Ego - Conto
Ego - Conto
Ego - Conto
M.C.L. Oliveira
Morrer é como dormir. Alguns vão para o seu sono eterno como uma criança é tirada da piscina
justo quando começou a se divertir, é um momento de gritos, dores e desespero para continuar
no lugar que tanto lhe fez bem. Já outros seguem esse caminho de forma mais natural,
trocando um ônibus por outro e seguindo sua viagem. Uso essas comparações pois a minha
morte está se mostrando ser fora do comum.
Eu atravessava a rua e fui atropelado por um carro que tentou frear, mas ainda assim me
atingiu. Minha cabeça se chocou contra o chão e logo meu corpo a seguiu. Então aqui estou,
tentando adormecer. Mas, agora que estou morrendo, sinto como se tivesse nascido para esse
momento. No meio do turbilhão de confusão que estou sentindo enquanto a ceifadora se
aproxima, eu realmente acredito que meu destino era morrer aqui, desse jeito.
Nessa rua cujo começo e fim eu não consigo enxergar, cercado por essas pessoas cujos rostos
não consigo ver e atingido por um carro genérico, o motorista sendo ofuscado pelo vidro. Será
que ele está agonizando com a culpa de ter atingido um inocente? Será que está preocupado
com o estrago que meu corpo fez contra a frente de seu carro? Será que ele sente algo da
mesma maneira como eu sinto?
Tentei pensar no que deixaria para trás agora que estou morrendo. Porém é como se minha
vida tivesse começado hoje, atravessando essa rua e sendo vítima de um destino cruel.
Busquei, no fundo da minha mente, a minha família, mas não os encontrei. Chamei pelos meus
amigos, mas eles não vieram. Clamei por alguma alma conhecida, entretanto continuo sozinho
no meio desse turbilhão.
Nesse caso, não tem problema se eu morrer. Não foi uma vida que valia a pena ser vivida, se
não tenho família, amigos ou conhecidos para lamentar a minha morte e por quem eu possa
me arrepender de abandonar conforme continuo minha marcha lenta para o outro lado. Uma
vida que é mais como um borrão que se vê sentado na janela de um trem enquanto ele avança
por seus trilhos. Logo serei substituído por outros borrões, cada um que seguirá o mesmo
caminho que eu, sendo trocados por outros e assim por diante. Até o trem chegar a sua
estação final.
Consigo ver a ambulância chegando, parando e os socorristas descendo. Eles param ao meu
redor, mas nada falam, apenas ajoelham-se e me olham. E assim fica por um tempo, enquanto
tudo gira em torno de mim. Por um momento sinto que sou o centro de tudo. O mundo todo foi
gerado apenas para a minha morte, para aquele momento tão comum e que logo será
esquecido. Talvez o motorista me lembre, mas não o conheço. Ele nem mesmo desceu de seu
carro ainda, tamanho o estado de seu choque.
Como os paramédicos não falam nada, imagino que minha situação seja grave. Não podem me
mexer, mas também não podem me tratar aqui. Há uma certa calma na forma como tudo está
acontecendo. O universo controla tudo com uma mão tão perfeita que mesmo em meus últimos
momentos eu consigo ter uma pausa. Não estou cansado, estava apenas atravessando uma
rua, isto não é um exercício o suficiente para que eu me canse. Também não sinto dor, sei que
há algumas partes do meu corpo que devem estar em um estado deplorável, principalmente
minha cabeça. Ainda assim, não sinto nada.
É realmente como dormir. Eu consigo ver agora os paramédicos se movendo, sou colocado em
uma maca e vou direto para a ambulância.
Eu devo ter dormido. Estou sendo levado para a sala de operações. Sinto que não deveria
estar acordado para esse processo e logo isso se confirma, com a anestesia aplicada eu vejo
os médicos se movendo ao meu redor, seguindo uma espécie de padrão. E então eu durmo.
Acordo novamente na cama de um hospital. Não consigo me mexer, por mais que eu queira.
Imagino que deve ter acontecido algo na hora do impacto com o meu pescoço, ou então
durante a operação, e agora não consigo mais mover meu corpo. Apenas minha cabeça se
move de um lado para o outro.
Você já viu sua vida de forma isométrica? Como se não tivesse vivenciado aquele momento,
mas sim o observado de forma onipotente de cima. É assim que vejo meu acidente, quando me
lembro dele. Tudo parece ser tão… simples.
