Breve - Curso - de - Historia - Do - Seculo - XX Livro
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BREVE CURSO DE
HISTÓRIA DO SÉCULO XX
Lisboa, 2014
2
LIVRO I
ÍNDICE
Lição 8: O pós-guerra.
O novo quadro político europeu. O sistema de Versalhes e a fundação da Sociedade das
Nações………………………………………………………………………………….57
4
Lição 22: O genocídio dos judeus e de outros povos ( por Irene Pimentel)………….. 222
Bibliografia………………………………………………………………………………248
6
7
1
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 09.10.04, revista e corrigida pelo
docente.
2
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century,Harcourt Brace College Publishers, Fort
Worth, 3ª ed., 1997.
8
ser suficientes e entra-se na fase da rivalidade inter-imperialista. Ou, dito de outra forma
e como escreveram os teóricos do imperialismo, aproximadamente com a Conferência
de Berlim de 1884 terminou a fase da distribuição do mundo entre as grandes potências,
a partir daí vai-se entrar (mais marcadamente a partir do final do século) nas lutas pela
redistribuição, em que naturalmente as potências que entraram mais tarde na ocupação
de territórios coloniais, na formação do seu império colonial, são as que se sentem mais
prejudicadas, sobretudo se durante os mesmos anos registaram uma consolidação
económica, um fortalecimento das suas capacidades industriais e financeiras, e é o que
acontece no caso da Alemanha. Um dos grandes países europeus que só se unificou
como Estado em 1871, que não detinha colónias e que ocupou um tempo, no último
quartel do século, em adquirir algumas colónias africanas, mas muito poucas para
aquilo que eram as suas necessidades de potência que entretanto se tinha tornado, como
se tornou a partir da década de 1890, a maior potência industrial europeia. Essa situação
vai ser um factor de agudização da concorrência entre as potências satisfeitas e aquelas
que estavam insatisfeitas e aprofundar o fenómeno do imperialismo.
13
Um dos fenómenos que nos finais do século XIX mais impressionou os observadores
contemporâneos, e que está na base da emergência da Sociologia como ciência, foi
aquilo a que chamamos a irrupção das massas na vida social e política.
Expressão fundamental da massificação foi a urbanização, a formação das grandes
cidades. Entre 1800 e 1900, o número de cidades europeias com mais de 100 mil
habitantes passa de 22 para 120. Destas cento e vinte, nas vésperas da I Guerra mundial,
cinco (Londres, Berlim, Paris, Viena e São Petersburgo) tinham já mais de um milhão
de habitantes e Moscovo tinha cerca de um milhão.
3
Transcrição pelo aluno Thiers Calado da aula de 16.10.04, revista e corrigida pelo docente.
14
atracção do partido socialista. Mas este caso alemão esteve durante muito tempo
isolado. Na Inglaterra só em 1911 são criados os seguros de saúde e desemprego. A vida
dos grupos etários mais avançados, dos mais velhos, era muito difícil. É certo que este
problema não atinge grandes massas da população visto que a esperança média de vida
era muito mais baixa que hoje em dia. Nos Balcãs e em Espanha, segundo Paxton, era
de 35 anos4.
4
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, p.14.
5
Arno J. Mayer, A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime (1848-1914),
Companhia das Letras, São Paulo, 1987. A Introdução é o texto nº2 do Caderno.
17
6
Transcrição pelo aluno Thiers Calado da aula de 16.10.04, revista e corrigida pelo docente.
19
7
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, p.27.
21
sociais que se vivem, ao mesmo tempo que se valoriza a Nação, consolidar a ideia de
hierarquia como alternativa ao individualismo.
Assistimos neste período de finais do século XIX, princípio do século XX, à emergência
quase simultânea de ideologias que se colocam em ruptura com o individualismo
liberal: é o caso em França da Action Française, na Alemanha e na Áustria do
pangermanismo, em Itália do nacionalismo (que está na origem de um partido com esse
nome), em Portugal do grupo político-militar em torno de Mouzinho de Albuquerque e
depois de João Franco, bem como de um Partido Nacionalista.
Um dos agregadores desta reacção conservadora e nacionalista do final do século é o
anti-semitismo, que ocasionou, em França, um conflito que dividiu a sociedade e ficou
conhecido como o caso Dreyfus.
Trata-se da história de um oficial do Exército, judeu, um capitão que durante algum
tempo prestara serviço junto do Estado-Maior, que a dada altura é acusado de
espionagem a favor da Alemanha. As relações com a Alemanha eram, desde a derrota
francesa na guerra de 1870-71 e da perda da Alsácia-Lorena, uma questão muito
sensível do patriotismo francês. Apesar dos seus protestos de inocência, Alfred Dreyfus
é condenado em tribunal militar a prisão perpétua na ilha do Diabo, na Guiana francesa,
para onde é deportado. Passou-se isto em 1894. Pouco depois começam a surgir
indícios de que o verdadeiro culpado era outro oficial, bem colocado nas altas esferas, e
de que havia uma acção deliberada para inculpar Dreyfus. O grande escritor da época,
Émile Zola, intervem então na imprensa com um famoso artigo intitulado “J’Accuse!”,
em que acusava as autoridades judiciais e militares de condenação de um inocente e
encobrimento dos culpados. O próprio Zola é porém condenado, e durante algum tempo
exila-se em Londres. Com uma mudança de governo que se dá em 1899, Dreyfus é
agraciado e liberto. Só alguns anos depois é que se dá a reabertura do processo, com a
condenação dos verdadeiros culpados e o restabelecimento de Alfred Dreyfus, em 1906,
no seu posto militar e na integralidade dos seus direitos.
Durante doze anos a França política esteve pode dizer-se dividida entre dois partidos, o
dos partidários de Dreyfus e dos Direitos do Homem (os dreyfusards) e o dos anti-
dreyfusards, polémica que se repercutiu em vários países e simbolizou a oposição
direita-esquerda. O motivo por que alcançou enorme projecção e significado é que,
mesmo quando já se acumulavam as provas da inocência de Dreyfus, as direitas anti-
25
Dreyfus sustentavam que, acima dos direitos individuais e da verdade, tinha de colocar-
se o prestígio da França e do seu Exército, contra os quais um simples indivíduo, judeu
e “portanto” estrangeiro, nada podia valer. Posto perante a prova de que um documento
fora falsificado, o escritor nacionalista Charles Maurras considerou-o “uma falsificação
patriótica”8.
Quer dizer, a polémica do caso Dreyfus contrapôs uma direita nacionalista, militarista e
anti-semita aos princípios do liberalismo, dos direitos do Homem e do Estado
democrático. Entre os partidários de Dreyfus, encontraram-se alguns dos mais
destacados socialistas da época, nomeadamente Jaurès. Entre os antidreyfusards
destacou-se o grupo da Action Française, uma espécie de antecipação em França dos
fascismos, tendo à cabeça o mencionado Maurras, que seria um escritor muito lido e
apreciado por Salazar. Muitos anos mais tarde, depois da II Guerra mundial, quando
Maurras estava na prisão em França, condenado por colaboração com os ocupantes
nazis durante a II Guerra mundial, Salazar não se esqueceu de lhe prestar publicamente
homenagem num discurso que então pronunciou.
8
Robert O. Paxton, The Anatomy of Fascism, Allen Lane/Penguin Books, Londres, 2004, p.47.
26
27
Temos aqui a reprodução de uma fotografia bastante conhecida. A cena que nela é
retratada documenta o momento imediato a um “acidente” do qual bem se pode dizer
que mudou a história do mundo: o atentado de Sarajevo, causa próxima da I Guerra
Mundial. O homem que vemos a ser agarrado pelos guardas é Gavrilo Princip, um
sérvio da Bósnia (Sarajevo é a capital da Bósnia-Herzegovina) que tinha acabado de
assassinar o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-
Húngaro. O que é que ele tinha contra o sucessor do trono do Império?
Talvez este mapa dê uma ideia. É o mapa do Império Habsburgo, o Império Austro-
Húngaro, e pode verificar-se que aquilo que caracterizava principalmente este Império
9
Transcrição pela aluna Ângela Gomes da aula de 27.10.2004, revista e corrigida pelo docente.
28
O Império Habsburgo era também conhecido como Monarquia Dual: o imperador era
simultaneamente rei da Áustria e da Hungria, e eram estas nacionalidades,
respectivamente germânica e magiar, que dominavam no Império. Os povos mais a sul,
Eslovenos, Croatas e Sérvios da Bósnia têm em comum ser eslavos, aliás os Sérvios e
os Croatas têm a mesma língua, que é o servo-croata. Todos eles estão integrados no
Império, ao mesmo tempo que fora do Império existem Estados independentes
29
austro-húngara foi-se firmando a convicção de que era preciso fazer qualquer coisa no
sentido de reforçar, do ponto de vista político e militar, o Império, e de liquidar a
Sérvia, fazendo com que ela ficasse impossibilitada de exercer um efeito de
desagregação sobre as populações do Império ou de por qualquer modo concretizar a
ideia da “grande Sérvia”. Gera-se um tipo de comportamento que não é raro em
situações de crise, que é o de procurar responder a uma crise interna com um sucesso
militar. É a ideia de que o êxito militar reforça o governo vencedor, que os factores
patrióticos, que se podem mobilizar em torno de uma guerra, servem para consolidar a
situação interna. Esse tipo de problema e de reacção não é raro. Por exemplo, uma das
determinantes da guerra russo-japonesa (1904) foi a vontade do Czar e do círculo
dominante de sair da crise que a Rússia atravessava através de uma vitória militar. Foi
exactamente o contrário que aconteceu. Também se pode considerar que o ímpeto
belicista que caracteriza actualmente a administração americana do Presidente Bush tem
a ver com a percepção de um claro declínio da posição económica dos Estados Unidos
da América no mundo.
Para o Império Austro-Húngaro travar uma guerra com sucesso, tinha que estar
seguro dos seus apoios, e isso significava seguro da sua aliança com a Alemanha. Desde
os anos 70, no tempo de Bismarck, que existia uma aliança militar entre a Alemanha e a
Áustria-Hungria, que inicialmente também incluia a Rússia e tinha o significado de ser
uma aliança dos grandes Impérios conservadores contra as tendências liberais no
mundo. Depois o esquema das alianças mudou: a partir dos anos 80 a Rússia ligou-se
cada vez mais à França. A aliança militar que se consolidou foi a chamada Tríplice
Aliança, que ligava o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro e a Itália. Contra a
coligação da Tríplice Aliança foi-se definindo uma coligação oposta, que de resto levou
mais tempo a formar-se e, sobretudo, a oficializar-se. Foi a coligação entre a França e a
Rússia e, já no princípio do século XX, progressivamente, a extensão dessa coligação à
Inglaterra (formação da Entente Cordiale anglo-francesa em 1904 e da Triple Entente
em 1907).
Quando ocorre o atentado de Sarajevo e a monarquia austro-húngara tem a
oportunidade de liquidar a Sérvia, como há bastante tempo ambicionava, antes de tomar
qualquer iniciativa tem que se assegurar do apoio alemão, porque a Europa estava
dividida em duas grandes alianças: de um lado a Tríplice Aliança, do lado oposto a
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Triple Entente. (No primeiro caso costumamos dizer, em Português, Tríplice Aliança;
mas para indicar a coligação da França, da Inglaterra e da Rússia usamos a expressão
francesa Triple Entente. O significado literal das palavras é quase o mesmo, porque
‘entente’ significa entendimento).
O governo austro-húngaro consultou o Kaiser e o chanceler alemão, que
corresponderam com inteiro apoio: consideravam que a Áustria tinha o direito de
colocar um ultimato à Sérvia, considerando-a responsável pelo atentado, e de exigir
compensações.
A possibilidade de um conflito entre a Áustria-Hungria e a Sérvia evoluir para um
conflito mais amplo, envolvendo outras potências, foi desde o princípio ponderada pelos
Alemães. Mas prevaleceu a opinião dos chefes militares de que, no caso de haver
guerra, mais valia ser então do que mais tarde. Na apreciação dos estrategas alemães, o
facto de tanto a França como a Rússia terem reformas militares em vias de execução,
mas ainda não completadas, fazia com que fosse mais favorável para a Alemanha e para
a Áustria-Hungria, numa eventualidade de guerra, defrontá-la no imediato. No que dizia
respeito à Inglaterra, persistiu até muito tarde, entre os responsáveis alemães, a
convicção de que a Inglaterra não entraria na guerra, porque a Inglaterra tinha tido
problemas com a Rússia. Além disso, como potência essencialmente marítima e
colonial, ela não teria interesse real na entrada na guerra. Mas, como havia uma
tendência de aproximação da Inglaterra à França e à Rússia, também neste aspecto a
ideia dos Alemães era que mais valia haver uma guerra mais cedo, porque seria menos
susceptível de contar com a entrada em cena da Inglaterra.
Assim sendo, é na base destes pressupostos que o governo austro-húngaro, no
princípio de Julho, formula um ultimato ao governo da Sérvia, redigido em termos
intransigentes e drásticos, reclamando a realização de um inquérito, conduzido pela
própria Áustria na Sérvia, acerca das condições do atentado. Isto é, sabia-se que o autor
do homicídio, Gavrilo Princip, era membro duma associação secreta eslavista chamada
Mão Negra e que essa associação tinha apoio na Sérvia. Concretamente, tratava-se
agora de fazer um inquérito para revelar as cumplicidades, o envolvimento de
funcionários sérvios, e a Áustria-Hungria exigia ser ela própria a conduzir, no interior
da Sérvia, esse inquérito. Havia outras condições, mas esta era especialmente drástica, e
o prazo de resposta era extremamente curto (48 horas). A Sérvia deu uma resposta
33
muito diplomática em que cedia a quase todas as condições excepto, justamente, essa da
realização do inquérito no seu território, por ser considerada uma violação de soberania.
É essa recusa que vai servir de motivo para a declaração de guerra pelo Império Austro-
Húngaro à Sérvia no dia 28 de Julho de 1914, seguida imediatamente do
bombardeamento da capital da Sérvia, Belgrado. Esta guerra localizada vai arrastar
num ritmo muito rápido todas as grandes potências da época.
Coloca-se ao governo russo o problema da atitude a tomar perante a agressão
austro-húngara à Sérvia, e decide apoiar a Sérvia. Aliás, o ressentimento pela anexação
da Bósnia, em 1908, tinha permanecido nos círculos governamentais russos e, em
função disto, o governo russo organiza imediatamente a mobilização das suas tropas
contra a Áustria-Hungria. Mas aqui entra um aspecto técnico-militar que também é
importante: os planos militares estavam concebidos em função das alianças existentes e,
uma vez que a Tríplice Aliança juntava em primeiro lugar o Império Austro-Húngaro e
a Alemanha, os planos militares implicavam uma mobilização simultânea contra os dois
Estados 10 . Apesar de uma carta de última hora que o “primo Willy” (o Kaiser
Guilherme II) escreveu “ao primo Niki” (o Czar Nicolau II), episódio referido no filme
da aula anterior, o Czar não se comoveu por aí além, aliás tomou atitudes contraditórias
mas, enfim, a decisão que prevaleceu ao nível das esferas de governo e militares foi a de
realizar a mobilização, que por seu turno punha o problema de atitude da França.
Para a França, a hostilidade em relação à Alemanha era um problema de longa
duração. Nomeadamente, desde a derrota francesa na guerra franco-prussiana de 1870-
71, que teve como consequência a perda pela França das regiões da Alsácia e da Lorena,
com um interesse económico e também estratégico grande, devido ao minério de ferro.
Consequentemente, o Governo francês, no sentido de manter a aliança russa e de
afirmar posição contra a Alemanha, decide a mobilização. Na sequência desta, é a
Alemanha que decide a colocação dum ultimato à Rússia contra a mobilização e, uma
vez que esse ultimato não é aceite, a 1 de Agosto a Alemanha declara guerra à Rússia e,
dois dias depois, a 3 de Agosto, à França. É este o princípio da Primeira Guerra
Mundial, que os Alemães concebem como uma operação militar a realizar rapidamente.
10
Paxton, Europe in the Twentieth Century, p. 58.
34
significa violar a neutralidade belga, que era garantida por tratado pela Inglaterra. Há
quem sustente que a Inglaterra atrasou a entrada, porque estava tão interessada em que
houvesse uma grande guerra para liquidar a Alemanha, que não se pronunciou
imediatamente, sugerindo aos Alemães que não ia entrar e, assim, precipitando a
Alemanha a desencadear as operações11.
A verdade é que a Inglaterra, a grande potência tradicional ao longo do século
XIX, a grande potência capitalista, dominante no plano comercial e marítimo, teve esta
sua posição económica no mundo posta em causa crescentemente no último quartel do
século XIX. Isto porque se deu um desenvolvimento industrial e militar alemão que
disputava a sua posição económica no mundo e que ameaçava fazer-lhe perder também
a superioridade em termos de marinha de guerra, nomeadamente, com a construção dos
couraçados que a Alemanha intensificou no princípio do século XX, sob a direcção do
almirante Tirpitz. Além disso, no fim do século XIX, a Inglaterra tinha intervindo na
guerra dos Boers, na África do Sul, colocando-se indirectamente em situação
conflituosa com a Alemanha. Em resultado disso, houve como vimos um processo de
aproximação à França e à Rússia, com a formação do Triple Entente, em 1907. A
permanência do domínio inglês dos mares dependia já da sobrevivência da França,
porque por si só a armada inglesa não era suficiente para dominar o Mediterrâneo. O
acesso à Índia e ao Médio Oriente era bastante complicado sem o acesso mediterrânico,
que só era possibilitado pelo domínio francês. Isto são também condicionalismos de
fundo que, para além da questão jurídica da neutralidade belga, são determinantes da
entrada da Inglaterra na guerra.
Das grandes potências da época, a única que se mantém neutral, por enquanto, e
que em 1915 acabará por entrar na guerra numa posição oposta àquela a que pertencia
em termos dos tratados existentes, vai ser a Itália. A Itália era uma das potências da
Tríplice Aliança, mas, no princípio do século XX, foi evoluindo no sentido de relações
económicas crescentes com a França. Os sectores mais activos da sociedade italiana
olhavam com mais simpatia para a França. Nomeadamente, os nacionalistas italianos
reclamavam as chamadas “terre irredente”, territórios com população de língua italiana,
a sul dos Alpes, que tinham permanecido integrados na Áustria aquando da libertação e
11
Efimov, Galkine, Zubok (dir.), História Moderna, vol. II, Estampa, Lisboa, 1977, pp.233-234.
36
unificação da Itália. Quando a Itália entra na Guerra, em 1915, vai ser ao lado da
Entente e contra os seus antigos aliados da Tríplice Aliança, contra a Alemanha e contra
o Império Austro-Húngaro.
12
Transcrição pela aluna Ângela Gomes da aula de 27.10.2004, revista e corrigida pelo docente. A
exposição baseia-se principalmente em Massimo Salvadori, Storia dell’Età Contemporanea, Loescher,
Turim, 1976, pp. 488-506.
13
Efimov, Galkine, Zubok (dir.), História Moderna, vol. II, p.236.
39
meios de tecnologia existentes uma guerra pudesse durar tanto tempo. Isto é uma lição
que pode ser útil para a actualidade e para o futuro.
Há pouco referimos a expressão do Kaiser, “almoço em Paris, jantar em
Moscovo”, que corresponde bastante ao estado de espírito e ao entusiasmo com que as
tropas se mobilizaram. Por exemplo, no caso da Inglaterra não havia tropas de
contingente geral do serviço militar obrigatório. O que houve aí foi um apelo ao
voluntariado, que foi entusiasticamente correspondido. Um autor refere que os jovens se
inscreviam para ir para a guerra como num fim de tarde no baile da aldeia costumavam
entrar num concurso para terminar a festa. E foi nesse estado de espírito que milhões de
homens, nomeadamente jovens, entraram na guerra e poucos meses depois estavam
nesta situação: uma trincheira em frente da outra, sendo que a qualquer tentativa de
surtida e de avanço correspondia uma dizimação em massa.
Esta guerra foi diferente de tudo o que até então era conhecido, quer pela
capacidade dos equipamentos militares, desde logo os novos tipos de canhão e a
metralhadora, assim como outros que só durante a guerra vão sendo desenvolvidos,
como é o uso da aviação. A aviação tem um papel relativamente secundário, mas já tem
de qualquer maneira uma importância que vai para além do simbólico e que não deixa
de impressionar se pensarmos que, na última fase da guerra (1917-18), a esperança
média de vida de um piloto era da ordem das poucas semanas. Houve ainda a entrada
em cena do tanque, em 1916, que vai ter um papel decisivo. E quanto à Marinha são de
referir os couraçados, os contra-torpedeiros e os submarinos. É ainda importante
mencionar a importância das aplicações da indústria química, nomeadamente, dos
explosivos.
Para além destes aspectos técnico-militares, é toda a potência moderna das
siderurgias desenvolvidas desde os finais do século XIX, mas também a força da
capacidade de mobilização dos Estados modernos, os seus meios de coacção para
assegurar a disciplina das populações e das tropas e ainda os meios propagandísticos e
de influência moral, que nunca tinham entrado em funcionamento com esta dimensão.
Nunca tinham sido travadas grandes guerras com aparelhos de imprensa de massa em
pleno desenvolvimento e com um sector já extenso de intelectuais de diversos tipos ao
serviço da propaganda.
40
em termos de efectivos. De maneira que em 1915 a situação era favorável aos Impérios
Centrais, embora eles começassem a sentir os efeitos do bloqueio.
Em 1916, desde Fevereiro, os alemães desencadeiam a ofensiva de Verdun, uma
das grandes batalhas da Guerra que fez para cima de 600 000 mortos em quatro meses, à
qual se seguiu a contra-ofensiva do Somme, onde pela primeira vez foram utilizados
tanques, e essa faz mais de um milhão de mortos. O resultado global foi o fracasso da
ofensiva alemã. Isto levou ao prolongamento da guerra, o que jogava a favor da Entente,
até porque se começa a pôr a hipótese de os EUA entrarem na Guerra, apesar das
repetidas promessas de neutralidade do Presidente americano Wilson, à custa das quais
ele ganhara as eleições e fora reeleito em 1916.
A Alemanha respondeu às dificuldades, usando sistematicamente a planificação
dos recursos internos, o recurso ao fabrico de produtos sintéticos, a introdução do
racionamento. E de um lado e de outro recorre-se crescentemente à integração das
mulheres na indústria e a várias formas de controlo do Estado sobre a produção para os
fins da guerra. A integração das mulheres e dos jovens é um aspecto que terá grande
importância a longo prazo. A emancipação feminina é sem dúvida um dos factos
centrais da história do século XX, para que decisivamente contribuiu a I Guerra
Mundial e a massificação do emprego feminino a que deu lugar.
O prolongamento da guerra tem enormes consequências no plano económico-
social. Em primeiro lugar, é ocasião da realização de grandes lucros para as indústrias
directamente envolvidas, as indústrias metalúrgicas, sobretudo as grandes siderurgias,
as empresas de armamento, mas também algumas empresas têxteis e indústrias
alimentares (por exemplo as conservas, para o abastecimento dos soldados, foram um
ramo que em Portugal prosperou durante a Guerra). Ao mesmo tempo, geram-se
tremendas situações de escassez, porque os campos de cultivo estão destruídos ou a
realização das tarefas agrícolas se torna impossível. No caso dos Impérios Centrais,
acrescem a isto as consequências do bloqueio. Por toda a parte, a escassez gera o
mercado negro e a inflação: verifica-se uma alta dos preços como nunca tinha sido
conhecida na história europeia. (Aquilo que caracterizou a evolução económica durante
a maior parte do século XIX não foi a subida dos preços, mas, pelo contrário, a descida;
a chamada Longa Depressão de 1873-96, que constituía ainda experiência relativamente
recente, tinha sido um período de quebra dos preços.) É certo que, a partir da viragem
42
para o século XX, as tendências inflacionistas tinham-se acentuado, mas não era nada
de comparável ao que vai ter lugar durante a Guerra. O mercado negro, efeito da
disparidade de condições sociais, tem por seu turno a consequência de as agravar, ao
mesmo tempo que propicia a formação de fortunas rápidas. Tudo isto é causa de
desequilíbrios súbitos, chocantes, que assumem aspectos de catástrofe, ao mesmo tempo
que são motivo de escândalo e causam profunda impressão em toda a gente.
A partir de 1916, o entusiasmo nacionalista, que foi o traço dominante da atitude
das populações durante os primeiros tempos da Guerra, vai ser posto em causa em todos
os países envolvidos. Junta-se a isso a evolução que se começa a dar no movimento
operário.
Uma das grandes esperanças de paz, mesmo nas várias situações de tensão e de
crise internacional do princípio do século XX, fora a existência dos partidos socialistas
e da II Internacional. Mas a Internacional fracassou completamente perante os
acontecimentos da Guerra. Apesar das muitas resoluções anteriormente aprovadas
(nomeadamente no Congresso de Estugarda de 1907 e no Congresso de Basileia de
1912), no momento da verdade os partidos socialistas aderiram a posições nacionalistas
e vários de entre eles entram, pela primeira vez, no governo do seu país: é o caso
francês, belga, inglês, nomeadamente; no caso alemão, não entram no governo mas
apoiam activamente. Mas isso desde o primeiro momento gerou algumas oposições,
principalmente por parte da ala esquerda dos partidos. Estas oposições começam a
organizar-se, a partir de 1915, no chamado movimento de Zimmerwald, que é o nome de
uma localidade da Suiça onde fizeram uma primeira conferência. Em 1916 houve uma
segunda conferência do movimento, em Kienthal, também na Suiça.
A resposta dos governos à acção dos opositores vai traduzir-se na acentuação do
autoritarismo do Estado e concretamente daquilo a que se pode chamar a ditadura do
executivo, isto é, em cada país há tendência para centralizar no governo, e mesmo num
chefe único, a responsabilidade político-militar e a convergência de esforços para a
defesa nacional. Este fenómeno é também importante porque abriu caminho para um
tipo de experiência politica que contrastava com o parlamentarismo do século XIX e
que de alguma forma prenuncia o modelo do líder carismático investido de uma grande
autoridade, que depois os fascismos cultivarão. No caso francês é o Primeiro-ministro,
Georges Clemenceau, que assume esses plenos poderes. No caso alemão são sobretudo
43
14
Transcrição pelo aluno Markus Almeida da aula de 29.10.04, revista e corrigida pelo docente.
45
EUA para Inglaterra. O afundamento fez 1200 vítimas mortais e gerou uma primeira
ameaça de intervenção por parte dos EUA, que não se concretizou de imediato. Mas
acentuou-se a partir daí na política americana a vontade de intervenção. Era
essencialmente com os países da “Entente” que os EUA tinham relações, quer políticas,
por via da relação histórica anglo-americana, quer comerciais (embora também tivessem
relações comerciais com a Alemanha, tinham mais com a França e a Inglaterra e mais
créditos investidos nestes países). Joga além disso uma certa afinidade ideológica entre
a democracia americana e os países da “Entente”, que se reclamavam da liberdade e da
democracia contra o autoritarismo e militarismo prussiano.
O facto de, no princípio de 1917, ser interceptado pelos serviços secretos ingleses um
telegrama alemão que garantia ao México determinadas vantagens se estes
desencadeassem a guerra contra os EUA - prometiam ao México, em caso de vitória, os
territórios que no século XIX lhe tinham sido conquistados pela América - criou muita
agitação nos EUA e foi o elemento que precipitou a intervenção americana na Guerra.
A intervenção dos EUA significa obviamente um decisivo fortalecimento da “Entente”.
A Guerra tornara-se, como diz Procacci, “uma rotina macabra”. Apesar do ambiente de
unanimidade nacional com que a maior parte das potências tinha entrado nela, a partir
de 1915, e sobretudo 1916, as condições mudam no plano económico, porque as
dificuldades de abastecimento são crescentes, o que gera o mercado negro. O mercado
negro não só agrava brutalmente as condições objectivas da população trabalhadora,
como junta a isso o aspecto da imoralidade. Porque à sombra do mercado negro
formam-se grandes fortunas e para alguns tudo continua a ser possível, ao passo que a
maioria vive com restrições insuportáveis.
As condições mudam no plano económico e, consequentemente, no plano político.
Nesse aspecto, a prevalência no movimento socialista duma posição patriótica,
nacionalista, começa a ser posta em causa, e a partir de 1915 há mesmo um movimento
organizado que junta socialistas de vários países que reclamam o fim da guerra e a paz
sem anexações nem indemnizações. Tudo isto joga no estado de espírito das populações
e das tropas. Em Maio de 1917 têm lugar importantes motins de tropas em França, que
vão ser defrontados brutalmente, com condenações à morte. Também na Alemanha, um
pouco depois, dá-se um primeiro levantamento dos marinheiros do porto báltico de
46
ser, logo em Abril, a causa da queda do primeiro governo provisório. Estas condições de
divisão diminuem naturalmente a eficácia militar da Rússia na guerra.
Portanto, e voltando à história da evolução da Guerra, a situação ao longo de 1917
continua complicada porque, por um lado, é declarada a entrada na guerra dos EUA, o
que reforça a posição da Entente do ponto de vista militar, material e até do ponto de
vista ideológico. Por outro lado, a Entente está enfraquecida pela crise russa e essa crise
vai acentuar-se quando, já perto do final de 1917, com a Revolução de Outubro, os
bolcheviques, ou seja, o sector mais à esquerda do socialismo russo, tomam o poder.
Essa revolução bolchevique resultou essencialmente do facto de, nos meses que se
seguiram a Fevereiro, se ter desenvolvido, nas classes populares da Rússia, um vasto
movimento de exigência da paz e resolução dos problemas sociais mais imediatos com,
por exemplo, os movimentos de ocupação de terras e de fábricas. Isso reflectiu-se, ao
nível da organização dos sovietes, no crescente peso e influência do partido
bolchevique.
Por outro lado, houve tentativas de golpe de estado da direita pró-czarista. Isso criou as
condições em que foi possível aos bolcheviques encabeçarem uma iniciativa de tomada
do poder destinada a acabar com o governo provisório e colocar o poder nas mãos dos
sovietes. Por isso, a Revolução de Outubro também se chama Revolução soviética.
E quais são as consequências desta revolução no que diz respeito à guerra?
Os bolcheviques eram contra a guerra e tinham no seu programa pôr-lhe termo o mais
depressa possível. Logo na manhã de 25 de Outubro (7 de Novembro), o Comité
Militar-Revolucionário do Soviete de Petrogrado, que dirigira a insurreição, faz afixar a
seguinte proclamação:
E logo no dia seguinte, na sessão do II Congresso Panrusso dos Sovietes, são aprovados
os primeiros decretos do poder soviético, justamente sobre a paz e sobre a terra. O
Decreto sobre a Paz, no seu primeiro parágrafo, “propõe a todos os povos em guerra e
aos seus governos começar negociações imediatas sobre a paz justa democrática”, quer
dizer, a paz sem anexações nem indemnizações.
51
15
Transcrição pelo aluno Markus Almeida da aula de 29.10.04, revista e corrigida pelo docente.
52
era preciso impor aquilo a que se chamou de “paz cartaginesa”16, ou seja, colocar a
Alemanha numa situação tal que jamais pudesse levantar-se para iniciar outra guerra e
fazê-la pagar pelas destruições causadas. Consideravam portanto a Alemanha
responsável pela Guerra e que, mesmo tendo mudado de regime, devia ser obrigada a
indemnizar os vencedores - em termos de alterações territoriais e de pagamentos em
dinheiro.
É esta temática que vai dominar as negociações da Conferência de Versalhes, que se
reúne em Janeiro de 1919 e só vai terminar em Junho desse ano. Conferência na qual a
Alemanha só foi convidada a participar no fim para assinar aquilo que os vencedores
tinham resolvido.
Vale a pena contrastar o conteúdo das resoluções da conferência de Versalhes com
aquilo que eram os objectivos declarados nos 14 pontos do presidente Wilson. Esses 14
pontos incluíam a abolição da diplomacia secreta, a liberdade de navegação, o comércio
livre internacional e a redução de armamentos. Portanto, condições de liberdade e
igualdade entre todos os Estados, nomeadamente nas relações económicas
internacionais.
No aspecto das nacionalidades, os 14 pontos compreendiam: a evacuação da Rússia;
restauração da soberania da Bélgica; restituição à França da Alsácia e Lorena;
rectificação das fronteiras italianas segundo o princípio das nacionalidades;
independência dos povos da Áustria e Hungria; evacuação da Roménia, da Sérvia e
Montenegro; independência dos povos do Império Otomano e independência da Polónia
com acesso ao mar. Havia ainda um ponto relativo à satisfação de justas pretensões
coloniais, portanto dentro da ideia de que era preciso remodelar o regime colonial.
O 14º ponto era o estabelecimento de uma organização internacional (é a Sociedade das
Nações, que fica sediada na Suiça).
As negociações de Paris reúnem representantes de 32 estados, mas os 32 elegem um
conselho de 10 e, na prática, quem realmente decide são quatro primeiros-ministros, os
representantes da França, Clemenceau, da Inglaterra, Lloyd George, dos EUA,
Woodrow Wilson e, de início, também o primeiro-ministro italiano, Orlando. Mais tarde
Orlando abandonou a conferência por não ver as ambições italianas de extensão
16
Expressão derivada das condições impostas por Roma a Cartago após as Guerras Púnicas (séc.
II a.C.).
56
territorial, prometidas pela Inglaterra e pela França no tratado secreto de Londres a troco
da entrada na Guerra, serem correspondidas. A única coisa que a Itália alcançou foram
alargamentos a norte, como veremos, muito aquém do que lhe fora prometido (a maior
parte da Dalmácia, territórios na Líbia e na Eritreia, concessões mineiras na Ásia
Menor).
Da conferência vão sair 5 tratados, cada um com um país derrotado na guerra. O tratado
principal era o tratado com a Alemanha, concluído a 28 de Junho de 1919 e que é o
famoso tratado de Versalhes. Todos estes tratados foram assinados em palácios à volta
de Paris, sendo o de Versalhes o tratado mais importante. E por isso se chama a este
conjunto de tratados e à arquitectura de disposições deles resultante “sistema de
Versalhes”. O Tratado de Versalhes foi o primeiro, seguiu-se o Tratado de Saint-
Germain com a Áustria em 10 de Setembro de 1919, o Tratado de Neuilly com a
Bulgária em 27 de Novembro de 1919, o Tratado de Trianon com a Hungria em 4 de
Junho de 1920, e o Tratado de Sèvres com a Turquia em 10 de Agosto de 1920. O
pacto da Sociedade das Nações passou a fazer parte integrante destes tratados, de que
era o Preâmbulo.
57
Nos vários países a última fase da Guerra foi marcada por uma acentuação da
conflitualidade social e política.
O primeiro país onde essa
conflitualidade explodiu numa revolução
foi a Rússia, em Fevereiro (aliás Março,
segundo o nosso calendário) de 1917,
desencadeando-se a partir daí um
processo revolucionário que desembocou
na revolução socialista de Outubro, ou
como dantes se dizia oficialmente na
URSS, “a Grande Revolução Socialista
de Outubro”. Era uma expressão que
reproduzia aquilo que antes fora a designação da própria Revolução Francesa (também
se falava na Grande Revolução Francesa): para significar que a Revolução de Outubro
tinha um alcance histórico mundial comparável, ou até superior, ao da Revolução
Francesa de 1789.
Aquilo que se passou na Rússia foi uma manifestação agudizada e aumentada de
tendências de ruptura social e política que se manifestaram noutros países e que
levavam muita gente a pensar que, nomeadamente, uma revolução social e política
poderia eclodir na Alemanha. Efectivamente isso acontece, desde Setembro de 1918 que
os exércitos alemães estão em recuo, a derrota dos Impérios Centrais é uma certeza.
Mas aquilo que vai precipitá-la é a recusa dos soldados. O episódio que desencadeia a
revolução na Alemanha é a recusa dos marinheiros da frota do Báltico de realizarem
determinadas missões militares que lhes tinham sido atribuídas e para as quais eles já
não estão dispostos a arriscar a vida numa situação em que era evidente que a Guerra
estava perdida para a Alemanha. Esse levantamento dos marinheiros conduziu a uma
revolução generalizada, que em certos aspectos imita a Revolução Russa, com a
17
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 05.11.2004, revista e corrigida pelo
docente.
58
formação de conselhos semelhantes aos sovietes de soldados e operários. Mas logo aqui
há uma diferença: no caso alemão não há sovietes de camponeses, isto é, os camponeses
não são uma classe politicamente activa no sentido revolucionário. Para além de serem
também uma percentagem da população muito mais pequena do que na Rússia. De
qualquer maneira, não se mobilizaram, e isso é uma das diferenças estruturais que há
entre as duas sociedades, e mesmo mais globalmente entre as sociedades ocidentais e a
Rússia, que explicam que, na Europa ocidental, nunca se tenha chegado a uma
revolução semelhante à revolução soviética.
Em consequência da revolução na Alemanha, da abdicação do Imperador e do fim
do Império, é concluído o Armistício de 11 de Novembro, que marca o fim da I Guerra
Mundial. Antes disso, em consequência da derrota militar, já em Outubro tinha deixado
de existir o Império Austro-Húngaro, que deu lugar à formação de uma série de novos
Estados.
O problema que se põe no final de 1918 é que os Aliados ganharam a Guerra, é
preciso criar novas estruturas políticas, reorganizar o mapa político europeu, e de certa
maneira reconstituir o mundo em bases novas. É essa a intenção manifestada pelos
Aliados. Todos os governantes tiveram de prometer, para assegurar a participação das
populações, que a Grande Guerra seria a última das guerras. Por um lado, essa ideia de
que valia a pena o esforço supremo, porque depois se entraria num mundo liberto
definitivamente de catástrofes semelhantes, por outro lado a força que o movimento
socialista revelava, obrigavam aqueles que queriam evitar uma solução de tipo socialista
a idealizar algo como solução verosímil para o estabelecimento duradouro da Paz. É
neste aspecto que foi importante o Presidente Wilson, como representante dos EUA,
cuja participação fora decisiva para a conclusão vitoriosa da Guerra e dava, na visão de
muitos, um significado novo ao próprio objectivo da vitória. Wilson tinha-se arvorado
em porta-voz de um conjunto de princípios, nomeadamente os chamados catorze pontos
que constituíam o seu programa de paz, baseados na auto-determinação (o princípio do
direito dos povos à constituição dos seus Estados), na liberdade do comércio e das
comunicações, e além disso na ideia da constituição de uma Sociedade das Nações que
permitiria a solução pacífica dos litígios e uma regulação das relações internacionais
capaz de dar conteúdo concreto àqueles princípios. Porém, a França e a Inglaterra eram
as grandes potências aliadas que desde princípio tinham estado comprometidas na
59
Guerra e as que mais tinham sofrido em termos humanos e materiais. Quer dizer, eram
protagonistas que não se identificavam, embora antes do fim da Guerra não o dissessem
claramente, com o idealismo do Wilson. Nomeadamente o primeiro-ministro francês,
Clemenceau, por várias vezes exprimiu a ideia de que se tratava de fazer a Alemanha
pagar pelo que tinha cometido e de a sujeitar a condições que lhe não permitissem voltar
a levantar-se como grande potência. A Inglaterra tinha uma posição um pouco diferente,
mas que também não se identificava com o idealismo americano. Para discutir tudo isto
e chegar a soluções concretas, reuniu-se uma série de conferências destinadas a regular
a situação das potências vencidas, conferências que decorreram em cinco palácios
diferentes dos arredores de Paris, e de que resultaram, como referi, os cinco tratados que
no seu conjunto formam o sistema de Versalhes.
Olhando para dois mapas da Europa, de 1914 e 1924, há uma diferença que salta aos
olhos, que é a substituição de uma mancha única correspondente ao Império Austro-
Húngaro, em 1914, por um mosaico de Estados, no mapa que retrata a situação após a
60
Ainda em relação ao corredor polaco, interessa dizer que Dantzig, que fica situada
no extremo do corredor polaco, era uma cidade também de população
predominantemente alemã. Dantzig torna-se cidade livre sob a tutela da Sociedade das
Nações. É este estatuto jurídico que a coloca em independência em relação à Alemanha
e com um estatuto próprio em relação à Polónia. Também portanto uma cidade com
uma larga tradição histórica alemã e que é retirada à soberania alemã. Esta questão de
Dantzig, em relação com o corredor polaco e a separação da Prússia Oriental, vai ser
grande motivo de agitação e protesto dos nacionalistas alemães e, em 1939, fornecerá o
pretexto final para a Alemanha nazi desencadear a II Guerra mundial.
Voltando às alterações territoriais a ocidente, elas não se resumiram à restituição da
Alsácia-Lorena e à entrega do Eupen-Malmédy. A Alemanha não existia como Estado
unificado antes de 1870. A região da Renânia tinha a sua especificidade e era, sem
dúvida, historicamente a mais próxima da Europa ocidental, e em vários aspectos em
comunicação próxima com a França e a Bélgica, até no aspecto cultural e político. Com
base nisto, os representantes franceses em Versalhes chegaram a ter pretensões de
separar a Renânia da Alemanha e constituir um novo Estado, que na prática seria um
Estado ligado à França. No entanto, isso não aconteceu, os Ingleses e os Americanos
não aceitaram. De qualquer maneira a França conseguiu impor uma parte das pretensões
que tinha em relação à região do Sarre. As minas de carvão do Sarre tinham um grande
interesse económico e vão ser exploradas pela França, embora a região fique sujeita
politicamente à SDN. Estabelece-se em Versalhes que a pertença definitiva do Sarre
será decidida por plebiscito a realizar quinze anos depois, em 1934. Assim foi, e em
1934 a maioria da população do Sarre votou pela integração na Alemanha, o que
constituiu um dos primeiros grandes êxitos da política externa de Hitler.
Mesmo sem autonomizar politicamente a Renânia, a França conseguiu que ficasse
estabelecido no tratado um estatuto próprio da região do ponto de vista militar. A
Renânia era dividida em três zonas sujeitas a ocupação militar pelos Aliados, uma parte
por cinco anos, outra por dez, e outra por quinze. Além disso, fica estabelecido que
numa faixa, que inclui toda a margem esquerda do Reno e também cinquenta
quilómetros na margem direita, a Alemanha não poderá nunca ter fortificações militares
nem estacionamento de tropas – é aquilo a que se chama a desmilitarização da Renânia.
62
É igualmente importante, para se perceber a História dos anos vinte e trinta, tudo
aquilo que resulta do fim do Império Austro-Húngaro.
A Áustria era o núcleo histórico do Império, por isso mesmo tinha uma grande
capital, Viena, que é ainda hoje uma das grandes cidades europeias, grande em
dimensão, em prestígio arquitectónico e artístico. Era uma grande capital com gente
vinda de toda a parte da Europa e até da Ásia, um cruzamento de civilizações. E não é
por acaso que Viena foi também uma das grandes capitais culturais da Europa no final
do século XIX, onde viveram pensadores e artistas de grande projecção no século XX:
basta citarmos nomes como Freud, Schoenberg, Mahler, Wittgenstein, Robert Musil,
para dizer apenas alguns nomes ao acaso. Agora passa a ser uma enorme capital de
quase dois milhões de habitantes num país de seis milhões de habitantes. Onde o
movimento socialista é bastante forte, numericamente e pela produção teórica, e muito
bem organizado. Isto num país predominantemente rural. Esse contraste entre uma
capital urbanizada e socialista e um país rural e predominantemente católico vai marcar
muito a história da Áustria entre Guerras.
A nova Áustria é um país etnicamente homogéneo, de população germânica. A
integração na Alemanha correspondia ao sentimento de uma grande parte da população,
e era nomeadamente defendida pelos socialistas. Mas esta integração (o “Anschluss”) é
formalmente proibida pelo tratado de Versalhes.
A Áustria sofreu perdas territoriais nomeadamente para a Itália, na região a Sul dos
Alpes e à volta da cidade de Trento, assim como perdeu a cidade de Trieste e a Ístria.
Mas a Itália não ficou satisfeita. Orlando, o primeiro-ministro italiano, abandonou a
Conferência de Versalhes a certa altura porque estava zangado com os resultados, e essa
insatisfação italiana teve grandes consequências também na história de Itália.
A Hungria torna-se também um pequeno país com oito milhões de habitantes e um
terço da superfície anterior, porque perde a Transilvânia para a Roménia.
Constitui-se a Checoslováquia, onde já havia um movimento de unificação nacional
dos checos e dos eslovacos com uma história anterior à Guerra. Os checos têm a capital
em Praga e dominam a região da Boémia e da Morávia, parte ocidental da
Checoslováquia. A Checoslováquia é um Estado plurinacional composto pelos checos,
eslovacos, e rutenos, mas também com um grande núcleo de alemães na zona de
fronteira com a Alemanha. Que são, como vimos, os Sudetas, mais de três milhões.
63
seja o actual Iraque, e dominava também aquilo que corresponde ao Líbano, à Palestina,
à Síria. Depois de 1918 fica praticamente reduzido à Anatólia. Os territórios do Império
Otomano no Médio Oriente são distribuídos entre a França e a Inglaterra. Mas, como os
princípios anti-colonialistas do Wilson obrigavam a dar uma certa aparência de
independência a esses territórios, são atribuídos sob a forma de mandatos da Sociedade
das Nações. Quer dizer, o sistema de Versalhes não acabou com as colónias, nem
acabou com os Impérios coloniais francês e inglês. Mas, em relação aos territórios que
não pertenciam anteriormente à França e à Inglaterra, estes não são atribuídos
directamente mas sim como mandatos da Sociedade das Nações. O território ficava sob
tutela formal da Sociedade das Nações, mas há uma potência colonial que tem o
encargo de, para benefício dos povos tutelados e da sociedade internacional, realizar
funções de administração. É isso que acontece com a Síria e o Líbano, que são
atribuídas como mandato da Sociedade das Nações à França, e com a Mesopotâmia, ou
seja o Iraque e o Kuwait, bem como a Transjordânia e a Palestina, que são atribuídas
como mandato à Inglaterra.
Último aspecto da transformação territorial da Europa é a formação dos novos
Estados na fronteira com a Rússia: a Finlândia, que já no tempo do czarismo gozava de
certa autonomia, e a que é outorgada a independência pelos Russos a seguir à revolução
bolchevique; a Estónia, a Letónia e a Lituânia, que foram abandonadas pela Rússia na
sequência da paz de Brest-Litovsk com a Alemanha; e a constituição da Polónia como
grande Estado no centro-leste da Europa, cuja fronteira com a Rússia deveria passar,
nos termos estabelecidos a seguir ao tratado de Versalhes, pela linha Curzon. De facto,
em consequência da guerra russo-polaca de 1920, a Polónia alarga o seu território e a
fronteira acabará por passar muito a leste da linha Curzon, deixando na Polónia, até
1939, uma parte da Bielorússia.
A Roménia fica muito alargada e integra no seu território população também
heterogénea, em parte húngara, e também russa. De facto, este engrandecimento da
Roménia tem a ver essencialmente com o interesse francês.
Houve ainda algumas redistribuições coloniais em África. A Alemanha perde
completamente as colónias que tinha em África, o Sudoeste Africano, que corresponde
à actual Namíbia, é integrado na África do Sul, e esse vai ser um novo problema
colonial. Havia, além disso, a África oriental alemã, que vai passar para os Ingleses. Os
65
Camarões passam para a França, assim como o Togo. Mas, em todos estes casos se trata
de mandatos, embora na prática a situação seja pouco diferente. O Congo belga tem um
pequeno alargamento da fronteira.
As colónias alemãs do Pacífico passam para a Austrália e para o Japão.
18
Aquilino Ribeiro, Alemanha Ensanguentada, Livraria Bertrand, Lisboa, 1935.
66
Estados, com grande impacto nas relações internacionais: o colapso do império alemão,
do império austro-húngaro, a formação de novos países- mas trata-se essencialmente de
mudanças nas superestruturas políticas.
Já ao nível das bases da organização socio-política, no que diz respeito à propriedade, à
consistência dos aparelhos de Estado – não só das suas cúpulas mas das formas
institucionais e do enraizamento da força militar –, o quadro que se nos apresenta é
diferente. Ao passo que na Rússia pudemos assistir à desagregação do exército, esta
desagregação praticamente não se verificou em mais nenhuma parte, a não ser
temporariamente em países do Império Austro-Húngaro, que naturalmente foram
afectados pela ruptura do regime. Mas, nos países da Europa ocidental, os vencedores
celebravam a vitória. Especialmente os exércitos francês e inglês, e sobretudo os
franceses que tinham sofrido mais e beneficiavam do prestígio inerente a uma vitória
duramente conquistada. Decerto um prestígio que é também fomentado politicamente,
mas que encontrava eco na população. No que diz respeito à grande potência derrotada,
a Alemanha, é verdade que o exército alemão também sofreu movimentos de
contestação importantes. É verdade que durante a revolução de Novembro de 1918
houve fenómenos que podem ser comparados àquilo que ocorreu aqui em Portugal, com
certas movimentações militares, em 1974-75. Quer dizer, encontravam-se
destacamentos que eram conquistados por facções revolucionárias, mas é um fenómeno
minoritário. O facto de as decisões do tratado de Versalhes terem proibido o serviço
militar obrigatório na Alemanha e terem portanto obrigado à existência de um exército
estritamente profissional, e com um contigente limitado, possibilitou que o espírito de
corpo, muito marcado na tradição do exército alemão, se recompusesse rapidamente,
apesar da derrota, e cuidasse de preservar a sua autonomia para não ser atingido pela
influência dos movimentos sociais.
Outro aspecto importante do aparelho de Estado é o que diz respeito ao
funcionamento da educação. As universidades tinham na Alemanha uma forte tradição
conservadora que pouco foi afectada pela revolução política. Também as universidades
mantiveram esse espírito de corpo.
O aparelho judicial manteve-se de pé com a mesma composição, a mesma extracção
social. De maneira que a posteriori pode dizer-se, como escreve Massimo Salvadori,
70
que a crise foi das instituições e das técnicas do poder mais do que propriamente da
estrutura do Estado19.
De qualquer maneira, vale a pena referir resumidamente os acontecimentos principais
nos vários países.
Na Alemanha, como vimos, dá-se em Novembro de 1918 uma revolução resultante da
rebelião das tropas, em primeiro lugar dos marinheiros. Num curto espaço de tempo
constituiu-se uma estrutura de conselhos de operários e de soldados, o que fez pensar
que se estava a reproduzir o que passara na Rússia revolucionária com os sovietes.
Contudo, desde os primeiros dias e mesmo depois de a revolução ter conduzido à
abdicação do imperador e à proclamação da República, tornaram-se claras as diferenças
em relação ao que se passou na revolução russa. Em primeiro lugar, a ausência do
campesinato nas lutas sociais. Embora em algumas regiões - nomeadamente na Prússia
oriental - persista o problema agrário, com a existência de grandes latifúndios e a
existência de uma massa de trabalhadores rurais muito explorados, muitos de origem
polaca. O certo é que esses trabalhadores são trabalhadores que se sujeitam às tradições
da velha aristocracia prussiana e portanto não constituem propriamente um campesinato
sedento de terra, reclamando a terra. É uma parte da classe trabalhadora em que o
movimento operário não conseguiu ganhar influência consistente.
Nas zonas mais ocidentais da Alemanha, onde havia um campesinato independente,
justamente esse campesinato independente tinha ao longo do século XIX prosperado,
tinha-se estabilizado como classe possidente, e não é portanto minimamente sensível às
temáticas socialistas. Portanto, apesar de nos programas teóricos do socialismo alemão a
questão agrária ter uma longa história, haver longas análises e de os socialistas terem o
seu programa agrário, a verdade é que essa tentativa de conquista dos camponeses
nunca conseguiu, antes da Guerra, um êxito suficiente, e isso reflecte-se no pós-guerra,
na ausência da mobilização dessa classe.
De uma maneira geral, no Ocidente a situação do campesinato é, salvo poucas
excepções, caracterizada pelo conservadorismo, que é a regra. Essas excepções são no
sul da França, onde havia um pequeno campesinato identificado com as causas de
esquerda (a tradição da Revolução Francesa e a República), mas que não constitui um
19
Massimo Salvadori, Storia dell’Età Contemporanea, Loescher, Turim, 1976, p.562.
71
20
V. José Luís de Moura Jacinto, O Trabalho e as relações Internacionais, Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2002, p. 207.
75
A revolução húngara foi derrotada por dois factores essenciais. Por um lado nunca
conseguiu o apoio camponês, em parte por erros de radicalismo, de sectarismo que
levaram ao isolamento da classe operária. Por outro lado, foi derrotada militarmente por
uma intervenção conjunta da Roménia e da Checoslováquia, com o apoio da França
sobretudo. Assim, este governo foi derrotado no verão de 1919. No início pareceu uma
derrota momentânea, mas era o princípio do fim da grande vaga revolucionária do pós-
guerra. Depois de um breve governo social-democrata, que nem durou uma semana, o
poder foi conquistado pelas forças mais reaccionárias, que desenvolveram uma
repressão violentíssima sobre os participantes da república dos conselhos. Foi o
governo do regente Horthy, almirante de um país que deixara de ter Marinha. O
almirante Miklos Horthy, representante da velha classe senhorial, intitulou-se regente,
porque a Hungria voltou a ser uma monarquia, mas ao mesmo tempo recusou o regresso
do herdeiro do trono, porque não estava disposto a abdicar do seu poder pessoal.
Durante a II Guerra mundial o Horthy colaborou com o Hitler e chegou até a ser julgado
no tribunal de Nuremberga, que o absolveu. Depois encontrou acolhimento junto do
Salazar, no Estoril, onde veio a morrer em 1957. Tal como aconteceu com alguns outros
representantes das casas reais europeias que tinham ficado desempregados em resultado
da II Guerra mundial.
Resumindo. Foi num contexto de grandes expectativas de transformação socialista que
se fundou em 1919 o Comintern, ou seja, a Internacional Comunista ou Terceira
Internacional. Aqueles que viram o filme da semana passada, viram lá o Lenine na sua
intervenção no I Congresso do Comintern, dizendo: “não temos dúvidas que a vitória da
revolução soviética mundial esta assegurada”. O Zinoviev, que foi eleito presidente da
Internacional Comunista, faz um discurso dizendo que a vitória do comunismo na
Europa não é uma questão de anos, é uma questão de meses ou de semanas, porque eles
olhavam para o que se passava na Alemanha, onde é certo que a insurreição
espartaquista tinha sido derrotada mas havia a República de conselhos da Baviera,
olhavam ao que se passava na Hungria onde acabava de se impor a República dos
conselhos de Budapeste, olhavam para o que se passava na Itália onde havia um
movimento intenso, não só do operariado mas também de trabalhadores rurais, e um
grande Partido Socialista com um programa bastante radical. A fundação da
Internacional Comunista teve no imediato um eco favorável numa grande parte dos
78
implantação popular, nesta altura, é o partido democrata-cristão, que tem então o nome
de Partido Popular Italiano.
Este partido tem mais de 20% dos votos. É, nesta fase, um partido reformista dirigido
por um precursor do catolicismo de esquerda chamado Luigi Sturzo, que era padre.
Nunca se deu uma coligação entre os socialistas e esta força reformadora porque no
socialismo da época existe um forte peso do anticlericalismo. Além de que os populares
(democratas-cristãos) têm a sua base no campesinato, os socialistas são operários, têm
as ligas agrárias, não querem saber grandemente da questão dos pequenos proprietários.
A verdade é que a situação que se desenvolve em 1919-20 parece confirmar o tal
maximalismo, a ideia de que os socialistas intransigentes por si sós poderão conquistar
uma maioria populacional. No Verão de 1920, em reacção ao lock-out das fábricas da
FIAT de Turim, os operários, organizados em conselhos de fábrica, decidem não só
uma greve, mas uma greve com ocupação das fábricas e continuação da produção. O
que exige já um certo grau de organização. Este é um movimento que não fica
circunscrito a Turim mas se alarga às principais cidades do norte, nomeadamente Milão
e Génova.
Este movimento de ocupações de fábrica gerou uma enorme esperança, um sentimento
de que a revolução estava iminente, tanto mais que nesta acção também participavam
intelectuais que então aderiram ao movimento socialista, alguns dos quais vieram a ser
figuras de certo significado no pensamento político da esquerda do século XX: Antonio
Gramsci, por exemplo, uma figura de grande importância do pensamento político
socialista mas também da sociologia da cultura e da sociologia política em geral, a partir
da obra que vem a escrever em cadernos dispersos, em condições difíceis, na prisão, sob
a ditadura de Mussolini. Foram os famosos Cadernos do Cárcere, que constituem o
essencial da sua obra de maturidade. Na época do movimento dos conselhos de fábrica,
em que era ainda jovem, ele foi um dos organizadores do movimento e um dos seus
ideólogos através de um jornal chamado L’Ordine Nuovo (a ordem nova), de que era o
redactor principal. Outra figura também importante na História e que esteve envolvida
neste movimento foi o homem que depois se tornou o líder do Partido Comunista
Italiano durante mais de trinta anos, Palmiro Togliatti, também ele um intelectual.
