Livro Sofia

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Nêmia Ribeiro Alves Lopes

Nêmia Ribeiro Alves Lopes

1ª Edição
Montes Claros / MG – Brasil
Editora do IFNMG
2022
Copyright © da Editora do IFNMG
Editor Executivo: Edinei Canuto Paiva
Editora Executiva: Andreia Pereira da Silva
Editor Executivo: Gustavo Henrique Silva de Souza
Bibliotecária Responsável: Elciax Cristina de Sousa
Revisora Responsável: Cinthia Maritz dos Santos Ferraz Machado
Diagramação e Capa: Nêmia Ribeiro Ales Lopes e
Marcos Aurélio de Almeida e Maia
Revisão Final: Nêmia Ribeiro Ales Lopes e
Cinthia Maritz dos Santos Ferraz Machado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – IFNMG

Índice para Catálogo Sistemático


1. Literatura brasileira

2022
Realizado depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora do IFNMG
Todos os direitos desta edição reservados pela Editora do IFNMG
Tel.: (38) 3218-7326 – E-mail: [email protected] / [email protected]
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Conselho Editorial:

Alfredo Costa (IFNMG/ Campus Pirapora)


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Christiano Titoneli Santana (IFNMG/ Campus Pirapora)
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Edmara Moreira Cerqueira (IFNMG / Campus Pirapora)
Ednilton Moreira Gama (IFNMG / Campus Almenara)
Eliane Macedo Sobrinho Santos (IFNMG / Campus Araçuaí)
Fabrício Silveira dos Santos (IFNMG / Campus Salinas)
Hércules Otacílio Santos (IFNMG / Campus Araçuaí)
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Luana Aparecida Matos Leal (IFNMG / Campus Salinas)
Marcos Aurélio Duarte Carvalho (IFNMG/ Campus Montes Claros)
Mariana Mapelli Paiva (IFNMG / Campus Almenara)
Marilia Dutra Massad (IFNMG / Campus Salinas)
Ronaldo Medeiros dos Santos (IFNMG / Campus Salinas)
Tatianne Gizelle Marques Silva (IFNMG / Campus Salinas)
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 08
CAPÍTULO 1 ................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 2 ................................................................................................................... 45
CAPÍTULO 3 ................................................................................................................... 77
ALGUMAS ÚLTIMAS REFLEXÕES .......................................................................... 101
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 104
PREFÁCIO

Apresentação

Marcas na literatura de autoria feminina

O romance brasileiro escrito por mulheres se preocupa em expor a psicologia de


suas protagonistas, mas tal expressão acompanha normalmente a apresentação de
problemas e situações sociais que afetam a mulher.
Cristina Ferreira Pinto

É notório observar que, ao longo da nossa história literária, muitas referências ao mundo da es-
crita foram atribuídas à atividade, considerada primorosa, da ação masculina.
Contudo, sabe-se atualmente que, desde tempos remotos e em distintas nacionalidades, muitas
mulheres resistiram e perscrutaram caminhos no campo das letras e fora dos limites do lar, espaços nada
favoráveis ao domínio feminino. No caso do Brasil, o desprestígio dado à mulher na formação do
cânone literário perceptível a partir de uma crítica incipiente no século XIX, ressalta que os homens es -
critores tiveram maior reconhecimento em sua produção, já que, até meados do século XX, não con-
stavam muitos nomes de mulheres reconhecidamente competentes em nossos compêndios.
Porém, o empenho de pesquisadores e, em grande medida, de mulheres pesquisadoras envolvidas
na revisão dessa historiografia literária, tem resgatado muitas figuras importantes que marcaram o con-
texto de seu tempo por meio de uma produção significativa na qual se visualiza fortes expressões psi-
cológicas e sociais notáveis ao que se refere à história das mulheres. Como argumenta Cristina Ferreira
Pinto, em O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (1990), em trecho supracitado, são
explícitas, nos registros feitos por mulheres, essas marcas de suas vivências, anseios, inquietações, limi-
tações e, sobremaneira, as implicações de várias ordens que essa peculiar trajetória implica sobre a mul-
her. De modo genérico, ressaltamos que tais inferências a esse universo se propaga, incisivamente, na
representação de protagonistas e demais mulheres presentes nas obras de autoria feminina. Esse traço
autoral, pessoal, temporal e de gênero inscreve, nesses textos, um alto grau de reflexibilidade.
Se eram raras as referências a textos de mulheres em nossa historiografia literária, graças a
pesquisas a partir do século XX, podemos citar expressivos nomes de literatas como Maria Benedita
Câmara Bormann, Maria Firmina dos Reis, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Maria Sabina,
Gilka Machado, Ercília Nogueira Cobra, dentre outras. Empenhadas, começavam a esboçar documentos
que falavam da vida da mulher e suas aspirações, apesar de serem pouco lidas e valorizadas pelo público
e pela crítica. No percurso do século XX, vimos surgir, cada vez com vozes mais intensas, produções de
mulheres como Lúcia Miguel Pereira, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Rachel de Queiroz, Patrícia
Galvão. Essas e outras escritoras marcaram o itinerário de muitas outras que estavam por vir. Em alguns
casos de produção feminina, é sabido que reconhecidos escritores duvidaram da autoria da mulher para
determinados registros, o que, por um lado, põe em evidência a marginalização do poder de argumen-
tação feminina e, por outro lado, comprova a certeza de que, num contexto hegemonicamente mas-
culino, a ação da mulher é considerada singular, dotada de experiências próprias, o que viria a configurar
e questionar o que entendemos hoje como escrita feminina.
Com mudanças de várias ordens acontecendo no plano mundial e nacional, percebe-se, pari
passu, na segunda metade do século XX, um número crescente de mulheres atuantes no mundo das le-
tras. Clarice Lispector, Carolina de Jesus, Lygia Fagundes Telles, Adélia Prado, Ana Cristina César, Ana
Maria Machado, Sônia Coutinho e muitas outras que, de vozes silenciadas, tornaram-se emblemáticas da
enunciação da saga feminina.
Ecoando num cenário em que o discurso da igualdade visa à diminuição das distâncias entre o
tratamento dado ao homem e à mulher, essas vozes de mulheres ainda são marcadas por razões étnicas,
sociais, políticas, ideológicas e de gênero. Nessa perspectiva, tais vozes se digladiam a fim de se
tornarem consagradas. Sob esse pressuposto, muitos discursos na transição do século XX para o XXI
procuraram demonstrar maior equivalência entre homens e mulheres, todavia, as práticas em vigor reve-
lam que, em sua maioria, as ações de homens e de mulheres são julgadas, analisadas e sentenciadas a
partir do critério de gênero. Isso é o que a escrita de autoria feminina, sobretudo em fins do século XX e
início do XXI, tende a demonstrar. E, com essa inquietação e trazendo em si o poder da palavra, a es -
critora baiana Sônia Coutinho imprime, em sua ficção, esse lugar de prazer, de realização, de angústias e
de violência tão proeminentes na vida da mulher.
É com um olhar atento e apurado nessa questão que Nêmia Ribeiro investe, nesta proposta que
ora apresento, mergulhando no universo coutiniano, em particular, na obra Atire em Sofia. Fazendo um
trabalho de pesquisa empenhado, escava bibliotecas, revira acervos para mergulhar no mundo da autora
e, assim, conhecer melhor e nos mostrar não só o percurso da escritora Sonia Coutinho, mas também
para nos permitir a compreensão dos anseios, das preocupações e da essência dos prazeres e das angús-
tias femininas desse contexto de modernidade. Com a astuta percepção de pesquisadora, Nêmia Ribeiro,
neste estudo, deixa entrevisto que conhecer a escrita de autoria feminina significa muito para o entendi-
mento da memória da história das mulheres.

Para isso, vasculha a vida pessoal e profissional da autora baiana para nos mostrar aspectos de gêne -
ro, identidade e representação por meio dos dilemas das personagens na dinâmica da vida moderna, entre-
cruzada pelas ideias ainda patriarcais e sexistas. Nessa empreitada, Nêmia Ribeiro nos põe diante de um es -
tudo no qual os méritos são inegáveis: situa a escritora Sônia Coutinho, ainda pouco discutida no meio aca -
dêmico, no centro do debate literário e mostra como a escrita de autoria feminina traz marcas sinuosas das
experiências de mulheres, o que nos faz criticar, conhecer e registrar nossa própria história.

Por fim, se a ficção de Sônia Coutinho, dentre outros aspectos, fascina pelo realismo e pela coe-
rência com a dinâmica da vida da mulher no mundo moderno, a leitura realizada por Nêmia surpreende
pela sensibilidade do olhar feminino e pela maturidade crítica com que projeta as reflexões sobre o em-
bate psicológico e social da mulher coutiniana. Sob tais pressupostos, tornar público o texto das páginas
seguintes não só deslinda a arte da escritora baiana como, especialmente, convida-nos a uma apreciação
acerca da relevância da escrita de teor e autoria feminina.

Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida (Unimontes)


INTRODUÇÃO

Inicialmente, é preciso dizer que esta obra é fruto de minha pesquisa de mestrado, feita na Uni-
versidade Estadual de Montes Claros, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários, na
qual me dediquei a analisar a representação do feminino na obra Atire em Sofia, da escritora baiana Sô-
nia Coutinho. As vicissitudes que me levaram a escolher a temática são muitas e derivam de razões di-
versas, como o gosto pela literatura mesma e seus processos de produção, reprodução e de (re)(a)presen-
tação das possibilidades do real, bem como o meu interesse nas questões de gênero e na representação
da condição da mulher, entre outras razões.
Nesse sentido, é preciso, a princípio, apresentar ao leitor quem foi Sônia Coutinho, cuja literatura
despertou o meu interesse de pesquisa e, posteriormente, os esforços de publicação deste texto, bem
como é necessário elucidar o enredo sobre o qual são evocadas as questões que aqui pretendo tratar.
Também é preciso dizer, de antemão, que os motivos que me conduzem a este esforço baseiam-se no de-
sejo de compartilhar com leitoras e leitores, sejam do meio acadêmico ou não, as perspectivas sobre um
importante texto literário como o de Sônia. É com este estímulo que assinalo e busco diálogos dentro da
temática da condição feminina.
Sônia Coutinho se inseriu no contexto literário desde a sua juventude, foi jornalista, tradutora e
escreveu romances e novelas, cujas temáticas sempre se voltaram para a perspectiva do mundo femini-
no, bem como a inserção social das mulheres. Ela foi uma ficcionista reconhecida, recebendo prêmios
importantes no cenário brasileiro como o prêmio Status de Literatura e o Prêmio Jabuti. Com este últi-
mo, foi premiada por duas vezes.
Em Atire em Sofia é apresentada a vida de um grupo de amigos que costumava se reunir na déca-
da de 1960. Todavia, a narrativa se dá cerca de vinte anos depois, através das memórias dos persona-
gens. Neste romance, temos diversas mulheres que expõem a condição social à qual estavam submetidas
desde a década de sessenta até os anos oitenta. Isso pode ser observado por meio de três gerações distin-
tas de mulheres presentes na obra, que são a geração da mãe de João Paulo e a mãe de Sofia, a geração
da própria Sofia, personagem central da obra, e a de suas filhas, em especial, a de Milena. Tais gerações
evidenciam experiências, os conflitos distintos em seus respectivos tempos sociais e as ideologias pre-
sentes nesses contextos, conduzindo o leitor à compreensão do desenvolvimento gradual da vida social

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da mulher. Outras personagens contribuem para a observação dessas questões, como Matilde que, em
sua representação, traz uma menção crítica à educação convencional dada às mulheres. Matilde foi enga-
nada e traída pelo marido, vindo a perder tudo, o que traz à tona o tema da educação repressora que pre -
para a mulher para uma posição ingênua. É nesta perspectiva que a crítica Rosana Ribeiro Patrício, na
obra As Filhas de Pandora: imagens de mulher na ficção de Sônia Coutinho (2006), aponta a influência
do contexto social para o discurso coutiniano e destaca a relevância da autora para se pensar o contexto
nacional de escrita das mulheres, assim como de suas representações.
No âmbito desta eloquente obra de Sônia Coutinho também é possível ao leitor observar outros
fatores de grande relevância para a caracterização da mulher e para a expressão dos conflitos supracita-
dos, como o engajamento feminino nos espaços urbanos das cidades do Rio de Janeiro e de Salvador 1,
que se apresentam como elementos norteadores e determinantes para a caracterização e a reflexão sobre
o espaço social da mulher e sua construção identitária, sobre os quais pretendo abordar adiante.
Nesse sentido, o romance em questão é uma convocação para a reflexão sobre mulheres que, em
suas vivências, trazem à tona sua condição de inserção em uma sociedade ainda muito vinculada ao dis-
curso patriarcal, de superioridade e de dominação masculina – isto é, um discurso que perdurou forte-
mente por muito tempo e, ouso dizer, ainda é bastante latente em nosso meio, mesmo em pleno século
XXI. Para discutir melhor essa problemática, trarei autores como Pierre Bourdieu (2012) e sua obra A
Dominação Masculina, a qual trata da manutenção do poder masculino, que se mascara nas relações so-
ciais levando, muitas vezes, os próprios dominados a reproduzirem os discursos de seus opressores, en-
tre outros textos importantes para o diálogo que aqui se pretende.
O engajamento de Sônia Coutinho com os problemas e dilemas das mulheres de seu tempo é evi-
dente. A fortuna crítica da autora e de obras é consistente e esclarecedora acerca das questões aqui ex-
ploradas. Sendo assim, foram levantados os estudos de Rosana Ribeiro Patrício (2006), os quais exami-
nam a condição da mulher nos romances O Jogo de Ifá (1980), Atire em Sofia (1989), O Caso de Alice
(1991) e passagens de contos publicados em Uma Certa Felicidade (1976), Os Venenos de Lucrécia
(1978) e em O Último Verão de Copacabana (1985). Além disso, foram também trazidas para este recor-

O nome da cidade de Salvador não é mencionado explicitamente na obra, porém, as características


geográficas apresentadas, nomes de ruas e referências a monumentos específicos, como o Farol da Barra, levam o leitor a
presumir que uma das cidades retratadas no romance trata-se da capital baiana. Além disso, a própria autora admite, em
diversas entrevistas, que as cidades do Rio de Janeiro e de Salvador são cenários recorrentes em suas produções literárias.
Isto pode ser observado, por exemplo, em entrevista concedida ao repórter Giovanni Ricciardi na Revista Biografia e
Criação Literária, Volume VI.
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te as pesquisas das professoras Lúcia Tavares Leiro (2003) e Luíza Lobo (1999), sendo que a primeira
trata da representação da família na obra coutiniana e que a segunda, dentre outras questões, aborda a
questão do gênero de crime presente na obra Atire em Sofia, bem como o discurso feminista e transgres-
sor apresentado por Sônia Coutinho.
Além das autoras e pesquisas citadas, outros estudiosos foram consultados e forneceram subsídio
para este livro, tais como: Elódia Xavier (1998), Dayse da Silva César (2008), Luciana Asadczuk
(2016), Lilian Santana da Silva (2010), Lúcia Helena Viana (1989) e Cristina Ferreira-Pinto Bailey
(2008), uma vez que produzem interessantes perspectivas críticas sobre as obras e o discurso coutiniano
a partir de temas como: as características da escrita de Sônia Coutinho, a representação do feminino em
suas obras e seus conflitos com o sistema patriarcal; os dilemas vividos pelas mulheres em relação à
educação recebida e à busca pela libertação; a ruptura com o modelo de pensamento vigente, mostrando
a mulher como sujeito de si e dona de seu corpo; e a representação do espaço em suas narrativas.
Ademais, como suporte teórico-crítico sobre o comportamento feminino, as relações de gênero e,
sobretudo, a crítica feminista consultada, elegi para este texto os livros de Ruth Silviano Brandão
(2006), Constância Lima Duarte (2003), Simone Beauvoir (1980), J. Butler (2003), Daniela Manini
(1996), Heloísa Buarque de Holanda (1994/1995), Norma Telles (2007), Lúcia Osana Zolin (2003), Te-
reza de Lauretis (1994) e Julian Marías (1981) que, dentre outros temas, abordam a construção do gêne-
ro nas relações social e cultural, assim como os comportamentos da mulher na sociedade em diferentes
épocas, o discurso feminista e estudos de obras literárias na vertente do gênero e da representação.
Também tomei o cuidado de trazer ao leitor os devidos suportes para a discussão acerca da con-
cepção de representação e de identidade, a qual tomou como ponto de partida obras de autores como Ro-
ger Chartier (2012), Kathryn Woodward (2014), Tomaz Tadeu da Silva (2014) e Pierre Bourdieu (2012).
Os capítulos que se seguem tentaram perpassar e explorar todas as temáticas ora introduzidas, se-
guindo na direção de possibilitar aos interessados uma leitura atualizada da condição feminina, do novo
olhar, da ocupação dos espaços pela mulher e dos muitos mitos que podem circundar sua representação
no romance contemporâneo, discussões que serão encontradas pelos leitores nas páginas seguintes.

