.
215, caput e § 1º CF).

É importante observar que a prática da vaquejada é uma realidade nacional e a


maior crítica dos defensores desse “esporte” é que na tentativa do Estado de promover os
devidos cuidados com os animais, ele dificulta a regulamentação, desenvolvendo um
cenário com maior probabilidade de práticas ilegais e mais crueldade.

6 O POSICIONAMENTO DO STF E A CRIAÇÃO DA EMENDA COMPLEMENTAR Nº


96/2017

A Constituição é o conjunto de normas que trata sobre direitos e deveres do


cidadão, a função dos entes federados, limita o poder do Estado de modo a impossibilitar
sua arbitrariedade, estabelece as regras gerais para organizar a sociedade assegurando os
direitos individuais, coletivos e difusos.

Deste modo, os dispositivos que compõem a Constituição no aspecto do direito


positivo ganham status de normas constitucionais, que são dotadas de máxima hierarquia
dentro do sistema.

Para regular o exercício das funções do Estado, especialmente para fins de


promulgação e edição de Leis ou atos administrativos, foi instituído o denominado
controle de constitucionalidade.

O artigo 103, § 2º, da Constituição (BRASIL, 1988) prevê eficácia vinculativa das
decisões do Supremo Tribunal Federal, quando proferidas em ações de controle de
constitucionalidade. Significa que todos os julgados proferidos através desta ferramenta
passam a ter força obrigatória para toda a jurisdição brasileira.

Entretanto, a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade podem ser declaradas


por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de

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Constitucionalidade (ADC), ADO`s, que são as ADI`s por omissão, Arguição de


Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e a ADI Interventiva.

Na análise da atual jurisprudência, da doutrina e dos julgados emitidos pelos


tribunais temos observado mudanças no posicionamento jurídico, que passou a entender
que a posse do animal não dá ao homem o poder de maltratar ou dispor da vida do animal.

Julgados como o que ocorreu agora em 2021 na 7ª Câmara Civil do TJ/ PR que
proferiu uma decisão inédita ou o julgado na 17ª vara Cível de João Pessoa/PB, mostram

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essa mudança de posicionamento e o reconhecimento de que que os animais podem ser
sujeitos de uma ação, como titulares.

No processo da 7ª Câmara Civil do TJ/ PR estava sendo discutido o pagamento de


pensão mensal e indenização por dano moral pelos antigos donos para os cachorros Skype
e Rambo pelos maus-tratos que sofreram. Os desembargadores foram unânimes em
reconhecer o direito dos animais de serem autores de um processo, para que possam
defender seus direitos.

Em João Pessoa/PB, 22 gatos ingressaram como titulares em uma ação contra o


condomínio onde vivem, sendo assistidos por uma entidade de proteção animal. Segundo
a inicial, a administração do condomínio tenta expulsá-los e proíbe que sejam alimentados
nas áreas comuns. Os "autores" alegam que são animais sujeitos de direitos e, sendo assim,
possuem o direito de ir a juízo, ainda que mediante representação ou assistência.

No Recurso Extraordinário 153.531/SC, julgado em 03 de junho de 1997, o


Supremo Tribunal Federal analisou o caso da Farra do Boi, assegurando a
inconstitucionalidade dessa prática cultural, alegando que ela confrontava a Constituição,
pois ela expressamente rejeita a crueldade contra os animais.

Nas decisões das ADIs 2.514/SC e 1.856/RJ, em que se discutia a


constitucionalidade de legislações estaduais sobre a exposição e competição de aves
combatentes podemos encontrar o mesmo entendimento. Em 29 de junho de 2005 e 26
de maio de 2011, respectivamente, o STF, entendeu que a sujeição dos animais a
experiências de crueldade não se apresentava compatível com a Constituição Federal.

Quando a Lei do Estado do Ceará, Lei nº15.299/2013, foi editada objetivando


legalizar a Vaquejada, foi proposta uma ADI com a finalidade de declarara-la
inconstitucional, uma vez que o art. 225, §1°, VII da CF/88 expressamente garante proteção
aos animais:

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Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder


Público:
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VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas


que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade (BRASIL, CF/88,
online).

Como decisão que consolida a visão protecionista o STF julgou em 2016 a ADI
4983, ADI da vaquejada, que tratava do uso de animais em manifestações culturais,
reafirmando o que os animais não-humanos são portadores de garantias individuais e não
devem ser expostos aos maus tratos. Neste sentido foram as palavras do Min. Roberto
Barroso em seu voto:

Reconheço que a vaquejada é uma atividade esportiva e cultural com


importante repercussão econômica em muitos estados, sobretudo os
da região Nordeste do país. Não me é indiferente este fato e lastimo
sinceramente o impacto que minha posição produz sobre pessoas e
entidades dedicadas a essa atividade. No entanto, tal sentimento não
é superior ao que sentiria em permitir a continuação de uma prática
que submete animais a crueldade. Se os animais possuem algum
interesse incontestável, esse interesse é o de não sofrer. Embora
ainda não se reconheça a titularidade de direitos jurídicos aos
animais, como seres sencientes, têm eles pelo menos o direito moral
de não serem submetidos a crueldade. Mesmo que os animais ainda
sejam utilizados por nós em outras situações, o constituinte brasileiro
fez a inegável opção ética de reconhecer o seu interesse mais
primordial: o interesse de não sofrer quando esse sofrimento puder
ser evitado (STF. Plenário. ADI 4.983/CE, 2016).

Entretanto, essa tutela protecionista desencadeou reações e provocou uma


movimentação político-econômica contra essa decisão. A discussão se baseou na alegação
da existência de conflito de normas previstas na Constituição: os direitos culturais
(previstos nos artigos 215 e 216) e a vedação à crueldade aos animais (prevista no artigo
225), tornou-se então urgente uma pacificação sobre qual regra deve prevalecer.

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Como forma de agradar quem buscava uma forma de permanecer exercendo as


atividades envolvendo animais, foi proposta e aprovada a EC 96 que acrescentou o
parágrafo 7º ao artigo 225 da Constituição Federal, para determinar que as práticas
desportivas que utilizam animais não são consideradas cruéis. Seu texto passou então a
permitir manifestações culturais desde que registradas como patrimônio imaterial, porém
não houve regulamentação.

Art. 1º O art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido


do seguinte § 7º:

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"Art. 225. .....

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste


artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem
animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º
do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de
natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro,
devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-
estar dos animais envolvidos." (BRASIL, CF/88, online).

7 A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA COMPLEMENTAR Nº 96/2017

De acordo com a emenda, toda e qualquer outra prática que envolva o uso de
animais, desde que reconhecida como manifestação cultural e regulamentada, não será
considerada como infração ao disposto no inciso VII do parágrafo 1º do artigo 225 da CF.
Criou-se então uma abertura normativa para a crueldade, e para a ampliação pelo
legislador infraconstitucional do rol de manifestações que se enquadram na nova
regulamentação. Outro ponto inserido é a necessidade de regulamentação previa das
atividades culturais, evidenciando que se as atividades não possuam esta regulamentação
estariam constitucionalmente ilegais.

O direito ao meio ambiente equilibrado é um direito fundamental ligado ao direito


à vida e à saúde, de modo que a poluição de um rio, pode comprometer a saúde da
população. Por isso os direitos fundamentais devem ser previstos e garantidos, porque
todos eles acabam impactando o fundamento de sua existência, a dignidade da vida.

O direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é um direito fundamental com


status formal (art. 225, caput, CF) e material de cláusula pétrea, porque tem conteúdo
imprescindível à dignidade humana (BELCHIOR, 2011, p. 104) e dos próprios animais
(GORDILHO, 2018).

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A emenda ofende também o art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF, este artigo
prevê que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional inclinada
a abolir cláusula pétrea, entre elas, o direito fundamental de proteção aos animais.

Há ainda a discussão quanto ao Princípio da proibição do retrocesso ambiental


que também foi ferido pela referida emenda, pois parte da doutrina entende que, a
garantia a um meio ambiente ecologicamente equilibrado ser categorizado como direito
fundamental poderia se beneficiar desta teoria. O princípio é uma extensão do princípio
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da proibição do retrocesso social, segundo CANOTILHO (1998), o princípio da vedação do


retrocesso social, estendido a questão ambiental, pode ser resumido da seguinte forma:

[…] o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através


de medidas legislativas[...]deve considerar-se constitucionalmente
garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que,
sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios,
se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação
pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação
do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o
núcleo essencial já realizado. CANOTILHO (1998, p.320).

Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça começou a consolidar o princípio


da proibição do retrocesso ambiental no ordenamento jurídico, tomando-o como princípio
do Direito Ambiental:

[…] 11. O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições


urbanísticoambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico
perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral
que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é
decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação
da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao
princípio da não regressão (ou, por outra terminologia, princípio da
proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-
ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos
ou negados pela geração atual ou pelas seguintes [...]. (REsp
302.906/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,
publicado no DJe em 01.12.2010).

O artigo 60, parágrafo 4º, IV da Constituição Federal estabelece que os direitos


fundamentais não podem ser violados, por materializarem cláusulas pétreas, que não
podem ser alteradas, de modo que se percebe claramente que esta norma viola a vontade
do constituinte, que visa garantir aos indivíduos o direito fundamental ao meio ambiente
sadio e equilibrado.

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O controle de constitucionalidade está ligado a princípios superiores e a


Constituição Federal está protegida material e formalmente pelo seu artigo 64, parágrafo
5º, uma vez que ela poderia ser violada formalmente ou materialmente, se as alterações
infringirem alguma das suas cláusulas pétreas.

É evidente a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/2017, uma vez


que, no artigo 225, §1º, VII da CF, o constituinte demonstrou, o seu intuito de proibir atos
de crueldade contra os animais, preservando assim a integridade física dessas criaturas.

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Ao promulgar uma emenda complementar que institucionaliza a prática de atos
de maus-tratos contra os animais, o legislador infringiu materialmente a Constituição, de
modo que esta norma já nasce contaminada pelo vício da inconstitucionalidade.

8 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5.728/2017

A ADI 5.728 foi apresentada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal,
para questionar a Emenda Complementar nº 96, que considerou não cruéis as práticas
esportivas que utilizem animais, se consideradas manifestações culturais.

De acordo com a entidade, a emenda constitucional questionada foi aprovada para


contornar a declaração de inconstitucionalidade, proferida em outubro 2016 pelo Supremo
Tribunal Federal, que considerou inconstitucional a Lei que legalizava a prática da
vaquejada no Estado do Ceará. Alega tambem que a Emenda Complementar nº 96 violou
o direito ao meio ambiente equilibrado, pois não garantiu a proibição de submissão de
animais a tratamento cruel, previsto no art. 225, parágrafo 1º, inciso VII, da CF. Sustenta
que a norma ofende também o art. 60, § 4º, inciso IV, da CF, segundo o artigo, não será
objeto de deliberação a proposta de emenda disposta a abolir cláusulas pétreas, entre elas,
se encontra o direito fundamental de proteção aos animais.

O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, como autor da ADI, citou, como
precedentes, as decisões anteriores do STF que julgaram inconstitucionais práticas como
as brigas de galo e a vaquejada e pediu a concessão de liminar para suspender a eficácia
da emenda.

O parecer apresentado pela Procuradoria Geral da República, através da então


Procuradora Geral Raquel Dodge, foi no sentido de considerar inconstitucional a norma
questionada:

A Emenda Constitucional 96, de 6 de junho de 2017, ao não


considerar cruéis práticas desportivas que utilizem animais, desde
que sejam “manifestações culturais” (e este é conceito extremamente

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vago, no qual múltiplas práticas podem ser inseridas), colide na raiz


com as normas constitucionais de proteção ao ambiente e, em
particular, com as do art. 225, § 1 o, VI, que impõe ao poder público
a proteção da fauna e da flora e veda práticas que submetam animais
a crueldade (inciso VII).

(…)
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A norma promulgada pelo constituinte derivado contraria recente


decisão do Supremo Tribunal Federal que assentou a
inconstitucionalidade das vaquejadas e definiu que “a obrigação de
o Estado garantir todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não
prescinde da observância do disposto no inciso VII do art. 225 da
Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais
à crueldade”. A estreita associação entre a tutela constitucional do
ambiente (aí incluída, naturalmente, a proteção da fauna), os direitos
fundamentais e a dignidade humana foi bem percebida por
diferentes ministros nos votos que proferiram na ADI 4.983/CE.

(…)

A emenda constitucional ainda contém uma ilogicidade insuperável:


define como não cruéis as práticas desportivas se forem reconhecidas
como manifestação cultural. Ocorre que a crueldade intrínseca a
determinada atividade não desaparece pelo fato de uma norma
jurídica a rotular como “manifestação cultural”. A crueldade ali
permanecerá, qualquer que seja o tratamento jurídico a ela atribuído
e não há dúvida de que animais envolvidos em vaquejadas são
submetidos a condições degradantes e sistemáticas de lesões e
maus-tratos, as quais caracterizam tratamento cruel, que encontra
vedação no art. 225, § 1o, VII, da Constituição da República.

(…)

Não há dúvida de que práticas cruéis como vaquejadas, brigas de


galo, a farra do boi e atividades análogas colidem com a Constituição
da República, principalmente com o art. 225, § 1º, VII. (Procuradora
Geral Raquel Dodge, Procuradoria Geral da União, Relatório ADI
5728, online).

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Desta forma, a PGR opinou pelo conhecimento da ADI 5728 e pela procedência do
pedido formulado, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Emenda
Complementar nº96/2017. O parecer expõe que não é porque entendemos que
determinada prática é considerada manifestação cultural que ela deixa de caracterizar a
crueldade.

A ADI 5728 encontra-se em tramitação no STF, aguardando julgamento.

9 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5.772

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O procurador-geral da República Rodrigo Janot ajuizou, em setembro de 2017,
outra ADI, de nº 5772, para questionar a mesma Emenda Complementar nº96/2017; a
expressão “Vaquejada”, nos artigos 1º , 2º e 3º da Lei nº 13.364/2016, que eleva a prática
de vaquejada à condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro; e a expressão “as
vaquejadas”, no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 10.220/2001, que institui normas gerais
relativas à atividade de peão de rodeio e o equipara a atleta profissional.

Além da Emenda Constitucional, a ação também visa impugnar as leis federais que
regulamentam a prática da vaquejada. O PGR alega que, embora a Emenda figure a
possibilidade de tratar como manifestações culturais as atividades desportivas que utilizam
animais e as leis federais regulamentem as atividades que inevitavelmente sujeitem os
animais a tratamentos violentos e cruéis, ainda que sejam manifestações culturais, são
incompatíveis com a Constituição Federal, com os artigos. 1º, III (princípio da dignidade
humana), e 225, § 1º, VII (proteção da fauna contra crueldade), e com as jurisprudências do
STF.

A ADI 5772/2017 também está aguardando julgamento.

Como as ADIs questionam uma Emenda Constitucional só será considerada


inconstitucional pela Corte se atentar, de forma evidente, contra os limites definidos na
Constituição em seu art. 60 e seus parágrafos, caso contrário, a Emenda continuará surtindo
efeito.

O Ministro Luiz Fux em um acordão proferido em 2015, explicou que a superação


legislativa de precedentes da Suprema Corte é fruto dos diálogos institucionais que devem
ser travados entre os Poderes, assim para ele:

Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade


interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por
vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual,
desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais. Da

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análise dos retromencionados arestos e da postura institucional


adotada pelo STF em cada um deles, pode-se concluir, sem incorrer
em equívocos, que (I) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de
correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador
ordinário, (II) no caso de reversão jurisprudencial via emenda
constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas,
de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60 e seus §§, da
Constituição, e (III) no caso de reversão jurisprudencial por lei
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ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto


magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição
e de maior deferência às opções políticas do legislador. Destarte,
inexiste, descritivamente, qualquer supremacia judicial nesta acepção
mais forte. (Acordão, ADI 5105 - número único: 9958029-
82.2014.1.00.0000, Rel. Ministro Luiz Fux, publicado no DJe em
16.123.2016).

Em abril de 2018, o Ministro Marco Aurélio julgou prejudicada a ADI 5713, ajuizada
pela Procuradoria Geral da República contra a Lei nº 10.428/2015, do Estado da Paraíba,
que autoriza a prática da vaquejada. O Ministro relator julgou que a ação perdeu seu objeto
depois da promulgação da EC/96. De acordo com o ministro, com a edição da EC/96
alterou-se o tratamento constitucional conferido à vaquejada, ficando prejudicada a análise
desta ação. Mas destacou que o Tribunal ainda discutirá a matéria nas duas ADIs em
trâmite na Corte contra a emenda.

10 CONCLUSÃO

Desde a antiguidade os animais têm sido tratados de forma cruel pelo ser humano,
que estabeleceu uma relação predominância ante a natureza. Com base na suposta
irracionalidade animal, ao longo dos séculos esses seres têm sido utilizados para saciar as
vontades humanas, seja em pesquisas cientificas, meios de locomoção ou para o seu
simples entretenimento.

Apesar da evolução legislativa a visão antropocêntrica do animal como objeto e


propriedade do homem se mantem. A utilização dos animais para fins de entretenimento
em vaquejadas, rodeio, rinhas de galo e outras práticas, são vistas por muitos ainda como
cultura.

A legislação brasileira trata o animal como coisa, mas houve um avanço nas leis de
proteção, que apesar de não reconhecerem o animal como sujeito de direito, reconhecem
sua dignidade e sua senciência.

470
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Os posicionamentos dos tribunais mostram o reconhecimento da proteção dos


animais contra os maus tratos mesmo frente ao interesse humano, mas contrário a esses
entendimentos a aprovação da Emenda Complementar 96/2017 abriu uma brecha para a
realização dessas atividades culturais que promovem a crueldade animal.

A definição das práticas caracterizadas como Manifestações Culturais, apesar de


juridicamente afastar os maus-tratos, efetivamente apenas não pune o que está
determinado no artigo 225 da Constituição, os maus-tratos não deixam de ser realizados
e os animais não deixam de sofrer por ser reconhecido juridicamente estas práticas.

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Infringem o Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao
desobedecer a proibição constitucional de tratamento cruel aos animais, disposto no artigo
225, §1º, VII da Constituição, assim como o princípio do não retrocesso desse direito, ao
expressamente autorizar atividades que promovem os maus-tratos.