O certo é que, apesar de toda a projecção que alcançou, o movimento das ocupações de
fabrica foi uma vaga que se desfez na areia, por assim dizer. Com a habilidade do
84
primeiro-ministro Giolitti, uma figura histórica da política italiana. O Giolitti era uma
velha raposa que tinha já um longo passado de governante nos tempos anteriores à
Guerra e desde o século XIX, mas Gioliti tinha sido um opositor da guerra e por isso
estivera um bocado afastado e só regressou ao poder em 1920. Ele apercebeu-se de duas
coisas: primeira, que o movimento podia ser canalizado num sentido puramente
sindical, porque o Partido Socialista tinha ficado passivamente a olhar o que se passava;
segunda, sendo sindical, poderia ser tratado pela via das negociações de trabalho, com
o governo como terceira parte nas negociações entre patrões e operários. Assim,
favoreceu uma solução que garantia aumentos salariais e férias pagas, simultaneamente
adiando (mas sem as negar formalmente) as reivindicações políticas relativas ao
controlo operário. Depois desse acordo o movimento refluiu.
Esta derrota, que se deu já num contexto em que globalmente, a nível europeu, a grande
vaga revolucinária do pós-guerra estava em refluxo, vai acentuar a desmoralização na
esquerda socialista e aprofundar as divisões do Partido Socialista Italiano. Divisões que
vinham de trás, mas que estavam apagadas num período de crescimento e de êxito.
Quando as dificuldades começam, agravam-se as divisões, nomeadamente porque há
uma forte componente reformista do socialismo italiano que procurava uma
participação num governo de coligação e tentava pôr de lado as ideias revolucionárias.
Por outro lado, a ideia da ditadura do proletariado, de que o proletariado se tornaria a
classe governante, não tinha tido qualquer concretização prática. Os maximalistas
dirigiam o Partido mas não o conduziam à conquista do poder. E a direita socialista,
que reflecte a influência de sectores de pequena-burguesia e da intelectualidade,
indispensáveis em instituições como o grupo parlamentar ou o governo das autarquias,
tem um grande peso no partido. Nestas condições, o patronato, que do ponto de vista
socio-económico e até da sua organização patronal se tinha reforçado durante a guerra,
mas que no imediato pós-guerra se encontrou numa posição defensiva, agora anima-se
para resistir mais vigorosamente às greves operárias e às reivindicações operárias em
geral, tanto mais que o começo da crise económica de 1921 é favorável a desencadear o
ataque contra os sindicatos.
Aquilo que em parte torna especial a situação italiana é o ambiente das consequências
da Guerra e das decepções pela chamada vitória mutilada. Os principais animadores do
nacionalismo italiano e do Interventismo (a minoria partidária da entrada na Guerra)
85
guerra vai pôr estes dois grupos em contradição. Por outro lado, tudo isto não existe
como um mero fenómeno social, mas é trabalhado politicamente. E quem é que vai
trabalhar politicamente e finalmente conduzir com êxito esta reacção antisocialista ? Vai
ser um grupo, e em especial um homem que já antes da Guerra gozava de certo carisma,
chamado Benito Mussolini, com uma carreira estabelecida no Partido Socialista
Italiano, com toda a formação da esquerda italiana anticlerical e antimilitarista, que aos
trinta anos era director do jornal Avanti!. Um líder conhecido da esquerda do socialismo
italiano mas que em 1914, pouco depois da eclosão da Guerra, defende que os
socialistas devem fazer campanha pela intervenção e, como essa sua posição não é
aceite, ele separa-se, cria um novo jornal chamado Il Popolo d’Italia e agrupa em torno
desse jornal um grupo de defensores da intervenção de Itália na Guerra. Em 1915, a
causa dos interventistas impõe-se, isto é, a Itália entra efectivamente na Guerra ao lado
da Entente, portanto contra a sua posição anterior de pertença à Tríplice Aliança.
Mussolini foi então o organizador de um movimento chamado Fasci d’azione
rivoluzionaria. Fascio significa em português feixe, e remete para o símbolo de poder
dos lictores, magistrados da antiga Roma, uma espécie de machado assente num feixe
de varas unidas. Esta ideia do feixe ou fascio significa portanto a união do que estava
disperso. A palavra fascio aparece-nos em diversos movimentos sociais na história
contemporânea de Itália, existem por exemplo fasci operai nas origens do movimento
operário italiano; e nos finais do século XIX houve na Sicília um movimento de
organizações de trabalhadores rurais conhecidas como fasci siciliani.
Os fasci d’azione rivoluzionaria eram organizações do “interventismo”, i.e. dos
partidários da participação na Guerra. Depois da Guerra, Mussolini cria um novo
movimento, os fasci di combattimento, ou seja, os feixes de combate, expressão que
evoca a experiência da guerra e se propõe continuar, na política italiana, os princípios
de solidariedade, dedicação patriótica e chefia de tipo militar, como condição de
salvação nacional. Portanto, transpõe para as novas condições e para a renovação do
país a disciplina militar. Este movimento entra em cena em 1919, inicialmente com um
programa reformador (o Programma di San Sepolcro), que exigia uma assembleia
constituinte e punha a questão da República, além de preconizar o imposto progressivo
e o combate às grandes fortunas. Desde o início se define como fortemente nacionalista
e por isso anti-socialista, na medida em que os socialistas eram internacionalistas.
87
O movimento não se limita a uma critica política e verbal dos socialistas. Uma das
primeiras acções do recém-nascido fascismo é o incêndio da sede do jornal Avanti,
órgão do Partido Socialista Italiano. A seguir, desencadeia um movimento mais amplo
de violências sobre as sedes dos sindicatos e do Partido Socialista em vários lugares.
São verdadeiras expedições punitivas contra as ligas agrárias e os sindicatos, passando
pela destruição de locais, pela prisão, agressão e assassínio de dirigentes, pela violência
sobre os activistas (ficou conhecido o hábito de obrigarem a engolir óleo de rícino,
como método de tortura). Isto perante a passividade da polícia e do exército – muitas
vezes mesmo com a sua colaboração, bem como a dos tribunais - e com o apoio dos
agrários e industriais que vêem nestas acções um óptimo meio de liquidar o movimento
sindical. É preciso ver que partidos e políticos tradicionais, como Giolitti (e até outros
que mais tarde irão ser vítimas do fascismo), nesta fase acham que o fascismo tem um
papel pedagógico, útil para meter na ordem o movimento socialista, e que por isso há
toda a vantagem em favorecer a sua integração política. Esta atitude explica que, em
1921, para derrotar as listas socialistas nas eleições, se constituam as listas do chamado
Bloco Nacional, em que os fascistas entram ao lado de democratas e liberais. Esta
viragem é extremamente importante, porque aquilo que era um agrupamento
minoritário, muito activo em acções de violência, mas isolado, ganha uma legitimação.
Tinham tido votações irrisórias nas eleições de 1919 e 1920, mas em 1921 conseguem
eleger 36 deputados.
A liderança fascista capitaneada por Mussolini adapta-se a esta situação, sugerindo uma
divisão do movimento fascista entre os violentos e os moderados. Mussolini aparenta
oferecer a alternativa civilizada que as instituições têm vantagem em favorecer,
sugerindo que só ele pode disciplinar os violentos. A verdade é que, com este jogo,
consegue utilizar a violência simultaneamente como meio de intimidação e de
negociação política, protegendo também o fascismo da possível intervenção repressiva
do Estado. É neste contexto que se insere a criação, em 1921, do Partido Nacional
Fascista (PNF), como meio de centralização em torno da figura de Mussolini e de
reforço da capacidade de negociação no sistema político. E é também nesta altura que
Mussolini profere declarações formais de aceitação da Monarquia, de reconhecimento
da Igreja e de fé nos valores do capitalismo, declarações que se situam nos antípodas do
Programma di San Sepolcro com que o movimento fora iniciado dois anos antes, mas
88
que são necessárias para abrir o caminho do poder. De notar que a própria ideia de
“partido” era contrária aos princípios afirmados do fascismo, que via nos partidos a raiz
fatídica de divisão da comunidade nacional.
O desenvolvimento do fascismo dá-se num contexto de instabilidade política,
dificuldade de formação de maiorias ao nível parlamentar e carência de apoio popular às
soluções governamentais. O fracasso, no Verão de 1922, de uma “greve pela
legalidade”, convocada por organizações sindicais para protestar contra a cumplicidade
do Estado nas acções fascistas, reforçou aqueles que preconizavam a integração do
fascismo no governo como solução para a crise política.
Sentindo o ambiente favorável, Mussolini e o PNF encenam uma acção revolucionária,
lançando, a partir de uma assembleia realizada em Nápoles em 24 de Outubro, uma
“marcha sobre Roma” para a conquista do poder. Dispunham para tanto da força das
squadre (milícias) fascistas sob o comando de um “quadrunvirato” de militares,
absolutamente insuficiente para se confrontar com o Exército. O governo liberal de
Luigi Facta preparou um decreto de estado de sítio para contrariar a sublevação. Porém,
o rei Vittorio Emmanuele III recusou promulgar o decreto, obrigando Facta à demissão,
e ao mesmo tempo convocou Mussolini (que se encontrava em Milão, pronto a fugir
para a Suiça se o golpe não resultasse), encarregando-o de formar novo governo. É o
que acontece nos dias seguintes, com a participação do PNF, mas também dos Partidos
Popular, Nacionalista e Liberal, bem como de representantes da hierarquia militar, i.e.
uma representação política completa da classe dominante.
O 28 de Outubro de 1922 foi ulteriormente celebrado como data da “marcha sobre
Roma”, revolução que iniciava a Era Fascista. Na verdade, mais decisiva do que a
marcha das milícias fascistas que, não tendo sido contrariada, se transformou numa
parada celebrativa da nomeação, foi a marcha de Mussolini de Milão para Roma, em
carruagem-cama.
Para os contemporâneos do acontecimento, a “marcha sobre Roma” e a chegada de
Mussolini ao poder foram vistos como um episódio da crise política do pós-guerra, a
que atribuíam mais ou menos importância mas que praticamente ninguém interpretou
como uma viragem histórica. Durante uma reunião em Moscovo do IV Congresso da
Internacional Comunista, logo no mês seguinte, Amadeo Bordiga, então secretário-geral
do PCI, considerou mesmo os acontecimentos como “uma remodelação ministerial um
89
Franco na guerra civil de Espanha), ou ainda sobre movimentos que fracassaram nessa
tentativa (nomeadamente os fascismos franceses).
Segundo Manuel Lucena, não houve regime mais parecido com o fascismo italiano do
que o Estado Novo de Salazar. Apesar do empirismo das soluções práticas, praticamente
todos os elementos definidores do regime de Mussolini, acima referidos, se encontram
reproduzidos em Portugal, nalguns casos com cópia literal das formulações legais. É
típico a esse respeito o Estatuto do Trabalho Nacional (1933), cujos artigos iniciais
constituem tradução quase literal da Carta del Lavoro.
92
93
21
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho, revista e corrigida pelo docente.
94
sociedade italiana, nomeadamente o vasto grupo dos intelectuais e sectores das classes
médias urbanas.
Na Europa Oriental e na Península Ibérica impuseram-se também regimes de tipo
autoritário, reaccionário, anti-democrata e anti-socialista que assentaram sobretudo no
peso tradicional da propriedade agrária, das relações clientelares e da ligação do
exército com a classe dominante tradicional agrária. Foi o caso, ainda antes do fascismo
italiano, do governo do almirante Horthy na Hungria; na Polónia a partir de 1926 com o
governo de Pilsudski, que impôs a sua ditadura em 1926 e foi quem governou até 1935.
Em Portugal os anos do pós-Guerra são os anos da crise final da Primeira República,
que de certa maneira tinha vivido em crise desde a origem, mas essa crise precipitou-se
durante a Guerra. A primeira experiência ditatorial portuguesa consistente foi, em 1917-
18, a de Sidónio Pais (antes disso houve em 1915 o episódio Pimenta de Castro). A
crise vai desembocar em 1926, depois de outras tentativas, num golpe de estado e na
instauração de uma ditadura militar que depois abre o caminho à edificação do Estado
Novo, a mais prolongada ditadura da Europa, até 1974. O caso espanhol é mais
complexo, mas também em Espanha o pós-guerra foi caracterizado por uma situação de
grande agitação social protagonizada sobretudo pelos anarquistas, com violências de
carácter urbano e rural. Essa crise é temporariamente contida pela instauração do regime
paternalista, ditatorial, predominantemente agrário e militar que é a ditadura de Primo
de Rivera, que vai governar entre 1923 e 1930. Em 1930 demite-se e entra-se numa fase
de evolução da qual vai surgir em 1931 a Segunda República espanhola. Todo esse
período da Segunda República espanhola foi marcado por uma conflitualidade intensa
entre direitas e esquerdas que acaba por desembocar no golpe militar direitista do
general Franco, em 1936. Golpe que, fracassando no imediato, gerou uma guerra civil, a
maior guerra civil da história da Europa ocidental no século XX, que se prolongou
durante quase três anos e acabou pela vitória das forças conservadoras chefiadas por
Franco.
Em suma, pode dizer-se que a estabilização e a reacção política e social coincidiram, e
praticamente só sobrevivem como regimes democráticos na Europa, até 1939, a Grã-
Bretanha e a França. No caso das democracias há a registar um processo de evolução
estudado por vários historiadores e sociólogos, e nomeadamente por um historiador
95
americano chamado Charles Mayer, no livro A refundação da Europa burguesa 22. Este
autor faz uma análise comparativa dos anos vinte na Europa, com especial relevo para
os casos da França, da Alemanha e da Itália. E o que Charles Mayer constata é que,
apesar da manutenção das formas democráticas de regime (realização de eleições,
responsabilidade dos governos perante os parlamentos, subsistência da divisão de
poderes, em suma, aquilo que são as características básicas do Estado liberal) há um
processo crescente de interpenetração entre as instituições políticas e os poderes
económicos, que de facto se dá em desvantagem do trabalho e das potencialidades
socialistas adquiridas no imediato pós-guerra. Evolução que limita e condiciona
crescentemente a genuinidade, a autenticidade das próprias instituições da democracia.
Quer dizer, os parlamentos são soberanos, mas de facto no trabalho dos parlamentos é
essencial a acção de comissões especializadas que funcionam em articulação com os
representantes do poder económico. É o poder económico que mais condiciona o poder
político. O autor designa o conjunto destes processos de interpenetração entre o poder
económico e o político como corporatismo, o que não se deve confundir com
corporativismo (este é uma doutrina e uma forma de organização do Estado que vai ser
adoptada como teoria pelos fascismos). Mas entre os dois conceitos não deixa de haver
uma certa relação, isto é, também o corporativismo (dos fascismos) foi uma teoria e
uma tentativa de resposta a este problema da articulação entre o poder público e o poder
económico. É de assinalar o tratamento que é dado nessa obra ao facto de cada vez mais
os sindicatos estarem dependentes do Estado, a própria contratação colectiva é sujeita a
formas de intervenção e negociação nas quais o Estado intervém. É este conjunto de
arranjos tripartidos, envolvendo o Estado, a representação patronal e os sindicatos, que
acabou por limitar, e em muitos dos casos praticamente anular, aquilo que tinham sido
as conquistas, em matéria de representação e poder operário na fábrica, obtidas no pós-
Guerra, quando em muitos países e nalgumas Constituições foram reconhecidos
oficialmente os conselhos de fábrica.
Vejamos agora os principais acontecimentos políticos nos vários países. Os casos de
maior estabilidade política, no sentido de que os regimes democrático-liberais existentes
foram mantidos, foram o inglês e o francês. Não é por acaso que foram as grandes
22
Charles S. Mayer, Recasting Bourgeois Europe, 1975.
96
potências vencedoras da Guerra. Esse factor teve uma grande importância, na medida
em que as dificuldades económicas eram comparativamente menores e os governos
podiam fazer valer o prestígio da vitória conseguida, no sentido da preservação da
unidade nacional nas condições difíceis, de conflitualidade social e de tensões
internacionais, que marcaram o pós-guerra.
Na Inglaterra, em 1918, a seguir ao termo da Guerra, há uma reforma eleitoral
progressista, que correspondeu praticamente à introdução do sufrágio universal,
abarcando a globalidade da classe operária, e que introduz o sufrágio feminino para as
mulheres acima dos 30 anos. As eleições desse ano dão a vitória à coligação de governo
liberal-conservador, presidida por Lloyd George, o chefe liberal. Embora a votação do
Labour (o partido trabalhista) tenha crescido muito, não teve a expressão parlamentar
correspondente. O Reino Unido no pós-guerra tem um problema essencial pela frente
que é o problema irlandês. Uma questão nacional, no próprio território. Em 1914 tinha
sido reconhecido formalmente o direito da administração própria da Irlanda, essa
legislação ficou suspensa por causa da Guerra, em 1916 houve a chamada insurreição
da Páscoa, que foi uma violenta tentativa de revolução independentista esmagada
também violentamente. Mas, nas eleições de 1918, os independentistas irlandeses
conquistam setenta e três lugares no parlamento britânico e proclamam a independência.
Segue-se um período de lutas violentas, mas em 1921 chega-se a uma primeira
resolução parcial do problema, com o reconhecimento do Estado Livre da Irlanda, com
o estatuto de dominion, entidade política autónoma integrada na Commonwealth. É esse
estatuto que a Irlanda alcança, mas permanece a questão da Irlanda do Norte (o Ulster),
que até hoje é um problema em aberto e que deu ao longo de mais de oitenta anos lugar
a violências tremendas. E só agora parece estar em vias de resolução.
As eleições de Dezembro de1923 levam no ano seguinte ao poder, pela primeira vez na
História inglesa e europeia, um governo chefiado por um socialista, o chefe trabalhista
Ramsay MacDonald. Este governo durou apenas alguns meses, teve como principal
realização o reconhecimento diplomático da União Soviética, em 1924 (no seguimento
deste reconhecimento pela Grã-Bretanha é que a maior parte dos Estados começou a
estabelecer relações diplomáticas com a URSS). O que de resto valeu muita contestação
dos meios conservadores, que pouco depois conseguiram provocar novas eleições. Estas
foram dominadas também por um problema político que tinha a ver com a URSS, e que
97
foi a famosa carta de Zinoviev. Tratava-se de uma carta pretensamente dirigida pelo
então presidente da Internacional Comunista ao Partido Comunista britânico sobre
preparativos de uma revolução em Inglaterra. Parece que terá sido um documento
forjado, mas funcionou como demonstração do perigo do bolchevismo, e nesse sentido
favoreceu a campanha conservadora. O novo Parlamento eleito colocou no poder o líder
conservador Stanley Baldwin, cuja política se caracterizou por uma orientação
marcadamente à direita. A principal expressão dessa política foi o restabelecimento do
padrão-ouro, na base da revalorização da libra inglesa. Era uma medida favorável à
finança, desfavorável à indústria, correspondia à pretensão de manter a Inglaterra como
um centro financeiro essencial no mundo, mesmo correndo o risco de alimentar a
conflitualidade social, porque a valorização da libra significou maiores dificuldades na
concorrência internacional para a indústria inglesa (nomeadamente para a produção
mineira, principalmente do carvão, que defrontava a competição crescente do petróleo e
da electricidade). Isto vai desencadear um dos últimos grandes movimentos sociais da
Europa dos anos 20 que foi a greve dos mineiros e depois, em solidariedade, a greve
geral inglesa de 1926. Também aqui se verifica um fenómeno de mobilização de
elementos da classe média, contra os grevistas. Por exemplo a greve dos transportes,
que tinha nascido em solidariedade com as minas, prolongou-se durante meses. Para
furar a greve mobilizavam-se estudantes e intelectuais como condutores de veículos ou
carteiros, por exemplo. A intransigência do governo e dos patrões, combinada com estas
formas de mobilização, derrotou a greve, e foi uma grande derrota do movimento
operário britânico. Embora os trabalhistas de MacDonald tenham voltado a ganhar as
eleições em 1929, logo a seguir defrontam-se com a situação da crise económica
mundial, que os empurra para medidas de deflação, isto é, de corte da despesa pública,
de restrição aos créditos e de corte nos salários, de que a maioria do próprio Partido
Trabalhista discordava. Isto teve como resultado a ruptura entre MacDonald e o partido
e a formação do chamado governo de “união nacional”, chefiado pelo MacDonald mas
com a participação de conservadores. Governo esse que vai durar até 1935, altura em
que regressa Stanley Baldwin. Dois anos depois, em 1937, torna-se primeiro-ministro
uma figura que vai ficar muito conhecida, por maus motivos, na história diplomática do
período anterior à II Guerra Mundial, Neville Chamberlain, o infausto autor da política
do appeasement, do apaziguamento em relação à Alemanha e ao nazismo, política essa
98
que escancarou as portas à expansão nazi ainda antes da Guerra. Em suma, a orientação
da política inglesa durante os anos vinte e trinta, tirando o primeiro governo
MacDonald, de 1924, foi dominada por uma orientação conservadora, quer no plano
económico-social quer nas relações internacionais.
É um panorama semelhante o que se verifica em França, com a diferença de que na
França o regime político se caracteriza por maior fragmentação partidária,
consequentemente também uma maior instabilidade dos governos. Além disso, em
França o factor nacionalista foi ainda mais pesado, uma vez que a França tinha sido o
país mais atingido em termos de destruições materiais, de número de vítimas de Guerra,
e era também por isso o mais intransigente na exigência de reparações da Alemanha.
Nas eleições realizadas imediatamente a seguir à Guerra vence o chamado Bloco
Nacional, chefiado por Poincaré. Este governo segue uma política económica
deflacionista, virada para o equilíbrio das finanças públicas e os cortes de salários, e
consequentemente a repressão da agitação. Em França no imediato pós-guerra tinha-se
dado uma mobilização social importante. A derrota da grande greve dos ferroviários,
em 1919, marcou o final do período de agitação. A orientação conservadora da política
económica do governo francês não conseguiu impedir a desvalorização constante do
franco, nem resolver as dificuldades das finanças para enfrentarem a reconstrução e o
pagamento das pensões dos inválidos. Havia nesta altura nada menos de dois milhões e
meio de inválidos a quem o Estado pagava pensões. A orientação sistemática da política
francesa, até 1923, foi a reclamação intransigente das indemnizações de Guerra à
Alemanha, que tinha enormes dificuldades em satisfazer as reparações fixadas no
tratado de Versalhes. Em consequência, o governo francês decide recorrer à força,
procedendo, em conjugação com a Bélgica, e apesar da oposição da Inglaterra, à
ocupação militar da região do Ruhr, com o fim de explorar directamente os jazigos
mineiros, nomeadamente as minas de carvão aí localizadas. Essa ocupação vai
desencadear, por seu turno, a resistência passiva dos Alemães, uma crise brutal na
economia alemã e uma complicação internacional tremenda, de que se acabará por sair
através de negociações. A partir de 1924, com o restabelecimento da economia alemã e
um conjunto de iniciativas de carácter económico e depois político que são tomadas,
caminha-se para uma certa pacificação, que culmina nos acordos de Locarno, de 1925.
Essa viragem deve-se em parte a uma mudança de governo, com um sentido semelhante
99
à que tinha havido em Inglaterra (e também à que se verifica em Portugal por esta
altura). Em França é a eleição para o governo do cartel des gauches, a coligação da
esquerda chefiada pelo radical Herriot23. Este governo das esquerdas durou pouco
tempo, porque os seus projectos de reforma fiscal foram hostilizados pelos meios
financeiros, e logo a seguir regressou ao poder o Raymond Poincaré. Depois de 1929
também em França se faz sentir a crise, contudo, de uma maneira mais tardia do que na
generalidade dos países europeus, mas também aí gerando uma certa oscilação entre
governos dos radicais e da direita, que de qualquer modo tiveram no seu conjunto uma
política conservadora perante a crise económica. A crise vai abrir caminho, em 1934, a
uma mobilização de tipo fascista, influenciada pela vitória no ano anterior do nazismo
na Alemanha. É na reacção a essa mobilização, perante essa ameaça ao regime
parlamentar republicano, que se vai de novo dar a aproximação das esquerdas, mas
desta vez envolvendo também o Partido Comunista. E isso vai dar origem àquilo que
fica conhecido, a partir de 1935, como Front Populaire, a Frente Popular, que no ano
seguinte, em 1936, ganha as eleições. Mas mesmo esta Frente Popular francesa vai ser
de curta duração, e a curto prazo vai defrontar-se com uma crise importante.
Também a Espanha elegeu em 1936 um governo de Frente Popular, que foi o governo
legítimo do país durante os quase três anos da guerra civil. Sobre isso falaremos numa
das próximas aulas.
23
O partido radical francês era um partido da classe média anti-clerical, comparável ao Partido
Republicano Português da I República, nada tendo a ver com o sentido extremista correntemente
atribuído à palavra “radical”.
100
101
24
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 19.11.04, revista e corrigida pelo
docente.
102
Kreditanstalt, que centralizava uma boa parte dos créditos fornecidos no âmbito da
ajuda americana à reconstrução europeia e estava por seu turno ligado a bancos alemães.
A falência do Kreditanstalt, em consequência da retirada dos capitais americanos, levou
à falência de outros bancos e empresas, com consequências catastróficas não só na
Áustria mas também na Alemanha (e que estão directamente ligadas às origens do
nazismo). É neste contexto que na Áustria chega ao poder o social-cristão Dolfuss, que
vai governar em conjunto com a Heimwehr e instaurar uma ditadura corporativa, que
ficou conhecida como austro-fascismo. O chanceler Dollfuss foi uma espécie de Salazar
austríaco, com a mesma formação católica conservadora, nacionalista, que de resto o
pôs em choque com os nazis austríacos Em 1934, um ano depois da chegado do Hitler
ao poder, os nazis tentam um golpe de Estado na Áustria, que fracassa, mas no decurso
dessa tentativa de putsch Dollfuss foi assassinado. Ao Engelbert Dollfuss sucedeu o
chanceler Kurt von Schuschnigg. Ainda antes dos acontecimentos do falhado golpe nazi
na Áustria, houve um conflito político-social importante em Fevereiro de 1934, dentro
do quadro de imposição das medidas do Estado corporativo austríaco. Os partidos
políticos foram dissolvidos, mas a milícia do Schutzbund, ligada ao Partido Socialista,
resistiu pelas armas. Foi um episódio de certa forma semelhante ao que aconteceu em
Portugal com o 18 de Janeiro de 1934, quando o governo proibiu os sindicatos livres e
obrigou à sua dissolução, o que gerou movimentos de protesto e uma conhecida
tentativa de tipo insurreccional na Marinha Grande. Na Áustria foi semelhante, foi uma
intervenção militar do governo para a dissolução das organizações socialistas, apenas a
dimensão e as capacidades do movimento operário austríaco eram completamente
diferentes. Aquilo que aqui em Portugal foi debelado em algumas horas, na Áustria
foram combates com tiro de canhão. Foi uma espécie de revolução e contra-revolução,
em que venceu a contra-revolução.
Depois, o destino da Áustria confunde-se com os problemas das relações internacionais
da segunda metade dos anos trinta, sendo que a Áustria é anexada pela Alemanha em
1938.
Quanto ao caso da Bulgária. Foi um dos poucos países que conheceram no pós-Guerra
transformações progressistas sob o governo de Stambolisky, o líder camponês que foi
chefe do governo e realizou uma importante reforma agrária, mas acabou por ser
assassinado, vítima de um golpe militar reaccionário, em 1923. Dá-se depois, em
104
derrota militar abriu uma crise política na Grécia, que em 1924 levou à proclamação da
República. Mas esta defrontou-se com uma série de oposições. Em 1935 foi restaurada a
monarquia e instaurada a ditadura militar de Metaxas. Depois, já em 1940, a Grécia é
invadida pela Itália mas resiste, a Itália não consegue impor-se, o que provoca a
intervenção das tropas nazis. Mas também na Grécia durante a Segunda Guerra mundial
se mantêm movimentos de resistência, nomeadamente um importante movimento
dirigido pelo Partido Comunista, que acaba por ser vencido já depois da Segunda
Guerra Mundial pela intervenção da Inglaterra ao lado dos monárquicos, que
conseguem então restabelecer a monarquia (entre 1945 e 1967 voltou a existir a
monarquia, em 1967 houve um golpe de Estado que instaurou a “ditadura dos coronéis”,
derrubada por um movimento democrático em 1974; desde então a Grécia tem um
regime republicano).
Neste quadro de certa violência e instabilidade, e de predomínio das ditaduras nos
países da Europa Oriental, a única excepção positiva é a Checoslováquia, que era
também o país com mais sólidas bases de sociedade moderna. Nas regiões da Boémia e
Morávia havia uma base industrial consistente, havia também um grupo nacional
hegemónico que eram os Checos, foi possível realizar durante algum tempo a união
entre os Checos e os Eslovacos. Havia líderes prestigiados, como Tomas Masaryk, que
governou até 1935, e Benes, que lhe sucedeu. Mas também aqui a crise económica de
1929 se vai fazer sentir num agravamento das tensões étnicas entre Checos e Eslovacos.
O problema maior é porém a questão nacional dos Sudetas, as populações germânicas
na região de fronteira da Checoslováquia com a Alemanha, e essa questão vai ser
precipitada com a chegada de Hitler ao poder, quando ele põe a questão da unificação
de todos os Alemães. Após a anexação da Áustria em 1938, logo a seguir Hitler impõe à
Checoslováquia a integração dos Sudetas na Alemanha. Esta imposição realizou-se com
a conferência de Munique, em Setembro do mesmo ano, que reuniu os chefes de
governo inglês, alemão, italiano e francês, e na qual a Checoslováquia não esteve
representada. Falaremos disso a propósito das origens da II Guerra Mundial. Por agora
basta referir que a anexação dos Sudetas iniciou a desintegração do Estado
checoslovaco, dando-se então também a separação da Eslováquia e, seis meses depois, a
ocupação de Praga pelos exércitos nazis.
106
A Polónia tinha um governo de ditadura militar, desde 1926 chefiado por Pilsudski, um
ex-socialista que foi também uma espécie de herói militar da Polónia na guerra contra a
Rússia de 1920-21, em que a Polónia venceu e conseguiu a anexação de territórios que a
seguir ao tratado de Versalhes tinham sido atribuídos à Rússia: a parte ocidental da
Bielorússia e da Ucrânia, que em consequência da guerra em 1921 foram integradas na
Polónia. O Pilsudski beneficiava desse prestígio de chefe militar, que lhe permitiu tomar
o poder. Também na Polónia a reforma agrária que houve foi em relação a territórios da
parte ocidental da Polónia anteriormente detidos por proprietários alemães. Pilsudski
morreu em 1935. Depois deste governo segue-se o governo dos coronéis, uma sucessão
de governos militares. Mas a Polónia acabaria por ser invadida pela Alemanha, em 1 de
Setembro de 1939, o que foi o primeiro acto da Segunda Guerra mundial. Em
consequência do pacto germano-soviético, a parte oriental do país foi ocupada pela
URSS, que assim recuperou os territórios perdidos na guerra de 1920-21.
Também nos Países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), as únicas reformas agrárias
realizadas foram contra os antigos proprietários alemães. Países pouco populosos,
integrados no Império Russo desde o século XVIII, a sua história tem traços comuns. A
classe dominante tradicional era constituída pelos “barões do Báltico”, de origem alemã.
A seguir à derrota alemã em 1918, houve nos três países tentativas revolucionárias e de
integração na Rússia soviética, que foram derrotadas pelas forças nacionalistas com o
apoio, quer de tropas alemãs, quer dos Aliados. Seguiram-se alguns anos de regimes
parlamentares, mas logo em 1926 dá-se na Lituânia um golpe de Estado que instaura
uma ditadura, o que também acontece, em 1934, na Estónia e na Letónia. Em
consequência do pacto germano-soviético, as repúblicas bálticas foram integradas na
URSS. Invadidos durante a Guerra pela Alemanha, depois de 1945 constituíram
repúblicas da URSS.
Embora integrada no Império Russo desde o princípio do século XIX, a Finlândia
conservou sempre uma certa autonomia. Em resultado das reformas conquistadas pela
revolução russa de 1905, em que os Finlandeses foram participantes activos, a Finlândia
obtém desde 1907 o sufrágio universal de ambos os sexos. Desde os finais do século
XIX que existia um Partido Socialista, com forte apoio da população,
predominantemente composta por camponeses independentes. Na sequência da
proclamação da independência da Finlândia em Dezembro de 1917, gera-se uma guerra
107
civil entre os socialistas (vermelhos), apoiados pela Rússia, e os brancos, apoiados pela
Alemanha, que terminou pela derrota dos vermelhos. Apesar de um período de terror
branco, estabilizou o regime parlamentar, o Partido Socialista manteve forte influência e
formou-se também um partido comunista (com outro nome, por razões legais). À
semelhança dos países escandinavos, também na Finlândia desde os anos trinta foram
introduzidas reformas do tipo Welfare State.
Costuma dizer-se que os países felizes não têm história, e assim quase nada direi da
Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia). Definitivamente independentes desde
1905, quando a Noruega se separa da Suécia, são monarquias parlamentares que cedo
adoptam o sufrágio universal, não só masculino mas também feminino. São também dos
primeiros países a adoptar, ainda nos anos vinte, legislações sociais avançadas e
eficazes. Foram países neutrais na I Guerra Mundial e assim continuaram, mas durante a
II Guerra Mundial a Dinamarca e a Noruega foram invadidas pela Alemanha.
Da Alemanha falaremos numa das próximas aulas, a propósito das origens do nazismo.
108
109
Entramos hoje no capítulo dedicado à história da revolução russa, que se pode talvez
considerar o acontecimento singular mais importante da história do século XX. É claro
que as duas Guerras Mundiais não tiveram importância histórica menor, mas aí trata-se
de sucessões de acontecimentos que se prolongaram por vários anos. Por outro lado,
factos históricos como a revolução chinesa ou o processo de descolonização, que
envolveram um número ainda maior de pessoas e com maior projecção no século XXI,
são em muitos aspectos descendentes da revolução russa.
Diz-se muitas vezes que a revolução socialista na Rússia e o seu fracasso na Europa
ocidental são o maior desmentido do marxismo, porque Karl Marx previra o socialismo
como resultado das contradições do modo de produção capitalista levado ao seu
máximo desenvolvimento e, desse ponto de vista, a Rússia era uma sociedade muito
mais atrasada que as do Ocidente. Há sem dúvida nessa observação mais do que um
grão de verdade, mas o que ninguém pode negar é que, pelo menos a partir do último
quartel do século XIX (o que coincide com os últimos anos da vida do Marx, falecido
em 1883), muita gente, e nomeadamente os marxistas, esperava uma revolução na
Rússia, mais cedo ou mais tarde. O próprio Marx se debruçou expressamente sobre essa
questão.
Um facto bastante representativo do atraso das relações capitalistas na Rússia, e que ao
mesmo tempo marca o início de uma viragem histórica, é a data da emancipação dos
servos, 1861, por decreto do czar Alexandre II. Esta reforma é significativa tanto pelo
que realizou como pelos problemas que deixou subsistir. Trata-se de um pressuposto
essencial à existência do mercado capitalista, a livre circulação da força de trabalho, e é
por isso uma medida característica e essencial das transformações anti-feudais, como o
foi na revolução francesa de 1789, nas mudanças realizadas na Europa ocupada por
Napoleão (em alguns casos até por iniciativa dos monarcas que o combatiam), ou nas
revoluções liberais europeias, como a portuguesa. Quer dizer, a abolição da servidão da
gleba realizara-se na Europa ocidental duas ou três gerações antes do momento em que
se realiza na Rússia, e além disso o número de servos era na Rússia incomparavelmente
25
Lição que não foi gravada. O texto desenvolve os tópicos que serviram de base à exposição oral.
110
26
Enzo Santarelli, Storia Sociale del Mondo Contemporaneo, Feltrinelli, Milão, 1982, p. 130.
111
27
Id., ibidem, p.132.
112
28
Arthur Rosenberg, “El fascismo como movimiento de masas”, in AA.VV., Fascismo y
Capitalismo, Martinez Roca, Barcelona, 1972, pp. 93 e sgs (texto 5 do Caderno).
113
vantagem, na transição para a sociedade socialista, justamente aquilo que era resultado
do atraso da penetração do capitalismo industrial na Rússia. Os populistas defendem
que, dada a importância das tradições comunitárias do campesinato russo – a existência
do mir, a assembleia de aldeia, que periodicamente procede à distribuição de terras -,
uma vez que a sociedade fosse liberta do domínio do czar e dos nobres, se poderia
adoptar uma espécie de auto-gestão agrária comunitarista, evitando-se os males ligados
à formação do capitalismo industrial.
Numa primeira fase, a acção narodnik foi essencialmente doutrinária e propagandística.
Mas as dificuldades encontradas, nomeadamente as reacções de rejeição do mujik, o
camponês russo, em relação a estes jovens intelectuais, que sentiam como
essencialmente estranhos aos hábitos da comunidade, acrescentadas à repressão,
levaram a uma dispersão e diversificação do populismo. Alguns intelectuais populistas
restringem-se a uma actividade literária ou de participação nas instituições existentes,
como os zemstvo. Outros, imbuídos da ideia revolucionária, constituem uma sociedade
secreta virada para a acção violenta, o terrorismo individual contra o czar e as
autoridades vigentes. É a Narodnaia Volia (“A Vontade do Povo”), que em 1881 tem
êxito, ao lançar uma bomba contra a carruagem de Alexandre II, pondo termo à vida do
czar, embora pelo preço da execução dos revolucionários envolvidos. Seis anos depois,
em 1887, um outro grupo, do qual fazia parte o jovem estudante Alexander Ulianov
(filho de um inspector escolar e membro da pequena nobreza), tenta outro atentado
contra Alexandre III, mas falha. Recusando-se, por princípio, a pedir o agraciamento
pelo czar, os conspiradores são também neste caso executados.
O que aqui está em causa é a diferença entre a concepção ampla do partido socialista
como partido de massas, em que qualquer um se pode filiar aceitando o programa (tese
menchevique), e a ideia do partido como “organização de revolucionários”,
estreitamente unidos pelo trabalho regular e a disciplina de organização, que era a
concepção bolchevique. É evidente nesta última a continuidade, sob outras formas, em
relação à tradição do populismo revolucionário.
Mas a relação com duas outras discussões, uma anterior a 1903, outra que tem lugar
durante a revolução de 1905, permite compreender melhor o que estava em causa nesta
separação e por que ela se tornou duradoura.
O primeiro debate foi em relação à questão do “economismo”, a teoria de que a função
essencial do partido consistia em estimular a organização e as lutas económicas
(sindicais) de fábrica, da qual espontaneamente resultaria a formação da consciência de
classe dos operários, por oposição aos patrões. Contra esta tese, Lenine sustenta que a
consciência de classe, como realidade distinta do mero interesse na melhoria das
condições materiais, só pode adquirir-se através do conhecimento da situação da
sociedade no seu conjunto, i.e., do conhecimento das diversas classes existentes na
sociedade e suas relações, como são organizadas através do poder político do Estado.
Tal consciência exige por isso um trabalho propriamente teorico, que é função do
partido socialista elaborar e difundir. É a célebre tese de que “a consciência vem de
fora” (de fora das relações imediatas na fábrica ou no lugar de exploração), que por isso
mesmo atribui um papel de primeiro plano aos intelectuais revolucionários.
Esta ideia prende-se com uma segunda tese, a de que o partido “deve ir a todas as
classes”. Os conhecimentos necessários à orientação do proletariado na luta pelo
socialismo colhem-se “em todas as classes” e em todos os domínios da vida social
(económico, mas também político, cultural, religioso, etc.) Por outro lado, na medida
em que o objectivo fundamental do partido socialista é a revolução – a conquista do
poder político -, também não lhe podem ser indiferentes os comportamentos, os modos
de pensamento e as acções práticas dos diferentes actores sociais e políticos. Não lhe
podem ser indiferentes, nomeadamente, as formas concretas do Estado, o tipo de poder
político por meio do qual as relações sociais se organizam, a sociedade se estrutura. Em
concreto, na sociedade russa do princípio do século XX existem já relações económicas
capitalistas, mas o tipo de Estado – a autocracia czarista, como forma de poder
118
socialistas russos, assim como aliás a de todas as forças políticas e sociais, contidas pela
pressão repressiva do czarismo, e que entram agora abertamente na cena da história.
No início dos acontecimentos esteve uma manifestação pacífica dos operários de São
Petersburgo. Melhor se diria uma procissão, dirigida por um padre, o pope Gapone,
ligado à organização sindical local mas também à polícia czarista, procissão em que não
faltavam os ícones religiosos e o próprio retrato do czar, e em que participavam
famílias operárias inteiras, incluindo velhos, mulheres e crianças. Na ocasião os
manifestantes endereçaram ao czar uma petição, redigida em termos extrordinariamente
respeitosos, em que simplesmente chamavam a atenção para a necessidade de acudir à
situação de extrema miséria e fome em que viviam. A manifestação, no momento em
que se aproximava do Palácio de Inverno, residência do czar, foi recebida com tiroteio
generalizado, deixando no lugar cerca de um milhar de vítimas. Era o domingo de 22 de
Janeiro de 1905, que passou à História como “Domingo Sangrento”, e foi a chama que
acendeu a revolução.
Nas semanas e meses seguintes, por todo o ano de 1905, sucede-se uma série imensa de
movimentos de praticamente todas as classes, mas com destaque para as greves
operárias: só no primeiro mês são tantas como nos dez anos precedentes. Em Maio, na
região têxtil de Ivanovo-Voznessensk, não longe de Moscovo, forma-se o primeiro
soviete (conselho de representantes das fábricas, tendo como objectivo a coordenação
dos movimentos de greve), criando um exemplo que depois se multiplica e alarga. A
revolução de 1905 abre, neste aspecto, uma página nova na história do movimento
operário, não só russo mas internacional, e não só como experiência prática mas como
fonte teórica. Assinale-se a este propósito que foi com base nos acontecimentos russos,
em que participou pessoalmente, que Rosa Luxemburg escreveu o livro Greve de
massa, partido e sindicatos, que terá profunda influência nos debates do movimento
operário europeu nos anos seguintes.
Mas o movimento de maneira nenhuma se restringiu ao operariado. Também os mais
diversos sectores da burguesia liberal se mobilizam em acções pela liberdade política,
dando nascimento ao partido cadete (constitucional-democrata), que se bate por uma
reforma constitucional e a criação de um Parlamento. Em várias regiões, verificam-se
também movimentos de camponeses, com ataques às autoridades locais e incêndios dos
palácios, mas, no seu conjunto, o movimento camponês não alcança a dimensão
120
29
Id., ibid., pp. 92-98.
121
passagem posterior para o socialismo, era apoiar uma revolução que, à semelhança da
revolução francesa de 1789, possibilitasse condições de liberdade e de desenvolvimento
económico moderno, capitalistas. Nestas condições é que o proletariado industrial
cresceria quantitativamente e alcançaria a possibilidade de organizar-se e educar-se para
poder posteriormente conquistar o poder e realizar o socialismo.
Na base desta ideia, os mencheviques entendiam que o POSDR não devia pretender
fazer parte de um governo que se formasse em consequência da queda do regime
czarista. A direcção deste governo incumbiria naturalmente a partidos como os cadetes,
representativos da burguesia russa. Os socialistas manter-se-iam na oposição,
dedicando-se a organizar sindicatos, a difundir as ideias socialistas, a exprimir na Duma
ou na imprensa as suas opiniões, sem pretenderem a um papel dirigente no governo
revolucionário.
Lenine e os bolcheviques, pelo contrário, sublinham os aspectos de fraqueza histórica, e
consequentemente política, da burguesia russa, crescida à sombra do czarismo e do
capital estrangeiro e consequentemente incapaz de assumir uma posição decisiva de
ruptura com o czarismo. Para Lenine, o aliado do proletariado na revolução democrática
não é a burguesia, mas sim o campesinato, que aspira à propriedade da terra liberta do
domínio dos grandes senhores e por isso está interessado no derrube da monarquia.
Naturalmente, a distribuição de terras realizada pela revolução criaria uma dinâmica
capitalista. Mas seria um capitalismo democrático, próximo daquilo que ele caracteriza
como a “via americana” do desenvolvimento, que considera progressista.
Em conformidade com este raciocínio, o partido socialista devia desde início aspirar a
um papel dirigente na revolução democrático-burguesa e consequentemente a uma
participação num governo revolucionário. Essa participação dirigente dos socialistas na
revolução democrática é que permititiria realizar de forma mais completa a ruptura com
o czarismo e a tradição feudal, liquidando a propriedade senhorial e o aparelho de
Estado monárquico, desse modo criando também condições mais favoráveis para uma
ulterior transformação socialista (pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas,
pelas condições mais favoráveis oferecidas à organização dos trabalhadores por uma
república democrática e pelo impacto que a revolução democrática na Rússia teria no
movimento operário dos países industrializados).
123
30
Transcrição pelo aluno José Carlos Marques, revista e corrigida pelo docente.
31
Março no Ocidente. A Rússia, nesta altura, ainda vivia sob o calendário juliano. Este velho
calendário, cujo nome deriva de Júlio César, apresenta uma diferença de 13 dias para o gregoriano,
calendário utilizado pelos países ocidentais.
Este calendário será adoptado, na Rússia, pelo governo saído da Revolução de Outubro.
127
hierarquia militar era cada vez menos respeitada. Os sovietes de soldados, tal como já
tinha acontecido em 1905, não actuaram isoladamente, tendo-se constituído,
rapidamente, ao nível da cidade de Petrogrado (S. Petersburgo) um soviete conjunto de
representantes dos soldados e dos operários. Surgem, depois, outros sovietes nas mais
diversas localidades, de maneira que, passados dois meses, se realizará um congresso
pan-russo dos sovietes (sovietes de toda a Rússia), assumindo o de Petrogrado um papel
de coordenação e direcção. Desde os primeiros dias de Fevereiro de 1917 existem,
assim, simultaneamente, duas instituições dirigentes: uma emanada da Duma, o
governo, e outra constituída por representantes dos quartéis e das fábricas, o soviete.
Quais foram as relações entre estas duas instituições? A Duma tinha a legitimidade de
uma instituição eleita (apesar de o não ser por sufrágio universal igualitário), de tipo
parlamentar, oficial, com os seus líderes e com a sua história; o soviete era uma
instituição praticamente só socialista. Os elementos do soviete pertenciam aos partidos
socialistas que eram, nessa altura, essencialmente três: dois partidos marxistas
representativos de sectores da classe operária32, os bolcheviques (extrema-esquerda) e
os mencheviques (socialistas moderados), e o Partido Socialista-Revolucionário (os S-
R, como também eram conhecidos, uma derivação dos “narodnik” do século XIX, com
a sua ideia de regeneração da Rússia através da libertação dos camponeses e não a partir
da socialização da indústria, uma ideia de sociedade diferente da dos partidos
marxistas). Para além destes três grupos, há a considerar os anarquistas. Apesar de não
terem uma linha homogénea, são uma realidade e uma tradição na história russa,
devendo ser considerados como uma corrente e não como um partido.
A estabilização da estrutura do poder perante estas condições parece simples, pelo
menos numa primeira fase. A população que adere à revolução não tem um projecto
uniforme, aposta na mudança do governo e espera que os novos tempos tragam uma
resolução para os seus problemas, uma concretização das suas aspirações e um espírito
novo nas relações entre as pessoas. Os liberais da Duma constituem governo e os
sovietes aceitam esta formação. Não têm grandes exigências próprias e apenas um
socialista, a título pessoal, vai integrar o Governo Provisório. Trata-se de Alexandre
Kerensky, um socialista trudovik (quer dizer, “trabalhista”, era aparentado com os
32
Petrogrado era na altura a cidade com maior concentração operária do mundo.
128
porque ir-se-ia ferir pessoas e entidades essenciais para assegurar o esforço de guerra,
na medida em que muitos dos altos oficiais são, simultaneamente, grandes proprietários,
ou a eles ligados. Pondo-se em causa a grande propriedade, iam-se atingir os interesses
dos que são essenciais para continuar o referido esforço de guerra. O que se aplicava ao
exército, aplicava-se em relação aos outros níveis da estrutura do Estado. Gera-se aqui
um foco de contradição. Na origem da revolução tinha estado o facto de a maioria da
população fugir à guerra e estar farta da mesma. Na Rússia, em função das deficiências
e da ineficácia militar, o movimento das deserções foi muito intenso. A maior parte dos
soldados eram camponeses, portanto fugiam do exército e iam para as suas terras onde
queriam, em primeiro lugar, assegurar a sua sobrevivência. Ora se os soldados já se
tinham rebelado no exército, também começavam, nas suas terras e em contacto com os
seus familiares camponeses, a olhar de outra maneira os grandes proprietários. A
insatisfação e a rebelião no exército vão-se propagar a uma rebelião social mais ampla,
que já se manifestava mesmo antes da Revolução de Fevereiro, e que nas novas
condições abertas com a queda do regime czarista naturalmente se vai ampliar
muitíssimo. No fundo, é como acontece, também, em todas as outras revoluções e como
se passa em Portugal, mesmo na modesta revolução de 5 de Outubro de 191033. Na
Rússia passa-se a uma escala maior em virtude de também serem maiores a intensidade
dos problemas e a opressão anteriormente vivida. É todo um edifício secular de
autoridade, simultaneamente política, religiosa e militar, que se vê desfazer-se com a
queda do czarismo. Apesar do acordo formal do soviete ao Governo Provisório, na base
da sociedade havia todas as condições para que este acordo não pudesse ter tradução
prática, porque as classes que cada uma das instituições representava eram diferentes e a
questão da guerra vai, a curto prazo, pô-las em choque e, nomeadamente, dar origem à
primeira crise do governo, em Abril de 1917. Quando o político cadete, o importante
historiador Pavel Miliukov, Ministro dos Negócios Estrangeiros, declara que a Rússia
mantém todos os seus objectivos de guerra, incluindo a conquista dos Dardanelos e o
acesso ao Mar Negro, estes objectivos não eram meramente defensivos, mas sim de
33
Os primeiros tempos da revolução de 5 de Outubro de 1910, em Portugal, foram sentidos pelo
operariado como um caminho aberto à contestação da autoridade do patrão. Nesse aspecto, a revolução
republicana portuguesa, da qual se diz que nada teve de revolução social (o que em parte é verdade), teve,
pelo menos, esse efeito social de deslegitimar as autoridades sociais vigentes. Cfr. Vasco Pulido Valente,
O Poder e o Povo: a revolução de 1910, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1974, pp. 173 e sgs.
130
34
Este regresso foi complicado, já que era praticamente impossível transitar, legalmente, na
Europa em guerra, para mais quando a viagem envolvia uma personagem conhecida e com
responsabilidades políticas. Esta passagem acabou por só ser possível através de uma negociação
indirecta com o governo alemão. A este último interessava que fossem para a Rússia elementos que
pudessem ser um factor de complicação politica e de dissolução do Estado num país inimigo. A guerra
contra a Rússia continuava e é nessa base que, através de um processo complicado, Lenine e um conjunto
de dezenas de elementos do Partido Bolchevique acabam por atravessar a Áustria e a Polónia num famoso
vagão blindado.
35
A chegada de Lenine é um acontecimento posto em destaque no filme “Outubro” de Sergei
Eisenstein (1927), um dos principais documentos históricos sobre a Revolução Russa.
131
eleições directas dos operários, dos camponeses e dos soldados, não de uma maneira
abstracta como cidadãos, mas resultante da sua própria vivência (Lenine estabelece
algumas comparações entre o soviete e a Comuna de Paris de 1871). A estrutura dos
sovietes é vista como a verdadeira instituição representativa e que pode vir a ser a base
de um Estado mais democrático, e que nesse sentido permita uma ruptura com o
domínio capitalista e conduza à revolução social. Daqui ressalta uma palavra de ordem,
muito vista em cartazes nas manifestações: “o poder aos sovietes”. Na verdade, o
Partido Bolchevique, minoritário nos sovietes dominados pelos S-R e pelos
mencheviques, acredita que, se for possível forçar o soviete a assumir-se como poder,
será possível dentro dessa estrutura convencer a maioria do povo, convencer as massas
da necessidade de tomar as medidas revolucionárias indispensáveis, correspondentes às
exigências populares sentidas no momento: sair da guerra, resolver a questão agrária
através da distribuição das terras, resolver os direitos sociais básicos dos operários e
dar-lhes poder, não só através da satisfação de reivindicações sociais, mas através do
controlo operário da produção. Não há neste projecto uma ideia de tomada de poder por
um único partido, assim como não há uma ideia de socialização da economia de um dia
para o outro (seria impossível e desfasado da realidade de um país 80% agrário). A ideia
era a de romper a estrutura do Estado existente, constituir um outro Estado na base dos
sovietes e fazer com que eles adoptem as medidas revolucionárias de alteração do poder
social que são apoiadas pela maioria da população. Segundo um historiador, insuspeito
de quaisquer simpatias comunistas, como Marc Ferro, as exigências de Lenine eram
aquelas que se adaptavam ao sentimento das massas, tal como foi expresso em milhares
de mensagens e telegramas endereçados de todas as partes da Rússia ao governo
provisório desde os primeiros dias da revolução (e que M. Ferro compara com os
“cahiers de doléances” da Revolução Francesa): paz, terra, elevações salariais, 8 horas
de trabalho, direitos dos comités de fábrica36.
A partir da queda do primeiro governo provisório, houve sucessivas remodelações
governamentais que procuravam adaptar-se à pressão da base, através de um maior
comprometimento de elementos dos sovietes no governo. Kerensky acaba por tornar-se
Primeiro-ministro em Julho. Outros socialistas entram também no governo, mas as
36
Marc Ferro, La Revolución Rusa, Cuadernos Historia 16, Barcelona 1985, pp.10 e sgs. (Texto 7
do Caderno). Para maior desenvolvimento, ver Id., La Révolution de 1917, Albin Michel, Paris, 1997.
133
medidas fundamentais mantêm-se: continuação da guerra a todo o custo e por isso não é
possível fazer-se a reforma agrária, não se pode pôr em causa a autoridade dos patrões
nas fábricas, nem a dos oficiais nos quartéis (embora ela já o estivesse em virtude da
existência dos sovietes). Há, em suma, uma tentativa de afirmação da autoridade do
Estado, embora os sucessivos governos prometam que, logo que seja possível, fazem as
prometidas eleições para a Assembleia Constituinte, mas a verdade é que as vão
adiando sucessivamente. Kerensky, em Agosto, numa mera declaração formal, chegou a
proclamar a república. O Ministro da Agricultura, Tchernov, que era também um
socialista, nada faz pela reforma agrária, pelo contrário procura reprimi-la, isto numa
fase em que o campesinato, por toda a Rússia, tinha passado à acção directa
apoderando-se de instrumentos de trabalho, de terras e de colheitas, assaltando palácios,
numa verdadeira insurreição camponesa de tipo tradicional, num acto de levantamento
contra os senhores locais, mas defrontando-se, em muitos casos, com a intervenção
governamental contra estes movimentos. Para realizar tudo isto, os governos provisórios
procuram fortalecer o aparelho de Estado de que dispõem, o que significa também, no
exército, irem reforçar os velhos chefes militares, e nomeadamente o Chefe supremo
das Forças Armadas Russas, Kornilov, nomeado então “Generalíssimo”. Kerensky
chega a convocar uma Conferência de Estado, que seria uma representação o mais vasta
possível de todas as forças, com representantes dos sovietes, dos patrões da indústria,
dos interesses agrícolas e do exército, acabando por dar uma grande projecção a
Kornilov nessa Conferência. Kerensky, ao fazer isto, queria entronizar-se como uma
espécie de Napoleão acima das partes, num papel quase monárquico37. Mas se, para
fazer isso, tinha de dar autoridade a um Kornilov, e quem diz ao Kornilov diz à
hierarquia militar por ele chefiada, então o próprio Kornilov achava que o melhor era
ser ele o beneficiário dessa concentração de autoridade que lhe era dada, aproveitando
para a impor. As forças sociais ameaçadas pelo movimento revolucionário, por aquilo
que se passa nas fábricas, nos campos e nos quartéis, vêem em instituições como esta
Conferência uma legitimação e vêem que o próprio Kerensky, como representante do
governo e do soviete, apela à autoridade de Kornilov, tendem, então, a reclamarem para
si a autoridade efectiva. É nesta base que, em Setembro, Kornilov vai tentar um golpe
37
A melhor descrição que conheço desta Conferência de Estado e do seu papel na crise
revolucionária é a dada por Trotsky na sua obra clássica A Revolução Russa.
134
durante a madrugada, tendo Lenine, como líder dos bolcheviques, apresentado ainda na
noite do mesmo dia, no Congresso dos sovietes, um manifesto que declarava que o
Governo Provisório tinha sido derrubado e que o Congresso assumia o poder. Na noite
de 25 para 26 é tomado o Palácio de Inverno e são presos os ministros (Kerensky fugira,
disfarçado de enfermeira, para tentar organizar a resistência). Na sessão do congresso de
dia 26 é eleito o governo (“Conselho de Comissários do Povo”) bolchevique, presidido
por Lenine. Os mencheviques e a fracção de direita dos socialistas-revolucionários (que
entretanto se tinham dividido) tinham abandonado o congresso, em protesto contra o
derrube do governo, logo no primeiro dia. Na sessão de dia 26 são aprovados os dois
primeiros e já anteriormente referidos decretos do poder soviético, o Decreto sobre a
Paz e o Decreto sobre a Terra.