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- CAPÍTULO 1 -

LUGARES DE FALA: GÊNERO, FEMINISMO E O RO-


MANCE DE CRIME CONTEMPORÂNEO

Você não sabe quem eu sou. Se sou o autor do crime ou o autor do romance. Quem sabe
o autor do crime que, depois, escreveu o romance. Ou talvez o autor do romance que
cometeu o crime.
(George Lamazière, Um crime quase perfeito).

As questões de gênero têm se apresentado como temáticas de grande relevância na análise literá-
ria mais recente porque se propõem a rever o que historicamente foi construído como um padrão de re-
presentação e de perpetuação de um discurso dominante que criou e propagou estereótipos sobre o papel
da mulher na sociedade. Estes discursos e estereótipos, mesmo com o passar do tempo e com as remode-
lações social e econômica, se estenderam, ainda, sobre as produções literárias de autoria feminina e per-
manecem latentes em pleno século XXI nas diversas esferas da vida das mulheres.
Segundo Norma Telles (2007), em Escritoras, Escritas e Escrituras, a cultura foi fundamental
para o desenvolvimento de paradigmas em relação ao gênero na sociedade ocidentalizada, principalmen-
te pelas marcas do eurocentrismo que classificava e anulava a multiplicidade, ignorando a heterogenei-
dade e a flexibilidade em um processo contínuo de construção das identidades, assim criando um padrão
baseado em uma Europa branca, masculina, letrada e cristã. Neste sentido, a autora afirma que se formu-
lou um discurso hegemônico sobre a natureza feminina a partir do século XVIII, definindo a mulher,
quando maternal e delicada, com aspecto positivo, ao passo que todas aquelas que não se encaixassem
nesse modelo eram encaradas negativamente.
Entretanto, a partir dos anos 1960, deflagrou-se no mundo ocidental um processo de conscienti-
zação promovido por diversos movimentos favoráveis à emancipação feminina, o qual trouxe reflexos e
influências também para o Brasil. Com esse movimento houve o desejo de superar antigos valores que
fixavam os papéis da mulher na sociedade. Neste âmbito, ocorria a busca de uma nova identidade femi-
nina, pensada a partir dos anseios e das necessidades da mulher moderna, coadunando com a perspectiva
pós anos sessenta, na qual se encontra Sônia Coutinho.

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Sônia Coutinho é baiana da cidade de Itabuna, nascida em 1939 e mudou-se para o Rio de Janei-
ro em 1968. Atuante como escritora em jornais baianos, iniciou sua carreira como ficcionista em 1961 e,
quando ainda estudante, publicou em conjunto com outros autores a coletânea de contos Reunião. Desde
então, a escritora veio se destacando por suas produções. Sua estreia em obra solo foi com Do Herói
Inútil, em 1966. Em 1971, foi publicado Nascimento de uma Mulher e, em 1976, Uma Certa Felicidade.
Em 1977, Sônia venceu o prêmio Status de Literatura com o conto “Cordélia, a caçadora”, que integrou
o livro de contos intitulado Os Venenos de Lucrécia (1978), este vencedor do prêmio Jabuti de 1979. Em
seguida, publicou a novela O Jogo de Ifá (1980); O Último Verão de Copacabana (1985); Atire em Sofia
(1989); O Caso de Alice (1991) e Os Seios de Pandora: uma aventura de Dora Diamante (1998). Estas
três últimas obras estão inseridas no gênero romance de crime. Além de tais publicações, vários de seus
contos foram publicados em antologias nacionais e no exterior, como nos Estados Unidos, na França e
na Alemanha.
O trabalho desta escritora tem grande relevância para o contexto literário porque destaca a preo-
cupação com os aspectos sociais problemáticos, a exemplo da condição da mulher, como já mencionado.
Tais fatos podem ser observados em Cordélia, a caçadora (1977), que apresenta a personagem-título em
um ávido esforço para se enquadrar no padrão social de família tradicional. Contudo, a violência psico-
lógica se destaca nesse texto tendo como mote a vida sexual da personagem, que é iniciada antes do ca-
samento, o que a fez se tornar refém do marido. Porém, sua volta a uma vida livre, longe das agressões e
do medo diário, consagra o nome do conto, pois Cordélia vai à caça de amor, de sexo e de liberdade. Já
em Os Venenos de Lucrécia (1978), a figura feminina está envolvida em um ambiente fantástico, que ca-
minha entre o real e a alucinação. Nesta obra, o narrador masculino expõe a morte de uma mulher que
teve como única causa de sua perdição o fascínio e o terror que sua imagem de independência gerava em
no meio social.
Não obstante, a obra Atire em Sofia (1989) traz uma reflexão da condição social da mulher ao
longo dos tempos através da rememoração da vida dos personagens, demonstrando as transformações
sociais e a ruptura com o modelo apregoado pela tradição patriarcal. A esse respeito, Elódia Xavier
(1999), em Narrativa de Autoria Feminina na Literatura Brasileira: as marcas da trajetória , diz que
as produções de Coutinho são bem representativas da crise da mulher em uma sociedade alicerçada
por valores patriarcais, que se vê nos anos oitenta diante de grandes transformações (XAVIER, 1999,
s.p). A ruptura causada por tais mudanças e vivida por suas personagens coincide com a crise do dis -
curso feminista, que concerne no conflito entre viver seu destino de mulher e realizar sua vocação de

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ser humano, também tratada por Julian Marías (1981). Diante disso, a mulher busca uma solução para
sua plenitude existencial.
O movimento feminista, engajado nas lutas sociais pelos direitos da mulher, contribuiu para inú-
meros avanços sociais para a classe, dentre os quais destaco o fato de levar a reflexões sobre a condição
da mulher dentro do campo literário. A percepção de que a perspectiva de leitura e a escrita feminina
eram diferentes da masculina implicou consequentemente na busca pela quebra de paradigmas, fortale-
cendo assim o desenvolvimento de uma crítica literária feminista. Neste sentido, discute Lúcia Osana
Zolin (s.d.), em Os Estudos de Gênero e a Literatura de Autoria Feminina no Brasil, que o movimento
feminista colocou em evidência a condição sócio-histórica da mulher e a crítica literária feminista se en-
carregou de discutir o seu modo de representação na produção literária, considerando o aspecto estereo-
tipado que a produção literária e cinematográfica tratava a mulher.
A relação entre sexo e poder na literatura evidenciou, por muito tempo, a subjugação social da
mulher, mas a crítica feminista se encarregou de desconstruir os elementos de representação e de domi-
nação masculina com vistas a dar voz às figuras femininas. Na obra de Sônia Coutinho, isto se deu com
a abordagem das incertezas e do papel social da mulher que busca liberdade em meio à sociedade dos
anos oitenta, a qual se encontrava ainda fortemente pejada do discurso patriarcal. Por isso, efetuou-se
uma reflexão sob a perspectiva da crítica feminista que, como propõe Lúcia Ozana Zolin (2009), em
Crítica Feminista, trata de ler a literatura voltada para a desconstrução do caráter discriminatório das
ideologias de gênero, além de divulgar posturas críticas por parte de escritores e escritoras em relação às
convenções sociais que historicamente silenciaram as mulheres.
Além disso, essa postura que aqui busco tratar efetua a recuperação e a interpretação de narrati-
vas de vida da mulher a partir do próprio ponto de vista destas, sendo possível apreender o contexto so-
cial de onde as narrativas emergem, o que permite ao leitor um acesso privilegiado às vivências e às ex-
periências da mulher. Em Atire em Sofia, como já mencionado, é apresentada a vida de um grupo de
amigos que costumava se reunir na década de 1960. Todavia, a narrativa dos fatos se passa cerca de vin-
te anos depois, configurando-se por meio das memórias dos personagens. Suas reflexões e percepções da
vida que tiveram e a condição em que estão inseridos no momento de fala demonstram um olhar analíti-
co sobre si e sobre seu lugar social.
Dessa maneira, a obra apresenta, no primeiro capítulo, intitulado “Verão com Assombrações”, a
presença marcante de situações simbólicas e/ou mágicas que vão permear todo o enredo. Nela, a mulher
é apresentada relacionando-se com a mitológica Lilith, uma figura do demônio feminino que leva à se-

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dução do pecado e da perdição, e que é também símbolo de sensualidade, de libertação e de insurgência.
Tal representação do feminino traz uma visão da mulher em seu aspecto simbólico construído ao longo
dos tempos, sendo exposta como fonte do pecado e da sensualidade, aspecto que será discutido mais adi-
ante. Todavia, esta representação é importante porque também se vincula à busca de libertação e quebra
de paradigmas pelas personagens femininas, todas através da sexualidade, apresentada como forma de
expressão máxima de um novo status identitário buscado em seu tempo.
Em outro ponto, a obra de Coutinho revela um grito de revolta contra o silenciamento das mulhe-
res ao longo dos tempos através da analogia às lágrimas de Iansã. Neste momento, o texto promove ou-
tro ponto de ruptura com a herança patriarcal e delineia a construção da identidade de algumas mulheres
na obra ao negar a tradição europeia e cristã. Assim, torna-se visível a representação da religiosidade re-
lacionada com a cultura de origem dessas mulheres - a cultura de matriz africana, que indica a busca de
manifestação de autoconhecimento, da ancestralidade e do pertencimento, até então negado e sufocado
pelo discurso tradicional predominante.
Sofia é uma mulher que rompe com os laços do casamento e se abstém da maternidade ao abrir
mão das filhas escolhendo o divórcio, mesmo contra os princípios vigentes em sua época. Ela ficou só,
perdendo o apoio de todos, inclusive da própria mãe, que apoiou seu ex-marido e educou suas filhas, as-
sim figurando o posicionamento da primeira geração de mulheres retratada na obra, a qual apenas perpe-
tua o discurso patriarcal. Diante destas decisões da personagem central, surgem, durante a narrativa, di-
versos conflitos emocionais presentes tanto na vida de Sofia como na de sua filha, Milena. Tais conflitos
coadunam com o argumento supracitado, que foi exposto por Elódia Xavier (1999), de que a crise do
discurso feminista se materializa entre o viver seu destino de mulher e a realização de sua vocação de
ser humano.

1.1 ESCRITA DE AUTORIA FEMININA: A MULHER NA LITERATURA BRASILEIRA DOS


ANOS OITENTA

A condição da mulher vivida no plano histórico e expressa esteticamente nos textos literários de
autoria feminina é o elemento estruturante das obras de Sônia Coutinho e, sobretudo, do romance Atire
em Sofia. A representação do mundo, das relações entre os sujeitos e os espaços é feita em uma perspec-
tiva diferente, especialmente após os anos de 1960/70 em que se desenvolve um discurso no qual a mu -
lher busca a consciência de si.

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A necessidade da busca por uma identidade e de um espaço de autorrealização aponta para temas
em que o destino de mulher2 está presente constantemente nos discursos, conforme indica Simone de Be-
auvoir (1980). A autora de O Segundo Sexo destaca que o privilégio do homem se configura no fato de que
a sua vocação não está em conflito com os parâmetros sociais, enquanto que, para a mulher, sua feminili-
dade está condicionada a uma série de fatores pré-determinados. Este é o conflito que desponta nas narrati-
vas de autoria feminina contemporânea e se destaca em todo percurso literário de Sônia Coutinho.
Ao analisar a crise da mulher no século XX, o filósofo Julián Marías (1981), na obra A Mulher
no Século XX, chama a atenção para a relação conceitual entre “crise” e “crítica”, a qual gira em torno
da ideia predominante de desorientação, no sentido de alguém não saber o que fazer ou a que se ater. Tal
ideia não se restringe apenas às mulheres ou a um grupo específico, mas se estende a toda uma coletivi-
dade na qual a crise da mulher é vista como um reflexo da desorientação de homens e de mulheres dian-
te das questões dos tempos contemporâneos.
A questão primordial levantada no século XX trata do que é ser mulher já que, em outros pe-
ríodos, tal indagação pareceu óbvia, por muito tempo, como um modelo a ser seguido. Paralelamen -
te, pensa-se o que é ser homem em relação à mulher, embora se possa notar que ambas as proposi -
ções, segundo as reflexões de Marías (1981), dependem de uma interpretação, uma vez que a condi -
ção do ser feminino ou ser masculino passou de uma certeza biológica para uma construção social,
psicológica e sociológica.
Em consonância com o autor supracitado, Joan Scott (1990), tratando do conceito de gênero ex-
presso pela teoria feminista, também o aborda como uma construção social e simbólica relativa à mascu-
linidade e à feminilidade que é diferente da noção de sexo como categoria biológica. Sendo assim, a no-
ção de gênero está além do sexo biológico, mas se refere ao modo como o indivíduo se constrói e se de-
signa socialmente. Nesta perspectiva, discute Teresa de Lauretis (1994), em A Tecnologia do Gênero, so-
bre a necessidade de se retirar da definição de gênero a universalização do ser baseada exclusivamente
na natureza biológica.
Ao observar os escritos feministas e as práticas culturais dos anos de 1960 e 1970, Lauretis
(1994) pontua que o conceito de gênero se encontrava no centro da crítica de representação, já que a
construção da noção gênero/sexo é um elemento-chave para propagação das ideologias do sistema patri-

Este termo, bem como o termo Vocação de ser humano, constantemente presentes neste texto, são
tomados de empréstimo da pesquisadora Elódia Xavier em Declínio do Patriarcado: a família no imaginário feminino
(1999).
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arcal. Este, por sua vez, tratou de engendrar, no pensamento social e nas famílias, a dominação masculi-
na e o fechamento do espaço de manifestação feminina. A autora ressalta que uma vertente menos uni-
versalizante do ser se despontara na literatura, com maior ênfase, a partir dos anos de 1980, sob a in-
fluência das discussões e conquistas feministas de décadas anteriores.
Nesse sentido, chamo a atenção para um fato: quando se fala em representação, é necessário con-
siderar os avanços promovidos pela crítica feminista já que, tradicionalmente, as representações da mu-
lher foram efetuadas ao longo dos tempos considerando a ideologia patriarcal, em que o sujeito com di-
reito à voz foi, quase que exclusivamente, masculino e burguês. Neste âmbito, a crítica literária feminis-
ta, bem como o feminismo engajado como pensamento político e social, desestabilizaram o ideal e a
imagem tradicional da mulher e de outros segmentos minoritários construídos ao longo da história literá-
ria. Assim, esses movimentos trouxeram uma forma de expressão do ponto de vista dos próprios sujeitos
femininos, como propõe Lúcia Ozana Zolin:

A considerável produção literária de autoria feminina, publicada à medida que o femi-


nismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge imbuída da missão de “contami-
nar” os esquemas representacionais ocidentais, construídos a partir da centralidade de
um único sujeito (homem, branco, bem situado socialmente), com outros olhares, posi-
cionados a partir de outras perspectivas. O resultado, sinalizado pelas muitas pesquisas
realizadas no âmbito da Crítica Feminista desde os anos 1980 no Brasil, aponta para a
re-escritura de trajetórias, imagens e desejos femininos (ZOLIN, 2009, p. 2).

A partir dessa proposta, a noção de representação é ampliada, em especial, apontando a diversi-


dade de facetas sociais por meio de produções do ponto de vista da mulher. De modo semelhante, a críti-
ca buscou refletir sobre seus vieses, sobretudo, no que se refere à relação entre o texto e o seu contexto
de produção. Nesse ínterim, o conceito de representação passa a assumir significações variadas sobre
como esta atua simbolicamente no intuito de classificar o mundo e nossas relações em seu interior; ou,
de acordo com Roger Chartier, sobre como pode se constituir um “instrumento de um conhecimento me-
diador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de o reconstruir em
memória e de o figurar como ele é” (CHARTIER, 2002, p. 74). Sendo assim, podemos considerá-la
como variável, de acordo com os grupos ou classes que a constrói.
Chartier propõe que uma via de mão dupla se estabelece neste campo da representação, já que,
por um lado, existe a relação de forças entre as representações impostas por aqueles que têm o poder de
classificar e nomear os sujeitos e, por outro, a que cada grupo faz de si mesmo. É neste âmbito que a es -
crita de autoria feminina, em especial, a que trata de representações da mulher, ganha pertinência para os

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estudos literários de hoje, pois desconstrói sua imagem estereotipada que foi estabelecida ao longo dos
séculos na literatura canônica de produção, predominantemente, masculina.
Ao pensarmos a literatura de autoria feminina, os conceitos de representação e de identidade se
cruzam em um caminho bastante fértil e interessante, já que, conforme propõe Kathryn Woodward
(2014), em Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual:

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades indi-


viduais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis
respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os dis-
cursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indiví -
duos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD apud WO-
ODWARD; HALL, 2014, p. 18).