É possível observar que a Emenda Complementar nº96/17 é um risco para os


animais e está fadada a um iminente retrocesso constitucional. No tocante aos direitos de
3ª dimensão, que em um momento positiva um direito e em outro o limita, podemos
concluir que como os animais são seres sencientes com capacidade de sentir assim como
os seres humanos, submete-los a atividades cruéis, comprovadamente torturantes, com o
único intuito de promover eventos festivos macula o que a Constituição se propôs a
resguardar, sua proteção face à crueldade.

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Acesso em: 06 jun. 2022.
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APONTAMENTOS SOBRE O NEXO CAUSAL À LUZ DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE


CIVIL

FELIPE SAMMARCO MILENA:


Graduado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Mestrando em Direito
Civil Comparado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo

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(PUC-SP). Advogado em São Paulo.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o nexo de causalidade no âmbito da
responsabilidade civil, considerado por muitos doutrinadores, o pressuposto de maior
relevância deste instituto no direito brasileiro. Além disso, serão examinadas as principais
teorias que buscaram nortear a compreensão e a aferição da extensão do dever de
ressarcimento do prejuízo causado a terceiros, abarcando, adicionalmente, de forma
breve, os demais pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam, a conduta, o dano e
a culpa do agente.

Palavras-Chave: Direito Privado; Direito Civil; Responsabilidade Civil; Pressupostos; Nexo


Causal; Teorias.

Abstract: This article aims to analyze the causal link in the scope of civil liability,
considered by many scholars, the most important assumption of this institute in Brazilian
law. In addition, the main theories that sought to guide the understanding and
measurement of the extent of the duty to reimburse the damage caused to third parties
will be examined, covering, as well, briefly, the remaining assumptions of civil liability, as
is, the conduct, the damage and agent's fault.

Keywords: Private Right; Civil Right; Civil Liability; Assumptions; Causal Link; Theories.

1.INTRODUÇÃO

Desde o advento da responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro, o nexo de


causalidade ganhou maior relevância na aferição do dever de ressarcimento à vítima
ofendida, na medida em que a culpa deixou de ser elemento indispensável no filtro da
reparação civil.

Nesse sentido, o presente artigo tem por finalidade analisar, de forma crítica, as
principais teorias do nexo de causalidade, considerado, por muitos, o principal pressuposto
do instituto da responsabilidade civil no direito brasileiro.

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A doutrina é unânime ao afirmar que a conceituação da expressão “nexo causal” é


tarefa árdua ao operador do direito, levando em consideração sua complexidade e
implicações. Faz-se mister a utilização de rebuscada atividade de interpretação casuística
para sua determinação.

Nesse sentido, a impossibilidade probatória aparece como protagonista no que diz


respeito à dificuldade de delimitação da tutela do direito da vítima do dano.
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Além disso, há grande dificuldade na aplicação das teorias correlatas, cada uma com
suas especificidades. Isso porque, como será abordado, o limite de uma, muitas vezes,
encontra-se no começo de outra e vice-versa. Por esta razão, as teorias do nexo causal na
responsabilidade civil devem ser estudadas de forma pormenorizada.

Ressalta-se, por fim, que a formulação das teorias do nexo de causalidade teve por
objetivo nortear a interpretação e a aplicação do dever de indenizar em situações
específicas. Ela serve, de certo modo, para apontar o sujeito ao qual devem ser imputadas
as consequências do evento danoso, delimitar a extensão do dano ressarcido, bem como
verificar se um determinado acontecimento pode ser considerado causa do resultado
danoso.

2.BREVES ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Antes de adentrar ao estudo e análise das questões referentes ao nexo de


causalidade e suas teorias, faz-se necessário expor brevemente os demais pressupostos
para o surgimento da obrigação de ressarcimento.299

A partir da análise do artigo 186 do Código Civil300, são quatro os pressupostos da


responsabilidade civil, quais sejam: (i) conduta omissiva ou comissiva; (ii) culpa ou dolo do
agente - ou prevista em lei como ensejadora de responsabilidade objetiva; (ii) dano certo
e atual e (iii) nexo causal entre aquela conduta e este dano, que será exposto de forma
pormenorizada. 301

299 TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre Direito Civil, Volume II. 23°. Ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2014, p.431.
300 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
(BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Fonte: Planalto)
301 MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Anaconda Cultura, 1986,
p. 16. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (org.). Diálogos sobre Direito Civil.

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Portanto, somente será indenizada aquela pessoa que comprovar a existência, no


caso concreto, de um prejuízo ao seu patrimônio ou uma ofensa da personalidade humana,
uma conduta antijurídica ou tipificada em lei como geradora de responsabilidade civil
objetiva – que independa de culpa ou dolo – e um vínculo fático e jurídico entre conduta
e dano (nexo causal).

2.1 Conduta

Em termos gerais, conduta é qualquer atuação humana voluntária que se manifesta

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por meio de uma ação ou omissão e que produz consequências jurídicas.302

Para Sérgio Cavalieri, a ação consiste na “forma mais ordinária de manifestação da


conduta, porque, fora do domínio contratual, as pessoas estão obrigadas a abster-se da
prática de atos que possam lesar o seu semelhante, de sorte que a violação desse dever
geral de abstenção se obtém através de um fazer”303. Portanto, é um comportamento
positivo, como, por exemplo, a destruição de uma coisa alheia.

A omissão, por sua vez, do ponto de vista jurídico, é uma conduta (comissiva) que
depende de norma anterior que a impõe. Possui, destarte, natureza normativa, e não
naturalística, sendo considerada uma abstenção de uma atividade que poderia e deveria
realizar.304

Como explica João de Matos Antunes Varela, a omissão não pode gerar física ou
materialmente o dano sofrido pelo lesado, mas entende-se que é a causa do dano, sempre
que o dever jurídico especial de praticar um ato que, seguramente ou muito
provavelmente, teria impedido a consumação do dano.305

Para Antônio Menezes Cordeiro, há, fundamentalmente, duas situações nas quais a
omissão pode ser verificada.306 A primeira diz respeito a situações de negligência, nas
quais o bem protegido é atingido não por uma ação destinada a atingi-la, mas pela
inobservância de certos deveres de cautela que se impusessem. E a segunda situação

302 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 15ª. Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2021, p.
62.
303 Ibidem, p. 62.
304 Ibidem, p. 62.
305 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. 10ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 428.
306 CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil, v. VIII – Direito das Obrigações. 1ª. ed. Lisboa:
Almedina, 2014, p. 437.

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referem-se aos deveres de tráfego, ou seja, aqueles que protegem bens delicados ou que
impedem sobre quem tenha o controle de fontes de perigo.307

Em regra, apenas aquele que der causa ao dano responde pelo fato. O referido
preceito encontra fundamento na teoria da reparação, que, por sua vez, estabelece que
aquele que, ao infringir dever legal ou social, prejudica terceiro, deverá certamente
indenizar pelo prejuízo sofrido.
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Porém, o diploma civil brasileiro coloca a salvo a responsabilidade do fato de


terceiros, a quem o responsável está associado por um dever de sentinela. Conforme
consagrada pela lei e aperfeiçoada pela jurisprudência, essa espécie de responsabilidade
inspira-se em um anseio de segurança, objetivando uma maior proteção à vítima lesada.

Por fim, para que a conduta possa ensejar a reparação de dano a outrem, ela precisa
ter a característica da antijuridicidade, isto é, a ação ou omissão deve violar lei ou preceito
jurídico.

2.2 Culpa

No direito brasileiro, foram consagradas duas espécies de responsabilidade civil: a


objetiva e a subjetiva. Como o próprio nome diz, a culpa é pressuposto da responsabilidade
civil subjetiva, sendo bastante estudada e analisada para sua aferição, enquanto, na
responsabilidade civil objetiva, a culpa é irrelevante.

O Código Civil estabelece que aquele que, por negligência ou imprudência, viola
direito e causa danos a terceiros comete ato ilícito, sendo, portanto, responsável pelo seu
ressarcimento. A obrigação de indenizar existe não somente em razão de uma conduta
previamente almejada, mas, também, pela demonstração da existência de culpa pelo
infrator.

No mesmo desiderato, Fernando Noronha esclarece:

“Na responsabilidade civil subjetiva o fato gerador será sempre um


ato ilícito em sentido próprio, que (...) é uma conduta humana, uma
ação ou omissão determinada voluntariamente pela pessoa, ou que
esta pelo menos poderia controlar, se fosse mais cuidadosa. Na
responsabilidade civil objetiva o fato gerador poderá ser tanto uma
conduta humana como um fenômeno natural. A conduta humana,

307 Ibidem, p. 437.

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aqui visada, será aquela considerada independentemente de


qualquer ideia de culpa.”308

A culpa, para a doutrina clássica, pressupõe a violação de um dever originário de


conduta. Gustavo Tepedino pontifica que a culpa, na sua concepção clássica,

“é violação de dever preexistente, para cuja configuração se exige o


elemento subjetivo, identificado na manifestação volitiva livre e
consciente do agente, bem como na previsibilidade do resultado.

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Caracteriza-se, por conseguinte, a culpa, pela voluntariedade da
conduta, entendida como a consciência do comportamento. Pouco
importa a intenção do agente quanto à produção do resultado
danoso: haja ou não o propósito de causar prejuízo, há culpa lato
sensu se presentes, na violação do dever preexistente, a vontade de
agir e a previsibilidade do resultado”309

Isso posto, a culpa em sentido amplo compreende toda categoria de


comportamentos contrários ao Direito, seja intencional (dolo), seja tencional (culpa).310

Em ambos os casos, verifica-se a ação ou omissão voluntária do agente. No entanto,


no que tange ao dolo, a referida conduta já nasce ilícita, uma vez que a vontade se dirige
à concretização de um resultado almejado e antijurídico, enquanto que, na culpa, a ilicitude
aparece apenas no resultado.311

Esclarece-se que, se a atuação ofensiva do agente é procurada e voluntariamente


alcançada, há dolo. A voluntariedade da ação ou omissão compreende tanto o
conhecimento do agente sobre a consequência danosa de sua conduta quanto também
de seu caráter antijurídico.312

Por outro lado, se o prejuízo da vítima decorre de um comportamento negligente


ou imprudente do autor do dano, fala-se em culpa stricto sensu.

308 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª. ed. São Paulo: E-book. Biblioteca eletrônica Saraiva,
2013, p. 187.
309 TERRA, A. de M.; GUEDES, G. S. da C.; TEPEDINO, G. Responsabilidade Civil - Fundamentos do Direito
Civil. V. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 120.
310 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 68
311 Ibidem, p. 68.
312 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade Civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: E-book. Biblioteca eletrônica Forense,
2021, p. 155.

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Há, portanto, doutrinadores que entendem desnecessária a diferenciação entre o


dolo e a culpa stricto sensu no âmbito da responsabilidade civil, uma vez que o diploma
civil brasileiro não distingue ambas as espécies. Uma conduta antijurídica – dolosa ou
culposa – ensejará a obrigação de ressarcimento do prejuízo, respondendo da mesma
forma o infrator pelas consequências de suas condutas. Diferentemente do sistema penal,
cuja indenização possui caráter punitivo, na seara do direito civil, a indenização possui
caráter reparatório.
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A indenização, portanto, é mensurada por meio da extensão do dano, e não pelo


grau de culpa. Ainda que seja constatado que o agente agiu com culpa levíssima, será
obrigado a manter o terceiro indene.

Da mesma forma, a doutrina tradicional, conforme já mencionado, preocupa-se em


classificar a culpa.

Há, pois, três formas de culpa: negligência, imprudência e imperícia.

A negligência caracteriza-se como sendo a inobservância de normas que


determinam agir com atenção, cuidado e com discernimento.313

A imprudência, no que lhe respeita, relaciona-se com um descaso pela diligência.


Revela-se no comportamento inconsiderado, na insensatez e no desprezo das cautelas
necessárias em certos momentos.314

A imperícia, em suma, deriva do descumprimento do dever de agir com perícia. Em


outros termos, é o dever do advogado de conhecer sua profissão e atuar conforme o
esperado de um profissional do direito. Associas à culpa profissional. Dessume-se que o
dever de perícia só será exigível na medida em que o agente tiver, em razão de qualidade
que ostenta, profissional ou técnica, conhecimento específico com o qual se orienta sua
atuação, e cuja ausência teve por consequência o dano.315

A culpa stricto sensu possui conceito único, qual seja a violação de um dever de
diligência. No entanto, a conduta culposa pode se exteriorizar de diversas maneiras. Para
Sérgio Cavalieri Filho, a graduação da culpa em diferentes modalidades consiste em

313 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: E-book. Biblioteca
eletrônica Forense, 2009, p. 191.
314 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. 8ª. ed. Rio de Janeiro: E-book. Biblioteca eletrônica
Forense, 2019, p.5.
315 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade Civil. Cit., p. 156.

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ângulos diversos de exame do mesmo fenômeno, no que diz respeito ao grau de


previsibilidade e a falta de cuidado por porte do responsável pelo prejuízo.316

Ainda, são três as espécies de culpa nas quais a doutrina se atenta. A primeira é a
culpa grave. que mais se aproxima ao dolo. Nela, o agente está próximo a procurar o
resultado ou tem total consciência de que sua conduta implicaria em tal fato, mas acredita
sinceramente que o evento não ocorrerá. A culpa leve, por sua vez. é a falta evitável com
atenção ordinária. Por fim, a culpa levíssima consiste na falta evitável com atenção
extraordinária, com especial habilidade ou conhecimento singular.

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2.3 Dano

O dano é outro requisito essencial para a configuração da responsabilidade civil.


Ainda que haja violação a um dever jurídico com dolo ou culpa por parte do agente
causador do dano, a inexistência de um prejuízo certo e atual é suficiente para eximir o
infrator do dever de indenizar.

A esse respeito Sérgio Cavalieri demonstra:

“O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil.


Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se
não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas
não pode haver responsabilidade sem dano. Na responsabilidade
objetiva, qualquer que seja a modalidade do risco que lhe sirva de
fundamento — risco profissional, risco proveito, risco criado etc. —,
o dano constitui o seu elemento preponderante. Tanto é assim que,
sem dano, não haverá o que reparar, ainda que a conduta tenha
sido culposa ou até dolosa”317.

Para Fernando Noronha, o dano “é o prejuízo, de natureza individual ou coletiva,


econômico ou não econômico, resultante de ato ou fato antijurídico que viole qualquer
valor inerente à pessoa humana, ou atinja coisa do mundo externo que seja juridicamente
tutelada.”318

316 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 68.


317 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 70.
318 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. Cit., p. 188.

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A causação do dano dá lugar ao nascimento de uma obrigação autônoma, o que


se verifica “mesmo no terreno da culpa contratual, de modo que a consequência do
inadimplemento, é fazer nascer a obrigação de satisfazer o dano”319

A noção de dano, ao longo de seu desenvolvimento, sempre esteve restrita à ideia


de diminuição do patrimônio o que, de certa forma, delineava uma noção meramente
naturalista, como defendido por Polacco (apud Agostinho Alvim): “Dano é a efetiva
diminuição do patrimônio e consiste na diferença entre o valor atual do patrimônio do
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credor e aquele que teria se a obrigação fora exatamente cumprida.”320

Pela Teoria da Diferença, como exposto por Agostinho Alvim, o dano resulta da
diferença entre a situação do bem antes do evento danoso e aquela que se verifica após
a sua ocorrência321. As críticas nessa teoria residiam no fato de que o dano deveria ser
amplamente considerado, ou seja, levando em consideração tanto os prejuízos
patrimoniais, quanto os não patrimoniais, aqui incluídos os bens coletivos, ou seja, que
não pertençam a pessoas determinadas, mas à coletividade.

Em resposta, com o advento da revolução industrial, a Teoria do Interesse surgiu


como complementação da Teoria da Diferença, o que possibilitou uma visão normativa
do dano. Assim, o dano passou a ser considerado qualquer lesão a um interesse jurídico,
sendo considerado como qualquer diminuição ou subtração do patrimônio bem como de
direitos não patrimoniais.322 Houve, pois, a ampliação dos danos suscetíveis de
reparação, ou seja, na extensão da obrigação de indenizar danos extrapatrimoniais, ou
morais, e na tutela dos danos transindividuais.323

De acordo com a análise de nossa legislação, o dano pressupõe a lesão de


qualquer bem jurídico, podendo ser material (violação na esfera patrimonial) e/ou moral
(lesão que não produz efeito patrimonial). O dano material, como regra geral (artigo 402

319 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das Obrigações e suas Consequencias, 3° ed, São Paulo. Saraiva
1980, p. 169-170.
320 Ibidem, p. 170.
321 TERRA, A. de M.; GUEDES, G. S. da C.; TEPEDINO, G. Responsabilidade Civil Fundamentos do Direito
Civil. Cit., p. 29.
322 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 167-169.
323 NORONHA, Fernando. Desenvolvimento contemporâneos da responsabilidade civil. Revista Sequência
– PPGD UFSC. V. 19, n° 37 (1988), p. 33 (Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15533/14089)

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do Código Civil324), engloba os danos emergentes, ou seja, aquilo que a vítima


efetivamente perdeu, e os lucros cessantes, isto é, aquilo que a vítima deixou de ganhar.

2. O NEXO CAUSAL DIANTE DA EVOLUÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE


CIVIL

É cediço que o nexo de causalidade é pressuposto indispensável na


responsabilidade civil, seja a responsabilidade objetiva, seja a responsabilidade subjetiva.
No entanto, é recente a importância dada a ele pelos operadores do Direito.

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Anteriormente, apenas aqueles que praticavam voluntariamente um ato contra o
Direito era responsabilizado325. O ramo do direito privado estava consubstanciado nos
pilares da Modernidade, com raízes na revolução francesa de princípios liberais e racionais.

A obrigação de ressarcimento pelo prejuízo ocasionado tinha como principal


justificativa a culpa do infrator. Objetiva-se, destarte, a condenação do agente da conduta
danosa. Esse modelo acabava por enaltecer a proteção do patrimônio privado, facultando
a sua agressão apenas nas hipóteses em que a culpa se revelava evidente, isto é, que a
sua prova não se apresentava tarefa impossível ou excessivamente difícil.326

Com o advento da revolução industrial e posteriormente o surgimento do Estado


social, a culpa perde protagonismo na seara da responsabilidade civil, na medida em que
o senso de comunidade passou a extrapolar o pensamento individualista. Assim, almejava
não mais a condenação do indivíduo que promoveu o dano, mas sim a promoção da
tutela do direito da vítima do dano.