É nisto, em suma, que consiste a Revolução de Outubro, uma revolução realizada por
um único partido, um partido inicialmente minoritário, mas que, ao longo do ano, e
particularmente na luta contra o golpe de Kornilov conquistara, não só o soviete de
Petrogrado e a duma municipal de Moscovo, mas também os sovietes dos pricipais
centros industriais: no II Congresso dos Sovietes eram assim 300 dos 670 delegados, e o
apoio de cerca de uma centena de socialistas-revolucionários de esquerda e outros
socialistas permitiu-lhes a maioria. O problema é como se compatibiliza este governo de
um partido fundamentalmente da classe operária com um país maioritariamente de
camponeses, entre os quais a tradição mais influente é a dos socialistas revolucionários
e onde existem, além disso, um conjunto de outras forças opostas: mencheviques,
cadetes e em suma o conjunto das forças que suportaram, quer o czarismo, quer os
governos provisórios que se lhe seguiram. O Partido Bolchevique era, como vimos, um
partido altamente organizado, com uma concepção própria da revolução que estava a
realizar. Os bolcheviques tinham denunciado, ao longo destes meses, as
inconsequências e as hesitações dos governos provisórios e um dos aspectos que tinham
criticado era o adiamento sucessivo das eleições para a Assembleia Constituinte.
Finalmente, nas vésperas da Revolução de Outubro, o governo Kerensky tinha resolvido
realizar as eleições para a Assembleia Constituinte, de maneira que elas acabaram por se
realizar já alguns dias após a revolução (a 12 de Novembro, com a participação de
menos de metade dos eleitores inscritos). Os resultados darão cerca de um quarto dos
votos aos bolcheviques, apenas 3% aos mencheviques e a maioria aos S-R de direita
136
(havia ainda uma minoria de s-r de esquerda, alguns cadetes e representantes de partidos
das nacionalidades). Esta assembleia não correspondia à natureza do poder que se tinha
criado sob a direcção do Partido Bolchevique, pondo-se o problema de que a maioria
poderia derrubar o governo revolucionário. O resultado disto é naturalmente um choque,
e a decisão dos bolcheviques, acompanhados pelos S-R de esquerda, é rápida em
dissolver, pela força, a Assembleia Constituinte, não chegando a haver sessão. O
destacamento militar enviado para assegurar esta decisão não encontrou resistência de
maior. As justificações para esta medida, aparentemente anti-democrática e violadora
dos princípios de expressão popular, são referidas por Lenine como sendo, por um lado,
o facto de os sovietes serem uma forma de expressão popular mais autêntica do que a
democracia dos partidos, por outro lado, o facto de que entre a formação das listas, em
Outubro, e a realização das eleições a 12 de Novembro, tinha havido uma divisão do
PS-R . Já em Dezembro de 1917 se tinha formado um governo de coligação entre os
bolcheviques e os S-R de esquerda, muito identificados com os objectivos constantes no
“Decreto da terra” (uma socialização do solo, com a entrega da exploração da terra em
propriedade pessoal e familiar aos camponeses). O episódio da dissolução da
Assembleia Constituinte foi, segundo a interpretação de alguns autores, prenunciador do
carácter anti-democrático do bolchevismo e de outras violações dos direitos e liberdades
democráticas.
O segundo problema com que o governo se vai defrontar é o da guerra. Como vimos, os
bolcheviques tinham feito o Decreto da paz logo que tomaram o poder. Era,
simultaneamente, uma proposta diplomática de negociação aos governos, para que se
reunissem e estabelecessem uma paz sem indemnizações nem anexações, e um apelo à
sublevação dos povos, caso os respectivos governos não concordassem em concluir a
paz. Nem um coisa nem outra resultaram nos primeiros meses. O exército russo
continuava a desfazer-se perante o contínuo avanço das tropas alemãs. Nesta
conjuntura, houve dirigentes bolcheviques que defenderam que o que havia a fazer era
continuar a guerra e, se a capital fosse ocupada, dever-se-ia passar a uma guerra de
guerrilha. Argumentavam que, assim como assim, revoluções noutros países era
inevitável que ocorressem, a revolução renasceria mesmo contra os exércitos alemães
ocupantes. O raciocínio de Lenine não foi este, mas sim o de que “vale mais um pássaro
na mão do que dois a voar”: achava que mais valia um território revolucionário
137
conquistado do que várias revoluções só existentes como hipóteses, e assim sendo era
preciso concluir a paz a todo o custo. Para impor esta posição, chegou a ter de ameaçar
a sua própria demissão de chefe do governo e de líder do Partido Bolchevique. A sua
opinião acabou por prevalecer e, com a participação contrariada de Trotsky, conduziu
em Março de 1918 ao tratado de Brest-Litovsk. Tratado esse que teve como
consequência a retirada ao governo russo de todo o território que nesse momento estava
ocupado pelos Alemães ou pelos seus aliados (toda a Polónia russa, a Ucrânia, a
Geórgia, os Países Bálticos e a Finlândia, que entretanto tinha obtido a independência; o
que correspondia a 1/3 da terra arável, 1/4 da população, 2/3 das minas de carvão e 50%
da indústria pesada).
Pouco depois da conclusão da paz, em Junho, há um novo levantamento contra o
governo bolchevique levado a cabo por prisioneiros de guerra checos, prontamente
aproveitado para uma intervenção estrangeira. Foi o início da guerra civil, que se
prolongaria por quase três anos.
138
Lição 15: A Rússia soviética. Guerra civil e comunismo de guerra. A NEP. A morte
de Lenine e a crise de direcção. 38
A guerra civil iniciou-se com a revolta da chamada “legião checa”, um grupo de ex-
prisioneiros de guerra checoslovacos que, em Junho de 1918, derrubou o poder
soviético em Samara e, na sequência, organizou um “comité para a convocação da
assembleia constituinte”, essencialmente animado por políticos dos partidos cadete e S-
R de direita. Pouco depois, desembarcam em Arcangel (Mar Branco), no norte do país,
tropas francesas e inglesas, ao que se segue o desembarque de tropas americanas e
japonesas em Vladivostok, no extremo-oriente (cerca de 80 000 homens,
maioritariamente japoneses). No Sul, a partir da fronteira turca no Cáucaso e da
Ucrânia, entram tropas francesas e inglesas que se vão ligar a chefes do exército czarista
mantidos em funções durante os governos provisórios, chefes militares esses que, em
vários pontos do território, vão estabelecer uma espécie de reinos próprios, os seus
domínios. O czar continuava preso e ainda em 1918, no decurso da guerra, e por receio
de que ele ou qualquer membro da família pudesse ser utilizado como instrumento
político de restauração, ele e a sua família foram dizimados, ficando este como um dos
episódios de terror vermelho que mais chocaram a opinião pública. Até ao princípio de
1920, com um ressurgimento no final desse ano e princípios de 1921, a Rússia é
atravessada por uma guerra civil de extrema violência e barbaridade, que opôs os
Vermelhos, apoiantes dos Bolcheviques, e os Brancos, constituídos por diversos
reaccionários liderados pelos sectores czaristas. Nesta guerra, em que há avanços e
recuos das tropas, a resistência do governo bolchevique foi conseguida, por um lado,
pelo apoio social que tinha da classe operária mas também, maioritariamente – e apesar
de muitas contradições e oscilações -, dos camponeses. O erro fatídico dos Brancos foi
a restituição das propriedades, nas regiões que ocupavam, aos antigos senhores,
entrando assim em choque com as massas camponesas que tinham conquistado a posse
das terras em resultado dos decretos de Outubro. Para além disto, a vitória bolchevique
foi alcançada pela eficácia militar, na base da disciplina mais estrita, assegurada pela
chefia de Trotsky, o Comissário da Guerra (depois de ter sido Comissário dos Negócios
38
Aula do dia 3 de Dezembro de 2004 (cont.) Tran scrição pelo aluno José Carlos Marques, revista
e corrigida pelo docente.
139
Estrangeiros no primeiro governo após Outubro) o qual, com o papel que desempenha
na guerra civil, ganha um enorme prestígio, só ultrapassado, nesta fase, pelo de Lenine.
As suas medidas de organização incluíram a utilização de uma boa parte de oficiais
czaristas reconvertidos, controlados por comissários políticos do partido bolchevique
(que em finais de 1918 adopta oficialmente o nome de Partido Comunista, PCbR).
Nestas condições a revolução pôde vencer, o que não era um dado garantido à partida,
contando-se até que Lenine, quando constatou que o governo revolucionário já durava
há mais tempo do que a Comuna de Paris, ficou tão contente que se rebolou na neve.
Ainda em 1920 houve um ressurgir da guerra, neste caso pela invasão do exército
polaco com o apoio da França, curiosamente com a participação, como conselheiro
militar, de um jovem oficial francês de nome Charles de Gaulle39. Foi um momento
muito interessante da história mundial porque, se o Exército Vermelho tivesse vencido,
o que em certo momento esteve perto de acontecer, isso teria tido na conjuntura de 1920
um efeito extraordinário na Alemanha, e se calhar em toda a Europa. Os bolcheviques
acreditaram que isso ia acontecer e que a revolução mundial ia ser empurrada pela
mudança de poder na Polónia, mas não foi o que sucedeu, o Exército Vermelho acabou
por ser obrigado a recuar. Esta situação provocou um reacender localizado da guerra
civil, que foi depois completamente ultrapassada na Primavera de 1921.
A situação do país era absolutamente catastrófica porque, se já era crítica em 1917, a
guerra civil criou, para além do mais, uma situação económica terrível. Em 1921 a
Rússia vai sofrer a mais terrível fome da sua história, com milhões de vítimas. A
produção industrial em 1921 era 1/5 da de 1913, nas vésperas da Guerra. Depois, a
política económica adoptada pelos bolcheviques, embora não pretendesse a estatização
generalizada da economia, implicou uma extrema concentração de recursos, que
correspondeu àquilo a que se chama Comunismo de guerra: sendo a economia
predominantemente agrícola, aos camponeses era-lhes permitido possuírem e
cultivarem a terra, mas entregavam obrigatoriamente o excedente, tudo aquilo que não
era indispensável para a sua subsistência, ao Estado, que com essas requisições
alimentava as cidades e fornecia as matérias-primas para a indústria. Este sistema é a
modalidade mais simples de economia e praticamente suprimia a moeda, porque não
39
Mais tarde líder da Resistência à ocupação da França pela Alemanha nazi (1939-44), chefe do
governo (1944-46) e Presidente da República (1958-68).
140
havia lugar a negócio. Por maior que fosse a simpatia obtida dos camponeses pela
distribuição de terras, as condições materiais existentes, a falta de contrapartidas, a
desorganização administrativa e as destruições da guerra não lhes permitiam produzir
grande coisa. Com a impossibilidade de realizarem negócio, começaram a reagir
destruindo colheitas, recusando nalguns casos as sementeiras. Gera-se assim, no final da
guerra civil, uma situação de carência extrema, com efeitos, inclusive, sobre a
população urbana que mais apoiava os bolcheviques. Isto teve como consequência,
nomeadamente, greves em Petrogrado e a famosa revolta dos marinheiros de Kronstadt,
que anteriormente tinham sido dos maiores defensores dos bolcheviques. O
esmagamento desta revolta pela força (com Trotsky a assumir um papel determinante na
condução das operações), muitas vezes apresentado como exemplo do despotismo
comunista contra o povo, foi indispensável para a sobrevivência do poder soviético. Ao
mesmo tempo que adoptavam esta medida, os bolcheviques, e nomeadamente Lenine,
perceberam que o sistema económico tinha de ser mudado, que as condições do
comunismo de guerra não eram sustentáveis indefinidamente. Essas condições eram
essencialmente a expectativa da revolução europeia e a grande utopia (aliás com
realizações) de igualitarismo social. A constatação a que Lenine vai chegar, e que
depois é ponto de partida para uma reelaboração política mais ampla, é a de que é
preciso, em primeiro lugar, aliviar a situação da agricultura, satisfazer a maioria da
população camponesa permitindo-lhe respirar, permitindo-lhe fazer aquilo que
pretendia, que era produzir para vender, ou seja, realizar lucro. O fim do sistema das
requisições e a sua substituição por um imposto em espécie, e posteriormente em moeda
(o que significou restaurar as relações monetárias), foi o primeiro passo da chamada
Nova Política Económica (NEP) , traduzida na possibilidade, por parte dos camponeses,
de comprar e vender no mercado. Ulteriormente, foi mesmo introduzida a possibilidade
de utilização de força de trabalho assalariada, continuando impedida a reconstituição da
grande propriedade. Isto permitiu reanimar o fornecimento de géneros à população e de
matérias-primas à indústria. A grande indústria mantém-se nas mãos do Estado, a
empresa artesanal privada é também restabelecida e reanimada, mantendo o Estado o
controlo supremo da economia, nomeadamente no que diz respeito ao comércio externo.
A NEP foi aprovada no X Congresso do Partido, em 1921, como um recuo necessário
nas ambições de socialização e no espírito igualitário, mas aceite. Ao mesmo tempo que
141
No PCbR tinha sido nomeado secretário-geral um homem que não era um dos dirigentes
de primeiro plano, embora fosse um dirigente importante, Josif Stalin. Esta função de
secretário-geral, de início essencialmente administrativa, vai tornar-se de grande
importância num contexto de reorganização, porque muitos dos quadros do partido
tinham morrido durante a guerra civil. Com a morte de Lenine, a questão da sucessão,
que já se vinha pondo, vai dominar o partido. Nos últimos tempos de vida, Lenine ditou
um documento (em dois momentos diferentes), a que depois se chamou o
“Testamento”, onde constavam reflexões sobre como assegurar a coesão do partido a
nível dirigente. No primeiro texto, observando em primeiro lugar que “o nosso partido
apoia-se sobre duas classes, portanto a sua desagregação seria possível e a sua queda
inevitável se fosse impossível o acordo entre estas duas classes”, fazia depois uma
apreciação das qualidades e defeitos de vários dirigentes, entre eles, Trotsky, Stalin,
Bukarin, Kamenev e Zinoviev. Acerca de Stalin, reconhecendo-lhe grandes
capacidades, referia que acumulou “um poder ilimitado” e que não é seguro que esteja
em condições de o administrar com razoabilidade O segundo texto era muito conciso e
directo. Começava pela frase “Stalin é demasiado brutal” e dizia que era indispensável
afastá-lo das funções de Secretário-geral. Tem muitas qualidades, afirma, mas é preciso
substituí-lo por alguém que seja “mais tolerante, mais leal, mais civilizado, e mais
atento para com os camaradas, de humor menos caprichoso, etc.”40 Esta carta foi
conhecida pelo Comité Central, mas foi mantida em segredo. Ainda antes da morte de
Lenine, estabeleceu-se um primeiro conflito teórico e político entre os principais
dirigentes, que deixou Trotsky isolado perante uma “troika” dirigente formada por
Stalin, Zinoviev e Kamenev. Com a morte de Lenine, a questão que se abre não é só a
de saber se haverá um dirigente com uma função liderante comparável à que ele tinha, é
também a questão de saber se a NEP é um expediente temporário, ou se é uma política
de longo prazo. Bukarin virá defender a ideia, com o apoio temporário de Stalin, de que
a NEP se deve prolongar durante muitos anos, que é uma condição da aliança operária-
camponesa e que, numa conjuntura em que não ocorrem revoluções socialistas noutros
países, será necessário mantê-la. Os apoiantes de Trotsky e, a partir de certa altura,
também Zinoviev e Kamenev, contradizem esta ideia, e defendem que manter a NEP
40
“Lettre au Congrès”, in V. Lénine, Oeuvres choisies en trois volumes,vol. 3, Éditions du
Progrès, Moscovo 1968, pp. 749-751.
143
Como vimos, poucos anos antes da morte de Lenine, a URSS tinha adoptado a NEP
(Nova Politica Económica), que correspondeu a uma solução de compromisso entre
uma direcção estatal da economia – mantendo o Estado o objectivo socialista - e a
permanência de um sector privado indispensável para o renascimento da agricultura e
da economia em geral. A política da NEP foi bem sucedida e traduziu-se numa retoma
do equilíbrio, passados os anos terríveis, do ponto de vista material, que tinham sido os
da guerra mundial e da guerra civil. No entanto, essa política punha problemas para uma
revolução que tinha sido feita em nome do socialismo e dirigida por um partido que, em
fins de 1918, adoptara o nome de Partido Comunista. O objectivo do Comunismo,
pressupondo a socialização económica, estava presente e não era qualquer coisa que
pudesse ser arredada.
A situação complexa da sobrevivência da URSS e do seu futuro como regime socialista,
sobretudo depois de 1923, quando fracassou a última tentativa na Alemanha de tomada
revolucionária do poder, torna-se ainda mais preocupante por causa da doença de
Lenine, o dirigente incontestável da revolução e do Partido. Em 1919 tinha havido um
atentado contra a sua vida, que não teve consequências imediatas graves mas se
repercutiu no seu estado de saúde. Em 1922 sofre um primeiro acidente vascular
cerebral de que se restabelece, mas em 1923 sofre por duas vezes novos AVCs, que o
deixam numa situação de inválido. Coloca-se portanto o problema de saber quem será o
dirigente ou o conjunto de dirigentes que orientarão a Rússia no futuro próximo. Em
função disso, já antes da morte de Lenine tinha começado uma certa polémica, que
ficou conhecida como “polémica literária”, porque aparentemente não tinha que ver
com questões políticas imediatas. Na dita polémica literária tinham-se claramente
41
Aula do dia 10 de Dezembro de 2004. Transcrição da lição pela aluna Rosa Idalina Santo, revista
e corrigida pelo docente.
145
separado dois grupos: um, composto por Stalin, Zinoviev e Kamenev, o outro
representado essencialmente por Trotsky. Os primeiros eram quem já de facto
controlava o poder: Stalin como secretário-geral do partido, Zinoviev como
responsável pela organização de Leninegrado (o novo nome de São Petersburgo),
Kamenev como responsável pela organização de Moscovo. Os três marginalizaram
Trotsky, até então a segunda figura da Revolução russa, que é colocado numa situação
de oposição. Porquê? Essencialmente pelo facto de Trotsky ser na altura o comissário
do povo para a Guerra, ou seja o ministro da Defesa. O facto de Trotsky ter um percurso
de vida em que durante muito tempo esteve separado dos bolcheviques (partido a que só
aderiu em Julho de 1917) afastava-o dos outros líderes e criava receios de que pudesse
protagonizar qualquer forma de bonapartismo, quer dizer, que a partir da sua posição de
chefia do Exército pudesse instaurar uma ditadura militar.
Lenine morre em Janeiro de 1924. Na troika dirigente, composta por Stalin, Zinoviev e
Kamenev, o primeiro dispõe da vantagem do controle do aparelho, a partir da posição
de secretário-geral. Nos meses seguintes, vai-se aprofundar ao nível dos órgãos
dirigentes do Partido um debate sobre o futuro da NEP. Esse debate é inicialmente
dominado pelas teses da esquerda, que considera que a NEP está a agravar as
diferenciações sociais no país, a reconstituir uma burguesia, e que não foi para isso que
a revolução foi feita. A revolução não pode renegar os seus objectivos socialistas. E
para não renegar os objectivos socialistas também não pode renunciar ao projecto de
revolução mundial. A expressão Revolução mundial tinha sido absolutamente central
nos programas bolcheviques no período da revolução de Outubro e da formação da
Internacional Comunista. Na realidade não se tinha verificado revolução mundial
nenhuma, ou antes, as revoluções socialistas que efectivamente se iniciaram na Europa
ocidental foram derrotadas. Mas uma parte dos dirigentes bolcheviques sustenta que não
é possível renunciar a essa ideia: é certo que a URSS deve manter relações diplomáticas
com outros países, pois teria que sobreviver temporariamente num mundo hostil, mas ao
mesmo tempo é preciso apontar para o estímulo aos movimentos revolucionários dos
outros países, porque só na medida em que se tornar mundial é que o socialismo pode a
longo prazo realizar-se. Esta é a concepção da esquerda, da qual Trotsky, cada vez mais,
aparece como o líder.
146
a URSS não procurou promover nenhuma revolução socialista na China, mas sim a
revolução democrático-burguesa.
Foi essencialmente esta concepção que, no imediato, prevaleceu, e orientou a política
económica da URSS no período a seguir à morte de Lenine. Mas Bukarin era
essencialmente um teórico, ao passo que o dirigente que efectivamente ocupava um
lugar de maior peso político no funcionamento do aparelho do partido, e portanto no
controlo do Estado, não é Bukarin mas sim Stalin, já desde 1922 secretário-geral do
PCbR. Homem do qual já foi mencionado o mau carácter, a propósito do testamento de
Lenine, que recomendava o seu afastamento, caracterizando-o como um indivíduo
demasiado rude e temperamental, o que o tornava perigoso pelas funções que exercia.
De resto, entre Lenine e Stalin chegou a haver um conflito, em 1922, quando se tratou
da formação da URSS como Estado federal, por causa da concepção demasiado
centralista e russificadora que, na opinião de Lenine, era a de Stalin. No período da
doença de Lenine, estiveram mesmo à beira do corte de relações pessoais, nesse caso
por motivo da rudeza de atitude de Stalin para com a mulher de Lenine, Nadezda
Krupskaia.
148
Stalin era um georgiano de origem extremamente pobre, o pai era sapateiro. Formou-se
no seminário, de resto um aspecto da sua formação que tem uma influência não pequena
no seu modo de pensar e argumentar, como podemos ver nos textos de sua autoria. O
pseudónimo que adoptou, Stalin (de stal, que significa aço), também diz alguma coisa
sobre a sua personalidade.
A partir da posição de secretário-geral, Stalin conseguiu o domínio do aparelho e
consequentemente da composição dos congressos partidários, onde as orientações
fundamentais eram adoptadas. E é assim que, progressivamente, anteriores dirigentes
149
dá-se o massacre dos comunistas chineses pelas tropas do Guomindang, chefiado por
Tchang Kai Tchek.
No que respeita às relações com as principais potências europeias, também houve
problemas sérios, sobretudo nas relações com a Inglaterra, problemas que se iniciaram
com a greve geral inglesa em 1926 e o apoio que lhe foi prestado pelos sindicatos
soviéticos. Em 1927 dá-se o assalto, em Londres, da polícia inglesa à sede da sociedade
comercial anglo-russa (ARCOS), tendo sido descobertos documentos que
demonstravam espionagem soviética. Com este pretexto, o governo britânico decide o
corte de relações diplomáticas com a URSS
Na Polónia, o embaixador soviético é assassinado.
Este conjunto de elementos faz agravar, no seio da direcção do partido e do Estado
soviético, o sentimento de isolamento e os receios de se vir a recair numa situação
semelhante à verificada durante a guerra civil, quando tropas de catorze países
estrangeiros tinham estado envolvidas na luta contra a revolução.
Além disso, os prognósticos da economia mundial, a partir de 1928, apontam para a
possibilidade de eclosão de uma nova grande crise económica e, portanto, do reacender
de tensões sociais que, por um lado, podiam agravar as tendências de guerra e, por outro
lado, agudizavam a luta de classes nos países capitalistas.
Em função de tudo isto, Stalin, que a partir de certa altura marcara uma posição de certa
distanciação em relação à tese bukariniana da conciliação entre o poder socialista e os
interesses dos camponeses, separa-se claramente deste tipo de perspectiva e defende,
após o XV Congresso do PCbR (Dezembro de 1927), que é necessário tomar certas
medidas de coerção sobre o campesinato proprietário para o obrigar à entrega dos
produtos, sob pena de se gerarem situações complicadas de carência de abastecimento
nas cidades. Na prática, é o regresso às requisições praticadas no comunismo de guerra
e abandonadas durante a NEP. Stalin sustenta que a URSS só se pode consolidar como
Estado na medida em que se torne uma potência industrial, um país moderno e em
condições de resistir a qualquer ataque. Esta ideia da independência política nacional e
da criação de uma forte infra-estrutura industrial, como condição da capacidade militar,
vai ser absolutamente determinante das opções de política económica e de política geral
assumidas a partir daqui. Este é um problema que a tese do “desenvolvimento socialista
a passo de tartaruga” preconizado por Bukarin (segundo a sua própria expressão) não
152
formação destes quadros, porque ele fundiu o tipo de organização política próprio do
bolchevismo com a experiência militar e com o modelo hierárquico de comando militar.
A URSS, mesmo depois de terminada a guerra civil, continua a viver numa espécie de
estado de emergência, ameaçada pela pressão externa, ameaçada pelos interesses do
campesinato que não era socialista, e a única maneira de compensar isso era a existência
de uma estrutura centralizada e de tipo militar que governava o partido e o Estado. Para
além de uma estrutura hierárquica de organização, esta é também a maneira de
perpetuar o espírito da vitória na guerra civil, de abnegação e sacrifício na luta pelo
socialismo e contra os brancos, o imperialismo, a restauração capitalista. A
colectivização situa-se nesta continuidade: trata-se da defesa da URSS, trata-se de
consolidar uma economia moderna em bases socialistas e, para tal, seria necessário
enfrentar uma oposição intensa com os meios necessários.
Nesta sequência, a colectivização vai muito para além do que fora planeado no seu
início, porque justamente as reacções com que se defronta são mais fortes que o
previsto. E portanto já não são só aqueles 14% de terras pertencentes aos kulaks a serem
afectados, mas também muitos camponeses médios, a maior parte da população
camponesa, que é obrigada a entrar nas explorações colectivas, os Kolkoz e Sovkoz.
Este desenvolvimento da colectivização correspondeu não apenas a uma decisão
política e administrativa do aparelho político centralizado que existia, mas foi
simultaneamente um grande movimento de massa. Provocou também um grande choque
social entre grupos sociais distintos: de um lado o partido e o Estado com os
correspondentes meios repressivos, bem como com o apoio da classe operária urbana e
dos destacamentos especiais de jovens das novas gerações integrados no partido, do
outro os kulaks. Aqueles eram animados por um ideal de colectivismo comunista e de
modernização da Rússia, que fez parte, de resto, de um movimento mais amplo, também
com características culturais, que em muitos aspectos retomava os temas e o espírito da
revolução de Outubro e dos movimentos mais revolucionários dos anos 20, por exemplo
no plano literário, das transformações da cultura, ou da luta anti-religiosa.
No aspecto da cultura, o resultado disto vai ser a consolidação de uma espécie de
ortodoxia artística, o realismo socialista, adoptado pelo I Congresso dos Escritores
Soviéticos em 1934. Teve na sua origem movimentos de ideias revolucionárias que
defendiam, desde os anos 20, que o objectivo da literatura e da arte não era o simples
154
1939, passando de 16% para 33% -, esteve ligado também a uma estrita disciplina de
trabalho e à criação de um novo modelo de trabalhador que teve como símbolo e mito o
mineiro Stakanov, que num só dia conseguiu ultrapassar em 14 vezes a norma de
produção estabelecida, retirando mais de uma tonelada de carvão da mina. Esta proeza,
tomada como exemplo, foi o ponto de partida da ideologia e do movimento dos
stakanovistas, trabalhadores de vanguarda que se destacavam justamente pela sua
dedicação e capacidade excepcionais.
A criação deste tipo de modelos explorou o estado de espírito revolucionário, mas foi
também sustentada num modelo de organização do trabalho associado a valorizações
materiais muito concretas. Foi reintroduzido o salário à peça, o que teve como
consequência o agravamento claro das desigualdades no seio da classe operária. Deste
modo, a industrialização acelerada esteve ligada a grandes oportunidades de promoção
social, mas ao mesmo tempo consolidou um novo tipo de diferenciação social. Por um
lado, no seio do próprio operariado, através da diferenciação de rendimentos
correspondente às diferenças de produtividade. Por outro lado, por outros dois
mecanismos essenciais: um, que é a promoção de elementos da classe operária para o
aparelho do Estado e do partido, ou seja, a transformação daqueles que se distinguiam
na prática produtiva para lugares de responsabilidade política; outro, a possibilidade de
ascensão social aberta pela revolução no ensino. Não só se realiza radicalmente a
supressão do analfabetismo, como se criam novas universidades e se promove um novo
acesso em massa às universidades, e com isso a criação de uma nova intelectualidade
vinda na sua maioria da classe operária, designadamente nos ramos técnicos. Em 1913
havia 8 milhões de estudantes, em 1940 eram 35,5 milhões. O crescimento maior é nos
cursos de engenharia, com a formação de uma classe relativamente ampla de
engenheiros que tinham uma instrução média, acrescentada de uma instrução
universitária dirigida para os objectivos da produção, e portanto, com um perfil que se
distingue daquilo que eram os engenheiros na Europa ocidental dessa época. Tratou-se
de uma verdadeira revolução social que alguns autores consideram mais importante que
a própria Revolução de Outubro, com efeitos sociais mais amplos, mas que se traduziu
numa tremenda violência sobre uma grande parte da população camponesa, e que
conformou, a partir daqui, um determinado modelo de aparelho político-administrativo
altamente centralizado e coercivo, em que o partido se identificava com o Estado.
156
Vamos hoje falar do nazismo, um dos fenómenos centrais da história do século XX e o símbolo
maior do desmentido que o século XX trouxe aos prognósticos optimistas que, no final do século
XIX, muitos faziam acerca do século próximo. Fenómeno que, por um lado, tem raízes
profundas na história alemã e que, sobretudo no período da II Guerra mundial, foi muitas vezes
caricaturado como expressão de algo essencialmente negativo na cultura alemã e visto como o
fruto directo de uma anomalia da história alemã, quando na verdade foi também a versão mais
exacerbada do fenómeno internacional que foi o fascismo. Não há dúvida de que, na dimensão
das barbaridades que causou, quer pelas responsabilidades directas que teve na II Guerra
Mundial, da qual se pode dizer que foi o autor, quer pelo genocídio dos Judeus, foi um caso
extremo, e que alguns historiadores consideram um caso aparte, incomparável com tudo o resto.
Pode ser um caso aparte nos resultados, mas nem por isso deixou de ser, na sua raiz e nos seus
moldes de organização e em muitas das suas teses centrais, uma variante do fenómeno genérico
que foi o fascismo, mesmo que hoje se tenda, e também há razão para isso, a usar mais a
expressão fascismos, no plural, para indicar que são diferentes uns dos outros, o que me parece
justo. No entanto o substantivo é só um, usado no singular ou no plural.
Falar do nazismo implica também falar de uma realidade socio-política que é muitas vezes
celebrada, e com algumas razões para isso, como um dos momentos, senão mais felizes, em
qualquer caso mais progressistas e mais antecipadores, da história social, política e cultural do
período de entre-guerras, que foi a República de Weimar. Quando se fala de Weimar, evoca-se,
por um lado, um período de crises, mas também, em parte, de prosperidade económica, um
período de democracia política situado entre dois regimes não democráticos, o Império e o III
Reich. Mas sobretudo fala-se e escreve-se muito sobre Weimar porque esse período está ligado
ao dinamismo cultural dos anos vinte, a uma série de correntes novas na literatura, na filosofia e
até por exemplo na arquitectura, com a Bauhaus. Como a Alemanha geograficamente se situava,
por assim dizer, no centro do centro da Europa e, em resultado de todos os fenómenos de
emigração que tinha havido depois da I Guerra mundial e da Revolução russa – emigração da
Rússia e de países anteriormente integrados no Império austro-húngaro, emigração de
42
Aula do dia 14/12/2004. Transcrição pelo aluno Ricardo Monteiro, revista e corrigida pelo docente.
162
43
Paul Preston, "The Great Civil War:European Politics 1914-1945", in T.C.W.Blanning (ed.), The Oxford
Illustrated History of Modern Europe, Oxford University Press, Oxford e Nova Iorque, 1996, p. 158 (texto 5 do
Caderno).
163
a continuidade das forças políticas anteriormente existentes. Há uma grande continuidade entre
os partidos da República de Weimar e os partidos do tempo de Guilherme II.
O sistema partidário, que se vai estabilizar a partir de 1920, é essencialmente composto, da
esquerda para a direita, por: partido comunista (KPD), partido social-democrata (SPD), partido
democrático (DDP), partido centrista católico (Zentrum), partido popular (ou populista, DVP),
partido nacional-alemão, apoiante da monarquia (DNVP) e partido nacional-socialista (nazi,
NSDAP). Há outras pequenas formações de maior ou menor duração, que não vale a pena
mencionar. Quando se reúne a assembleia constituinte em Weimar, em 1919, a esquerda exerce
uma influência dominante, como é normal na sequência de qualquer revolução. Nessa altura, e
até 1922, existia ainda o USPD, partido social-democrata independente, que correspondia aos
socialistas de esquerda (em Outubro de 1920 a sua maioria funde-se no partido comunista, os
restantes acabam por regressar ao SPD em 1922). Começou por se formar um governo de
coligação SPD-DDP-Zentrum. Este predomínio da esquerda resultou na conquista de direitos que
ficaram fixados na legislação então estabelecida: entre outras medidas, instituiu-se, o que era
inovador na Europa da época, o subsídio de desemprego, os conselhos de fábrica que permitiam
a participação dos operários no controle de gestão, o sistema de voto proporcional que favorece a
diversidade dos partidos (semelhante ao que temos em Portugal). Criaram-se as comissões de
socialização que deviam preparar, nos anos seguintes, a socialização de alguns ramos
fundamentais da economia, por exemplo, das minas. Estas comissões de socialização e, em geral,
as medidas de socialização previstas – também aqui vemos um certo paralelo com a história
portuguesa recente -, na medida em que a esquerda progressivamente foi perdendo influência,
foram postas na prateleira e sendo esquecidas. As comissões reuniam, não chegavam a acordo, as
reuniões eram adiadas e acabavam por cair no esquecimento. A partir de meados dos anos 20, já
ninguém falava na socialização das minas nem de coisa nenhuma.
Também é de salientar que, apesar do carácter democrático da organização política, a
Constituição enfermava desde o início de dois problemas que se vieram a reflectir na própria
subsistência do regime. Estes problemas foram, por um lado, a independência do exército que,
por força do Tratado de Versalhes, não era baseado no serviço militar obrigatório mas sim um
exército profissional, o que por si mesmo acentuava as características de casta, cultivadas e
enraizadas na história do militarismo alemão. As Forças Armadas gozavam dum alto grau de
independência em relação ao poder civil. Outro aspecto da Constituição que limita o
funcionamento democrático da república é o famoso artigo 48º, relativo aos poderes
164
44
A.J.P. Taylor, “Hitler’s seizure of power”, Europe: Grandeur and Decline, Penguin Books,
1967, pp. 204-219 (texto 11 do Caderno).
165
“lenda da punhalada” (Dolchstosslegende) e um dos temas que vão ter mais influência e
condicionar o comportamento da população alemã, sobretudo nos primeiros anos da República,
porque ela vai sofrer terrivelmente os efeitos da derrota e da crise económica do pós-guerra,
pelos quais o Tratado de Versalhes, com a sua imposição de pesadas reparações, é considerado
responsável.
Os efeitos da derrota repercutem-se, materialmente e não só, sobre vastíssimas camadas da
população. Uma parte delas, sobretudo na classe operária, adere a posições radicais de esquerda,
e por isso o Partido Comunista Alemão (KPD) torna-se rapidamente uma formação importante.
Outros sectores do operariado constituíam a base do Partido Social-Democrata (SPD) que, até
1932, é o maior partido em termos eleitorais. Todavia, outros sectores em situação de miséria
não é no movimento operário e nas ideias socialistas que buscam a solução, mas sim na nostalgia
da reposição dum regime de ordem e autoridade, ao qual associavam uma certa estabilidade
económico-social para a pequena-burguesia e a classe média, como o existente no tempo de
Guilherme II.
Os primeiros anos da República de Weimar são dominados pela questão das responsabilidades
da derrota na guerra e, nesse aspecto, a direita cultiva a ideia de responsabilidade da esquerda
pela “punhalada nas costas”, quer dizer pela revolução de Novembro de 1918, que tinha posto
termo ao Império e à possibilidade de continuação da guerra. Era uma pura lenda, porque o fim
da Guerra já estava decidido anteriormente. É evidente que, com a revolução, o fim foi
precipitado, mas a derrota já tinha sido reconhecida anteriormente e a mudança de governo que
se deu pouco antes da revolução, em Setembro de 1918, com a formação do governo de Max von
Baden, visava justamente preparar a rendição da Alemanha. Aliás essa mudança de governo não
foi inocente, ela visava colocar no governo elementos da esquerda, inclusive do SPD, para serem
eles os responsáveis por aquilo que já se sabia que seriam os resultados inevitáveis da derrota.
A mobilização da direita contra a esquerda não se deu só de forma política e ideológica, mas
também passou por confrontos armados. Durante toda a vigência da República de Weimar
existiram milícias armadas. Nos primeiros anos da república existem as brigadas de combatentes
recém-desmobilizados da Guerra, os Freikorps. Mas, mesmo depois de passado o período
revolucionário, todas as grandes forças políticas possuem as suas milícias, legalmente
reconhecidas, que teoricamente não podem fazer uso das armas. Mas, num contexto de
conflitualidade elevada como é em geral o da época de Weimar, essas milícias vão ser um factor
importante na violência política.
166
45
Geary, Dick, European Labor Politics from 1900 To The Depression, MacMillan, Londres,
1991, p.69; Rosenhaft, Eve, Beating the Fascists? The German Communists and Political Violence 1929-
1933, Cambridge University Press, Cambridge, 1983.
46
Arthur Rosenberg, "El fascismo como movimiento de masas", pp. 123 e sgs.
168
apoio. A ideia assentava numa greve geral, que não teve o apoio previsto dos socialistas. A
insurreição, prevista para Outubro de 1923, foi desmarcada; mas em Hamburgo a anulação não
foi comunicada a tempo, de maneira que chegou aí a haver combates de rua, com a tentativa de
tomada de esquadras da polícia, rapidamente liquidada. Foi, pode dizer-se, o último episódio da
crise revolucionária do imediato pós-guerra.
Logo pouco depois, em Novembro, há uma tentativa contra-revolucionária de direita, em que
surge já como protagonista central o ex-cabo do Exército Adolf Hitler, chefe do partido nazi
(NSDAP, Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores), a promover uma revolução a
partir de Munique, capital da Baviera, que deveria culminar numa marcha sobre Berlim, à
imagem da “marcha sobre Roma” que Mussolini encenara com sucesso um ano antes. O
exemplo italiano era naturalmente conhecido na Alemanha, e deve dizer-se que Hitler sempre
reconheceu em Mussolini e no fascismo italiano um precursor. Esta tentativa de revolta, que
ficou para a História como o “Putsch da cervejaria” (Buergerbraukellerputsch) é interessante, em
especial porque envolveu também um personagem extraordinariamente importante e poderoso
durante o Império, o General Ludendorff, considerado o ditador militar da Alemanha entre os
anos de 1916 e 1918 e companheiro, na chefia dos Exércitos, do marechal Hindenburg.
Como é que foi possível uma iniciativa destas? É certo que ela surgiu ao cabo de um meeting na
cervejaria, com os espíritos emocionados e depois de um daqueles discursos exaltados que
Hitler fazia, mas não foi um simples fruto do álcool. O ambiente da Baviera era favorável. O
putsch de Kapp de 1920, que fracassou como tentativa de tomada do poder em Berlim, tinha tido
o seu relativo êxito na Baviera, conseguindo aí mudar as autoridades político-militares. Além
disso, Munique e a Baviera foram o ninho do partido nazi. O NSDAP não teria podido
estabelecer-se e prosperar sem o apoio de que, sobretudo nos primeiros anos, gozou da parte das
autoridades da Baviera, nomeadamente através do capitão Ernst Roehm, o depois famoso chefe
e organizador das SA (“secções de assalto”), as milícias do partido nazi.
Ultrapassada esta crise, a república entra numa fase de estabilização, entre os anos de 1924 e de
1928. Na análise dos comunistas, falava-se do período de «estabilização relativa», porque havia a
ideia de que a crise só seria resolvida pela superação do capitalismo. Mas, de facto, essa
estabilização era relativa, porque a partir de 1929 a Alemanha entra de novo numa grande crise.
Contudo, estes quatro anos foram tão contrastantes, quer com o período anterior, quer com a
crise que lhe sucedeu, que ficaram conhecidos como «Dourados Anos Vinte» (Golden Twenties,
Goldene Zwanziger, etc.)
169
Como vimos, a derrota do “putsch” nazi de Hitler em Munique ocorreu no final do período de
crise social e política, que durou até 1923. Cerca de um ano depois, no princípio de 1925,
ocorre a morte de Friedrich Ebert e, pela mesma altura, a passagem dos governos da República
de Weimar a uma nova atitude nas relações internacionais, traduzida pelo entendimento com
os vencedores da guerra, ou seja, à chamada “política de cumprimento” (Erfuellungspolitik),
que foi simbolizada pelo Chanceler (durante um curto período) e depois Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Gustav Stresemann, o homem politicamente mais representativo dos chamados
anos dourados da República de Weimar (1924-28). Nesse quadro, dá-se, primeiro, a adopção
dum plano económico concertado com a Inglaterra, a França e os Estados Unidos, de apoios
económicos à Alemanha, o chamado Plano Dawes, que possibilitou o fornecimento dum
grande empréstimo público estrangeiro e, na sequência, de uma série de empréstimos a
entidades como os governos locais e regionais e municípios. E, nessa base, do saneamento das
finanças alemãs, foi possível afluir o investimento estrangeiro, em particular os capitais
americanos, duma América que estava num período exuberante de expansão económica e que,
cada vez mais, se afirmava como a grande potência económica mundial.
O território dos EUA e mesmo a sua zona de influência na América Latina já não eram
suficientes, os capitais americanos procuravam outros terrenos, e foram investir na Alemanha
que oferecia condições favoráveis em muitos aspectos, até porque não tinha sofrido
destruições de guerra. E havia, por outro lado, uma mão de obra educada, instruída, com boa
formação profissional e um aparelho industrial, moderno, que se reconverteu das indústrias de
guerra para a paz, e que respondeu às novas possibilidades oferecidas pelo investimento
estrangeiro. É isso que explica este ambiente de euforia que vemos em muitos filmes sobre este
período, como por exemplo “Cabaret, adeus Berlim”. Isto traduziu-se numa quantidade de
fenómenos de desenvolvimento artístico e cultural. A época de Weimar é conhecida como um
período de grande criatividade em todos os domínios, desde a pintura ao cinema, passando pela
arquitectura, pelo music- hall, o teatro, a música, a literatura, etc.
Para além deste aspecto de desenvolvimento cultural, houve uma certa euforia económica que,
no entanto, esteve muito longe de beneficiar todos por igual. Em muitos aspectos, a
prosperidade dos anos vinte consolidou diferenças estruturais entre os sectores que
prosperaram e os sectores mais pobres da população. É característico deste período o
173
desemprego estrutural, quer dizer, mesmo em condições de expansão mantém-se uma certa
taxa de desemprego relativamente estável. O que, por seu turno, não é alheio a a realidades
políticas, como a conflitualidade entre socialistas e comunistas, a divisão da esquerda que
muitas vezes se aponta, e com razão, como uma das causas principais do fracasso da República
de Weimar e da democracia alemã. Essa conflitualidade não era simplesmente um fenómeno
ideológico, porque uns tinham resolvido pactuar com o capitalismo e os outros queriam uma
revolução copiada da Rússia. É evidente que esses fenómenos ideológicos também existiam e
tiveram o seu peso. Mas tinham uma base material, que era a própria diferença de condições de
vida, de trabalho e de salário, de lugares e condições de habitação, de condições de
socialização em suma.
Temos portanto, após 1924, a entrada numa nova fase de relativa prosperidade que, no entanto,
era uma prosperidade inteiramente dependente do contexto externo e, em especial, dos créditos
americanos.
Essa dependência estrutural vai ter consequências importantes e graves.
Como vimos, os primeiros anos da República de Weimar tinham sido caracterizados pelo facto
de que a mudança do quadro das instituições politicas formais não foi acompanhada por uma
mudança da natureza e da composição social das instituições. Quer dizer, quem mandava nas
várias instâncias do aparelho do Estado, do aparelho judiciário, militar, da cultura, das
Universidades, era no essencial a mesma gente. Por exemplo: ao longo de toda a história da
República de Weimar não houve um único “professor ordinário” (o correspondente ao nosso
catedrático) comunista.
Verificou-se portanto uma marginalização da esquerda das posições de poder, e um símbolo
disso vai ser a chegada à posição de Presidente da República, nas eleições de 1925, do
marechal Hindenburg, exactamente o mesmo Hindenburg de que já tínhamos falado aqui a
propósito da guerra de 1914-18 e que nessa época era o comandante supremo do Exército
alemão, ao serviço do Kaiser.
Esse homem, que de resto se mantinha monárquico, e que nesta altura já tem quase 80 anos, foi
então eleito Presidente da República, à segunda volta. De resto ele só aceitou candidatar-se
depois de se informar de que o Kaiser não punha objecção. É de registar que o que abriu
caminho a essa eleição foi a divisão da esquerda porque, se tivesse havido um candidato
comum, de comunistas e socialistas, ou que abarcasse também, digamos, sectores como o
Partido Democrata, por exemplo, o resultado teria sido diferente.
174
Quer dizer, na segunda metade dos anos vinte, ao mesmo tempo que a República de Weimar
parece uma democracia exemplar - com um regime de partidos, a representação proporcional
no Parlamento, e até medidas sociais avançadas, como o subsídio de desemprego que, na maior
parte dos países europeus não existia nesta época e na Alemanha já existe -, numa instituição
tão importante como a Presidência da República, o homem que a detém é um monárquico, e
portanto um homem de maneira nenhuma identificado com princípios democráticos.
Deve dizer-se ainda alguma coisa sobre a extrema-direita, e em particular o nazismo, nos anos
da estabilidade.
É certo que o Partido nazi tinha sido derrotado na sua tentativa de tomada do poder e é certo
que, ainda em 1928, nas eleições gerais, tem apenas 2,6% dos votos. Mas isso não significa que
fosse uma força insignificante ao longo destes anos, ou que este período seja uma página em
branco na existência do nazismo.
Naturalmente, num contexto de refluxo e em que Hitler esteve limitado pelo facto de ter
estado preso e de, durante uns anos, ter sido proibido de falar em público, surgiram, até,
divisões no Partido, e nomeadamente uma espécie de ala esquerda, dirigida pelos irmãos
Gregor e Otto Strasser, homens que, de alguma maneira, acreditavam no Programa dos 25
pontos, o programa oficial do Partido e, em certa medida, acreditavam num certo “socialismo”,
que fazia aliás parte do nome do Partido. O programa chegava a prever a nacionalização dos
monopólios e estes homens imaginaram que efectivamente, uma revolução nazi se traduziria
numa chegada ao poder dum novo grupo social e político, quer dizer, se traduziria numa
substituição das elites e em medidas sociais moralizadoras contra os especuladores, medidas
fiscais e outras favoráveis às classes pobres. E, portanto, medidas anti-capitalistas. Eles
animaram uma tendência nesse sentido, que Hitler teve algum trabalho em disciplinar (o Otto
Strasser foi até expulso do partido). Estes anos foram assim fundamentais, também, para a
estruturação interna do Partido nazi e a consolidação da autoridade pessoal de Hitler. O Gregor
Strasser ainda se manteve, mas será marginalizado, e aliás liquidado fisicamente mais tarde.
Porque os artigos que se referem aos poderes do Presidente da República estabelecem que, em
caso de perturbação grave da ordem pública, ele tem o poder de aprovar decretos à margem do
Parlamento e de os fazer aplicar. Ou seja, o artigo 48 da Constituição de Weimar, combinado
com o poder de dissolução em relação ao Parlamento, torna possível que, invocando uma
situação de anormalidade e perigo para a ordem pública, o Presidente governe ditatorialmente.
Hindenburg não utilizou este instrumento enquanto o Parlamento funcionou normalmente. Até
1929, as instituições funcionavam e havia uma relativa prosperidade económica.
O problema é que a partir de 1929 tudo muda, e muda muito bruscamente a partir do colapso
das acções na Bolsa de Nova Iorque.
Já antes disso, tinha começado a diminuir o fluxo de investimentos americanos, porque
justamente era mais lucrativo investir na América mas, quando se dá a grande crise na
América, os capitais americanos retiram-se da Europa. E isso vai em primeiro lugar afectar a
banca. Atrás da crise bancária, vem a de uma quantidade de empresas que estavam endividadas
em relação aos bancos e agora impossibilitadas de obter novos empréstimos.
E, portanto, há, a partir de 1930, um movimento em cadeia em que a crise de alguns bancos -
começa com um um grande banco austríaco e depois dois grandes bancos alemães, que eram
por assim dizer uma plataforma do investimento estrangeiro na Alemanha - gera crise na
indústria, com encerramento de fábricas, desemprego e corrida aos depósitos. Quer dizer,
aqueles que tinham depósitos e receavam que os bancos não estivessem em condições de os
devolver, procuraram levantar o que tinham o mais depressa possível, o que levou de novo uma
série de bancos à falência.
Com a crise industrial alarga-se o desemprego e, na sequência disto, vem a crise financeira do
Estado, porque, tanto em relação aos lucros como aos salários, se tinha restringido
drasticamente a matéria colectável. Resultado: no plano político, perante esta crise, o governo
entra num impasse. Desde as eleições de 1928 estava em funções um Governo de grande
coligação, em que participavam também partidos do centro e do centro-direita, presidido por
um socialista, Hermann Mueller. Esses partidos votam contra a proposta socialista de um
imposto sobre o capital e decidem cortes no subsídio de desemprego. Os socialistas de início
ainda quiseram aceitar uma solução de compromisso, mas a base do SPD recusou, porque
aceitar os cortes no subsídio de desemprego significava anular a Segurança Social justamente
numa altura em que ela era mais necessária do que nunca. E, portanto, não aceitam a solução
176
adoptada pela maioria do governo, o que leva à demissão do chanceler socialista, ou seja, à
queda deste governo.
Não havendo uma solução de alternativa e continuando o SPD a ser o principal partido no
Parlamento, o que o Presidente Hindenburg vai fazer é escolher ele, à margem do Parlamento,
um político da direita do Zentrum, ou seja, do Partido Católico, Heinrich Bruening. Nomeia
então Bruening como chanceler e permite-lhe governar à margem do Parlamento, apoiando-se
justamente no tal artigo 48 que dava ao Presidente o poder de legislar numa situação de
emergência. Ou seja, uma disposição que tinha sido prevista para situações do tipo guerra civil
é aplicada numa situação muito diferente, de crise económica e impasse político, o que é já um
abuso. Na realidade, a partir da nomeação do governo Bruening, o regime democrático, o
regime da Constituição de Weimar, está, por assim dizer, suspenso, porque não é o Parlamento
que elege o Governo, e as medidas adoptadas em todos os planos, económico, social e até de
ordem pública, são-no em virtude dos poderes ditatoriais do Presidente da República. Entra-se
de facto numa situação de semi-ditadura.
É muitas vezes assim que se formam as ditaduras. Quer dizer, não é o golpe brusco, não é por
exemplo um golpe de estado militar, é uma transição para uma situação considerada de
excepção, e que é aceite justamente por ser vista como excepcional, mas que se vai
prolongando e de facto instaura um regime que já não é um regime democrático.
Portanto, a partir de Março de 1930 entra em funções o governo do Chanceler Bruening, que
não dispõe de maioria parlamentar e governa com base no apoio do Presidente da República.
Qual é o conteúdo essencial da política de Bruening?
Isto tem interesse também pelas similitudes que se podem encontrar com as políticas actuais
dos governos em situações de crise económica e financeira.
A política económica de Bruening é centrada na defesa da moeda e no equilíbrio do orçamento.
A ideia é a de que, primeiro que tudo, é preciso ter a confiança do capital e nomeadamente, na
medida do possível, atrair o capital estrangeiro. E para isso é preciso manter o valor da moeda
(o que aliás não é conseguido). E para tanto é preciso reduzir as despesas, logo cortar os
vencimentos dos funcionários públicos, cortar os subsídios de desemprego e baixar o nível
geral dos salários.
Isto gerava, naturalmente, impopularidade, que o governo vai procurar compensar com uma
afirmação no plano externo. É significativa a relação entre uma política social conservadora,
anti-democrática, e a aposta no nacionalismo, na afirmação no plano internacional. Sugere-se
177
que os cidadãos estão a fazer sacrifícios mas o país beneficia e que, portanto, todos, directa ou
indirectamente, beneficiam. Essa ligação é fundamental, simplesmente, no seu
desenvolvimento, ela tem como consequência que vão ser as forças mais extremistas, do ponto
de vista nacionalista, que assim se vêm legitimadas e colhem os correspondentes louros
políticos. Temos assim um governo que se pode considerar do centro-direita que, pelo
conteúdo das suas políticas, vai estimular os descontentamentos sociais expressos pelas
oposições de esquerda e de direita – nomeadamente, pelo Partido Comunista, por um lado, e
pelo nazismo, pelo outro. Simplesmente, o contexto político e social em que estas medidas são
implementadas e o discurso nacionalista que as acompanha operam um efeito de legitimação
das posições e doutrinas mais radicais da direita, quer dizer, neste caso, em especial do
nazismo.
O Partido nazi vai explorar ao máximo, e com grande eficácia, este paradoxo que resulta duma
política de direita aplicada por um governo que, formalmente, pertence ao sistema
democrático. Toda a sua propaganda aponta os resultados sociais da política de deflação –
redução de salários e prestações sociais, aumento das taxas de juro - como resultado da
existência do regime democrático. E, num contexto em que o nacionalismo se impõe como
princípio supremo – todos os males são vistos como fruto da derrota alemã na guerra e das
imposições de Versalhes - , estabelece-se uma espécie de competição entre os partidos pelo
máximo de nacionalismo. Não é difícil aos nazis apresentarem-se como os nacionalistas mais
consequentes, como a força que estaria disposta a defrontar os inimigos externos começando
por eliminar os que prejudicam, pela diferença étnica ou política, a unidade interna:
nomeadamente, judeus, comunistas e socialistas.
Por exemplo, Bruening tentou realizar a união aduaneira com a Áustria, que seria o princípio
dum processo que podia levar à unificação dos dois Estados de população germânica. Esta era
uma questão que interessava muito os Alemães, desde o século XIX e a formação do Império.
O projecto da união aduaneira falhou, porque o Tribunal Internacional da Haia a impediu,
como contrária à disposição do tratado de Versalhes que proibia a união da Alemanha com a
Áustria. Bruening iniciou também, no âmbito da Sociedade das Nações e da preparação da
Conferência Mundial de Desarmamento, uma campanha pela paridade de direitos da Alemanha
em matéria de armamento, e não teve inteiro sucesso.
178
Perante isto os nazis vinham dizer que, se fossem eles a estar no poder, não iam perguntar ao
Tribunal da Haia para fazer a união com a Áustria, nem à SDN quanto à paridade dos
armamentos, mas tratariam simplesmente de as levar à prática.
Quer dizer, uma política inspirada no nacionalismo de direita, por um governo do sistema
democrático, procurando em teoria evitar a polarização dos extremos, na prática vai é favorecer
o partido que, duma forma mais aberta e extrema, assume tais objectivos nacionalistas.
Daí o fracasso do Bruening, desde logo no plano eleitoral, quando convoca as eleições em
Setembro de 1930, com o objectivo de obter uma maioria parlamentar que o apoiasse.
Justamente estas eleições vão registar o crescimento exponencial do Partido Nazi, com a
passagem de 2,6 % dos votos para mais de 18% e, no Parlamento, de 12 para 107 deputados.
Este período do governo de Bruening foi marcado não só pelo crescimento da oposição de
extrema-direita do Partido Nazi mas, além disso, por uma consolidação do bloco das direitas
anti-democráticas.
E isso é muito importante na legitimação do nazismo. Legitimação no sentido de que se
tornaram uma força credível perante um eleitorado que não lhes estava adquirido e que, à
partida, aceitava a democracia.
Este processo de inserção e legitimação iniciou-se aliás ainda antes, com a campanha contra o
Plano Young, em 1928. O Plano Young era uma actualização do Plano Dawes no respeitante
ao pagamento das reparações de guerra alemãs. Foi assim chamado do nome do americano
Owen Young, o qual presidiu à conferência internacional que reescalonou os prazos de
pagamento, para 59 anos. Quer dizer, o pagamento só terminaria em 1988. Os nazis
desenvolveram uma campanha de ridicularização, de escândalo e de protesto, porque o Plano
seria a condenação dos alemães, até à terceira geração posterior aos combatentes, como
culpados da 1ª Guerra mundial.
Depois, já em 1931, há a constituição da chamada Frente de Harzburg, que foi uma grande
concentração, uma grande manifestação em que também participaram as milícias nacionalistas,
os dirigentes dos partidos de direita e até gente ligada por laços de família ao Kaiser. Era não
só uma manifestação de oposição ao governo, mas sobretudo de oposição à República, ao
“sistema de Weimar”, que era já abertamente posto em causa.