Dessa forma, embasada nesta noção de representação dentro de um sistema simbólico como um
processo cultural, posso observar que, socialmente, a mulher é interpretada pelo homem e se interpreta
em cada sociedade e épocas distintas, cabendo considerar o sistema que a define em períodos específi-
cos. Sendo assim, um aspecto presente no romance contemporâneo que marca a tentativa de se construir
uma representação sob o olhar da própria mulher é uma temática de volta às origens, característica tam-
bém presente na obra de Sônia Coutinho, em que o discurso, em tom memorialístico, funciona como re-
curso de constante criação e transformação das imagens e, assim, contribui para a tomada de consciência
de si e para a consequente construção da identidade feminina.
Woodward apresenta a identidade como relacional, ou seja, dependente de algo externo a ela para
existir, marcada pela diferença, mais fácil de ser identificada por aquilo que nega ser, do que pelas afir-
mações. É neste sentido que, no romance em análise, as identidades são reveladas em relação à represen-
tação do sujeito tradicional versus o sujeito transgressor, mas, por outro lado, também a partir do con-
fronto entre consciente e inconsciente da personagem feminina que compõe sua alteridade.
Como propõe Tomaz Tadeu da Silva (2014) em Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos
culturais, a representação não é mental ou interior, mas apresenta o que está visível, exterior e social-
mente construído. Contudo, é preciso compreender que os processos de reflexão assumidos pelos prota-
gonistas na perspectiva de revelar também uma alteridade em relação a si, conforme aponta Lobo (1997)
em A literatura de autoria feminina na América Latina, contribui de forma significativa para demonstrar
como a mulher, no contexto social em questão, passa a afirmar a sua identidade, associando o que é do
plano individual e interno ao plano exterior e social.

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Nesta conjuntura cumpre a mim apontar a perspectiva de Judith Butler (1999) em Problemas de
Gênero: o feminismo e a subversão da identidade, a respeito da identidade não fixa, isto é, da identidade
como algo que não pode ser meramente descritivo. Butler a concebe a partir do conceito de performati-
vidade, a desconstruindo pelo que é, mas ligada àquilo que se torna. Sendo assim, está presente a ideia
de identidade como movimento e transformação, tão bem expressa na obra ora discutida por meio das
identidades em conflito no ambiente social retratado, já que este, como já mencionado, esteve em pro-
cesso de grandes transformações entre as décadas de 1960 e 1980 do século XX, diante dos movimentos
pela emancipação feminina, bem como outras conjunturas sociais.
Sobre esta alteridade, Luíza Lobo (1997) no texto intitulado A Literatura de Autoria Feminina na
América Latina, afirma que ela pode ser vista não apenas como um outro antropológico ou filosófico
que está distante, mas também pelo viés psicológico, através do confronto entre consciente e inconscien-
te, assim revelando as fissuras presentes em cada ser. Neste sentido, a memória no discurso de represen -
tação da mulher na obra em estudo expõe, a meu ver, a alteridade feminina por meio de seus dilemas,
dos seus medos, e, principalmente, do questionamento de seu destino de mulher. No discurso empreendi-
do pela personagem Sofia quando retorna para sua cidade natal, Salvador, e começa a refletir sobre o
percurso de sua vida, é possível ver como essa questão se apresenta:

Claro que poderia, se tivesse feito as necessárias concessões, diz agora a si mesma, esti-
rada na cama, ter ficado pelo menos com alguns daqueles homens que passaram por sua
vida. Se não ficou, pensa, foi porque achou preferível, de alguma forma, continuar sozi-
nha. Por outro lado, se pôde ficar sozinha, foi porque já confiava em suas possibilidades
de sobreviver com seus próprios recursos, com seu trabalho. Se não fosse assim, teria de
aguentar, de ficar com um deles, mesmo contra a vontade _ como fez sua mãe, como fi -
zeram suas tias e avós, embora suportando cobranças desagradáveis, ciúmes, ranzinzi -
ces. Não aguentou, não ficou, então restou esse tesouro duvidoso, sua solidão. Que, de
repente, pode transformar-se em pânico e desamparo, no escuro, com chuva (COUTI-
NHO, 1989, p. 29).

A protagonista se vê imersa em uma série de reflexões ao retornar para a cidade de Salvador. Re-
clusa em seu apartamento alugado, a cidade, sob forte temporal que fornece um aspecto sobrenatural aos
fatos, leva a personagem às mais profundas ponderações, como se fizesse um balanço de tudo que viveu
até aquele momento. Pensando sobre sua condição atual, como quem busca respostas para os motivos
que a levaram retornar, ela chega ao tema da solidão como saldo por todas as suas escolhas, as quais vi-
riam a culminar naquele momento.

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O retorno à cidade natal traz à tona uma questão contundente no mundo globalizado, qual seja, a
necessidade que os sujeitos têm de afirmação identitária, seja em novos ou antigos espaços, ambos em
caráter transitório. Para Stuart Hall (2000), as identidades estão em crise em função das alterações que
acontecem a partir das mudanças ocorridas na contemporaneidade. Assim, as formas de abordar a
questão das identidades contemporâneas se dão através desse movimento, a partir do qual o autor cun-
hou a noção de diáspora. Esta deve ser compreendida a partir das migrações modernas, bem como da in-
tensificação do deslocamento de pessoas entre países e continentes, ou mesmo dentro de um país ou
cidade. A compreensão da identidade nesse novo cenário em movimento é envolta de contradições, uma
vez que o mesmo indivíduo que deixou seu local de origem pode não voltar para lá, pois, ao retornar,
não encontrará a mesma realidade que deixou. A origem passa a ser um lugar mítico, impossível de ser
resgatada, ao passo em que o lugar de destino também pode não acolher esse sujeito plenamente. “E esta
é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e
perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ‘chegada’” (HALL, 2000, p. 393). No romance,
como discutirei mais adiante, a cidade de Salvador já não é mais familiar para Sofia, pois existe uma
outra que se sobrepõe a ela. Tanto a mulher quanto a cidade possuem um duplo: nesta, há uma in -
definição identitária, fruto das transformações sociais e, naquela, resta-lhe refletir sobre a sua identidade,
como se percebe no posicionamento da personagem a seguir:

Pela primeira vez, desde que chegou, sente-se plenamente devolvida a sua interioridade,
capaz de lembrar todos os acontecimentos de sua vida, mesmo os mais soterrados, como
quem observa de uma distância infinita. Quem ela foi, quem vinha sendo, as muitas pes-
soas que é — e a relação de todas essas Sofias com a cidade que agora se superpõe es -
tranhamente à outra onde viveu e que carregou dentro de si, anos a fio, como punhal
cravado na memória (COUTINHO, 1989, p. 43).

A fragmentação e a busca identitária são temas presentes em Atire em Sofia, de modo que a crise
de identidade está muito vinculada à cidade e ao aspecto familiar e social vivido naquele lugar. Dividida,
a personagem busca, por meio do autoconhecimento, estabelecer uma condição de atriz principal de sua
vida, sujeita de si, algo até então negado por uma sociedade semipatriarcal 3. Neste sentido, a obra abarca

Gilberto Freire (1997) afirma que é necessário entender que a sociedade contemporânea representada na
obra, diante das diversas transformações e influências, como, por exemplo, as conquistas do movimento feminista, é melhor
classificada como semipatriarcal. Sendo assim, apresenta os valores tradicionais que já sofreram alterações, embora o
controle familiar e alguns discursos ainda tenham continuado a privilegiar o homem em detrimento da mulher. Por isso, aqui
falo em discurso com influência ou marcas do patriarcalismo e não estritamente patriarcal, assim não perdendo de vista a
19
uma escrita feminista que, em consonância com Luíza Lobo (1997), é aquela que apresenta um ponto de
vista da narrativa em que o sujeito da enunciação é consciente de seu papel social, mostrando uma posi-
ção de confronto com relação àquilo que a sociedade cerceia ou impede que a mulher desenvolva em seu
direito de expressão. Com vistas a isto, a Lobo observa que:

As autoras contemporâneas brasileiras Lygia Fagundes Teles (São Paulo, 1923-), Lya
Luft (Porto Alegre, 1938-) e Patrícia Bins (Rio de Janeiro, 1930-), bem como Heloísa
Maranhão, Sonia Nolasco, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha são algumas das
que têm buscado encontrar, na tragédia individual urbana, uma leitura do imaginário fe-
minino — suas crises existenciais, sua insegurança social, psicológica e financeira, seus
traços de diferença com relação ao patriarcalismo e a ordem estabelecida, mostrando co -
ragem para romper estruturas da sociedade falocêntrica e patriarcal, expressas, na litera-
tura, através de um texto realista, linear e autoritário, tão bem aceito pelas obras dirigi -
das ao sucesso editorial (LOBO, 1997, s.p., grifos do original).

A discussão proposta por Lobo retrata claramente a leitura social possível do imaginário femini-
no na obra de Sônia Coutinho, especialmente em Atire em Sofia. Na obra em questão, a protagonista,
imersa no ambiente urbano, trata, dentre outras questões, de sua insegurança social, psicológica e finan-
ceira, que são reflexos da maneira com a qual a sociedade comporta frente à mulher que se afasta dos
padrões tradicionais em seu tempo.
Desse modo, observo que Atire em Sofia apresenta elementos da crise do feminino por meio de
seu discurso feminista e questionador em relação às funções sociais determinados pela tradição. Para
tanto, o enredo da obra retoma um passado na década de 1960 em que as discussões sobre tais papéis
eram crescentes, alternando-se com fatos ocorridos nos anos 80. A utilização desta alternância temporal
permite que sejam visualizadas algumas transformações na postura feminina, embora a sociedade retra-
tada ainda seja muito influenciada por suas bases tradicionais, como ainda persiste em ser ainda hoje, in-
felizmente, ainda que sob novos modos.
Os elementos ora elucidados lançam luz no caráter relacional e performático das identidades que
estão em movimento dentro desse recorte temporal, pois as protagonistas partem de suas experiências
individuais e dilemas para refletir sobre quem são e que mulheres se tornaram a partir dos resultados do
impacto social sobre suas vidas. As escolhas de Sofia, em especial o ato de abdicar da maternidade, são
bem significativas neste contexto, tendo em vista que alguns dos paradigmas mais incisivos em relação à
imagem social de mulher são o ideal de esposa e de mãe.

proposição de Freire.
20
Sobre a importância histórica e a influência do movimento feminista na sociedade e seus reflexos
na literatura, os quais evidenciam as transformações apontadas no romance, Constância Lima Duarte
(2003), ao tratar da história do feminismo brasileiro em Feminismo e Literatura no Brasil, destaca al-
guns períodos específicos em que o movimento feminista obteve maior força: os anos 1830, 1870, 1920
e 1970. A autora considera que a visibilidade do movimento ao qual chamou de ondas contribuiu para o
maior alcance das conquistas feministas.
A autora acima mencionada explica que a primeira onda correspondia à luta pelos direitos primá-
rios, como o acesso à educação. A segunda, dentre outras questões, esteve fortemente marcada pela luta
do direito ao voto – pauta que teve continuidade na terceira etapa/onda, à qual se somou a busca pela in-
serção no mercado de trabalho. Já na quarta onda, em 1970, tais direitos já estavam, em grande parte, al-
cançados e, em decorrência do momento social vivido no Brasil, as preocupações se direcionam com
questões políticas, tendo em vista a ditadura militar, conforme propõe Constância Lima Duarte, que:

Enquanto em outros países as mulheres se uniam contra a discriminação e pela igualda-


de de direitos, no Brasil o movimento feminista teve marcas distintas, pois a conjuntura
histórica impôs que as mulheres se posicionassem também contra a ditadura militar e a
censura, a favor da redemocratização, da anistia e melhores condições de vida (DUAR-
TE, 2011. p. 83).

Apesar do momento político brasileiro, ainda sob influência do regime militar que se instaurou
nos anos anteriores, diferente das restritas aparições de escritoras mulheres nos anos 1930 e 1940, nos
anos 1970 e 1980 eclodiu uma série de publicações que ampliou as oportunidades nas editoras para ou-
tras autoras. A despeito do crescente número de produções femininas, ressalta Lúcia Helena Viana
(1995, p. 172) que foi Clarice Lispector quem abriu “uma tradição para a literatura da mulher no Bra-
sil”, o que anos mais tarde levaria ao reconhecimento das escritoras de seu tempo.
No campo da ficção, Sônia Coutinho é apresentada em diversas obras críticas, como em A Lite-
ratura no Brasil Contemporâneo (1993), de Nelly Novaes Coelho, onde é reconhecida como uma voz
que representa a transgressão aos modelos literários tradicionais, distinguindo-se de aspectos como a li-
teratura sentimental ou a que expressa uma polaridade entre anjo/demônio, esposa/cortesã. Coutinho
vem criar, sob a ótica de Coelho, uma literatura ética-existencial4 que, pela representação de uma pers-

Termo utilizado por Nelly Novaes Coelho em A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo (1993).
21
pectiva isolada de comportamento, exclui o aspecto binário e aponta a complexidade e a ambiguidade
inerente a todo ser humano.
A atenção a um projeto literário voltado para a condição feminina é declarada pela própria Sônia
Coutinho, como expõe em entrevista concedida à repórter Eliane Levi de Souza para o Jornal o Globo,
em que afirma que

[a] mulher aparece como criação do homem desde a mitologia grega, só mais recente -
mente é que a sua história começa a ser contada, quando ela deixa de ser objeto para ser
sujeito. Em meus livros, falo muito da mulher na cidade grande, sozinha, com vontade
de estar só, na sua tentativa de viver por conta própria e encontrar a sua identidade. É
esta vontade de fazer valer os seus direitos, de ser pessoa que me parece nova e deve
ser mostrada na literatura feminina (SOUZA, 1985, p. 5).

O que seria a narrativa de mulheres e sobre mulheres senão uma tentativa de dar voz ao próprio
sujeito feminino? É nesse sentido que considero que prismas distintos “da mesma história” são revela-
dos por intermédio das personagens de Sônia Coutinho ao longo de sua vida literária, em especial na
obra que escolhi aqui tratar. Atire em Sofia (1989), assim como O Caso de Alice (1991) e Os Seios de
Pandora: uma aventura de Dora Diamante (1998) são os primeiros romances de autora, os quais são
considerados, na acepção da crítica Luísa Lobo (1999), como sua primeira produção em tom policial.
Até então, Coutinho, que iniciou seu percurso literário aos vinte anos em Salvador, havia atuado princi-
palmente como contista, obtendo reconhecimento nacional e internacionalmente.
Em um artigo tratando da Recepção a Sônia Coutinho, publicado na revista baiana Exu, Luísa
Lobo argumenta que: “Poderíamos dizer que Sônia Coutinho, sob a máscara do romance e da novela, só
tem desenvolvido um único conto, uma única estória, um mesmo enredo que é a história da mulher bra-
sileira do século XX” (LOBO, 1989, p. 31). Mais tarde, tratando do mesmo romance, a crítica apontará
novamente a repetição temática nas três produções coutinianas de romance de crime uma espécie de
“recalque” ou mesmo de “fantasmagoria” que denotam uma linguagem um tanto quanto reprimida, a
enunciar silêncios.
Inovando quanto ao gênero literário escolhido, porém dando sequência à temática acerca do fe-
minino na obra, é perceptível que a estrutura narrativa se insere na vertente do romance de crime, porém,
ainda que revele a influência, ela transgride quanto à rigidez da forma. Ao chegar neste ponto, considero
necessário explorar, junto ao leitor, os elementos que contribuem para que Atire em Sofia seja considera-
do um romance de crime buscando, desta forma, observar que ponto a produção de Sônia Coutinho con-
figura-se por semelhanças ou transgressões ao gênero em relação ao romance de crime contemporâneo,
22
especialmente aquele escrito por mulheres. Destaco que tal intento só é possível graças a personagens
que apresentam visões distintas dos fatos e a um narrador que dissimula a falta de intenção para, ao fi-
nal, bater seu martelo jurisdicional.

1.2 NARRADORES E PERSONAGENS: O ROMANCE DE CRIME

São muitas as transformações da personagem feminina ao longo da história do gênero romance,


as quais, segundo Regina Dalcastagnè (2001), no século XX apresentam muitas vezes

[m]onólogos interiores, fluxo de consciência, diálogos, às vezes o simples fato de terem


se transformado no “ponto de onde se vê” permitem uma ampliação de seu espaço na
narrativa. Podemos não saber muito de sua aparência física, ou de seus apetrechos do-
mésticos, talvez não conheçamos sequer o seu nome, mas temos como acompanhar o
modo como elas sentem o mundo, como se situam dentro de sua realidade cotidiana
(DALCASTAGNÈ, 2001, p. 117).