A tutela efetiva do direito da vítima, com o intuito de ressarcir todos os danos


sofridos, independentemente de existir ou não culpa de terceiros, passou a ser o foco da
responsabilidade civil. Em outras palavras, a responsabilidade civil passou a ser entendida

324 “Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.”
(BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Fonte: Planalto)
325 NORONHA, Fernando. Desenvolvimento contemporâneos da responsabilidade civil. Revista Sequência
– PPGD UFSC. V. 19, n° 37 (1988), p. 33 (Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15533/14089)
326 TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre Direito Civil. Cit., p.433.

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não mais no sentido de punição à conduta do ofensor, mas a plena reparação da vítima
acometida por um prejuízo. 327

A Constituição Federal de 1988, ao garantir a proteção da dignidade da pessoa


humana como direito fundamental, alterou, de forma radical, a forma pela qual a
responsabilidade civil deve ser interpretada. Dessume-se, outrossim, que a reparação de
qualquer dano deve sempre ocorrer para que o referido direito possa ser garantido. No
art. 37, §6°328, ainda, o constituinte disciplinou expressamente a responsabilidade
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objetiva das pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado e prestadoras de


serviços públicos.

O Código Civil de 2002 ao estabelecer expressamente o dever de indenizar


independentemente de culpa ou dolo os danos causados por legitima defesa, estado de
necessidade e exercício regular de direito, bem como para os prejuízos decorrentes do
arremesso ou queda de objeto em um prédio ou construção manteve a tendência
objetivadora, como já estava previsto no Código Civil de 1916.

Ampliou a responsabilidade pelo fato do produto para relações além daquelas


caracterizadas como de consumo. Inclusive, estabeleceu, no parágrafo único do art. 927,
que todas as demais hipóteses legais de responsabilidade objetiva permanecem válidas,
bem como criou para o nosso ordenamento uma cláusula geral pela qual todos os danos
decorrentes de atividades naturalmente arriscadas praticadas com habitualidade devem
ser indenizados independentemente de culpa ou dolo de seu titular. 329

Consequentemente, o nexo de causalidade ganhou grande importância no que diz


respeito à existência, e, consequentemente, à limitação do dever de indenizar.

3.DO CONCEITO DO NEXO DE CAUSALIDADE

Como visto, pode-se dizer que o principal requisito para configuração da


responsabilidade civil é a existência de nexo causal entre um fato e o dano por ele
produzido. Sem esse pressuposto, por conseguinte, não há que se dizer em

327 CARPES, Artur Thompsen. A prova do nexo de causalidade na responsabilidade civil (Coleção O Novo
Processo Civil. Kindle),
328 “Art. 37, § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
(BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Fonte: Planalto).
329 TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre Direito Civil. Cit., p. 430.

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responsabilidade civil. O dever de reparar um dano depende, assim, da existência de


relação causal entre certa conduta e o resultado danoso.330

Savatier (apud Agostinho Alvim) elucida que “um dano só produz


responsabilidade, quando ele tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente
sancionado”331. Isto é, um dano somente pode gerar responsabilidade ao agente se
delimitado um liame e a conduta e o prejuízo.

Diferentemente do que ocorre com a culpa ou dolo, a relação causal jamais pode

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ser desconsiderada como pressuposto da responsabilidade civil, “sob pena de esta se
transformar em um jogo de azar, numa cega loteria”332.

Para Marco Fábio Morsello, depreende-se do conceito, pois, que o nexo causal: “é o
vínculo, a relação de causa e efeito, entre a conduta e o resultado, o que permite inferir
gênese do conceito no âmbito das ciências naturais, de modo a analisar se a ação ou
omissão foi ou não a causa do dano”333

Judith Martins-Costa assevera que, pelo nexo causal, é estabelecido se uma


determinada ação pode ser considerada causa de determinado resultado.334

Esse pressuposto constitui a relação de conexão entre dois eventos, sendo o


primeiro um antecedente (causa), e o segundo um posterior (efeito).335 Mister enfatizar
que não é mera associação entre eles. Deve haver uma relação de sucessão entre a causa
e o efeito.336.

330 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 4ª. ed. São Paulo; Atlas, 2012,
p.51.
331 ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 342 apud SAVATIER.
Traité de la Responsabilité Civile em Droit Français, vol. II,, n° 456.
332 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 132.
333 MORSELLO, Marco Fábio. O nexo causal e suas distintas teorias: apreciações críticas. Revista do
Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 19, janeiro de 2007, pp. 211-218.
334 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 132.
335 CARPES, Artur Thompsen. A prova do nexo de causalidade na responsabilidade civil (Coleção O Novo
Processo Civil. Kindle), posição 447.
336 Ibidem, posição 447.

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Além disso, Gustavo Tepedino traz as duas funções do nexo causal. Por um ângulo,
determina o responsável pelo prejuízo causado a outrem. Por outro, é protagonista na
verificação da extensão do dano a indenizar.337

O conceito de nexo causal não é, assim, exclusivamente jurídico, uma vez que
decorre, em princípio, das leis naturais. Possui natureza epistemológica. A relação causal
estabelece o vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo
concluir, com base nas leis naturais, se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do
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dano. Irá determinar se o resultado surge como consequência natural da voluntária


conduta do agente.338

Pontes de Miranda esclarece que “o nexo de causalidade deve ser verificado entre
o fato e dano, e não sempre entre o devedor e o dano, porque o ato ilícito não é a única
fonte dos deveres de indenizar.”339

Para Agostinho Alvim, “a simplicidade do conceito, segundo o qual o dano só é


indenizável quando seja possível atribuí-lo ao inadimplemento do avençado, contrasta,
singularmente, com as dificuldades que a teoria do nexo causal oferece nas suas
diferentes aplicações.”340

No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira enxerga a causalidade como o


mais delicado dos elementos da responsabilidade e o mais difícil de ser determinado.341
Em matéria de responsabilidade civil, o tema da causalidade é capital.342

Há, como descortina Silvio Venosa, duas questões problemáticas a serem


consideradas na constatação do nexo de causalidade. Elas residem na dificuldade de prova
e na identificação do fato que constitui a verdadeira causa do dano.343

A última ocorre quando há diversas circunstâncias que concorrem no mesmo


evento, o que a doutrina denomina de causalidade múltipla ou concausas. Nessa situação,

337 TERRA, A. de M.; GUEDES, G. S. da C.; TEPEDINO, G. Responsabilidade Civil Fundamentos do Direito
Civil. Cit., p. 84.
338 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 47.
339 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. São Paulo: Ed. RT,
3° ed., 1984.
340 ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 342.
341 PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro; E-
book. Biblioteca eletrônica Forense, 2022, p. 76.
342 ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 342.
343 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Civil – Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 21ª. ed. São Paulo;
E-book. Biblioteca eletrônica Atlas, 2021, p. 403.

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faz-se necessário restringir, com precisão, qual delas é considerada a causa real do
resultado danoso.

Na tentativa de sanar o sujeito ao qual devem ser imputadas as consequências de


evento danoso, bem como de delimitar a extensão do dano a ser ressarcido, a doutrina
criou teorias sobre o nexo de causalidade. Elas, de certa forma, buscam facilitar e nortear
a compreensão e a aferição da extensão do dever de indenização do agente causador de
dano.

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4.DAS TEORIAS DO NEXO DE CAUSALIDADE

São várias as teorias que buscaram solucionar a problemática do nexo de


causalidade na seara da responsabilidade civil. Faz-se útil, pois, trazer à tona as principais
delas: (i) teoria da equivalência das condições, (ii) teoria da causalidade adequada, (iii)
teoria do dano direito e imediato.

Sublinha-se, no entanto, que nenhuma das teorias oferece soluções certas e precisas
para os problemas práticos, uma vez que buscam meramente nortear o raciocínio dos
profissionais do direito na busca de uma melhor solução. É esperado dos julgadores,
portanto, o balizamento de suas decisões nos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade.

De certo, o nexo causal deverá ser analisado e determinado caso a caso, com base
nas provas produzidas pelo demandante e avaliação de todos os aspectos que a espécie
oferece.

Rui Stoco, no mesmo sentido, pondera:

“Enfim, independentemente da teoria que se adote, como a questão


só se apresenta ao juiz, caberá a este, na análise do caso concreto,
sopesar as provas, interpretá-las como conjunto e estabelecer se
houve violação do direito alheio, cujo resultado seja danoso, e se
existe um nexo causal entre esse comportamento do agente e o dano
verificado”344

Seja como for, e tendo em conta os limites da presente abordagem, convém


examinar criticamente as principais teorias jurídicas, cuja função é fornecer critérios
interpretativos.

344 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 174.

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5.1 Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais

A teoria da equivalência dos antecedentes causais, também conhecida por teoria da


equivalência das condições, teoria objetiva da causalidade ou mesmo teoria da conditio
sine qua non, foi desenvolvida em meados do século XIX pelo criminalista alemão
Maximiliano von Buri, por meio da obra “A respeito da causalidade e da responsabilidade
dela decorrente”, publicada em 1860.
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A obra ora citada, em seu princípio, objetivava esclarecer, na seara penal, a razão
pelo qual o cúmplice poderia ser considerado responsável pelo crime cometido pelo autor.
No entanto, também foi utilizada como fundamento para a averiguação da extensão do
dano na responsabilidade civil.

Para seus defensores, todas as condições de um dano se equivalem. Os


antecedentes que, de certa forma, concorreriam para o evento danoso, deveriam ser
considerados.345 Nas palavras de Agostinho Alvim, a teoria da equivalência das condições
aceita qualquer das causas como eficiente, sendo que a sua equivalência resulta de que,
suprimida uma delas, o dano não se verificaria.346

Todas condições indispensáveis para o evento seriam causas; mesmo uma qualquer
causa da causa seria sempre causa do resultado: “causa causae causa causati”

Para Judith Martins-Costa, quaisquer condições que compõem a totalidade dos


antecedentes é causa do resultado, se sua inocorrência impedir a realização do evento.347

Como aponta Stuart Mill, é arbitrária e destituída de base cientifica qualquer


distinção entre causa e condição. Apesar de serem muitas as condições determinantes de
um fenômeno, nenhuma delas merece receber a preferência de causa.348

A apreciação das causas que resultam no dano opera-se por meio de uma valoração
“após o fato” em dois sentidos (i) a conduta é causa do evento apenas se, na ausência
desta, o evento não se verificar (sentido positivo). e (ii) a conduta não é causa do evento
quando, mesmo na ausência desta, o evento teria igualmente ocorrido (sentido
negativo).349

345 PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. Cit., p. 76
346 ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 345.
347 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 199-200.
348 COSTA JÚNIOR, Paulo José. Nexo Causal. Siciliano Jurídico. 3° ed. São Paulo, 2003, p. 102.
349 CARPES, Artur Thompsen. A prova do nexo de causalidade na responsabilidade civil (Coleção O Novo
Processo Civil. Kindle), posição 608.

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De acordo com Fernando Noronha, o art. 403 do Código Civil350 afastou


definitivamente essa teoria, uma vez que, da análise do referido dispositivo, mesmo
quando tiver havido uma atuação dolosa, não são indenizáveis todos os prejuízos efetivos,
nem todos os lucros cessantes, mas apenas aqueles que possam ser considerados “efeito
direto e imediato” do inadimplemento da obrigação.351

Dessume-se que a teoria da conditio sine qua non, no âmbito da responsabilidade


objetiva, acaba por ampliar de forma ilimitada o dever de reparar. Isso porque considera
inúmeros agentes e eventos como capazes de produzir prejuízos a vítima. A adoção dessa

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teoria levaria longe demais a obrigação de reparação.

No mesmo sentido, Sérgio Cavalieri Filho anota que essa teoria é criticada pelo
seguinte motivo:

“conduzir a uma exasperação da causalidade e a uma regressão


infinita do nexo causal. Por ela, teria que indenizar a vítima de
atropelamento não quem dirigia o veículo com imprudência, mas
também quem lhe vendeu o automóvel, quem o fabricou, quem
forneceu a matéria prima e assim por diante.”352

Judith Martins-Costa, no mesmo diapasão, sublinha que as críticas se referem à


excessiva abrangência da teoria da sine qua non, já que estabelece uma variedade de
responsáveis “mesmo com as precauções tomadas para distinguir “ocasião” de
“condição””.353

Anderson Schreiber utiliza-se do exemplo da conduta do vendedor de uma bola de


golfe, que transfere o objeto para um jogador o qual acerta um passante e falece
imediatamente. Nessa situação, no campo penal, o vendedor não seria responsabilizado
tendo em vista o princípio da tipicidade, fundamentado na máxima nullum crimen sine

350 “Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os
prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei
processual.”
(BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Fonte: Planalto)
351 NORONHA, Fernando. O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil. Revista dos Tribunais | vol.
816/2003
352 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 62.
352 Ibidem, p.85
353 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 201-202.

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lege (não existe crime sem que haja lei que o defina).354 No entanto, na esfera civil, caso
fosse utilizada a teoria da equivalência das condições para averiguar a existência de liame
causal, o direito seria palco de inúmeras injustiças.355

Assim, essa teoria poderia causar resultados desastrosos, uma vez que o direito civil
se guia por cláusulas gerais, sem a amarra de um princípio da tipicidade.

Na esfera da responsabilidade civil subjetiva, por sua vez, o prejuízo de adoção da


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teoria não seria grande, ao passo que possui a culpa como filtro para a sua constatação. A
partir do momento que fosse constatada a culpa, somente seriam indenizáveis os danos
que teriam ocorrido com o fato culposo.

5.2 Teoria da Causalidade Adequada

De acordo com a teoria da causalidade adequada, elaborada na Alemanha por


Ludwig von Bar e, posteriormente, aprimorada por von Kries, considera-se causadora do
dano a condição por si só é apta a produzi-lo. Causa, portanto, é o antecedente não apenas
necessário, mas também, adequado para produzir o resultado danoso.

Assim, caso forem inúmeras as condições que concorreram para o acontecimento


de determinado resultado, nem todas poderão ser consideradas causas, mas somente
aquela que for a mais adequada à produção do dano.

Conclui-se, portanto, que, para os defensores dessa teoria, diferentemente do que


ocorre na teoria da conditio sine qua non, “causa” e “condição” possuem conceitos
distintos. A causa, como já exposto, é aquela que foi, após um juízo de probabilidade,
considerada a mais adequada para a produção do evento danoso, enquanto as demais
condições seriam circunstâncias não causais.

Possui como objetivo identificar, na presença de diversas condições, qual foi a


potencialmente apta a produzir os efeitos danosos, independentemente das demais
circunstâncias que, no caso concreto, operam em favor de determinado resultado.356

Caio Mario da Silva Pereira traz em uma de suas obras o resumo da teoria:

“o problema da relação de causalidade é uma questão científica de


probabilidade. Dentre os antecedentes do dano, há que destacar
aquele que está em condições de necessariamente tê-lo produzido.

354 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. Cit., p.53.


355 Ibidem, p.53.
356 CARPES, Artur Thompsen. A prova do nexo de causalidade na responsabilidade civil (Coleção O Novo
Processo Civil. Kindle)

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Praticamente, em toda ação de indenização, o juiz tem de eliminar


fatos menos relevantes, que possam figurar entre os antecedentes
do dano. São aqueles que seriam indiferentes à sua efetivação. O
critério eliminatório consiste em estabelecer que, mesmo na sua
ausência, o prejuízo ocorreria. Após este processo de expurgo, resta
algum que, “no curso normal das coisas”, provoca um dano dessa
natureza.”357

Sergio Cavalieri Filho destaca que:

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“Na causalidade adequada, portanto, a palavra-chave é adequação.
Para ser considerado causa, o antecedente terá que ser não só
necessário, mas também adequado à produção do resultado. E o
problema reside justamente neste ponto. Como estabelecer, entre
várias condições, qual foi a mais adequada? Não há uma regra
teórica, nenhuma fórmula hipotética para resolver o problema, de
sorte que a solução terá que ser encontrada em cada caso,
atentando-se para a realidade fática, com bom senso e ponderação.
Causa adequada será aquela que, de acordo com o curso normal das
coisas e a experiência comum da vida, se revelar a mais idônea para
gerar o evento.” 358

É necessário, para a averiguação da causa, a realização do juízo de probabilidade,


isto é, um retorno à situação concreta para que, a partir dessa situação, seja examinado,
em abstrato, se a ação estava dotada de idoneidade a provocar o evento danoso. Esse
exercício é denominado de “prognose póstuma” ou prognose retrospectiva.

Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves,

“a causalidade adequada, somente considera como causadora do


dano a condição por si só apta a produzi-lo. Ocorrendo certo dano,
temos de concluir que o fato que o originou era capaz de lhe dar
causa. Se tal relação de causa e efeito existe sempre em casos dessa
natureza, diz-se que a causa era adequada a produzir o efeito. Se

357 PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. Cit., p. 133.
358 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Cit., p. 86.

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existir no caso em apreciação somente por força de uma


circunstância acidental, diz-se que a causa não era adequada.”359

Há, ainda, duas faces da teoria: a positiva e a negativa. Para os defensores da


formulação positiva, “um fato deve ser considerado causa adequada de um evento
posterior quando favoreça a produção deste” 360.

Para os partidários da teoria negativa, “causa adequada é a que, segundo as regras


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da experiência, não é indiferente ao surgir do dano. Em vez de se caracterizar a adequação,


diz-se o que é causa inadequada”361.

A formulação negativa, segundo Fernando Noronha, é preferível. Ela deixa clara a


razão da subsistência do nexo causal mesmo quando outros fatos tenham contribuído
para o evento danoso, dilata o âmbito da causalidade e facilita a prova do nexo de
causalidade (provada a condicionalidade, fica presumida a adequação).362

No entanto, a teoria da causalidade adequada foi igualmente criticada em virtude


da discricionariedade das avaliações de normalidade e probabilidade das circunstâncias
relevantes para o acontecimento de um dano.

Há uma associação entre a teoria da causalidade adequada e a teoria da conditio


sine qua non no que se refere à constatação da real causa do dano. Ambas as teorias
gerariam resultados exagerados e imprecisos, estabelecendo nexo de causalidade entre
todas as possíveis causas de um evento danoso e os resultados efetivamente produzidos
– por se equivalerem ou por serem abstratamente adequadas a produzi-los – ainda que
todo e qualquer resultado danoso seja sempre, e necessariamente, produzido por uma
causa imediata.