Neste contexto, o próprio chanceler Bruening perde a confiança das direitas radicais, não
apenas do NSDAP (o partido nazi), mas dos nacionalistas do Partido nacional-alemão (DNVP)
que, até 1930, eram o grande partido da direita tradicionalista.
179
De algum modo ele reage a isso, procurando consolidar o apoio da social-democracia. O SPD,
que apesar do discurso teórico marxista tinha uma atitude fundamentalmente institucional,
empenhou-se nesta época na chamada “política de tolerância” em relação ao governo de
Bruening, visto como o mal menor em relação à ameaça do nazismo. Na prática, a social-
democracia renunciou a uma efectiva mobilização contra a política anti-social do governo. Este
foi aliás um dos factores que mais contribuíram para a hostilização dos socialistas pelos
comunistas (que os acusavam de “social-fascistas”), para a divisão do movimento operário e
para a difusão duma atitude de passividade e resignação perante o progressivo
desmantelamento da democracia social e política. A “política de tolerância” – na prática, de
colaboração – culminou no apoio socialista à candidatura a Presidente da República de
Hindenburg, então com 84 anos e cada vez mais susceptível às pressões do círculo militar e
aristocrático que o rodeava. Em Abril de 1932, Hindenburg é reeleito, à segunda volta, contra
Hitler, que no entanto averba já aqui o apoio de mais de treze milhões de eleitores (36,8%). O
slogan comunista nestas eleições viria a revelar-se premonitório: “Quem vota Hindenburg,
escolhe Hitler, quem escolhe Hitler, vota pela guerra!”
O certo é que, pouco depois, Bruening tenta empreender medidas moderadas de reforma
agrária, a partir de uma investigação acerca dos dinheiros da ajuda pública às regiões do leste
da Alemanha, particularmente atingidas pela crise agrária. Quer dizer, tinha havido uma
distribuição de dinheiros para o saneamento de propriedades rurais endividadas, houve desvios
de fundos por alguns grandes proprietários e ele, que era um conservador, mas ao mesmo
tempo um moralista, pretendeu mostrar que actuava de acordo com o bem público e que ia
punir os junkers, os grandes agrários da Prússia Oriental, comprometidos nesses desvios.
O resultado foi que se criou uma verdadeira conspiração contra o Bruening, que levou, em
Maio, à sua demissão.
E, para o lugar de chanceler (primeiro-ministro), é então nomeado um aristocrata de nome
Franz von Papen, que forma um novo governo composto de gente da elite social, a tal ponto
que ficou conhecido por Governo dos barões, um governo baseado no seu círculo de amigos.
O governo de von Papen é tal, como era o do Bruening, um governo semi-ditatorial que
funciona apoiado nos decretos presidenciais, e que procura realizar, duma forma ainda mais
radical, a mesma política conservadora, de cortes na despesa pública, acrescentados, já neste
caso do von Papen, de um autoritarismo de Estado, no aspecto da repressão, nomeadamente
contra os comunistas.
180
Ao passo que o Bruening tinha tentado manter uma posição de equidistância em relação aos
chamados extremismos, chegando a proibir as SA, uma das primeiras medidas políticas do
governo von Papen vai ser a relegalização das SA, ou seja, das milícias nazis.Em termos
concretos o resultado desta medida foi que, nas seis semanas seguintes, e apenas na Prússia,
morreram 82 pessoas e 400 ficaram seriamente feridas em confrontos entre nazis e activistas da
esquerda,.
O problema com que o von Papen se depara é substancialmente o mesmo do Bruening, ou seja,
tem o apoio presidencial mas não tem apoio parlamentar e, entretanto, o que se vê, é crescerem
as oposições. Nomeadamente a oposição comunista que, no princípio da crise, tinha uma
expressão eleitoral da ordem dos 10%, e que em Novembro de 1932 já atinge os 16,9%. E,
sobretudo, a oposição da extrema-direita nazi que, por muito que substancialmente esteja
identificada com o sentido das medidas autoritárias que estão a ser tomadas, e que até a
beneficiam, como foi o caso da relegalização das SA, não dá quartel enquanto não conquista
elas própria o governo.
Aliás nesse aspecto o discurso de Hitler era significativo. «Acusam-nos de querer o Governo só
para nós, pois é isso mesmo que queremos e prometemos que acabaremos com os outros
partidos quando lá chegarmos», diz ele.
O von Papen vai tentar responder, como o Bruening tinha feito, convocando novas eleições em
Julho de 1932.
Simplesmente o resultado, do ponto de vista dos objectivos que ele pretendia, é uma decepção
absoluta, ou seja, os nazis obtêm o maior resultado de sempre na sua história, 37,3% dos votos,
mais de um terço, e tornam-se o maior partido no Parlamento.
É importante também referir que, entretanto, a divisão na esquerda se aprofundou.
Os comunistas vêm a crise como uma possibilidade revolucionária. Há de facto uma massa de
desempregados, crescente, que espera, deseja e está disposta a lutar por uma revolução, mas,
justamente, o facto de essa massa ser predominantemente composta por desempregados
significa que tem muito pouca força, até em termos de conflitos laborais. Os desempregados,
por definição, não fazem greves. E a diferença social já anteriormente existente entre as bases
comunistas e social-democratas tende a aprofundar-se.
A impotência do movimento operário perante o desenvolvimento em curso viria a patentear-se,
ainda em Julho de 1932, quando o governo von Papen decide ilegalmente substituir o governo
regional da Prússia, encabeçado pelos social-democratas, e que desde o princípio da República
181
representava um baluarte da esquerda. O SPD acata a demissão imposta pela força, reservando-
se para um recurso aos tribunais. De um golpe, era anulada uma força potencial de resistência à
instauração duma ditadura que, até aí, podia dispôr de um corpo de polícia de 50 mil homens.
Uma pergunta que muitas vezes se põe, é: no fundo, quem é que apoiava Hitler e o nazismo?
Foi ou não foi um movimento do povo alemão?
O nazismo tinha não só contactos, como apoios, alguns mais recentes, outros que vinham de
longe, da própria formação do Partido Nazi, de sectores do grande capital.
Um dos grandes magnatas da indústria alemã, Fritz Thyssen, mais tarde escreveu um livro
significativamente intitulado “I paid Hitler”.
Mas isso não chega para explicar o apoio de mais de 1/3 dos eleitores.
Sendo certo que o nazismo também tinha bons resultados eleitorais nas zonas residenciais da
classe superior, a sua base era essencialmente pequeno-burguesa, tanto a composição dos
activistas, como a base eleitoral. E era predominantemente rural.
Uma das grandes fracturas da República de Weimar é que ela é, por assim dizer, um fenómeno
urbano. O pessoal político era das cidades, eram intelectuais, políticos de profissão, ou
industriais, ou dirigentes socialistas.
O mundo rural, de certa maneira, nunca se identificou com este sistema. Portanto, há uma base
de pequenos camponeses, em graves dificuldades económicas, que historicamente se tinham
identificado com a ideia de grandeza da Alemanha, com a própria figura do Kaiser, com a
influência da religião (não tanto da religião católica, porque o eleitorado católico, duma
maneira geral, foi pouco permeável à influência do nazismo). Ou seja, o Partido do Zentrum,
que é o Partido Católico, manteve uma considerável estabilidade. Mas já nas regiões rurais
protestantes do norte e leste se deu uma grande deslocação de votos, sobretudo dos partidos do
centro e da direita, principalmente do Partido Nacional Alemão (DNVP), que era o Partido
conservador tradicional. Esse eleitorado desloca-se para o nazismo.
Portanto, pequenos agricultores, pequenos comerciantes, pequenos empregados e funcionários
que sofriam com a política de baixos salários e restrições do crédito mas que não se
identificavam com o movimento socialista, porque se agarram muito à sua diferença de
estatuto em relação ao operariado industrial, e que portanto não se identificam com a ideia de
uma revolução social, mas sim com uma ideia nacionalista.
182
É portanto esta a base principal, embora haja a considerar que também na própria classe
operária - na medida em que há uma taxa brutal de desemprego, que chega a mais de 30%, um
terço da força de trabalho em 1932 (e além dos desempregados completos, há os semi-
desempregados, aqueles que têm trabalho apenas a tempo parcial) -, existe uma massa
desenraizada, sobretudo entre os jovens, desmoralizada pela própria perda dos vínculos sociais
e do reconhecimento ligados ao trabalho, afastada de quaisquer solidariedades de classe, e
praticamente afastada da vida dos sindicatos, que também forneceu gente para o nazismo, em
particular para as SA.
Já referi há pouco que as relações políticas que o Partido nazi e o Hitler, pessoalmente, foram
estabelecendo, foram essenciais para se tornar uma força capaz de se inserir na negociação
política. Quer dizer, o nazismo consegue ter os lucros da contestação absoluta, de quem diz que
vai destruir os mais de 30 partidos existentes, e ser ao mesmo tempo uma força de que os
outros precisam e com quem negoceiam.
E é precisamente isto que acontece, nomeadamente com o governo de von Papen, que falha na
sua tentativa de obter apoio eleitoral e vai tentar integrar o Hitler numa solução de governo.
Quer dizer, conseguir uma solução em que mantenha o poder, mas possa gozar do apoio dessa
grande força social e eleitoral que era o nazismo.
É também nesta altura, depois das eleições de Julho de 1932, que se dá a primeira entrevista de
Hitler com Hindenburg, o Presidente da República. Que começou por o detestar, e por o
encarar de uma forma até despreziva, falando dele como o “cabo da Baviera”, porque Hitler
tinha sido cabo durante a I Guerra Mundial, enquanto que ele, Hindenburg, era Marechal de
campo (Feldmarschall), o lugar máximo da hierarquia militar.
O conflito gera-se em torno do facto de Hitler não aceitar nenhum cargo que não seja o de
chefe do governo. E esse será sempre um dos temas centrais de negociação.
Por sinal, aconteceu o mesmo com a chegada do fascismo ao poder em Itália, dez anos antes.
Nos movimentos fascistas o culto do líder é uma força agregadora fundamental.
Consequentemente, a questão da chefia do governo era um ponto essencial.
Deste modo, a negociação fracassa e von Papen vai fazer duas coisas: uma, é tentar uma nova
eleição que vai ter lugar em Novembro de 1932, esperando que essa eleição se traduza numa
diminuição de votos em Hitler, que lhe permita, como ele dizia, domá-lo. Quer dizer, forçá-lo à
tal solução de conciliação em que os nazis teriam um papel subalterno no governo.
183
De facto uma parte das expectativas realizou-se, porque nestas eleições de Novembro de 1932,
o Partido nazi registou um importante declínio eleitoral, passou de 37,2 para 33% dos votos:
ainda é o maior partido, mas isto revela, num espaço de tempo curto, uma drástica quebra de
votações que em algumas regiões, aliás, era ainda muito maior. E significava (os próprios nazis
tiveram a percepção disso, como se pode ver nas anotações do diário de Goebbels) que, se não
chegassem rapidamente a uma situação de poder, podiam perder a confiança do eleitorado tão
depressa quanto a tinham ganho. Tanto mais que a crise económica, que em 1932 atingiu o seu
ponto mais profundo, tende a atenuar-se. E de facto será ultrapassada a partir de 1933.
Portanto, essa parte da previsão realizou-se, mas nem por isso o Parlamento era mais favorável
ao von Papen, tanto mais que outro dado muito importante das eleições de Novembro de 1932
é o crescimento dos comunistas, que começa a ser sério, que atinge os 16,9 % dos votos e se
aproxima já do Partido Social-Democrata.
Portanto a perspectiva de uma força que tinha sido muito importante ao longo de toda a história
da República de Weimar, como era o movimento operário e sindical, passar a ter como
componente mais importante um Partido Comunista revolucionário, era qualquer coisa que
preocupava e que faz com que o próprio von Papen tenha dificuldade em encontrar apoios nos
meios da classe dominante, dos grandes interesses económicos. Os quais estão empenhados,
cada vez mais, numa integração do nazismo numa solução de governo.
Von Papen faz uma última tentativa de manutenção do poder através dum plano abertamente
ditatorial.
Como vimos, até aqui governava-se em regime de semi-ditadura. A transição para esse regime
tinha começado dois anos antes, com o Bruening, paulatinamente. As eleições de Novembro de
1932 já tinham sido provocadas pela expectativa de que o Parlamento tomaria posição contra o
Governo. As coisas já estavam neste ponto. Não só se recorria aos decretos presidenciais para
governar contra o Parlamento, como se provocavam eleições para prevenir que o Parlamento
pudesse tomar qualquer atitude contra o Governo. Era já uma situação semi-ditatorial que o
von Papen tenta transformar em ditadura, curiosamente com o nome de “Estado Novo” (Neuer
Staat). Aliás com todo um projecto corporativo de representação que, por sinal, é
contemporâneo do projecto de Constituição do Estado Novo português, apresentado por
Salazar. Não é uma cópia, mas havia uma circulação internacional de ideias, havia tendências
gerais e até fórmulas, como Estado Novo, que são idênticas.
184
Simplesmente esta ditadura, este Estado Novo, não tinha bases em que se apoiar, e é aí que o
próprio Ministro da Defesa, o general Schleicher, um homem que era um grande intriguista
político, que estabelecia a relação entre o exército e os governos e que tinha sido ele próprio o
“criador” do Governo de von Papen, é ele mesmo quem lhe tira o tapete. E faz realizar um
exercício militar, no qual se demonstra que, se a tal ditadura fosse instaurada, suscitava
naturalmente reacções da esquerda e dos nazis, e que o Exército não estava em condições de
conter essa soma de oposições.
Schleicher vai então, em Dezembro de 1932, ganhar o Governo. Convence de facto
Hindenburg a demitir von Papen e a nomeá-lo a ele como chanceler, com a ideia de que
conseguiria atrair um sector dos nazis (aquilo a que se pode chamar a esquerda nazi, com o já
mencionado Gregor Strasser), juntá-los com os sindicatos socialistas que também estavam cada
vez mais independentes do SPD e apoiavam esta ideia, porque a viam como uma alternativa a
Hitler.
Portanto a tentativa de Schleicher é forçar o apoio dos nazis, ou de uma parte deles, e também
dos sindicatos. Aliás, ele chegou a ter um projecto de política económica que era de certo
modo mais favorável aos trabalhadores, na medida em que previa investimentos do Estado para
absorver o desemprego. Mas continuava a ser um projecto ditatorial.
Mas também esta tentativa se revelou fantasiosa, utópica, não tinha apoio suficiente, tanto mais
que os meios dirigentes da economia não acharam graça nenhuma à ideia de associar os
sindicatos à governação. Pelo contrário, o que eles queriam era aproveitar a situação de crise
para acabar com os sindicatos. E aquilo por que eles se interessavam cada vez mais era por
uma integração do nazismo no governo.
Nesta situação foram decisivas duas coisas. Já anteriormente, em Janeiro de 1932, Hitler tivera
um encontro com alguns grandes industriais, no Clube dos Industriais de Duesseldorf, onde
explanou o seu programa para uma Nova Alemanha que consistia essencialmente na liquidação
do sistema de partidos, na liquidação dos sindicatos, «a libertação da Alemanha do marxismo»,
como ele dizia, no repúdio do tratado de Versalhes e na preparação militar da Alemanha para a
conquista do “espaço vital”.
Em Novembro de 1932 há uma nova iniciativa de alguns industriais - é o “memorando dos
industriais”, subscrito pelo ex-Presidente do Banco Nacional, e outros, como o referido
Thyssen, que propõem ao Presidente da República a integração do NSDAP no Governo e a
nomeação de Hitler como Chanceler.
185
Entretanto, von Papen, que tinha ficado com dor de cotovelo por se ver ultrapassado pelo
General Schleicher, seu ministro, vai conspirar com Hitler e acaba por acordar com ele - numa
série de reuniões que começam, aliás, na residência de Colónia de um grande banqueiro
alemão, que patrocina o entendimento - que Hitler será chefe do Governo sob condição de
Papen ser vice primeiro-ministro. O líder do partido nacional-alemão, Hugenberg, seria o
Ministro da Economia, um chefe militar o Ministro da Guerra e os nazis teriam, além de Hitler,
apenas dois ministros no Governo.
Os bons contactos de von Papen junto do Presidente Hindenburg, através do filho deste,
acabaram por convencer o Hindenburg a abandonar as suas reservas iniciais e a nomear Hitler
como chefe de um governo de coligação, que toma posse ao fim da manhã de 30 de Janeiro de
1933.
Simplesmente o movimento nazi tinha o seu plano próprio que era, como o próprio Hitler tinha
explicado, o monopólio do poder.
E, a partir dessa posição, explorando a mobilização das SA, que agora são não só legais, mas
são transformadas numa força auxiliar de polícia, logo a partir de 30 de Janeiro de 1933
desencadeia-se uma vaga terrorista, ao mesmo tempo que Hitler obtém de Hindenburg a
convocação de eleições, com o objectivo de obter para o NSDAP a maioria absoluta e
consagrar o monopólio do poder.
Na noite de 27-28 de Fevereiro dá-se o incêndio do Reichstag (o edifício do Parlamento),
provavelmente desencadeado pelos próprios nazis, mas que é apresentado como sinal de uma
revolução comunista em preparação. Com este pretexto, é publicado um “decreto de protecção
do povo e do Estado”, com base no qual são criados os primeiros campos de concentração e
presos cerca de uma dezena de milhares de comunistas, socialistas e outros opositores de
esquerda. É neste quadro de supressão das liberdades políticas que as eleições têm lugar mas,
mesmo assim, não produziram os 50% de votos nazis que Hitler ambicionava.
Porém, com a anulação dos votos do KPD, os comunistas foram proibidos de entrar sequer no
Parlamento, portanto dessa maneira já foram obtidos os 50%. E pouco depois é feita votar uma
lei de outorga dos plenos poderes a Hitler. Assim termina a República de Weimar e se entra
numa ditadura totalitária. A morte, um ano depois, de Hindenburg, permitirá a Hitler acumular
os poderes de chanceler e de chefe do partido único (entretanto todos os restantes partidos
tinham sido proibidos ou levados a dissolver-se) com os de Presidente. Passa então, de
“Fuehrer” do partido, a “Fuehrer do povo alemão”. A Constituição de Weimar nunca foi
186
Vamos hoje falar sobre as origens da segunda guerra mundial. Já vimos anteriormente
que os primeiros anos vinte foram marcados por tensões graves nas relações
internacionais, nomeadamente pelo desenvolvimento na Alemanha de um ambiente de
nacionalismo revanchista. Foi neste ambiente que Hitler se afirmou como dirigente
político. Um primeiro culminar das tensões relacionadas com a derrota na guerra
ocorreu, em 1923, com a ocupação do Ruhr e a resistência na Alemanha a essa
ocupação.
De uma maneira que pode parecer inexplicável, pela rapidez com que a mudança se deu,
os anos imediatamente seguintes foram caracterizados por um ambiente de pacificação.
A agressividade e os rancores do princípio da década de vinte deram lugar a uma certa
crença de que a paz estava garantida duradouramente. Essa alteração teve fundamento
principalmente na mudança das condições económicas, na superação da crise aguda do
pós-guerra e das ameaças revolucionárias, com as tentativas de revolução vencidas e a
Rússia remetida para o isolamento. Entrou-se naquilo que alguns historiadores chamam
Restauração, um período marcado pela convicção de que, de algum modo, se iria
regressar à normalidade perdida em 1914. O certo é que a primeira Guerra Mundial fora
um choque e uma ruptura brutal. É óbvio que nos anos vinte não se recupera a belle
époque mas, para alguns, chegou a existir essa ilusão.
No que diz respeito aos problemas das relações internacionais, a normalização foi
conseguida através da reconstituição económica da Alemanha, com o famoso Plano
Dawes, e logo a seguir com a conferência e o tratado de Locarno, que garantiu como
permanentes as fronteiras ocidentais da Alemanha com a França e a Bélgica tais como
estavam no Tratado de Versalhes, garantia essa patrocinada pela Grã-Bretanha e pela
Itália. Esta conferência inaugurou um período de ambiente pacífico. O ministro dos
Negócios Estrangeiros francês, Aristide Briand, ganhou grande popularidade. É neste
espírito que se insere o pacifismo e a iniciativa do chamado pacto Briand-Kellogg,
47
Aula do dia 17 de Dezembro de 2004.Transcrição da lição pelo aluno Rui Lopes, revista e
corrigida pelo docente.
188
em 1911-12, a China dos anos seguintes foi um país em crise, vivendo uma situação de
fragmentação política. A seguir à I Guerra Mundial começou a expandir-se o
movimento nacionalista do Guomindang, que contava com o apoio dos comunistas
chineses. Seguiu-se uma guerra civil que opôs os comunistas e o Guomindang contra os
senhores da guerra, chefes político-militares que dominavam grande parte da China.
Depois de 1927, iniciou-se outra guerra civil, desta vez entre o Partido Comunista
Chinês e o Guomindang. Assim, entre o princípio dos anos vinte e 1949, a China foi
quase ininterruptamente um país em guerra civil, portanto fragilizado. Por outro lado, o
Japão era uma grande potência, em que o Imperador era considerado Deus, o
nacionalismo e o exército eram muito fortes e onde o tipo de regime político era
comparável aos fascismos europeus (embora a classificação seja discutível para muitos
historiadores). A principal diferença em relação aos regimes fascistas era a ausência de
um partido único com um papel tão importante. Mas, em termos de culto da
personalidade, neste caso do Imperador, de defesa de uma filosofia semelhante ao
corporativismo, de recusa do socialismo, da democracia e da luta de classes, era
idêntico ao fascismo. Esse regime continuou as tradições expansionistas japonesas e em
1931 ocupou a Manchúria, que pertencia à China e fazia fronteira com a União
Soviética. O Japão criou aí uma monarquia, o Manchukuo, um Estado-satélite, tendo
como chefe oficial o imperador chinês Pu Yi, que havia sido deposto em 1912, quando
tinha 5 ou 6 anos. Esta ocupação foi importante também pela ameaça que representava
sobre a União Soviética. A SDN condenou formalmente, mas não tomou medidas
práticas. Este é por vezes considerado o primeiro episódio da Segunda Guerra Mundial.
O processo de expansão japonesa teve como fase seguinte, em 1937, a invasão da
China, inserindo-se na tentativa de domínio imperial de todo o extremo-oriente, que
acabaria por conduzir à guerra com os EUA.
Outro episódio que marca a evolução para um ambiente de guerra relaciona-se com o
fascismo italiano, que durante os anos vinte esteve relativamente sossegado,
confundindo-se com outras ditaduras instauradas na época, até por ser economicamente
livre-cambista. Nos anos trinta, no entanto, perante a crise, o fascismo italiano acentuou
os traços nacionalistas e autárcicos da sua política económica. Nesse quadro, completou
a realização do projecto corporativo, que até então praticamente só existia nos livros e
191
Outro aspecto essencial das relações internacionais dos anos trinta é o que se prende
com a União Soviética. O contexto do pós-guerra foi marcado essencialmente pela
hostilidade das potências vencedoras em relação à URSS, ilustrada pela intervenção
destas na guerra civil russa, pela marginalização da URSS da conferência de Versalhes
e pela formação do chamado cordão sanitário, quer dizer, o apoio ao anticomunismo e
antisovietismo das potências limítrofes da União Soviética, desde os Países Bálticos à
Polónia e à Roménia. Também as tentativas soviéticas, no período da NEP, de incentivo
às relações económicas com os países ocidentais tiveram muito pouca receptividade.
Mesmo assim, desde 1924 a União Soviética conseguiu estabelecer relações
diplomáticas com a maior parte dos países, e finalmente até com os EUA, em 1933.
Com a entrada nos Planos Quinquenais, a partir de 1929, período que correspondeu à
grande crise económica mundial no ocidente, as clivagens entre os países capitalistas e a
URSS acentuaram-se ainda mais. Todo este período foi marcado por uma ideologia de
contraposição entre o socialismo e o capitalismo. A propaganda comunista acentuava o
contraste entre o desenvolvimento soviético e a crise no Ocidente, apontada como um
sintoma do declínio do capitalismo.
Embora o peso do Partido Comunista soviético fosse decisivo na Internacional
Comunista, é preciso distinguir a política externa da URSS da política do Comintern.
Muitos autores referem-se à política dos comunistas alemães como tendo favorecido a
ascensão do nazismo. A apresentação da social-democracia como “social-fascismo”, por
exemplo, reflectiria a posição comunista perante as tendências de evolução política do
mundo ocidental, que seria a do “quanto pior, melhor”. Este retrato, no entanto, é
caricatural. A verdade é que o problema do fascismo foi desde bastante cedo
equacionado pelos partidos comunistas e nas publicações e debates da Internacional
Comunista como uma séria ameaça para o movimento operário. Em particular, a partir
de 1932, mesmo no quadro da política de “classe contra classe” e da crítica do “social-
fascismo”, houve uma série de iniciativas antifascistas impulsionadas por Partidos
Comunistas, quer no interior dos vários países, quer a nível internacional. Na
Alemanha, em 1932, foi criado um movimento chamado Acção Antifascista. No mesmo
ano, foi organizado o Congresso Mundial de Amesterdão contra a Guerra, iniciativa
essencialmente dos partidos comunistas e que juntou uma série de figuras influentes da
intelectualidade de vários países, como Albert Einstein, os escritores Henri Barbusse,
193
Máximo Gorki, Heinrich Mann, John dos Passos, Romain Rolland. Aproveitando uma
certa simpatia da intelectualidade para com a União Soviética, procurou-se uma
mobilização suprapartidária contra o fascismo e a guerra. É no entanto verdade que
houve uma grave subestimação, por parte do movimento comunista e da URSS, do
problema do fascismo, por várias razões. Estava-se numa época em que reinava a
convicção de que a crise conduziria à revolução, de que as soluções intermediárias,
como a social-democracia, constituíam um obstáculo no caminho da revolução social e
de que a vitória dos fascismos seria transitória, pois a influência do fascismo baseava-se
na ilusão e na mistificação, era uma versão exasperada mas pervertida do conflito
social, que, uma vez ultrapassada, conduziria à solução revolucionária socialista.
Há diferenças entre este quadro de pensamento da Internacional Comunista e a política
da União Soviética. Embora a URSS também não aceitasse com leviandade o
renascimento dos nacionalismos, e em particular a agressividade do nacionalismo
alemão, uma boa parte da sua política tinha-se desde sempre baseado na exploração das
contradições do mundo capitalista, concretamente entre os vencedores e os vencidos da
Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, ao longo dos anos vinte, a URSS teve relações
privilegiadas com a Alemanha, até no domínio militar. Houve uma série de acções e
experiências, proibidas pelo Tratado de Versalhes, que o exército alemão conseguiu
realizar através da cooperação com o exército soviético. Na política soviética havia uma
preocupação clara de distinção entre os aspectos ideológico-políticos e as relações de
Estado – a URSS teve durante anos, por exemplo, boas relações com a Itália, apesar do
regime fascista. Depois da chegada ao poder de Hitler, houve também um discurso de
Stalin exprimindo essa posição. No entanto, existia obviamente uma preocupação com
as potenciais dinâmicas de expansionismo militar e com o fanatismo anticomunista
nazi, expresso no Mein Kampf. Consequentemente, desde as primeiras iniciativas
alemãs de rearmamento, após o abandono pela Alemanha da Sociedade das Nações,
delineou-se na política soviética, sob a direcção do Comissário do Povo dos Negócios
Estrangeiros, Maxim Litvinov, uma nova política, a chamada segurança colectiva. Esta
política assentava na ideia de que era preciso evitar uma nova guerra mundial e que por
conseguinte se devia distinguir entre as potências que contribuíam para a estabilidade
das relações internacionais e aquelas que visavam perturbar essa estabilidade. Logo
após a Alemanha abandonar a SDN, a URSS deu o primeiro passo nesta política,
194
uma grande revolta dos mineiros contra a entrada no governo do partido de extrema-
direita, a CEDA (Confederação Espanhola de Direitas Autónomas).
A Espanha vivera, desde o período da Grande Guerra, uma intensa crise social. Em
1917 houve movimentos de tipo insurreccional. Entre 1923 e 1930, dominou uma
ditadura tradicionalista conservadora, com aspectos próximos do fascismo italiano, o
governo do general Primo de Rivera. Esta ditadura entrou em crise em consequência
dos efeitos da crise económica mundial e Primo de Rivera foi forçado a demitir-se.
Pouco depois, em resultado das eleições autárquicas de 1931, que deram a vitória aos
republicanos, o próprio Rei Afonso XIII abdica. Entra-se na II República (a primeira
fora a de 1873-74). Nos dois anos seguintes, com um governo de esquerda hesitante, de
republicanos e socialistas, vive-se um período revolucionário e de avanço social, em
196
ministro Léon Blum como um modo de evitar uma extensão da guerra ao território
francês, onde também havia oposições ao governo de Frente Popular. A “não-
intervenção” foi depois consagrada num acordo internacional, a que a União Soviética
também aderiu inicialmente, mas na prática significou que não havia ajuda estrangeira a
favor dos republicanos, ao mesmo tempo que continuava a intervenção alemã, italiana e
portuguesa a favor dos fascistas. As tropas franquistas conquistaram Madrid em Março
de 1939, ganhando a guerra. Este êxito do fascismo num país vizinho da França
consolidou a posição internacional do Eixo Roma-Berlim e reforçou os laços entre a
Alemanha e a Itália. Ainda em 1936, a Alemanha conclui com o Japão o Pacto
Antikomintern – dirigido contra a URSS -, a que a Itália adere no ano seguinte.
vimos, já em 1934 a Alemanha tinha tentado suscitar uma tomada de poder pelos nazis
austríacos, que fracassou. Em 1938, utilizando também a agitação nazi local, Hitler
forçou a presença dos nazis no governo da Áustria e, a seguir, a demissão do primeiro-
ministro, Schuschnigg, quando este propôs que a independência da Áustria fosse
referendada. Em Março de 1938, as tropas alemãs invadiram a Áustria. Foi o chamado
Anschluss – a junção da Áustria à Alemanha. Foi uma conquista pela força, mas contou
com o apoio de grande parte da população austríaca. Logo a seguir, o governo nazi
suscita uma nova questão, a dos limites das fronteiras checas e da presença da
população germânica em território checo, exigindo a integração dos Sudetas na
Alemanha. Tratar-se-ia, portanto, de desfazer a Checoslováquia. Perante isto, os Checos
prepararam-se para resistir. A própria União Soviética exprimiu a disposição de intervir,
caso a França também interviesse (ao abrigo do tratado de segurança que a
Checoslováquia tinha concluído com a França e a URSS), mas a França recusou. Em
lugar disso, a França acede à proposta de Mussolini, a que o governo inglês também
adere imediatamente, de uma conferência internacional para a resolução da questão
checa. Começou por haver um encontro do primeiro-ministro inglês Neville
Chamberlain com Hitler, na casa de campo do último, em Berchtesgaden. Passados
alguns dias, reuniram então em Munique os quatro chefes de governo: Chamberlain, o
francês Edouard Daladier, Mussolini e Hitler. O resultado desta reunião traduziu-se
numa cedência completa às reivindicações alemãs sobre a questão dos Sudetas. A
Checoslováquia foi excluída da conferência, e a União Soviética nem sequer foi
informada. Em complemento da conferência, a França e a Grã-Bretanha concluem
pactos de não-agressão com a Alemanha.
Uma larga parte do território checo foi integrada na Alemanha, mas a Checoslováquia –
que, com a perda dos Sudetas, perdera também as suas fortificações e defesas naturais a
oeste - foi ainda obrigada a entregar outras partes do seu território, nomeadamente uma
parte reclamada pela Hungria, aliada da Alemanha. Durante alguns meses, subsistiu um
resto de Checoslováquia, mas entretanto a Eslováquia torna-se independente, com um
governo de extrema-direita aliado de Hitler, e em Março de 1939 a Alemanha pura e
simplesmente invade o que restava da Checoslováquia, transformando-a no
“protectorado da Boémia-Morávia”. Neste caso, já não havia nenhuma espécie de
199
Em consequência, os soviéticos jogam a carta alternativa, que era a que lhes permitia
manterem-se por algum tempo fora de uma guerra mundial vista já como inevitável e
para que se não achavam preparados. A 23 de Agosto de 1939, concluem o pacto de
não-agressão germano-soviético, que ficou também conhecido como pacto Molotov-
Ribbentrop, do nome dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois Estados, que o
200
assinaram. Um protocolo secreto anexo permitia à URSS ocupar uma parte da Polónia
oriental, recuperando os territórios perdidos na guerra russo-polaca de 1920, e à
Alemanha ocupar o resto da Polónia. Incluía ainda negociações sobre os Países
Bálticos, que acabaram por ser anexados pela URSS, em 1940, tal como aconteceu à
Bessarábia, retirada à Roménia.
incapacidade tinha uma história antiga na própria sociedade francesa, no facto de, desde
a experiência da Frente Popular, o lema das direitas francesas ser a frase “Mieux vaut
Hitler que Blum” (“Mais vale Hitler do que Blum”; Léon Blum tinha sido o líder
socialista e chefe do governo da Frente Popular em 1936-38). Isto reflectiu-se ao nível
da direcção militar e explica em parte a rápida derrota francesa
A Inglaterra ainda enviou tropas para França para ajudarem na defesa mas, com
a derrota, essas tropas foram evacuadas através do porto de Dunquerque. É para muitos
intrigante o facto das tropas inglesas terem regressado – é certo que muitas foram
capturadas ou alvo de bombardeamentos, mas uma grande parte conseguiu regressar, o
que teria sido possível os Alemães impedirem. A explicação parece ser a de que isto era
um sinal à Inglaterra de que, se se portasse bem, não seria hostilizada. Ou seja, seria
uma tentativa por parte de Hitler de prosseguir durante mais algum tempo o
appeasement em relação à Inglaterra, mas isso, com o novo governo de Churchill, não
foi possível.
Em França, a maioria do Parlamento decidiu a capitulação e o governo Paul
Reynaud, que era favorável à continuação da resistência, demitiu-se. A Assembleia, por
maioria, depositou plenos poderes nas mãos do Marechal Pétain, considerado um herói
da Primeira Guerra Mundial e favorável à capitulação. Pétain tornou-se no chefe do
governo e do Estado e presidiu ao armistício. O armistício foi assinado, a 14 de Junho,
na mesma carruagem do comboio e no mesmo lugar (Rethondes) onde, a 11 de
Novembro de 1918, tinha sido assinada a capitulação pela Alemanha. Isto significa que
houve uma vontade deliberada de Hitler e dos Alemães de marcarem simbolicamente a
revanche em relação à derrota de 1918.
O acordo que a seguir se estabeleceu, ainda em Junho de 1940, entre o novo
governo francês e os ocupantes, previa a divisão da França em duas zonas, uma zona de
ocupação directa das autoridades alemãs, que incluía a capital Paris, e uma zona sul em
que a França se mantinha como Estado formalmente independente, cuja capital era
Vichy. Este entendimento durou até fins de 1942, depois as tropas alemãs ocuparam
todo o território francês, mas até 1944 continuou a existir o regime de Vichy, com Pétain
como chefe. Era com Vichy que os Estados estrangeiros que não estavam em guerra
tinham relações – é o caso dos Estados Unidos, que nesta altura não estavam envolvidos
205
na Guerra, mas que mesmo depois da sua entrada na Guerra, em Dezembro de 1941,
continuaram a manter relações com este governo.
Numa primeira fase, o governo de Vichy foi aceite por muita gente em França,
inclusivamente por muitas pessoas que mais tarde seriam opositores e resistentes ao
nazismo, como o jovem político e futuro líder socialista François Mitterand, Presidente
da República em tempos recentes (1981-95). No entanto, houve quem desde o primeiro
momento iniciasse a resistência à ocupação alemã. A figura que ficou historicamente
mais conhecida como símbolo dessa resistência foi o jovem general Charles de Gaulle,
que conseguiu no último momento evadir-se para Inglaterra e, a partir da BBC de
Londres, emitir, no dia 18 de Junho de 1940, um apelo à resistência dos Franceses. A
resistência não teve nos primeiros meses bases efectivas mas, no decorrer da ocupação,
De Gaulle impor-se-ia como efectivo chefe da Resistência, inclusivamente da
resistência armada no interior da França, protagonizada principalmente pelos
comunistas.
mais condicionado pela Aliança Inglesa. A Alemanha contava ainda com aliados como
a Hungria de Horthy, a Eslováquia, a Roménia a Bulgária, também governados por
regimes ditatoriais.
Logo a seguir à invasão da França, a Itália, que até então tinha estado na posição
de neutral, declarou a sua entrada na Guerra. A Itália concluíra em 1939 o Pacto de Aço
com a Alemanha, que previa a entrada automática em guerra de cada um dos aliados
quando o outro estivesse nela envolvido, mas a previsão italiana era de a guerra só
começar em 1943. A Itália não estava preparada para entrar mais cedo, mas em 1940
convenceu-se de que ia simplesmente partilhar os benefícios da vitória e que o triunfo
de Hitler na Europa era um facto definitivo. A Itália tinha ambições e objectivos
específicos e utilizou a situação para procurar afirmar-se na região balcânica e em
África, consolidando as posições que já tinha na Etiópia e na Líbia e alargando-as.
Pouco depois da entrada em guerra, a Itália desencadeou um ataque à Somália inglesa e
ao Egipto. Começaram assim as hostilidades em África, que correram bastante mal às
tropas italianas e criaram problemas para a Alemanha, assim forçada a transferir tropas
em apoio da Itália para África, que acabou por ser um dos principais palcos da Segunda
Guerra Mundial. A Itália, ainda em 1940, desencadeou um ataque à Grécia, onde
também se deparou com forte resistência, o que levou a Alemanha a invadir a
Jugoslávia (onde entretanto se dera um golpe de Estado pró-aliado) e a Grécia, em
socorro da Itália.
Mas a prioridade militar alemã, na segunda metade de 1940, era a conquista e
ocupação da Inglaterra. Com a URSS neutralizada pelo pacto, com a Suíça e a Suécia
neutrais e com a Península Ibérica numa posição simpatizante, a única coisa que faltava,
para a Alemanha conquistar a Europa, era submeter a Inglaterra e pôr fim ao domínio
dos mares que a frota inglesa continuava a ter. Foi então concebida uma operação de
desembarque em Inglaterra. chamada de “Leão Marinho” (Seeloewe), mas que se
verificou não ser possível, justamente porque a superioridade dos meios navais ingleses
a inviabilizava. Em consequência disso, a Alemanha recorreu a outro instrumento de
pressão que já tinha sido usado em Espanha, o bombardeamento de populações civis.
Durante várias semanas foram bombardeados sistematicamente locais de Londres,
Coventry e outras cidades inglesas. Também este combate acabou por se revelar mais
difícil do que o previsto. Teve muita importância nisso, por um lado, o facto de a
207
que teve grandes consequências. Um exército de 3 600 000 homens, 2 700 aviões e
3600 tanques avançou sobre a URSS. A frente ia de Leninegrado ao Cáucaso e os
objectivos centrais eram a conquista de Leninegrado, de Moscovo e o controlo do
Cáucaso, devido à importância dos jazigos de petróleo aí situados. Tal como as acções
militares anteriores, a invasão foi realizada sem declaração de guerra prévia, estando
ainda em vigor o pacto germano-soviético.
A invasão iniciou-se com o bombardeamento dos aeroportos militares
soviéticos. A maior parte da aviação soviética, cerca de mil aviões, foram destruídos
antes de levantarem voo. Várias cidades sofreram também bombardeamentos maciços,
com o intuito de aterrorizar a população. Depois deu-se, a partir da Polónia e da
Roménia, o avanço das tropas, que de resto, na Ucrânia, foram de início acolhidas
favoravelmente. Depressa porém se afirmaram as características de guerra de
extermínio, contra a qual se desenvolverá uma forte resistência nos territórios ocupados.
De início o avanço foi rápido. Em três meses o Exército alemão fez dois milhões de
prisioneiros - entre eles um dos filhos de Stalin, depois assassinado - e no Inverno já
tinha chegado a menos de 100 km de Moscovo. Esta campanha não tinha apenas atrás
de si as capacidades militares e os recursos de quase todo o continente, como até do
ponto de vista ideológico era encarada favoravelmente por muita gente na Europa. Os
exércitos alemães davam-se como representantes do Ocidente cristão contra os bárbaros
comunistas. A Espanha, embora teoricamente neutral, enviaria uma divisão para
combater, a Divisão Azul, e também Portugal enviou uma “missão de observação” de
que fazia parte o jovem oficial de cavalaria António de Spínola. Um famoso apologeta
do salazarismo, o historiador João Ameal, chegou a escrever que na Rússia a cruz
gamada das tropas hitlerianas também representava “as cinco chagas de Cristo”
(presentes na simbologia da bandeira portuguesa).
Esta guerra obedeceu desde o início a directivas claras de guerra de erradicação,
isto é, de liquidação de toda e qualquer resistência, sem a preocupação de fazer
prisioneiros, e especificamente com a directiva de liquidação de todos os responsáveis
comunistas, nomeadamente dos comissários políticos do exército soviético
(Komissarenbefehl). É também nesta fase que começa a liquidação sistemática dos
judeus, ainda não com as câmaras de gás, mas por fuzilamento. Isto é interessante
porque é muito diferente daquilo que se passou a ocidente, onde houve a preocupação
210
ofensiva de 1942, que a guerra estava perdida para a Alemanha. Foram poucos a
perceber isto com clareza, mas mesmo quem não a achava perdida, achava que se
deviam realizar operações tácticas de retirada que permitissem uma ofensiva noutra
altura. Mas, por maior que fosse a derrota, era maior o peso que tinham os factores
pessoais da liderança de Hitler e a sua convicção de que era um génio militar. Ele
acompanhava diariamente as operações e tomava as decisões. A batalha de
Estalinegrado fê-lo dar a ordem de não retirada e, quando os exércitos alemães foram
cercados pelos soviéticos, a ordem de Hitler foi para resistir até ao fim, ainda que não
pudessem sair dali vivos, porque isso era politicamente mais importante do que as
vantagens militares da retirada. Hitler promove então o general von Paulus, que era o
comandante supremo das tropas, a marechal de campo (Feldmarschall). Porém, com as
tropas cercadas pelos soviéticos, sujeitas a fogo de artilharia e sem escapatória possível,
von Paulus nada podia fazer e, em Fevereiro de 1943, capitula. Dá-se assim a derrota
alemã em Estalinegrado e a viragem mais decisiva no desenvolvimento da Guerra.
Seguiu-se a batalha de Kursk, que ficou famosa como a maior batalha de tanques da
história e que pertence já ao princípio da retirada alemã.
A partir de 1943, a guerra estava objectivamente decidida, quer dizer, pelas
características que tinha, os factores de potencial económico, político e militar estavam
agora nas mãos da coligação anti-fascista, como ficou conhecida a aliança entre a
Inglaterra, os Estados Unidos e a União Soviética que se estabeleceu a partir de 1941. O
estabelecimento desta coligação resultou da entrada em guerra, em 1941, da URSS e
também, no final desse ano, dos E.U.A.
Desde a Primeira Guerra Mundial, a política americana tinha sido
profundamente marcada pelo chamado isolacionismo. Ao longo das várias crises
europeias, da guerra civil de Espanha, da crise de Munique, etc., os E.U.A. sempre
afirmaram a sua posição de neutralidade. No entanto, os E.U.A. não eram
desinteressados da guerra, porque a expansão alemã situava-se ideologicamente em
contradição com as ideias do liberalismo americano e o seu controlo da Europa e as
ambições de domínio mundial podiam vir a constituir um problema. O que determinou a
entrada dos E.U.A. na guerra não foi directamente a Alemanha, mas sim o Japão, que
fazia parte do Pacto Anti-Comintern, uma aliança política com a Alemanha e com a
Itália.
212
Vimos na aula anterior as linhas gerais das duas primeiras fases da 2ª Guerra
Mundial. A primeira vai da invasão da Polónia em 1 de Setembro de 1939 à invasão da
URSS em 22 de Junho de 1941. A segunda fase da guerra vai do segundo semestre de
1941 até aos primeiros meses de 1943. O que marca esta etapa do conflito é a efectiva
mundialização da guerra, com a entrada em cena da União Soviética, do Japão e dos
Estados Unidos da América. Nesta fase ainda é visível o predomínio militar e político
das forças do Eixo.
A passagem à terceira fase da guerra dá-se com a vitória soviética em
Estalinegrado em Fevereiro de 1943, o que coincide com a inversão da situação no
extremo-oriente a favor dos EUA. O final de 1942 e o principio de 1943 correspondem
também à inversão dos acontecimentos no Mediterrâneo, ou seja, à derrota alemã no
Norte de África e à preparação da invasão da Itália. A terceira fase da guerra, o mais
destrutivo e mortífero período do conflito mundial, é marcada pelo peso crescente dos
EUA e da União Soviética no plano militar e político. Este fenómeno concentra e dá
relevo a tendências de ascensão dos dois países, facto que já vinha do primeiro pós-
guerra. A importância da última etapa do conflito é o facto de prenunciar o quadro no
qual se estruturará a paz, isto é, o quadro político-militar que vigorará até quase ao final
do século XX.
A hegemonia mundial político-militar americana, que marcará de forma decisiva
a segunda metade do século XX, é especialmente surpreendente se notarmos que o
exército americano em 1940 era aproximadamente do tamanho do exército belga. Para
além do reduzido exército, a política tradicional americana é fortemente marcada pelo
isolacionismo. Mesmo depois do início da Guerra na Europa, Roosevelt afirma que os
EUA permanecerão neutrais.
Depois do rápido sucesso nazi na Europa, a política isolacionista americana
começa a romper-se e a possibilidade de intervenção a definir-se. Como vimos, a
aprovação pelo Senado americano da lei cash and carry, que permitia ao executivo
vender armamento à Inglaterra, desde que fosse pago a pronto, é um ponto de viragem
na diplomacia americana, tal como o é o encontro entre Churchill e Roosevelt em
215
48
Europe in the Twentieth Century, p. 481.
216
em Maio de 1943, com a capitulação alemã na região, e em Julho do mesmo ano inicia-
se a invasão da Itália através da Sicília, por via naval.
A invasão da Itália tem uma consequência importante no próprio governo
italiano. Na noite de 24 para 25 de Julho de 1943, um golpe de Estado no seio do
regime fascista derruba Benito Mussolini, sendo um dos conspiradores o genro do
próprio Mussolini, conde Ciano, ministro dos Negócios Estrangeiros. A reunião do
Grande Conselho do Fascismo, órgão supremo do regime, pronuncia-se
maioritariamente contra Mussolini, e em consequência o rei decide a demissão do Duce
e ordena a sua prisão. Em sua substituição é nomeado chefe do governo o marechal
Badoglio. Este marechal era uma figura importante do regime fascista, tendo sido o
comandante das operações de conquista da Etiópia em 1935. A 12 de Setembro,
Mussolini é resgatado da prisão, através de uma operação efectuada por um regimento
de comandos e pára-quedistas alemães, e posteriormente levado para o norte de Itália,
onde em 23 de Setembro proclama, em Salò, a República Social Italiana, na qual chefia
um governo sob supervisão nazi. A Itália fica então dividida: a República de Salò é um
regime de ocupação directa alemã, no sul estão as tropas aliadas e em Roma mantém-se
o governo de Badoglio. Este demora na declaração do armistício e, quando o declara
oficialmente, a 8 de Setembro de 1943, não toma qualquer tipo de medidas para resistir
à inevitável reacção germânica. O exército italiano é abandonado, ou seja, fica sem
direcção, e a Itália está, tanto a norte como no centro, incluindo Roma, ocupada pelas
forças alemãs. O exército nazi, apoiado por voluntários fascistas italianos, resiste ainda
por mais algum tempo, ajudado também por factores naturais – a cadeia montanhosa
dos Apeninos, que atravessa a Itália, constituiu um elemento favorável à defesa alemã
contra as tropas aliadas. Entre os italianos organiza-se o movimento de libertação,
dinamizado pelos partidos antifascistas e sobretudo pelo Partido Comunista. O
movimento consegue estabelecer-se em algumas zonas do território e desencadear
acções armadas contra os ocupantes alemães. A resistência antifascista italiana
fortalece-se sobretudo depois de 1943 e contribuiu muito para o processo de libertação
da Itália.
O problema da abertura da segunda frente na Europa é resolvido com o
desembarque das forças aliadas na Normandia, em 6 de Junho de 1944. Este episódio
decisivo da Segunda Guerra é relembrado como a maior operação de transporte de
217
está numa fase crucial, o que obviamente impede a sua saída do país. A reunião de
líderes em Casablanca é importante pelo facto de estabelecer o princípio da rendição
incondicional das potências do Eixo e da colaboração recíproca na administração dos
territórios libertados. Ainda em 1943, tem lugar uma conferência de ministros dos
Negócios Estrangeiros em Moscovo, que também tem importância política. Esta reunião
consolida a ideia da criação da Organização das Nações Unidas, apresentando-se os
primeiros projectos concretos para a sua formação. Durante a conferência ainda se
acorda a futura desnazificação da Alemanha.
No dia 28 de Novembro de 1943 tem início a primeira conferência dos Três
Grandes, Roosevelt, Churchill e Stalin, em Teerão. A escolha do local não é casual, é
de Teerão que segue para a URSS o armamento americano e inglês para as tropas
soviéticas. Desta conferência sai o acordo acerca da fronteira russo-polaca, aceita-se a
manutenção das fronteiras estabelecidas no pacto germano-soviético. Durante os três
dias da conferência, os Aliados, perante os insistentes pedidos do líder soviético,
decidem o arranque das operações na Normandia com a maior celeridade possível.
Stalin, em troca, compromete-se a prestar apoio na luta contra o Japão, depois de
derrotado definitivamente o III Reich.
Em Agosto de 1944, a URSS consegue ocupar definitivamente a Roménia, a
Bulgária e a Hungria, ou seja o controlo da região balcânica. Em Outubro de 1944
Churchill e Stalin reúnem-se em Moscovo e debatem a repartição das esferas de
influência nos Estados libertados. No quadro do final da guerra o ambiente que existe é
de colaboração entre os vencedores e o compromisso de criação de instituições
democráticas é assumido. Este último aspecto é um dos grandes temas da segunda
conferência dos Três Grandes, que se realiza em Ialta entre 4 e 11 de Fevereiro de 1945.
Apesar das divergências ideológicas, o clima de cooperação, cordialidade e confiança
que se faz sentir entre os Aliados permite o acordo sobre algumas questões importantes.
Acorda-se a criação de um conjunto de instituições internacionais. Decide-se a reunião,
num futuro próximo, da conferência preparatória da Organização das Nações Unidas.
Produzem-se acordos em matéria económica, como o estabelecimento do Fundo
Monetário Internacional. Resulta também de Ialta o compromisso dos participantes de
realizar eleições democráticas nas áreas que cada potência ocupa.. A desnazificação da
Alemanha também é debatida na conferência, assim como a divisão provisória da
219
1944 os Alemães ainda reagem com uma ofensiva nas Ardenas, que gera fortes
combates, embora a situação para a Alemanha seja de desespero. A 25 de Abril de
1945, dá-se o encontro das forças americanas e soviéticas em Torgau, nas margens do
rio Elba, a 30 de Abril Hitler suicida-se, finalmente é a dupla capitulação alemã, a 8 de
Maio em Reims, perante as tropas anglo-americanas, a 9 de Maio em Berlim, perante o
Exército soviético.
Os custos humanos foram dramáticos. Entre soldados e civis a União Soviética
foi o país que mais vidas perdeu, mais de 20 milhões. A Polónia registou seis milhões
de perdas humanas e a Alemanha 4,2 milhões. Os EUA cifraram 406 000 mortes
durante os combates. O continente europeu ficou devastado pelos quase seis anos de
guerra.
No que diz respeito à guerra do Pacífico, em Junho de 1945 os Americanos já
se encontravam em solo japonês, com a ocupação de Okinawa, após a custosa e
prolongada luta pela reconquista do domínio do Sueste asiático e das ilhas do Pacífico.
A estrutura em arquipélago do território japonês, a intransigência dos círculos político-
militares governantes e o fanatismo do culto do Imperador tornavam porém difícil o
avanço das tropas, ao passo que era muito mais económico, do ponto de vista dos custos
humanos e materiais americanos, proceder, a partir das posições conquistadas, a
bombardeamentos em massa sobre as cidades japonesas. Tal acontecera já em Tóquio,
onde um bombardeamento com meios convencionais (nomeadamente bombas
incendiárias), ao longo de uma noite, causou a morte de cem mil civis. Idêntico grau de
destruição é obtido, instantaneamente, com o lançamento, em 6 de Agosto, da bomba
atómica sobre Hiroxima e, três dias depois, sobre Nagasaki (o resultado conjunto das
duas explosões é estimado em 280 000 mortos, incluindo as vítimas do efeito a longo
prazo das radiações). A 14 de Agosto o imperador anuncia a capitulação incondicional,
que será assinada a 2 de Setembro. Assim terminou a Segunda Guerra Mundial.
222
Na Ásia
No programa, fala-se em “resistências antifascistas na Europa”, mas de facto não faria
sentido restringirmo-nos, na análise dos movimentos de Resistência durante a II Guerra
mundial, ao que se passou na Europa. No teatro asiático, o Império japonês chegou a ter
sob o seu domínio 450 milhões de pessoas. As Resistências anti-nipónicas na Ásia
talvez sejam ainda mais heterogéneas que as Resistências europeias ao nazismo e aos
fascismos, mas não foram menos importantes, se pensarmos que condicionaram
decisivamente o grande fenómeno da Ásia e do mundo depois de 1945 que foi a
descolonização.
É certo que se pode questionar se os movimentos de oposição ao domínio imperial
japonês cabem na categoria do antifascismo, que caracteriza as Resistências europeias.
O regime imperial nipónico partilhava com o nazismo e com o fascismo italiano uma
série de características: o racismo, o ódio à democracia, ao liberalismo e ao comunismo,
a concepção organicista e hierárquica da sociedade, o militarismo, a ideologia imperial
e a prática correspondente. É de resto característico que a aliança político-militar entre a
Alemanha e o Japão se tenha estabelecido na base do Pacto Antikomintern, de 1936, a
que depois aderiram a Itália, a Espanha franquista e outros regimes ditatoriais49.
Um elemento fundamental, no entanto, distingue a guerra e a ocupação japonesa na
Ásia da ocupação hitleriana. É que, ao decidir, em 1941/42, na sequência do ataque a
Pearl Harbour, passar à conquista da Birmânia, das Filipinas, de Hong-Kong, da
Malásia, da Indonésia (Índias orientais holandesas), e alargar o seu domínio dos
arquipélagos do Pacífico, o Japão estava a atacar sólidas posições coloniais da
Inglaterra, da Holanda e dos EUA. Não atacou directamente a França: preferiu entender-
se com o regime de Vichy, que continuava a dominar a Indochina (actual Vietnam, Laos
e Cambodja), obtendo aí posições de privilégio económico e político. Atacando as
potências coloniais europeias, o Japão suscitou de início uma vaga de entusiasmo entre
os povos até aí subjugados pelos europeus, povos que já antes olhavam para o exemplo
japonês de modernização e afirmação de potência militar contra o “domínio branco”. Na
49
Cfr. Francesco Gatti, “Una grande rimozione: il fascismo giapponese”, in Enzo Collotti (a cura
di), Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni, Laterza, Roma-Bari, 2000, pp. 193-218.
229
Na Europa
Com a expressão Resistência ou Resistência antifascista evocamos, em primeiro lugar,
o conjunto das formas de luta política e militar contra o domínio nazi-fascista nos países
europeus ocupados pela Alemanha nazi ou administrados pelos governos dela aliados.
Ulteriormente a expressão ganhou um sentido mais amplo. Fala-se por exemplo da
Resistência à ditadura em Portugal durante os quase 50 anos que vão de 1926 a 1974,
aliás o preâmbulo da Constituição portuguesa refere, logo no seu primeiro parágrafo, a
“longa resistência do povo português”. Mas a expressão nasceu nos anos da Guerra, e
por identificação com as Resistências dos países ocupados.
As Resistências não têm com a II Guerra mundial um nexo fortuito de coincidência
cronológica. São antes, como escrevia Enzo Santarelli, “a outra face do II conflito
mundial, da sua globalidade e totalidade”51. Ou ainda, na expressão de Henri Michel,
elas ilustram “o duplo carácter do conflito: rivalidade das potências, guerra civil
internacional.”52 A definição anti-fascista é essencial na constituição deste nexo. Se,
como vimos, o Eixo Berlim-Roma-Tóquio comportava uma reorganização mundial
baseada na ideia de Império e associada a uma concepção hierárquica de relações
raciais, pelo lado dos Aliados existe, desde a Carta do Atlântico de Agosto de 1941 (a
que a URSS adere no mês seguinte) a proclamação de princípios de autodeterminação
das nações, liberdade de comunicações, progresso social e procura do desarmamento,
em que se baseará, pouco depois, a primeira Declaração das Nações Unidas, subscrita
em Janeiro de 1942 pelos 26 países que entretanto se encontravam em guerra com o
Eixo.