É nesta perspectiva apresentada por Dalcastagnè que vozes e versões diferentes disputam o mes-
mo espaço narrativo em Atire em Sofia. Com isso, trazem ao enredo a consistência de personagens que,
de maneira sutil, acrescentam ao campo do discurso questões latentes na sociedade contemporânea. São
fluxos de consciência que resultam das angústias e do conhecimento de uma época que culminam em
narradores que não estão preocupados em transparecer inocência ou neutralidade, já que as próprias con-
dições sociológicas vigentes formam um público bem mais exigente e desconfiado.
Pontua Ronaldo Costa Fernandes, em O Narrador do Romance: e outras considerações sobre o
romance, que “a estrutura interna de um romance sempre vai apresentar o desajuste e a crítica social e
cabe ao narrador o papel de levantar as provas para o julgamento” (FERNANDES, 1996, p. 21). É neste
sentido que se pode perceber o narrador coutiniano abrindo espaços para questionamentos, dando voz às
suas personagens, as quais passam a contar a própria história de vida justificando seus atos, que são,
muitas vezes, contrários ao padrão social da época em que são representados. Por exemplo, destaco uma
passagem em que Sofia justifica a necessidade de sua separação do marido: “foi embora sem olhar para
trás, entre outras coisas porque ele se tornara um castrador” (COUTINHO, 1989, p.13). Sendo assim,
chamo a atenção para o fato de que o discurso se dá tanto por meio do narrador em terceira pessoa,
como pelos protagonistas que narram em primeira pessoa. Tais recursos são necessários para a demarca-
ção da própria identidade feminina na obra, bem como para que o leitor formule sua própria perspectiva
do crime, da imagem de mulher e dos demais personagens apresentados na ficção.

23
O personagem Fernando é o primeiro que assume a voz narrativa: a partir de uma foto dos ami-
gos, ele apresenta, avalia e traz juízo de valor sobre a personalidade e trajetória dos demais protagonis-
tas. Por intermédio deste personagem e do recurso da colagem de memórias, o leitor é informado sobre
detalhes e indícios que apontam para as revelações e os desdobramentos posteriores.
Os demais personagens assumem o discurso em outros momentos, conferindo outras versões aos
fatos, como já mencionado. Analisando este processo em Atire em Sofia, Rosana Ribeiro Patrício (2006)
no ensaio As Filhas de Pandora: imagens da mulher na ficção de Sonia Coutinho, concebe-os a partir
dos termos de Wayne C. Booth, para o qual a obra pode apresentar narradores dramatizados. Tal proces-
so narrativo, segundo Patrício, desenvolve-se no limite entre a ficção e a metaficção explícita que, na
obra em estudo, atingirá maior complexidade a partir do personagem João Paulo, quando, escrevendo
um romance, se assume enquanto narrador deste dentro da narrativa principal. O leitor passa a acompa-
nhar duas narrativas paralelas que irão, ao final, convergir e se sobrepor. Esta também é uma das in-
fluências do romance policial, no qual a metaficção será um recurso para explicar a narrativa principal,
conforme discutirei adiante.
Wayne C. Booth (1980), em Retórica da Ficção, realiza um estudo acerca de diferentes discursos
do narrador, apresentando sua perspectiva sobre os narradores dramatizados. Para ele, muitos autores
dramatizam a fundo seus narradores fazendo-os se tornarem um personagem. Sendo assim, no universo
ficcional, sua participação é perceptível, pois revela características pessoais e torna evidente sua posição
ideológica. Neste ínterim, me é demandado lembrar que no romance que ora discuto não existe o tom
monológico de um narrador soberano, mas, sim, a presença de diversos personagens que apresentam
seus pensamentos, suas vozes e suas opiniões sobre si e sobre o outro. A consciência desses personagens
se manifesta pelo diálogo e pelas suas ações; logo, posso falar que se manifesta pela sua dramatização.
De maneira particular, como apontado no texto, a metaficção por meio do romance produzido
por João Paulo coloca em destaque essa dramatização do narrador que se apresenta consciente de si.
Além disso, a leitura que o personagem/detetive/narrador Fernando faz do romance de João Paulo colo-
ca, mais uma vez, um entrecruzamento entre o papel de narrador com os de autor e leitor ao apresentar
sua perspectiva e suas dúvidas, assim desestabilizando a leitura. O emprego dessa estratégia leva ao que
Booth (1980) destaca como narradores conscientes de si próprios como escritores, falantes e pensantes
de/ dentro de uma obra literária. Apesar de interessante, não entrarei afundo nesta questão, deixando-a
para outro momento oportuno.

24
O apagamento do narrador em terceira pessoa é tratado por Fernandes (1996) como uma tendên-
cia que vem de Flaubert e se apresenta como o nouveau roman no século XX, dando à dramaticidade o
papel de falar por ele. Neste sentido, o narrador moderno se sofisticou, utilizando tecnicamente, dentre
outros recursos, da colagem.
Tendo em vista tais aspectos que giram em torno dos elementos essenciais do romance e tendo
em mente o tom policial conferido em Atire em Sofia, é possível compreender que os aspectos anterior-
mente elencados são estratégias para o convencimento do leitor. Mas convencer exatamente de quê? Não
seria o romance policial, basicamente, a história de um crime?
O gênero policial passou por muitas transformações ao longo dos tempos. Desde sua populariza-
ção, a visão de mercado e de entretenimento deixou de ser os seus fundamentos principais. Surgido dian-
te de uma sociedade insegura com o crescimento urbano do século XIX, ele continuou se apoiando e
construindo representações tendo como base contextos sociais conflituosos. Contudo, presenciamos au-
tores como Jorge Luís Borges (1899-1986) que, conforme Francisco Inácio Bastos, em Borges e o conto
policial (1998), deu nova dimensão ao conto policial contemporâneo, introduzindo sua cultura, “seu hu-
mor sutil, porém intensamente cáustico e dotando-o de variações inusitadas” (BASTOS, 1998, p.41).
O gênero policial teve seu surgimento primariamente atribuído a Edgar Allan Poe, com "O Duplo
Assassinato na Rua Morgue" (1841), "O Mistério de Marie Roget" (1843), e "A Carta Roubada" (1844),
de Histórias extraordinárias, onde é apresentado o notório detetive Auguste Dupin, intelectual que, mes-
mo não estando a serviço da polícia, tinha como prazer a solução de crimes. O detetive, contando apenas
com um senso dedutivo impecável, chegou a desvendar o assassinato das duas mulheres da Rua Morgue.
A narrativa policial, de acordo com Sandra Lúcia Reimão (1983), obteve, no século XIX, as con-
dições necessárias para se cristalizar mediante o aparecimento dos jornais de grandes tiragens, o cresci-
mento dos centros urbanos pós-revolução industrial e, consequentemente, o surgimento da polícia como
uma instituição em Londres. O novo contexto social legou aos centros urbanos características perfeitas
para gerar, na mentalidade popular, um cenário ideal para a prática criminosa. Surgiram novas concep-
ções para a resolução do crime, saindo o pleito da órbita de entendimento entre partes e sendo legada às
instituições estatais, o que contribuiu para gerar uma nova imagem do criminoso – que passa de um
ofensor individual para um perigo social. Associado a isto, houve a consolidação do pensamento positi-
vista, cuja perspectiva apontava para a solução dos fenômenos por meio de mecanismos legais. Naquele
ambiente havia, também, a crença de que a mente obedece a princípios gerais e de que quem conseguir
dominá-los pode utilizá-los como uma cadeia de ideias, penetrando em outras mentes e chegando a um

25
conhecimento mais profundo do ser humano. É partindo de tal pressuposto que a narrativa não requer
ação, por isso, Dupin, do seu próprio apartamento, resolve os crimes apenas a partir da leitura de jornais.
Tzvetan Todorov (2006), em análise da Tipologia do Romance Policial, elenca alguns tipos de
romance policiais e suas características, os quais são os romances de enigma, romance negro e de sus-
pense. Para ele, o primeiro apresenta duas histórias, uma do crime e outra do inquérito, esta geralmente
contada por um amigo do detetive que reconhece estar escrevendo um livro. O que torna tal estratégia
interessante é o fato de o livro, sendo escrito, servir como meio para explicação dos fatos do crime e per-
sonagens envolvidos. Já no romance negro, as duas histórias são fundidas e o crime não é apresentado
logo no início, mas é concomitante com o fluxo da história. No que se refere ao romance de suspense,
ele conserva as duas histórias, porém, a segunda não se restringe à detecção da verdade. Nele, passado e
futuro são questionados e o foco é o desenrolar dos fatos, já que, diferente dos romances de enigma e ne-
gro, o destino final dos personagens não é previsível, e inclusive o narrador não está imune para investi-
gar sem correr riscos.
É interessante verificar o posicionamento de Sônia Coutinho sobre o romance policial, pois, além
de ficcionista, ela atuou como crítica analisando a produção literária feminina no gênero Romance Poli-
cial em um ensaio intitulado Rainhas do Crime, Ótica Feminina no Romance Policial (1994), no qual
destaca a importância da novela de crime no pós-modernismo por estabelecer-se entre o romance erudito
e de massa. Seu principal foco acerca do gênero são as produções de escritoras americanas pós-moder-
nistas que, segundo a autora, apresentam uma infração ao cânone.
Examinando estas infrações, Sônia Coutinho (1994) ressalta que os registros críticos têm deixado
de considerar o aspecto precursor do gênero, que é o romance gótico feminino, cultivado no século XVI-
II. Segundo a autora, é neste período que surge o romance da inglesa Ann Radcliffe, intitulado Mistérios
de Udolfo, seguido de Frankenstein, de Mary Shelley, no século XIX que, ainda sutilmente, já questio-
nava a posição da mulher na sociedade.
A análise coutiniana se debruça sobre a produção policial feminina norte-americana, destacan -
do que o aspecto mais importante da revolução do gênero novelas de detetive pós-modernas é a utili -
zação da ótica descentrada e descontextualizada em relação aos modelos masculinos. “Assim, este
novo tipo de novela rompe com a figura patriarcal e controladora do detetive, no policial clássico”
(COUTINHO, 1994, p. 20).
Com a evolução do gênero policial e o aparecimento de novas autoras, Coutinho considera que
ocorreu uma “quase revolução” do gênero, tendo em vista que tais textos passaram a apresentar uma vi-

26
são feminina ou feminista, a partir de detetives mulheres com imagens que desconstroem o tradicional
detetive masculino, mas que também, de certa forma, se afastam da imagem de mulher convencional.
O que se pode verificar é que o tom feminista e de crítica social, que surge com essa nova safra
do romance policial, é tratado em Atire em Sofia. Contudo, a subversão em relação à figura do detive
masculino (até então apresentado nos novos romances de autoria feminina) por meio da imagem de dete-
tives mulheres não segue o mesmo curso na obra coutiniana, já que a narrativa não apresenta propria-
mente um detetive como o conhecemos e sua figura simbólica continua relacionada à imagem do ho-
mem a partir da caracterização do personagem Fernando. Sendo assim, o que observo e destaco aos lei-
tores é a continuidade da voz do sujeito masculino que narra em alguns pontos, sobre o qual considero a
possibilidade de chamar de detetive, porém, agora com uma forte carga crítica incutida, já que este passa
a representar a voz da sociedade tradicional baiana sobre a mulher. Utilizando tal artifício, a visão que se
expõe é de uma cultura semipatriarcal sobre a mulher de seu tempo, o que aponta para a naturalidade do
crime de feminicídio naquele cenário.
De acordo com as considerações propostas por Ronaldo Costa Fernandes (1996), o romance que
quer apresentar a sociedade de sua época por meio de seus membros terá sempre em mente o estereótipo
no intuito de representar a regra geral. Este não se configura como lugar-comum, mas como representa-
ção de um segmento. Nesta perspectiva, a voz do sujeito masculino, mencionada anteriormente e execu-
tada principalmente pelo personagem Fernando representa o espaço de fala e o modo de vida da socieda-
de tradicional burguesa de seu tempo.
Apesar de a autora conferir ao detetive/narrador de Atire em Sofia o lugar de fala tradicional do
detetive masculino, este não obtém exclusividade na narrativa, pois, como mencionado, vozes e versões
diferentes são apresentadas na obra, construindo a imagem dos protagonistas a partir de perspectivas dis-
tintas. Neste aspecto, Sônia Coutinho (1994) comunga com as autoras do novo romance policial, as
quais ela estudou, já que, na perspectiva inovadora do gênero, existe uma rejeição ao tom “monológico”
em que uma só voz silencia as demais e estabelece uma versão exclusiva da realidade.
Em consonância com o posicionamento apresentado por Coutinho (1994), embora o romance
gótico possa ser considerado o precursor do gênero policial, é inegável o divisor de águas gerado a partir
de Poe, o qual, devido à sua aceitação, se tornou um modelo do policial tradicional, já que ofereceu ele -
mentos os quais a crítica se detém para discutir as características consideradas recorrentes para o gênero.
É exatamente analisando as semelhanças e diferenças com tais marcas que Coutinho estuda as produções
das autoras norte-americanas.

27
Sônia Coutinho traça uma visão ainda mais ampla sobre a estrutura do romance policial ao abor-
dar a categoria posta por Tony Hilfer, para o qual existe a possibilidade de o policial ser uma história de
crime em que algumas características, até então rígidas, são experimentadas em outros formatos, como a
não existência da intenção do detetive de levar a absolvição aos demais personagens, trazendo alívio ao
encontrar o culpado e solucionar o crime. Este movimento, que exime do detetive a necessidade de apre-
sentar um culpado e, principalmente, de trazer o alívio por criminalizar e punir um transgressor social
também não se apresenta em Atire em Sofia. Neste romance, entendo que o crime literal alcança uma
perspectiva simbólica ao estender, a toda uma conjuntura social, a culpa pela morte da mulher, já que os
motivos para o crime deixam de ser apenas passionais e se tornam uma consequência de suas infrações
ao modelo de mulher tradicional. Por isso, conforme observo, não existe uma sociedade que se vê alivia-
da pela punição do transgressor, já que a vítima também transgride seus parâmetros.
Seguindo as proposições de Tony Hilfer, Sônia Coutinho destaca que a categoria romance de cri-
me, diferente do romance policial tradicional, questiona radicalmente alguns aspectos da organização so-
cial, da lei e da justiça. Segundo ela,

[a] história de detetive tranquiliza o leitor, ao acabar com a culpa, quando o detetive faz
o trabalho do ego, dando sentido ao irracional e absolvendo. Já o romance de crime, que
concentra a narrativa no assassino, enfatiza exatamente o elemento irracional e de ansie-
dade que a história de detetive procura superar. Se nos preocupamos com as motivações
do criminoso, sua culpa nos parece cada vez mais ambígua e mais difícil de definir
(COUTINHO, 1994, p. 57).

Como é compreensível a partir do conceito fornecido por Coutinho, o romance de crime, ainda
que inspirado e guardando alguns elementos do romance policial tradicional, permite uma maior crítica
social, já que existe uma relativização da culpa. O leitor, então, passa a ter uma relação mais estreita,
como um possível cúmplice do assassinato, já que as versões oferecidas pelos diversos personagens,
bem como a disseminação da culpa, jogam com seu psicológico, cabendo a este estabelecer suas esco-
lhas de simpatias na obra.
Outra característica explorada do romance de crime é a possibilidade de não haver a figura do
detetive como conhecido tradicionalmente. Esta eliminação do personagem contribui ainda mais para a
disseminação da culpa e para a mudança de perspectivas sobre a verdade e o alívio com a prisão do cul-
pado, que não ocorre mais. É dessa forma que o romance Atire em Sofia se destaca como uma narrativa
que se apresenta em tom policial, mas seguindo a vertente crítica do romance de crime. Por isso, ao con-

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siderar a presença de um detetive na obra, o aponto como um tipo, uma figuração de detetive conside-
rando seu papel e sua descrição no romance, porém, de forma não-literal.
Outro elemento merecedor de destaque é o de que Sônia Coutinho pactua com as características
do romance de crime na obra Atire em Sofia também pela inserção da violência, pelo o que considera em
seu ensaio como um terror sutil, no qual não apenas a morte sangrenta e violenta é apresentada, mas se
inclui, ainda, a violência psicológica. Assim, além da morte de Sofia, Coutinho trata das mais diversas
formas de violência e opressão que uma sociedade, sob influência do discurso patriarcal, poderia expor a
mulher. Uma referência a isto são as marcas que a opção pelo divórcio legou à protagonista, sobre as
quais reflete: “Mas esta ferida que trago dentro de mim – […] A minha é como um estigma – não adianta
tentar me convencer de que eu não tinha alternativa, de que a vítima fui eu” (COUTINHO, 1989, p. 29).
Estas são marcas, conforme se observa no enredo, de um casamento falido, que funcionava como
uma prisão, isto é, estigmas impostos por uma sociedade que não admitia a mulher que desejava ou que
não se calava. Sofia é ameaçada pelo marido, recebe deste o divórcio diante da imposição de silêncio e
da repetida lembrança de que sequer sua própria mãe a apoiava, demonstrando, assim, a violência do sis-
tema patriarcal. Dessa maneira, diante da sua condição perante a sociedade, a personagem central cons-
tata que sua vida é como a de muitas outras mulheres “com os traumas habituais, submetida aos precon-
ceitos de uma geração” (COUTINHO, 1989, p. 73).
O contexto social é fundamental para o desenvolvimento do romance de crime, já que o surgi-
mento do romance policial se pautou nas questões sociais da nova organização urbana que eclodiu no
período da revolução industrial. Neste sentido, ao se observar o processo de urbanização brasileiro, con-
forme discute Christina Ferreira Pinto Bailey (2008) em Tales of Two Cities: the space of the feminine in
Sonia Coutinho‘s fiction, é possível concluir que a década de 1960, tratada no romance coutiniano, foi
um marco do desenvolvimento urbano brasileiro.
Em relação ao cenário baiano, os anos 50 e 60 foram significativos para o desenvolvimento urba-
no, conforme estudo intitulado Salvador nos Anos 50 e 60: encontros e desencontros com a cultura, do
sociólogo Antonio Albino Canelas Rubim e colaboradores (2006), porque representam a chegada da mo-
dernidade na capital do estado. As transformações do cenário urbano ultrapassavam os aspectos geo-
gráficos, estruturais e econômicos, assim se estendendo ao âmbito sociocultural. De acordo com Carla
Bassanezi (2004), em Mulheres dos Anos Dourados, nos anos 1950 também cresceu a participação da
mulher no mercado de trabalho, o que demandou sua qualificação profissional e gerou uma consequente
mudança em seu status social.