Argumenta-se que o caráter “adequado” da causalidade depende do grau de


probabilidade do dano, sendo esta incerta.

Não há, portanto, uma regra determinada para se estabelecer qual a causa mais
adequada. Faz necessário a análise casuística para se chegar na melhor solução possível,
com base no bom senso e na ponderação.

5.3 Teoria do Dano Direito e Imediato

359 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 21° ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022, p. 581
360 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. Cit., p. 236.
361 Ibidem, p. 236-237.
362 Ibidem, p. 236-237.

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A teoria do dano direito e imediato, também denominada como teoria da


causalidade direta e imediata ou teoria da interrupção do nexo causal, considera como
causa jurídica apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem a interferência de
outra condição sucessiva. Pode-se considerar que essa teoria consiste em uma combinação
equilibrada entre a teoria da conditio sine qua non e a teoria da causalidade adequada.363

A interrupção do nexo causal ocorreria toda vez que, devendo impor-se um


determinado resultado como normal consequência do desenrolar de certos
acontecimentos, tal não se verificasse pelo surgimento de uma circunstância outra que,

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com anterioridade, fosse aquela que acabasse por responder por esse mesmo esperado
resultado. 364

Só se reconhece o nexo de causalidade a partir da constatação que o dano é efeito


necessário de determinado evento, sendo que as expressões “direto” e “imediato” não
dizem respeito a qualquer distância temporal entre os eventos, mas da sua respectiva
proximidade lógica.365

De acordo com Agostinho Alvim, a teoria requer que haja, entre a inexecução da
obrigação e o dano, uma relação de causa e efeito direta e imediata. “É indenizável todo
dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária,
por não existir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei quer o dano seja o efeito
direito e imediato da inexecução”366

Os lucros cessantes (dano remoto), nessa situação, não seriam indenizáveis, já que
se mostram como consequência indireta do inadimplemento. Por outro lado, Agostinho
Alvim defende que “os danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra,
não são indenizáveis, porque deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de
concausas. Suposto não existam estas, aqueles danos são indenizáveis.”367

363 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. Cit., p. 304


364 Ibidem, p. 304.
365 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 337.
366 Ibidem, p. 339.
367 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das Obrigações e suas Consequências. Cit., p. 351.

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No Brasil, o Código Civil brasileiro de 1916 acolheu expressamente a teoria do dano


direito e imediato, o que, de certa forma, foi ratificada pelo Código Civil de 2002, em seu
art. 403”.368

O preceito “efeito direito e imediato” possui origem no direito francês, formulado


pelo magistério de Pothier. Com a finalidade de demonstrar sua teoria, utilizou-se do
exemplo do negociante que vendeu uma vaca, que sabia sofrer de doença contagiosa. Essa
vaca morreu, mas antes contagiou o restante do gado do comprador, que também veio a
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falecer em sua totalidade. O comprador, ficando sem animais para lavrar e adubar as terras,
não plantou, por isso não colheu. Ficando impossibilitado de pagar as suas dívidas, viu a
fazenda ser executada e vendida judicialmente.369

Com essa situação, Pothier quis demonstrar que o negociante não era obrigado a
reparar os danos que fossem “consequência distante e indireta do dolo” com que tinha
procedido.370

Essa teoria, no entanto, recebeu críticas dos doutrinadores no que tange sua
austeridade. A sua rigidez teria o condão de gerar injustiças no que diz respeito àquelas
situações em que existem danos indiretos que resultam do comportamento do agente, os
chamados “danos por ricochete”.

Em resposta a possível insegurança quanto aos danos indiretos e remotos,


desenvolveu-se a subteoria da necessariedade causal, na qual traz um diferente sentido às
expressões “dano direto” e “dano imediato”. Elas deveriam ser interpretadas como
indicativas de uma relação de necessariedade, e não de simples proximidade, entre causa
e efeito.

No mesmo sentido, “para fazer frente a essa questão a doutrina postula uma
interpretação que distinga entre “causa direta” e “causa mais próxima”. A causa direta e
imediata nem sempre seria a mais próxima do dano, mas, sim, aquela que necessariamente
o ensejou.”371

368 “Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os
prejuízos efetivos e os livros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei
processual”
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Fonte: Planalto
369 NORONHA, Fernando. O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil. Revista dos Tribunais | vol.
816/2003
370 Idem ref. 54
371 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Cit., p. 214.

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Com isso, verifica-se a existência de danos indiretos e passíveis de indenização,


desde que sejam consequências necessárias da conduta tomada como causa.

Para Judith, não obstante o prestígio que a teoria do dano direto e imediato
alcançou no direito brasileiro, o certo é que, examinadas as suas bases, verifica-se que esta
constitui mera variante da teoria da causalidade adequada. Reconhecer que determinado
evento foi mais determinante para provocar o resultado (dano), nada mais é do reconhecer
ter sido este o mais adequado para que o resultado tivesse ocorrido.372

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5.CONCLUSÃO

Em matéria de responsabilidade civil, considera-se o nexo causal o pressuposto


primordial para a averiguação do dever de reparação dos prejuízos causados a terceiros.

A culpa, com o advento da responsabilidade civil objetiva, deixou de ser o elemento


essencial. Sublinha-se que, mesmo para os casos de responsabilidade civil subjetiva, o grau
de culpa não consiste em fator determinante para a extensão da reparação do dano. O
protagonismo, que antes imperava na culpa do agente, pois, foi transferido ao nexo de
causalidade.

Com o nexo causal, é possível determinar quem será o responsável pela reparação
dos danos e quais os danos que serão reparados. Isso é, o referido pressuposto possui
tanto a função de imputar a alguém que agiu de tal forma a produzir um dano, a obrigação
de indenizar, quanto a função de estabelecer a extensão do dano para sua reparação.

Com efeito, a doutrina elaborou diversas teorias para facilitar e nortear a solução
da problematização do nexo causal, quais sejam: (i) teoria da equivalência das condições,
(ii) teoria da causalidade adequada, (iii) teoria do dano direito e imediato.

Todas as três teorias sofreram críticas pelos doutrinadores. A primeira por


estabelecer, de forma ilimitada, o dever de reparar daquele que causou dano a outrem. A
segunda por determinar o nexo de causalidade entre todas as possíveis causas de um
evento danoso e os resultados por um juízo abstrato. A terceira, enfim, por não abarcar os
danos indiretos e remotos.

Dessa forma, caberá ao juiz de Direito, independentemente da terminologia, a


análise casuística, com fundamentação robusta nas provas e a interpretação do caso para
que se chegue em uma melhor solução possível quanto ao nexo causal da conduta e do
dano.

372 Ibidem, p. 215-216.

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Conclui-se, portanto, que as teorias não devem ser excludentes entre si. Uma pode
servir como complemento e fundamentação da outra. Cada caso, pois, deve ser analisado
conforme suas especificidades.

6.BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das Obrigações e suas Consequências, 3° ed, São


Paulo. Saraiva, 1980.
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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)

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(Coleção O Novo Processo Civil. Kindle),

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 15ª. Ed. São Paulo: Ed.
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2022.

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: E-


book. Biblioteca eletrônica Forense, 2009.

MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade Civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: E-book. Biblioteca
eletrônica Forense, 2021.

MORSELLO, Marco Fábio. O nexo causal e suas distintas teorias: apreciações críticas.
Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 19, janeiro de 2007.

NORONHA, Fernando. Desenvolvimento contemporâneos da responsabilidade civil.


Revista Sequência – PPGD UFSC. V. 19, n° 37 (1988), p. 33 (Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15533/14089)

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2004.

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Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

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Fundamentos do Direito Civil. V. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. 10ª. ed. Coimbra: Almedina,
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Civil – Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 21ª.


ed. São Paulo; E-book. Biblioteca eletrônica Atlas, 2021.

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TOMADA DE DECISÃO APOIADA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

PRISCILA CORTEZ DE CARVALHO: Advogada


inscrita na OAB/SP, mestranda em direito civil pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP, especialista em contratos empresariais
pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, graduada em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
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São Paulo – PUC/SP.

Resumo: O presente estudo propõe abordar o instituto da Tomada de Decisão Apoiada


(TDA) em favor da pessoa com deficiência, cujo principal objetivo é valorizar sua autonomia
da vontade, garantindo-se um sistema de apoio que auxilie a superação das dificuldades
que a condição de deficiência lhe imponha, de modo a promover a plenitude de seu
exercício de direitos.

Palavras-chaves: Capacidade Civil – Tomada de decisão apoiada – Pessoa com


deficiência.

Abstract: This study proposes to approach the Institute of Supported Decision-Making


(SDM) in favor of people with disabilities, whose main objective is to value their
autonomy of will, ensuring a support system that helps overcome the difficulties imposed
by the condition of disability, in order to promote the fullness of people’s rights.

Key words: Civil Capacity – Supported decision – Handicapped

1. Introdução.

Após o Decreto Legislativo nº 186/2008, incorporou-se à Constituição Federal os


princípios consagrados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
culminando na alteração do regime das incapacidades, cuja tradução foi exprimida no
Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015.

As inovações trazidas têm por base um novo paradigma da deficiência, a qual


deverá ser sempre tida sob a óptica de proteção dos direitos humanos em um contexto
social, de modo a buscar-se um ambiente que não agrave a limitação funcional da pessoa
ou de suas características peculiares advindas de sua condição. Assim, no lugar da exigir
normalidades biomédicas, a visão impressa por meio do Estatuto é de se prevalecer a
abordagem biopsicossocial – o que evidencia a preocupação com a condição da deficiência
em sua questão de saúde em conjunto com fatores biológicos, psicológicos e sociais para
medir os obstáculos ao exercício de seus direitos e garantir que sejam superados.

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Neste contexto se percebe a substituição dos mecanismos que anulavam por


completo o exercício de seus direitos civis, para um modelo que que “enseja um novo
olhar: as limitações funcionais de cada indivíduo não determinam seu destino, senão
requerem que o ambiente disponha de recursos de acessibilidade necessários para
possibilitar plena e efetiva participação de todos”373.

Justamente sob esta nova percepção que se insere o instituto da TDA, cujo
principal objetivo é o reconhecimento das capacidades e habilidades oportunizando que
as pessoas com deficiência (física ou mental) tenham condições de igualdade no exercício

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de seus direitos civis, destacadamente quanto a sua autonomia de vontade.

Assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência buscou garantir o sistema de apoio,


em que a própria vontade do deficiente seja escutada no momento da prática dos atos da
vida civil e patrimonial, sendo o instituto da “Tomada de Decisão Apoiada” uma faculdade
a ser exercida pela pessoa deficiente:

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao


exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as
demais pessoas.

§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo


de tomada de decisão apoiada (grifou-se).

Conforme os ensinamentos do Professor Rosenvald:

Na Tomada de Decisão Apoiada o beneficiário conservará a


capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja
coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá
restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de
legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil. Pensemos em
uma pessoa com mais de 18 anos ou emancipada (pois para os
menores o sistema dispõe da autoridade parental e tutela), que em
razão de uma dificuldade qualquer ou um déficit funcional (físico,
sensorial ou psíquico), permanente ou temporário, sinta-se impedida
de gerir os seus próprios interesses e até mesmo de se conduzir pelo
cotidiano da vida. Ela necessita de auxílio e, para tanto, o Direito Civil
lhe defere a tomada de decisão apoiada. Cuida-se de figura bem mais
elástica do que a tutela e a curatela, pois estimula a capacidade de

373 BRASIL. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Coordenação de Flávia Piva Almeida Leite,
Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho. – São Paulo: Saraiva: 2016, p. 63.

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agir e a autodeterminação da pessoa beneficiária do apoio, sem que


sofra o estigma social da curatela, medida nitidamente invasiva à
liberdade da pessoa374.

Muitos apontam a TDA como instrumento representativo de verdadeira gradação


de intervenção da autonomia, já se mostra como instituto intermediário entre a plena
capacidade e a curatela375: a) pessoas sem deficiência terão capacidade plena; b) pessoas
com deficiência se servirão da tomada de decisão apoiada, a fim de que exerçam a sua
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capacidade de exercício em condição de igualdade com os demais; c) pessoas com


deficiência qualificada pela curatela em razão da impossibilidade de autogoverno serão
interditadas (ROSENVALD).

A TDA é contemplada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n.13.146/1)


para ingressar no Título IV, do Livro IV da Parte Especial do Código Civil, que passa a vigorar
acrescido do Capítulo III (após o estudo da tutela e curatela). O novo art. 1.783-A veicula a
sua essência:

A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com


deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais
mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe
apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes
os elementos e informações necessários para que possa exercer sua
capacidade.

Assim, para fazer valer os novos institutos da capacidade legal, modificou-se o


Código Civil para refletir estes novos paradigmas, o que era desvirtuado antes da
promulgação do Estatuto – sendo a TDA medida de assistência conferida ao deficiente
para praticar atos da vida civil, sendo instituída por sua vontade e sob sua escolha das
pessoas que figurarão como seus apoiadores.

2. Natureza jurídica.

Da leitura do caput do artigo 1.783-A do Código Civil e de seu §1º, extraem-se os


elementos necessários para caracterização da natureza jurídica do instituto da TDA:

§ 1º. Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa


com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que
constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos

374 ROSENVALD, Nelson. A tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico
promocional da pessoa com deficiência. Revista IBDFAM, n. 10, p. 11, 2015.
375 RODRIGUES, Oswaldo Peregrina; NANNI, Giovanni Ettore (Coord.) A capacidade civil da pessoa natural.
São Paulo: Editora IASP, 2020, p.300.

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apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à


vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar.

Trata-se, pois, de negócio jurídico que depende de formalidade legal, manifesta


pelo obrigatório processamento judicial da vontade do interessado, o qual deverá indicar
seus escolhidos a prestarem o apoio. Assim, o acordo tido entre apoiado e apoiadores
passa pela homologação judicial, instaurando-se um processo de jurisdição voluntária,
consoante se extrai dos parágrafos 1º e 9º, constituindo um negócio jurídico que, para
se completar, exige um ato do Estado.

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Disto decorre a conclusão de que se trata de processo de jurisdição voluntária,
diante do fato de o magistrado não atuar “para resolver um conflito, efetivar um direito ou
acautelar outro interesse, mas apenas para integrar um negócio jurídico ou um ato de
interesse dos particulares, verificando a sua conveniência ou a sua validade formal, quando
por lei for exigida a sua participação” 376.

Em outras palavras, “a tomada de decisão apoiada será um negócio jurídico


gratuito, plurilateral, solene, personalíssimo, com ou sem prazo determinado, consistindo,
então, em instituto intermediário entre a plena capacidade e a curatela”.377

3. Procedimento.

Sob o caput do artigo 1.783-A do Código Civil, os parágrafos 2º e 3º revelam o


procedimento a ser adotado:

§ 2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela


pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a
prestarem o apoio previsto no caput deste artigo.

§ 3º Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão


apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do
Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas
que lhe prestarão apoio.

Assistida por um advogado, a pessoa interessada no instituto da TDA deve propor


a ação judicial específica com o plano de apoio que melhor se adeque às suas

376 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da
capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015). 2016.
377 RODRIGUES, Oswaldo Peregrina; NANNI, Giovanni Ettore (Coord.) A capacidade civil da pessoa natural.
São Paulo: Editora IASP, 2020, p. 308

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necessidades, no qual indicará duas ou mais pessoas, de sua confiança e com as quais
possua vínculo para que sejam nomeadas suas apoiadoras (BEZERRA DE MENEZES).

Deve-se, assim, ser apresentado detalhadamente os termos de apoio, seus limites


e extensão, além de seu prazo de vigência ou a indicação de que se dará por prazo
indeterminado.

Tendo em vista que nada é tratado expressamente pela lei, e considerando que se
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trata de negócio jurídico privado, o plano de apoio a ser exercido pode abranger tanto
questões patrimoniais quanto existenciais, escolhas no âmbito médico, cuidado pessoal
dentre outras matérias de interesse do apoiado.

O tipo do apoio também pode ser de ordem variada, a depender da


necessidade específica de quem o requer. Pode consistir na
facilitação da comunicação, na prestação de informação e
esclarecimentos, no auxílio à análise dos fatores favoráveis e
desfavoráveis que circundam certa decisão etc., tudo a depender do
caso específico e das demandas da pessoa que precisa do apoio378.

Deve-se atentar para o fato de que apenas a pessoa a ser beneficiada pelo apoio
é titular do direito de requerer sua homologação judicial, eis que se trata de um ato
personalíssimo, e nunca deve ser aceito sob requerimento de terceiros.

A lei determina que, em se tratando de negócio jurídico "que possa trazer risco ou
prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos
apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão" (art. 1.783-
A, § 6.º).

À semelhança do pedido de curatela, o foro competente para se levar o pedido


de TDA é o das varas cíveis de direito de família da jurisdição do domicílio da pessoa que
requer o apoio.

4. Efeitos.

Não há expressa exigência legal de que a sentença homologatória da TDA seja


levada a averbação no registro de pessoas naturais, tal como se exige em relação à curatela
(CPC, art.756, § 3º).

Na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato.


Mesmo nos específicos atos em que sejam coadjuvados pelos apoiadores, a pessoa com

378 Idem ibidem.

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deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada
de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil (ROSENVALD).

Diante da conservação da capacidade do beneficiário da TDA e exatamente como


expresso no § 4º do artigo 1.783-A do Código Civil, a decisão tomada por pessoa apoiada
terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites
do apoio acordado.

Para o professor Flávio Tartuce:

Boletim Conteúdo Jurídico v. 1111 de 03/09/2022 (ano XIV) ISSN - 1984-0454


A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre
terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do
apoio acordado (art. 1.783-A, § 4.º, do CC/2002). Assim, presente a
categoria, desaparece toda aquela discussão aqui exposta a respeito
da validade e eficácia dos atos praticados por incapazes, como
vendas de imóveis, perante terceiros de boa-fé. Havendo uma
tomada de decisão apoiada, não se cogitará mais sua nulidade
absoluta, nulidade relativa ou ineficácia, o que vem em boa hora, na
opinião deste autor379.