50
Vide Maurice Crouzet, L'Époque Contemporaine, Quadrige/PUF, Paris, 1994 (1ª ed.1957), pp.
377-381; Enzo Santarelli, Storia Sociale del Mondo Contemporaneo, Feltrinelli, Milão, 1982, pp. 415-
421.
51
Santarelli, Storia Sociale, p. 415.
52
Henri Michel, Les Mouvements Clandestins, PUF (que sais-je? nº946), Paris, 1961, p.123.No
mesmo sentido, Enzo Colotti, “Resistenza”, in Aldo Agosti (dir.) Enciclopedia della Sinistra Europea nel
XX Secolo, Editori Riuniti, Roma,2000, p. 727; Franco de Felice, “Introduzione”, in Franco de Felice
(dir.), Antifascismi e Resistenze, Annali Fondazione Istituto Gramsci, Roma,1997, p. 13.
231
Pode afirmar-se, com Henri Michel, que em alguns países “a Resistência começou antes
da guerra: em 1922 em Itália e desde a chegada do partido nazi ao poder na
Alemanha”53. No entanto, “sem as circunstâncias novas criadas pela II Guerra mundial
e os caracteres que assumiram as ocupações das potências do Eixo, como prefiguração
de uma nova ordem europeia fundada numa pesada hierarquização nacional, racial,
económica e social dos povos, não se teriam criado as condições do processo de radical
contraposição à dominação fascista e nazi que teve expressão na Resistência.”54
53
Michel, Mouvements, p. 11.
54
Collotti, “Resistenza”, p. 728.
55
Crouzet, p. 348.
232
puderam manter as instituições e ainda em 1943 se realizaram eleições, que aliás deram
a maioria ao partido socialista. No caso da França, como já foi referido noutra lição,
houve a divisão do território em duas zonas, uma de ocupação político-militar directa,
outra administrada pelo regime de Vichy.
No conceito de Resistência englobamos comportamentos diversos, que vão desde as
mais simples manifestações de inconformismo ou de recusa de colaboração
(nomeadamente na perseguição aos judeus) até à luta de guerrilha culminando na
insurreição armada, passando pela ajuda a perseguidos políticos ou raciais, a audição
das notícias da BBC ou da Rádio Moscovo (sujeita à pena de morte), a impressão e
distribuição de panfletos, a criação de estruturas de ligação para recolha de informações
de interesse político ou militar, o envio de mensagens rádio, as acções de sabotagem
económica ou militar, a fuga ao serviço de trabalho obrigatório na Alemanha, a
organização de greves, os atentados contra as forças ocupantes, etc.
As Resistências incluem tudo isto. No entanto há um processo em desenvolvimento, em
que é possível discernir diversas fases, estreitamente relacionadas com o decurso da
Guerra. No período imediato às invasões, sob o efeito da derrota militar, das divisões
políticas e da desmoralização geral, as acções de Resistência são escassas. A partir de
1941, com o impasse na tentativa alemã de esmagar a Grã-Bretanha, o início do ataque
à URSS em Junho, e sobretudo, em Dezembro, a contenção pelos soviéticos do avanço
hitleriano sobre Moscovo e a entrada em guerra dos EUA, alarga-se o envolvimento na
Resistência e iniciam-se as acções armadas. Mas só em 1943, com a decisiva viragem
na Guerra após Estalinegrado, as Resistências adquirem coordenação política,
unificação de objectivos e formas de acção militar sistemática, em ligação com largos
movimentos de massa, ao mesmo tempo que a contraposição colaboração/resistência
tende a definir-se como disjuntiva política e moral absoluta.
56
José Gotovitch et alii, L’Europe des Communistes, Complexe, Bruxelas, 1992, pp.139-140.
57
Bernard Bayerlein et alii, Moscou-Paris-Berlin. Télégrammes chiffrés du Komintern (1939-
1941), Tallandier, Paris, 2003, pp.241-242.
58
Citado in Maurice Thorez, Fils du Peuple, Éditions Sociales, Paris, 1970, p. 200.
59
Gotovitch et alii, L’Europe des Communistes, p.144.
234
60
Claudio Natoli, Fascismo, Democrazia, Socialismo, Franco Angeli, Milão, 2000, p. 302.
61
Collotti, “Resistenza”, p. 734.
235
A Resistência na Polónia
Um país onde o Partido Comunista teve papel minoritário, embora activo, na
Resistência, foi a Polónia. Um aspecto significativo, e até impressionante, da
Resistência polaca, foi a manutenção, durante todo o período da guerra, de um sistema
de ensino a todos os níveis, incluindo o universitário, com que os Polacos reagiram à
tentativa nazi de reduzir os eslavos, como raça inferior, aos graus elementares de
ensino. A componente maioritária da resistência polaca teve a dirigi-la o governo
exilado em Londres. A tradicional hostilidade anti-russa, agravada pelos efeitos da
ocupação pela URSS dos territórios do leste na sequência do pacto germano-soviético e
pelo anticomunismo do governo de Londres, determinaram a existência de dois
movimentos de Resistência armada, a Armia Krajowa, fiel ao governo de Londres, e a
62
Cfr. Geoff Eley, Forjando a Democracia. A história da esquerda na Europa 1850-2000,
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005, pp.330 e sgs.
63
Gotovitch, p. 148.
64
Giuliano Procacci, Storia del XX Secolo, Bruno Mondadori, Milão, 2000, p. 268.
236
A Resistência na Jugoslávia
Na Jugoslávia a resistência armada iniciou-se cedo, em 1941, em reacção à intervenção
alemã contra um golpe de Estado pró-aliado. As possibilidades da luta de guerrilha
eram favorecidas pela orografia da região balcânica, mas a Resistência esteve dividida
em dois movimentos, ambos em luta contra os Exércitos nazis e os seus aliados fascistas
da Croácia, os ustachas. Havia por um lado a guerrilha nacionalista sérvia, os tchetniks
liderados por Mihailovitch, por outro o Exército comunista liderado por Josip Broz Tito.
Separava-os não só a orientação conservadora e monárquica de Mihailovitch, mas
sobretudo o seu nacionalismo sérvio e anti-croata, contrário à orientação de Tito, ele
próprio croata e favorável a um renascimento da Jugoslávia como república federal.
Apesar das directivas soviéticas no sentido do entendimento dos dois movimentos e da
aceitação da solução monárquica, tal não se verificou, acabando os nacionalistas
tchetniks, por hostilidade aos comunistas, a colaborar com as tropas de ocupação alemãs
e italianas. Em resultado disto, e da capacidade militar superior evidenciada pela
guerrilha comunista, o próprio governo inglês de Churchill decidiu apoiá-la e fornecer-
lhe auxílio em material de guerra. Em 1945, a Jugoslávia e a Albânia acabaram por ser
237
os únicos países da Europa de leste a libertar-se pelas suas próprias forças, por acção da
guerrilha dirigida pelos Partidos Comunistas.
A Resistência em França
Em França e em Itália os partidos comunistas foram as principais forças dirigentes de
organizações militares de Resistência, mas aceitaram integrar-se em comités presididos
por figuras conservadoras anti-fascistas. Foi o caso, em França, do Comité Nacional da
Resistência chefiado por De Gaulle, que em 1944 estabeleceu em Argel um governo
65
Lidia Santarelli, “La guerra civile greca”, in Agosti (dir.), Enciclopedia, pp. 735-741; Ilios
Yannakakis, “Le parti communiste grec dans la résistance et la guerre civile. Témoignage de Dimitris
Vlandas”, Communisme nº2, 1982, pp. 73-91.
238
A Resistência em Itália
Situação parcialmente semelhante, mas especialmente complexa, foi a que caracterizou
a libertação da Itália, onde em Julho de 1943 se deu a queda de Mussolini por iniciativa
do rei e do próprio Grande Conselho fascista. Porém, o governo do Marechal Badoglio,
que sucedeu a Mussolini, não define uma posição clara na guerra. Perante a invasão
aliada do Sul de Itália e a consequente ocupação de Roma e do Norte de Itália pelas
tropas alemãs, o rei e o governo fogem de Roma, abandonando as tropas sem direcção.
66
Cfr. Geoff Eley, Forjando a Democracia, pp.337-339.
239
67
Aldo Agosti, Bandiere Rosse. Un profilo storico dei comunismi europei, Editori Riuniti, Roma,
1999, pp.135-140.
240
A Resistência na Alemanha
O panorama das Resistências europeias ao fascismo hitleriano não pode dispensar a
referência aos movimentos de oposição desenvolvidos, com pesado tributo de sangue,
dentro da própria Alemanha e pelos alemães no exílio. É um aspecto que importa tanto
mais sublinhar quanto, ao colocar-se o problema da responsabilidade histórica pelos
crimes de guerra e o genocídio, esta é por vezes com demasiada facilidade atribuída aos
“Alemães” em geral, retribuindo um tipo de exclusão próprio das categorizações do
fascismo. Atitude compreensível no contexto da Guerra e do imediato pós-guerra e que
suscitou até panfletos históricos originais68, ela foi reactivada em anos recentes pelo
impacto da obra do historiador americano Daniel J. Goldhagen69.
Importa em primeiro lugar ter presentes os custos humanos suportados pelos opositores
alemães do nazismo, quer antes da chegada de Hitler ao poder, quer depois. Já em 1939,
nas vésperas da Guerra, cerca de 190 mil alemães estavam ou tinham passado pelas
prisões e campos de concentração, 12 mil tinham sido condenados à morte por “alta
traição” e 40 mil tinham fugido do país por motivos políticos. Durante a Guerra, outros
15 mil foram condenados à morte70. A grande maioria eram operários.
A investigação acerca da Resistência na Alemanha esteve durante muito tempo
prejudicada, não só pelos preconceitos mencionados, mas também, na historiografia
68
A.J.P.Taylor, The Course of german History (1ª ed. 1945).
69
Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o holocausto, Editorial Notícias, Lisboa,
1999.
70
Ian Kershaw, Qu’est-ce que le nazisme? Problèmes et perspectives d’interprétation, Gallimard,
Paris, 1997, p. 321.
241
alemã, pelos efeitos da divisão em dois Estados (RFA e RDA), que durou até 1989, e do
ambiente político e cultural da “guerra fria”. A historiografia da RDA quase só fazia
menção do Partido Comunista Alemão (KPD) na clandestinidade, ao passo que a
historiografia da Alemanha ocidental se interessava essencialmente pela acção do
grupo, de extracção social burguesa e aristocrática, ligado ao coronel conde Claus von
Stauffenberg, que em 1944 levou a cabo a mais espectacular e conhecida das iniciativas
tendentes a derrubar o regime: o atentado falhado de 20 de Julho de 1944 contra Hitler.
A historiografia desenvolvida a partir dos anos 70 não só alargou o espectro das
organizações e movimentos a considerar e afinou a respectiva periodização como, sob o
influxo das investigações de história social e de história da vida quotidiana, ampliou o
próprio conceito de “resistência”.
Nos primeiros anos de existência da ditadura hitleriana, até 1935, a organização
efectivamente empenhada numa intensa actividade de organização e propaganda ilegal,
apesar da perseguição terrorista a que foi sujeita, foi o partido comunista, KPD (até
1933 o segundo maior do mundo, depois do soviético). O partido social-democrata
cessou a actividade (apenas uma parte dos seus dirigentes a continuou a partir do
exílio). A acção comunista era animada pela convicção de que o nazismo, como
ditadura terrorista, representava o estertor do domínio burguês, a que inevitavelmente
sucederia a revolução proletária. Após 1935, também o KPD regista uma evolução, em
resultado dos golpes sofridos e da aplicação da política de Frente Popular, mais sóbria
na apreciação da situação existente e mais preocupada com a aproximação aos social-
democratas e, em geral, às preocupações da população com o custo de vida e o perigo
de guerra. Foi uma tentativa praticamente sem resultados, porque justamente nestes
anos a saída da situação de crise económica e os sucessos de Hitler em política externa
consolidam o prestígio do regime entre a maioria da população, inclusive na classe
operária. De registar, no entanto, a constiuição, no exílio, de um “comité de preparação
da Frente Popular alemã”, a que também aderiram alguns social-democratas e figuras
intelectuais de relevo. Importante ainda mencionar a participação, como combatentes
das Brigadas Internacionais na guerra civil de Espanha, de 5 mil antifascistas alemães
(predominantemente comunistas), dos quais 3 mil caíram em combate.
A partir de 1937 desenha-se a emergência, entre sectores da hierarquia militar e das
cúpulas sociais e do Estado, que anteriormente tinham apoiado a política de
242
71
Werner Roehr, “Deutsche Widerstandsforschung 1994/95: Fragen und Probleme”, Bulletin-
Berliner Gesellschaft fuer Faschismus-und Weltkriegsforschung, nº 8, 1997, pp.51 sgs.
243
72
Merece referência o filme de Marc Rothemund, Sophie Scholl. Os últimos dias, 2005.
73
A resistência alemã a Hitler 1933-1945. Exposição informativa e documental da República
Federal da Alemanha, 1986, p. 11.
244
74
Claudio Natoli, “Opposizione antinazista”, in Aldo Agosti (dir.), Enciclopedia, pp. 512-520.
75
Kershaw, Qu’est-ce que le nazisme?, pp.296 e sgs.
76
A resistência alemã a Hitler, p.8.
245
motivações, que por vezes a fronteira entre colaboração e resistência era difusa77. Por
seu lado, Leonardo Rapone, reclamando “libertar o antifascismo como objecto
historiográfico da sua dimensão social e reinseri-lo na história da Itália”, sublinha que
“nos diversos meios sociais, há contiguidade ente o antifascismo e estas formas
ambíguas e parciais de resistência à mobilização fascista: muitas vezes a opção
antifascista militante amadurece porque, na experiência dos indivíduos, a anterior
estratégia de convivência com o regime, e de contenção das suas pretensões de domínio
das consciências, chegou a um ponto de ruptura; e muitas vezes o militante antifascista
permanece em contacto com aquele mundo, a sua experiência não se esgota na
dimensão conspirativa e clandestina (…) o antifascismo podia também nascer da
aspiração a uma vida normal.”78
O legado da Resistência
As formas da Resistência são assim muito diversas nas suas origens, expressões e
intensidades. Isso não impede que se possa considerar nelas “a existência de um núcleo
e de elementos comuns: não só obviamente a oposição ao fascismo, mas também a
aspiração a algum tipo de ‘ordem nova’ que rompesse definitivamente com um passado
próximo feito de guerras, de instabilidade e de desemprego”79.
François Furet, que se empenhou em denunciar o antifascismo como “a grande ilusão da
época“ e um subproduto da “ilusão comunista”, notou agudamente que, em contraste
com os resultados da I Guerra mundial, no final da Segunda, “a interpretação da vitória
não é contestada por ninguém, nem sequer pelos vencidos”, acrescentando noutra
passagem que o fim da guerra confirmava a tese marxista segundo a qual a derrota do
fascismo punha em causa o capitalismo80. A partir de pressupostos diferentes, E.J.
Hobsbawm caracteriza a aliança antifascista da Guerra e das resistências como
“simultaneamente pela regeneração social. Porque a II Guerra mundial era, para o lado
vencedor, não apenas uma luta pela vitória militar, mas – mesmo na Grã-Bretanha e nos
EUA – por uma sociedade melhor. Ninguém sonhava com um regresso no pós-guerra a
77
Michel, Les Mouvements, pp. 11-23.
78
L. Rapone “Antifascismo e storia d’Italia” in Enzo Collotti (a cura di), Fascismo e antifascismo,
pp.233-235.
79
Procacci, Storia, p. 274.
80
François Furet, Le Passé d’une Illusion. Essai sur l’idée communiste au XX. Siècle,
Laffont/Calmann Lévy, Paris, 1995, pp. 407, 412.
246
1939 – ou mesmo a 1928 ou 1918, como após a I Guerra mundial os estadistas tinham
sonhado com um regresso ao mundo de 1913.”81
Como Hobsbawm também sublinha, em resultado da Libertação, formaram-se governos
do mesmo tipo, tanto na Europa ocidental como na Europa de leste, baseados em
coligações de esquerda que retomavam a ideia da Frente Popular. Também as medidas
levadas a cabo por estes governos foram essencialmente do mesmo tipo: reformas
agrárias, nacionalização dos sectores-chave da economia, afastamento dos fascistas e
proibição das suas organizações, política social favorável aos trabalhadores. Por toda a
parte “a lógica da guerra antifascista impelia para a esquerda”82.
Na Europa e no mundo, 1945 foi um período de projecção máxima dos partidos e da
ideologia comunista, devido não só às vitórias do Exército Vermelho como à
participação comunista nas resistências83. Esta relação não se desenvolveu em sentido
único. Como escreve G. Elley, “as condições peculiares da guerra criaram o espaço em
que surgiu um tipo diferente de comunismo, baseado na Resistência e nas tradições
progressivas de cada sociedade.” 84 Foi um momento de abertura de possibilidades
históricas que Elley compara às de 1918/19, mas cujos efeitos foram mais consistentes e
duradouros. Um aspecto não secundário da experiência da Guerra, da resistência e da
libertação, foi a massiva deslocação do campo intelectual para a esquerda, que se
prolongou até aos anos 80. Não só em Itália e França, onde os partidos comunistas eram
grandes formações políticas, mas também num país como Portugal, onde a ditadura se
manteve, o marxismo tornou-se a corrente dominante entre os intelectuais85.
A emergência da “guerra fria”, mudando as relações entre as potências participantes da
coligação antifascista, alterou o quadro em que as transformações democráticas tinham
sido possíveis, mas não as anulou. Os princípios de garantia dos direitos políticos e
sociais consagrados pela Carta da ONU, pelas novas Constituições de muitos Estados
europeus e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) influenciarão a
construção, no contexto do intenso desenvolvimento económico verificado no pós-
81
Eric Hobsbawm, Age of Extremes.The short twentieth century, Michael Joseph, Londres, 1994,
p. 161.
82
Id., ibidem, p. 163.
83
V. Stéphane Courtois, “L’année du triomphe du communisme”, in AA. VV., L’État du Monde
en 1945, La Découverte, Paris, 2005, pp. 72-79
84
Elley, Forjando a Democracia, p. 335.
85
V. Daniel Lindenberg, “L’apogée du philocommunisme des intelectuels occidentaux”, in AA.
VV., L’État du Monde en 1945, pp. 222-227.
247
guerra, do Welfare State. Também esses princípios e essa herança cultural marcam a
resistência antifascista e a instauração em Portugal, com trinta anos de atraso, do regime
democrático. Em 1974, porém, começavam já a notar-se os primeiros sinais da crise do
Welfare State e dos ventos da globalização capitalista que, com a crise dos Estados
socialistas europeus, trariam no final do século uma reacção, hoje em pleno
desenvolvimento, que ameaça destruir as aquisições de civilização com tanto custo
alcançadas pelos sacrifícios da Guerra e das Resistências antifascistas.
248
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258
LIVRO II
A EUROPA E O MUNDO
DEPOIS DE 1945
1. Introdução………………………………………………………………………...264
2. Os inícios da guerra fria: 1945-47……………………………………………….280
3. O pós-guerra e a primeira fase da descolonização……………………………..294
4. Guerra fria. Da revolução chinesa à guerra da Coreia.O Maccartismo.
A repressão na URSS e na Europa de leste………………………………………..305
5. O período da guerra fria nos EUA e na Europa ……………………………….317
6. A crise do Suez. A Conferência de Bandung. As independências africanas….332
7. Os anos do desenvolvimento 1950 – 1973……………………………………….346
8. A coexistência pacífica. As crises de Berlim e de Cuba. A Igreja Católica do
Vaticano II à Teologia da Libertação. O conflito sino-soviético. A Guerra do
Vietname…………………………………………………………………………….367
9. O terceiro mundo. O Médio Oriente: a “guerra dos seis dias”. A América latina
e o impacto da revolução cubana. …………………………………………………388
10.Dos movimentos de protesto na América ao Maio de 68. O conflito sino-
soviético e a revolução cultural na China. Das negociações SALT à Conferência de
Helsínquia. O conflito israelo-árabe: a guerra do Yom Kippur…………………402
11. A crise dos anos 70. A revolução iraniana…………………………………….420
12. O fim do mundo bipolar. Da crise do bloco de leste ao fim da URSS.
A Perestroika e o fim da “guerra fria”……………………………………………..434
Bibliografia…………………………………………………………………………..459
Nota: o mapa da página 284 é tirado de Norman Lowe, Mastering modern world
History, MacMillan, Basingstoke, 3ª edição, 1997, p. 125.
263
Nota prévia
Este texto reproduz, mantendo em larga medida a expressão oral, as lições dadas em
2008 na cadeira A Europa e o Mundo depois de 1945 da licenciatura em História do
ISCTE. É o resultado, por natureza provisório, da prática de alguns anos de ensino da
disciplina, iniciada há dez anos sob a designação, que se manteve até há pouco, de
História Contemporânea Geral IV.
Tem sido um trabalho muito interessante mas não fácil, dado que sempre realizado em
simultâneo com outros encargos de leccionação. Nestas condições, nunca foi possível a
dedicação suficientemente concentrada a este domínio, o da História mundial recente
(como disciplina científica já parcialmente distinta da História Contemporânea no
sentido convencional), que seria necessária para elaborar um texto com a desejável
autonomia e coerência de perspectiva (que, até certo ponto, julgo ter conseguido nas
lições A Europa e o Mundo entre Guerras).
O curso foi sendo construído à medida que o permitia o avanço nas leituras da
bibliografia, também ela em rápida renovação. Foram de grande auxílio em particular as
obras de Massimo Salvadori e T. E. Vadney citadas. Mas o livro de Scipione
Guarracino, Storia degli ultimi sessanta anni, publicado em 2004 (que actualiza e
desenvolve consideravelmente a sua anterior Storia degli ultimi cinquant’ anni) é que
nos forneceu, não só muitas das informações mas, em grande medida, a arquitectura do
curso na versão aqui apresentada. Algumas das lições, como em cada caso assinalo, não
são mais do que resumos do que se encontra nessa obra.
Muito haverá portanto de futuro a alterar e acrescentar neste texto. Assinala-se como
lacuna maior a que respeita às origens do conflito israelo-árabe, de tanta importância na
actualidade, abordadas na aula através de um filme documental.
Os limites de tempo do semestre lectivo (e não uma opção metodológica) obrigaram-
nos a terminar em 1991, termo do “breve século XX” segundo uma concepção em voga.
Resta dizer que, obviamente, todos os defeitos e eventuais erros, além de recordações e
opiniões pessoais, são apenas da minha responsabilidade.
264
Lição 1. Introdução.
do seu território era na Ásia. Ainda na primeira metade do século dá-se a independência
da Índia, em 1947.
A segunda metade do séc. XX foi marcada pelo fim do colonialismo, e por
consequência da dominação directa dos países europeus nas colónias.
86
Scipione Guarraccino, Storia degli ultimi sessant’anni. Dalla guerra mondiale al conflito globale,
Bruno Mondadori, Milão, 2004, XIV+383 pp.
266
à inflação o racionamento, o que dá ocasião ao mercado negro, que, por seu turno,
como já tinha acontecido na I Guerra Mundial, agrava as disparidades sociais e gera
situações de miséria extrema. Atrás da miséria, como veremos também no filme, vem a
falta de alimentação e doenças de toda a espécie.
Por contraste, os Estados Unidos conheceram, durante a 2ª Guerra Mundial, um
extraordinário desenvolvimento produtivo.
A depressão económica tinha atingido fortemente os Estados Unidos nos
primeiros anos da década de 30, sendo defrontada com as políticas do New Deal, de
investimento na base de intervenção directa do Estado na economia. Mas, até à II
Guerra Mundial, a economia americana viveu uma situação de tipo depressão, de que
sai com a Guerra. Mesmo antes da própria intervenção americana directa na Guerra,
porque o auxílio material e financeiro à Inglaterra, e depois também à Rússia, é um
enorme propulsionador da economia americana. Quer dizer, as encomendas de material
de guerra aos Estados Unidos vão ser um grande dinamizador económico e, ao mesmo
tempo, um meio através do qual o tesouro americano se enriquece. Sobretudo na
primeira fase da guerra, quem comprava tinha de pagar a pronto e, portanto, isso
significou uma grande introdução de ouro e divisas no tesouro americano. No final da
guerra e no pós-guerra, a produção americana é consumida por todo o mundo. As
reservas de ouro dos Estados Unidos, em 1948, chegam a ser três quartos das reservas
mundiais de ouro.
Mas para além disto a produção industrial no período da guerra duplicou nos
Estados Unidos e o potencial produtivo quadruplicou. O desemprego, que tinha sido
uma das chagas dos anos 30, desapareceu completamente. Foi substituído por uma
situação de pleno emprego.
Portanto este é o primeiro dado que vai condicionar fortemente a estrutura das
relações internacionais no pós-guerra: o potencial militar dos Estados Unidos, mas
também a superioridade económica e financeira dos Estados Unidos no plano mundial.
Estados Unidos para, com base nela, criar um sistema que assegure o equilíbrio da
economia mundial.
O problema de base era idêntico àquele que se tinha posto já nos anos 20 e que
não tinha sido resolvido, ou seja, o de encontrar um termo de referência relativamente
objectivo das trocas internacionais, um valor sólido idêntico àquilo que tinha sido, antes
da I Guerra Mundial, o padrão-ouro (quando todos os Estados estavam obrigados a
converter as respectivas moedas em ouro sempre que isso fosse pedido). Antes de 1914,
a regra era essa, mesmo no plano das relações internas. Quer dizer, um cidadão ia ao
banco e pedia o que lá tinha, em ouro. E mais ainda, nas relações entre os Estados. A
convertibilidade em ouro era o critério da fiabilidade nas relações económicas
internacionais.
Nos anos 20, alguns países tinham regressado ao padrão-ouro, mas as situações
de crise económica tinham posto em causa a convertibilidade. A própria libra teve que
desvalorizar e a certa altura abandonar o padrão-ouro. No final da II Guerra Mundial,
em 1944-45, tinha-se alcançado uma situação em que a moeda americana era de tal
maneira decisiva, a capacidade económica e financeira americana era de tal maneira
decisiva, que o dólar estava em posição de se impor como o novo padrão. E, ao mesmo
tempo, em posição de aceitar a respectiva convertibilidade, quer dizer, a
convertibilidade do dólar, em ouro.
Portanto foi um novo padrão de câmbio, um novo padrão de referência do valor
da moeda, que se estabeleceu na Conferência de Bretton Woods. Bretton Woods é uma
cidade americana e esta Conferência de Bretton Woods é de grande importância pelas
decisões que tomou em matéria económico-financeira, porque o sistema que aqui foi
adoptado vigorará até aos anos 70, e foi decisivo para a reconstrução da economia
mundial no pós-guerra. Nesta Conferência aliás, ainda participou a União Soviética.
Estamos no final da Guerra, em pleno período da aliança mundial anti-fascista,
da coligação anti-hitleriana. Em princípio, a própria Rússia não está à margem dos
planos de uma reconstrução integrada, quer dizer concertada, da economia mundial. De
qualquer maneira, o papel decisivo, nesta Conferência de Bretton Woods, é dos EUA e,
em certa medida, também da Inglaterra, até pelo papel que pessoalmente nela
desempenha um economista que já era conhecido anteriormente, mas que nesta época
alcança o máximo do seu prestígio, que é o Lord Keynes, John Maynard Keynes.
271
87
“O Presidente dos Estados Unidos da América e o governo de sua Majestade no Reino Unido
declaram…”, A Guerra Ilustrada, nº 17, Novembro de 1941 (Suplemento).
274
direito de veto, que passa a haver no Conselho de Segurança da ONU. Este direito de
veto no Conselho de segurança da ONU é reservado às cinco grandes potências: os
Estados Unidos, a Inglaterra, a União Soviética, a França e a China.
A China foi incluída embora se encontrasse nesta altura numa situação ainda em
larga medida caótica – porque por um lado uma parte do território tinha sofrido os
efeitos terríveis da invasão japonesa, por outro, à guerra anti-japonesa sucedeu o
recomeço da guerra civil entre os nacionalistas do Kuomintang e o exército comunista
de Mao Tsé Tung, que acabará por vencer em 1949.
Para além das disposições institucionais tendentes à criação de uma nova ordem
mundial, há que ter em conta a série de encontros durante a Guerra dos representantes
das três grandes potências, Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética, nuns casos ao
nível de Ministros dos Negócios Estrangeiros, noutros dos dirigentes supremos,
Roosevelt, Churchill e Stalin.
Essas conferências foram decisivas para aquilo que vai ser a estrutura territorial
da Europa no pós-guerra.
Em anos recentes, têm sido, muitas vezes, criticadas as decisões tomadas nesta
época por terem permitido uma posição de hegemonia da União Soviética em toda a
região da Europa de Leste.
Mas na verdade essa influência dominante da União Soviética na Europa de
Leste foi, antes do mais, o resultado objectivo da maneira como a Guerra decorreu. Isto
é, do facto que a Europa Ocidental foi, no seu conjunto, vencida e ocupada pelos
exércitos de Hitler, a Inglaterra resistiu, de facto, mas não tinha meios para desencadear
por si só uma contra-invasão da Europa. Portanto, quem resistiu, aliás para surpresa de
muitos, à invasão alemã e pôde desencadear uma contra-ofensiva, avançando para
Ocidente, foi o Exército Vermelho. Só a partir de certa altura é que a combinação das
operações militares entre os Aliados permitiu, primeiro, a vitória no Norte de África,
seguidamente a conquista da Sicília pelas tropas anglo-americanas e, depois, o avanço
pelo sul de Itália, que vai determinar, aliás, em Julho de 1943, a queda de Mussolini e a
entrada da Itália num período de transição. Mas isso ainda fica muito longe da
libertação da Itália porque, entretanto, os exércitos alemães reagem, concentram-se na
cordilheira dos Apeninos e essas montanhas dos Apeninos, que atravessam a Itália, vão
276
constituir uma barreira muito difícil de transpor, para o avanço das tropas Aliadas para
Norte. Só em 1945 (a 25 de Abril) é que a Itália será libertada na totalidade.
Entretanto a União Soviética, que ainda em fins de 1942 estava em riscos de ver
cair Estalinegrado, mas conseguiu resistir, em Fevereiro de 1943 vence a batalha de
Estalinegrado e desencadeia uma contra-ofensiva e, a partir daí, o avanço para ocidente.
De maneira que nos fins de 1943, princípios de 1944, os exércitos soviéticos já tinham
ocupado os Estados Bálticos e uma parte da Polónia.
É neste contexto, portanto, do avanço das tropas soviéticas para Ocidente que se
realiza a primeira das Conferências dos Três Grandes, a Conferência de Teerão, na qual
se discute entre Churchill, Roosevelt e Stalin, a abertura da Segunda Frente na Europa.
A primeira Frente era a frente soviética, contra os exércitos alemães. A abertura
duma segunda frente, na Europa, tinha sido um pedido insistente dos Soviéticos
praticamente desde que foram invadidos. E se, por hipótese, se tivesse podido dar uma
invasão americana da Europa, na sequência da entrada americana na Guerra, em 1941-
42, possivelmente a Europa teria sido libertada antes dos exércitos soviéticos poderem
avançar, em profundidade, em direcção do Ocidente. Mas não foi isso que aconteceu.
Os Estados Unidos entraram na Guerra porque foram agredidos pelo Japão, a
sua zona de operações foi o Pacífico. Além disso, obviamente tiveram um papel
decisivo no apoio à Inglaterra, e um apoio material, importante, também, à União
Soviética. O conjunto do apoio americano e aliado à União Soviética vale alguma coisa
como 10%, ou mesmo 15%, do conjunto do investimento soviético na Guerra, o que é
muitíssimo. Mas os Estados Unidos não estavam então, até pela disposição interna dos
americanos, em condições de desencadear uma invasão da Europa.
Por outro lado, a preocupação inglesa era com a sua própria influência na
Europa e, depois dos exércitos inglês e americano participarem na invasão da Itália, a
tentativa do Churchill vai ser no sentido de abrir uma segunda frente nos Balcãs.
Quer dizer, a ideia inglesa era a de que era preciso assegurar o controlo da
região balcânica, onde a Inglaterra sempre tinha tido historicamente uma grande
influência política e económica e essa era, igualmente, uma maneira de preservar essa
região em relação à chegada das tropas soviéticas.
Simplesmente esse plano, já se tinha verificado, no caso italiano, que não era
vantajoso. Quer dizer, as condições geográficas objectivas faziam que, sem grande
277
Soviética estava em posição de atacar o Império japonês numa das suas bases
fundamentais. E era disso que os americanos precisavam.
Para tanto estavam dispostos a fazer algumas concessões em matéria da
estatuição do pós-guerra como as que diziam respeito, por exemplo, às Ilhas Curilhas,
que passariam para a posse soviética depois da guerra, como de facto aconteceu. O que
aliás ainda hoje constitui um motivo de conflito entre a Rússia e o Japão.
Além destas disposições sobre o pós-guerra no Extremo Oriente e da decisão
sobre o estabelecimento da ONU e sua estrutura, a Conferência de Ialta chegou a
acordo na atribuição de zonas de ocupação da Alemanha. Essa era também uma questão
que foi controversa, a de saber se a Alemanha se mantinha como país único ou devia
ser dividida em vários Estados. Aceitou-se o princípio da manutenção da Alemanha,
com o estatuto de ocupação conjunta, traduzida numa repartição territorial provisória,
em que cada um dos quatro vencedores (entra a França também como potência aliada)
ocupava provisoriamente uma zona, havendo, no entanto, um poder militar conjunto,
com poderes de inspecção das várias zonas.
No entanto, já desde a Conferência de Ialta havia discordância sobre alguns
aspectos da questão alemã, nomeadamente porque a União Soviética tinha uma
premente exigência de reparações de guerra alemãs. Isto, é de pagamento de
indemnizações pela Alemanha, coisa que à América não interessa especialmente. A
América estava mais próspera e receava que se gerasse na Alemanha uma situação
económica semelhante à do pós I Guerra Mundial e, portanto, não vai facilitar as
medidas de reparação.
Em Ialta, há também algumas discussões sobre os governos dos países
libertados pelo Exército soviético. Basicamente, sai da Conferência de Ialta uma
Declaração sobre a Europa Libertada que estabelece o princípio da realização de
eleições livres em todos os países, inclusivamente com fiscalização dessas eleições pelo
conjunto das potências vencedoras.
Realização de eleições, portanto, mas quando a paz estivesse assegurada.
No entretanto, em toda a parte se estabeleceram Governos de Coligação que
reflectiam as frentes de Resistência anti-nazi e anti-fascista, nos vários países. E isto
tanto foi assim na Europa de Leste, libertada pelo Exército Vermelho, como na Europa
Ocidental, na França, na Bélgica, etc. Paris é libertada em Agosto de 44, por uma
279
Vamos hoje continuar com o problema das origens da “guerra fria” e entrar
já nos primeiros episódios da “guerra fria”.
Aquilo de que falei nas últimas aulas teve ainda a ver com o que decorreu,
na última fase da guerra, em termos de negociações diplomáticas acerca da
definição do pós-guerra, durante as conferências dos Três Grandes, em Teerão, Ialta
e Potsdam - as conferências destinadas à preparação do pós-guerra.
Hoje entramos já na época da paz, em que vai verificar-se, contrariamente
ao que eram os projectos e expectativas de muitos nos anos finais da guerra, não um
mundo relativamente unificado, mas uma situação de confronto bipolar das duas
novas super-potências, os Estados Unidos e a União Soviética, sendo que até 1949
apenas os EUA são potência nuclear. Só em 1949 é que a URSS acede a esse
estatuto.
A passagem à paz, por muito que tenha sido, e foi obviamente, um alívio e
uma entrada num período de grandes esperanças, após aquela catástrofe tremenda,
no entanto esteve longe de ser um período fácil para as populações. O livro,
recentemente publicado em português, de Tony Judt, Pós- Guerra, dá bem ideia dos
dramas humanos ligados a esta passagem para a paz.
Como vimos, com a libertação da Europa, a ocidente pelas tropas aliadas,
essencialmente inglesas e americanas, a leste pelo Exército Vermelho, apesar da
delimitação das esferas de acção e das presenças militares dos exércitos ocupantes,
a natureza dos governos que se formaram na sequência da Libertação, nos vários
países, tanto a ocidente como a leste, não diferia muito, na sua caracterização
político-ideológica. Quer dizer, eram, por toda a Europa, com poucas excepções,
governos de coligação que integravam o conjunto das forças que de uma forma ou
outra tinham tomado posição contra a ocupação hitleriana, e consequentemente
contra as ideologias fascistas ligadas ao nazismo e à ocupação.
281
Tal como após a I Guerra mundial, houve que concluir tratados de paz. E
realizou-se, para isso, uma série de conferências a vários níveis, nomeadamente a
nível de ministros dos Negócios Estrangeiros, que se concluíram pelos Tratados de
Paris de 10 de Fevereiro de 1947.
284
285
todos os territórios a leste da linha formada pelo curso dos rios Oder e Neisse são
integrados na Polónia.
Na zona de ocupação soviética da Alemanha realizam-se reformas sociais
idênticas às realizadas na Europa de Leste, como o fim dos latifúndios e a
nacionalização dos grandes cartéis industriais.
Há desde logo uma diferença de interesses e objectivos entre soviéticos, por
um lado, e americanos, por outro. Para os soviéticos, obter reparações de guerra da
Alemanha é essencial. Vimos o estado em que a URSS ficou em consequência da
guerra. Naturalmente eles consideravam os alemães responsáveis e entendiam que
tinham de pagar por isso. Portanto, desde o início que, na zona de ocupação
soviética, começaram as transferências de riquezas, nomeadamente de todo o tipo
de equipamentos fabris que foram metidos nos comboios e transferidos para a
URSS.
Os Estados Unidos, que saíram da guerra ainda mais ricos do que tinham
entrado, não tinham este género de problemas nem de preocupações. Pelo contrário,
o interesse deles era a normalização e revitalização da economia europeia em geral
incluindo, portanto, a economia alemã, visto que, pela dimensão geográfica e
demográfica e pela força económica (porque, independentemente de haver
destruição de equipamento, a Alemanha mantém o essencial dos seus recursos de
capital e de preparação da força de trabalho), a Alemanha é essencial para esse
objectivo. Não só não estão interessados em reparações para eles, como, embora
tenham prometido, nos Acordos de Ialta, que os soviéticos teriam direito a
reparações também dos territórios ocidentais, de facto as transferências das zonas
ocidentais para a União Soviética, a título de reparação, só foram muito
limitadamente realizadas em 1945 e depois cessaram completamente. O chefe
militar responsável pela zona de ocupação americana e representante na Comissão
de Controle Aliada proibiu em 1946 a continuação do pagamento das reparações. O
que naturalmente agravou a disposição soviética nas relações com os Aliados.
A preocupação americana era a integração da Alemanha no mercado
mundial. E os ingleses seguiam também essa política, os franceses não tanto porque
tinham reivindicações próprias, nomeadamente a ambição de ocupar o Sarre (e
288
ocuparam de facto durante algum tempo o Sarre), mas não tinham grande peso na
decisão.
Assim, os Estados Unidos e a Inglaterra realizam logo em Dezembro de
1946 a integração das suas duas zonas, a chamada Bi-Zona. A constituição desta Bi-
Zona anglo-americana era, de facto, já a preparação duma unificação das zonas
ocupadas pelos aliados ocidentais. A Bi-Zona vai passados uns meses evoluir para
Tri-Zona, porque também a França se integra nessa operação. Quer dizer, as
potências ocidentais passaram a comportar-se como se a divisão já fosse definitiva.
Entretanto, na zona oriental, de ocupação soviética, há uma dinâmica política
própria que conduz à unificação dos dois partidos da esquerda, comunista e
socialista, sob hegemonia comunista. Portanto, o Partido Socialista integrou-se com
o Partido Comunista num partido único, o Partido de Unidade Socialista da
Alemanha (SED, Sozialistische Einheitspartei Deutschlands). A palavra Unidade
dizia respeito simultaneamente à unidade socialista (que era uma grande causa,
porque a divisão entre socialistas e comunistas tinha sido um factor primacial da
vitória do Hitler) e à unidade da Alemanha como Estado.
Enquanto que, na zona de ocupação soviética, os socialistas, dirigidos por
Otto Grotewohl, aderiram à fusão com os comunistas, no parte ocidental opuseram-
se a ela e repudiaram-na expressamente, mantendo-se como Partido Social-
Democrata (SPD).
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V. Lidia Santarelli, “La guerra civile greca”, in Aldo Agosti (dir.), Enciclopedia della sinistra europea
nel ventesimo secolo, pp. 735-741.
293
294
Nestas últimas aulas falámos das origens da guerra fria mas, até agora, praticamente
tudo o que disse a esse respeito tinha a ver com problemas europeus, tanto da Europa
Ocidental como da Europa de Leste: nomeadamente, situações relativas à evolução
política na Europa de Leste e à influência da União Soviética nesses países, a situação
da Grécia e a guerra civil, também a situação italiana, que foi uma das referidas no
filme da aula passada como mais directamente ligadas às origens do Plano Marshall,
que é, por seu turno, uma realização política e económica que acaba por consolidar a
separação entre as duas Europas, a ocidental e a de leste.
No entanto, a guerra fria foi um problema global que dividiu o mundo todo. A
explicação das origens da guerra fria não tem a ver apenas com os problemas relativos à
divisão das esferas de influência na Europa, tem a ver, também, com a transformação
profunda que se verificou na estrutura política do mundo na sequência da II Guerra
Mundial e resultante da descolonização, do desaparecimento dos impérios coloniais
europeus, um fenómeno que vai marcar os 30 anos posteriores à guerra. Isto não
significa que a descolonização implique directamente uma mudança de campo ou um
alinhamento de cada um dos países que se tornam independentes com uma das duas
super-potências. Em muitos casos, pelo contrário, esses países, pelo menos à partida,
procuram ser independentes dos blocos. Mas a realidade da hegemonia económica
americana no mundo, por um lado, por outro a existência de um bloco alternativo,
constituído pela União Soviética e o grupo dos Estados socialistas, fazem com que, em
termos de modelos de desenvolvimento, em termos de ajudas ao desenvolvimento e em
termos, consequentemente, de modelos políticos, as decisões, as orientações dos novos
países sejam profundamente atravessadas pela bipolaridade dos modelos da guerra fria,
além de serem atravessadas pelas acções próprias dos agentes políticos, militares,
económicos e da espionagem, que é também uma componente absolutamente central da
guerra fria e da interferência em todos estes processos. Por outro lado, a questão da
bipolaridade capitalismo-socialismo e o problema da descolonização não são, à partida,
idênticos mas, nalguns casos, cruzam-se e nalguns casos até, pode dizer-se, identificam-
se. Identificam-se, nomeadamente, no caso da China onde no pós-guerra se vai decidir
uma luta entre duas orientações políticas que pretendem representar a China e em que
295
acaba por vencer a revolução socialista, através da conquista do poder, no país mais
populoso do mundo, por um Partido Comunista, nessa altura identificado com a União
Soviética. No caso concreto da China, embora não fosse uma colónia em sentido
político, era-o em sentido económico. A independência política e económica vem a
significar, também, a formação de uma componente essencial do campo socialista na
guerra fria.
Vejamos então esta segunda componente das origens da guerra fria que é a
descolonização.
Recordemos que a II Guerra Mundial, tal como já tinha acontecido com a primeira, foi
um impulsionador decisivo dos movimentos de descolonização. Até à II Guerra
Mundial, a grande maioria dos países africanos e asiáticos eram colónias, depois da II
Guerra Mundial, num prazo relativamente curto, a maioria tinha-se tornado
independente. No entanto, não foi a II Guerra Mundial que desencadeou o anti-
colonialismo. As resistências aos colonialismos são tão antigas como a história do
próprio colonialismo e, em particular, desde a I Guerra Mundial que os movimentos
anti-coloniais tinham expressão, mais ou menos organizada, em alguns países, com
correntes intelectuais que assumiam a causa independentista e, também, desde os anos
20 que existiam movimentos anti-imperialistas e anti-coloniais - por exemplo, em 1927,
reuniu em Bruxelas um congresso mundial anti-imperialista.
Já anteriormente referi as tendências no sentido da descolonização que se desenvolviam
desde a I Guerra Mundial. Vários factores pesaram nesse sentido. Desde logo, as
guerras perturbaram o ciclo normal das relações económicas, a guerra marítima
perturbava o comércio internacional e as relações das metrópoles com as colónias.
Nalguns casos, como foi, por exemplo, o da Índia desde essa altura, o facto de estarem
privadas do abastecimento normal em produtos industriais das metrópoles suscitou
processos de industrialização próprios. Esse é um dos factores de modernização de
alguns países coloniais que vai favorecer o desenvolvimento de uma vontade de
autonomia e de independência.
Por outro lado, os EUA, como país não colonial e cujo interesse reside no livre-câmbio
internacional, é um país com uma tradição anti-colonial que, nomeadamente, inspirava
o pensamento do Presidente Wilson e algumas disposições da Sociedade das Nações
296
que, mesmo não tendo tido grande consequência prática, apontavam no sentido da
responsabilidade dos países coloniais em educarem e promoverem a autonomia das
populações sujeitas ao seu domínio. A instituição dos mandatos da Sociedade das
Nações, que são uma novidade, insere-se dentro dessa filosofia, quer dizer, as colónias
alemãs não foram simplesmente redistribuídas, os países que assumiram o governo das
ex-colónias alemãs, nomeadamente a França e a Inglaterra, faziam-no como mandato da
Sociedade das Nações, em teoria não visavam o seu interesse directo ou colonial mas
uma tarefa internacional de promoção dos povos que tutelavam. Com isto, cruza-se, por
outro lado, a influência crescente da Revolução Russa e da União Soviética. A
Revolução de Outubro foi protagonizada por um partido que se situava nas correntes
mais à esquerda do movimento socialista, que sempre tinham sido críticas do
colonialismo. O colonialismo era visto como uma extensão e um agravamento da
dominação capitalista, mas, simultaneamente, como factor de agravamento das tensões
internacionais. E a revolução russa tinha realizado no seu próprio império (visto que a
Rússia era um império), uma descolonização, ao dar a independência à Finlândia, ao
aceitar a independência dos Estados Bálticos e ao promover a URSS como uma forma
de federação de nacionalidades muito diferente do antigo Império Russo. A União
Soviética, como país atrasado, agrário, semi-europeu e semi-asiático, situa-se numa
lógica de oposição às potências coloniais e procura estimular os movimentos anti-
coloniais e anti-imperialistas em todo o mundo praticamente desde o seu nascimento,
nomeadamente desde o Congresso de Baku dos Povos do Oriente, em 1920. E também
através da acção da Internacional Comunista apoiava a independência da Índia, o
movimento anti-imperialista na China, na Indonésia, em todo o mundo.
A II Guerra Mundial acentuou ainda mais estas tendências, essencialmente por três
razões. Em primeiro lugar, porque a rápida derrota na guerra de algumas das maiores
potências coloniais, como a França e a Holanda, provocou simultaneamente um
desprestígio político e uma inibição da respectiva capacidade do controlo efectivo das
colónias. A Inglaterra, embora mantendo o controlo dos mares e o seu império, também,
em muitos aspectos, teve dificuldade em sustentar as suas posições coloniais ao mesmo
tempo que conduzia a guerra. Por outro lado, a guerra vai-se traduzir no ascenso
decisivo e na passagem à condição de super-potências, por um lado, dos EUA, por
297
outro, da URSS – dois países anti-coloniais. De certa maneira, com o final da II Guerra
Mundial reproduz-se em escala ampliada aquilo que já se tinha verificado no final da
primeira, quer dizer, do lado dos EUA um anti-colonialismo que era agora mais eficaz
porque a América, na II Guerra Mundial e no pós-guerra, estava decidida a assumir um
papel mundial mais efectivo. E, no que diz respeito ao factor soviético, tinha-se
reforçado enormemente, porque a Rússia dos primeiros anos após a revolução, apesar
de todo o enorme impacto ideológico e político desta, era uma potência fraca e
ameaçada e, pelo contrário, a União Soviética de 1945 é uma grande potência. Além
disso, no que diz respeito ao carácter ideológico da guerra (e as ideologias também
contam), também já vimos como, desde a Carta do Atlântico até à definição dos
princípios da ONU, passando pela influência que tiveram as resistências anti-fascistas e,
mais genericamente, o facto de os protagonistas da coligação anti-hitleriana e anti-
japonesa se definirem como anti-fascistas, essa definição ideológica significava uma
afirmação de princípios de democracia e de igualdade dos povos que punha em causa
directamente o colonialismo.
Estes são alguns dos factores que explicam que, mais ainda do que tinha acontecido no
final da I Guerra mundial, o anti-colonialismo, os movimentos anti-coloniais recebam
um grande impulso. Mas este impulso não veio só do anti-imperialismo e do carácter
democrático da coligação anti-fascista, veio também do lado de um dos participantes no
Eixo fascista, que foi o Japão. Quer dizer, o Japão, embora Estado imperialista, já antes
da guerra, para muita gente, nos mais diversos países, em especial da Ásia, representava
um símbolo das capacidades dos povos asiáticos na rivalidade ou na oposição ao
domínio ocidental. É um longo processo, que começa com a vitória japonesa na guerra
contra a Rússia em 1905. Essa vitória, de um povo de raça amarela, como dantes se
dizia, contra um império longamente estabelecido como o império russo, teve um
grande impacto, porque revelava capacidades militares e de modernização económica
que já existiam no Japão nessa época. Alguns dos homens que vieram a ser pioneiros do
anti-imperialismo, por exemplo na China, como Sun Yat-sen (que, em 1911, chefiou a
Revolução Republicana na China), viveram no Japão. Nos seus escritos, Sun Yat-sen
pôs em relevo o significado da vitória japonesa contra a Rússia no impulso à luta pela
independência dos povos asiáticos.
298
Quando, em 1941, o Japão entra na guerra com os EUA, porque ambiciona dominar
toda a região do sueste asiático, ocupa quase todo o extremo-oriente, ocupa a Birmânia,
a Malásia, a Indochina, a Indonésia e uma série de ilhas do Pacífico, incluindo as
Filipinas. Em relação a todos estes países, que eram colónias de potências ocidentais, os
japoneses apresentaram-se como libertadores em relação ao domínio colonial europeu e
procuraram o entendimento com elites e lideranças que já anteriormente tinham
assumido posições anti-coloniais. Não se tratava apenas de ideologia mas, também, da
proposta e da tentativa de organização daquilo a que chamaram uma “área de
prosperidade comum” do extremo-oriente, ou seja, de tentativas de integração
económica desta região, de assegurar a complementaridade de recursos das diversas
economias a partir de uma base, que era a própria capacidade económica do Japão.
Antes de entrar na guerra com os EUA em 1941, o Japão já era um império porque já
dominava há muito a Coreia, desde 1931 a Manchúria e, desde 1937, uma grande parte
da China. O Japão era, à partida, uma potência imperial que oferecia essa capacidade de
integração e, com ela, o programa da criação de uma “área de prosperidade comum”
para os povos asiáticos.
Efectivamente, os japoneses conseguiram na Indonésia a colaboração dos
independentistas, já nessa altura liderados por Ahmed Sukarno e, mesmo na Índia,
houve uma parte dos partidários da independência, liderada por Chandra Bosé, que
também preconizou e defendeu a colaboração e constituiu até um governo no exílio com
apoio japonês. Mas, já noutros países, como foi o caso na Indochina, nomeadamente no
Vietname, onde já antes da guerra o movimento independentista mais activo, o
Vietminh, era dirigido pelo Partido Comunista e pelo seu líder Ho Chi Minh, estes
recusaram qualquer tipo de colaboração com os japoneses. O que vai acontecer durante
a II Guerra Mundial é que, durante um período inicial, correspondente à fase de
ofensiva japonesa e de êxito militar, efectivamente, os japoneses conseguiram nalguns
sítios um relativo sucesso na conquista das populações e da colaboração de alguns
grupos nacionalistas. A partir de certa altura porém a situação inverte-se, o que tem a
ver com o recuo militar e, consequentemente, o agravamento das dificuldades
económicas, uma crescente pressão japonesa sobre todo o tipo de recursos, materiais e
humanos, e uma direcção político-militar que era do tipo fascista, quer dizer, de um
militarismo exacerbado e também racista. Apesar de os japoneses defenderem e, de
299
Estado Indonésio e, daí, que eles se empenhassem nesta fase em apoiar Sukarno como
alternativa a uma hipotética evolução comunista. O apoio dos Estados Unidos consistiu,
sobretudo, em contrariar as tentativas da Holanda de prolongar a guerra. Mesmo ao
nível da ONU, houve votações favoráveis ao reconhecimento da independência da
Indonésia e, finalmente, em 1949, a própria Holanda se resignou e acabou por
reconhecer a independência
Entretanto, os Estados Unidos, que tinham a sua própria colónia das Filipinas, também
deram a independência às Filipinas em 1946, tendo tido o cuidado, no entanto, de
manter um controlo, não só económico mas também, politico e militar, um controlo que
dura até hoje, embora isso não tenha conseguido impedir que numa parte das Filipinas
exista um movimento de guerrilha de influência comunista mas, que até hoje, não
conseguiu sucesso.
palavra “Paquistão”, que nasceu só nos anos 30, significa “terra dos puros”, puros do
ponto de vista religioso. O certo é que os adeptos da independência do Paquistão
procuraram e conseguiram obter as boas graças das autoridades inglesas, nomeadamente
do Lord Mountbatten, nomeado, em Março de 1947, como vice-rei, numa altura em que
a Inglaterra já tinha anunciado a intenção de conceder a independência à Índia. Os
ingleses favoreceram, dentro de uma política geral de dividir para reinar, a formação do
Paquistão como Estado independente. Portanto, é isso que acontece ainda em 1947, é
concedida a independência da Índia e forma-se, pela mesma altura, o Paquistão. O
problema é que, embora a população muçulmana fosse predominante na região do
noroeste e também no Bengala oriental (que é hoje o Bangladesh), na verdade as
populações muçulmanas e hindus estavam muito misturadas. Esta formação de dois
Estados, com a ideia de que cada Estado tem uma orientação religiosa e que oprimirá os
que têm uma orientação diferente, gera uma extrema inquietação das populações e vai
fazer com que milhões de pessoas, nas regiões de fronteira entre o Paquistão e a Índia,
nos últimos dias anteriores à proclamação das independências, migrem no sentido de
ficarem no Estado associado à sua orientação religiosa. Nas regiões de fronteira vão-se
dar esses movimentos intensos e precipitados de população, cerca de dez a dezassete
milhões de pessoas. Deve-se ter em conta que o Paquistão não era apenas o território
actual, aquela massa importante no noroeste mas, também, aquilo que é hoje o
Bangladesh e que se chamava inicialmente Paquistão Oriental. Sobretudo na região do
Punjab, que é atravessada pela fronteira, e na região de Caxemira, houve essas
migrações e, associadas a elas, conflitos e incidentes de todo o tipo que fizeram muitas
vítimas, calcula-se entre 500 mil e um milhão de mortos no decurso deste processo das
migrações do Punjab. Este conflito não foi só negativo para as relações entre hindus e
muçulmanos, porque exasperou as tensões dentro das próprias comunidades,
nomeadamente entre os hindus. Gandhi era favorável à integração dos muçulmanos, não
desejava a formação de Estados separados (por isso nem participa na celebração da
independência da Índia) e acaba por ser assassinado, em Janeiro de 1948, poucos meses
depois da independência da Índia, não por um muçulmano mas por um nacionalista
hindu, um fanático religioso. Também um problema muito sério foi o da Caxemira. Na
Caxemira, embora a maior parte da população fosse muçulmana, o Rajá era favorável à
integração na Índia, o que gerou conflitos internos e acabou por provocar a primeira
304
Hoje continuamos com a análise do período da guerra fria em sentido estrito que, como
já tive ocasião de dizer, corresponde essencialmente à primeira metade da década de 50.
Em anos recentes, sobretudo depois do desaparecimento da União Soviética, tem-se
generalizado o uso da expressão “guerra fria” para designar todo o período de confronto
entre os dois blocos que vai, praticamente, desde os finais da II Guerra Mundial até ao
desaparecimento da URSS, ou pelo menos até à Perestroika, ou seja, um período de,
pelo menos, 40 anos. Mas a guerra fria, em sentido próprio, foi uma situação de tensão
aguda nas relações internacionais que sucedeu ao fim da II Guerra Mundial e que, de
algum modo, substituiu à guerra que tinha acabado, e ao inimigo nazi, o confronto com
o comunismo visto como o novo inimigo global, confronto marcado, e isso é que é, de
facto, característico da novidade da guerra fria, pela ameaça atómica, pela consciência
de que havia conflitos que podiam desembocar em guerra e que essa guerra podia
recorrer à arma atómica, uma vez que já havia, até, experiência da utilização dela e que,
a partir de 1949, as duas super-potências estão dotadas da arma atómica, ou seja, os
Estados Unidos já dispunham dela desde 1945 e a União Soviética constrói a primeira
bomba atómica em 1949.