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Dessa nova configuração urbana e do novo lugar social alcançado pelas mulheres e, em confor-
midade com as lutas feministas, conforme já exposto, esta sociedade é retratada no romance coutiniano
de modo que aponta esses novos lugares de atuação da mulher, bem como os aspectos da tradição ainda
existentes. Sobre as rupturas e as permanências em relação à tradição nesta sociedade, o personagem
João Paulo, pensando em como construiria seu romance que, por sua vez, abrirá oportunidades para vá-
rias vozes na obra, pontua que:

Quanto a Gilda, mulher casada com quem João Paulo tem um caso, poderá aparecer como
uma mulher inteligente e sensível, mas sem nenhuma autonomia diante de seu destino.
Presa a uma estrutura patriarcal, não foi preparada para ganhar a vida, trabalhar fora, não
fez um curso universitário. Depende financeiramente da família, mas está cheia de inquie-
tações, quer romper, fugir do esquema. Personagem típica dos anos 60, principalmente em
cidades de província. Diz que se casou com um ‘burguês que ela nunca amou de verdade’,
só por causa de pressões da família (COUTINHO, 1989, p. 53).

Esta análise e a inserção desta protagonista no romance que João Paulo estava escrevendo e cujo
personagem principal era seu homônimo retrata claramente a situação vivida por ele anos antes de sair
pela primeira vez de Salvador, quando viveu tal situação com Alina. Agora, rememorando tudo, ele con-
sidera que esta é uma história datada, cujo lugar e época que se passou não poderia ser outro, sendo este
“fruto de um período em que se anunciava a chamada revolução dos costumes, mas não se concretizava
ainda” (COUTINHO, 1989, p. 53).
De fato, os aspectos sociais e o próprio espaço na capital baiana vivida por Coutinho na década
de 1960 são retratados em seu romance indicando o crescimento populacional, a busca da comunidade
negra por ocupar espaços até então legados apenas para brancos da classe média local, bem como os am-
bientes de lazer que movimentavam a vida cultural da capital baiana – espaços estes que tratarei mais
detidamente em capítulo posterior. Entretanto, tais aspectos são apresentados, primariamente, a partir
das memórias de seus personagens que retomam um contexto dos anos 1960, já quando estão em mea-
dos ou final dos anos 1980.
No tempo da narração, a cidade de Salvador já está muito transformada, sendo isso destacado pe-
los personagens João Paulo e Sofia ao retornarem a esta cidade, a qual Sofia considera “tão exótica
quanto uma capital africana ou uma metrópole oriental” (COUTINHO, 1989, p. 43). Os protagonistas se
movimentam em ruas que, há vinte anos antes, quando ali viviam, ainda não existiam, e rememoram a
diferença das sorveterias e da vida cultural que se instalou, em que a comunidade negra já se impõe em
espaços públicos, como nas lanchonetes e calçadões beira-mar. Contudo, tal conjuntura não apaga o en-

30
raizamento patriarcal daquele lugar, conforme reflete Sofia em: “Mas apesar de toda a mudança, a mo -
dorra da cidade resiste – diz Sofia. – O que há por baixo do verniz de modernismo é uma realidade ainda
patriarcal, cabeças do século passado. Uma cidade que vive em torno de famílias patriarcais” (COUTI-
NHO, 1989, p. 120).
Neste cenário, a mulher poucas vezes consegue sobreviver às pressões sociais, como a amiga de
Sofia, com quem ela estabelece o processo de reflexão descrito acima e que somente conseguiu sobrevi-
ver porque restaram alguns bens do casamento que tivera. Porém, ambas as personagens demonstram
consciência de que não são aceitas socialmente.
É no contexto de uma capital, marcado pelo trânsito entre passado e presente, entre Salvador e
Rio de Janeiro, por aspectos urbanísticos e por valores tradicionais que se insere o discurso e a produção
do romance de crime coutiniano. É por refletir essas mudanças no panorama social, nacional e baiano,
que escolhi discorrer sobre uma autora pode ser elencada, como assinala Bailey (2008), no rol de escri-
tores que produzem uma nova e importante ficção urbana a partir das décadas de 1960, 1970 e 1980, en-
tre os quais se incluem Rubem Fonseca (1925-), Tania Faillace (1939-), Roberto Drummond (1940-
2002) e Sérgio Sant'Anna (1941-).
Segundo a discussão empreendida por Bailey (2008), tais escritores apresentam técnicas narrati-
vas inovadoras e francas que refletem sobre as transformações sociais e culturais de sua época. Bailey
(2008) considera que a narrativa contemporânea brasileira caracterizou-se como principalmente urbana
em suas perspectivas e preocupações temáticas e é neste âmbito que a obra de Sônia Coutinho se con-
textualiza como uma vertente da narrativa urbana, refletindo sobre os diversos processos de transforma-
ções sociais e sobre o lugar de inserção da mulher.
Nos anos 80, década em que foi produzida a obra Atire em Sofia, o país já havia passado por perío-
dos conturbados politicamente em razão da ditadura militar. O discurso progressista de “país do futuro” já
não incutia mais expectativas aos cidadãos, sendo este solo ideal para finalmente se estabelecer o roman-
noir, o qual situa o crime em um contexto de sociedade corrompida, assim permitindo que o olhar possa se
voltar para uma sociedade em decadência, que transita entre questionáveis valores burgueses.
Também a respeito do momento de produção e publicação do romance, é importante observar
que a ideologia burguesa ainda exercia grande influência social, disciplinando o modo de vida nos espa-
ços de trabalho e interferindo nas relações familiares – como o faz até os dias de hoje, em maior ou me -
nor grau. Contudo, muitas mulheres já vinham buscando romper padrões, como se observa a partir das já
mencionadas lutas feministas pelos direitos da mulher.

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Neste contexto, o ponto em que quero chegar é que Atire em Sofia trata sobre a condição da mu-
lher lançando mão de algumas características do gênero de crime para questionar o lugar de fala do su-
jeito feminino. É nesse sentido que Sônia Coutinho se junta ao rol de escritoras brasileiras que se dedica-
ram ao gênero, como:

Lúcia Machado de Almeida, com O escaravelho do diabo (1956), Rachel e Diná Silvei-
ra de Queiroz, colaborando no romance O mistério dos MM, junto com Lúcio Cardoso,
Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, Guimarães Rosa e Antonio Calado, na déca-
da de 1920, para a revista O Cruzeiro; décadas mais tarde, na revista Mistério Magazine,
de Ellery Queen, Nadja Bandeira, em 1971, Vilma Guimarães Rosa, Inês Paese, Clecy
G. de Freitas. Escrevendo um livro policial infantil, Clarice Lispector, com O mistério
do coelho pensante. Maria Alice Barroso publicou o conhecido romance Quem matou
Pacífico (1969) (LOBO, 1999, s/p, grifos do original).

Contudo, apesar de a escrita coutiniana apresentar uma perspectiva do gênero de crime, entendo
que tal artifício é utilizado tendo em vista, primariamente, o objetivo de estabelecer um discurso crítico
em relação à morte da protagonista, já que esta revela a condição social da mulher representada no ro-
mance e sua luta contra o discurso patriarcal de opressão e de silenciamento.

1.3 TECENDO A HISTÓRIA DE UM CRIME: A MORTE COMO PREÇO DA TRANSGRESSÃO

Atire em Sofia apresenta a vida de um grupo de amigos da cidade de Salvador revelando suas lu-
tas e caminhos, que vieram a culminar na morte de Sofia do Rosário. No romance, a narrativa ocorre em
duas partes, separando os tempos passado e presente e marcando na divisão da história uma abertura
para a versão de diversos personagens, inclusive a vítima, Sofia.
Em um primeiro momento, sem anunciar a morte da personagem (como tradicionalmente se faz
em romances de crime), a voz narrativa, a partir do personagem Fernando, apresenta aos leitores o clima
sombrio que se instalou na cidade de Salvador, que não é nomeada, mas que é presumível por causa dos
detalhes da narrativa. A exemplo, cito a menção a uma forte chuva e a um verão atípico, o qual sempre
era apresentado no início de suas falas trazendo à tona o aspecto cinza e sombrio daquele período da se-
guinte forma: “Verão esquisito, muito esquisito, pensa Fernando outra vez” (COUTINHO, 1989, p. 11).
Desde o título, “Verão com assombrações”, há uma sugestão que se fortalece nas falas do narrador Fer-
nando. Após ambientar o leitor nesse clima de mistério e de horror, o narrador relembra-se dos antigos
colegas de escola diante de uma fotografia e então o espaço de fala se abre para os demais personagens,

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como Sofia, João Paulo, Matilde e até Milena. O tempo em que essas outras narrativas tomam espaço já
é o presente e o assassinato já ocorrera, mas o leitor somente saberá disso quase ao final do enredo,
quando Fernando, personagem-detetive, retoma a narrativa para estabelecer a reflexão final sobre o as-
sassinato de Sofia.
Semelhante à estrutura do romance do tipo policial/enigma, na obra de Sônia Coutinho, o perso-
nagem João Paulo, em seu retorno para Salvador, deseja escrever um livro. Neste caso, assim como nos
clássicos, há a evocação de que o romance escrito por um amigo do detetive será utilizado para contar a
história. João Paulo, que escrevia um romance policial, faz uma clara referência à obra do norte-ameri-
cano William Clark Styron (1979), A Escolha de Sofia, no qual possui um personagem chamado Stingo
se envolve com uma personagem também chamada Sofia em uma relação de amizade, amor e profundas
confidências, a qual também culmina na morte da personagem feminina. Entretanto, na proposta de João
Paulo, que aparece ao leitor como um interessante exercício metaficcional de Sônia Coutinho, persona-
gem e autor se invertem dentro do enredo: agora, o autor será Stingo e João Paulo será o personagem
que se relacionará com Sofia. Não somente a proposta de romance do personagem, como a própria pro-
dução de Coutinho, trazem inúmeras referências à obra mencionada, especialmente no que diz respeito
às escolhas e traumas das protagonistas de ambos os enredos.
João Paulo, que por diversas vezes havia associado Sofia à imagem de mulheres guerreiras e
míticas como Maria Quitéria e Iansã, agora a relaciona com a protagonista de seu romance, a ex-Miss
Laura Luedi, que foi morta em um quarto de hotel:

Um deles é Laura Luedi, loura e lindíssima, como nos tempos em que quase foi Miss uni-
verso. Uma boneca, mulher criança, cujo rosto, de repente, sob seu olhar perplexo, trans-
forma-se agora em outro, moreno, com traços de índia, cabelo liso e negro e batom muito
vermelho. É Sofia que ele vê desfilar, no lugar de Laura (COUTINHO, 1989, p. 42).

Este trecho integra os planos do personagem romancista para a elaboração de seu romance, de-
monstrando que sua protagonista baseia-se na pessoa de Sofia. Este e outros fatos em sua ficção fornece-
ram os indícios necessários para que o leitor compreenda e pactue ou não com os motivos que o levaram
a possivelmente ter assassinado Sofia.
Ainda que não seja o romance aquilo que esclarece plenamente os fatos, ele fornece diversas pis-
tas para a compreensão do crime. Assim, como nos clássicos policiais, o uso da metaficção auxilia para a
explicação da estrutura da obra, pois João Paulo, refletindo sobre como irá estruturar sua própria produ-
ção, fornece ao leitor de Atire em Sofia as informações sobre a estrutura do romance coutiniano.

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Para ilustrar e esclarecer melhor essa questão, selecionei, abaixo, a descrição que o personagem
elabora para o seu romance:

A partir do assassinato de Laura, decide João Paulo, o romance vai desenvolver-se em vá-
rios níveis. Num plano mais objetivo serão contadas as investigações policiais. Em outro
plano, mais psicológico, vem a história presente e passada do jornalista e a trajetória de
Laura – três décadas de transformações de comportamento (COUTINHO, 1989, p. 51).

Assim como descrito acerca das intenções de constituição do texto a ser escrito pelo personagem,
o romance coutiniano apresenta a história presente e passada do jornalista João Paulo, a trajetória de So-
fia e os fatos da investigação que, por sua vez, são as observações do personagem-detetive Fernando,
que também participa da narração, a quem importa relatar os fatos e não a buscar a justiça. Com tais arti-
fícios, o tempo rememorado e o tempo da ação contribuem para que sejam retratadas, exatamente, três
décadas de mudanças de comportamentos sociais. Para tanto, a escritora lança mão de uma narração par-
tilhada entre diversos personagens, destacando-se nesta função, especialmente, o personagem Fernando.
Fernando contrapõe-se à figura clássica do detetive, pois seu objetivo não é levar o culpado à lei,
mas apresentar os acontecimentos, conforme a proposta do romance de crime. É na própria voz desse
narrador que ele se coloca na posição de detetive, quando, sentado em sua poltrona, lê trechos do roman-
ce de João Paulo em que são descritos os sinistros interiores de apartamentos. Pelas argumentações de
Fernando, o leitor pode observar que ele relaciona as descrições com o próprio apartamento, como após
o trecho: “Como num romance policial, daquele tipo em que o detetive mora numa pocilga e tem um es-
critoriozinho horrendo e sórdido, mas é absolutamente eficiente e genial, desvendando todos os crimes”
(COUTINHO, 1989, p. 180).
É certo que tais considerações estão envolvidas em uma espécie de devaneio quanto à imagem
do apartamento e do escritório do personagem, já que era membro da classe média baiana e sua posição
social lhe dava condições para ter um apartamento e um escritório que destoam da descrição anterior.
Entretanto, integrando-se à posição simbólica de detetive a que o personagem incorporava, ele modifica-
va a cena para melhor se adequar ao contexto.
Vale lembrar que Fernando é descrito como alguém que nunca se casou. Quando questionado
pelo familiares a respeito do seu desinteresse pelas mulheres e da sua atenção ou gosto pela língua e pela
cultura grega, ele os pacifica deixando claro que não pretende contestar seus costumes. Submetido à tra-
dição, como apontara no passado a personagem Sofia, Fernando se mostra uma pessoa que sempre busca
agradar aos demais, ao ponto de se anular, cercado por um meio medíocre o qual ele zelava por integrar.

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Como advogado, sempre de sua poltrona no escritório, à semelhança de Dupin, ele parece representar a
ética social de seu tempo, compondo a típica imagem do homem branco burguês. Como no caso daquele
famoso detetive, não se envolve na ação, mas “soluciona” o caso na inércia de sua poltrona..
A partir da discussão de Norma Telles (2007), observamos que tanto na história como na literatura
encontramos a figura do homem branco e burguês, de maneira predominante, como sujeito com natural di-
reito à voz, e que silencia, de modos distintos, os discursos marginais, como os de mulheres e de negros.
Considerando esta produção de autoria feminina, é curioso observar que os papéis em seu discurso femi-
nista estão bem definidos, atribuindo àquele que historicamente foi dominador, conforme propõe Bourdieu
(2012), a permanência em seu papel de opressor. Contudo, entendo que, diante das subversões ao gênero
romanesco de crime, a autora confere uma visão crítica a esses papéis, denunciando o conjunto de valores
tradicionais que insistem em legar à mulher o papel de subalterna e de sujeito dominado.
A imagem do “detetive” Fernando, a partir do conforto de seu escritório e de sua poltrona, nos
revela algo bem mais simbólico do que a postura positivista de homem pensante, inteligente, mas tam-
bém remete à própria postura da sociedade tradicional frente ao crime, especialmente, aquele contra uma
mulher transgressora. Também, recordando a discussão proposta por Rita Terezinha Schmidt (1999), em
Transgressão da Margem e o Destino de Celeste, observamos que existe uma retomada crítica neste ro-
mance do aparato ideológico que corrobora as leis do casamento e das virtudes femininas. Dessa manei-
ra, apresenta a loucura e a morte, as quais são questões tratadas mais adiante neste texto, como o preço
da transgressão de mulheres adúlteras, fatos estes que, segundo a autora, objetivam nos clássicos:

[à] socialização das personagens femininas dentro de limites legais, econômicos e se-
xuais, inscrevendo os desejos individuais num código coletivo de ações, cujas sequên-
cias reforçam comportamentos psiquicamente introjetados e papéis socialmente legiti-
mados (SCHMIDT, 1999, p. 673).