Eu caminho por uma rua branca com outras pessoas nas calçadas. O sinal está vermelho,
então eu atravesso a rua e sou atingido por um carro, sendo lançado para longe, batendo a
cabeça no chão e então me estatelando contra o concreto branco. As pessoas param o que
estão fazendo, algumas puxam seus celulares e fazem ligações. E o motorista permanece
dentro do carro.
Talvez eu esteja apenas processando a forma como minha vida quase foi tirada. Como meu
momento de descanso foi tomado de mim logo em seguida, com a chegada dos paramédicos.
Consigo vê-los parados ao redor de mim, considerando suas opções que agora percebo com
clareza. Por um momento o mundo foi todo meu. Ele foi sobre mim. Fui o foco do universo.
Ainda tenho esse holofote em mim, mas agora as coisas estão mais claras.
Sinto dor em meu corpo e finalmente consigo mover meu braço para chamar uma enfermeira
que passa pelo corredor. Ela vêm até mim e escuta minhas lamentações e então deixa a sala.
Logo um médico chega e conversa comigo, afirmando que vão aumentar a minha dosagem de
analgésicos para que eu não sinta a dor enquanto me recupero. Diz que minha operação foi um
sucesso e que com o devido tempo poderei voltar a andar, voltar para a minha vida.
Que vida?
Era o que eu queria responder, infelizmente esta não era uma opção. Então apenas digo que
estou aliviado com isso e o médico deixa a sala. E eu ainda sou o grande ídolo, aquilo para o
qual todo o universo olha com admiração. Seu centro, seu guia, seu rei. Tudo começa a
escurecer e eu torço para que este seja meu sono final, não sei se aguentaria ser o motivo de
toda a existência novamente.
Não sei quanto tempo permaneci no escuro. Horas? Dias? Pouco importa. Por esse tempo eu
soube que a morte é como uma boa noite de sonho, eu vi a fábrica com a qual o universo é
tecido, vi seus números e seu alcance. E então eu acordei, de volta na rua branca. Eu vejo que
o sinal ficou vermelho e então atravesso, mas antes que eu consiga chegar no outro lado eu fui
atingido por um carro que tentou frear, mas falhou.
Minha cabeça se choca contra o chão novamente e meu corpo pára no concreto, esparramado.
E nem morrerei.
Pois sou o centro do universo. Sou aquilo o qual tudo gira em torno. Não fosse por mim e por
este momento ocasionado por mim, todos ao meu redor não existiriam. Somente eu sei disso.
Pois, agora que o carro me atingiu, eu voltei ao meu nirvana.
Retorno aos números, ao tecido, à resposta de tudo que eu sou. A minha verdadeira vontade
era de cortar essa fábrica pouco a pouco e entender exatamente com o que eu estou lidando.
Quem, ou o quê, é este que, em sua infinita crueldade, me concede o direito de ser o ápice da
criação apenas para o tomar de mim em uma mesa de operações? Porém, me falta algo. Me
falta alguma coisa para poder dissecar o mundo ao meu redor.
Me falta o poder.
E sei que este ser, que se esconde atrás desse material, sabe que me falta o poder para
desmantelar aquilo que me cerca. Me resta esperar, nesse sono finito, pelo momento onde eu
poderei ser o âmago de tudo aquilo que me cerca.
Não tenho ninguém para deixar para trás, pois não é necessário ter esse tipo de
arrependimento.
Mas noto agora que minhas palavras foram falsas. Eu amei e amo. Amo tudo aquilo que eu sou
e que posso ser.
Eu acordo e estou na rua branca. Sinto um júbilo enorme ao atravessar a rua e ver o carro
vindo na minha visão periférica. Pouco importa o motorista, os pedestres, os socorristas e os
médicos. Pois eu volto a ser o centro.
Ah, mas aí está outro engano meu. Não há como eu voltar a ser aquilo que nunca deixei.
Desta vez, na mesa de operações, pouco antes de dormir eu consigo enxergar aquilo que
forma o bisturi. Tudo aquilo que o compõe, que o torna belo.
Desta vez eu tomarei de volta aquilo que me foi roubado, que é meu por direito.
Uso os números ao meu redor para formar aquele bisturi que vi antes e com ele realizou um
simples corte com o qual meu sono eterno vem até mim.
Morrer é como dormir. Todos vão até a morte de um jeito diferente. Mas todos adormecem no
final. E o sono dos justos é finalmente meu.