Já vimos alguns dos conflitos que marcaram o imediato pós-guerra, nomeadamente na
Europa, a gravidade da questão alemã e da divisão da Alemanha. Na aula passada,
comecei a falar sobre aspectos da guerra fria fora da Europa, no terceiro mundo e,
nomeadamente, referi que toda a história da guerra fria se vai cruzar com o longo
processo das descolonizações, de que comecei também a falar a propósito da Índia (por
sinal, o caso de um país que manteve a neutralidade durante o período da guerra fria).
Hoje vamos analisar mais alguns problemas, quer relativos à evolução interna nos EUA
e na União Soviética, quer à expressão da guerra fria na Ásia, nomeadamente, em
relação com a guerra da Coreia, que é, pode dizer-se, o grande conflito da guerra fria em
sentido estrito, isto é, o grande conflito de incidência internacional da primeira metade
dos anos 50. É preciso ter presente que 1949, o ano da aquisição da bomba atómica pela
URSS, é também o ano da Revolução Chinesa, isto é, o ano em que o Partido
Comunista da China, envolvido numa guerra civil de longa duração que tinha começado
306
nos anos 20, vence contra as tropas do Kuomintang, que eram aliadas dos EUA. Essa
vitória da Revolução Chinesa tem uma enorme importância histórica (sem ela é difícil
conceber que a China fosse a grande potência que hoje é) e o impacto da Revolução
Chinesa deve-se justamente ao facto de que nela há, por um lado, o aspecto social e
político comunista, por outro, na medida em que a China era um país dependente e
desde o final do séc. XIX uma semi-colónia, também uma forma de libertação de um
país semi-colonial, que vai ter um grande impacto nos países do terceiro mundo e em
todo o processo anti-colonial.
Não vou fazer aqui a história da guerra civil na China mas, apenas, dizer alguma coisa
sobre a última fase que se inicia nos anos 30, com a ocupação da Manchúria e, depois,
da China, pelo Japão. Essa ocupação japonesa suscitou uma procura de aproximação
entre as duas forças organizadas que anteriormente estavam em guerra, ou seja, os
comunistas e o movimento nacionalista do Kuomintang (Guomindang). A partir de
1937, há conversações e acaba por se concluir um acordo entre o PCC e o Kuomintang,
dirigido por Tchang Kai-Chek (Jiang Jieshi), que anteriormente estavam em guerra
entre si, acordo no sentido de combaterem conjuntamente a invasão japonesa. Os
comunistas durante a fase da guerra anti-japonesa reconhecem a liderança do
Kuomintang. O próprio exército comunista oficialmente faz parte do conjunto das
tropas nacionalistas chinesas, dirigidas pelo Kuomintang. No plano internacional tanto
os EUA como a URSS negoceiam com o Kuomintang, tanto Roosevelt como Stalin
tiveram durante a guerra encontros com Tchang Kai-Chek, acerca das respectivas
posições e do futuro da China. Isto inseria-se, no que respeita aos comunistas chineses,
na mesma política geral que o movimento comunista teve desde meados dos anos 30, a
política das frentes populares anti-fascistas, ou seja, a política da unidade contra o
nazismo e os fascismos, uma vez que, como sabemos, o Japão fazia parte do Eixo). A
essa política correspondem, no final da guerra, em 1945, programas de “democracia
popular” que se propunham continuar as alianças anti-fascistas nas condições da paz, o
que nos países europeus teve concretização nos governos de coligação de 1945-47. O
mesmo tipo de tentativa foi feito na China, chegou a ser prevista a formação de um
Governo de coligação entre o Partido Comunista e o Kuomintang. Mas na China esta
coligação não teve realização prática, cada uma das forças tinha as suas tropas e,
307
De uma maneira geral, pode dizer-se que a política soviética não contava para o pós-
guerra com uma vitória do comunismo na China. No entanto, quando se dá a
proclamação da República Popular da China, a política americana será sempre de
apresentar a revolução na China como mais uma expressão da expansão mundial do
comunismo, isto é, do carácter global das pretensões expansionistas da URSS. É um dos
factores que jogaram na criação do clima do pós-guerra, em termos de relações
internacionais e, também, em termos da política interna americana e da maneira como a
“ameaça comunista” foi vivida nos EUA, e mais difusamente nos países capitalistas
europeus, durante este período.
Temos assim, no final da década de 40, a vitória do comunismo na China praticamente
em simultâneo com a estreia da bomba atómica soviética. Entretanto, na política
americana, o espírito reformador da política de Roosevelt, que tinha apostado na criação
de uma ordem internacional pacífica no pós-guerra envolvendo as grandes potências,
incluindo a URSS, é sujeito a uma erosão e a um retrocesso. Em certa medida, a
tendência da opinião pública americana, tal como tinha acontecido no primeiro pós-
guerra, é de novo para se voltar para os problemas internos e encarar todo o tipo de
problemas internacionais como ameaças potenciais ao seu estilo de vida. A defesa do
modo de vida americano será, nestes anos, um dos temas predilectos, em especial do
Partido Republicano, que representa a oposição de direita e isso significa, também, a
crítica da política fiscal, que tinha sido uma componente importante das reformas
sociais realizada durante o período do Roosevelt. Há uma viragem no sentido anti-fiscal
que arrasta uma posição contra as políticas sociais e contra os sindicatos, que se tinham
fortalecido durante o período de Roosevelt mas são agora postos em causa, mesmo
ainda durante a presidência do Truman, que vai durar até 1952. Paralelamente a isto, a
preocupação anti-comunista leva a desenvolver uma quantidade de inquéritos de polícia
e da contra-espionagem, envolvendo tanto o FBI como a CIA e desdobrando-se, ainda,
em inquéritos na generalidade dos serviços públicos sobre o comportamento político
dos funcionários, em particular os ligados ao Departamento de Estado (nos EUA, o
State Department é o Ministério dos Negócios Estrangeiros). Vão começando pelo State
Departement e depois estendendo-se praticamente a todos os domínios da
Administração e, também, da actividade em sectores como os intelectuais e os artistas
em geral. Vai ser desenvolvida uma série de inquéritos sobre o comportamento, quer de
310
A situação da URSS destes anos da guerra fria pode ser descrita como simétrica em
relação à americana mas, obviamente, processa-se dentro do quadro de um tipo de
sistema político a que se costuma chamar “estalinista”, formado nos anos 30, em que
não há lugar para dissidências. Há toda uma estrutura de controle formada no contexto
das purgas de 1936-38 que é, de algum modo, reactivada neste período. Este período é
também já marcado pela decadência do Stalin, pela velhice e pela sua desconfiança
crescente (morre em 1953). Há, entre outras, uma diferença importante, como escreve o
Scipione Guarraccino89, entre o clima nos EUA e na União Soviética. Nos EUA, a
guerra fria foi vivida como um fenómeno de massa em que teve já um papel importante
a televisão. Na União Soviética trata-se, essencialmente, de uma decisão a partir de
cima, de cortar com tudo o que possa representar um risco para a segurança do Estado e
com todo o tipo de influências exteriores geradas, nomeadamente, pela participação na
guerra, pelo facto de ter havido contacto das tropas soviéticas com as tropas aliadas e
soviéticos prisioneiros de guerra dos alemães, portanto, em contacto com os alemães e
com prisioneiros de outros países. Há um enorme receio, uma vontade de prevenir o
contágio desses contactos. Esta situação liga-se, por outro lado, com o problema
resultante da evolução na Europa de Leste em consequência da guerra fria, da separação
dos comunistas das forças social-democratas ou liberais com que tinham estado
anteriormente aliadas nos governos de coligação. A União Soviética vira-se para uma
política de estrito controle sobre toda a Europa oriental, no sentido de impedir
desenvolvimentos autónomos e qualquer tipo de nacionalismos. Por exemplo, no pós-
guerra tinha chegado a ser prevista a formação de uma Federação Balcânica unindo a
Bulgária, a Jugoslávia e a Roménia. A União Soviética impede a formação dessa
federação, o que aliás se liga com o princípio do conflito com a Jugoslávia e a crítica do
“titismo”. O Partido Comunista Jugoslavo é expulso do Cominform. A partir da
iniciativa soviética, vai desenvolver-se, em todos os partidos comunistas do mundo mas,
89
Storia degli ultimi sessant’anni, p. 65.
312
naturalmente, com uma incidência prática maior nos que estavam no poder, que eram os
da Europa de Leste, a perseguição ao desvio “titista”, isto é, a ideias ou propostas de
uma certa autonomia nacional dos partidos e dos governos. Tais posições são
combatidas por porem em causa a unidade do bloco socialista. Este é, também, o
período em que se entra, a nível do movimento comunista internacional, numa fase de
rigidificação sectária, de monolitismo, de combate simultaneamente às tendências
cosmopolitas e nacionalistas. As duas coisas podem parecer contraditórias, visto que o
nacionalismo é o contrário de cosmopolitismo mas, na visão soviética, eram
assimiladas: o sublinhar das especificidades nacionais era criticado por pôr em causa a
unidade do bloco socialista e o cosmopolitismo era criticado como permeabilidade a
influências do mundo capitalista. Esta crítica do cosmopolitismo atingiu, sobretudo, os
judeus soviéticos, em particular na intelectualidade, que tinham sido acarinhados
durante o período da guerra. Há, nesta fase, uma espécie de anti-semitismo. O anti-
semitismo na União Soviética não teve nenhuma espécie de semelhança com o anti-
semitismo nazi, que era de natureza racial e teve as consequências que se conhecem. O
anti-semitismo na URSS surgiu por tabela, na medida em que os judeus, povo disperso
por várias nações, eram muitas vezes personalidades com contactos internacionais e
vistos como permeáveis a influências do estrangeiro. Tudo isto se inseriu mais
genericamente na orientação da política comunista para os escritores e artistas, uma
orientação que foi associada ao nome de um dos responsáveis soviéticos da época,
Zdanov (por sinal, compadre do Stalin), que se tornou o ideólogo soviético para as
questões culturais, e este foi um período marcado por essa rigidez nas orientações da
política cultural que ficou associada à palavra “zdanovismo”.
privilegiado, situação que, apesar dos quase 60 anos que passaram, se mantém ainda
hoje.
Esta aliança reforçou-se com a eclosão da guerra da Coreia, durante a qual o Japão
funcionou como um vasto porta-aviões para as acções americanas e das Nações Unidas
na Coreia. A guerra da Coreia é o conflito central e mais marcante deste período da
guerra fria propriamente dita, ou seja, da primeira metade dos anos 50.
A Coreia foi ocupada pelo Japão desde 1910. Este domínio colonial foi caracterizado
por uma brutal exploração, pelo trabalho forçado e recrutamento forçado para o
exército, também. Durante a II Guerra houve a deportação de trabalhadores para o Japão
e para a Manchúria, e tudo isto foi acompanhado de repressão a todos os níveis,
incluindo cultural e linguístico. Na Coreia desenvolveu-se uma oposição que, durante a
guerra, assumiu formas de guerrilha, liderada pelo comunista Kim Il-sung. Nas vésperas
da derrota japonesa, forma-se um “Comité de Preparação da Independência Coreana”,
coligação democrática articulada com os sindicatos e uniões de camponeses. No final da
guerra, estabelece-se um acordo entre americanos e soviéticos segundo o qual cabe às
tropas soviéticas a ocupação da península a norte do paralelo 38º e aos americanos a
ocupação do território a sul do mesmo paralelo. Haveria assim uma ocupação
temporária soviética no norte e, a sul, uma ocupação temporária americana, devendo
depois preparar-se, com as forças internas, a unificação do país. Nas condições da
presença soviética, foi fácil para os comunistas e apoiantes do “Comité de Preparação
da Independência Coreana “ proclamar, em Setembro de 1945, a República Popular da
Coreia. A influência do Comité estendeu-se ao sul, porque também aqui se
estabeleceram organizações de base empenhadas, nomeadamente, em promover a
reforma agrária. No entanto, quem assume o Governo, sob a protecção americana, é um
político de direita, Syngman Rhee, inicialmente apoiado por um “Partido democrático
da Coreia” (de algum modo semelhante ao Kuomintang chinês com o qual Syngman
Rhee tivera contacto estreito), que vai estabelecer no sul um regime ditatorial e passar
rapidamente à perseguição das organizações de influência comunista. Em suma, a partir
de 1946, desenha-se uma separação semelhante à que ocorreu na Alemanha. No norte
estabelece-se o poder do Partido Comunista, que realiza uma reforma agrária e a
nacionalização da banca e da grande indústria, no sul estabelece-se o Governo Syngman
Rhee, que reprime ferozmente a esquerda. Em 1948 realizam-se eleições separadamente
315
no sul e no norte, que consagram cada um dos governos e a divisão do país. No entanto,
no sul mantém-se uma forte oposição de esquerda (inclusive com actividade de
guerrilha), ao mesmo tempo que intensa repressão. Syngman Rhee recusa todas as
propostas norte-coreanas de negociação e impede o contacto dos norte-coreanos com a
oposição do sul, preparando-se para a guerra.
Com a vitória comunista na China em 1949, as condições tornaram-se mais favoráveis à
Coreia do Norte. Em 25 de Junho de 1950 a Coreia do Norte, depois de uma visita de
Kim Il-sung a Moscovo, decide a invasão e desencadeia um ataque militar ao sul. As
tropas norte-coreanas avançam rapidamente e conquistam Seul. Isto vai desencadear
uma imediata reacção americana, através das Nações Unidas onde os EUA dominam o
Conselho de Segurança, tanto mais que, nesta fase, a União Soviética não participava
nas sessões do Conselho (em protesto contra o facto de a República Popular da China
não ser admitida e a China ser representada pelo governo de Taiwan). Os americanos
conseguem do Conselho de Segurança a aprovação de uma moção no sentido da
formação de um contingente internacional, participado por 15 países, que, na prática, é
essencialmente composto por tropas americanas e fica sob a direcção do General Mac
Arthur. As tropas da ONU conseguem fazer recuar as tropas da Coreia do Norte para
norte do paralelo 38 e continuam a avançar no sentido de ocupar a capital da Coreia do
Norte. Por seu turno, isto desencadeia uma intervenção da China, sob a forma de
mobilização de voluntários (a China, com a população que tem, não teve dificuldade em
mobilizar cerca de um milhão de homens), que participaram ao lado das forças da
Coreia do Norte e fizeram recuar as tropas americanas e da ONU. Nos finais de 1950,
princípios de 1951, a situação era, de facto, extremamente aguda, era uma guerra de
certa dimensão em curso, envolvendo milhões de pessoas e empenhando já
directamente os EUA de um lado, a China do outro, embora sob a forma de voluntários,
isto num contexto que coincide com o apogeu dos pavores anti-soviéticos em relação à
União Soviética, que se tornara potência nuclear. O Presidente Truman chegou a admitir
numa conferência de imprensa a hipótese da utilização da bomba atómica. Foi porém
sobretudo MacArthur quem preconizou a invasão da China e defendeu a utilização da
bomba atómica, o que suscitou inquietações, nomeadamente, da Inglaterra e da França.
O próprio Truman acaba por perceber os riscos de uma escalada do confronto e demite
MacArthur do comando das tropas. A partir de 1952 inicia-se um processo de
316
90
T.E. Vadney, The World since 1945, Penguin, 2ª ed., pp.132-148.
317
Vimos nas primeiras aulas as origens da guerra fria na Europa e, mais recentemente,
falámos sobre acontecimentos extra-europeus relacionados com o princípio da guerra
fria. Vimos, nomeadamente, que a Revolução Chinesa de 1949 teve uma importância
decisiva na projecção mundial da guerra fria e, na última aula, falámos em especial na
guerra da Coreia que, pode dizer-se, é o conflito central do período da guerra fria
propriamente dita (que, como vos disse, corresponde à primeira metade dos anos 50),
pela importância que teve e pelo que significou como possibilidade de eclosão de uma
III Guerra Mundial. Falar-se da possibilidade da III Guerra Mundial nos princípios dos
anos 50 não era qualquer coisa de abstracto ou especulativo. Bastava imaginar que a
China, em vez de intervir apenas com voluntários, decidia intervir em força, que a
União Soviética acompanhava a China, e tínhamos um conflito localizado transformado
em Guerra Mundial. Mas felizmente isso não aconteceu.
Há, no entanto, um conflito localizado que veio a ter uma enorme importância
internacional em todo o terceiro quartel do século XX e cuja cronologia, em relação à
sua primeira fase, aproximadamente acompanha a da guerra da Coreia, que foi a guerra
do Vietname.
Já referimos que, quando a II Guerra Mundial terminou, o movimento de resistência, o
Vietminh liderado por Ho Chin Minh, que já durante a ocupação japonesa se tinha
implantado, logo que os japoneses abandonaram o território, proclamou a República do
Vietname. Mas a França continuava a ser a potência colonial, ou seja, o regime de
Vichy também tinha sido derrotado, mas a França era uma das potências formalmente
vencedoras da guerra e mantinha as suas colónias. Dentro de uma política conciliatória
e de procura de uma solução pacífica, Ho Chi Minh visitou a França em 1946 e
chegaram a ser feitos acordos, chegou a ser concluído um tratado pelo qual a República
do Vietname se mantinha como parte da União Francesa mas seriam realizadas eleições
livres e constituído um governo independente. Na prática, este acordo não foi cumprido
pela parte francesa, as tropas francesas continuavam no local e exerceram todo o tipo de
repressão sobre o Vietminh, o que desencadeia o recomeço da guerra a partir de 1947.
As autoridades francesas restauraram o chamado Império de Bao Dai, no sul do
318
Na evolução política e social dos países ocidentais falarei, em primeiro lugar, sobre os
EUA nesta passagem da década de 40 para a década de 50 e, depois, veremos alguma
coisa sobre a Europa Ocidental. Ficam para a parte do filme as questões sobre a
evolução da URSS neste período.
Como já vimos anteriormente, o período da Guerra nos EUA, sobretudo enquanto viveu
o Presidente Roosevelt, foi caracterizado por uma certa evolução de esquerda em muitos
319
que obrigam os dirigentes sindicais a uma declaração de não serem comunistas nem
terem nada a ver com o Partido Comunista (isto é curioso porque esta declaração, num
país democrático era, no entanto, muito semelhante à declaração que, até às vésperas do
25 de Abril, em Portugal, os funcionários públicos tinham que fazer para ingressar em
funções do Estado).
Truman foi, até 1948, Presidente não eleito, isto é, era Vice-Presidente na altura em que
o Roosevelt morreu, em 1945, e sucedeu-lhe nessa qualidade e cumpriu o mandato de
Roosevelt, que acabava em 1948, até ao fim. Em 1948 ganhou as eleições, é no entanto
de registar que, nessas eleições, ele não se confrontava apenas com o candidato mais à
direita, isto é, Republicano, mas também com um candidato mais à esquerda, e isso é
significativo. Nessas eleições, Henry Wallace, que anteriormente tinha sido Vice-
Presidente num dos mandatos de Roosevelt, candidatou-se com um programa de
esquerda e de relações de cooperação com a União Soviética, mas foi derrotado. Foi,
talvez, um dos últimos casos de uma candidatura claramente de esquerda na história
americana. O programa do Truman, que teve o nome de Fair Deal, pretendia-se uma
continuação em novas condições do New Deal de Roosevelt mas, de facto, ficou muito
aquém, em termos de realizações sociais, do que tinha sido o New Deal. Concretizou a
fixação de salários mínimos, seguros e pensões, e um programa de construção de casas
para as classes pobres, mas outras medidas que estavam previstas, como a criação de
um serviço nacional de saúde (que, justamente nesta época, foi implantado em
Inglaterra e que depois será adoptado em formas diferentes na generalidade dos países
europeus), não chegou a ser aprovado. E isso é interessante porque, até hoje, nos EUA
não existe nada de semelhante aos serviços nacionais de saúde, o que é um dos aspectos
mais chocantes da desprotecção, neste aspecto, de uma grande parte da população
americana, num dos países mais ricos do mundo. Um outro aspecto importante e
dramático que permanece na sociedade americana da década de 50 é a segregação
racial. Também fazia parte do programa do Truman uma lei no sentido de acabar com a
discriminação racial, mas essa lei foi reprovada pelo Congresso e, em certos aspectos, o
problema racial no pós-guerra nos EUA vai-se agravar (também vimos alguns exemplos
disso num dos filmes aqui passados, a propósito do Paul Robeson). De facto, só em
anos relativamente recentes e, sobretudo, com o grande movimento dos direitos cívicos
liderado por Martin Luther King nos anos 60 e, também, com as acções de grupos mais
322
radicais como os Panteras Negras, nos anos 60 e 70, é que a situação se começou a
alterar mais fundamentalmente, sendo que, na prática, muitos aspectos da separação e
da desigualdade, em prejuízo da população negra, subsistem até hoje. De qualquer
maneira, o facto de hoje existir um candidato presidencial negro é qualquer coisa de
absolutamente novo e que seria impensável há 50 anos. Nos anos 40/50 mantém-se, na
prática, uma discriminação eleitoral, em especial nos Estados do sul, a pretexto de
requisitos de escolaridade para ter direito de voto que, na prática, eliminam a população
negra. Mantêm-se escolas para brancos e escolas para pretos, hospitais também para
brancos e para pretos, locais públicos, transportes (justamente uma das primeiras
grandes acções que vai pôr em causa a discriminação nos transportes públicos é a de
uma mulher negra que se recusa, num autocarro, a dar o lugar a um branco). Essa
discriminação, até então, era legal em muitos dos Estados americanos. Neste contexto,
as eleições presidenciais de 1952 levam também a uma vitória dos Republicanos,
representados pelo general Eisenhower, que tinha sido o comandante das tropas
americanas na Europa, no final da II Guerra Mundial. No entanto, a sua presidência foi
menos reaccionária do que os seus apoiantes preconizavam e foi durante a presidência
do Eisenhower que o Supremo Tribunal adoptou uma sentença que anulava a
segregação racial nas escolas.
da Renault. Foi, nessa altura, nacionalizada e transformada na Régie Renault (régie era
o nome que se dava às empresas do Estado, significava um tipo de empresa pública).
Passada a fase do Governo provisório, com as eleições para a Assembleia Constituinte
que reúne em 1946 (são as primeiras eleições onde há a participação generalizada das
mulheres, em França só em 1946 é que as mulheres ganharam o direito de voto, tal
como aconteceu em Itália) nasce a Quarta República91.
A Constituição da Quarta República estabeleceu um sistema parlamentar, eleito por
voto proporcional. Essa é uma orientação geral das Constituições do pós-guerra, à
excepção do caso da Alemanha. O sistema proporcional é o mais democrático mas
facilita a representação dos pequenos partidos e, com isso, dificulta a formação de
maiorias (como acontece, em certa medida, ainda hoje em Portugal onde o sistema
vigente é um sistema proporcional embora “corrigido” pelo método de Hondt). A
instabilidade governamental foi uma das características da Quarta República Francesa
mas, nem por isso, deixou de se reflectir, também aqui, a mudança do ambiente e das
relações inter-partidárias em consequência da entrada na guerra fria. Nomeadamente o
Partido Comunista Francês, que tinha sido uma das componentes essenciais dos
governos até 1947, foi afastado do Governo nesse ano, na imediata consequência
daquilo que podemos considerar a declaração da guerra fria, o discurso de Truman (é
curioso que no ano anterior, em 1946, Maurice Thorez, que era o líder histórico do
Partido Comunista Francês, por pouco não foi eleito Chefe do Governo em França,
esteve perto de ter a maioria parlamentar, não teve mas ficou como vice-presidente do
Governo). Em 1947, a remodelação afasta os comunistas do Governo.
No contexto da instabilidade dos governos, um dos que tiveram mais significado,
sobretudo por ter posto termo à guerra da Indochina, foi o presidido por Pierre Mendès
France que, também no plano interno, tinha intenções reformistas que, na prática, não
tiveram grande concretização porque o seu governo durou seis ou sete meses. No
entanto, a projecção que a figura do Mendès-France teve, como político, foi grande.
Para terminar este panorama dos principais países da Europa Ocidental, no final da
década de 40 e princípios de 50, falta dizer que também em Itália foi eleita em Junho de
1946 uma Assembleia Constituinte, ao mesmo tempo que foi realizado o referendo
sobre a monarquia. Era uma das grandes questões da política italiana desde o séc. XIX.
Há 100 anos, ou mesmo há 50 anos, a questão Monarquia versus República, era uma
questão de princípio importante, de oposição entre formas de governo democráticas,
assentes numa ideia de representação popular, ou não democráticas, baseadas numa
predestinação originária, genética. Além disso, no caso de Itália (que tinha tido o
regicídio, em 1900, de Umberto I), a questão era importantíssima, porque a monarquia
foi um co-responsável absolutamente decisivo pela existência do regime fascista. Foi o
rei que nomeou Mussolini, levando o fascismo ao poder, e foi ele que o manteve até à
23ª hora, ou seja, até à entrada dos exércitos Aliados em Itália, altura em que a
monarquia e uma parte dos círculos do fascismo perceberam que o regime estava
condenado e, como sabemos, o rei demitiu Mussolini. Esta questão da responsabilidade
da monarquia estava muito presente e o referendo dá uma maioria à abolição da
monarquia, em todo o caso, por uma margem pequena. As eleições para a Assembleia
Constituinte reflectiram, entretanto, uma força grande dos partidos da esquerda que
estavam, e essa é também uma peculiaridade italiana que durou até perto do final dos
anos 50, unidos por um pacto de unidade de acção, ou seja, o Partido Comunista e o
Partido Socialista tinham uma afinidade doutrinária forte e tiveram ambos cerca de 20%
dos votos, cada um, superando, no seu conjunto, a Democracia Cristã, que teve 35%.
No entanto, a DC é o partido isoladamente maioritário, e que vai ser, durante cerca de
40 anos, o maior partido italiano e que, na verdade, comanda todos os governos em
Itália até ao final dos anos 80. A Democracia Cristã tinha origem no movimento
327
condições de força tais que a introdução dele na zona de ocupação soviética iria anular o
marco existente e desorganizar todo o sistema económico nesta zona.
Entretanto, tinham-se consolidado formas de poder diferentes. Na zona de ocupação
soviética tinha-se dado a unificação dos partidos comunista e socialista e, nessa base, a
constituição de um aparelho de Estado identificado ideologicamente com o socialismo e
com a URSS, ao passo que, nas zonas ocidentais, essa unificação tinha sido recusada e o
Partido Comunista era marginalizado e, de certo modo até, perseguido e, portanto, não
tinha qualquer expectativa de ocupação do poder. Neste quadro, a reforma económica, a
introdução do novo marco, é uma medida inaceitável para os soviéticos e os alemães da
zona de ocupação soviética. Neste contexto, a URSS decide o bloqueio de Berlim
Ocidental, visando forçar um retrocesso dessas medidas. Mas o bloqueio foi defrontado
com eficácia, através do estabelecimento de uma ponte aérea, que chegou a atingir a
aterragem ao ritmo de um avião por minuto em Berlim ocidental. Os Aliados, mas
essencialmente os EUA, asseguraram o abastecimento da população de Berlim
Ocidental e, assim, o fracasso do bloqueio. Foi uma situação extremamente tensa
porque havia sempre o risco de os soviéticos resolverem aplicar o bloqueio, também, à
circulação aérea e começarem a derrubar os aviões, o que nunca aconteceu, mas foi uma
das situações mais marcantes do princípio da guerra fria. Em substância, a posição
soviética foi derrotada e, em Maio de 1949, a URSS pôs termo ao bloqueio.
Coincidindo praticamente com este período, entre Junho de 1948 e Maio de 1949,
durante o qual existiu o bloqueio, na Tri-Zona realizou-se a preparação para a formação
de um novo Estado. Os EUA abandonaram de todo a perspectiva da unificação alemã,
da constituição de um novo Estado alemão unificado, e apoiaram a formação de um
Estado na Tri-Zona, isto é, nas zonas de ocupação ocidental, e esse Estado é que vem a
ser a República Federal da Alemanha. Começou por reunir um Conselho Parlamentar
em Frankfurt (Berlim estava dividida e numa situação de crise) que aprovou, em 8 de
Maio de 1949, a lei fundamental (Grundgesetz) da República Federal da Alemanha. Era
na verdade, embora sem esse nome, a Constituição da RFA. Instituía um Estado Federal
composto por onze Länder, isto é, Estados Federados (a existência dos Länder é uma
tradição que já vinha dos tempos do Império Guilhermino e tem a ver com a
fragmentação estatal da Alemanha até 1871). A RFA tem como primeira Câmara do
Parlamento, o Bundestag (Tag significa neste caso congresso, portanto Congresso
330
federal) que é o Parlamento eleito por sufrágio universal directo, e uma segunda Câmara
que é o Bundesrat, ou seja, Conselho Federal com representantes em número igual para
cada Land (Estado federado). O Bundestag é a Câmara essencial do Parlamento. A
Constituição estabeleceu temporariamente a proibição de forças armadas, ou seja, a
Alemanha, por causa das responsabilidades na guerra, esteve proibida de ter forças
armadas, mas isso vem a ser ultrapassado em 1956 quando se integra na NATO.
Temporariamente o Sarre foi ocupado pela França que teve, também, a administração
económica da região, que é uma região mineira. As bases e as condições em que se
constituiu a República Federal da Alemanha fizeram com que a sua formação não tenha
sido marcada pela mesma influência das forças de esquerda que ocorreu nos países
libertados da Europa, nomeadamente em França e na Itália. Embora, de qualquer
maneira, a desnazificação ainda determinasse um certo peso das ideias de esquerda na
fase inicial - das ideias e de alguns aspectos, até, da Constituição – mas as medidas de
desnazificação, isto é, do saneamento do aparelho de Estado, aquilo que foi feito, foi
feito até à constituição da RFA. Na prática, muitos ex-nazis continuaram em posições
de autoridade a vários níveis do aparelho do Estado e o anti-comunismo, até pelas
condições em que se tinha dado a constituição da RFA, foi muito forte desde o início e
reforçado, também, pelas características do sistema eleitoral, que é um sistema que
ainda hoje exclui os partidos com menos de 5% dos votos – um partido com menos de
5% não chega a ter entrada no Parlamento. O Partido Comunista Alemão ainda entrou
nas primeiras eleições e ainda esteve representado no Conselho Parlamentar que
funcionou como Assembleia Constituinte e depois no primeiro Bundestag mas, nas
eleições seguintes, já não alcançou os 5%. Veio a ser ilegalizado em 1956 e essa
ilegalização manteve-se até 1968.
A evolução da RFA cruza-se com um outro problema, que é o nascimento das
instituições comunitárias europeias, a primeira das quais foi a CECA, a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, fundada em 1951 e integrada pela França, a Itália, o
Benelux e a RFA. A CECA foi o primeiro passo para a constituição da Comunidade
Económica Europeia, ou Mercado Comum, a que hoje chamamos União Europeia. O
Mercado Comum só veio a ser constituído em 1957, a CECA é de 1951, mas tem uma
grande importância porque correspondia a estabelecer um controle comum em domínios
essenciais e de importância militar como o carvão e o aço. Em 1952 foi também
331
92
Baseada essencialmente no capítulo 5, “Terzo mondo e non allineamento 1950-1965”do livro de
Scipione Guarraccino, Storia degli ultimi sessant’anni,pp. 91-106.
333
Estado iraniano reforçou também a sua posição. Mas, de facto, o que isto significou foi
uma substituição, a longo prazo, da hegemonia inglesa pela hegemonia americana. O
Irão torna-se um dos países com importância mundial em que a hegemonia americana se
afirma e vai durar até à Revolução Islâmica de 1979.
Um outro país do Próximo Oriente que, nos anos 50, esteve no centro das atenções
mundiais e que acabou por ter uma grande projecção na África e na Ásia foi o Egipto.
Durante muito tempo, tinha sido uma colónia inglesa, em 1922 tinha-se tornado
formalmente independente em regime monárquico; de facto, o domínio económico
inglês manteve-se. Em 1952 há, porém, um golpe militar de oficiais de baixa patente
chefiado pelo General Naguib. O Coronel Nasser é que veio a ser, a partir de 1954, a
figura dominante do Egipto e a ganhar um enorme prestígio no mundo árabe. Antes de
Nasser se tornar chefe do Governo, a Monarquia foi abolida e a República proclamada
em 1953. A figura do Nasser ganhou esta importância porque ele foi, de certo modo,
pioneiro de uma série de movimentos em países do Próximo Oriente, nomeadamente na
Síria e no Iraque, comandados por militares de baixa patente e que viriam a adoptar uma
ideologia que se reclamava de um certo socialismo que, no entanto, não se identificava
com o marxismo nem com a União Soviética93. Nasser e os militares egípcios ganharam
esta importância porque, em primeiro lugar, representaram uma tentativa de
nacionalismo económico e de unidade árabe contra Israel - essa vai ser uma das grandes
causas do Nasser - e, através da oposição a Israel, um pôr em causa da influência do
ocidente, do mundo capitalista e colonial. Nesta intenção de nacionalismo económico,
associado a um pensamento desenvolvimentista, um grande objectivo que os egípcios se
propuseram, a certa altura, foi o da construção de uma barragem no Nilo, a barragem do
Assuão que é, ainda hoje, a maior barragem do mundo (hoje é, de algum modo, posta
em causa como realização, pelas consequências ecológicas negativas que teve mas, há
50 anos, não havia a mesma noção dos problemas ecológicos, foi uma época, por toda a
93
Indirectamente, este tipo de movimentos veio a ser também uma das fontes ideológicas do 25 de Abril
em Portugal, que com eles teve algumas semelhanças. Em Portugal, o 25 de Abril de 1974 e os dois anos
seguintes foram muito dominados por um grupo de oficiais subalternos, os capitães de Abril. Na sua
grande maioria, não eram directamente dependente de partidos políticos e muitos reclamaram-se duma
certa inspiração “terceiro-mundista” e de independência em relação às grandes potências. Em parte, pode
considerar-se que uma das fontes ideológicas deste tipo de tendência e de pensamento se situa na
experiência dos militares nacionalistas árabes, de que Nasser foi o pioneiro.
335
povos árabes, mas acabou por não ter viabilidade. Em 1961 um golpe de Estado na Síria
pôs termo a esse ensaio.
No entanto, também no Iraque a revolução do Nasser teve impacto e levou, em 1958, a
uma revolução que pôs termo à monarquia e à formação de um governo nacionalista de
esquerda que adoptou também uma modalidade de socialismo. Este Governo do Iraque,
inicialmente chefiado pelo Coronel Abdel Karim Kassem, acabou por ser derrubado em
1963 e deu lugar a uma ditadura do partido Baas, também próxima do nasserismo.
O nacionalismo árabe foi uma das variantes de uma tendência que se exprimiu também
noutros países no sentido da definição de posições autónomas que não se identificavam
nem com o capitalismo, nem com o socialismo do bloco de leste e, nesse sentido,
encontrou afinidades com outros Estados nascidos das independências da Ásia do pós-
guerra, nomeadamente a Índia e a Indonésia.
Um ano antes da crise do Suez, em Bandung, na ilha de Java na Indonésia, decorreu
uma conferência que ficou na história como o início do movimento dos países não-
alinhados. A Conferência de Bandung (oficialmente designada de “Conferência
asiático-africana”) teve como Estados organizadores a Índia, o Paquistão, a Indonésia, o
Ceilão e a Birmânia.
Na Índia governava então Nehru, um homem que foi o associado mais próximo de
Gandhi e um dos dirigentes do movimento de independência, Primeiro-Ministro desde
1947 até à sua morte em 1964. Nehru tinha feito parte da sua formação na Europa nos
anos 20 e 30 e, nessa fase, recebido alguma influência marxista (em 1927 foi um
participante destacado do Congresso de Bruxelas da Liga anti-imperialista, uma
organização de influência comunista). A Índia de Nehru foi um país que reservou
sempre um papel importante para o Estado na economia. Essa orientação durou até aos
anos 80 e teve um papel desenvolvimentista, ou seja, teve um papel importante na
industrialização da Índia. No entanto, a Índia nunca foi um Estado socialista.
Na Indonésia, era de algum modo semelhante a orientação do Governo de Sukarno, que
tinha sido um anti-comunista na fase da formação do país mas posteriormente evoluiu,
em certos aspectos, num sentido socialista.
Portanto, de algum modo, os regimes do Egipto do Nasser, da Índia de Nehru e da
Indonésia de Sukarno têm alguns pontos de contacto em termos das orientações
políticas. À Conferência asiático-africana aderiram 29 Estados, entre os quais o Egipto
338
que veio, a partir de certa altura, a ter também um papel importante. A Conferência
conseguiu ainda a adesão da China (que, embora nesta altura alinhasse
internacionalmente com a União Soviética, nunca pertenceu ao Pacto de Varsóvia), mas
também, por outro lado, contou com a participação de Estados como o Paquistão e as
Filipinas, que pertenciam à SEATO, i.e., eram aliados dos EUA.
A Conferência de Bandung teve um papel muito importante na condenação do
colonialismo e deu um impulso ao desenvolvimento dos movimentos anti-coloniais,
nomeadamente em África onde, até ao princípio da década de 50, praticamente só se
tinham feito sentir no norte de África94.
É a partir de Bandung que se difunde a expressão “Terceiro Mundo”, pouco antes
inventada pelo economista francês Alfred Sauvy para significar que a grande maioria da
população mundial se situava fora dos dois blocos, capitalista e socialista, e que, à
semelhança do Terceiro Estado nas vésperas da Revolução Francesa, não era nada em
termos políticos mas, ao mesmo tempo, era potencialmente tudo. A Conferência de
Bandung foi a primeira expressão institucional do surgimento na cena internacional
deste conjunto de países, a maior parte deles pouco antes ainda colónias, que, agora,
começam a procurar concertar posições no sentido de levarem a termo a abolição do
colonialismo e de adoptarem políticas no sentido de uma maior independência em
relação aos centros da economia mundial. A partir da Conferência de Bandung, e
sobretudo ao longo dos anos 60 e 70, o movimento evoluiu, adoptando então
expressamente a designação “Movimento dos Não-Alinhados”. Teve como figuras
principais Nasser, o marechal Tito da Jugoslávia (que, em resultado do conflito com a
URSS, e embora tal conflito seja nesta altura superado, nunca se integrou no Pacto de
Varsóvia, a aliança militar dos países de leste) e Nehru. Os três organizam, em 1961, a
Conferência de Belgrado, que adopta expressamente o “Não-Alinhamento” e exclui os
países pertencentes a alianças militares.
Depois de Bandung, ao passo que a União Soviética e os países de leste encararam de
uma maneira positiva o movimento dos não-alinhados, pelo contrário os EUA
encararam este movimento com grande reticência e mesmo hostilidade.
94
V. Roberto Mesa, La Conferencia de Bandung, Cuadernos del mundo actual 26, Historia,M adrid,
1993.
339
população árabe. Chegou a existir uma espécie de parlamento em que metade era eleita
pelos franceses e metade pela população árabe, sendo que cerca de 90% da população
era árabe, e essa fórmula de conciliação não funcionou. Em 1954, nasce a Frente de
Libertação Nacional da Argélia que se orienta para a luta armada, que vai ser efectiva, e
suscita também uma resposta violenta da França. Chegaram a estar mobilizados na
Argélia 400.000 militares franceses, o que dá uma ideia da dimensão do envolvimento.
Para além disso, em resposta ao terrorismo da FLN, a França responde também com
métodos terroristas de actuação do exército, nomeadamente o uso da tortura sobre os
presos ligados ao movimento de libertação. A guerra da Argélia, que se prolongou
durante seis anos, gerou, por seu turno, grandes divisões em França e episódios de
perseguição dos argelinos em França que impressionaram a opinião pública. Na própria
opinião pública francesa, na imprensa, no parlamento, geraram-se divisões importantes.
A perspectiva de uma evolução para a independência suscita, em 1958, um movimento
da população francesa da Argélia e dos militares aí situados, contra o regime da Quarta
República. O regime da Quarta República (iniciado no pós-guerra pela Constituição de
1946) era um regime instável com uma certa fragmentação partidária, às origens do qual
tinha estado ligado o General De Gaulle que, nesse ano, se afastara da política. Este
levantamento de Argel vai ter como consequência que o próprio parlamento francês
apela ao General De Gaulle e confia-lhe os plenos poderes. De Gaulle, que tinha sido o
chefe da resistência francesa e o presidente do governo provisório na fase entre a
Libertação e a Constituição de 1946, assume poderes ditatoriais provisórios e vai ser o
criador da Quinta República, um regime presidencialista que ele, aliás, vai marcar como
a figura principal durante os dez anos, até 1969, em que é Presidente. Um dos aspectos
da nova Constituição é a introdução do referendo como instrumento do governo. É pelo
recurso ao referendo que De Gaulle aborda a solução da questão argelina, inicialmente
numa perspectiva de evolução para a autonomia no quadro da França. Rapidamente ele
se apercebe que essa tentativa é inviável e inicia, em 1959, negociações com vista à
independência, que é depois aprovada por referendo e concluída pelos Acordos de
Évian de 1962. Estes procuraram salvaguardar o direito à permanência da população
europeia, o que, na prática, não aconteceu. A grande maioria dos franceses da Argélia,
os chamados pieds noirs, regressou a França. Esta evolução teve ainda uma
consequência na política interna francesa, porque um sector de militares da extrema-
342
das populações nativas, com pinturas simbólicas no rosto e armadas de lanças. Este
movimento, a partir de certa altura, ganhou uma representação política em torno da
figura de Jomo Kenyatta, que veio a ser o líder da independência do Quénia, alcançada
em 1963, e depois, durante muito tempo, o chefe do Estado. O Quénia era também um
dos países onde havia uma presença europeia que, embora não fosse grande em relação
ao conjunto da população - não chegava a 1% -, no entanto era uma minoria branca
activa com um forte interesse económico que a fez tentar resistir à independência.
Também o caso das Rodésias suscitou um dos maiores problemas nas independências
africanas. Chegou a constituir-se a Federação Rodesiana, com o intuito da população
branca resistir à independência. Mas a população branca tinha um peso significativo na
Rodésia do Sul, não tanto na Rodésia do Norte (actual Zâmbia e Malawi). O Governo
inglês forçou, por isso, a dissolução da Federação e concedeu a independência à Zâmbia
e ao Malawi (aliás, no caso do Malawi, uma independência de algum modo subalterna,
que manteve um posicionamento de compromisso com o colonialismo e por isso veio a
ser, aliás, cooperante com Portugal durante a guerra colonial). Na Rodésia do Sul, os
europeus, que eram uma percentagem de 7% da população, resistem à independência
negra, saem do Commonwealth, proclamam uma independência branca e vão-se
confrontar, durante vários anos, com dois movimentos de guerrilha, um deles liderado
por Robert Mugabe, que é hoje, e desde 1980, o Presidente do Zimbabwe. Até 1979
existiu, na Rodésia do Sul, um governo de minoria branca, cujo chefe foi Ian Smith, um
grande aliado das posições coloniais portuguesas.
A África do Sul é um país de grande importância territorial e demográfica, que
dominava também, desde a I Guerra mundial, o Sudoeste Africano, ou seja, a Namíbia.
Foi fundada em 1910 como dominion britânico, na sequência da guerra dos boers, que
entre 1899 e 1902 opôs os ingleses aos descendentes dos colonos holandeses
(Afrikaner). A população branca era uma percentagem importante (20%), existindo
ainda cerca de 12% de indianos e mestiços. Entre 1948 e 1989 existiu na África do Sul
o apartheid, um rígido regime de estrita segregação racial e impedimento absoluto do
acesso da população de cor a muitos locais públicos e a qualquer tipo de posições de
poder. Contra o regime do apartheid desenvolveu-se um movimento armado de
independência, dirigido pelo Congresso Nacional Africano (o ANC, nascido em 1912),
cujo dirigente mais famoso foi Nelson Mandela. Mandela esteve 28 anos preso, até
344
1990. Nessa altura, tendo já desaparecido o regime colonial português e o regime racista
da Rodésia, no quadro também do fim da guerra fria, o partido da minoria branca vê-se
forçado a renunciar ao apartheid. Nas primeiras eleições multirraciais realizadas em
1994, Mandela é eleito Presidente da República.
Um dos conflitos mais violentos, nos anos 60, foi o do Congo Belga, um país com
enorme importância económica por causa das suas riquezas naturais, nomeadamente em
diamantes, e onde a população branca era uma percentagem muito pequena, cerca de
0,6%. É uma das colónias com tradições de mais violência na exploração da população
nativa que, aliás, permaneceu na sua grande maioria analfabeta e, portanto, é um país
onde houve dificuldade em formarem-se elites nativas. Em muitos dos países que
transitaram para a independência, e na origem dos próprios movimentos da libertação,
estiveram, em muitos casos, elementos que tinham sido quadros da Administração
Colonial, elementos negros ou mestiços que tinham participado nos níveis inferiores da
Administração colonial e que tinham, portanto, instrução. No caso do Congo Belga não
existia quase nada disso. No entanto, desenvolve-se, a partir de 1958, um movimento
nacional congolês liderado por Patrice Lumumba, um homem identificado com a causa
da unidade africana. Em 1960 a Bélgica concede a independência e realizam-se eleições
de que sai vencedor Patrice Lumumba. Lumumba era o Primeiro Ministro, o Chefe de
Estado era um militar chamado Kasavubu e, entre os dois, vai-se gerar um conflito.
Logo pouco depois da formação do governo, surge um movimento de separação na
região do Katanga que era, justamente, a região de maior riqueza mineira. Lumumba
apelou sem sucesso à intervenção das tropas da ONU. A tentativa de secessão estendeu-
se à província do Kasai, também rica em diamantes, e nessa altura Lumumba apela ao
auxílio da URSS, o que lhe vai trazer a hostilidade ocidental. Isolado entre a oposição
do Kasavubu e a de Mobutu, que era o Chefe do Estado Maior do novo exército
congolês, Lumumba é preso e entregue aos secessionistas, ou seja, ao movimento que
defendia a independência do Katanga, e logo assassinado. Durante uns anos manteve-se
um confronto violento no Congo que durou até 1965 e do qual saiu vencedor Mobutu,
que estabeleceu uma ditadura sangrenta e um regime de poder pessoal e de verdadeira
cleptocracia, que durou até quase à sua morte em 1997.
345
346
Hoje vou voltar ao mundo desenvolvido de que falámos aqui sobre o pós-guerra,
o princípio da guerra fria e as repercussões disso nalguns dos países europeus. Hoje
quero avançar nessa descrição e entrar nos anos sessenta que são, como sabem, anos de
grande vitalidade na história europeia e americana.
Além do mais, são anos importantes porque alguns de nós já éramos nascidos,
são anos que fazem parte da nossa vida. E, de certa maneira, porque se relacionam com
uma época excepcionalmente próspera das sociedades europeias e americana, em
relação à qual hoje existe uma discussão e, ao mesmo tempo, um sentimento de crise.
Quer dizer, no fundo, a noção que muitos de nós temos, e corresponde em parte à
verdade, é a de que nos anos 60 se tinha alcançado um certo padrão social e
civilizacional que hoje está posto em causa. Que se tinha alcançado um certo equilíbrio
no mundo, por assim dizer, ao passo que a situação hoje é muito mais incerta.
95
Criada em 1961, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico resultou da união dos
16 países da Europa Ocidental membros da OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica)
com os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia e o Japão. Hoje conta 30 países
membros.
348
O baby boom foi sobretudo marcado nos Estados Unidos, mas também nos
países europeus. Em França, por exemplo, ao passo que a natalidade média era, no fim
dos anos trinta, de 2,1 por mulher, cada mulher tinha em média dois filhos vírgula um, o
que corresponde exactamente à taxa de renovação necessária para se ter a estabilidade
demográfica – passa para uma média de 3, no princípio dos anos cinquenta.
Este grande crescimento da natalidade significou, nos anos 50 e 60, um grande
número de jovens na população. Isso também é o contrário do que acontece hoje em dia.
Dantes dizia-se «a juventude é o futuro do Mundo», hoje a tendência do futuro é
justamente o predomínio dos velhos.
O grande número de adolescentes e jovens na população significa a criação dum
mercado especificamente juvenil e com isso uma procura de novidades em todo o tipo
de produções e nomeadamente nas ligadas à indumentária, que tem por seu turno
consequências em termos de formação das identidades sociais juvenis, que vão ter um
peso grande e se relacionam com a eclosão dos movimentos estudantis do final dos anos
60.
Como disse, este desenvolvimento económico assentou na economia capitalista,
portanto na propriedade privada e na liberdade económica. No entanto, foi também
sustentado decisivamente pela intervenção do Estado na economia, e sobretudo por
aquilo a que se pode chamar a difusão do keynesianismo.
O Lord Keynes era um economista inglês que desde a década de 20, e sobretudo
na década de 30, em reacção às consequências da Guerra e da crise económica mundial,
criticou a insuficiência do liberalismo económico e reconheceu aquilo que os marxistas
há muito tempo sustentavam, ou seja, a ideia de que o capitalismo deixado a si mesmo
gera inevitavelmente crises de sobreprodução, que conduziriam no limite a uma
situação de estagnação económica prolongada e ao próprio colapso do sistema.
Só que o Keynes não tirava daí uma conclusão revolucionária, mas preocupou-se
antes em encontrar os meios que podiam permitir a sobrevivência do regime capitalista.
Ele era no fundo um liberal, mas um liberal consciente das contradições do
liberalismo. E que por isso defendeu uma maior intervenção do Estado através dos
instrumentos fiscais e da criação de trabalho. Duma maneira geral, pela intervenção do
Estado na criação do investimento produtivo, quer directamente - através de
encomendas estatais, nomeadamente políticas de obras públicas -, quer indirectamente,
351
Uma das bases fundamentais deste intenso crescimento económico foi o baixo
preço da energia devido, em primeiro lugar, ao acesso fácil ao petróleo, que se torna de
longe a principal fonte de energia. O carvão está cada vez mais ultrapassado. A energia
nuclear é uma novidade e, embora haja consciência do potencial da indústria nuclear
para a criação de energia, é algo que exige investimentos extraordinariamente caros.
Nessa época, aliás, não há grandes prevenções em relação aos riscos da energia nuclear,
352
É um país que, apesar do crescimento intenso, manteve nestas décadas uma forte
separação entre o norte industrial e o sul agrícola, ao mesmo tempo que uma intensa
emigração, quer emigração do país em geral para o estrangeiro, para a Europa
desenvolvida e para as Américas, numa linha continuidade histórica que vem de trás,
quer, e esse é o facto mais novo, as migrações do Sul agrícola e atrasado para o Norte
industrial. E com isso, no conjunto, um processo de industrialização e modernização
importante que, a partir de meados dos anos cinquenta, envolveu também as indústrias
modernas, tecnologicamente avançadas, tendo por centro a FIAT, ou seja, a indústria
automóvel.
Em relação com esta evolução há, também, um fortalecimento do movimento
sindical e as grandes greves do princípio da década de sessenta vão obter conquistas
importantes em matéria salarial. E por seu turno influenciam uma viragem política que
tem lugar nessa altura, sem pôr em causa a tal hegemonia democrata-cristã. Formam-se
os Governos chamados de centro-esquerda. Isso é uma novidade importante na política
italiana e que, na altura, teve um papel positivo em termos sociais e de desenvolvimento
do país. Consistiu na entrada do Partido Socialista em Governos de coligação, nos quais
o Partido principal era o Partido Democrata-Cristão e que integravam também outros
partidos como o Partido Social-Democrata (resultante de uma cisão em 1947 dos
socialistas). Havia ainda o Partido Republicano.
Aqui está um aspecto em que, nos anos sessenta, alguns Partidos Socialistas,
diversamente do que acontece hoje, se diferenciavam das orientações conservadoras.
Porque estes Governos de centro-esquerda estiveram ligados em Itália à nacionalização
da indústria eléctrica e à implementação de medidas de “Estado social”- que em Itália
vieram mais tarde do que por exemplo em Inglaterra, no que diz respeito à saúde, e
sobretudo em relação à educação, que criou a Escola Média Unificada no princípio dos
anos sessenta (aquilo que também aconteceu em Portugal depois do 25 de Abril, com o
fim da separação entre Liceus e Escolas Técnicas), o que teve um papel democratizador
importante.
Um dos outros “milagres económicos” é o da Alemanha, embora partindo de
pressupostos diferentes porque já com níveis educacionais elevados, que fizeram com
que a indústria alemã não assentasse nos baixos salários mas sim, desde o princípio, no
desenvolvimento tecnológico. O modelo foi essencialmente liberal no plano económico,
358
96
Storia degli ultimi sessant’Anni, pp.124-125.
359
Mas é importante frisar, até porque é uma ideia que provavelmente não têm
devido à imagem que se criou em resultado do colapso dos Estados socialistas da
Europa de Leste na passagem da década de 80 para a de 90, que nestas décadas de 50 e
60, que foram as de maior crescimento económico internacional, também este
crescimento se deu, a taxas ainda mais elevadas do que no Mundo capitalista, nos países
do chamado bloco soviético.
A explicação básica é fácil: quanto mais baixo é o nível de partida, mais rápido é
em regra o crescimento. De qualquer maneira, é uma realidade com algumas
consequências importantes, sobretudo a de ter mudado muito a caracterização social e
cultural do conjunto daquilo que se chamava a Europa de Leste que, até à 2ª Guerra
Mundial, e com excepção da Checoslováquia, era massivamente rural.
Em termos de aumento do PIB, se há pouco vimos que ele foi em média de 4,9%
ao ano para os maiores países da OCDE, no caso da União Soviética, embora haja
discussões acerca das estatísticas, esses níveis andam à volta de 6,7%. Portanto
superiores aos dos países capitalistas.
Também no caso da União Soviética a reconstrução, no sentido da recuperação
dos níveis da produção anteriores à Guerra, é obtida rapidamente. Em 1948 já o nível do
PIB tinha alcançado o de 1940, antes, portanto, da entrada da URSS na Guerra.
O modelo económico e político mantém-se. Até porque a liderança pessoal de
Stalin dura até à sua morte em 1953 e é uma liderança, além de carismática, ditatorial. O
modelo é aquele que tinha caracterizado a industrialização e a formação das estruturas
político-económicas da URSS nos anos 30, a partir da colectivização, ou seja, um
modelo centralizado, estatal, baseado numa planificação rígida, que a partir de cima
determina os objectivos de produção ao nível das diversas unidades económicas. De
resto continuam a vigorar os planos quinquenais: o 4º Plano Quinquenal de 1946-50, o
5º de 1951 a 1955,etc.
Um modelo em que o aspecto ideológico é muito forte e, ligado a ele, um
voluntarismo e uma disciplina coactiva igualmente fortes. Nem por isso deixa de ser
participado, nem por isso deixa de corresponder ao sentimento, ao idealismo, à
mobilização voluntária também, de largas camadas da população.
360
Ainda no mesmo ano, foi experimentado o lançamento dum ser vivo no espaço,
a cadela Laika. E, quatro anos depois, em 1961, o primeiro cosmonauta, Iuri Gagarin,
um piloto aviador que foi intensamente treinado ao longo de meses, fez a viagem à volta
da terra e conseguiu voltar a aterrar.
Estes êxitos, aliados aos níveis de crescimento rápidos que já referi, e à melhoria
sensível dos níveis de vida, geraram um momento muito interessante da história da
União Soviética, um momento que teve repercussões a nível mundial de todo o tipo, e
desde logo no movimento comunista mundial, nos Partidos Comunistas de todo o
mundo.
Já vimos, a propósito do XX Congresso do PCUS, que Khruschov em 1956 tinha
iniciado a destalinização, que foi um choque para os comunistas e simpatizantes
comunistas em todo o mundo, mas foi, ao mesmo tempo, também, uma promessa de
evolução.
E essa evolução concretizou-se em muitos aspectos da sociedade soviética e da
evolução do conjunto dos países do bloco de Leste porque, apesar da repressão aos
acontecimentos da Hungria, mesmo na Hungria houve reformas económicas e políticas
importantes e noutros países as crises foram resolvidas duma forma que, pelo menos
durante alguns anos, teve êxito, como foi o caso da Polónia, onde a crise não chegou a
assumir dimensões dramáticas.
Por outro lado, tudo isto era condicionado pela personalidade do Khruschov, que
era uma figura completamente diferente do Stalin. Ao passo que o Stalin era um homem
extremamente contido, prudente digamos, não dava um passo impensado, o Khruschov
era uma figura impulsiva, temperamental, há quem o compare com o Gorbatchov que
apareceu em 1985 e que vocês conhecem pelo menos da televisão. Havia uma grande
diferença: Khruschov foi na sua juventude operário e mineiro na Ucrânia e tinha toda a
sua vida e carreira ligada à história do comunismo na União Soviética. Foi um
participante na colectivização, teve também responsabilidades no período da Guerra e
era, portanto, um homem identificado ideologicamente com a causa da Revolução, os
objectivos revolucionários. E portanto a convicção no Comunismo como futuro, como
projecto de sociedade.