É possível observar o personagem Fernando como um representante ideal deste discurso, como
se nota em sua ponderação sobre versos do poeta grego Píndaro de Cinoscefale, os quais resumem seu
propósito de vida e moderação:

“Não se deve pedir aos deuses senão o que convém a corações mortais./É preciso ter o
olhar fixado nos pés para nunca esquecer sua condição. /Não aspires, minha alma, a
uma vida imortal;/pelo contrário, exaure o campo do possível”. O que procurou a vida
inteira, pensa, levantando-se para receber o cliente que acaba de entrar, foi o mèden
ágan grego, a regra da moderação, do nada em excesso. Porque o simples mortal,
quando ultrapassa a medida, incorre na hýbris, no descomedimento. Desencadeia o ci-

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úme dos deuses e é punido com a némesis, caindo nos braços das Moiras, o destino
cego. Foi o que aconteceu com Sofia, conclui, num relance, estendendo a mão para
cumprimentar o cliente (COUTINHO, 1989, p. 64, grifo do original).

Outra vez, do conforto de sua poltrona, no escritório, o personagem Fernando empreende refle-
xões sobre sua própria vida e sobre a de Sofia e, conforme expresso no trecho acima e na continuação de
seus devaneios, pode-se observar sua busca por manter os padrões de comportamento moderado ao lon-
go da vida, considerando e justificando, de certa forma, a morte de Sofia por fugir do ideal, isto é, por
“não olhar para os pés” para nunca esquecer sua “condição”. Por isso, a inserção dos aparatos ideológi-
cos tradicionais dos romances canônicos pode ser relida no romance Atire em Sofia, contudo, agora im-
buída de uma visão crítica que demonstra um momento de transição entre tradição e modernidade.
Valendo-se de uma voz narrativa preponderante, o narrador/detetive promove um constante rol
de circunstâncias e de características sobre o personagem João Paulo, que irá torná-lo como o assassi -
no, de fato, durante a narrativa. Isso também é corroborado pelo narrador em terceira pessoa nos mo -
mentos que apresenta cenas com o personagem, mostrando-o em gradual processo de loucura em de -
corrência das transformações porque a cidade do retorno e de suas raízes (Salvador) passou ao longo
dos tempos. Além disso, sua história de vida (filho de uma mulher que mantinha um relacionamento
com um homem casado, vivendo com o apadrinhamento financeiro de tal homem ao longo de seu pro -
cesso de formação) e a repulsa que sentia em relação às mulheres oriunda do próprio jogo de
amor/ódio que nutria pela mãe são os principais elementos que servem como justificativa pelos seus
atos, como é possível verificar no seguinte trecho:

Estava com 12 anos quando ela começou a se relacionar com o coronel, Seu Francisco,
como nunca deixou de chamá-lo, mesmo quando ele se transformou quase num pai.
Mais tarde, já separado de sua mãe, jamais deixou de lhe mandar a mesada que o susten-
tou numa pensão de luxo onde morou durante o último ano do secundário e, depois, du-
rante o curso de Direito. Receber dinheiro do “ex-amante de sua mãe”, como ouviu certa
vez um colega comentar, às suas costas, causava-lhe humilhação, mas, ao mesmo tem-
po, uma voz cínica dentro dele lhe dizia que era melhor aproveitar enquanto pudesse
(COUTINHO, 1989, p. 41).

A sensação de humilhação expressa no excerto anterior era crescente para João Paulo, inclusive,
em outras áreas de sua vida, e expressa uma contínua e geral insatisfação com a vida. Tal aspecto pode
ser observado em outros trechos do romance, como no seguinte:

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De certa forma, o sucesso, só que não lhe sentiu o gosto, mas sim a insatisfação de sem -
pre, a sensação constante de estar batendo numa tecla errada. E o mesmo acontecia com
as várias mulheres que foram passando por sua vida, nas quais acabava descobrindo,
inevitavelmente, num misto de fascinação e nojo, uma parecença insuportável com sua
mãe – bonita, temperamental, “rapariga” (COUTINHO, 1989, p. 41).

Diante do crescente estado de insatisfação de João Paulo, de seu processo gradual de loucura e
da aversão ao ideal de mulher sexualmente livre, fica subentendido, no decorrer da narração, que ele é o
autor do crime. Contudo, em um capítulo sugestivo, intitulado como “Dedo no Gatilho”, Fernando apre-
senta os assassinos de Sofia do ponto de vista simbólico e social, como se verifica no seguinte trecho:
“O gatilho da arma assassina, pensa, foi apertado por muitas mãos. E o alvo daqueles três tiros não era
exatamente Sofia, sua pessoa física, mas o que ela representava, seu desafio” (COUTINHO, 1989, p.
114). Em seguida, ele traz um rol extenso dos possíveis “assassinos” de Sofia, como as damas que se ca-
saram na igreja, vestidas de branco, e que faziam a vida inteira o que as mães lhes diziam para fazer; fa-
mílias inteiras, que prepararam seus filhos para serem bons católicos; os pais que traziam dinheiro para
sustentar a casa; as mãos dos homens que quiseram se deitar com ela, mas foram rejeitados; a mãe de
sua própria mãe, que tentou modificá-la; e seu irmão, que até deixou de falar com ela. Havia, ainda, as
mães que criaram seus filhos e que também uniram suas mãos e declararam: “‘Nós nunca faríamos o que
ela fez, ir embora assim, deixando as duas filhas’ – e juntaram os dedos, apertaram três vezes o gatilho”
(COUTINHO, 1989, p. 115).
Permito-me lembrar ao leitor, mais uma vez, de que Sofia é uma mulher que busca se libertar e
não se submeter aos ditames sociais de seu tempo. A personagem resume toda a plenitude de mulheres
que não se curvam perante a imagem do homem ou da sociedade tradicional. Portanto, faz parte do rol
das transgressoras justamente porque rompe com a família e, consequentemente, com os padrões de vida
impostos pela sociedade burguesa de seu tempo. Neste sentido, o romance de crime, por se tratar de uma
vertente que se desenvolveu permitindo se estabelecer uma perspectiva de crítica social, funciona, a meu
ver, com maestria, como meio para a exposição da violência física e simbólica contra a mulher. É, por-
tanto, o gênero que melhor permite esta construção de abordagem.
O personagem João Paulo baseia seu romance em fatos de sua própria vida e de seus amigos,
sendo um dos recursos do romance a sobreposição de personagens que constituem duplos, como
Sofia/Laura Luedi, afinal: “É Sofia que ele vê desfilar, no lugar de Laura” (COUTINHO, 1989, p. 42).
Cientes desta relação entre o romance escrito por João Paulo e a narrativa Atire em Sofia, é possível
compreender que a noção de culpa pelo crime, muitas vezes, remetido à própria vítima em sociedades

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tradicionais, se apresenta criticamente na obra. A este respeito, verificamos quando o próprio persona-
gem, explicando a Fernando como seria a protagonista de seu romance, expõe que:

Para ela, embora vítima, sua culpa era igual, ou talvez maior que a do tio, por ser mu -
lher. Então, não denunciou o tio, não teve coragem de contar aquilo a ninguém, guar-
dou segredo em torno do que havia acontecido, durante o resto da infância e a adoles-
cência inteira. Simplesmente, curtiu sua culpa, seu medo, seu nojo do tio e sua atração
por ele, ao longo de intermináveis aulas de catecismo a que era obrigada a assistir, na
escola. (…) De certa forma, talvez tivesse razão, é mais provável que, se tivesse con-
tado, todo mundo dissesse que aquilo era produto de sua imaginação, que tinha inven -
tado aquilo. Ou então diriam que, de alguma forma, a culpa tinha sido mesmo dela
(COUTINHO, 1989, p. 135).

No trecho anterior, João Paulo utilizou um fato da vida de Sofia para a composição de sua perso -
nagem Laura Luedi, uma vez que ambas vivem um trauma de terem sofrido um abuso sexual pelo tio. O
que se percebe é que o jogo de violência psicológica, iniciado no âmbito da educação em uma família
católica conservadora, estende-se ao longo da vida da personagem e, logo, na vida da própria Sofia. As-
sim, o sistema patriarcal e suas pressões se estabelecem como o primeiro aspecto de violência contra a
mulher na obra. É nesta perspectiva que, segundo o personagem Fernando, João Paulo considera sua
personagem como um caso sociológico, como se relata:

Seus traumas, sob certos aspectos vinham dos limites impostos às mulheres de sua gera-
ção, dos preconceitos a que estavam submetidas. Por exemplo, a ideia generalizada de
que sexo, em quaisquer circunstâncias, era pecado e deixava a mulher impura. No fundo
de sua cabeça de anos 50, ela achava que tinha pecado gravemente, que estava em peca-
do mortal por ter sido seduzida ou estuprada (COUTINHO, 1989, p. 135).

O caráter subversivo a que chega Sofia em sua vida adulta é descrito pelos protagonistas mascu-
linos e também aceito por ela. Tal posicionamento é tão marcante que a própria personagem declara, por
diversas vezes na obra, ser como Lilith. Inclusive, esta é sua última reflexão diante da morte em que diz:

Sou eu Lilith, encarnada também nas Harpias, na Medusa. Eu, o íncubo. Quem, duran-
te a noite, sofria de terrores e tinha delírios, quem saltava a cama apavorada e corria,
era do meu ataque que estava fugindo. Cubro o corpo dos homens com meu corpo
quente e dizem que meu abraço é tão furioso que sufoca. Minhas vítimas têm o maior
orgasmo de suas vidas, mas depois desfalecem e entram em crises de melancolia. Um
dos meus privilégios é causa a loucura. Assim me viram os homens, porque eu era livre
e solitária (COUTINHO, 1989, p. 178, grifos do original).

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A mulher apresentada por Coutinho reflete o ideal de deusa, contudo, se distingue das apresenta-
das pelas autoras do gênero, já que a mulher permanece como vítima e não como detetive. Sendo assim,
o que se verifica é que o ideal mítico ao qual se relaciona a mulher no romance de crime está voltado
para a força e a sagacidade da mulher detetive, enquanto que, no romance coutiniano, está voltado para o
arquétipo feminino construído socialmente, tema este que tratarei mais adiante.
A detetive de saias de Agatha Christie, por exemplo, se diferencia por utilizar atributos conferi-
dos tipicamente à mulher, como a intuição, para resolver seus casos. Contudo, o traço mais marcante de
sua escrita, apontado por Coutinho (1994), é a maneira como lida com a questão da identidade, coadu-
nando com a tradição do gênero, pois apresenta o crime e seu desenrolar buscando estabelecer a identi-
dade da vítima e do assassino. Para tanto, a autora estabelece na narrativa um jogo de máscaras, o qual
se dá muitas vezes, pelo uso de uma identidade falsa. Além disso, apresenta um universo desconhecido
e/ou inatingível, como velhas ricas e celebridades das artes.
No romance Atire em Sofia, a questão da identidade também está presente, porém, sua perspecti-
va vai além de revelar a identidade superficial da vítima e do assassino: é uma busca da própria persona-
gem feminina pelo autoconhecimento. É pela voz da própria personagem Sofia, a vítima, que sua identi-
dade será questionada, suas emoções, seu ser, tomando-a em uma perspectiva existencial, consoante o
que foi apresentado por Julian Marías (1981) sobre a crise do feminino que se desponta no século XX,
conforme discutido anteriormente.
À semelhança de Agatha Christie, Sônia Coutinho também insere em seu romance algumas cele-
bridades do mundo artístico, como Jim Morrison e Maria Callas, em diálogo com seus protagonistas. Es-
tas celebridades irão contribuir para o processo de descrição do estado do ser dos próprios protagonistas
com quem se relacionam, revelando a simbólica mulher louca que se tornou Matilde. Tal processo tam-
bém consubstancia a libertação da personagem Milena, por via da música em estilo rock ‘n’ roll.
A perspectiva da mulher mítica ou demonizada é apresentada por Fernando que, em certo ponto,
já havia tido uma experiência com a figura da mulher-leão-alada ou íncubo, quando refletia sobre o as-
pecto sobrenatural daquele verão:

Olhou em direção à igreja e viu no adro a mulher-leão-alada, sereia terrestre, a Esfinge


que cantava, propondo seu enigma. Hipnotizado, desceu do carro, caminhou em sua dire-
ção pela rua deserta. Num segundo, a Esfinge se transformou em princesa, fada, ovelha
negra, cadela, gata, pantera, em Iemanjá. Ávida de sangue e de sexo, aproximou-se dele e
o derrubou, sentando-se em seguida sobre seu corpo. Em poucos segundos, ele teve um
orgasmo devastador e desmaiou. Quando voltou a si, estava sozinho na calçada, cercado
por um grupo de mendigos que o observavam em silêncio (COUTINHO, 1989, p. 80).

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Mais tarde, Fernando pensou sobre histórias de íncubos, chegando, por algumas vezes, a cogitar
que aquele verão foi tão terrível que a ideia mais lógica é de que ele não existira ou que fora inventado.
Este recurso fortalece a perspectiva do romance de crime que relativiza a verdade – ou mesmo a pulveri-
za em várias facetas. O medo ao que é desconhecido, essa associação da mulher com o mítico e o terrí-
vel são elementos apontados por ele mais adiante quando efetua uma observação sobre a morte de Sofia:

E sua própria mão, também não apertou aquele gatilho? - pergunta Fernando a si mes -
mo, sentado em sua poltrona, depois do jantar, segurando no colo o velho álbum. Porque
contra ele também era lançado o desafio de Sofia, contra ele e sua estratégia de acomo-
dação, tudo que o salvou de servir de alvo, em lugar dela – ele imagina – para aqueles
três tiros (COUTINHO, 1989, p. 115).

A esfinge alada, que anteriormente lhe propunha um enigma, é agora claramente apresentada em
Sofia e seu desafio contra o verdadeiro ser de Fernando. Sua figura nada mais é do que a representação
da transgressão, da Lilith que contraria os padrões, impondo medo e lançando luz sobre as grandes ques-
tões de sua vida. Apesar de semelhante a Dupin, que busca solucionar o crime a partir de sua poltrona,
isto é, sem envolvimento na ação, neste ponto a vida do detetive Fernando começa a se cruzar com a
vida da vítima. A narrativa começa a revelar alguns aspectos de envolvimento do detetive com a vítima e
com o próprio assassinato.
Ao observar a maneira como se constrói o retrato do personagem Fernando enquanto detetive, vê-
se que suas características estão voltadas para o tipo de homem aceitável pela tradição. Contudo, em rela-
ção às características legadas ao detetive, Muniz Sodré (1978) ressalta que este, tradicionalmente, corres-
ponde à figura do herói mítico. Ademais, destaco a presença constante de oposições míticas, como de Deus
e o diabo, o bem e o mal – jogos de oposição que levam o herói detetive a buscar uma resolução.
Ao relembrar as considerações de Coutinho (1994) sobre a produção policial de autoria femini-
na, posso perceber que existe uma inversão em relação ao desenho do detetive, bem como da vítima. Em
seu ensaio que trata da questão, a autora considera que produções femininas da nova safra de policiais
apresentam detetives femininas que “trazem imagens de mulheres fortes, que remetem às poderosas deu-
sas da antiguidade, fortes e guerreiras, como Artemis dos gregos ou a Iansã dos iorubás, cultuada na Ba -
hia como na África” (COUTINHO, 1994, p. 90). Estas referências, associadas ao mito no romance cou-
tiniano, conduzem ao ideal de força e de transgressão da protagonista Sofia, já que, tanto a figura de Ian-
sã como de Artemis, remete aos leitores a um ideal de mulher guerreira e audaciosa. Assim sendo, sali-

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ento que tais representações são recorrentes durante todo romance Atire em Sofia, sendo fundamental
para se compreender a imagem de mulher na ficção de Sônia Coutinho. Por isso, dedicarei mais atenção
a esses processos produtivos adiante, em um capítulo específico.
O labirinto ficcional de Coutinho revela um detetive masculino que se vê, em certo ponto, sedu-
zido e envolvido no plano emocional com a vítima, ficando impossibilitado de resolver o mítico. Este
aspecto não se pauta na tradição do romance policial, mas descortina uma divergência com este, já que a
construção da imagem heroica de um detetive não se realiza. Esta impossibilidade de uma imagem de
herói pode ser considerada intencional e uma estratégia narrativa, pois se opõe à figura clássica do ho-
mem da lei tradicional do século XIX e desnuda um homem ligado à moral patriarcal do século XX.
Neste sentido, a própria Sofia, ao retornar a Salvador, rememorando sua antiga turma da juventude, des-
creve Fernando nos seguintes termos:

Fernando e seu esforço constante para agradar, até o ponto de auto-anulação. Seu medo
de exibir a própria inteligência, de fazer qualquer uso dela para além das necessidades
do cotidiano, achando que talvez isso, de alguma maneira, possa distanciá-lo do meio
em que vive, um meio medíocre no qual certas observações mais penetrantes destoari-
am, quem sabe chamando a atenção para o que ele tem de irremediavelmente singular.
Fernando e o mistério que sempre cercou sua vida amorosa, aparentemente inexistente.
(…) Fernando e seus constantes sins (COUTINHO, 1994, p. 16).