Contudo, caso o terceiro com quem contrata a pessoa apoiada manifeste sua
insegurança quanto a validade do negócio jurídico diante da deficiência do contratante,
aquele pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo,
especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado (§5º do artigo 1.783-A do
Código Civil).

5. Apoiadores.

Os apoiadores escolhidos devem preencher pressupostos legais para o exercício


do encargo, tais quais a idoneidade, confiança e o vínculo com o pretenso apoiado (art.
1.783-A, caput).

Caso o apoiador discorde de eventual escolha do apoiado, quanto à consolidação


de determinado negócio jurídico, deverá, inclusive, informar ao juiz sobre o fato, se
entender que aquela escolha possa resultar em riscos ou prejuízo relevante ao apoiado
(art. 1.783-A, § 6º). Nessa hipótese, o juiz ouvirá o Ministério Público e, ao final, decidirá.

Ao ser informado o juiz, importará verificar se a pessoa que requereu o apoio ainda
persiste com a sua capacidade de agir e se, relativamente ao negócio jurídico em formação,

379 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. São Paulo: Método, 2017, p. 942.

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conserva a capacidade de querer e entender todos os possíveis resultados, inclusive


aqueles que poderão importar em riscos e prejuízos (BEZERRA DE MENEZES).

A atuação dos apoiadores deverá sempre estar nos termos do plano de apoio
homologado e sua atuação estará sempre sob a fiscalização judicial, ao passo que se
houver casos de abusos, pressão indevida sobre o apoiado ou de negligência de sua
atuação ou inadimplemento de suas funções, o apoiador – após a oitiva da pessoa apoiada
e o Ministério Público – poderá ser destituído do cargo (1.783-A, § 7º), determinando que
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se indique novo apoiador.

O fim do encargo de apoiador também poderá ocorrer a pedido do próprio: ao


apoiador o direito de pedir o seu desligamento do processo de tomada decisão apoiada
(1.783-A, §10). Sua exclusão está condicionada à manifestação do juiz e, nesse caso, à
semelhança do que se exige do curador e do tutor, o apoiador deverá apresentar sua
prestação de contas.

6. Tomada de decisão apoiada x instrumento de mandato.

A diferenciação da atuação dos apoiadores e meros mandatários é


recorrentemente abordada para a correta aplicação do instituto: enquanto a TDA impõe
rigorosa responsabilidade aos apoiadores, que se mantém sob um plano específico e
detalhado do encargo, sob validação do ato de sua constituição, bem como sob supervisão
do Judiciário e do Ministério Público; a “transferência dos poderes de representação é
instrumentalizada pela via do negócio unilateral de procuração, o outorgante estará
naturalmente sujeito ao risco do mal cumprimento de suas determinações pelo
procurador”380.

A solenidade exigida para a validação do negócio jurídico de instituição do apoio


se justifica, inclusive, pela assimetria entre as partes (apoiadores e apoiado), do que decorre
a intervenção judicial e fiscalização do Ministério Público sobre os atos dos apoiadores –
algo que não ocorreria se fossem constituídos pelo apoiado como meros procuradores.

Outra importante diferença está na discricionariedade do mandatário para


deliberar e decidir como agir para atingir a finalidade da representação, podendo, até
mesmo rejeitar poderes, contrariamente do que se verifica em relação à atuação do
apoiador, que deve seguir estritamente o plano de apoio, sob pena de poder ser destituído
do cargo.

380 MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da
capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015). 2016.

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7. Possibilidade de adequação do processo para alterar o pedido de TDA para curatela


ou vice-versa.

Em brilhante estudo sobre o tema, a Professora Joyceane trouxe à baila a discussão


sobre a possibilidade de adaptação do procedimento da TDA para curatela ou vice-versa.

Primeira questão seria quanto a possibilidade de adaptação do pedido de decisão


apoiada para curatela ao se verificar indícios de que a pessoa que pleiteia o benefício sofre
limitações mais severas de modo a comprometer-lhe a capacidade. Em resposta, a ilustre

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Professora ensina:

No pedido de decisão apoiada, se o juiz, ao ouvir a parte requerente,


assistido por uma equipe multidisciplinar, identificar indícios de que
a mesma sofre limitações severas à capacidade de discernir,
considerando o parecer do MP, poderá adaptar o feito. Poderia
intimar os legitimados ativos da ação de curatela (C.Civ., art. 747),
fazendo uso do que dispõe o art. 139, VI, do NCPC, para lhes facultar
a propositura do pedido de curatela, a fim de resguardar os
interesses da pessoa em questão. Se a pessoa apresentar uma
limitação psíquica grave, o próprio Ministério Público poderá, em
caráter subsidiário, propor a ação de curatela381.

Tal conclusão está calcada no princípio da inafastabilidade da jurisdição, de modo


que a tutela adequada deve ser garantida conforme a realidade do direito material
(BEZERRA DE MENEZES), não podendo ser afastado um direito fundamental pela simples
impropriedade do procedimento. Ressalva-se apenas a necessidade de prévia intimação
das partes, evitando que as partes sejam surpreendidas por brusca mudança no
procedimento e possam exercer o contraditório e adequarem estratégias processuais.

A segunda questão de adequação de procedimento envolve a possibilidade de


haver um agravamento da condição do deficiente ao longo da tramitação do pedido de
TDA, ao ponto de afetar-lhe a capacidade e ser necessária sua curatela. Neste caso,
segundo a Professora Joyceane, qualquer pessoa com legitimidade para a propositura da
curatela poderá fazer o pedido de conversão da TDA para curatela, sendo prevento o juízo
que conheceu o processo de decisão apoiada. Nomeado um curador provisório, já se
esvazia o papel do apoiador, especialmente se o âmbito do apoio coincidir com a extensão
do que se pede na curatela. Assim, uma vez decretada a curatela, a tomada de decisão
apoiada é encerrada (BEZERRA DE MENEZES).

381 Idem ibidem.

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Por última e terceira questão seria a conversão da curatela em TDA a a partir da


provocação do Ministério Público. A resposta é negativa para esta questão: Ao perceber a
capacidade da pessoa submetida ao processo de curatela a única solução possível é seu
indeferimento e não sua adequação ao TDA, o qual sequer poderia ser admitido senão
única e exclusivamente a requerimento da pessoa a ser beneficiária do instituto, não
cabendo nem mesmo ao juiz ou ao representante do Ministério Público sua instauração.

Acrescenta a Professora Joyceane que “nada obsta que se possa orientar a pessoa
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em face da qual se pediu a curatela sobre a possibilidade de requerer a decisão


apoiada”382.

8. Conclusão.

A deficiência deixou de ser motivação para a nulidade dos negócios jurídicos e


passou a ser percebida como condição que deve ser superada por meio da promoção de
um ambiente social adequado a garantir isonomia das pessoas acometidas por limitações.

Vigorando a plena capacidade do deficiente, o instituto da TDA não se coaduna


com uma mera constituição de mandatários que façam uma simples representação da
pessoa com deficiência, mas estabelece encargo a pessoas escolhidas pelo deficiente para
auxiliá-lo nas decisões quotidianas de todas as ordens – também definidas pela pessoa a
ser beneficiada – e sob a supervisão judicial de do Ministério Público, os quais fiscalizarão
a atuação dos apoiadores.

A Tomada de Decisão Apoiada se mostra verdadeiro instrumento de afirmação da


capacidade civil da pessoa com deficiência, ao passo que deixa claro a manutenção de sua
autonomia de vontade, servindo-lhe os apoiadores como meros auxiliares para garantir a
proteção de seus interesses.

9. Bibliografia.

BRASIL. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência/ Coordenação de Flávia Piva


Almeida Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho. – São Paulo:
Saraiva: 2016.

MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao


exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pela Lei Brasileira de
Inclusão (Lei n. 13.146/2015). 2016.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. São Paulo: Método, 2017

382 Idem ibidem.

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RODRIGUES, Oswaldo Peregrina; NANNI, Giovanni Ettore (Coord.) A capacidade civil da


pessoa natural. São Paulo: Editora IASP, 2020.

ROSENVALD, Nelson. A tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo


modelo jurídico promocional da pessoa com deficiência. Revista IBDFAM, n. 10, p. 11, 2015.

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SISTEMA DE PRECEDENTES VINCULANTES E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

REBECCA SCALZILLI RAMOS PANTOJA:


Graduada em Direito pela Universidade
Federal Fluminense - UFF. Advogada.

RESUMO: Este trabalho busca explanar o sistema de precedentes introduzido no


ordenamento jurídico brasileiro a partir do Código de Processo Civil de 2015. Ademais,
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objetiva analisar se os precedentes elencados no art. 927 do CPC são de aplicação


obrigatória pelos órgãos jurisdicionais.

Palavras-Chave: Civil law; Common law; Novo Código de Processo Civil; Precedentes;
Obrigatoriedade; Ratio decidendi; Constitucionalidade.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O QUE SÃO OS PRECEDENTES JUDICIAIS. 1.1. CONCEITO 1.2.


CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA. 1.3. ELEMENTOS DOS PRECEDENTES. 1.4. EFEITOS DOS
PRECEDENTES 1.5. TÉCNICAS DE APLICAÇÃO DO PRECEDENTE JUDICIAL. 1.5.1. APLICAÇÃO
E REJEIÇÃO. 1.5.2. DISTINÇÃO. 1.5.3. SUPERAÇÃO. 2 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À
CRIAÇÃO DE UMA TEORIA DE PRECEDENTES NO DIREITO BRASILEIRO. 2.1. SEGURANÇA
JURÍDICA 2.2. ISONOMIA. 2.3. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. 3. DIVERGÊNCIA
ACERCA DA INSTITUIÇÃO DE UM SISTEMA DE PRECEDENTES VINCULANTES A PARTIR DO
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 3.1. ARTIGO 927, CPC/15: PRECEDENTES
PERSUASIVOS. 3.2. ARTIGO 927, CPC/15: PRECEDENTES VINCULATIVOS. CONCLUSÃO.
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

Como é sabido, o Brasil faz parte da tradição do civil law, tendo como principal fonte
do direito a lei. Com efeito, a aplicação do Direito é realizada a partir de um processo de
interpretação segundo o qual o juiz interpreta uma lei positivada e extrai dela a norma
jurídica que será aplicada ao caso concreto.

Entretanto, verifica-se que a lei comporta infinitas interpretações, fazendo com que
essa atuação dos magistrados implique em tratamentos distintos para casos idênticos e
afetando, por conseguinte, os princípios da segurança jurídica e da isonomia.

Nesse contexto, a doutrina identificou a necessidade de importar a técnica dos


precedentes típica do sistema do common law, que se funda na igualdade, coerência e
estabilidade da ordem jurídica, bem como na previsibilidade. Seguindo essa tendência, o
legislador do Código de Processo Civil de 2015 optou por introduzir ao direito processual
civil interno um sistema de precedentes, que se encontra materializado sobretudo nos
artigos 926 e 927 do referido diploma legal.

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Apesar desta necessidade de adotar no âmbito do ordenamento jurídico interno


alguns aspectos jurídicos pertencentes aos países de tradição do common law, de modo a
observar os princípios constitucionais, parte da doutrina questiona a atribuição de eficácia
vinculante às decisões constantes no artigo 927 do Código de Processo Civil, uma vez que
não há previsão constitucional no sentido desta obrigatoriedade.

Nesse passo, este trabalho busca expor os argumentos favoráveis à adoção de um


sistema de precedentes vinculativos a partir do marco do Código de Processo Civil de 2015,
bem como apresentar a divergência existente no campo doutrinário em relação a esta

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obrigatoriedade de vinculação das decisões por todos os órgãos jurisdicionais,
considerando as vantagens e desvantagens de cada corrente de pensamento.

1. O QUE SÃO OS PRECEDENTES JUDICIAIS

1.1. Conceito

Inicialmente, cumpre registrar que precedente judicial consiste, nas lições de Didier,
na decisão judicial tomada à luz do caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como
diretriz para o julgamento posterior383. Assim, toda e qualquer decisão de qualquer órgão
jurisdicional, a qual é utilizada como base de formação de outra decisão jurisdicional
posterior, é tida como um precedente.

Observa-se aqui a máxima treat like cases alike, segundo a qual os casos iguais
devem ser tratados igualmente. Ou seja, cabe ao judiciário conceder o mesmo tratamento
aos casos que apresentam a mesma tese jurídica, na ocasião do seu julgamento.

Com efeito, os precedentes judiciais não são considerados no ordenamento jurídico


brasileiro fontes formais do direito, uma vez que não possuem força de lei. No entanto, é
necessário ter em mente que, conforme as lições de Humberto Dalla Bernardina de Pinho
e Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues, “atribui-se ao precedente, em geral, um valor
complementar, haja vista expressarem, de forma subsidiária, o conteúdo e o verdadeiro
sentido das regras e dos princípios que integram o ordenamento jurídico nacional”384.

383 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil:
teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. vol. 2. 10ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 441.
384 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. O microssistema de
formatação de precedentes judiciais vinculantes previsto no novo CPC. Revista de Processo, nº 259, 2016, p.
407.

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Analisado o conceito de precedente judicial, é importante ressaltar a diferença entre


os precedentes aplicados nos países de tradição common law e aos precedentes adotados
pelo Brasil.

Nas tradições do common law, o julgado não é reconhecido como precedente no


momento de seu nascimento, mas adquire esta roupagem a partir de decisões posteriores.
Considerando este aspecto retrospectivo do precedente, atribui-se ao órgão julgador
futuro o dever de olhar para as decisões passadas a fim de observar se existe algum
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precedente para solucionar o caso concreto.

Nesse sentido, segundo a doutrina de Alexandre Câmara:

(...) nos sistemas jurídicos vinculados à tradição de common law,


quem diz que uma decisão judicial é precedente é o juiz do caso
seguinte. Explique-se melhor: quando, em um ordenamento jurídico
ligado à tradição anglo-saxônica, um tribunal julga uma causa, não
se sabe se aquela decisão será ou não, no futuro, tida por precedente.
Apenas quando, posteriormente, surge um segundo caso cujas
circunstâncias são análogas à do caso anterior é que o órgão
jurisdicional a quem incumba a função de julgar este segundo caso
afirmará que aquela primeira decisão é um precedente.385

Diferentemente, no direito pátrio, que segue a tradição civil law, os precedentes


vinculantes encontram-se previstos na Constituição Federal e, em razão disto, já são
conhecidas previamente as decisões que gozam desta eficácia. Desse modo, o julgado já
nasce com esta condição, sendo certo que servirá como diretriz decisória que subordinará
os julgamentos futuros.

Isto posto, Ronaldo Cramer conceituou precedente como “todo julgado de tribunal
que, por força de sua condição originária ou de reconhecimento posterior, cria a norma
jurídica a ser seguida, obrigatoriamente ou não, em casos idênticos.”386

1.2. Condições de existência dos precedentes

385 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 439.
386 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 86.

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No direito brasileiro, para que seja considerado precedente, o pronunciamento


judicial deve reunir três elementos marcantes, quais sejam: (i) ser um julgado de tribunal;
(ii) ser uma norma criada a partir da interpretação das leis; e (iii) ter se tornado estável387.

No que se refere ao primeiro pressuposto, é necessário que seja um julgado de


tribunal devido à nossa tradição processual: somente o posicionamento dos tribunais são
considerados jurisprudência, que nada mais é que um precedente reiteradamente aplicado.

Ademais, saliente-se que, em observância à regra da colegialidade, segundo a qual

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o julgamento será realizado pelo órgão colegiado, não é possível que uma decisão do
relator seja considerada como precedente.

Em relação ao segundo pressuposto, tem-se que o precedente é uma norma criada


a partir da interpretação das regras aplicadas ao caso concreto. Para Frederick Schauer,
“precedentes dependem de regras, e essas regras, por sua vez, dependem de contexto”388

Neste sentido é o entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier:

O juiz não pode criar direito do nada, da sua própria cabeça, seguindo
suas convicções e crenças pessoais. Afinal, vivemos num Estado
Democrático de Direito e o juiz deve decidir de acordo com a lei,
interpretada pela jurisprudência, à luz da doutrina. O direito é tripé:
lei + doutrina + jurisprudência389.

Por último, no que tange ao terceiro pressuposto do precedente, é imprescindível


que o julgado do tribunal seja estável, ou seja, que não esteja sujeito à interposição de
recurso, uma vez que a possibilidade de recurso gera também a possibilidade de
modificação do precedente.

1.3. Elementos dos precedentes

No sistema de precedentes, verificam-se presentes na fundamentação do julgado


os seguintes elementos: (i) o relatório, (ii) a fundamentação, (iii) o dispositivo, (iv) a ratio

387 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 87-
88.
388 SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, 1987, com tradução por André Duarte de
Carvalho; MACÊDO, Lucas Buril de. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA et. al. Precedentes. Salvador: Juspodivm,
2015, p. 57.
389 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A vinculatividade dos precedentes e o ativismo judicial: Paradoxo apenas
aparente. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA et. al. (Org.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 57.

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decidendi e (v) o obiter dictum. Merecem especial destaque os dois últimos elementos,
que serão analisados individualmente nas linhas seguintes.

A denominada ratio decidendi consiste na norma geral extraída do caso concreto


que servirá de fonte de direito para casos semelhantes futuros. Assim, somente é possível
considerar ratio decidendi a regra jurídica que, apesar de ter sido criada no contexto do
caso concreto, tenha o poder de ser universalizada390.
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Nas lições de Luiz Guilherme Marinoni, “a ratio decidendi não se confunde com a
fundamentação, mas nela se encontra”391, sendo certo que a ratio decidendi constitui a
própria norma do precedente que deverá ser seguida em casos idênticos e, ausente este
elemento, fica comprometida a identificação da norma do precedente392.

Ainda conforme leciona Luiz Guilherme Marinoni, “ratio decidendi são as razões
necessárias e suficientes para a solução da causa ou de qualquer questão julgada pelo
tribunal”393.

É de se ressaltar que, no ordenamento jurídico brasileiro, é indispensável por força


do art. 93, IX, da Constituição Federal e do art. 11, do CPC a observância da fundamentação
das decisões judiciais, sendo a ratio decidendi um de seus elementos.

Portanto, conclui-se que a essência do precedente é a sua ratio decidendi, uma


norma geral criada pelo magistrado no âmbito do caso concreto, que servirá de regra de
direito para casos semelhantes futuros.