Lembro bem esse tempo. A década de sessenta foi uma das épocas em que o
movimento comunista voltou a ter projecção e a conquistar eleitorado em muitos países,
362
como taxas de escolaridade elevadas para níveis de escolaridade elevados, de dez anos,
doze anos, tanto na URSS como nos países da Europa de Leste.
Vejamos agora o que é que se passava entretanto nos Estados Unidos, que
continuam a ser a potência hegemónica, embora tendendo a deixar de ser o único termo
de referência, a deixar de ter a distância absoluta que tinham em termos de
desenvolvimento, no final da Guerra.
Os êxitos soviéticos, nomeadamente os relacionados com a astronáutica, foram
encarados com preocupação nos Estados Unidos, porque o lançamento dos satélites
significava que a URSS dispunha de foguetões capazes de o fazerem e, se podiam
percorrer dezenas de milhares de quilómetros para pôr um satélite no espaço, também
podiam percorrer os 7 600 km entre Moscovo e Nova Iorque para transportar uma
bomba nuclear. Ou seja, a capacidade para lançar o Sputnik significava a disposição de
mísseis intercontinentais. Isso é o grande facto novo, estratégico - é a disponibilidade
dos mísseis intercontinentais pela URSS.
Isto significava portanto também que todos aqueles cuidados que os Estados
Unidos tinham tido de criar as diversas alianças militares, NATO, SEATO, Pacto de
Bagdad, etc., ficavam muito relativizados em termos da função que podia ter a
existência das bases militares nos países aliados.
E demonstravam que as declarações de Khruschov sobre a superioridade do
comunismo ou que o comunismo havia de vencer o capitalismo tinham alguma base em
que assentar.
A resposta a isto, numa primeira fase, é digamos de carácter optimista e através
dum personagem que ficou sem dúvida com uma aura na História do século XX, que foi
o John Fitzgerald Kennedy.
O John Kennedy (aparecendo muitas vezes com a sua atraente mulher,
Jacqueline) candidatou-se em 1960 às eleições presidenciais e venceu. Venceu por uma
margem pequena, mas venceu contra o Richard Nixon que tinha sido Vice-Presidente de
Eisenhower e que era um homem que nós aliás já vimos aqui num filme, participando
numa sessão do Comité de actividades anti-americanas. Ou seja, era um personagem
ligado ao maccartismo, às versões mais duras e primárias do anti-comunismo.
365
foi também suscitar resistências internas e em curto prazo Fidel Castro, que tinha sido
encarado com uma certa complacência, passou a ser visto como um inimigo a abater.
John Kennedy teve uma participação activa nestas tentativas de derrube do
Governo Revolucionário cubano e de Fidel Castro porque, poucas semanas depois de
ter tomado posse em 1961, dá luz verde a uma operação de invasão da CIA em
conjugação com os refugiados cubanos de Miami. É o episódio chamado da Baía dos
Porcos, uma invasão por mar, com apoio aéreo americano e bombardeamentos aéreos,
que foi derrotada. Foi um fiasco. Alguns dos invasores foram capturados e foi possível
demonstrar o envolvimento directo americano nesta tentativa violenta de derrube da
revolução cubana.
Kennedy tentou também lançar um programa reformador para a América Latina,
com o nome de Aliança para o Progresso, que previa a realização de reformas agrárias e
substanciais ajudas financeiras americanas aos governos da América do Sul. Na
verdade, este Programa não teve concretização prática porque o próprio Congresso
Americano reduziu muito as ajudas previstas e, sobretudo, as reformas agrárias foram
boicotadas pelos governos e pelas oligarquias latino-americanas.
No aspecto interno, Kennedy lançou um Programa de combate à pobreza e
promoção dos Direitos Cívicos da população negra. Algumas das leis propostas foram
recusadas no Congresso. Também neste aspecto, o programa foi menos concretizado do
que era prometido.
É nesta época que se regista o nascimento dum importante Movimento dos
Direitos Cívicos. Ainda durante o mandato de Kennedy, em Abril de 1963, teve lugar a
famosa marcha sobre Washington de 200 mil americanos, em defesa da igualdade de
direitos. E é realmente na década de sessenta que vão ser conseguidas algumas grandes
alterações em matéria de direitos cívicos da população negra.
Por outro lado Kennedy teve um discurso de negociação no plano internacional.
Ao mesmo tempo que aumentou o número de tropas no Vietnam, encarou a solução do
problema do Vietnam. O que fez com que ele suscitasse reacções de direita que
provavelmente têm a ver com o assassinato de que acabou por ser vítima em Novembro
de 1963 em Dallas, quando iniciava a campanha eleitoral para um segundo mandato.
Portanto terminou aí a carreira desse político, tinha 46 anos quando foi morto.
367
97
casa de campo, em russo.
368
ver importante e talvez hoje subestimada na maior parte dos relatos que se fazem da
época, que é a transição da guerra fria, propriamente dita, para o período da chamada
Détente ou coexistência pacífica que caracterizou as duas décadas seguintes e que,
apesar da continuação da corrida aos armamentos, se distingue do período da guerra fria
mais aguda. No entanto, este período de transição foi também marcado por duas das
maiores crises dos últimos 50 anos, que foram a Crise de Berlim em 1961 e, sobretudo,
a Crise de Cuba em 1962.
Voltando à política soviética que, como vimos, tinha consagrado, com o XX Congresso
do PCUS em 1956, a destalinização. O XX Congresso foi o congresso da denúncia de
Stalin no famoso relatório secreto, que logo foi publicado no ocidente, em primeiro
lugar no New York Times. O relatório é um documento que merece a pena ler-se e do
qual houve até edições em português na época porque, naturalmente, em Portugal e em
todos os países capitalistas, os governos tiveram interesse na divulgação deste
documento, embora se tratasse de um documento oficial soviético e, normalmente,
todas as publicações soviéticas em Portugal fossem, obviamente, proibidas. Mas esta
não, foi publicada. É um documento, apesar de tudo, mais complexo do que muitas
vezes se diz e não é apenas uma denúncia, é também a crítica dos erros e a atribuição de
crimes (alguns dos quais, aliás, erradamente, porque mais tarde se verificou que, quanto
ao famoso caso do assassinato do Kirov, acerca do qual no relatório é insinuada a
responsabilidade do Stalin, isso não é confirmado pela investigação histórica.) Há, de
facto, essa atribuição de erros e crimes mas, ao mesmo tempo, o avalizar e confirmar do
balanço histórico do socialismo e das mudanças realizadas no período do Stalin e o
reconhecimento do papel de Stalin nesse processo. De qualquer maneira, o que teve
impacto foi o aspecto negativo da denúncia e que constituiu um choque. Quanto ao
relatório oficial ao XX Congresso, que tinha sido apresentado publicamente pela mesma
altura, marcou o início da tese que ficou conhecida como da “coexistência pacífica”
entre regimes sociais diferentes, isto é, a negação da tese tradicional da
incompatibilidade entre os regimes socialista e capitalista à escala mundial e da
inevitabilidade da tendência do imperialismo para a guerra. A tese da coexistência
pacífica, pelo contrário, vem dizer que é possível a paz e que a consolidação do bloco
socialista é, em si mesma, uma vitória do socialismo, é um sintoma da superioridade
histórica e da tendência histórica para a superação do capitalismo e, portanto, o que há
369
que esperar é o desenvolvimento desse processo. Daí deriva também, embora a tese não
seja expressamente afirmada mas vai depois sendo difundida, vai tendo um processo
mais subterrâneo de penetração, a ideia de que não são inevitáveis as revoluções
violentas, portanto o processo da mudança social e o avanço do socialismo não assenta
tanto na força das revoluções como na demonstração da superioridade histórica do
sistema socialista. Ou seja, a tese da coexistência pacífica andou associada à ideia de
que os êxitos obtidos pelo regime soviético, nomeadamente no aspecto técnico-
científico ligado à exploração espacial, funcionariam como um atractivo e suscitariam
nos países capitalistas espontaneamente a pressão das populações no sentido de
transformações socialistas. Esta tese era, por um lado, enunciada no plano teórico, mas
andou a par de iniciativas diplomáticas no sentido de descongelar, pacificar as relações
internacionais, e um dos aspectos da política do Khruschov foi a preocupação dele em
realizar conferências internacionais, nas quais participou pessoalmente - ao contrário do
que era característico do Stalin que, durante o quarto de século em que foi o chefe
político, nunca saiu do território da União Soviética, a não ser para participar nas
conferências de Teerão e de Potsdam. Pelo contrário, Khruschov visitou a China, a
Jugoslávia (a visita à Jugoslávia teve um significado importante), a Índia, a Birmânia, o
Afeganistão, a Inglaterra e deslocou-se a Genebra, onde se realizou uma cimeira, a
primeira desde 1945, dos chefes de Estado e de Governo das quatro grandes potências.
Aí é de novo discutida a questão do tratado de paz com a Alemanha, que deveria regular
definitivamente o estatuto da Alemanha, questão sobre a qual não há acordo. De
qualquer maneira, esta conferência decorreu num clima de cordialidade e, nesse sentido,
já marca uma evolução em relação ao ambiente da guerra fria. Também, nesta altura,
em 1955, Adenauer, chefe do governo da Alemanha Ocidental, ou seja, da RFA, foi
recebido em Moscovo. Deu-se então o reconhecimento diplomático entre a União
Soviética e a RFA, o que é também um dado importante visto que até aí – e mesmo
depois - todos os Estados que reconheciam e tinham relações com a RDA não eram
reconhecidos pela RFA. Foi a primeira vez que a RFA aceitou fazer uma excepção a
essa regra e isto marcou o início de conversações com vista a uma solução que
implicava o reconhecimento dos poderes existentes de facto, o que, muito mais tarde,
acabaria por levar ao reconhecimento diplomático recíproco (embora com certas
limitações formais) dos dois Estados alemães. Também em 1955 se chegou a acordo
370
bomba de Hiroshima (a situação não é menos alucinante hoje em dia do que era nessa
época, aliás hoje é muito pior em termos quantitativos só que, nessa época, era uma
novidade ao passo que nós, de algum modo, já nos habituámos). As discussões em
termos de redução de armamento não produziram resultados concretos mas evoluiu-se,
a partir daqui, para uma teorização e uma negociação que marcou a passagem a uma
fase nova no domínio das relações internacionais e, nomeadamente, na maneira como se
encarava o problema da guerra atómica. Uma nova fase que vai assentar num princípio
que se torna de política geral, o princípio de destruição mútua assegurada. Quer dizer:
em vez de reduzir o armamento, o que se assegura é que o primeiro a disparar uma arma
nuclear tem a certeza de ser retribuído e, portanto, estamos descansados porque
ninguém dará o primeiro tiro. Este princípio tem a curiosidade de em inglês se escrever
Mutually Assured Destruction e passou a ser designado por MAD. É uma designação
perfeitamente expressiva da situação em que se entrou. Os acordos SALT I e II
celebrados nos últimos anos da década de 60 e nos primeiros da década de 70,
basearam-se nesta ideia.
No início da década de 60 vão-se viver, de facto, duas situações de crise que são as mais
graves desde o final da II Guerra Mundial. Aliás, o ano de 1960 começou por uma
pequena crise internacional relacionada com o caso do avião espião americano U2, que
voava a grandes altitudes e estava equipado de maneira a fazer fotografias sem ser
detectado pela artilharia anti-aérea. Acontece que o foi, e consequentemente abatido
pela artilharia soviética. O piloto fez-se ejectar com o pára-quedas, foi preso, julgado,
reconheceu inteiramente aquilo que estava a fazer e foi condenado a uma pena de
prisão. O governo soviético protestou energicamente e até, em consequência disso, o
Khruschov recusou-se a participar na Cimeira que estava prevista em Paris com o
presidente Eisenhover. Pouco depois, fez na ONU um discurso muito enérgico e muito
no estilo que o caracterizava - Khruschov era um personagem muito expansivo e
emocional e no meio do discurso, para reforçar a sua posição, não se bastou a bater com
a mão no tampo da mesa, puxou do sapato para sublinhar as declarações, o que teve
como consequência uma multa aplicada pela ONU à União Soviética por
comportamento impróprio.
O problema que se vai suscitar por esta altura, ou logo a seguir, é relacionado com a
questão de Berlim, que continua como cidade dividida. Berlim ficava dentro do
372
para impedir a grande maioria das passagens. Nos meses seguintes, foi de facto
construído um muro e depois dotado de todo o tipo de equipamentos eléctricos, etc., que
tornavam quase impossível a passagem. Isto causou, em primeiro lugar, um drama
humano que não deve ser subestimado, seja qual for a apreciação política que se faça
desta medida, porque famílias que estivessem separadas, e muitas que viviam de um
lado e de outro, ficaram definitivamente separadas. Obviamente, isto representava
também uma anulação da liberdade de escolha e de movimentação dos cidadãos da
RDA e suscitou uma grande vaga de protestos e indignação na Alemanha Ocidental.
Finalmente, em termos militares nada aconteceu, houve uma certa exibição de forças de
um lado e de outro, nomeadamente do lado ocidental que tinha, naturalmente, as suas
tropas e os seus tanques e, na noite de 27 de Outubro, chegaram a estar dois tanques em
frente um do outro em situação de ameaça mútua mas nenhum disparou, depois um
deles recuou e o incidente foi ultrapassado.
Em suma, a crise de Berlim foi superada pacificamente, a separação ente as duas
Alemanhas foi consolidada, mas o levantamento do muro teve um grande impacto
emocional e significava sempre um potencial de tensão e, eventualmente, de crise
internacional.
A questão de Cuba foi diferente e mais grave. Em Cuba, como já vimos, tinha havido
em 1959 a revolução conduzida pelo Movimento 26 de Julho que não era, à partida,
comunista. Inclusive a fase inicial dessa revolução até tinha sido encarada
positivamente por alguns círculos da política americana, mas as transformações internas
que se vão dar são relativamente rápidas, sobretudo a partir da reforma agrária que vai
atingir também interesses americanos e, sobretudo, suscitar movimentos de emigração
para Miami, a partir de onde os exilados permanentemente conspiram no sentido do
derrube do governo revolucionário. A transformação revolucionária em Cuba suscitou
uma hostilidade crescente do governo americano e, já na presidência do Kennedy, o
governo americano esteve comprometido na invasão da Baía dos Porcos, apoiada por
aviões dos EUA e com tropas milicianas constituídas por exilados de Miami. Esse
episódio de intervenção radicalizou a situação interna e justificou que, a partir daí, Cuba
visse o governo americano como inimigo, o que impulsiona a sua aproximação com a
União Soviética. Quer dizer, dá-se em Cuba, em 1961, uma evolução que é
simultaneamente doutrinária e de política internacional, as duas coisas andam neste
374
contexto estreitamente ligadas. É nesta altura que, pela primeira vez, Fidel Castro
declara que tem em vista o socialismo, que se identifica com a ideologia comunista, é
também nesta altura que são dados os primeiros passos para a construção de um partido
único de governo que, aliás, se chama Partido Unido da Revolução Socialista e que é já
uma fusão do Movimento 26 de Julho com o Directório revolucionário 13 de Março e
com o Partido Comunista Cubano, e daqui vai nascer o novo Partido Comunista
Cubano. Fidel Castro assume-se como marxista e, nesta sequência, a URSS fornece os
mais avançados meios de defesa militar, o que consiste em instalar em Cuba, a curta
distância da fronteira dos Estados Unidos, mísseis com capacidade nuclear. A União
Soviética, como já vimos, estava cercada por uma série de alianças, a SEATO, o
Tratado do Centro, as bases americanas na Turquia, por exemplo. Desta maneira, na
perspectiva soviética, a situação de reciprocidade ficava assegurada, ou seja, os EUA
passavam a contar com a ameaça dos mísseis instalados à sua porta. Obviamente a
operação foi feita secretamente, mas foi detectada por um avião espião americano e
causou naturalmente grande alarme no governo dos EUA. Houve militares que
defenderam que os EUA deveriam imediatamente proceder a um ataque e liquidar as
bases. Mas ninguém podia garantir que esse ataque não suscitasse, em represália, o
disparo de uma bomba nuclear. O Presidente Kennedy optou por uma solução diferente
que foi fazer um discurso muito enérgico e ameaçador e, ao mesmo tempo, decidir o
bloqueio a Cuba. Ou seja, os navios americanos passavam a controlar todos os barcos
que se dirigissem para Cuba e obrigá-los-iam a retroceder se transportassem qualquer
espécie de arma – o que aconteceu com um navio soviético que foi obrigado a voltar
para trás – e, simultaneamente, impunham a retirada imediata dos mísseis, sob a ameaça
de invasão e guerra atómica se este ultimato não fosse aceite. Portanto, durante uns dias
(mesmo em Portugal e apesar das deficiências da informação), tivemos a noção de um
perigo extraordinário iminente. Finalmente, Khruschov, i.e., a liderança soviética,
acabou por ceder. Negociou a retirada dos mísseis americanos da Turquia, que foi a
única contrapartida que os soviéticos obtiveram e mesmo essa não foi formulada
publicamente, foi uma negociação privada. Portanto, substancialmente, a posição
soviética saiu derrotada deste episódio. De qualquer maneira, os EUA comprometiam-
se também a não repetir a tentativa de invasão e a respeitar a existência de Cuba como
Estado independente.
375
A saída pacífica desta situação de crise foi acompanhada também pelo estabelecimento
de certos mecanismos de contacto entre os dois governos. Foi nessa altura que se
estabeleceu o chamado “telefone vermelho” entre os dois Presidentes. Na realidade,
tratava-se de uma ligação de telex que permitiria abordar rapidamente qualquer situação
de crise internacional.
Foi ainda em 1963, um ano depois, que se chegou de facto ao primeiro tratado
internacional de proibição de experiências nucleares na atmosfera. Continuaram a ser
possíveis as experiências subterrâneas, que aliás tiveram lugar, mas as experiências na
atmosfera, de que já se sabia que tinham consequências graves em termos de poluição,
foram proibidas, e este tratado foi depois assinado por todos os países à excepção da
França e da China (a França tornou-se potência nuclear em 1964 e a China em 1965 e,
tanto uma como a outra, justamente nesta altura, começam a representar posições
autónomas em relação, respectivamente, aos EUA e à URSS). Isto prende-se também
com o princípio do conflito sino-soviético, que nesta altura já estava em pleno
desenvolvimento e do qual falarei a seguir.
Outro aspecto ainda, importante na caracterização dos anos 60, é a evolução da Igreja
Católica que, praticamente desde a época da Revolução Francesa e, sobretudo, desde a
segunda metade do século XIX, tinha, quase sem descontinuidade, funcionado como um
símbolo de posições anti-democráticas conservadoras. Foi assim já no tempo da
Revolução Francesa, foi assim na segunda metade do século XIX em toda a série de
tomadas de posição do Papa contra as “ideias modernas”, o que ele chamava o
“cientismo” (a aceitação das verdades da ciência que se contrapunham à “verdade
revelada”, à tradição bíblica). Foi assim na recusa também, em geral, das ideias
democráticas e do individualismo, bem como do socialismo. Nomeadamente, o papado
de Pio XII, de 1939 até à sua morte em 1958, caracterizou-se por uma certa
ambiguidade em relação ao regime nazi e é acusado de não ter feito todo o possível no
aspecto da protecção dos judeus e da denúncia do Holocausto. Aliás , anteriormente,
ainda sob o pontificado de Pio XI, Eugenio Pacelli (o futuro Pio XII) era Núncio
Apostólico na Alemanha e nessa qualidade foi um dos autores da Concordata entre o
Vaticano e a governo nazi, logo em 1933.
No pós-guerra, a Igreja continuou a ter um papel muito activo na luta anti-comunista e
contra a esquerda em geral. Quando, por exemplo em 1948, em Itália se deu a
376
vontade. Isso marcava uma não exclusão de ninguém, quer dizer, uma disposição de
falar com os não-católicos. É nesta época que se iniciam acções da Igreja também no
sentido da conversação com outras confissões cristãs e não cristãs, e uma abertura que
se começa a dar, e que depois teve alguma expressão a nível intelectual, a um nível mais
difuso e não institucional, ao diálogo intelectual com os marxistas. Uma novidade de
certo impacto foi a audiência pessoal concedida pelo Papa João XXIII à filha e ao genro
de Khruschov, Alexei Adjubei, que, se bem me lembro, era então director do Izvestia,
um dos dois principais jornais soviéticos.
A Pacem in Terris referia também a importância da emancipação dos povos
colonizados, que é uma questão essencial dos anos 60, como vimos. Embora a morte do
Papa em 1963 marcasse, em certa medida, uma quebra deste espírito originário porque o
sucessor, Paulo VI, era um personagem mais discreto e mais diplomático, no entanto, o
essencial desta orientação foi prosseguida, por exemplo, no que diz respeito à reforma
litúrgica. Deve ser sublinhado que muitas das orientações do Vaticano II e de João
XXIII, a partir dos anos 80, com João Paulo II, e mais ainda com o actual Papa Bento
XVI, têm sido invertidas e, curiosamente, um dos últimos aspectos dessa inversão é a
reforma litúrgica. Quer dizer, a reforma litúrgica dos anos 60 era no sentido de
aproximar a religião da sensibilidade dos crentes e acabar com o latim na missa, por
exemplo, ao passo que hoje a tendência é, pelo contrário, de valorizar e de repor o
aspecto, formal, ritual e de autoridade da Igreja.
Não são só importantes as posições oficiais da Igreja. Paulo VI, o sucessor de João
XXIII, ainda fez uma encíclica também progressista sobre as questões do
subdesenvolvimento do Terceiro Mundo, a Populorum Progressio (“o Progresso dos
Povos”). Mas sobretudo, é a partir daqui que nasce uma corrente que nunca teve a
cobertura da Igreja oficial mas veio a gerar movimentos importantes de esquerda,
nomeadamente na América Latina, a “teologia da libertação”. Dá-me um certo prazer
referir isto num dia em que, segundo a notícia de que ainda só vi o título no jornal, um
bispo do Paraguai, Fernando Lugo, formado justamente na teologia da libertação, acaba
de ser eleito Presidente da República num país que viveu muitas décadas de regimes
ditatoriais reaccionários e que tem problemas sociais muito graves. A “teologia da
libertação” é um conjunto de movimentos de inspiração católica que vão procurar reatar
com a mensagem originária da Igreja primitiva e da Bíblia, no sentido de a interpretar
378
revolução, que foi a Indonésia. A Indonésia, liderada por Sukarno, um dos líderes
neutralistas, registou uma evolução à esquerda e o Sukarno aproximou-se do Partido
Comunista indonésio o qual tinha posições pró-chinesas. Neste processo, foi tentada
uma revolução comunista na Indonésia. Hoje parece demonstrado que sectores da
direita procuraram precipitar esse processo, o que deu oportunidade a um golpe de
Estado sangrento que pôs termo à ameaça de revolução socialista. O golpe de Estado
teve como consequência a marginalização do Sukarno, ele não foi imediatamente
demitido mas, na prática foi “congelado”, passado dois anos foi demitido e morreu
pouco depois. Quem, entretanto, se consolidou no poder foi o General Suharto que foi
uma espécie de ditador fascista (“fascista” usando o termo no sentido amplo), uma
ditadura terrorista de direita que reintegrou a Indonésia completamente na esfera de
influência americana e que foi, aliás, uma contra-revolução muito violenta porque
depois se repercutiu numa espécie de guerra civil que fez pelo menos meio milhão de
mortos.
O grande processo revolucionário destes anos é a guerra do Vietname. Em 1954, a
República Democrática do Vietname do Norte tinha obtido uma primeira vitória contra
o colonialismo francês na Conferência de Genebra, ao ficar assente a divisão do
Vietname pelo paralelo 17 e com o reconhecimento da República Democrática do
Vietname a norte desse paralelo. É o chamado regime de Hanoi, liderado por Ho Chi
Minh. A sul, ficara estabelecido que haveria, num prazo de um ano, eleições controladas
internacionalmente, a partir das quais se prepararia a reunificação. Na verdade, no sul,
não houve eleições, permaneceu durante algum tempo o governo do imperador Bao Dai,
que não realizou as eleições. Os americanos que já na última fase da presença francesa
eram cada vez mais o apoio militar e económico de Bao Dai, acabaram por depô-lo
fizeram-no substituir por um homem mais directamente ligado à dependência
americana, Ngo Dinh Diem. O que existe de facto, a partir de 1954, no Vietname do
Sul, é uma ditadura protegida pelos americanos que vai deparar com uma crescente
oposição, não só da Frente de Libertação Nacional apoiada pelo governo do Vietname
do Norte mas, também, dos monges budistas que não o aceitam. Na prática, aquilo que
fica a existir no Vietname do Sul é uma ditadura protegida pelos americanos que fazem
e desfazem os governos como entendem, aliás, em 1961 decidem liquidar política e
fisicamente Ngo Dinh Diem e instaurar uma outra junta militar. Na prática, a oposição
385
Lição 9. O terceiro mundo. O Médio Oriente: a “guerra dos seis dias”. A América
latina e o impacto da revolução cubana. O Brasil nos anos 60. Guevara e o
guevarismo. O Chile de Allende. A experiência militar no Peru. O regresso de
Perón na Argentina.
Vimos em aulas anteriores que os anos 60 tiveram como um dos fenómenos centrais as
descolonizações, nuns casos violentas noutros pacíficas mas, em muitos casos, gerando
situações que se cruzavam com os problemas postos pela guerra fria, pela bipolarização
do mundo. E vimos também que isso, nos anos 60, coincidiu com uma teorização da
parte da União Soviética, que nessa época estava centrada na política de coexistência
pacífica mas, ao mesmo tempo, via os processos abertos com a descolonização, com as
independências políticas, como a formação de um conjunto de tendências que
objectivamente se colocavam em oposição ao imperialismo e poderiam situar-se numa
mudança evolutiva para o socialismo. A URSS valorizou muito o fenómeno emergente
a partir da Conferência de Bandung que foi o neutralismo e, por isso, teve uma política
não só de boas relações mas de apoio a Estados que eram Estados das burguesias
nacionais, como era o governo do Partido do Congresso de Nehru na Índia ou o caso do
Egipto de Nasser, que representavam políticas voltadas para a industrialização,
modernização e independência, sem prejuízo da liberdade de investimento, da
existência de um capitalismo nacional nos seus países. A União Soviética, de uma
maneira geral, encarou de uma maneira positiva e em posição de apoio essas
experiências. No entanto, vimos também que, a partir do final dos anos 50 e princípio
dos anos 60, se desenha e aprofunda rapidamente uma divisão entre os dois grandes
países do bloco socialista que eram a União Soviética e a China, e essa oposição vai ter
como ponto de partida, por um lado, as questões ligadas à destalinização, isto é, à
própria posição do Khruschov e da direcção khruschoviana em relação ao passado
389
próximo do movimento comunista, a todo o período de Stalin. Mas, por outro lado, a
China receia que a política soviética de coexistência pacífica se traduza na tendência
para uma espécie de condomínio do mundo entre as duas super-potências e para uma
diminuição da solidariedade da União Soviética com a própria China. Por exemplo, a
posição neutral da União Soviética no conflito entre a China e a Índia foi uma coisa que
causou bastante amargor à China. O mesmo aconteceu com a posição da União
Soviética contra a atitude chinesa em relação à recuperação de Taiwan, contra qualquer
iniciativa da China comunista em relação a Taiwan. E, a partir daqui, em relação com os
desenvolvimentos da descolonização e a evolução nos novos países, a partir de meados
dos anos 60, ao mesmo tempo que o conflito sino-soviético no plano doutrinário se
agudizou e conduziu a uma ruptura, vai-se definindo a oposição da China à política da
coexistência pacífica. A China recusa a assinatura do tratado de não proliferação das
armas nucleares de 1963 e, para além disso, é crescentemente crítica do apoio às
burguesias nacionais, por exemplo do Egipto ou da Índia, e tende a teorizar a ideia de
que o importante é o facto de que, apesar da descolonização, se mantém uma situação
de exploração dos povos do terceiro mundo e que, em resposta a ela, há possibilidades e
há grandes perspectivas de lutas dos povos do terceiro mundo contra os países
imperialistas e, em primeiro lugar, contra os EUA. A China teoriza, nos meados dos
anos 60, de certo modo à imagem e semelhança daquilo que era a própria experiência da
Revolução Chinesa em que a guerra civil revolucionária tinha avançado da conquista
dos campos para a conquista das cidades, a ideia de que o futuro socialista do mundo
reside na mobilização dos campos contra as cidades, quer dizer, neste caso não dentro
de um país, mas do conjunto dos campos que é o terceiro mundo (no sentido de que os
países do terceiro mundo são massivamente agrários), contra as metrópoles urbanas que
estão, nessa época, essencialmente nos países capitalistas. Isto é concomitante com uma
crise e um novo processo revolucionário que se vai desenvolver na China a partir dos
meados dos anos 60, que é a chamada grande revolução cultural proletária, a revolução
cultural, que abre uma crise prolongada no interior da sociedade e da política chinesa. É
certo que, na segunda metade dos anos 60, se desenvolveram alguns conflitos em países
do terceiro mundo que pareceram justificar as teses chinesas. Do principal deles já
falámos, foi a Guerra do Vietname que, justamente a partir de 1964, conheceu uma
escalada impressionante, quer em termos de intensificação dos bombardeamentos
390
(Fonte: Wikipédia)
composta, no que diz respeito ao planalto do Golan até hoje não foi alterada. Esta
guerra, que foi ganha por Israel e ficou conhecida como “Guerra dos Seis Dias”, foi um
triunfo militar rápido mas, a longo prazo, agravou muitíssimo a situação, em primeiro
lugar no que diz respeito à situação dos refugiados palestinianos e, depois, no que diz
respeito às relações no Médio Oriente em geral. Entre o final dos anos 60 e o princípio
dos anos 70, o conflito nesta área foi um dos problemas principais das relações
internacionais (de que voltaremos a falar a propósito da guerra do Yom Kippur de
1973). Por outro lado, é a partir daqui que se intensifica a acção dos movimentos
palestinianos. A própria OLP só tinha sido constituída recentemente, em 1964 sob a
direcção de Yasser Arafat. Com vários tipos de relacionamento com a OLP, nasceram
também outros agrupamentos, que realizaram acções de grande impacto mediático,
nomeadamente desvios de aviões israelitas e, em 1972, o rapto dos atletas israelitas nos
Jogos Olímpicos de Munique, que acabaram todos mortos.
Uma outra região do mundo que nos anos 60 e princípios dos anos 70 sofreu uma série
de conturbações relacionadas com o conflito leste-oeste, foi a América Latina. A
situação nos anos 60 registou uma série de conflitos dos quais convém dizer alguma
coisa, e o primeiro dado a ter presente é que, da mesma maneira que, no século XIX, a
Inglaterra era a potência hegemónica na América do Sul, no século XX os EUA viram-
se sempre como uma potência tutelar em relação à América Central e à América do Sul,
situação essa que era tanto mais facilitada pela instabilidade da maior parte dos regimes
desses países e, nomeadamente, pela persistência do caciquismo e do militarismo.
Sobretudo, em relação à América Central, é conhecido que os Estados Unidos a
encararam como o “quintal das traseiras”, quer dizer, como uma zona atrasada mas com
grande importância estratégica e em relação à qual se reservavam um direito de controlo
estrito, o que chegou a ter, aliás, expressões quase inacreditáveis, como é o caso da
chamada “Emenda Platt” de 1901. Platt era um senador americano que conseguiu fazer
introduzir na própria Constituição cubana – Cuba tinha nascido três anos antes, em
1898, em consequência da guerra da independência com a Espanha - o direito de
intervenção dos Estados Unidos para a defesa da independência, da boa ordem e da
propriedade em Cuba. Este artigo esteve em vigor até 1934, só nessa altura, na
sequência da revolução ocorrida no ano anterior, é que foi alterado. A maior parte dos
países latino-americanos caracterizava-se também por relações de fortíssima
393
Duvalier filho, durante também praticamente trinta anos, entre 1957 e 1986, e a
Nicarágua teve no poder a ditadura do Anastasio Somoza durante vinte anos, de 1936 a
1956, que foi sucedido pelos filhos ainda por 23 anos, até 1979, altura em que se dá a
revolução sandinista na Nicarágua que, aliás, ganhou também uma orientação socialista
mas acabou por não durar muito tempo.
Além destes casos, também a Guatemala, o Salvador e as Honduras tiveram ditaduras
militares. O Panamá, como sabem, tinha sido uma criação americana em 1903 com o
objectivo de controlar o Canal do Panamá. No princípio dos anos 50 desenvolveu-se um
movimento pela nacionalização do canal, que foi cortado por uma intervenção
americana em 1951.
O caso do México é, de certa maneira, particular no conjunto da América Latina, para já
porque é um grande país em dimensão e do ponto de vista demográfico e depois,
sobretudo, porque foi uma das grandes revoluções sociais do século XX, a Revolução
Mexicana de 1911-1917. Revolução cuja génese é anterior aos movimentos
revolucionários europeus do século XX e à própria revolução russa de 1917, e que não
teve características propriamente socialistas, porque o que estava em causa eram,
sobretudo, questões agrárias e numa perspectiva de redistribuição da propriedade. Mas
revolução democrática que foi vitoriosa e de algum modo se veio a cruzar, no plano
internacional, com o impacto da Revolução Russa, e que imprimiu um desenvolvimento
democrático ao México das décadas seguintes. Nomeadamente nos anos 30, na época
dos governos de Frente Popular em França, em Espanha e no Chile, o governo
mexicano do presidente Lázaro Cárdenas, embora não tendo oficialmente essa
designação, pode integrar-se na mesma categoria, tendo realizado uma reforma agrária e
a nacionalização do petróleo. Foi praticamente o único governo, além da URSS, que
apoiou a Espanha Republicana durante a Guerra Civil, com possibilidades limitadas
mas dentro dessas possibilidades em termos eficazes.
Os maiores países da América do Sul são o Brasil e a Argentina e também vale a pena
dizer alguma coisa sobre o que aí se passa nos anos 30 e 40 porque é a época de dois
regimes que tiveram uma grande projecção na história desses países, e mesmo a nível
internacional, e que são casos de certa maneira complexos que, sem dúvida,
contribuíram para a modernização das sociedades respectivas no que diz respeito à
integração dos trabalhadores na política e no acesso a determinadas conquistas sociais
395
mas que, ao mesmo tempo, foram governos de tipo ditatorial e muito influenciados
pelas experiências dos fascismos.
Vimos que os fascismos europeus nasceram como movimentos de classe média mas
foram rapidamente canalizados e manipulados pelo grande capital contra o movimento
operário e contra o socialismo, ou seja, a natureza de classe dos fascismos europeus, em
termos do tipo de poder que estabilizaram, deixa pouca margem para dúvidas.
O caso da Argentina e do Brasil (estou a falar em concreto dos governos de Getúlio
Vargas no Brasil entre 1930 e 1945 e, depois, numa segunda fase entre 1950 e 1954, e
do governo de Juan Péron na Argentina entre 1946 e 1955) é mais complexo. A ditadura
de Getúlio Vargas, que nasceu de uma revolução, a revolução de 1930, e só se instaurou
como ditadura em 1934, deu origem a um regime que, curiosamente, se chamava
“Estado Novo” – a mesma expressão do salazarismo português – e nessa época era
caracterizada pelos comunistas como fascismo, mas hoje a historiografia brasileira não
interpreta esse período como fascismo. O que caracterizou estas ditaduras,
nomeadamente a do Getúlio Vargas, foi uma preocupação nacionalista e de
industrialização, segundo o modelo conhecido como import- substitution (modelo de
substituição de importações), tendente a reduzir a dependência externa. Este modelo foi
eficaz até certo ponto, favoreceu a urbanização, o desenvolvimento de indústrias
nacionais e das classes médias urbanas e, tanto no caso do Brasil como no da Argentina,
esteve ligado a um apoio do Estado aos sindicalismos. Um sindicalismo que é
dependente do Estado, e que nesse sentido é controlado, mas que, efectivamente,
assegurou conquistas sociais e económicas importantes. Nesse sentido, em contraste
com aquilo que aconteceu nos fascismos europeus, embora de algum modo
correspondesse àquilo que era a ideologia de algumas alas esquerdas nos fascismos
europeus. Este modelo de import-substitution teve também os seus limites, porque
propiciou a formação de pequenas e médias empresas ligadas à produção de bens de
consumo, mas não à de meios de produção. No aspecto de equipamentos e máquinas, a
dependência manteve-se e daí que, numa segunda fase, os mecanismos da dependência
fossem ressuscitados. Este modelo da substituição de importações permitiu o
desenvolvimento das classes médias urbanas e do mercado correspondente a essas
classes mas, na medida em que não foi acompanhado de reformas agrárias, a grande
maioria da população continuou excluída do desenvolvimento. De qualquer maneira, é
396
certo que o Getúlio Vargas conseguiu uma efectiva popularidade em largos sectores da
população trabalhadora, nomeadamente, ele esteve também na origem da formação de
um partido chamado “trabalhista”, que tinha uma influência sindical importante. Sendo
certo que, numa primeira fase do seu governo, até à Guerra, o getulismo esteve muito
ligado à influência das ditaduras europeias e até certo ponto conotado com o fascismo,
depois de 1945 as coisas evoluíram. O Brasil, tal como todos os países latino-
americanos existentes na época, participou, a partir de 1943, na II Guerra Mundial ao
lado dos EUA, houve tropas brasileiras que desembarcaram na Europa tal como as
tropas americanas e que participaram na libertação da Europa. Portanto, depois da II
Guerra Mundial, uma orientação de tipo fascista estava excluída. Getúlio Vargas esteve
afastado do poder durante cinco anos, embora na Presidência estivesse um homem da
confiança dele. Em 1951 reapareceu como Presidente eleito democraticamente e é,
sobretudo, nesse segundo mandato que ele vai definir mais claramente uma orientação
independentista do ponto de vista económico, que acabará por colocá-lo em contradição
com os interesses instalados, o que o leva ao suicídio em 1954.
Aquilo que vos estive a dizer é, de certo modo, um prefácio, porque do que estamos a
falar hoje é da situação dos anos 60 e 70 e, no caso da América Latina, do impacto da
Revolução Cubana. Desde a época de Jânio Quadros (Presidente do Brasil entre Janeiro
e Agosto de 1961) que a Revolução Cubana causou um grande entusiasmo no Brasil e
foi um factor da agudização das lutas políticas – aliás a renúncia de Jânio Quadros ao
mandato veio na sequência das oposições desencadeadas por ter atribuído uma alta
condecoração a Che Guevara. O governo de João Goulart, que lhe sucedeu, acentuou a
orientação à esquerda, com o estabelecimento de relações diplomáticas com a URSS, o
projecto de nacionalização do petróleo e o lançamento de uma reforma agrária, mas
acabou por ser derrubado em 1964 por um golpe militar.
Também na República Dominicana, após o fim da ditadura de Trujillo, o Presidente
eleito em 1962, Juan Bosch, empreendeu medidas de reforma agrária e outras
favoráveis aos trabalhadores, mas foi deposto no ano seguinte por um golpe militar
apoiado pelos EUA. Embora tenha podido concorrer de novo nas eleições de 1966 (na
sequência de nova revolta militar), acabou por perder contra o candidato conservador.
Como escreve S. Guarraccino, “a rigidez crescente do poder das oligarquias, a fraca
incidência das reformas agrárias, o explodir da pressão demográfica, a falência das
397
98
Op. Cit., p. 184.
398
Désiré Kabila que, de facto, mais de trinta anos depois veio a vencer a luta contra o
Mobutu, aliás o líder actual da República do Congo Brazzaville é o filho daquele,
Joseph Kabila. De qualquer maneira, na altura, em 1965, essa guerrilha do Congo foi
descoberta e liquidada e o Che Guevara voltou para a América Latina onde tentou, a
partir da Bolívia, estabelecer um foco de guerrilha. Esta ideia do “foco” era inspirada na
experiência cubana e gerou uma teoria revolucionária que teve a sua voga nessa época e
que fracassou completamente, que era a teoria do foquismo. O foquismo era a ideia de
que, dadas as condições de miséria das populações camponesas e o potencial
revolucionário que essa situação significava, a iniciativa armada de um pequeno grupo
que fosse capaz de, numa determinada área, defender as populações e realizar ataques
contra o exército, podia ser o princípio de um movimento que se poderia expandir
rapidamente. Esta teoria foi objecto de muitas discussões que também envolveram
meios da esquerda intelectual europeia. Ficou como símbolo disso um jovem francês,
filho de boas famílias e escritor que, em anos recentes, foi conselheiro do presidente
francês Miterrand, chamado Régis Debray. O Régis Debray esteve na Bolívia com o
Che Guevara, e escreveu com base nisso um livro que suscitou grande debate na época
chamado Revolução na Revolução e era justamente a teorização do foquismo. A
tentativa fracassou na Bolívia e fracassou praticamente por toda a parte, porque também
se estabeleceram, baseadas nesta intenção, guerrilhas na Venezuela, no Uruguai assim
como na Colômbia – mas na Colômbia tinha uma história própria e que ainda hoje tem
continuidade, que são as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Até
mesmo no Brasil, onde as condições geográficas eram muito adversas e o movimento
teve uma expressão absolutamente minoritária, houve tentativas do género. No
essencial, isto fracassou, no entanto marcou uma época e fez Cuba situar-se, nesse final
dos anos 60, como pólo de referência internacional para um conjunto de movimentos
diversos. Em Cuba chegou a realizar-se em 1966 a Conferência Tricontinental da qual
saiu a criação de uma “Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e
América Latina” que não teve continuidade mas que, na altura, representava em
intenção uma nova Internacional revolucionária, como já não existia desde a dissolução
da Internacional Comunista em 1943. Quanto ao Che Guevara, como sabem, acabou por
ser morto na Bolívia em 1967.
399
vai-se assistir a uma radicalização dos dois lados, quer dizer, os primeiros tempos são
relativamente pacíficos e de grande entusiasmo, a nacionalização das minas do cobre,
que era um dos aspectos fundamentais do programa de Allende, é realizada, uma
nacionalização com indemnizações que se passa no quadro da legalidade. Mas a
continuação do processo de mobilização social suscitou, nomeadamente no que diz
respeito à ideia da reforma agrária, enormes inquietações e a oposição dos EUA,
nomeadamente da empresa multinacional ITT (International Telephone & Telegraph),
que tinha posições de grande influência na economia chilena, e se empenhou a fundo
contra o governo do Allende. Os contrastes na sociedade chilena eram grandes, por isso,
as posições radicais dos grupos de esquerda, nomeadamente do MIR (Movimento de
Esquerda Revolucionária), tinham algum apoio, mas suscitaram, por seu turno, receios
nos sectores pequeno-burgueses e, a partir de certa altura, os boicotes económicos
conjugados com a acção destabilizadora da CIA - isto hoje é perfeitamente conhecido e
assumido pela própria CIA - conseguiram mobilizar as classes médias, nomeadamente
através de uma tremenda greve dos transportes rodoviários, que desencadeou uma crise
de abastecimentos. A inflação já estava em desenvolvimento e agravou-se e, com isso,
embora numa primeira fase o governo de Allende tenha conseguido reforçar o seu apoio
social - nas eleições municipais de 1971 o conjunto dos partidos da Unidad Popular
ultrapassou os 50% -, esse apoio foi perdido. Nesta situação de crise, tornam-se
decisivas as Forças Armadas. O exército chileno é um exército de formação alemã,
tecnicamente bem preparado mas com forte espírito de casta – ao mesmo tempo, com
algumas tradições de legalismo, que acabaram por funcionar contra o Presidente, porque
ele se convenceu de que era possível garantir a fidelidade do exército através de uma
política estritamente legalista. O legalismo era um traço muito marcado da
personalidade e do comportamento político do Allende, mas não foi correspondido
pelos chefes militares. O general Pinochet, que tinha tido a confiança de Allende e fora
nomeado Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, veio a ser o principal
organizador do golpe de Setembro de 1973 e tornou-se o chefe de uma ditadura
terrorista que matou muita gente e obrigou ao exílio de muita gente também, e liquidou
duradouramente qualquer hipótese de evolução socialista no Chile. Pinochet foi
Presidente da República até 1990 e, mesmo depois de sair do poder, continuou a ser
Comandante em chefe e depois Senador. A influência da ditadura, em alguns aspectos,
401
Lição 10: Dos movimentos de protesto na América ao Maio de 68. O conflito sino-
soviético e a revolução cultural na China. Das negociações SALT à Conferência de
Helsínquia. O conflito israelo-árabe: a guerra do Yom Kippur.
Vimos que, pelos meados dos anos 60, do ponto de vista social e económico, se tinham
atingido níveis de desenvolvimento que permitiram, tanto no ocidente capitalista como
nos países de leste, uma relativa prosperidade que apontava para uma tendência de
estabilidade no plano social contrastante com aquilo que era a Europa do imediato pós-
guerra. No entanto, é nessa época que vai, de uma forma que na altura parece súbita,
surgir um movimento de contestação ideológica que ganha uma vasta dimensão social e
política, tendo no seu centro os acontecimentos do Maio de 68. Foi, sem dúvida, uma
surpresa para toda a gente, mesmo se hoje, de um ponto de vista de reconstrução
histórica, não é difícil concluir que o movimento não foi tão súbito quanto parecia e
que, em vários países, havia tendências e acontecimentos que de algum modo o
prenunciavam. Mas apareceu na altura como súbito. É frequentemente referido que o
jornal “Le Monde” (na França dos anos 60 o órgão de informação mais influente),
justamente umas semanas antes de eclodirem os acontecimentos de Nanterre, tinha
como título de um artigo, com um certo destaque, “la France s’ennuie”, ou seja, “a
França aborrece-se”. Uma descrição da situação e do estado de espírito dominante que
contrasta absolutamente com aquilo que era a atmosfera pouco tempo depois. Também
no plano das relações internacionais, superada a grave crise de Cuba e tendo-se iniciado
a coexistência pacífica e os primeiros acordos em matéria nuclear, parecia que tudo se
encaminhava para aquilo que alguns chamaram o “condomínio soviético-americano do
mundo” e a sensação de que os povos tinham sido “expropriados” da política por esse
condomínio é então muito difundida. Mas os anos 60 são também os dos maiores
desenvolvimentos da guerra do Vietname e vamos ver que, com a emergência da China,
403
exilado da RDA, dirige a “Liga estudantil socialista alemã” (com a sigla SDS,
correspondente ao nome em alemão Sozialistischer Deutscher Studentenbund e
coincidente com a do famoso movimento Students for a Democratic Society criado
anteriormente nos Estados Unidos). A SDS alemã (como aliás a americana) era já um
movimento geral de contestação dos métodos de ensino, da autoridade universitária e
simultaneamente de luta política anti-capitalista.
O caso que acabou por ter uma repercussão maior e por depois gerar uma série de
movimentos de impacto, pode dizer-se, universal, o movimento que teve nomeadamente
mais impacto em Portugal, foi o da França a partir de Maio, iniciando-se num problema
absolutamente localizado mas que tem a ver com um dos aspectos que marcaram mais o
conjunto do Maio de 68, que é a contestação da moral dominante, nomeadamente no
que diz respeito às relações entre os sexos. O protesto gerou-se inicialmente em torno da
proibição de visita da residência universitária das raparigas a partir das 10h da noite. Foi
o motivo inicial da contestação, que se estendeu rapidamente e que, nos meses
seguintes, pôs em causa a autoridade universitária em geral, pôs em causa muitas coisas
que eram consideradas princípios básicos, nomeadamente nesse aspecto moral das
relações de família. Mas o mais importante é que esta contestação esteve associada
desde início, como aliás também acontecia no caso americano, a uma crítica político-
social, a uma crítica do capitalismo, a uma influência da tradição ideológica
revolucionária, por um lado do marxismo, por outro do anarquismo que, desde a guerra
civil de Espanha, praticamente tinha desaparecido como facto social influente e como
organização. O movimento de 68, nomeadamente em França, suscita uma espécie de
renascimento das doutrinas anarquistas até com repercussão na investigação histórica,
quer dizer, na difusão do conhecimento dos teóricos históricos do anarquismo, de
Proudhon, Bakunine, Malatesta, etc., e também uma influência do marxismo e do
marxismo-leninismo, portanto do comunismo. No que diz respeito ao comunismo, as
teorias e as orientações que vão ganhar difusão são as ligadas às posições chinesas, quer
dizer, esta é uma época em que o conflito sino-soviético já estava em pleno
desenvolvimento, em que as posições soviéticas e da generalidade dos partidos
comunistas ocidentais aparecem ligadas à teoria da coexistência pacífica e a propostas
que eram descritas como reformistas, ao passo que a China em 1968 é a China que está
em plena Revolução Cultural e que, ao mesmo tempo, é a defensora da insurreição geral
405
capacidade de intervenção dos organismos sindicais ao nível de fábrica, mas sem que
chegasse a ser posta em causa a propriedade capitalista. Em relação às questões
universitárias, as questões foram canalizadas no sentido de ganhos, que efectivamente
houve nos anos seguintes, no aspecto de autonomia universitária e de representação
estudantil nos órgãos universitários, ganhos esses que depois, mais ou menos em todos
os países onde, mais cedo ou mais tarde, se verificaram movimentos semelhantes, foram
obtidos, e que hoje estão de novo postos em causa.
O país onde o movimento do Maio de 68 teve uma projecção mais duradoura e intensa,
de tal maneira que já não faz sentido falar no Maio porque foi um movimento que,
sobretudo, teve consequências nos anos seguintes, em 1969/70 e por toda a primeira
metade dos anos 70, foi a Itália. Na Itália houve também um movimento estudantil
importante que se exprime em 1969, mas aquilo que marca definitivamente o caso
italiano é o Outono de 1969, já um ano e meio depois dos acontecimentos do Maio de
68 em França, o chamado “Outono quente” (autunno caldo), com um intensíssimo
movimento de ocupações de fábrica. Também aí, naturalmente, se pôs fortemente a
questão do papel do partido comunista mas, tanto como em França ou mais ainda,
estava afastada qualquer hipótese de o Partido Comunista Italiano encabeçar um
movimento insurreccional. De qualquer maneira, o movimento traduziu-se em
conquistas salariais e mesmo de poder dos organismos de base sindicais e comissões de
trabalhadores ao nível da fábrica - aliás, as ocupações tinham sido ocupações com
continuação da produção, nesse sentido foram movimentos como já não havia desde a
época da I Guerra Mundial, movimentos de auto-gestão. Reflectiu-se também num
crescimento eleitoral importante do Partido Comunista Italiano que, na segunda metade
da década de 70, virá a conquistar cerca de um terço dos votos em eleições legislativas.
No entanto, não tendo tido uma solução política, estes movimentos vão declinar,
dispersar-se e evoluir em sentidos diversos nos anos seguintes e, de uma maneira geral,
as direitas recuperam do susto. Mesmo em França, o general De Gaulle consegue
organizar logo em Junho uma manifestação de massas em apoio do governo bastante
expressiva e, logo a seguir, as eleições dão uma vitória às forças conservadoras.
Também na América Central e do sul houve movimentos estudantis importantes e,
nomeadamente, um caso que suscitou um confronto mais violento foi o dos estudantes
408
nucleares que cada um dos campos detém. Estas conversações são conhecidas pela sigla
SALT (Strategic Arms Limitation Talks) - inicialmente era Talks, depois o T passou a
significar Treaty, na medida em que, em 1972 foi, de facto, concluído o primeiro tratado
SALT, por ocasião de uma visita de Richard Nixon a Moscovo. Era, por um lado um
acordo sobre os mísseis antibalísticos, ou seja, os mísseis anti-mísseis, e por outro lado
um acordo sobre o quantitativo dos vários tipos de armas e de ogivas nucleares. O
primeiro é o Acordo ABM, que estabeleceu que, tanto os EUA como a URSS,
limitavam a existência de mísseis anti-mísseis à defesa das capitais e de uma área de
instalações de mísseis. É um acordo típico da teoria da destruição mútua assegurada (de
que já aqui falámos a propósito da sigla MAD), ou seja, a segurança assenta em que
aquele que ousar a iniciativa de um ataque nuclear tem a certeza de receber, em troca,
represálias esmagadoras, pelo que fica inibido de desencadear esse ataque. Isto é, a
segurança assentava em proteger os próprios mísseis, de maneira que cada lado tinha a
capacidade de resposta, e não proteger as populações porque, se as populações não
estivessem expostas, não havia risco e, portanto, havia a possibilidade de decidir o
ataque.
O acordo complementar é o acordo sobre o número de vários tipos de armas e de
ogivas. Estes acordos tendiam assim a reforçar o monopólio das armas nucleares e
encontrar uma certa estabilidade na base desta ideia aparentemente louca da destruição
mútua garantida (da qual, no entanto, Robert McNamara num dos filmes diz “No, MAD
is not mad”).
tratado que anulou os acordos de Munique de 1938, significando com isso uma renúncia
definitiva dos Alemães aos Sudetas. A partir deste conjunto de tratados, intensificaram-
se as relações económicas da RFA – que, entretanto, como vimos, se tinha tornado a
maior potência económica na Europa ocidental – com os países de leste. Este é um dos
dados novos que se vão impor a partir daqui, o ressurgimento da Alemanha como uma
potência que não é apenas uma potência económica mas que é também um protagonista
internacional e com relações estabelecidas na Europa de Leste.
Ainda em relação aos acontecimentos da primeira metade dos anos 70, que têm a ver
com a situação europeia e as relações leste-oeste, é de destacar a realização da
Conferência de Helsínquia, que foi um dos processos internacionais mais importantes e
mais significativos deste período. A iniciativa da Conferência de Helsínquia foi
sobretudo da parte soviética, quer dizer, a realização de uma grande conferência
internacional de segurança europeia, que corresponderia a consagrar a aceitação da
divisão da Europa entre o bloco de leste e o ocidente era, sobretudo, uma preocupação
soviética. A ela obstava o facto de os EUA e a NATO não dispensarem uma intervenção
directa na questão, o que foi motivo de alguns atrasos no início do processo mas,
finalmente, em 1973 iniciou-se a conferência, que foi alargada à participação dos EUA
e do Canadá. Dos Estados europeus só ficou de fora a Albânia, pelas posições que tinha,
em geral, contra a política de coexistência pacífica.
A Conferência concluiu-se, em 1975, com a assinatura da Acta Final de Helsínquia, que
consagrava os princípios da igualdade e soberania dos Estados, não-ingerência,
cooperação económica, científica, técnica e cultural, os direitos humanos, incluindo a
liberdade de expressão. É uma declaração mais de carácter formal mas, de algum modo,
significativa da superação do ambiente da guerra fria, na época foi mesmo considerada
como a prova da superação da guerra fria. No entanto, continha princípios que se
prestavam a ser instrumentalizados pelos interesses de um lado ou do outro e que, nesse
sentido, darão ainda matéria para polémicas e para contradições nos anos seguintes.
Por esta época, em 1973, dá-se também uma alteração importante no quadro da
Comunidade Económica Europeia, com a passagem da Europa dos 6 à Europa dos 9.
Foi o primeiro alargamento efectivo desde a constituição da CEE, em 1957. O grande
problema tinha sido, até então, a não admissão da Grã-Bretanha, quer dizer, a posição
insular e ligada à Commonwealth da Grã-Bretanha e, depois, a oposição gaullista à sua
412
admissão - o que tem a ver justamente com o facto de De Gaulle sustentar uma posição
de autonomia europeia em relação aos EUA (a Inglaterra, na medida em que estava
muito ligada à política americana, contradizia essa autonomia, e daí o veto do De
Gaulle). Mas, em 1969, De Gaulle demitiu-se de Presidente depois de ter perdido um
referendo sobre uma questão, de certo modo menor, a questão da regionalização em
França, e o seu sucessor, Georges Pompidou, já não tinha a mesma objecção. Em 1973,
a CEE alarga-se à Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca.
Por esta altura, também, a política americana está em evolução. Por um lado, em 1968
tinham sido iniciadas em Paris as conversações sobre o Vietname. A tentativa
americana de vietnamização do conflito, complementada com a intensificação dos
bombardeamentos no princípio dos anos 70, falhou. O crescimento da influência e do
controlo da FLN no sul do Vietname foram crescentes, e as conversações vêm a
concluir por um acordo que prevê, em 1973, a saída das tropas americanas do Vietname,
mantendo-se a divisão dos dois Estados. De facto, a saída das tropas americanas
concretizou-se nesse ano, o que abriu o caminho à vitória da FLN em 1975, com a
libertação de Saigão, e à reunificação do Vietname.