Como se observa no trecho acima, o esforço do personagem Fernando em se manter incluso na-
quele seu meio social burguês era contínuo ao ponto de anular suas próprias opiniões e vontades. Ele é ze-
loso por sua posição de advogado e de professor de Grego, sempre buscando atitudes comedidas, priman-
do pelo rigor metódico e pontualidade em todos os atos de sua vida. Além disso, é um personagem que in-
tegrava uma família tradicional, pois era considerado como “um bem situado membro da parcela privilegi-
ada dos moradores da cidade, brancos, diplomados, bem instalados” (COUTINHO, 1989, p. 34).
Diante do exposto até agora, presumo que o leitor já tenha observado que Sônia Coutinho lança
mão do discurso em tom policial, por meio do romance de crime, para efetuar uma construção crítica em
relação à visão social sobre a mulher retratada na obra, especialmente, a partir do detetive-narrador Fer-
nando. A meu ver, este parece ser o aspecto que mais encerra singularidade sobre o romance que aqui
busco esmiuçar. A condução da narração por um detetive-personagem e dos demais protagonistas é um
movimento que favorece uma visão mais ampla da proposta crítica da obra. Esta é uma dinâmica reco-
nhecida por Vera Lúcia Follain de Figueiredo (1988) como característica da literatura de crime brasileira
a partir dos anos 30, sobressaindo a figura do detetive-narrador que, neste caso, não se consuma como

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narrador integralmente em primeira pessoa, mas como fio condutor da mesma. Segundo Figueiredo, os
personagens de Rubem Fonseca, por exemplo, refazem o percurso do pensamento para a ação até se fa-
zer chegar ao ponto da “imaginação ficcional”, que coloca em xeque a noção de verdade. Este movimen-
to, no texto coutiniano, encontra-se no fato de haver uma releitura de textos alheios, neste caso A Esco-
lha de Sofia, de William Styron (1979), como apontado anteriormente, bem como no processo de aproxi-
mação entre as figuras de detetive e de narrador. Estes são diálogos que, segundo percebo, só provam o
caráter de pontencialidade e de virtualidades possíveis da matéria literária, a qual se constitui, definitiva-
mente, inacabada ou sempre em movimento.
É possível perceber uma tendência de o narrador utilizar o personagem Fernando e de sua imagina-
ção para preencher as lacunas sobre o crime, principalmente ao lançar mão do texto inacabado produzido
por João Paulo. A este artifício de transição entre dedução lógica para uma imaginação ficcional, cujo ob-
jetivo é apontar uma resposta plausível para os fatos nos romances de crime contemporâneos, Figueiredo
(1988) atribui ao processo de aproximação entre detetive e narrador. Neste sentido, considera que:

Nem a observação direta, nem a dedução lógica são suficientes para a apreensão de toda
a complexidade do comportamento humano, os personagens narradores ao perceberem a
impossibilidade de chegar a palavra original, elegem a interpretação, conferindo ao ato
de narrar a tarefa de construção de uma versão verossímil que substitui a verdade inatin -
gível (FIGUEIREDO, 1988, p. 23).

A oposição entre detetive e criminoso também é amenizada já que, em dado momento, Fernando
é apresentado pelo narrador em terceira pessoa, que o mostra interrompendo sua leitura do livro produzi-
do por João Paulo, o qual o levava a traçar as possíveis respostas para o crime, passando a manusear
uma pistola Walter (a mesma utilizada no crime), como vemos em:

Fernando levanta-se da poltrona, vai ao seu quarto, abre uma pequena gaveta interna do
armário, tira de dentro uma pistola Walter. Deita-se na cama, acariciando a pistola, fecha
os olhos e continua a imaginar a cena — João Paulo sentado à beira da cama onde Sofia
está deitada, nua e muda de terror (COUTINHO, 1989, p. 177).

Este jogo da impossibilidade de uma verdade definitiva, em que há a utilização do detetive também
como leitor do texto alheio, que passa a trabalhar a partir de uma imaginação criadora, leva o exercício de
ler e criar a adquirirem contornos muito tênues na ficção. Isto se dá devido à relativização da verdade em
todos os âmbitos, já que o principal narrador dos fatos também tem sua versão questionada. Neste ponto, o
narrador em terceira pessoa aponta as considerações feitas pelo detetive-narrador Fernando:

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Verão esquisito, muito esquisito, torna Fernando a pensar. Um verão que, quem sabe,
não foi real, mas inventado por ele, nesta poltrona, num jogo de imaginação. Se João
Paulo tivesse realmente sumido, o que poderia ter-lhe acontecido? Será que se jogaria
no mar, pulando dos rochedos que ficam por trás do farol? OU cairia acidentalmente? E
o cadáver não poderia ter sido devorado pelos peixes, ou carregado sem retorno pelas
águas? Ou, ainda, não irá reaparecer a qualquer momento, tendo no peito três balas de
uma pistola Walter? (COUTINHO, 1989, p. 182).

As pistas fornecidas entre a relação do livro inacabado de João Paulo e a atividade de imaginação
criadora de Fernando conduzem ao questionamento da própria noção de autoria do crime, bem como dos
fatos apresentados sobre este. Este é, segundo entendo, um recurso estabelecido pela autora, a partir da voz
narrativa em terceira pessoa, o qual traz a impossibilidade de uma resposta verdadeira e definitiva para o
assassinato de Sofia e sintetiza o caminho de falta de respostas para todo um comportamento social apre-
sentado na obra. Talvez seja por isso que, em momento específico, se elenca um rol extenso das mãos que
puxaram o gatilho, trazendo para a reflexão o papel da perspectiva patriarcal e da cultura de morte e demo-
nização conferida à mulher que é independente financeira, moral e sexualmente no meio social brasileiro.
Neste sentido, diante das diversas mãos que simbolicamente apertam o gatilho assassino contra Sofia, o
meio patriarcal é condenado em primeira instância, já que as noções de pertencimento e de identidade são
ignoradas socialmente quando o indivíduo não compactua com os mesmos discursos da tradição.
Para compreender melhor as relações deste jogo de impossibilidade de uma “verdade definitiva”,
Coutinho (1994) elucida que o pensamento pós-moderno é que questiona conceitos como de autoridade,
hierarquia, homogeneidade, bem como possui, em seu cerne, a questão da identidade. As certezas e os
padrões estabelecidos passam a ser questionados, sendo estes questionamentos frutos das lutas feminis-
tas que se despontaram nos anos de 1960, como já mencionado.
Em Atire em Sofia, o que se tem é o questionamento sobre quem estabelece os conceitos do modo
de vida feminino, bem como desconstrói o ideal de homogeneização cultural. Isto ocorre, sobretudo, a par-
tir do desmascaramento dos valores da burguesia, principal colaboradora dos ideais patriarcais, e da repre-
sentação das lutas de negros para se imporem dentro da sociedade brasileira, especialmente a sociedade
baiana dos anos 1980 (COUTINHO, 1994). A esse respeito, a autora propõe em sua obra crítica que:

Nos anos 60, ocorreu o registro da História, de grupos que antes não se manifestavam nem
apareciam, grupos definidos por suas diferenças de sexo, raça, preferências sexuais, identida-
de étnica, nacionalidade e classe. E esse registro se tornou mais completo nos anos 70 e 80,
permitindo uma visão mais clara de grupos que podem ser chamados, na expressão de Linda
Hutcheon, de ex-cêntricos, ou seja, fora do centro, off-centro (COUTINHO, 1994, p. 29).

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O período retratado no trecho anterior se refere também ao tempo narrativo da obra em estudo.
Sendo assim, o que se observa é o registro das transformações, avanços e questionamentos propostos por
grupos minoritários, como mulheres e negros. Dessa forma, as cenas evidenciam as diferenças históricas
em relação ao lugar da mulher nos períodos retratados, já que esta é uma vertente do discurso feminista.
A morte, na obra, se destaca como consequência da maneira cíclica que o discurso da tradição
ainda se mantém, mesmo com a transição do tempo, como apresentado. Diante do exposto, pode-se ob-
servar que o meio social, como já visto, é o elemento primordial para o surgimento do gênero policial, o
qual adquire com a inserção da crítica social no romance de crime contemporâneo uma nova perspecti-
va, uma marca notória do gênero no panorama nacional. Contudo, mais do que cenário para um romance
de crime, o que busco deixar claro é que a função primordial das cidades e dos espaços ao longo da obra
é fornecer elementos para identificação do Ser de suas personagens. Neste sentido é que aqui cabe esta
proposta de compreender como a imagem dos diversos ambientes na obra contribui para a caracterização
dos personagens e refletem na leitura do lugar social possível para a mulher na ficção.

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- CAPÍTULO 2 -

A MULHER E O ESPAÇO URBANO NA OBRA ATIRE


EM SOFIA, DE SÔNIA COUTINHO
__________________________________
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
(Murilo Mendes, Mapa)

O termo espaço foi evidenciado ao longo do século XX considerando as mais diversas transfor-
mações dos aspectos geográficos e sociológicos, por vertentes distintas das áreas do conhecimento. Na-
turalmente, ao se observar o aspecto relacional entre literatura e sociedade, esta também, ainda que algu-
mas vezes implicitamente, vem abordando perspectivas do tema.
Nesse panorama, entendo que pensar o liame entre literatura e o espaço no romance contemporâ-
neo aponta para uma possibilidade de se tratar sobre a personagem a partir de uma lógica moderna de
subjetividade. É por esse ângulo que as análises de Gaston Bachelard (1978) trazem o destaque concedi-
do à relação do sujeito com o espaço, assim devendo considerar o menor dos detalhes relevante para a
identificação do estado do Ser e para a análise literária.
Atento às significações múltiplas e com a preocupação da teoria da literatura insurgente no
século XX e início do século XXI, Luiz Alberto Brandão (2007), em Espaços literários e suas
expansões, ressalta que o espaço pode ser tomado, inicialmente, a partir de algumas abordagens como a
da representação; o espaço como estruturação textual; o espaço como focalização; e, por fim, o espaço
como linguagem. Dentre estes métodos de análise literária, o aspecto que adoto é a abordagem do
espaço5 na perspectiva culturalista, ou seja, como representação, tendo em vista

Não faremos neste trabalho distinção entre os termos “espaço” e “lugar”, mas adotaremos as proposições de
Ozíris Borges Filho (2008) para o qual: “Do ponto de vista de uma topoanálise, isto é, de uma teoria literária do espaço, acredito
que a oposição entre espaço e lugar não é funcional e nada acrescenta à teoria. Ficamos com a conceituação clássica da teoria
literária. Por isso, preferimos conservar o conceito de espaço como um conceito amplo que abarcaria tudo o que está inscrito em
uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações. Esse espaço seria composto de cenário e natureza. A ideia de
experiência, vivência, etc., relacionada ao conceito de lugar segundo vários estudiosos, seria analisada a partir da identificação
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[…] os significados tidos como translatos: o – espaço social é tomado como sinônimo
de conjuntura histórica, econômica, cultural e ideológica, noções compreendidas segun-
do balizas mais ou menos deterministas; já o – espaço psicológico abarca as – atmosfe -
ras, ou seja, projeções, sobre o entorno, de sensações, expectativas, vontades, afetos de
personagens e narradores, segundo linhagens variadas de abordagem da subjetividade
(BRANDÃO, 2007, p. 208).

Neste âmbito, o espaço é concebido como lugar de trânsito ou pertencimento dos sujeitos ficcio-
nais e recurso de contextualização da narração. A partir desta compreensão, buscarei, neste capítulo,
compreender os vários tipos e facetas dos espaços representados, considerando sua vinculação com iden-
tidades sociais específicas. É neste sentido que, ao tratar sobre as identidades e o espaço social, o supra-
citado autor propõe, agora em Teorias do Espaço Literário (2013), que

[o] “espaço da identidade”, sem dúvida, é marcado não apenas por convergência de inte-
resses, comunhão de valores e ações conjugadas, mas também por divergência, isola-
mento, conflito e embate. Se, como o espaço, toda a identidade é relacional, pois só se
define na interface com a alteridade, seu principal predicado é intrinsecamente político
(BRANDÃO, 2013, p. 31, grifo do original).

É possível perceber, em conformidade com o trecho citado, que os espaços são determinantes
para a caraterização de uma cultura ou para a compreensão dos sujeitos formados em seu meio, pois ex-
pressam concepções culturais e políticas acerca dos indivíduos. Ao encontro dessa compreensão está o
posicionamento de Matilde em relação à maneira como a cidade a vê, quando diz: “Sabe que a cidade
critica sua maneira de se vestir, considerada espalhafatosa para uma mulher de 40 anos” (COUTINHO,
1989, p. 19). Ainda, o espaço pode ser abordado por meio de leituras diferenciadas que, conforme a
análise de Luiz Brandão Santos e Silvana de Oliveira (2001) em Sujeito, tempo e espaço ficcionais: in-
trodução à teoria da literatura, este pode ser situado no aspecto físico, temporal, social, psicológico e da
linguagem. Sendo assim, a personagem pode ser tratada em relação a um espaço geográfico, consideran-
do aspectos históricos e sociais em relação às suas próprias características existenciais, psicológicas e
sobre como ela é expressa e se afirma no contexto em que se apresenta.
Para uma melhor compreensão do tema, Ozíris Borges Filho (2008), em Espaço e Literatura: in-
trodução à topoanálise, faz uma “Topografia Literária” na qual assinala que os espaços podem ser abor-
dados no texto literário considerando-se os macroespaços e os microespaços. O primeiro aspecto consi-

desses dois espaços sem que, para isso, seja necessário o uso da terminologia ‘lugar’. Dessa maneira, não falaríamos de lugar, mas
de cenário ou natureza e da experiência, da vivência das personagens nesses mesmos espaços” (BORGES FILHO, 2008, p. 1).
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dera as representações das cidades ao passo em que o segundo, as perspectivas do cenário, a natureza, o
ambiente e a paisagem.
Na obra que aqui trato, o primeiro espaço que se destaca é o geográfico, por meio do ambiente
descrito sob a voz do narrador/detetive Fernando que apresenta um clima de verão atípico na cidade de
Salvador, o qual se tratava de um “verão esquisito”, sob a escuridão do céu repleto de nuvens negras,
fortes chuvas, com ruas alagadas de uma água suja. A composição desse cenário insere o leitor em um
clima de mistério e de medo.
A junção de fatos da natureza, bem como do tempo climático com elementos psicológicos, é tra-
tada por Borges Filho (2018) como o ambiente, já que não é um simples espaço geográfico, mas acres-
centa uma sinergia entre ação dos personagens e da natureza. Tratando da mesma questão, Michelle Col-
lot (2012), em Pontos de Vista Sobre a Percepção de Paisagens, traz ao campo literário esta mesma
percepção entre a relação do personagem com a natureza, porém, nomeia-a como paisagem, a qual, por
meio de um prolongamento do olhar dos sujeitos leva a uma forma de interação do personagem com o
espaço material e psicológico que se insere. Para este trabalho, o termo utilizado por Collot (2012) me
parece o mais acertado, já que entendo que existe um prolongamento do olhar em relação à natureza,
mas, também, que a própria relação da protagonista com a cidade demonstra uma interação entre ambas,
sendo aquela um prolongamento da própria personagem.
Fernandes (996), tratando da temática dos espaços das cidades no âmbito literário, pontua que o
espaço literário não é tão exato como em um ensaio, mas, apesar da intenção de verdade ou de historici-
dade, ainda se trata de uma recriação a partir dos olhos do autor. Compreendendo esta faceta ficcional do
espaço e considerando as implicações do discurso construído no âmbito social e representado na literatu-
ra de autoria feminina, percebo que este se torna não um simples cenário da ação narrada, mas um refle -
xo do ideal feminino construído social e literariamente ao longo dos tempos. É por isso que considero
que, no romance Atire em Sofia, personagens, lugares, valores e dados históricos funcionam como ele-
mentos que são rememorados e que adquirem novos significados, formando sentidos para a compreen-
são do Ser dos protagonistas.
Ao tomar o romance de crime ou o romance policial em suas origens, pode-se observar que o cená-
rio social que emergiu com o advento da revolução industrial promoveu as condições necessárias para o
surgimento do gênero, diante do medo e da instabilidade social trazidos pelo desenvolvimento urbanístico.
Seguindo este movimento, a literatura urbana brasileira foi fortalecida, especialmente, a partir da acelera-
ção da urbanização, tendo como um de seus símbolos a construção da capital brasileira nos anos de 1960.