Já o obiter dictum, segundo elemento do precedente que merece destaque, é a


parte da decisão que não tem aptidão para vincular o órgão julgador em decisões futuras.

Segundo Lucas Buril de Macêdo, o obiter dictum “é a parte do precedente


obrigatório imprestável para a construção de sua norma”394. Nesse passo, conclui-se que
o obiter dictum é constituído por “argumentos de aproximação, passagens ilustrativas ou
trechos digressivos que surgem na fundamentação para completar o raciocínio contido na

390 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil:
teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. vol. 2. 10ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 447.
391 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 149.
392 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 104.
393 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, pp. 239-241.
394 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015,
p.337.

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ratio decidendi”395, podendo, inclusive, refletir a opinião pessoal do redator do acórdão


sobre o caso julgado que não foi submetida ao julgamento396.

Trata-se, portanto, de mero reforço argumentativo realizado pelo órgão julgador, a


fim de embasar as razões de decidir que formam a ratio decidendi, não tendo o condão de
vincular os órgãos jurisdicionais, uma vez que não foram objeto de contraditório.

Por fim, convém registrar que a doutrina observa que o obiter dictum pode
demonstrar uma inclinação do Tribunal a superar determinado precedente ou até mesmo

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sinalizar uma nova orientação deste. Além disso, ressalta que o obiter dictum de um
precedente pode alcançar a condição de ratio decidendi no julgamento de um futuro hard
case, formando, assim, um novo precedente.

1.4. Efeitos dos precedentes

Os precedentes podem ser dotados de eficácias variadas. Isso porque o dever


judicial de respeito aos precedentes pode variar em menor ou em maior grau, a depender
da capacidade que tais precedentes possuem de vincular ou não os julgamentos futuros
(ausência de vinculação ou vinculação absoluta).

Nesse passo, os precedentes dotados de vinculação absoluta, isto é, os precedentes


vinculantes, são de aplicação obrigatória, o que significa dizer que o órgão julgador,
quando diante de um caso que já possui tese jurídica firmada, está vinculado a ela.

Com efeito, não cabe alternativa ao órgão jurisdicional a não ser a aplicação do
precedente vinculante, com exceção dos casos de distinção (distinguishing) ou superação
(overruling) do referido precedente, que serão estudados em momento posterior do
presente artigo.

Saliente-se que a vinculatividade do precedente se encontra, com base na doutrina


de Alexandre Câmara, na fundamentação, não no dispositivo da decisão, pouco
importando, assim, o resultado do julgamento, que somente diz respeito às partes
litigantes.

Conforme estudado no item destinado à conceituação da ratio decidendi, elemento


do precedente, esta é a responsável por caracterizar o fundamento determinante do
precedente judicial, razão pela qual goza de eficácia vinculante, o que não ocorre com a
obiter dicta, dispensável à fundamentação. Em razão disto, o Enunciado 318 do Fórum

395 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 107.
396 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 107.

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Permanente de Processualistas Civis determina que “os fundamentos prescindíveis para o


alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela
presentes, não possuem efeito de precedente vinculante”.

Os precedentes com eficácia persuasiva, por sua vez, compreendidos como


meramente argumentativos, servem para demonstrar o acerto do discurso jurídico397,
tratando-se da “eficácia mínima de todo precedente”398.
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Entretanto, à luz da doutrina de Alexandre Câmara, estas espécies de precedentes


não podem ser simplesmente ignorados pelos órgãos jurisdicionais, vez que a não
aplicação do precedente persuasivo implica em um ônus argumentativo do órgão julgador
que justifique a sua não aplicação399.

Desse modo, no caso dos precedentes de natureza persuasiva, diversamente do que


ocorre com os precedentes vinculantes, é admissível decisão conflitante, sendo necessário,
no entanto, que isto se faça por meio de decisão devidamente fundamentada em que se
demonstrem os motivos pelos quais é constitucionalmente legítima a decisão em sentido
diverso.

1.5. Técnicas de aplicação do precedente judicial

Neste momento, estudaremos as principais técnicas de aplicação do precedente


judicial, tanto obrigatório/vinculante quanto persuasivo, quais sejam: (i) aplicação e
rejeição; (ii) distinção; e (iii) superação.

1.5.1 Aplicação e rejeição do precedente judicial

Segundo a doutrina de Ronaldo Cramer, a aplicação do precedente, tanto vinculante


quanto persuasivo, pressupõe a demonstração de um encaixe entre o precedente e o caso
sob julgamento.

Nesse diapasão, quando diante de um caso concreto, cabe ao julgador


primeiramente analisar se este caso guarda alguma semelhança cm o precedente400, ou

397 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 116.
398 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil:
teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. vol. 2. 10ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 456.
399 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 435.
400 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil:
teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos
efeitos da tutela. vol. 2. 10ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 490.

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seja, deve verificar se há identidade de tese jurídica e semelhança de fatos entre os casos,
o do precedente e o sob julgamento.

Havendo semelhança entre o caso do precedente e o caso sob julgamento, o


precedente será aplicado (i) obrigatoriamente, quando se tratar de precedente vinculante;
(ii) facultativamente, quando se tratar de precedente meramente persuasivo, destacando-
se a necessidade de decisão adequadamente fundamentada acerca da não-aplicação. Em
ambos os casos, o juiz deve fundamentar a aplicação do precedente ao caso concreto,
conforme dispõe o artigo 489, § 1º, V do Código de Processo Civil.

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Diversamente, quando não houver identidade de tese jurídica e semelhança de
fatos, não ocorrerá a aplicação do precedente. Neste caso, os efeitos da rejeição de
precedentes de eficácia vinculante e precedentes de eficácia persuasiva são diferentes.

Isto porque a não aplicação do precedente persuasivo pressupõe tão somente a


discordância do julgador com o precedente. Neste caso, se o precedente for invocado por
uma das partes litigantes, o juiz deverá fundamentar, especificamente, a não aplicação do
precedente persuasivo ao caso sob julgamento, apontando de forma clara os motivos
pelos quais discorda do precedente, entende que existe distinção no caso em concreto ou
verifica a superação do precedente401.

Já para que o juiz deixe de aplicar um precedente cuja eficácia é vinculante,


pressupõe-se a configuração da distinção ou da superação, sendo certo que em ambos os
casos o magistrado deverá motivar a sua decisão, conforme o teor do artigo 489, §1º, VI,
do Código de Processo Civil.

1.5.2 Distinção

A técnica de distinção (distinguishing) na aplicação do precedente judicial importa


“na realização de comparações, definindo a aplicabilidade de determinado precedente ao
caso concreto, à luz da coerência e da integridade do Direito”402.

Nesse sentido, cabe ao magistrado, por meio de comparações, analogias e contra-


analogias, analisar se o caso do precedente aproxima-se do caso sob julgamento, de modo
a aplicar ou não a norma extraída do precedente ao caso em discussão, devendo haver,
necessariamente, identidade entre eles, sob pena de haver a distinção.

401 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 140.
402 NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma
breve introdução. In: DIDIER JR. Fredie; CUNHA et. al. (Org.). Precedentes, 2015, p. 310.

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Entretanto, é de se ressaltar que nunca um caso será absolutamente idêntico ao


anterior. Assim, deve haver uma limitação da ideia de igualdade absoluta no âmbito dos
precedentes judiciais.

Nesse sentido, Lucas Buril de Macêdo defende que devem ser observados os fatos
relevantes para a tomada de decisão. Assim, “a distinção se faz quando os fatos
juridicamente relevantes do precedente e do caso subsequente não são os mesmos.”403
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Já Ronaldo Cramer entende que podem ser considerados casos idênticos os casos
que apresentam semelhança dos fatos referentes ao pedido ou à questão a ser julgada e
identidade dos fundamentos jurídicos desses fatos (esses requisitos formam a identidade
de tese jurídica). 404

Com efeito, é dever do magistrado, quando se encontrar diante de um caso concreto


e um precedente, seja ele vinculante ou não, observar se os fatos determinantes de cada
caso se assemelham ou não, ou se os casos apresentam a mesma tese jurídica. Caso a
resposta dessa análise seja negativa, o precedente não será aplicado: haverá ocorrido a
distinção.

Por fim, registre-se que a distinção no direito processual civil brasileiro pode ser
realizada tanto pelos juízes de primeira instância vinculados ao tribunal do qual emanou o
precedente quanto pelo próprio tribunal, sendo certo que “as distinções são um método
aplicativo dos precedentes, não se justificando sua limitação a órgãos específicos”405.

1.5.3 Superação

Já a superação consiste na “revogação do precedente por outro precedente


proferido pela mesma corte que criou o anterior ou por uma corte hierarquicamente
superior”406, ou seja, “superar um precedente significa tirá-lo do ordenamento jurídico
como Direito vigente, colocando algo novo em seu lugar”407. .

Hermes Zaneti Jr., apresenta uma justificativa para a superação dos precedentes:

403 MACÊDO, 2015, p. 356


404 CRAMER, 2016, p. 145
405 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
362.
406 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 145.
407 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
362.

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(...) como o direito é artificial e serve aos homens, não estando escrito
em pedras de mármore, existirão casos em que o precedente deverá
ser modificado ou superado. Trata-se de uma premissa decorrente
da racionalidade da decisão e da pretensão de correção das decisões
judiciais que lhe está na base.408

Ao contrário do que ocorre na distinção, a superação é uma prerrogativa dos


Tribunais. Ainda, um precedente somente pode ser revogado pelo Tribunal que o criou,
ficando responsável por criar um novo precedente para colocar no lugar daquele que foi

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revogado.

Convém registrar que a mudança de orientação judicial pode afetar a segurança


jurídica, razão pela qual a revogação do precedente é uma medida que deve ser tomada
excepcionalmente, conforme alerta Alexandre Câmara:

Em outras palavras, a mudança jurisprudencial provoca um déficit de


confiabilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico: se a
orientação jurisprudencial anterior for não mantida, haverá surpresa
e frustração, abaladoras dos ideais de estabilidade e de credibilidade
do odenamento jurídico; se a orientação jurisprudencial anterior for
abandonada, a orientação jurisprudencial futura, pela desconfiança
na sua conformação, não será mais calculável. A falta de proteção da
confiabilidade (passada) compromete a calculabilidade (futura) do
Direito409.

A superação do precedente pode ser feita pelo Poder Judiciário, quando este
proferir decisão formando um novo precedente do qual se extraia uma norma jurídica
diferente da extraída do precedente anterior. Com base no artigo 927, §4º, do CPC, esta
revogação deve ser expressa, apresentando fundamentação adequada e específica para a
superação.

Ademais, a superação pode ser realizada pelo Poder Legislativo, sendo certo que o
legislador pode tanto proferir um ato em sentido contrário ao precedente, quanto

408 MARINONI In: WAMBIER, 2015, p. 1327


409 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2014, pp.
479-480.

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promulgar uma lei com o conteúdo da norma do precedente, passando a ser, assim, o
referencial normativo daquela norma410.

Por fim, para não gerar insegurança jurídica, ao promover a superação, o órgão
jurisdicional deve concluir que a necessidade de superação do precedente é mais forte que
a necessidade de continuidade dele411.

Inclusive, a fim de que o precedente não seja completamente revogado, é possível


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que o Tribunal faça a revogação parcial da norma do precedente, o que reduziria sua
incidência com a modificação parcial de seu significado.412

2. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CRIAÇÃO DE UMA TEORIA DE PRECEDENTES NO


DIREITO BRASILEIRO

Como visto, o Brasil é reconhecidamente um país que adotou a tradição do civil law,
na medida em que a principal fonte do direito, juntamente com os princípios, é a lei. Nesse
passo, todo o ordenamento jurídico é codificado, devendo o juiz interpretar as normas
para aplicá-las ao caso concreto.

Observa-se que, com a evolução da teoria da interpretação, o juiz, ao aplicar a lei,


passou a valorá-la, sendo a norma uma derivação da interpretação do juiz413. Uma vez
que foi conferido ao órgão julgador o poder de interpretar a lei para aplicá-la ao caso
concreto, é possível que sejam atribuídos à mesma lei diversos sentidos, haja vista se tratar
de interpretação pessoal do juiz.

Percebe-se, com isso, que a segurança jurídica é colocada em cheque, visto que,
para casos idênticos, a mesma regra pode ser interpretada de maneira diferente, dando
origem a uma norma que leva a conclusões e a decisões distintas. Ante o grande número
de decisões em sentidos diversos para casos idênticos, verifica-se que não é possível ao
cidadão ter a previsibilidade que se espera do direito.

Desse modo, não há dúvidas de que, no ordenamento jurídico brasileiro, faz-se


imperiosa a criação de um sistema de precedentes, sejam eles persuasivos, sejam eles
vinculantes, vez que, por óbvio, não se mostra razoável que casos idênticos sejam julgados
de formas diferentes somente pelo fato de o julgamento ser realizado por órgãos

410 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
388.
411 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
393.
412 CRAMER, 2016, p. 147.
413 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. 1ª ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2014, p. 63.

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jurisdicionais distintos. É mais que desejável importar, do modelo de common law, a


máxima do treat like cases alike, ou seja, conferir tratamento igual aos casos iguais.

Nesse diapasão, em que pese, na maioria dos casos, inexistir no modelo brasileiro o
dever funcional dos juízes de seguir em casos sucessivos as decisões anteriormente
proferidas em situações análogas, o legislador do CPC/15 (L. 13.105 de 16 de março de
2015) optou por introduzir um sistema de precedentes ao novo Código a partir do artigo
927, com o objetivo de trazer aos jurisdicionados maior segurança jurídica e previsibilidade
das decisões.

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A adoção do referido sistema implica na produção de diversos benefícios a todos
que lidam com o Direito, sejam eles jurisdicionados, operadores do direito ou magistrados.
Esses benefícios são explicados pela doutrina como justificativas para o respeito aos
precedentes, mesmo no âmbito de um país tradicionalmente de civil law, destacando-se:
(i) a segurança jurídica; (ii) a igualdade; e (iii) a contribuição à razoável duração do processo.
Cada uma dessas justificativas será analisada em seguida, individualmente.

2.1. Segurança jurídica

A segurança jurídica encontra previsão implícita nos incisos II, XXXVI, XXXIX e XL do
artigo 5º da Constituição da República, sendo, antes tudo, caracterizada como “valor
fundamental para qualquer sistema jurídico”414.

Sob a perspectiva deste valor, Ronaldo Cramer justifica a necessidade de um sistema


de precedentes “em nosso ordenamento não por força de um princípio normativo, mas
porque esse sistema gerará um ambiente melhor e mais seguro para a sociedade”415.

É certo que o ordenamento jurídico deve garantir aos jurisdicionados segurança,


evitando qualquer tipo de arbitrariedade nos julgamentos das questões levadas ao
Judiciário. É dever do Estado garantir que todos se comportem de acordo com o direito –
do jurisdicionado aos tribunais.

414 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
118.
415 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 54.

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Somente assim o cidadão tem condições de planejar suas ações e seu


comportamento perante a sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer que é direito do
jurisdicionado “saber as regras do jogo antes de começar a jogar”416.

Para Teresa Arruda, ‘os sistemas devem fornecer elementos para que se tenha
previsibilidade e para que se possa nele confiar. Os ingleses e anglo-saxões em geral
adquirem esta previsibilidade pelo respeito aos precedentes417.
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A segurança jurídica impõe o respeito aos precedentes a fim de gerar previsibilidade


da resposta judicial e, por conseguinte, pautar a vida em sociedade, sendo certo que a
previsibilidade, nas lições de Ronaldo Cramer, “é a dimensão subjetiva da segurança
jurídica”418.

É de se destacar, ainda, que o Novo Código de Processo Civil positivou o anseio do


legislador em evitar as chamadas “decisões-surpresa”, criando, para tanto, institutos que
efetivem o contraditório, a ampla defesa e a segurança jurídica.

Por fim, a segurança jurídica, por meio da estabilidade, previsibilidade e


cognoscibilidade, possibilita o devido aconselhamento dos advogados aos seus clientes,
pois permitem conhecer como se dá a atuação do Judiciário.

2.2. Isonomia

Atualmente, pode-se dizer que a propositura de uma ação equivale a uma “aposta
lotérica”. Isso porque, recorrentemente, órgãos jurisdicionais decidem de maneira
contraditória casos idênticos. Inclusive, é possível observar que, muitas vezes, um mesmo
juiz pode vir a decidir casos semelhantes de maneira distinta.

A adoção de um sistema de precedentes contribui para um tratamento isonômico


diante das decisões judiciais. À luz da interpretação da máxima treat like cases alike,
verdadeiro mandamento da tradição do common law, verifica-se que a lógica dos
precedentes se baseia na utilização da mesma tese jurídica nos casos futuros que com ela
possuírem identidade, conferindo tratamento idêntico aos casos idênticos.

416 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 32.
417 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 33.
418 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 55.

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O direito à igualdade encontra previsão no caput do artigo 5º, da Constituição


Federal, que determina que “todos são iguais perante a lei”. Com efeito, não é possível
limitar a aplicação do direito à igualdade à norma positivada, razão pela qual a isonomia
deve ser estendida à interpretação decorrente da lei posta. Sob este argumento, Luiz
Henrique Volpe Camargo indaga que “se a lei é igual para todos, a interpretação que dela
decorre também deve gerar idêntica aplicação”419.

Para a efetivação do princípio da isonomia no âmbito do Poder Judiciário, é


necessário que casos idênticos sejam decididos da mesma forma como já foi decidido

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anteriormente, observando-se, assim, os precedentes judiciais.

Conforme os ensinamentos de Alexandre Câmara, é dever do órgão jurisdicional,


assegurado o contraditório e a ampla defesa, proferir decisão constitucionalmente legítima
para o caso concreto, fato que somente será possível quando observadas a coerência e a
integridade do ordenamento jurídico420.

Certo é que o dever do Estado-Juiz de coerência e integridade tem o condão de


impedir que as decisões judiciais possam ser construídas de forma discricionária e
arbitrária, destacando-se, também, que uma das dimensões deste dever de coerência
refere-se justamente ao respeito do tribunal aos seus próprios precedentes421.

2.3 Duração razoável do processo

O princípio da razoável duração do processo, direito fundamental, encontra previsão


no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal e significa dizer que o trâmite do
processo não deve ser “tão longo que acabe por prejudicar o direito material, como
também que não seja tão veloz que venha a suprimir as garantias fundamentais
processuais”422.