Uma das cartadas que o Presidente Nixon e o seu Conselheiro e depois Secretário de
Estado Henry Kissinger, tentaram jogar, foi a da superação da bipolaridade EUA-
URSS. O Kissinger era um conceituado teórico e historiador das relações internacionais,
com obra importante publicada, e tinha a ideia de que era preciso explorar os factores na
cena internacional susceptíveis de enfraquecer o adversário soviético. Um dos factores
era sem dúvida a China, a partir do conflito que estava em pleno desenvolvimento desde
o princípio dos anos 60, e nos anos 70 mais profundo do que nunca. Aliás em 1969
tinha-se chegado ao ponto de confrontos armados na fronteira do Extremo Oriente. O
conflito sino-soviético nos anos 60 esteve ligado a um extremo radicalismo das posições
chinesas sobre a política internacional. A concepção teórica básica, inspirada no
pensamento de Mao Tsé-Tung, era a de que a revolução mundial, tal como tinha
acontecido na China, contrapunha os campos às cidades e acabaria por se resolver por
um assalto dos campos do terceiro mundo às metrópoles imperialistas. Na segunda
metade dos anos 60, este radicalismo foi ainda mais exasperado porque se ligou com a
evolução interna na China, no quadro da chamada “grande revolução cultural
proletária”. Não vou agora aqui desenvolver o que é que foi a revolução cultural mas,
413
uma representação oficial americana, embora a nível desportivo, na China. Mas em tudo
o importante é o princípio porque, atrás dos jogadores de pingue-pongue, três meses
depois, seguiu Henry Kissinger, que foi recebido não só por Chu En-Lai mas também
por Mao Tsé-Tung e, na sequência, em Fevereiro de 1972, menos de um ano depois do
jogo de pingue-pongue, era o próprio Nixon a visitar Pequim. Dessa visita resultou uma
declaração conjunta em que os EUA reconheciam Taiwan como parte da China e, em
contrapartida, a China se comprometia a não invadir Taiwan e procurar uma solução
pacífica para a reunificação. Já antes, em Outubro de 1971, a República Popular da
China tinha sido admitida na ONU e, correspondentemente, Taiwan tinha sido obrigada
a sair. Esta evolução coincide praticamente com a mudança que se dá no poder político
na China e com aquilo que é, na prática, o fim da Revolução Cultural. No congresso
anterior do Partido Comunista Chinês, em 1969, o chefe do Exército Popular, Lin Piao,
tinha sido eleito, praticamente, o sucessor de Mao Tsé-Tung. Este mesmo Lin Piao é
abatido com o avião em que viajava em Setembro de 1971 - a explicação oficial é que
tencionava fugir para a URSS, seria, portanto, um traidor à China que fugia para o país
inimigo. Depois disto, haverá ainda um relançamento da Revolução Cultural a nível de
cúpulas, no qual vai estar envolvida a viúva do Mao Tsé-Tung, Jiang Qing, mas essa
tentativa vai fracassar. Estes são também os últimos anos da vida de Chu En-Lai e de
Mao Tsé-Tung, ambos morrem em 1976. Os anos entre 1972 e a morte de Mao Tsé-
Tung, em 1976, são ainda de uma certa oscilação e incerteza, nomeadamente Deng
Xiaoping em 1973 torna-se Vice-Primeiro-Ministro mas depois é apeado novamente e
só mais tarde é que regressará ao poder. A partir de 1978 Deng Xiaoping torna-se a
principal figura da liderança chinesa. Por essa altura também, o grupo em torno da
viúva da Mao, o chamado “bando dos quatro”, é preso.
Deng Xiaoping virá a representar uma orientação nova na política interna e externa
chinesa. Na política externa, já em 1974 ele tinha defendido na ONU a teoria dos “três
mundos”: a China identificava-se com os povos do terceiro mundo contra o primeiro
mundo, composto pelos imperialistas soviéticos e americanos, considerando um
segundo mundo que era a Europa e os países neutrais, i.e. os países de regime capitalista
com uma posição de inferioridade e um potencial antagonismo em relação às super-
potências. Deng Xiaoping vai representar uma orientação essencialmente de realismo
político, em oposição com aquilo que eram as teses da Revolução Cultural. As teses da
415
Revolução Cultural supunham por um lado, no plano internacional, uma revolta geral
dos povos contra o capitalismo e contra o “social-imperialismo” soviético. E supunham,
no plano interno, o princípio de que é mais importante ser vermelho que ser
especialista. Quer dizer, em relação ao conjunto dos problemas de uma sociedade, a
questão prioritária é a questão política, em que sentido vão as medidas que se tomam:
tendem a favorecer o controlo dos proletários sobre a sociedade, sobre a decisão do que
se produz e como é produzido, ou favorecem aqueles que são mais competentes porque
adquiriram o domínio das técnicas e estão numa posição de superioridade? O problema
que Mao Tsé-Tung punha é que, na existência de qualquer sociedade, aquilo que é
espontaneamente mais favorável a um desenvolvimento quantitativo, isto é, a um
crescimento económico em condições de estabilidade, é a manutenção de relações
sociais existentes - que aqueles que já dominam as técnicas tenham a palavra decisiva -
ao passo que, na perspectiva que ele considera revolucionária, o importante não é tanto
a ambição quantitativa do crescimento económico, é a de construir uma sociedade
segundo princípios diferentes, que realmente representem o acesso ao poder dos que
nunca o tiveram.
A ideia do Deng Xiaoping é, de certa maneira, a oposta. Deng Xiaoping participou na
Revolução Chinesa desde a longa marcha e, nesse sentido, era também ideologicamente
comunista, mas a ideia dele é que a China é um país profundamente pobre, atrasado e
que não há via de superação dessa situação sem um aproveitamento de todos os recursos
internos e internacionais através, no fundo, de uma inserção na economia mundial. Ao
passo que o modelo maoísta de desenvolvimento é estritamente autocentrado, e há toda
uma filosofia de Mao Tsé-Tung sobre o confiar nas próprias forças, o modelo do Deng
Xiaoping nas relações económicas internacionais é, pelo contrário, de inserção, é o
pensar que a China tem que se inserir num mundo mais vasto e procurar tirar o máximo
benefício de uma diversificação das relações económicas. A frase que é atribuída ao
Deng Xiaoping (e que se opõe à tese do Mao sobre a contraposição do técnico e do
vermelho), é a expressão “não importa se o gato é branco ou preto, o que importa é que
cace os ratos”, ou seja, todos os meios são bons se servirem o grande objectivo que é o
fortalecimento, em primeiro lugar económico, da China.
Outro acontecimento importante que marca a situação no Extremo Oriente na segunda
metade da década de 70 é, como já referi, a vitória da FLN em Saigão e a reunificação
416
vai levar a uma reagudização de conflitos. O problema que se suscitou, de uma maneira
um bocado inesperada, foi com os mísseis SS 20 soviéticos, mísseis de médio alcance
que os soviéticos encaravam como uma mera renovação técnica, mas a que os
americanos e a NATO atribuíram um significado de novas armas ofensivas, por serem
mais rápidas que as anteriores, e às quais responderam com a instalação de novos
mísseis na Europa, os mísseis Pershing II, que permitiam atingir o território soviético a
partir da Europa ocidental em menos de cinco minutos. Seguiram-se, da parte da
NATO, os mísseis Cruise, invisíveis aos radares e, por volta de 1978, a bomba de
neutrões. A bomba de neutrões representava uma inovação técnica muito importante.
Embora hoje não se fale neste assunto e esta expressão praticamente não se use, foi
precursora de uma tendência que se tem desenvolvido, que é a de tornar o armamento
nuclear “manejável”. As bombas atómicas eram até aqui extraordinariamente
destrutivas e foi essa característica que assegurou a lógica da destruição mútua
garantida como meio de manter a paz, quer dizer, qualquer golpe nuclear tinha
consequências desproporcionadas em relação a um objectivo político alcançável. O
grande problema a partir daqui era para os estrategas inventar um instrumento que fosse
superior aos explosivos convencionais mas utilizável em acções militares. A bomba de
neutrões satisfazia o objectivo porque podia ser utilizada contra homens e objectivos
militares, poupando estruturas. Como dizia acertadamente um slogan pacifista da época:
“só destrói seres vivos”. A implementação destas bombas pelos EUA foi um factor de
agudização das relações com a União Soviética.
Outros factores vão interferir na mudança de situação nos anos 70, com repercussões até
hoje, e um deles tem a ver de novo com o Médio Oriente. É, em primeiro lugar, a guerra
do Yom Kippur, ou seja, o ataque que o Egipto e a Síria desencadeiam em Outubro de
1973 contra Israel para a recuperação dos territórios perdidos na Guerra dos Seis Dias.
Com a Guerra dos Seis Dias o Egipto tinha perdido o Sinai e a Faixa de Gaza, a
Jordânia perdeu a Cisjordânia e a Síria perdeu os planaltos do Golan.
Na Jordânia dá-se, nos anos 70, uma evolução num sentido adverso aos povos árabes e
nomeadamente aos palestinianos. A Jordânia tinha recebido muitos exilados
palestinianos dos territórios ocupados que constituíam um factor de pressão e de crítica
da política pró-ocidental do rei da Jordânia e, em 1970, resolveu desembaraçar-se dessa
pressão, da forma mais drástica, através do massacre dos guerrilheiros palestinianos da
418
Nas últimas aulas falámos das décadas de 60 e 70. Vimos que foram caracterizadas,
tanto no plano internacional como nomeadamente na política europeia, por aquilo a que
se pode chamar uma tendência para a esquerda. Vimos isso, em primeiro lugar, a
propósito da relação entre a expansão económica das décadas de 50 e 60 e a influência
crescente dos sindicatos, traduzida em conquistas salariais, em elevações regulares do
salário e na consolidação das instituições do Welfare State. Mas isso é apenas uma parte
de um processo mais vasto de que também fez parte a emergência do terceiro mundo,
com a evolução da China que, a partir da última fase de Revolução Cultural, se torna
um protagonista internacional de primeiro plano e consolida a sua posição pela entrada
na ONU em 1971; com a evolução dos movimentos de libertação em África, a
revolução em Cuba, as lutas sociais na América Latina, em geral de resultados
frustrantes e desembocando, numa série de casos, em ditaduras militares mas, apesar
disso, com experiências importantes no Brasil em 1963/64, e principalmente no Chile
em 1969/73. Essa transformação também se fez sentir no aspecto ideológico,
nomeadamente na sequência dos movimentos que associamos ao Maio de 68 que, na
verdade, não começaram em 68 e, menos ainda, se reduzem ao Maio ou se reduzem à
França, vimos que se relacionavam com a evolução da luta pelos direitos dos negros nos
EUA e com um questionamento mais global das relações sociais. 1968 em França mas,
sobretudo, 1969/70 na Itália, representam movimentos operários de excepcional
dimensão e que iniciaram um processo de conquistas sociais importante e duradouro; e
o conjunto desses movimentos que ligamos ao Maio de 68 está associado a uma
421
A partir dos finais da década de 70, a evolução vai ser num sentido diferente e vai pôr
em causa muitas das conquistas sociais que tinham tido lugar nas décadas anteriores,
bem como a atmosfera ideológica e cultural que as tinha caracterizado. A partir do final
dos anos 70, o desenvolvimento de ideologias de individualismo e consumismo –
obviamente que com raízes anteriores - torna-se cada vez mais importante e marca
aquilo que são valores e tendências sociais dominantes actualmente. Na origem desta
transformação que caracteriza os últimos 30 anos está uma mudança no ciclo
económico e, concretamente, a crise económica que se costuma associar à primeira crise
do petróleo em 1973. Nesse sentido, é importante ter presente que a mudança do
contexto mundial que normalmente associamos ao colapso da União Soviética e dos
países da Europa de Leste, nos finais da década de 80 e princípios da década de 90,
surge numa fase em que já estava em curso uma transformação das tendências de
evolução política e social mundiais. Esta evolução, como disse, tem um momento
central na primeira crise petrolífera ligada à Guerra do Yom Kippur, ou seja, à Guerra
israelo-árabe de 1973 e à posição então tomada pela organização dos países
exportadores de petróleo, a OPEP, de elevar drasticamente o preço do petróleo. Mas as
raízes desta mudança são anteriores e têm sobretudo a ver com a perda pelos EUA, ao
longo da década de 60, da sua posição dominante na economia mundial. De certa
maneira, pode-se dizer que toda a evolução dos últimos trinta e tal anos tem a ver com
este declínio de hegemonia, embora o colapso da União Soviética durante algum tempo
tenha levado a ocultar o facto (e até a criar uma ilusão de triunfo histórico-universal da
América) . Uma parte das causas deste declínio da posição económica americana tem a
ver com o crescente peso das despesas militares, nomeadamente por causa da Guerra do
Vietname e da extensão dos compromissos mundiais assumidos pelos EUA, com bases
militares praticamente em todo o mundo. Mas tem a ver também com o crescente défice
da balança comercial americana, ou seja, a perda da superioridade industrial dos EUA
que faz com que, a partir da década de 70, eles sejam cada vez mais um país importador
422
do petróleo, no entanto, tem raízes mais profundas. Em primeiro lugar, é preciso ter
presente que o petróleo se tinha tornado esmagadoramente o recurso energético
fundamental, ao passo que o carvão tendia a ser abandonado. O petróleo é o
combustível para os transportes, mas não só. Também a maior parte das centrais de
produção de electricidade eram as termoeléctricas, alimentadas a petróleo. Ao contrário
do que acontece com o carvão, o petróleo existe apenas em determinadas regiões, e
quase todas em países do terceiro mundo. A Rússia e os EUA também são produtores
de petróleo mas o petróleo americano já não era suficiente para satisfação das próprias
necessidades americanas e uma parte essencial estava no Médio Oriente, sobretudo nos
países árabes. Com a constituição, em 1960, da Organização dos Países Exportadores de
Petróleo (OPEP, ou OPEC na sigla inglesa), a capacidade destes países de pesarem no
mercado internacional aumentou. Isso coincidiu também com uma vaga de regimes de
orientação nacionalista e com referências de tipo socialista, como é o caso do Egipto ou
da Síria, que tomaram medidas no sentido de garantir maiores lucros da exploração do
petróleo para as suas economias, quer através da nacionalização das companhias
exportadoras, quer reservando, através dos impostos, uma parte maior dos lucros da
exploração. Foi uma evolução progressiva ao longo da década de 60, mas a que se
juntaram factores políticos novos. Nomeadamente, em 1967, o bloqueio do Canal do
Suez por ocasião da terceira guerra israelo-árabe suscita uma elevação dos preços e
obriga a novas soluções para o acesso ao petróleo através do Atlântico e do Cabo da
Boa Esperança (foi nessa altura que foram construídos os super-petroleiros). Em
1972/73, em relação com a guerra de Yom Kippur, são decididos novos aumentos de
preço, primeiro um aumento de 70% e depois um novo aumento de 100%. O preço do
petróleo que, em 1970, estava ainda a 1,80 dólares por barril, passa em 1973 para 11,65
e, em 1980, para 36 dólares, ou seja, tinha aumentado 20 vezes em relação a dez anos
antes.
Neste segundo aumento, em 1979, intervém o factor decisivo que é, nesse ano, a
Revolução do Irão, uns dos factos de grande repercussão internacional que ainda hoje
marcam a actualidade. As subidas do custo do petróleo desencadeiam uma subida geral
dos preços, gerando uma situação de crise económica, crise de tipo novo porque
combina a estagnação, ou seja, a quebra dos ritmos de crescimento industrial, com a
inflação, coisas que normalmente andam separadas. Normalmente, os períodos de alta
424
nos EUA, em 1980, do Presidente Reagan. Mas está também em relação com
acontecimentos políticos de grande impacto, e quase coincidentes no tempo, que são a
Revolução Iraniana e o princípio da guerra no Afeganistão no final da década de 70.
O que é que se passou com o Irão? O Irão era, já desde os princípios do século XX, um
dos países do terceiro mundo que, praticamente até à II Guerra Mundial, constituiu uma
semi-colónia inglesa. No entanto, tinham-se verificado ciclicamente movimentos sociais
de oposição ao domínio inglês em que se combinavam motivos diversos e,
nomeadamente, as oposições civis da população burguesa, nomeadamente comerciante,
com a oposição religiosa dos sacerdotes islâmicos – isto já foi assim no princípio do
século no movimento contra o monopólio britânico dos tabacos. Depois, nos anos 30, o
Irão foi governado por um chefe militar que depôs o rei e ele próprio se tornou Xá da
Pérsia. Era o Reza Xá, uma espécie de ditador modernizante que, em certa medida,
copiou o Kemal Ataturk (o reformador e fundador da Turquia moderna). O Reza Xá foi
mais conservador e teve, a partir de certa altura, uma posição germanófila, de
aproximação com os nazis, que dava continuidade à oposição ao imperialismo inglês. O
certo é que o Reza Xá, durante a Guerra, foi obrigado pela intervenção americana a
abdicar no filho, chamado Reza Pahlevi (ou Pahlavi), e a colaborar com os Aliados,
porque o Irão tinha uma posição estratégica muito importante para os apoios anglo-
americanos à União Soviética.
A tradição anti-imperialista, junta à influência que a União Soviética ganhou durante a
Guerra, reflectiu-se, no final da guerra, numa influência grande das forças de esquerda
no país, que aliás já aqui referi anteriormente a propósito do conflito protagonizado, em
1953, pelo Dr. Mossadeq. Mas as forças da esquerda que apoiaram Mosadeq foram
vencidas e perseguidas. O regime do Xá Reza Pahlevi foi altamente repressivo e
crescentemente dependente do apoio americano, um regime com uma polícia política
que não seria exagerado classificar de tipo nazi. Nos anos 60 empreendeu uma certa
modernização, houve um processo rápido de urbanização da sociedade iraniana que, no
entanto, esteve muito longe de resolver os grandes problemas sociais que subsistiam, e
nomeadamente o empobrecimento do campesinato, embora esse campesinato tenha
diminuído. Neste contexto há, a partir da década de 70, um ressurgimento dos
movimentos de oposição. Em 1975, o Xá ainda celebrou os 2500 anos do Império persa,
426
foram cerimónias extremamente faustosas mas que, de certo modo, escondiam uma
crise que era já indesmentível. A partir de 1978, gera-se um movimento de
manifestações de oposição em que convergem de novo, como tinha acontecido já em
momentos históricos anteriores, as oposições civis, de democratas e comunistas (o
Partido Tudeh), com a oposição crescentemente influente dos sacerdotes muçulmanos
xiitas, que tinham como referência o Ayatolah Khomeini, exilado em França. Estas
manifestações no princípio de 1979 chegaram a ter a participação de dois milhões de
pessoas, em Teerão, exigindo o regresso do Ayatolah Khomeini e, perante isto, a tropa
acabou por se dividir e por tomar posição contra o Xá e este viu-se forçado a exilar-se –
aliás, ele estava já doente nessa altura, morreu pouco tempo depois. Constituiu-se um
governo civil de carácter revolucionário e, nos anos seguintes, foi um governo com uma
orientação, em termos sociais, de esquerda que, aliás, realizou reformas sociais
importantes, mas em que cedo se impôs como predominante o grupo dos sacerdotes em
torno de Khomeini. Estes acabaram por ganhar o monopólio do poder e instalar um
regime fundamentalista, baseado na aplicação das leis do Islão na vida civil e no papel
dirigente da hierarquia islâmica nas próprias instâncias de governo. O regime e,
nomeadamente, o discurso de Khomeini, tem como característica nova o facto de, ao
contrário do que aconteceu noutras revoluções nacionalistas anti-imperialistas como as
dos países árabes entre o final da década de 50 e o princípio da década de 60, ser
simultaneamente anti-americano e anti-soviético, anti-comunista. Os comunistas,
participantes activos na primeira fase da revolução, foram brutalmente reprimidos e
novamente ilegalizados e, no plano internacional, o Irão não procurou nenhuma espécie
de aproximação à URSS, mas sim uma oposição às duas super-potências. Em 1979, um
grupo de estudantes fundamentalistas islâmicos assalta a embaixada americana em
Teerão, fazendo reféns os funcionários que aí se encontravam e exigindo a entrega do
Xá (que se encontrava nesta altura em Nova Iorque), para ser julgado. O governo
americano não satisfez essa exigência. Tentou, uns meses mais tarde, uma operação de
comandos de libertação dos reféns através da intervenção por helicóptero na embaixada
em Teerão mas essa operação foi um fiasco completo, o helicóptero foi abatido. A
questão dos reféns só viria a ser resolvida mais tarde pela via diplomática.
427
Apesar de, na última fase do mandato, ter agravado as relações com a URSS, ter
suspendido as negociações SALT, ter impedido a participação nos Jogos Olímpicos de
Moscovo, a sua política foi vista em amplos sectores do eleitorado americano e
caracterizada pelos adversários republicanos como demasiado conciliadora e como
responsável pelo declínio económico e a perda da primazia política dos EUA no mundo.
E foi justamente na base de um discurso de America First, exaltação das tradições
americanas e do individualismo americano, que o candidato republicano, Ronald
Reagan, ganhou as eleições de Novembro de 1980. Reagan era, de sua profissão, actor
de Hollywood. Era um homem que, nos anos 40/50, tinha participado nas audições do
McCarthy no Senado, com denúncias de colegas de trabalho, de figuras do mundo do
cinema americano, que acusava como cúmplices de esquerdismo ou de comunismo.
Ronald Reagan introduz um discurso novo, no sentido da reafirmação das tradições e da
primazia americana, um discurso que não diz respeito apenas à política internacional
mas, também, a toda filosofia de vida e aos princípios de organização social. E
naturalmente, não vem sozinho, até porque não era nenhum intelectual, vem com os
seus conselheiros que, em matéria económica, são os expoentes da escola chamada do
neoliberalismo (que desde então tem sido muito falada e tem correspondido às
orientações económicas predominantes), nomeadamente Milton Friedman (que tinha
sido conselheiro do Pinochet para assuntos económicos no Chile), e Friedrich Hayek,
um prémio Nobel.
O que é que significa este neoliberalismo? Deve-se notar que o neoliberalismo como
doutrina só tem uma relação formal com o liberalismo clássico dos séculos XVIII e
XIX. Aquilo a que se chama neoliberalismo é primacialmente uma doutrina económica,
ao passo que o liberalismo era também uma filosofia e uma teoria política. Como
doutrina económica, o neoliberalismo significa essencialmente a divinização do
mercado, ou seja, das forças economicamente dominantes. Quer dizer, o princípio em
que assenta é que, para dinamizar a economia, é preciso confiar nos criadores de
riqueza, e os criadores espontâneos, naturais, de riqueza são aqueles que já detêm a
riqueza. Portanto, a recusa de qualquer tipo de função interventora, reguladora,
redistribuidora do Estado, a crítica do papel do Estado na economia é, em teoria, o
axioma fundamental dos neoliberais. O neoliberalismo perfilha as doutrinas chamadas
429
feito assim porque o Congresso dos EUA tinha recusado fundos para apoio aos
guerrilheiros contra o governo da Nicarágua. Mas, deste modo, os EUA estavam a
apoiar um governo que era apresentado como inimigo da civilização, o governo iraniano
dos ayatolahs.
Nesta época, os EUA estiveram também envolvidos na hostilização do Irão através do
apoio a um outro personagem que foi nada menos que Saddam Hussein, o líder do
Iraque que, em 1979, desencadeou a guerra contra o Irão. Uma guerra em torno das
questões do petróleo nos domínios de fronteira entre os dois países, que se prolongou
por dez anos e foi extraordinariamente mortífera.
Este tipo de orientação nos EUA teve um correspondente na Europa que, aliás, começou
ainda antes. A orientação neoliberal e monetarista em economia foi inaugurada pela
senhora Margaret Thatcher que levou ao poder o Partido Conservador nas eleições de
1979, com a diferença de que, no caso inglês, havia uma longa tradição de importância
dos sindicatos na vida política, económica e social - os sindicatos eram, até aos anos 90,
membros colectivos do Partido Trabalhista. Além disso, desde o pós-guerra, a Inglaterra
tinha todo um sistema de segurança social de que é símbolo o “National Health Service”
(Serviço Nacional de Saúde), sistema de segurança social muito mais amplo do que o
que existe nos EUA. A orientação do governo Thatcher foi de verdadeira guerra social
contra os sindicatos e de retoma de uma ideologia capitalista com concepções
semelhantes às da época da Revolução Industrial. Como nesse tempo, os pobres são
acusados de serem responsáveis pela própria pobreza, quer dizer, a causa das diferenças
sociais é vista em características psicológicas e o funcionamento da sociedade deixado
às capacidades económicas de cada um.
No caso inglês, as mudanças afectaram sectores fundamentais da economia.
Nomeadamente, o governo Thatcher prosseguiu uma política sistemática de
desnacionalização nas minas, na siderurgia, no petróleo, nos caminhos-de-ferro, nas
telecomunicações, gás, aviação. As minas de carvão foram praticamente abandonadas e
o sindicato dos mineiros, que era uma fortíssima organização, travou uma luta
prolongada pela defesa dos postos de trabalho durante oito meses. Mas os mineiros
foram derrotados e essa derrota teve impacto no recuo de todo o movimento sindical
inglês, de toda a força das trade-unions.
433
Lição 12: O fim do mundo bipolar. Da crise do bloco de leste ao fim da URSS. A
Perestroika e o fim da “guerra fria”.
nesse sentido, fez o confronto entre as duas super-potências situar-se num plano que já
não era conhecido desde havia praticamente um quarto de século. Foi então que se
começou a falar, e com razão, em segunda guerra fria. A expressão “guerra fria” nos
anos 70 praticamente tinha deixado de se usar.
O que me faltou dizer no final da aula passada é que, no entanto, em alguns países
europeus o ritmo da política andou desfasado da evolução económico-social. Isso
deveu-se sobretudo ao impacto das revoluções ou transições dos países da Europa do sul
em 1974/75, ou seja, a revolução portuguesa de 1974/75, a transição espanhola de 75/76
e a mudança política na Grécia, também em 1974. Embora com características e
evoluções diferentes - o caso português foi o de consequências mais profundas e maior
duração -, os três desembocaram numa estabilização nos quadros de democracias
burguesas de regime parlamentar ou semi-parlamentar e em todos se verificou um
crescimento dos movimentos sindicais e, em geral, do campo político e ideológico da
esquerda. Mas também na Itália, embora não tivesse havido nessa altura nenhuma
mudança de regime, foi na segunda metade da década de 70 que se fez sentir a
repercussão política do desenvolvimento da luta de classes, do desenvolvimento social e
sindical da primeira parte da década. Isso traduziu-se no chamado compromisso
histórico entre os comunistas e a Democracia Cristã e mesmo numa temporária inserção
do Partido Comunista Italiano na área da maioria parlamentar, isto é, uma espécie de
coligação parlamentar entre o PCI e a Democracia Cristã, que realizou alguns avanços
políticos e sociais. Foi nos anos 70 que em Itália foi introduzido o divórcio, que
simplesmente não existia por força da Concordata, bem como várias conquistas sociais,
nomeadamente a escala móvel, que ajustava automaticamente os salários à inflação. Foi
também na segunda metade da década de 70 que o PCI obteve maior expressão
eleitoral, chegando a representar 1/3 do parlamento.
Em França, ao longo dos anos 60 e 70, tinha havido uma presença forte do Partido
Comunista e um crescimento das iniciativas da unidade de esquerda em que se começou
a afirmar, desde as eleições presidenciais de 1965, a figura de François Mitterrand, que
depois se torna o líder do novo Partido Socialista Francês, criado em 1969. Mitterrand
falhou as candidaturas à Presidência da República em 1965 e 1974. Também nas
eleições legislativas, nomeadamente as que se realizaram em 1978, falhou a unidade da
esquerda. De maneira que foi já numa fase em que a dinâmica da esquerda estava em
436
dos quais foi o de Cuba, em que uma iniciativa demasiado arriscada como a colocação
dos mísseis acabou por se saldar por um recuo. Khruschov era também acusado de
voluntarismo e oscilação na política económica, de não acertar numa política
equilibrada em relação às reformas que pretendia fazer. Em suma, o seu comportamento
desencadeou reacções, reacções que no entanto não se pretendiam um regresso nem à
guerra fria nem ao stalinismo. Do ponto de vista formal e da maneira como foram
apresentadas pela nova liderança soviética, eram uma retoma do princípio da direcção
colectiva, em oposição ao subjectivismo. De facto, os primeiros anos pós-Khruschov
foram marcados por um triunvirato, ou seja, três personalidades que repartiam os
principais postos do Estado, Leonid Brezhnev como Secretário-Geral do Partido, Alexei
Kosygin como chefe do Governo, e Podgorny como Presidente do Soviete Supremo (o
equivalente a Presidente da República). E embora o facto de Brezhnev ser o líder
partidário lhe desse condições de certa proeminência no contexto do regime, durante os
primeiros anos, até 1968, tratava-se de facto de uma liderança colectiva em que, aliás,
uma parte decisiva das responsabilidades incumbia sobre o chefe do governo, Kosygin,
que foi o responsável de uma nova tentativa de reforma económica.
Desde o princípio da década de 60 que se constatava – e esse era um dos motivos de
crítica a Khruschov – uma tendência para a diminuição das taxas de crescimento do PIB
da União Soviética, embora essas taxas de crescimento continuassem a ser, e tenham
continuado a ser até à fase final da existência da URSS, superiores às dos países
capitalistas. Mas registava-se uma tendência para a diminuição dessas taxas e,
sobretudo, uma produtividade muito inferior à dos países desenvolvidos da Europa
Ocidental, e mais ainda em relação à produtividade nos EUA. Quer dizer, aquilo que
assegurava o crescimento da URSS era a disponibilidade extensiva de uma força de
trabalho abundante e uma economia de pleno emprego baseada num sistema de
planificação, a disponibilidade de recursos naturais (nomeadamente ainda as
possibilidades oferecidas pela exploração dos territórios da Sibéria), e a capacidade do
Estado, como poder económico exclusivo, de reunir meios e concentrá-los para
investimentos de grande importância. Mas, no que dizia respeito à produtividade, ou
seja, à produção por unidade de trabalho - por hora individual de trabalho, por exemplo
- essa produtividade era muito insatisfatória, no confronto com os países desenvolvidos
do mundo capitalista, o que punha directamente em causa toda a ideologia e propaganda
438
soviética. Propaganda que não era apenas publicidade no sentido em que hoje estamos
habituados a que cada partido ou cada empresa faz propaganda para vender o seu
produto ou promover os seus líderes, era uma propaganda que reflectia muito do
impulso da Revolução Socialista e do ideal comunista. A ideia da superação do
capitalismo pelo comunismo, por se revelar mais capaz de resolver os problemas
económicos e sociais, e da União Soviética como a sociedade mais avançada, era uma
ideia que não era só propagandeada mas também acreditada, que fazia parte intrínseca
da ideologia do partido e do Estado soviético. A insuficiência económica punha em
causa tais afirmações de superioridade e, mais concretamente, punha em causa a relação
com a população e a manutenção da credibilidade do regime.
É certo que o regime soviético tinha conseguido atravessar situações históricas
extremamente complicadas como a Segunda Guerra Mundial, através de um regime de
grande autoridade, repressão, disciplina e capacidade de organização, tinha depois, em
certa medida, mudado o estilo do governo com Khruschov. Mas o autoritarismo político
e o idealismo moral não são suficientes para sustentar o apoio da população se os
problemas materiais não são resolvidos. Aliás, os problemas básicos eram resolvidos.
Simplesmente, a partir dos anos 60, por exemplo com a difusão da televisão e o
desenvolvimento, no contexto da coexistência pacífica, de maiores possibilidades de
contacto com o Ocidente, mesmo que só para determinados grupos, põe-se cada vez
mais a possibilidade de comparação entre os níveis de vida na URSS e no mundo
ocidental, e essa comparação é desfavorável à URSS.
Há, em resumo, um problema de corresponder à necessidade de melhoria das condições
de vida da população, e é nesse quadro que se situa a análise dos problemas económicos
e a proposta de reformas. Essencialmente, o problema que o sistema de produção
planificada colocava, é que o plano estabelecia objectivos quantitativos detalhados para
os vários sectores da produção, sem uma relação com a procura e o gosto dos
consumidores. Ou seja, por critérios políticos era determinado aquilo que, quer em
termos de bens de produção, quer em termos de bens de consumo, era necessário para a
sociedade. Mas o mecanismo de adequação que existe, no capitalismo, entre a produção
e o consumo através do mercado, esse tipo de informação que o mercado fornece e
determina os preços em função da procura, falta num sistema em que os preços são
determinados por critérios políticos abstractos, sem uma informação permanentemente
439
as lâmpadas de maior capacidade. São exemplos caricatos e que obviamente não eram
insuperáveis no quadro do sistema de planificação mas que apontam para as
consequências desse mecanismo, de carácter burocrático, na fixação dos objectivos e,
consequentemente, nos modos de execução do plano.
A reforma de Kosygin - baseada nos estudos de um economista que se tornou muito
conhecido na época, chamado Lieberman - procurava incentivar a autonomia das
empresas que, na medida em que fossem mais eficientes, poderiam realizar lucros,
acumular capital e reinvesti-lo. Isto era acompanhado por incentivos materiais para os
produtores, ou seja, mesmo no quadro da propriedade socialista dos meios de produção,
isto é, do monopólio do Estado sobre os meios de produção, os gestores e trabalhadores
das empresas mais eficientes eram compensados pelo reconhecimento da maior
eficiência alcançada. Alguma evolução houve neste aspecto, sobretudo entre os anos
1964 e 1968, mas os incentivos à autonomia das empresas implicavam alguma
democratização da gestão, implicavam necessariamente uma margem de discussão e de
decisão dos colectivos das empresas na própria escolha dos materiais, dos métodos e
ritmos da produção, da fixação de preços, etc. E, por seu turno, essa possibilidade de
discussão no colectivo das empresas, para ser eficaz, não podia ser independente de uma
maior amplitude de auscultação dos mercados, isto é, dos consumidores, da população
em geral. Como as coisas não existem separadas e, no fundo, a definição daquilo que é
prioritário em termos económicos não anda separado daquilo que são os gostos, as
orientações, as opções de vida, às duas por três vê-se que a autonomia da gestão e a
maior iniciativa das empresas tinha também implicações no aspecto político, isto é,
implicava liberdade de imprensa e liberdade de discussão porque só nesse quadro,
também, se podiam formar tendências colectivas de opinião articuladas com opções em
termos económicos. Esta experiência foi feita, e até certo ponto com aceitação da União
Soviética, na Checoslováquia que, no final de 1967, princípio de 1968, teve uma
mudança na liderança política que se orientou justamente neste sentido – era um dos
países onde já havia uma certa tradição de elaboração acerca dos temas económicos e da
reforma económica. É uma das questões que estão na génese da chamada “Primavera de
Praga”, ou seja, a tentativa da liderança política de Dubcek de liberalizar, abrir,
democratizar o sistema político. Mas a “Primavera de Praga” correu mal, isto é,
conduziu a uma situação em que o partido acabou por perder o controlo do processo, o
441
que acabou por levar – como sabem, porque já falámos nisso anteriormente – à
intervenção armada do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia e ao fim da “Primavera de
Praga”. Portanto, foi uma experiência de certo modo traumatizante e com impacto
mundial, traumatizante no movimento comunista internacional e que pôs em causa e
anulou toda a orientação que tinha estado ligada à “Primavera de Praga”. Teve, também,
consequências na URSS, e uma das razões porque teve consequências foi que o fracasso
da Checoslováquia reforçou na URSS as tendências e os grupos sociais, nomeadamente
ligados à direcção política do Estado, que viam com uma posição de reserva e de
hostilidade qualquer tipo de abertura do sistema, porque ela iria pôr em causa o
monopólio do partido e, nomeadamente, a liderança da camada dirigente instalada. Não
se trata apenas de uma questão de defesa de grupos relativamente privilegiados. Eles
apontavam, com razão, que uma dinâmica apostada na melhoria da produtividade
levava inevitavelmente à competição entre empresas, a melhoria de qualidade de
determinados produtos inevitavelmente traduzir-se-ia em alta dos preços e,
consequentemente, inflação. Essa crítica, e até alguns aspectos negativos das reformas
realizadas, tinham também eco em sectores da população que achavam que os
dinamismos no sentido do mercado iam pôr em causa a estabilidade dos preços e, com
ela, a sua estabilidade de vida.
Mas não foi só o caso da Checoslováquia que influenciou este retrocesso da tentativa de
reforma económica na URSS. Desde o princípio dos anos 70, houve problemas
económicos com graves consequências sociais na Polónia. A Polónia era um país que,
em 1956, na altura da crise húngara e da invasão da Hungria pela União Soviética, tinha
tido uma crise semelhante, só que, no caso polaco, a crise foi superada com êxito e
pelos meios internos - o líder comunista polaco, Gomulka, tinha uma grande
popularidade e conseguiu superar a crise. Mas a Polónia teve algumas características
particulares no quadro do conjunto dos países de leste, por exemplo, a reforma agrária
nunca foi realizada completamente, houve sempre um importante sector de propriedade
privada na agricultura e, também, mais do que noutros países, certos sectores de
propriedade privada no pequeno comércio, nomeadamente. Isso implicou alguns
aspectos de atraso económico que a Polónia, no princípio da década de 70, tenta
compensar com alguns grandes investimentos, mas gerou-se neste contexto uma espiral
de subida dos preços, que esteve na origem de grandes greves. Estas foram defrontadas
442
internacional, a URSS não podia viver completamente à margem disso. Com a entrada
na coexistência pacífica e depois a passagem à détente, ao desanuviamento, deu-se uma
intensificação das relações económicas, que oferecia também oportunidades para a
União Soviética. O resultado do fracasso da reforma económica é que a URSS vai, em
relação a alguns dos problemas principais, e designadamente aos problemas que tinha
em matéria agrícola, aproveitar as oportunidades de comércio, nomeadamente com os
EUA, no sentido de adoptar a solução mais fácil para os seus problemas agrícolas, ou
seja, recorrer crescentemente às importações de trigo e outros cereais, em troca de
petróleo e gás natural que, justamente nos anos 70, têm uma importância enorme para o
mundo capitalista. Em suma, um dos aspectos paradoxais da situação da URSS dos anos
70 é que, ao mesmo tempo que é a superpotência alternativa aos EUA e a representante
de um “sistema socialista mundial” alternativo ao capitalismo, ela está, de facto, numa
situação de dependência crescente em relação ao mundo capitalista. Gera-se um tipo de
situação que, neste aspecto, não é muito diferente da relação normal entre os países do
terceiro mundo e os países capitalistas desenvolvidos, isto é, a URSS torna-se um
fornecedor principal de matérias-primas, como é o caso do petróleo e do gás natural,
para receber em troca equipamentos industriais e tecnologia. Um outro aspecto que vai
ser cada vez mais determinante e que vai marcar, mais ainda do que a URSS, os outros
países socialistas da Europa de Leste, é o recurso ao crédito de instituições financeiras
ocidentais, incluindo dos governos ocidentais.
No que diz respeito à Europa de Leste, essa evolução não foi simplesmente espontânea.
Foi decisiva a Ostpolitik (“política do leste”) inaugurada por Willy Brandt na segunda
metade da década de 60 e prosseguida de uma maneira muito sistemática quando Willy
Brandt se torna chefe do governo da RFA, em 1969. A abertura ao leste, a
intensificação das relações com a Europa de leste, incluindo a RDA, foi sempre vista
pelos sociais-democratas alemães como um meio de forçar a abertura das economias
desses países e, conhecendo a inferioridade em que estavam, explorar essa inferioridade
no sentido de criar mecanismos de dependência. Isso deu-se de uma forma muito
intensa e não inocente mas, obviamente, foram também opções dos governos da Europa
de Leste, que se julgavam seguros de controlar politicamente tal dependência. Portanto
há, nesta época, uma forte abertura às importações na generalidade dos países da Europa
444
Convém ter presente que a situação desta primeira metade dos anos 80 era
invulgarmente tensa, embora não tenha havido nenhum acontecimento comparável ao
que foi, por exemplo, a crise de Cuba em 1962, ou mesmo às repercussões da guerra da
447
Coreia nos princípios dos anos 50. A coexistência pacífica não estava abertamente posta
em causa mas, nomeadamente com a questão dos euromísseis, o ambiente internacional
era muito pesado. Foi uma época em que se realizaram importantes manifestações pela
paz em vários países europeus e, embora não se falasse nisso, havia uma preocupação
com o risco de uma guerra nuclear.
Com aquilo que eram os arsenais disponíveis, o conflito nuclear tinha-se tornado
qualquer coisa de dimensões impensáveis. Scipione Guarracino indica, e é um número
expressivo, que os EUA e a URSS dispunham em conjunto de 50 mil ogivas nucleares,
o que corresponde um milhão e seiscentas mil bombas atómicas como a de Hiroshima.
Escreve também uma frase que corresponde muito àquilo que recordo sobre a época:
“1983 tornou-se rapidamente o ano em que as tensões entre as duas grandes potências
alcançaram o mais alto grau desde 1962, senão mesmo desde 1950, e por todo o triénio
1982/84 voltou a pairar a atmosfera de ‘holocausto nuclear’ e fim do mundo que a
distensão tinha feito parecer definitivamente arquivada.”99
Neste contexto, surge de facto como uma surpresa, quando Konstantin Chernenko
morre em Março de 1985, a eleição para Secretário-geral do PCUS de uma figura do
Politburo soviético relativamente jovem (tinha 50 e tal anos), Mikhail Sergeyevitch
Gorbatchov, que por sinal tinha estado, poucos anos antes, em Portugal, num Congresso
do PCP. A sua eleição foi surpreendente, porque se tinha de tal maneira identificado a
liderança soviética com uma gerontocracia que este simples facto de ser um sujeito
nascido nos anos 30, que tinha feito toda a sua vida adulta e carreira política já depois
da morte do Stalin, foi uma surpresa. Mas uma surpresa pequena em comparação com o
que estava para vir.
As primeiras aparições em público do Gorbatchov não tiveram nada de especial, a não
ser o facto de que ele desde cedo se empenhou em conversações com os líderes dos
países ocidentais. Um dos primeiros encontros foi logo em 1985, poucos meses depois
de ter tomado posse, uma cimeira com Reagan em Genebra, e em 1986 houve outra em
Reykjavik, na Islândia.
A preocupação com a crise económica, com os impasses da economia soviética, ficou
também clara nos seus primeiros discursos. Aliás, as primeiras iniciativas para a
99
Storia degli ultimi sessant’anni, p. 260-261.
448
É também por esta altura, em 1987, que Gorbatchov publica uma obra que foi muito
divulgada em todo o mundo e cujo título deu o nome ao seu programa e é, de algum
modo, indissociável da sua própria existência política, um livro intitulado Perestroika.
“Stroit” significa construir, “pere” é um prefixo que implica alteração, “Perestroika” é
portanto a reconstrução ou reestruturação. A palavra “Perestroika” ficou não só como
título do livro mas como o símbolo daquilo que ele se propunha fazer, que era uma
remodelação ou uma alteração profunda das estruturas do Estado Soviético, em suma,
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do regime socialista tal como ele existia e que, na sua configuração fundamental, no que
diz respeito à estrutura política, à direcção do partido sobre o Estado, ao monopólio de
poder do partido comunista e ao monopólio económico do Estado, era o mesmo sistema
desde os anos 30.
Não foi só um slogan e um programa, foi também um tema de certo alarde doutrinário.
O livro Perestroika, aliás, para quem o lesse à procura de uma informação sobre os
problemas internos e internacionais da União Soviética e esperasse encontrar citações
do Marx e do Lenin, surpreendia, pela absoluta ausência de fundamentação marxista,
embora houvesse referências a algumas ideias do Lenin do período da NEP. No
essencial, apresentava-se como um novo pensamento para a realidade completamente
nova da sociedade contemporânea, contendo inclusive formulações que implicitamente
punham em causa toda a tradição do marxismo, nomeadamente a ideia da prevalência
dos interesses gerais da humanidade sobre a luta de classes. É uma formulação que não
faz sentido do ponto de vista marxista, porque a teoria da luta de classes e da superação
da luta de classes através da revolução socialista, na perspectiva marxista é, justamente,
a abordagem da contradição essencial das sociedades modernas. Havia no livro um
certo idealismo de formulações, ao mesmo tempo que uma pretensão de inovação, não
apenas prática mas doutrinária, teórica, global.
Em termos concretos e em relação aos problemas económicos, a Perestroika iniciou
uma orientação que reduzia – e que reduziu, na prática, drasticamente – o papel da
planificação no funcionamento da economia soviética e, pelo contrário, incentivava as
empresas a adoptarem princípios de cálculo económico clássico, investir naquilo que dá
lucro, adoptar os procedimentos mais vantajosos em termos de poupança de recursos.
Implicitamente, este apelo ao cálculo económico e à autonomia das empresas implicava
a introdução de lógicas de concorrência. É certo que não havia na União Soviética
capital privado, pelo menos com importância significativa, em princípio tratava-se de
uma redinamização das empresas do Estado mas, de facto, logo a seguir, foram também
introduzidas leis que abriam espaço à constituição de empresas de economia mista, isto
é, com participação dos privados e até, em certos sectores, de uma maneira
generalizada, às pequenas empresas. Esta orientação conduziu, nesses anos, a uma
proliferação de pequenos negócios de todo o tipo.
450
Na RDA, nos anos 70 e no quadro dos acordos com o Willy Brandt, passou a ser
autorizada a emigração dos maiores de 65 anos e, no quadro do crescente intercâmbio
científico e técnico, havia pessoas, nomeadamente na área da cultura, do ensino e das
artes, que tinham a possibilidade de viajar para o estrangeiro, e algumas aproveitavam
para se exilar na RFA. Além disso, tendo Berlim Ocidental como um enclave no meio, a
RDA tinha tido que aceitar o acesso da generalidade da população à televisão da
Alemanha Ocidental e consequente influência. Apesar dos relativos êxitos económicos,
o autoritarismo inerente ao regime era sentido por largas camadas da população.
Nos anos 80, é também um dos países crescentemente sujeitos à pressão da dívida
externa e onde, por isso, as condições económicas se agravam. E é um país que vai
rejeitar desde o início a orientação das reformas de Gorbatchov (o que tem a ver com
muitos factores: a tentativa de preservar a sua independência em relação à RFA, o
próprio facto histórico de que a RDA tinha sido uma criação dos comunistas
perseguidos no tempo do Hitler - um certo carácter de intransigência política estava
presente na cultura histórica do comunismo alemão, talvez de uma forma mais marcada
do que noutros países; o próprio Honnecker, o líder do SED, era um homem que vinha
do tempo da luta contra Hitler). O certo é que a RDA é um dos países que recusam
adoptar qualquer tipo de orientação semelhante à Perestroika mas, como a influência
desta também se faz sentir em círculos da sociedade alemã-oriental, o resultado é um
agravamento do clima repressivo. Bastava ter passado na RDA durante essa época para
sentir, nesse aspecto, um agravamento do clima político na relação entre os cidadãos e o
regime entre o final dos anos 70 e os meados da década de 80.
No caso da Checoslováquia, a situação é ainda diferente e ficou sempre marcada pela
intervenção de 1968 que, no entanto, nunca erradicou completamente a oposição das
correntes críticas. Desde 1977, constituiu-se um movimento dissidente chamado “Carta
77”, encabeçado por um escritor relativamente famoso chamado Vaclav Havel, que
entretanto foi Presidente da República e ainda hoje aparece nos jornais. A “Carta 77”,
por um lado, era proibida e perseguida mas, ao mesmo tempo, era tolerada e acabou por
se institucionalizar como uma espécie de oposição permanente. No princípio de 1989,
Vaclav Havel foi condenado a nove meses de prisão mas, na sequência, houve um
movimento de manifestações que acabou por levar à demissão de Gustav Husák, o líder
comunista.
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Em suma, havia na Europa de Leste situações diversas, cada uma delas potenciadora de
eventuais crises. Acrescenta-se a isto a influência crescente da Igreja católica e o
proselitismo de João Paulo II, cuja presença na Polónia já tinha contribuído
decisivamente para os problemas da década de 80. Todo o papado do João Paulo II foi
muito marcado por um intervencionismo político, que se fez sentir igualmente na
Hungria, onde uma parte da população era católica.
Na Polónia, a dívida externa galopante implicou como consequência a inflação e esta,
por seu turno, gerou agravamento das oposições. No quadro da influência da
Perestroika, o governo evolui para uma tentativa de conciliação com o Solidarnosc e, no
princípio de 1989, cria a chamada “mesa redonda”, ou seja, uma instituição de
discussão política entre o governo e o Solidarnosc como oposição, com a mediação da
Igreja, reconhecendo a necessidade de uma reforma política. O resultado prático desta
“mesa redonda” vai ser a tomada do poder pela oposição. As eleições de Junho de 1989,
para a composição de uma parte do Parlamento, dão a maioria à oposição. O regime
reservou um certo número de lugares, mas isso tornou ainda mais sensível o seu carácter
anti-democrático e, em resultado disto, dessas eleições de Junho de 89 saiu a nomeação
de um representante católico como chefe do governo e a evolução para um regime
diferente.
Na Hungria a reforma económica teve um certo êxito mas o líder comunista, Janos
Kadar, que já tinha uma certa idade, em 1988 foi obrigado a demitir-se e, em paralelo,
constituiu-se um partido de oposição chamado “Fórum Democrático” que, em 1989,
organizou agitação, nomeadamente conseguiu desenvolver essa agitação em torno dos
funerais de Imre Nagy, o homem que tinha sido preso pelos soviéticos e depois fuzilado
em consequência dos acontecimentos de 1956. Isto foi uma espécie de vingança dos
insurrectos de 1956 e, nesta sequência, realizaram-se eleições que conduziram à vitória,
já em 1990, do “Fórum Democrático”.
consentido porque a Hungria era um país do bloco socialista, da Hungria passavam para
a Áustria e da Áustria para a Alemanha onde eram recebidos com todas as honras –
qualquer alemão que quisesse sair da RDA tinha, nesta época, a garantia de ser bem
acolhido e de ter emprego na RFA. O movimento de emigrações aumentou muito e, na
sequência, muita gente começou também a procurar asilo nas embaixadas ocidentais, na
própria RDA ou na Hungria. Entretanto, a Igreja Evangélica teve também um papel no
apoio aos movimentos de contestação que, a partir de Outubro, organizam
manifestações. Em Outubro, Erich Honnecker demite-se (também já estava velho), é
substituído por Egon Krenz, ex-dirigente da organização juvenil, o qual entra em cena
com um amplo programa de reforma e abertura política, que a oposição toma à letra. As
manifestações, que já tinham começado antes, não cessaram, simplesmente o êxito
obtido com a demissão de Honnecker impele os manifestantes a uma atitude mais
revolucionária, e é nesse contexto que começa o assalto e o derrube do muro de Berlim.
Para a liderança da RDA era impensável, nesta altura, fazer cessar o movimento através
de uma intervenção de força – não teria o apoio da URSS para esse efeito, e por outro
lado isso seria contraditório com todo o discurso de abertura política que a nova
liderança tinha assumido. Portanto, aceitaram a abertura da fronteira e, nos meses
seguintes, desenvolveu-se um processo de evolução, discussões a todos os níveis,
formação de novos partidos e associações, aliás num quadro que era ainda de forte
presença de ideias socialistas. No próprio SED, o partido comunista no governo, havia
muitos que defendiam a subsistência da RDA como Estado socialista reformulado nas
suas estruturas, aceitavam a supressão da polícia política, a Stasi, e reivindicavam-se de
uma ideia de democracia socialista: em 1990, o SED (Sozialistische Einheitspartei
Deutschlands, Partido Socialista Unificado da Alemanha), adoptou um novo nome, PDS
(Partido do Socialismo Democrático). Houve várias figuras da intelectualidade da RDA
e da própria RFA, nomeadamente na esquerda do Partido social-democrata, que
defendiam que a RDA devia subsistir, e ao mesmo tempo aproveitar a oportunidade
para se transformar. Por exemplo, Günter Grass, o famoso escritor da Alemanha
ocidental, era contrário à anexação da RDA pela RFA. Mas os governantes da RFA,
nomeadamente o Chanceler Helmut Kohl, apostaram tudo em apressar a unificação.
Não há dúvida que se tornou maioritária na opinião pública da RDA a vontade de fusão,
de unificação com a RFA. Antes da queda do muro, nas manifestações gritava-se “Wir
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sind das Volk” (“nós somos o povo”), esse slogan era já uma resposta à propaganda do
regime, que tinha como lema “fazer tudo para o povo”. Este mesmo slogan,
ligeiramente alterado, vai ser a bandeira dos partidários da unificação. Passam do “Wir
sind das Volk “ (“o” povo) para “Wir sind ein Volk” (“um” povo): um povo único nas
duas Alemanhas devia ser unificado numa única Alemanha.
Funcionou nisto, decisivamente, a atracção da superioridade da economia da RFA, a
força do DM (marco alemão). Helmut Kohl assegurou condições extremamente
vantajosas (no imediato) para a unificação e para a reforma monetária, nomeadamente
aceitou o princípio da troca do marco da RDA ao par com o marco da RFA quando, na
prática, o marco da RDA tinha menos poder de compra. Além disso, cada cidadão da
RDA que ia visitar a RFA, nestes dias a seguir à queda do muro, recebia logo à entrada
uma espécie de bolsa que dava para as despesas de uma visita turística. Deste modo,
quando em Março de 1990 se realizam as eleições, vence a CDU, ou seja, o Partido
Democrata Cristão, do Chanceler Kohl. Destas eleições praticamente resultou a decisão
pela reunificação.
Entretanto, num encontro em Moscovo, em Setembro de 1990, de representantes das
potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, é decidido abolir os acordos de
Potsdam sobre a Alemanha, acabando com os controlos internacionais estabelecidos
desde 1945. Na prática, isto significava aceitar a anexação da RDA pela RFA.
O único caso mais dramático de fim de regime foi o da Roménia que era, aliás, uma
situação particular, porque a Roménia tinha uma liderança muito pessoalizada na figura
de Nikolai Ceausescu, era, pode dizer-se, um regime de poder pessoal. Também na
Roménia houve grandes manifestações anti-Ceausescu, mas foram de alguma maneira
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aproveitadas por uma oposição interna ao próprio partido, que manteve o poder,
simplesmente julgou, condenou e fez executar Nikolai Ceausescu e sua mulher Helena.
Tendo os partidos comunistas perdido o poder nos países de leste, logo a seguir, em
1991, dissolve-se o COMECON, o mercado comum da Europa de Leste, e dissolve-se a
aliança militar que era o Pacto de Varsóvia.
Num curto espaço de poucos anos, a realidade tinha ultrapassado largamente aquilo que
era o projecto do Gorbatchov que, segundo Guarracino, se pode sintetizar como um
projecto defensivo, e parcialmente de retirada, mas que contava com as capacidades dos
partidos comunistas no poder para reconquistarem o consenso, e se apoiava na
convicção de que as reformas económicas rapidamente teriam dado resultados. Nada
disto aconteceu. Pelo contrário, ao colapso dos países do bloco de leste juntou-se a
precipitação da crise económica na URSS que, em 1990, registou pela primeira vez uma
diminuição do crescimento do produto e, em 1991, uma diminuição do PIB em 17%, o
que é uma queda absolutamente catastrófica, num quadro de falências e desemprego que
conduz à desvalorização do rublo e, inevitavelmente, ao desprestígio interno de
Gorbatchov. Gorbatchov ainda se iludiu durante algum tempo sobre a capacidade de
sustentar o poder. Continuou a viajar e a ser muito falado na imprensa internacional
mas, no plano interno, perdeu completamente o prestígio e, sobretudo, vai-se ver
crescentemente isolado entre dois grupos que se reforçam, para um lado e para outro.
Por um lado, aquilo que se pode considerar a esquerda, aqueles que, mesmo tendo
projectos reformadores, pretendem manter a União Soviética como Estado socialista
(nomeadamente Ligatchov), por outro lado aqueles que querem liquidar a União
Soviética e integrar completamente a Rússia na lógica das relações económicas e
políticas internacionais e que vão adoptar como líder o chefe do Partido Comunista da
Federação Russa, Boris Ieltsin. Ieltsin ganha uma efectiva popularidade e acaba por
forçar o afastamento de Gorbatchov.
Um factor decisivo da crise que irá desembocar na dissolução da URSS é o
agravamento do problema das nacionalidades que, aliás, alguns analistas já desde os
anos 70 apontavam como um potencial factor de colapso da URSS.
Nos anos 70 era quase impensável que a URSS e o socialismo soviético alguma vez
deixassem de existir, no entanto houve quem começasse a pôr essa hipótese. Uma das
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entrou-se numa fase histórica de que desapareceu a estruturação que era conferida
justamente pela existência desse bipolarismo.
Por muito que hoje se descreva a guerra fria como a situação característica do
bipolarismo da segunda metade do século XX, por muito que se diga que a guerra fria
significava uma ameaça ou uma iminência de possível guerra nuclear, a verdade é que a
“guerra fria” - sobretudo com a evolução que as coisas tiveram ao longo dos anos 60 e
70 no sentido da coexistência e do desanuviamento -, representou uma estrutura de
organização que condicionava o desenvolvimento dos conflitos locais ou regionais.
Desaparecida esta possibilidade de condicionamento, esses conflitos multiplicaram-se.
Por outro lado, na medida em que a proliferação nuclear, apesar dos tratados existentes,
se intensificou muitíssimo, porque hoje os Estados que possuem a arma nuclear são
vários, é evidente que a possibilidade de um conflito local ou regional vir a traduzir-se
na utilização da arma atómica é muito menos controlável do que era anteriormente.
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