Com efeito, a celeridade processual consiste, também, em um direito dos litigantes,


verificando-se a partir do teor do Novo Código de Processo Civil que a intenção do

419 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. A força dos precedentes no moderno processo civil brasileiro. In:
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.
572.
420 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 434-435.
421 Enunciado 453, FPPC: “Uma das dimensões da coerência a que se refere o caput do art. 926 consiste em
os tribunais não ignorarem seus próprios precedentes (dever de autorreferência).”
422 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
163.

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legislador foi de concretizar este direito, criando, em virtude disto, ferramentas processuais
capazes de garantir o amplo acesso à justiça.

Observa-se que um destes instrumentos adotados pelo legislador é justamente o


reforço aos precedentes judiciais, eis que, no caso de o magistrado concordar com a tese
firmada em um precedente judicial, a sua aplicação nos casos concretos diminui
consideravelmente o trabalho dos juízes, e, consequentemente, o tempo de duração dos
processos. Ora, quando a questão já foi decidida por tribunais superiores, pode o juiz tão
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somente analisar se o precedente se aplica ao caso concreto, não se fazendo necessária a


construção de uma nova tese jurídica para o seu julgamento.

Diante do exposto, conclui-se que a adoção de um sistema de precedentes contribui


para o alcance da razoável duração do processo, na medida em que indubitavelmente
“encurta o caminho” para a concessão da tutela jurisdicional.

3. DIVERGÊNCIA ACERCA DA INSTITUIÇÃO DE UM SISTEMA DE PRECEDENTES


VINCULANTES A PARTIR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Como estudado nos capítulos anteriores, o legislador do novo Código de Processo


Civil introduziu no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de precedentes. Entretanto,
existe grande discussão doutrinária acerca dos efeitos dos precedentes elencados nos
incisos do art. 927 – se estes seriam vinculantes ou não.

Nesse passo, os entendimentos doutrinários a respeito do tema podem ser divididos


em dois grandes grupos: (i) aqueles que entendem que o artigo 927 elenca precedentes
de natureza persuasiva; e (ii) aqueles que entendem que o artigo 927 elenca precedentes
vinculantes.

Inicialmente, cumpre observar a redação dada ao artigo supramencionado, a fim de


melhor compreender a discussão travada entre as correntes tratam do tema:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado


de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de


resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos
extraordinário e especial repetitivos;

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IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em


matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem


vinculados. (grifou-se)

3.1. Artigo 927, CPC/l5: Precedentes persuasivos

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A partir do dispositivo em questão, a primeira corrente doutrinária entende que o
comando previsto no caput é no sentido de que as decisões ou enunciados de súmula
indicados no artigo 927 apenas criam para o magistrado um dever jurídico de levar em
conta tais pronunciamentos em suas decisões423. Ou seja, extrai-se do artigo 927 um rol
de precedentes persuasivos, sendo certo que, embora não vinculem obrigatoriamente os
demais órgãos jurisdicionais, devem ser observados por estes órgãos, que podem decidir
de forma diversa desde que fundamentem adequadamente a sua decisão.

Segundo Alexandre Câmara, que integra a corrente de pensamento em estudo, a


eficácia vinculante do precedente depende de uma outra norma jurídica, que atribui
expressamente tal eficácia ao precedente. Caso contrário, o precedente apenas terá eficácia
persuasiva. Nesta hipótese, em caso de afastamento do precedente, caberá ao magistrado
o ônus argumentativo de justificar o seu afastamento, não podendo simplesmente ignorar
sua existência.424

De acordo com a corrente em análise, a eficácia vinculante das decisões é fruto da


previsão constitucional, motivo pelo qual apenas as decisões do Supremo Tribunal Federal
em controle concentrado de constitucionalidade, cuja eficácia encontra previsão no artigo
102, §2º, da Constituição Federal, e os enunciados de súmula vinculante, cuja eficácia está
disposta no artigo 103-A, da Constituição Federal, gozam de tal efeito de natureza
obrigatória.

A justifica para esse entendimento reside no fato de que o Poder Judiciário, ao


proferir decisão com efeito vinculante, estaria exercendo uma função atípica do legislativo,
o que somente poderia ser admitido com a devida autorização constitucional.

Com efeito, para esta primeira corrente doutrinária, deve-se dar interpretação ao
artigo 927 do Código de Processo Civil de modo a garantir eficácia persuasiva aos
precedentes, devendo ser obrigatoriamente observadas pelo juiz as teses aplicadas

423 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 437.
424 CÂMARA, 2015, p. 434.

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anteriormente ao mesmo caso. O que não se admite é a relativização do princípio


constitucional da independência funcional dos magistrados, assim como o seu livre
convencimento motivado, por lei infraconstitucional, sem que exista autorização
constitucional para tanto.

Ademais, é questionada a própria legitimidade democrática das decisões judiciais


proferidas, tendo em vista a fragilidade do contraditório nas decisões cujos efeitos tornam-
se vinculados a todos os jurisdicionados, sem, porém, que tais jurisdicionados tenham
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participado e influenciado na fixação da tese jurídica.

3.2. Artigo 927, CPC/l5: Precedentes vinculativos

A segunda corrente, por sua vez, sustenta que o rol de precedentes indicados pelo
Código de Processo Civil é vinculante, visto que a previsão constitucional da força
vinculante da decisão de controle concentrado de constitucionalidade e da súmula
vinculante existe em razão do fato destes precedentes vincularem, além do Poder
Judiciário, outros poderes (no caso, a Administração Pública Direta e Indireta). Assim, a
eficácia vinculante destes precedentes teriam previsão constitucional porque interfere na
separação de poderes425.

Nesse sentido, são os ensinamentos de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes:

Ressalte-se que o efeito vinculante está sendo conferido por norma


infraconstitucional, o que suscita e suscitará, obviamente, debate em
torno da constitucionalidade do comando. Entretanto, não obstante
o pensamento em sentido contrário, entendo que não há qualquer
impedimento, de ordem constitucional, para que este efeito
vinculante seja estabelecido por norma infraconstitucional. O fato de
a Carta Magna prever, nas duas hipóteses já mencionadas, ou seja,
nos arts. 102, §2º, e 103-A, representa, apenas, que o referido
comando foi inserido em nível constitucional porque (a) possuíam
intima relação com assuntos (controle concentrado de
constitucionalidade e inovação afeta ao STF, contendo inclusive a
exigência de quórum qualificado de dois terços) tratados na norma
maior; (b) foi estabelecido efeito vinculante não apenas para os
demais órgãos judiciais, mas também para a administração pública,
nas esferas federal, estadual e municipal; (c) preservação do caráter
vinculativo, para as duas hipóteses previstas, de eventuais reformas
infraconstitucionais, que pudessem afastá-lo; (d) reforço da
possibilidade de efeito vinculante para os demais órgãos judiciais,

425 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 189.

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diante de eventual alegação de independência funcional, que se


poderia fortalecer se a inovação viesse, primeiramente, por
determinação infraconstitucional426.

Essa corrente encontra respaldo no enunciado n. 170 do Fórum Permanente de


Processualistas Civis: “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927
são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos”.

Ainda, conforme a doutrina de Ronaldo Cramer427, a vinculação obrigatória

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justifica-se porque, ao longo do processo legislativo do novo Código, o legislador optou
por retirar o termo “em princípio” da redação do dispositivo, deixando clara sua intenção
de estabelecer um rol de precedentes vinculantes.

Outro elemento que corrobora a intenção do legislador em estabelecer um rol de


precedentes vinculantes é a utilização do termo “os tribunais observarão” inserido no caput
do art. 927: não se trata de uma faculdade concedida ao aplicador do direito, mas sim uma
imposição legal, qual seja, de observar os precedentes ali elencados

CONCLUSÃO

O legislador do novo Código, verificando a insegurança jurídica advinda das


decisões dos tribunais e o tratamento desigual dispensado aos jurisdicionados, importou
do common law o sistema de precedentes que implica no respeito das decisões tomadas
pelos tribunais superiores.

Esta recepção jurídica enseja, claramente, em maior valoração da jurisprudência, que


nada mais é que a aplicação reiterada dos precedentes e forma de concretização da
segurança jurídica nas decisões judiciais.

Importante ressaltar que não se trata de uma “commolawnização” do direito


processual brasileiro: a importação do sistema de precedentes é feita mediante adaptações
do instituto ao ordenamento pátrio. Neste sentido, a norma jurídica, que decorre da lei,
continua sendo a principal fonte de direito.

Conforme demonstrado no presente artigo, mostram-se incontestes as vantagens


advindas da criação de um sistema de precedentes no ordenamento jurídico pátrio, uma

426 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Precedentes e jurisprudência: papel, fatores e perspectivas no
direito brasileiro contemporâneo. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Luiz Guilherme Marinoni e Teresa
Arruda Alvim Wambier (coord.). Direito jurisprudencial: volume II. São Paulo: RT, 2014, pp. 35-36.
427 CRAMER, Ronaldo. Precedentes Judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp.
190-191.

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vez que evita a insegurança jurídica decorrente de decisões judiciais contraditórias, assim
como combate o tratamento desigual destinado aos jurisdicionados. Contudo, é
questionada a criação de uma teoria dos precedentes vinculantes por meio de uma norma
infraconstitucional - o Código de Processo Civil -, sem que exista autorização constitucional
para tanto. Isso porque se pode estar diante de flagrante violação da Constituição Federal,
que reservou a obrigatoriedade das decisões a casos específicos por ela indicados.

Fato é que a obrigatoriedade da observância dos precedentes por todos os órgãos


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jurisdicionais traz inúmeras vantagens àqueles que demandam uma posição jurisdicional,
mas, ao mesmo tempo, pode amesquinhar prerrogativas dos magistrados e fragilizar o
contraditório, sendo necessário discutir, sopesar e definir, enfim, quais dos interesses
devem prevalecer.

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DIREITO SUCESSÓRIO PERANTE AS MUDANÇAS SOCIAIS

MARIA EDUARDA DE SOUZA BATISTA SIMONATO:


Bacharelanda em Direito pelo Centro de Universitário de
Santa Fé do Sul (UNIFUNEC).

EDUARDO CURY428

(orientador)

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RESUMO: O trabalho apresenta como objetivo principal realizar um estudo sobre a
evolução do direito sucessório com ênfase nas espécies sucessórias causa mortis. O direito
sucessório trata sobre as formasde transmissão de direitos e obrigações em decorrência da
morte, bem como garante que bens oriundos de herança sejam divididos de forma justa
entre os herdeiros. A herança é um direitoassegurado pela própria Constituição Federal de
1988, artigo 5, inciso XXX é considerado umdireito fundamental. Diante do exposto, é
possível concluir que o tema direito sucessório perante as mudanças sociais, apresenta
grande relevância de estudo atualmente, pois trata a respeito não só do indivíduo em
âmbito familiar mas da norma e de como há necessidade da mesma se adequar a
sociedade, a fim de evitar futuros conflitos. O trabalho foi realizado com base em revisões
de literatura, com pesquisas em sites, artigos, livros revistas referência paraa área de
estudo, de forma árdua e meticulosa.

Palavras-chave: Direito. Sucessão. Herança. Evolução.

ABSTRACT: The main objective of this paper is to carry out a study on the evolution of
succession law with an emphasis on succession when it causes death. Inheritance law deals
with the ways of transferring rights and obligations as a result of death, as well as ensuring
that assets arising from inheritance are divided fairly among the heirs. Inheritance is a right
guaranteed by the Federal Constitution of 1988, article 5, item XXX is considered a
fundamental right. Given the above, it is possible to conclude that the theme of succession
law in the face of social changes is of great relevance for study today, as it deals with not
only the individual within the family, but the norm and how it is necessary to adapt to
society, in order to avoid future conflicts. The work was carried out based on literature

428 Mestre em Direito docente da UNIFUNEC

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reviews, with searches on websites, articles, books and reference magazines for the study
area, in an arduous and meticulous way.

Keywords: Right. Succession. Heritage. Evolution.

1.INTRODUÇÃO

O assunto abordado neste artigo busca explorar e explanar acerca do direito de


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sucessões de maneira sucinta e objetiva, facilitando a compreensão por parte do leitor.


De acordo com o dicionário brasileiro, a palavra “sucessão” está ligada ao fato de
suceder-se, talconceito não é tratado como regra geral, mas somente as especificas de
tema jurídico.

O direito de sucessão é tratado como uma das disciplinas do direito civil,


portanto, é considerado um direito do ramo privado, o qual busca solucionar conflitos
entre as relações particulares. No direito, de forma genérica, a sucessão está mais ligada
a titularidade de bens jurídicos materiais, por exemplo, em um contrato de compra e
venda, o comprador sucede a titularidade do vendedor, ou seja, a partir do momento
da compra (ato) o comprador sucede/substitui o vendedor como novo titular,
proprietário do bem negociado. Já de forma especifica e voltada para a disciplina a ser
estudada, o direito de sucessão está ligado a sucessão causa mortis, em outras palavras,
a sucessão decorre em virtude da morte de alguém, por conseguinte, há transmissão de
titularidade dos bens deixados pelo falecido, tal ato de transmissão é conhecido
popularmente como herança.

É possível afirmar que o direito de sucessão é um dos mais antigos no mundo,


pois o ato de transmitir bens após a morte sempre foi presente em diversos países, cada
qual com suas tradições e características. Em tempos distantes, a religião e tradição
local regia a transmissão dos bens, para determinadas culturas, envelhecer e não
agregar bens para deixar para um sucessor era abominável. Ao contrário do que ocorre
nos dias atuais, onde grande parte dos negócios jurídicos são celebrados de maneira
formal e solene, na época, a transmissão dos bens do falecido era celebrado por cultos
preparados pelo próprio sucessor. Como se sabe, antigamente a mulher era vista
apenas como objeto de reprodução e realização de trabalho doméstico, pois era o
homem quem desempenhava todos os papeis importantes nasociedade, por
conseguinte, as filhas nem sequer eram consideradas possíveis sucessoras, poiseram
criadas para se tornarem esposas de algum homem, a herança era destinada ao filho
primogênito varão.

Felizmente a sociedade é mutável, assim como os tempos, e em decorrência das


transformações da sociedade e criação de direitos e normas, nos dias atuais a sucessão
causa mortis ocorre de maneira justa e solene para com a família do falecido. É
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importante destacar que a legislação francesa possui grande influência na legislação


brasileira no que tange ao direito de sucessão, em virtude de suas grandes revoluções,
principalmente no que se refere a igualdade entre homem e mulher.

1.DIREITO DE SUCESSÃO E SUA EVOLUÇÃO NO ORDENAMENTO JÚRIDICO


BRASILEIRO

Com intuito de elucidar ainda mais acercado tema, o doutrinador Carlos Roberto
Gonçalves explica que o direito de sucessão se aplica somente a pessoas físicas, ou

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seja, não se estende a pessoa jurídica, uma vez que, não possui disposições sobre
preceitos estatutários.

Camargo (2018) explica didaticamente um pouco mais sobre o conceito e a


matéria tratada pelo direito sucessório:

Direito das Sucessões é o conjunto de normas que disciplinam a


transferência do patrimônio de alguém, depois de sua morte, em
virtude de lei ou testamento. Trata- se de um ramo do Direito
Civil, cujas normas regulam a transferência do patrimônio do
morto ao herdeiro. Ou seja, o fundamento do Direito Sucessório
é a propriedade, conjugada ou não com o direito de
família.(CAMARGO,2018)

Cahali (2003, p. 24) apresenta o direito das sucessões como: “O conjunto de


regras e princípios jurídicos que regem a passagem de titularidade do patrimônio de
alguém que deixa de existir aos seus sucessores”.

Como já dito o direito de sucessão já vem sendo aplicado há muito tempo, por
exemplo,no Código Civil de 1916, havia nos artigos 978 e 1572 previsão sobre os filhos
fora do casamento, os quais não seriam beneficiados pela herança, caso o pai viesse a
falecer, no entanto, a Constituição Federal de 1988 vetou tais artigos, em razão da sua
inconstitucionalidade, visto que os mesmos pregavam a discriminação.

A constituição Federal de 88 em seu artigo 5, que prevê sobre os direitos e


garantias fundamentais nos incisos XXX e XXXI assegura ao direito de herança e
explana a respeito da legislação regente para a sucessão de bens de estrangeiros
situados no país.

Após a readequação do Código Civil em 2002, o livro V, título II que tratava sobre
a legitimidade, ganhou dois novos artigos, 1.841 e 1.843 os quais buscam estar em

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harmonia com os direitos humanos e a Constituição Federal vigente, prezando pela


dignidade assegurada a todo ser humano.

1.1 Fundamentos do direito das sucessões

Para compreender as diretrizes da sucessão é importante conhecer suas bases,


os fatos que originaram a sucessão que conhecemos nos dias atuais. Apesar de existir
diversas ideologias e doutrinas a respeito, existem aquelas que são consideradas mais
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importante parao desenvolvimento do direito das sucessões.

O primeiro fundamento surgiu da ordem socialista, no início do século XX, a


teoria da época afirmava que a herança representava o mal para a sociedade, pois
instigava a desigualdade social e a pobreza, uma vez que, os bens adquiridos após o
advento da morte não eram oriundos de qualquer mérito. Sendo assim, a herança
deveria ser da sociedade como um todo, e não dirigida aos membros da família do
falecido, a sociedade era merecedora dos bens, visto que foi ela quem prestou serviços
ao indivíduo. Por fim, tal fundamento caiu por terra em virtude de sua utopia.

Em contradição, o segundo fundamento, prega a ordem patrimonial e familiar.


Diferente do fundamento acima, este defende a ideia de que o patrimônio adquirido
pelo falecido deve ser gerenciado pelo grupo familiar. López y López explica:

A matéria da sucessão causa mortis está estritamente aos temas


da propriedade e, […], da família. É certo que o problema da
continuidade dasrelações jurídicas, que é o que se põe como o
essencial para solucionar quando ocorre o falecimento de uma
pessoa, em termos abstratos pode ser solucionado sem a
referência à propriedade ou à família: poderia se dispora
transferência dos bens vacantes à coletividade, que poderia
reter- loscomo tal, ou deferi-los à outros particulares, sem
nenhuma relação de parentesco com aquele que determinou a
sucessão. Mas tal solução não corresponde como a tradição
histórica, que é bem outra, e com segurançasé amparada por
atuais ditames constitucionais, […] ( LÓPEZ, 1997).

Em suma, o fundamento da ordem patrimonial e familiar surgiu com o intuito


de abominar o fundamento socialista, pois acredita-se que o primeiro era acima de
tudo um pensamento utópico e contraditório, pois haveria uma enorme injustiça em
repassar a herança para a sociedade como um todo, uma vez que, não haveria mérito
de conquista para aqueles beneficiados, enquanto isso, a família era a única legitimada.

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Por fim o terceiro fundamento, de ordem econômica e social, preza pela


situação financeiro do entende do falecido. Luís da Cunha Gonçalves explica:

Certo é que não se pode imprimir a este fundamento outro


caráter senão oque tenha fundo econômico. O instituto da
sucessão é o complemento necessário do direito de propriedade,
conjugado, ou não, com o direito de família. Este último é
invocado pela lei, ora para conter em justos limites o exercício do

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direito de testar, ora para suprir a ausência de vontade do
proprietário, de harmonia com os seus sentimentos e instintos
naturais e normais. Propriedade que se extingue com a morte do
seu titular e não se transmite ao seu sucessor, por sua vontade
expressa ou presumida pela lei, não é propriedade; é usufruto
vitalício (GONÇALVES, on-line)

Desse modo, percebe-se que o fundamento de ordem econômica e social


é relativamente parecido com o que temos hoje, influenciado pelo capitalismo a
essência é acumular riquezas. O fundamento em análise era fortemente defendido pela
legislação francesa em tempos remotos, e como dito anteriormente, a legislação
brasileira no que tange ao direito de sucessão sofreu grande influência da França.

2. ESPÉCIES DE SUCESSÃO CAUSA MORTIS

Antes de adentrar as espécies de sucessão, é importante ressaltar alguns pontos,


por exemplo, no direito de sucessão, aquele que vem a óbito é denominado autor da
herança, enquanto seu sucessor, o herdeiro. É comum mencionar a palavra “herança”
e parte da sociedade leiga ser induzida a pensar em bens, mas a herança não se resume
apenas em riquezas. Herança é o conjunto de direitos e obrigações deixados pelo
falecido, são bens patrimoniais ou até mesmo dívidas.

O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves (2008) explica que: “a herança é, na


verdade, um somatório, em que se incluem os bens e as dívidas, os créditos e os
débitos, os direitos e as obrigações, as pretensões e ações de que era titular o falecido,
e as que contra ele foram propostas, desde que transmissíveis.”

No que tange as dívidas, em suma, recaem sobre o patrimônio deixado pelo


autor da herança, e devem ser pagas o quanto antes, caso o valor da dívida ultrapasse
o valor dos bens deixados, o herdeiro deverá solicitar um inventário negativo, a fim de
demonstrar a insuficiência de bens para quitar a dívida, é importante destacar que, em
hipótese alguma a dívida será transferida ao herdeiro.
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O advogado especializado em Direito Empresarial e Contratual, Dr. Murilo


Lemes, explica um pouco sobre o processo de quitação das dívidas deixadas pelo
falecido:

O espólio deve ser partilhado entre todos os herdeiros por meio


do inventário, sendo representado pelo inventariante, pessoa
responsável por administrar a herança durante o procedimento
de inventário até a efetiva partilha dos bens. Eventuais dívidas
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deixadas pelo de cujus devem ser pagas por meio de recursos do


próprio espólio, até o limite deste. Quitadas as dívidas, o saldo
restante, se existente, será partilhado entre os herdeiros. Se a
cobrança da dívida for posterior à partilha cada herdeiro
responde proporcionalmente ao quinhão que lhe cabe, até o
limite da herança recebida. (art. 1.997 do Código Civil e art. 796
do Código de Processo Civil) Assim, não existe herança de dívida.
O herdeiro não responde com seus próprios bens por dívidas
deixadas pela pessoa falecida. (LEMES, 2017)

Para finalizar os pontos a serem ressaltados, o recebimento da herança não é


considerado compulsório, ou seja, o herdeiro tem o direito de renunciar a herança. Para
confirmar tal ato, é necessário o lavramento de um instrumento público ou termo
judicial expressando a vontade do herdeiro, não existe renúncia parcial, sempre será
total, uma vez renunciada a herança a parte não poderá se retratar no futuro. Araújo
(2018) elucida:

Sendo assim existem dois tipos de sucessão que é a pela morte


quando a totalidade de bens ou patrimônio e transferida para os
herdeiros do de cujus sendo assim a sucessão hereditária tendo
assim o que chamamos de herança, já a sucessão entre vivos no
direito hereditário e feita mediante testamento onde o testador
expressa sua última vontade deixando expresso um bem para
uma determinada pessoa.(ARAÚJO,2018).

Existem dois tipos de sucessão por causa mortis, a testamentária e a legítima. A


primeira, trata-se da vontade do autor da herança expressa em vida, já a segunda, dá-
se por leie é mais comum nos tempos atuais.

2.1 Da sucessão testamentária

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Como dito acima, a sucessão testamentária é última vontade do autor da


herança, no entanto, apesar do testamento ser um instrumento de ato personalíssimo,
há algumas previsõese limitações previstas em lei para confecção do testamento. O
artigo 1.846 do CC dispõe sobre os herdeiros necessários, aqueles que possuem direito
de metade dos bens do falecido, independente de sua vontade, sendo eles os
descendentes, os ascendentes e o cônjuge. O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves
esclarece:

A sucessão testamentária dá-se por disposição de última vontade.

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Havendo herdeiros necessários (ascendentes, descendentes ou
cônjuge), divide-se a herança em duas partes iguais e o testador
só poderá dispor livremente da metade, denominada porção
disponível, para outorgá-la ao cônjuge sobrevivente, a qualquer de
seus herdeiros ou mesmo a estranhos, pois a outra constitui a
legítima, àqueles assegurada no art. 1.846 do Código Civil.
(GONÇALVES, 2008)

Seguindo o raciocínio, quando na ausência de herdeiros necessários, o autor da


herança terá liberdade de testar, podendo dispor da totalidade de seus bens para quem
entender. Ressalta-se que, o testamento que estiver conforme as previsões dos artigos
1.851 a 1.861 do Código Civil prevalecerá sobre a sucessão legítima.

2.2 Da sucessão legítima

Como já se presume, a sucessão legítima ou “ab intestato” decorre da ausência


do instrumento de última vontade deixado pelo autor da herança, o testamento.
Prevista nos artigos 1.829 a 1.844 do Código Civil, a legislação busca amparar de forma
justa os entes do falecido. Buscando a legitimidade, o Código Civil de 2002 dispõe sobre
a ordem de sucessão: descendentes e ascendentes em concorrência com o cônjuge,
respectivamente; cônjuge sobrevivente; aos colaterais. Os descendentes são os filhos e
netos, enquanto os ascendentes são os pais e avós, lembrando que tanto os
ascendentes quanto os descendentes concorrerão com o cônjuge sobrevivente, que
será meeiro, e ainda, na ausência dos citados, a herança será destinada aos colaterais,
irmãos, sobrinhos e tios.

Dower (2004, p.15) explicando um pouco sobre como ocorre a sucessão


legítima: Sucessão Legítima ocorre quando alguém, antes de
morrer, não deixa testamento sobre o destino de seus bens. Dá-
se, portanto, quando o falecido não dispõe de seus bens,

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deixando à própria lei a determinação de como eles devem ser


deferidos. Enfim, é a lei que prescreve as preferências que devem
prevalecer entre os parentes que deverão herdar os bens
deixados pelo de cujus, passando o patrimônio deste às pessoas
indicadas pela lei, obedecendo-se à ordem de vocação
hereditária.(Dower, 2004)
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Há algumas pontuações a serem esclarecidas quanto ao cônjuge sobrevivente,


pois pode haver alterações em razão do regime de casamento. Na separação total de
bens, o cônjuge sobrevivente não será meeiro e nem herdeiro, apenas terá direito real
a habitação; no regime de comunhão parcial o cônjuge é meeiro a partir dos bens
adquiridos na união, e herdeiro da parcela de bens particulares, bem como possui
direito real a habitação; já na comunhão universal o cônjuge não é herdeiro, mas é
meeiro de tudo que adquiriram como casal, bem como dos bens adquiridos antes do
casamento, também possui direito real a habitação.

Quanto a união estável, o companheiro (a) concorrerá aos bens adquiridos na


vigência da união estável, e terá direito as mesmas parcelas que os descendentes e
ascendentes, concorrendo com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço, e
na ausência de todos os mencionados acima, será beneficiaria de toda a herança
deixada.

3.ACEITAÇÃO E RENÚNCIA DA HERANÇA

3.1 Aceitação

No que tange a aceitação, constitui como ato unilateral, uma vez que o herdeiro,
legítimo ou testamentário, manifesta livremente sua vontade de receber a herança que
lhe é transmitida. Lapera (2014), explana:

Trata-se de uma confirmação, vez que a aquisição dos direitos


sucessórios não depende de aceitação. Desarte, traduz anuência
do beneficiário em recebê-la, já que ninguém será herdeiro
contra sua vontade, concedendo a lei a faculdade de deliberar a
aceitação ou não da herança transmitida.

A legislação também prevê sobre a aceitação da herança, em seu artigo n. 1804


do Código Civil, explicando que após feita a aceitação, torna-se definitiva a
transmissão ao herdeiro. Inicia-se o processo de aceitação da herança após a intimação
dos herdeiros, os quais devem aceitar a herança de forma expressa, tácita ou
presumida.

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Conforme o artigo 1.805 CC, a aceitação expressa: “É aquela que se resulta de


declaração escrita, pública ou particular, do herdeiro manifestando seu desejo de
receber a herança.”

Já a aceitação tácita é aquela em que o apesar de não fazer de forma formal, o


indivíduo passa a se comportar como um, assumindo seus atos de herdeiro. Por
exemplos, quando o indivíduo a ser beneficiado pela herança constitui um advogado
para orientação e representação no processo de inventário.

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No entanto, o código civil coloca limitação à aceitação tácita,
esclarecendo que os atos oficiosos da morte (funeral e guarda,
administração, conservação provisória de bens), bem como a
cessão gratuita, pura e simples aos demais coerdeiros, não são
aceitação tácita. É entendido, assim, que aceitação e logo em
seguida a renúncia em favor de determinada pessoa é ato de
cessão ou doação, sendo atingida por imposto ( ITBI), naquela.
(LAPERA, 2014)

A aceitação presumida ocorre na ausência de qualquer manifestação do


herdeiro, dentro do prazo de 30 dias, requerido por algum interessado ao juiz, após 20
dias da abertura da sucessão, para pronunciar-se. O artigo 1.807 do CC, explana: “O
interessado em que o herdeiro declare se aceita, ou não, a herança, poderá, vinte dias
após aberta a sucessão, requerer ao juiz prazo razoável não maior de trinta dias, para
nele, se pronunciar o herdeiro, sob pena de se haver a herança por aceita”.

3.2 Renúncia

Conforme o artigo 1.806 prevê, a renúncia constitui o ato unilateral expresso


onde o herdeiro, através de instrumento público ou termo judicial renuncia a herança.
No momento da recusa, o herdeiro deixa de receber qualquer que seja o beneficio
deixado pelo falecido, possuindo efeito “ex tunc”.

Mais uma vez Lapera elucida:

A renúncia bem como a aceitação é irrevogável, sendo definitiva


e produzindo os efeitos jurídicos desde que o herdeiro torna-se
renunciante. No entanto, também como a aceitação pode ser
anulada, se verificada vício de consentimento por erro, dolo ou
coação, com fulcro no artigo 171, II do código civil. (LAPERA,
2014)
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Para que de fato ocorra a renúncia é necessário que alguns requisitos sejam
checados, sendo eles: Capacidade jurídica do renunciante, Inadmissibilidade de
condição ou termo, Forma prescrita em lei, não realização de ato equivalente à
aceitação, Impossibilidade de repúdio parcial da herança, Objeto lícito, Aberta a
sucessão.

Resumidamente, os incapazes somente poderão renunciar herança através do


representante legal, previamente autorizado pelo juiz. A renúncia deverá ocorrer de
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maneira expressa, ou seja, ao contrário da aceitação, não existe renúncia tácita ou


presumida. A herança quando renunciada será em sua totalidade, não se admitindo
renúncia parcial, por fim,a sucessão será aberta quando nascer o direto ao herdeiro, ou
seja, após a morte do autor do espólio.

4.DIREITO SUCESSORIO PERANTE A HERANÇA DIGITAL

Desde a instauração do processo da globalização a população busca se adequar


cadadia mais a tecnologia, uma vez que, tal circunstância torna a vida mais cômoda,
mais prática. As redes sociais são utilizadas diariamente por bilhões de pessoas no
mundo, a empresa Facebook registra em média mais de 1.6 bilhões de acesso por dia,
onde o usuário gasta ao menos 35 minutos do seu dia em seu perfil digital, e não é só
isso, são vários outros aplicativos de comunicação como os e-mail, ou serviços de
streaming de filmes e series, serviços de transporte como Uber dentre tantos outros.

Lima (2013) explica um pouco sobre a valoração da herança digital deixada:

O patrimônio digital deixado pelo falecido pode representar


um valor econômicode tal maneira que venha a interferir na
legítima reservada aos herdeiros necessários, isto é, pode
significar mais de 50% de todo o patrimônio. Assim,sendo o de
cujus dono de um grande site na internet, por exemplo, site este
que continua gerando lucro mesmo após a sua morte, estes
valores podem representar mais da metade de todo o
patrimônio deixado, ficando os herdeiros necessários
prejudicados em seu direito à legítima. (LIMA, 2013)

A herança digital para a maioria dos doutrinadores nada mais é do que um


conjunto demateriais e conteúdos digitais, tais conteúdos podem ter valores
sentimentais como fotos e artigos, ou ainda, valores econômicos, como contas de
serviços vitalícios. Santos (2014) explica um pouco sobre a herança digital:

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A herança digital é definida como um aglomerado de ativos


digitais, ou seja, email, contas de mídias sociais, fotos, vídeos,
ficheiros em formatos eletrônicos, que são peças importantes na
atualidade, na denominada vida digital. A herança digital também
pode ser um local onde as heranças futuras, por exemplo, filmes
de festas, fotos familiares, se encontrem armazenadas em alguma
mídia digital. Mas ainda não é definido ainda se esse formato de
bens digitais, que se encontrem armazenados em mídias digitais,

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possam ser sucessivos ou destinados aos seus familiares, caso o
proprietário venha a falecer. (SANTOS, 2014)

Como bem esclarecido por Santos, a herança digital não é algo tão simples, pois
nãohá legislação especifica acerca do tema, é importante que os herdeiros tenham
consciência e busquem acima de tudo, respeitar os princípios daquele que faleceu. E
quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, enquanto não há uma legislação especifica,
resta utilizar-se ao máximo dasanalogias, afinal, a herança digital também é um bem
jurídico a ser protegido.

4.1 Da legislação brasileira

Infelizmente o ordenamento jurídico brasileiro não apresenta nenhuma


novidade sobrea herança digital, portanto, o acervo digital do falecido somente será
acessado por seus familiares se expressado como vontade pelo falecido em testamento,
caso contrário, se perderá.

No entanto, como se pode imaginar, a falta de legislação competente causa


transtornos e problemas para o ordenamento, que precisa lidar com situações atípicas
com mais frequência do que se possa imaginar.

Enquanto o Código Civil não é atualizado, criou-se alguns projetos de lei com a
intenção de sanar os problemas enfrentados. O projeto de Lei 4.099/2012 traz algumas
sugestões de alterações futuras. Sobre a herança digital o capítulo II-A prevê:

Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo


intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular
em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes
sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem eserviço virtual
e digital de titularidade do falecido.

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Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o


tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos Art.
1.797-C. Cabe ao herdeiro:I – Definir o destino das contas do
falecido;

a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a


amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal
ou; b) apagar todos os dados do usuário ou;
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c) remover a conta do antigo usuário. (BRASIL, 2012)

Por conseguinte, mais tarde outro PL importante, Projeto de Lei n.º 7.742/2017,
a fim de dispor sobre a destinação das contas de aplicações de internet após a morte
de seu titular:

Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir


as respectivas contas de usuários brasileiros mortos
imediatamente após a comprovação do óbito.

§1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de


aplicações de internet,e formulário próprio, do cônjuge,
companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha
sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.

§2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de


aplicações de internet manter armazenados os dados e registros
dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito,
ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do
Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda
detais dados e registros.

§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas


mesmo após a comprovação de óbito do seu titular, sempre que
essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o
cônjuge, companheiro ou parente do morto indicadosno caput
deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um
ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu
gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto
tiver deixado autorização expressa indicando quem deve
gerenciá-la. (BRASIL, 2017).
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Salienta-se ainda que, em 2013 foram apresentadas inúmeras petições para que
contas de entes queridos fossem excluídas, como facebook, whatsapp, instagram dentre
outras redes sociais. Outra opção que vem se tornando cada vez mais popular, é o
“Holding” familiar, que se trata de uma estratégia jurídica para segurança patrimonial
seja ela física ou digital, com a holding é possível realizar um planejamento sucessório,
garantir que os bens e negócios permaneçam no núcleo familiar e obter uma grande
diminuição na carga tributária.

5.CONCLUSÃO

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A partir das informações apresentadas ao longo deste trabalho conclui-se que o
direito sucessório causa mortis sempre esteve presente na sociedade, está enraizado
nas tradições familiares, a qual busca prosperar e enriquecer-se para quando falecer
deixar um legado paraas próximas gerações.

O direito sucessório é a garantia daquele individuo que trabalha a vida toda


para deixar um patrimônio para os filhos, é a garantia do desejo, da vontade mesmo
após a morte de ajudar um ente querido, o direito sucessório faz parte das ramificações
da família.

À vista disso, e como supramencionado, a herança digital é algo a ser


considerado e regulamentado, se pautando no direito fundamental da herança e
como observância aos direitos personalíssimos, haja vista a sua extensão post mortem.
Dito isso, deve-se ter uma ponderação na tentativa de possibilitar a herança digital,
assegurando o direito sucessório emproteção ao direito da personalidade do de cujus.
Por fim resta ao ordenamento jurídico brasileiro acompanhar as mudanças da
sociedade e se aperfeiçoar.

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