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Considerando o cenário cosmopolita nos romances de crime, observa-se que, além das contribui-
ções para o surgimento deste nas obras ficcionais, as cenas estarão intimamente ligadas ao ambiente/pai-
sagem. É nesta perspectiva que o romance urbano Bufo e Spallanzani (1986) de Rubem Fonseca, por
exemplo, trata das questões da violência em meio àquela sociedade, porém, sem diálogo com a mesma,
assumindo a solidão de leitor/autor de romances.
Ao observar o espaço no romance policial de autoria feminina, ainda que povoado por detetives
mulheres, o que percebo é que este, em muitos casos, constitui-se fechado. Um exemplo que ilustra mui-
to bem essa questão é Agatha Christie, pois, conforme destaca Coutinho (1994), seu estilo esboça as nor-
mas clássicas do gênero, como unidade de lugar, tempo e ação. Suas personagens aparecem isoladas em
espaços fechados, como ilhas, trens, barcos e avião. Tais aspectos já são delineados desde os primórdios
do gênero, como é o caso de Poe em Os Crimes da Rua Morgue, em que o espaço é fechado.
Neste ínterim, Coutinho (1994) enfatiza que um aspecto comum entre as narrativas policiais de
autoria feminina e as masculinas é a vivência e o conhecimento profundos de cidades grandes america-
nas. Esse movimento, que confere também às personagens femininas integração com os espaços urbanos
do mesmo modo, se apresenta na ficção de Coutinho. Desse modo, Atire em Sofia, assim como a produ-
ção de Rubem Fonseca, pode ser tomado como um exemplo notório da literatura urbana brasileira, já
que é bem representativo da transição entre a imagem da tradição arraigada nas cidades de pequeno por-
te e com vínculo rural, a exemplo da Bahia, e as grandes cidades, idealizadas a partir de modelos euro-
peus, como o Rio de Janeiro. Contrariando a perspectiva do espaço fechado, suas protagonistas transi-
tam entre esses dois ambientes, revelando as transformações estruturais desses cenários, bem como re-
fletindo sobre o modo de vida e conceitos daquelas sociedades.
Este movimento que integra os personagens com o ambiente/paisagem, relacionando dados his-
tóricos com fatos contemporâneos e a experiência de vida dos personagens, é recorrente nos contos e ro-
mances de Sônia Coutinho. Em o Jogo de Ifá, a cidade também aparece como elemento que interage
com as vivências dos protagonistas, entrecruzando presente e passado para compor a história. Neste en-
redo há a personagem Renata, que recorre à imagem da histórica Revolta dos Malês de 1835, a qual, de
acordo com Patrício (2006, p. 53), é uma demonstração do comprometimento da mesma de “reinserção
ao espaço de sua experiência cultural”. Assim, o movimento de resgate da memória histórica e seu rela-
cionamento com as experiências do presente e sua trajetória de vida, demonstram uma ligação com as
camadas oprimidas no processo sócio-histórico de sua cidade.

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O entrelaçamento entre história e cotidiano também se apresenta em Atire em Sofia por meio dos
personagens Júlio César e Tetu, que serão fundamentais para a representação do negro 6 na obra. Assim
como em O Jogo de Ifá, a partir desses personagens reaparece a Revolta dos Malês como fato que con-
firmará a miscigenação e o caráter múltiplo cultural da cidade de Salvador, como se observa no diálogo
entre o antropólogo Júlio César e Matilde,

– O Islã negro foi varrido da cidade, mas permanece em seu inconsciente coletivo – ex -
plica Júlio César a Matilde, os dois sentados a uma mesa de bar. – Oxalá Alá é lembrado
todos os anos, na lavagem do Bonfim – que é, com suas águas e roupas brancas, numa
celebração muçulmana (COUTINHO, 1989, p. 171).

A nova perspectiva de vida do negro na cidade de Salvador é uma das questões que apontam para
as transformações sociais que ocorreram desde a saída de Sofia e João Paulo até o retorno cerca de vinte
anos depois. Não obstante, a condição da mulher já havia se transformado neste ambiente – não necessa-
riamente a aceitação de suas atitudes transgressoras aos padrões tradicionais –, mas o número de práticas
consideradas fora dos modelos impostos pela tradição já aumentava. A esse respeito, vemos a persona-
gem Milena, filha de Sofia, que se afirma em duas categorias oprimidas naquela sociedade: como negra
e como mulher. Entretanto, sua trajetória está marcada pelas escolhas de sua mãe, as quais refletem em
suas próprias decisões, ainda reprimidas pela sociedade branca e burguesa representada na obra.
O trânsito das personagens entre Rio de Janeiro e Salvador, bem como por outros lugares no de-
correr do enredo, é significativo para a leitura do espaço urbano sob a ótica feminina, bem como acerca
da sua inserção nestes lugares. Neste sentido que é importante compreender as implicações do espaço
geográfico, das cidades e da casa, bem como o espaço social para a caracterização dos protagonistas e
para a identificação de seu lugar-no-mundo, observando como as diversas formas de interagir com o es-
paço influenciam na concepção de si, na representação da personagem feminina e na composição do ro-
mance de crime.

Apesar de mencionada outras vezes no texto, a questão da representação do negro não será aprofundada
neste trabalho porque não se constitui o foco desta abordagem. Sendo assim, será tratada nos momentos em que considero
necessária a sua referência para melhor compreender a sociedade e as questões de gênero discutidas no romance. Entretanto,
uma abordagem sobre a temática na obra de Coutinho parece-me possível, interessante e proveitosa.
49
2.1 A CIDADE DA MEMÓRIA7

O espaço e os modos de vida emergentes na urbe são, desde os primórdios do conto e do roman-
ce policial, fatores relevantes para o surgimento do gênero, como já discutido. O romance policial surgiu
tendo em vista a instabilidade gerada com a emergência dos grandes centros urbanos na Europa, no pós-
revolução industrial. Já no Brasil, obteve estabilidade por meio da vertente romam-noir, para a qual o
crime é situado no contexto de uma sociedade corrompida.
O cenário social no qual se inserem os protagonistas do romance de crime de Sônia Coutinho
está intimamente marcado por grandes transformações, particularmente iniciadas a partir de 1950, com a
aceleração rápida da industrialização e da urbanização do país – quando ganharam maior força a partir
de 1960, com a inauguração da nova capital brasileira. Quatro anos mais tarde, em 1964, o Brasil sofreu
o golpe de estado, que deslocava o centro de manifestações artísticas da Bahia para o Rio de Janeiro, as-
sim enaltecendo, de forma singular, o desenvolvimento do eixo Rio-São Paulo. Dois anos depois, Sônia
Coutinho se iniciava no cenário literário com a obra Do Herói Inútil, que já despontava como uma pers-
pectiva crítica da posição feminina frente à sociedade patriarcal e ao domínio masculino. Contudo, fo-
ram nos romances seguintes que os temas acerca da cidade e do deslocamento espacial surgiram nas
obras da escritora.
As transformações na esfera social brasileira também se apresentam na reprodução dos espaços
na literatura, já que se iniciava o crescimento dos romances que priorizavam a temática urbana. Associa-
do a isso, Sônia Coutinho permanecia na representação de personagens femininas que refletem sua con-
dição, mas que transitam em variados espaços urbanos, coincidindo com sua própria biografia, já que a
autora também migrou de Salvador para o Rio de Janeiro. Suas personagens mostram a cidade em dois
aspectos distintos e complementares: o primeiro é a cidade labiríntica; e o segundo trata das suas rela-
ções sociais cotidianas que observa, julga e dita padrões de comportamento, aspectos que serão aborda-
dos mais adiante.
A representação da cidade de Salvador como cenário do romance de crime é construída associan-
do aspectos míticos e sobrenaturais, ligados à própria transformação estrutural e social com que os per-
sonagens se deparam ao regressarem à cidade.

Termo adotado a partir da obra Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino (2013).


50
Em estudo acerca da comunicação e da cultura na cidade de Salvador nos anos de 1950 e 1960,
Antonio Albino Canelas Rubim e demais colaboradores (2006) pontuam que ocorreram importantes
transformações a partir dos anos de 1950, especialmente no que tange à forma de comércio, mudanças
nas estruturas arquitetônicas e trânsito. São estas as referências ficcionais de paisagens e ruas por onde
transitam os personagens de Coutinho, como a Avenida Beira-mar, a praia da Barra, o Pelourinho e o
bairro do Carmo.
Outros espaços citados na obra revelam a cidade já transformada, com algumas modificações em
sua estrutura, verificáveis a partir do trajeto que o personagem Fernando efetua regularmente para ir e
vir ao seu escritório, como em: “Tinha acabado de sair do escritório, dobrava de carro a curva que dá na
avenida Contorno quando ergueu os olhos em direção ao telhado do Mercado” (COUTINHO, 1989, p.
79). Este trecho denota as mudanças tratadas por Antônio Rubim (2006), segundo o qual, a partir dos
anos de 1950 houve um grande desenvolvimento considerando o aumento da população, a mudança no
comércio, a construção de prédios e avenidas, como foi o caso da Avenida Contorno, em 1970.
De fato, a nova configuração da cidade traz às personagens, em seu retorno após cerca de vinte
anos no Rio de Janeiro, um estranhamento, pois as mudanças são tão profundas que geram uma ideia de
lugar estrangeiro em relação à mesma cidade. Não obstante às transformações do lugar, a personagem
central já não é a mesma do momento da partida, pois já havia adquirido independência financeira e in-
teragido com outras culturas que, certamente, influenciaram seu olhar sobre a sua cidade de origem. É
neste sentido que o personagem João Paulo declara estar em uma “cidade transformada em labirinto –
ele continua a caminhar –, ruas que já não sabe mais onde vão dar, pessoas que não falam mais a sua lín-
gua” (COUTINHO, 1989, p. 85). Suas reflexões acerca das transformações do espaço ao longo do ro-
mance abordam temas como a velhice e a morte. Assim como ele, Sofia reconhece que, ao passo em que
a cidade estabelece um processo lento de esquecimento sobre aquilo que é velho, aproximando tudo da
morte, sua própria trajetória está próxima do apagamento.
O que se percebe é um entrelaçamento: a cidade fragmentada por sua topografia e expansão e a
história dos personagens e das mulheres. O movimento cartográfico das cidades conduz à leitura da
cartografia afetiva dos protagonistas; para tanto, memória e fatos comungam para apresentar a capital
baiana que, além dos elementos físicos, é construída por meio da história e da memória. Tal cisão é
tratada por Ítalo Calvino (2003) em Cidades Invisíveis, quando aborda as “Cidades da Memória”, da
seguinte maneira:

51
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferên-
cia dos arcos, dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei
que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações en-
tre medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado (CALVINO, 2013, p. 15).

É dessa maneira que, segundo percebo, o tempo-espaço no qual circulam as personagens no ro-
mance se alterna entre presente e passado, de forma não-linear, permanecendo os protagonistas intima-
mente ligados à própria cidade, não apenas no aspecto físico, mas tratando da forma de vida e de pensa-
mento de um povo. Sendo assim, o espaço urbano que vai despontando no romance sobre o qual me de-
bruço é uma construção das próprias personagens, fato evidente apontado pelo personagem escritor João
Paulo ao dizer que o romance que escrevia tratava, no fundo, dele mesmo, de Sofia e da “herança dos
moradores de uma cidade, de uma determinada geração” (COUTINHO, 1989, p. 54).
A estratégia típica do romance de crime, a metaficção, neste ponto, é esclarecedora para se com-
preender como tempo e espaço se entrecruzam para os personagens e qual a finalidade do retorno e de
tantas rememorações. João Paulo/Stingo declara que o tema central do romance é a memória, o passado
de Laura Luedi/Sofia e dele mesmo, bem como é: “A herança dos moradores de uma cidade, de uma de-
terminada geração. O que ele quer, agora, é contar a trajetória dessa geração, por entre amores, fugas, vi-
agens, aventuras e dores” (COUTINHO, 1989, p. 54). Assim, Salvador é o lugar da memória, assim
como o chamado Ompalós, umbigo do mundo, é o lugar de início; por isso, é necessário que João Paulo
regresse, afinal, ele mesmo declara ao refletir sobre a cidade que:

Não basta pensar em subdesenvolvimento com toda lucidez em um hotel de Londres ou


em algum dormitório de universidade americana, há os longos anos de viver e interiori-
zar esse subdesenvolvimento, seja numa esquina da cidade, contaminada pela estranhe-
za, ou em algum engarrafamento do túnel rebouças (COUTINHO, 1989, p. 85).

Neste tempo de rememoração, por meio da pouca relação com os tios idosos que o emprestam
um apartamento para se instalar e escrever o romance em Salvador, é que João Paulo, definitivamente,
demonstra a necessidade de registrar a história, já que tudo na cidade é tão perene:

Agora, à mesa, participa da velhice do tio, já alquebrado e quase um desconhecido na ci-


dade – porque as cidades, descobre, têm memória curta. Transformando-se num estra-
nho, pela velhice, no lugar onde morou a vida inteira, o tio evidencia o esquecimento
que também o recobrirá, um dia, como lenta mortalha (COUTINHO, 1989, p. 70).

52
É neste mesmo viés que as histórias da cidade, de João Paulo/Stingo, de Laura/Sofia e de Matil-
de/Callas se confundem e se ligam, já que, em certo ponto, a própria Sofia liga sua história à das mulhe-
res de seu tempo. Pensando na voz silenciada de muitas mulheres que se submeteram a casamentos ar -
ranjados e a uma vida sob os ditames tradicionais, ela conclui que:

Afinal, tenho de concluir, reexaminando tudo, que não há nada assim tão excepcional
em minha história. Diferente apenas até certo ponto, uma história, na verdade, de mu -
lher comum, com os traumas habituais, submetida aos preconceitos de uma geração –
principalmente em torno de sexo. Mas, de forma mais ampla, uma história de classe mé-
dia brasileira, num determinado período. Por outro lado, também, a história de uma ci-
dade (COUTINHO, 1989, p. 73).

A volta de Sofia à cidade de Salvador funciona como um balanço de toda a sua vida. Suas esco-
lhas representam outras mulheres, inseridas em um tempo cíclico, que teimam, apesar das conquistas, a
reverberar tradição. Sobre esse tempo, o romance coutiniano apresenta, por diversas vezes, expressões,
como: “o tempo aqui é circular” “um tempo mítico”, tempo de “civilizações voltadas para a repetição do
eterno” (COUTINHO, 1989, p. 85). Sendo assim, Sofia chega à mesma conclusão que João Paulo, pois,
para ela, “breve toda a memória de sua vida – o seu eu – estará irremediavelmente perdida” (COUTI-
NHO, 1989, p. 89).
Neste ponto, aproveito para destacar algumas das reflexões empreendidas pelos personagens
João Paulo e Sofia, por meio das quais eles demonstram uma preocupação em resgatar a memória de um
tempo de lutas e, por meio da escrita, imortalizá-lo. Sendo assim, a narrativa de crime feminista e femi-
nina de Sônia Coutinho estaria, a meu ver, então comprometida com o registro ou resgate da memória e
da denúncia da condição de mulheres de uma determinada geração.
Por meio da personagem Matilde, mulher de quarenta anos, abandonada e enganada pelo marido,
há a revelação do posicionamento de um povo com vestígios patriarcais, que dita padrões para as mulhe-
res, como visto em:

Sabe que a cidade critica sua maneira de vestir, considerada espalhafatosa para uma mu -
lher de 40 anos – saias curtas, cores muito vivas, babados, botinhas prateadas, barriga de
fora. E assim vai para os lugares mais chiques e movimentados, sempre sozinha e procu-
ra seduzir os homens (COUTINHO, 1989, p. 19).

É fato que, no excerto acima, existe a expressão de pensamento acerca do padrão de vestimenta
ideal para uma mulher num contexto semipatriarcal, especialmente, aos quarenta anos, denotando um es-

53
paço social que lhe traz restrições. Porém, este é o modo que Matilde encontrou para demonstrar sua re-
volta contra a educação convencional que recebeu, a qual a deixou ingênua e conformada com um casa-
mento arranjado pelos pais que, por fim, a deixou em uma situação financeira precária. Essa manifesta-
ção feminina, tomada como rebeldia, é derivada das transformações porque vinha passando a sociedade
dos anos 1960/70 retratada na ficção de Sônia Coutinho.
Nesta oportunidade, aproveito para apontar que os anos 1960 foram marcantes para a luta femi-
nina no ocidente, especialmente pela expansão do movimento feminista que, dentre outras coisas, busca-
va uma nova configuração dos papéis femininos. Nesse âmbito, cumpre ressaltar que o corpo e a sexua-
lidade se tornaram dois dos meios de enfrentamento dos padrões patriarcais e de afirmação da vontade
da mulher. Por conseguinte, as formas de vestimenta se englobavam como uma maneira de expressão de
sua identidade. Logo, a maneira de se vestir, neste contexto, é uma forma de autoafirmação e crítica a
um espaço social cujas pressões sociais contribuíram significativamente para sua situação atual.
A esse respeito, James Laver (1989), em A roupa e a moda: uma história concisa, comenta que,
na década de 1960, o corpo passou a ficar mais em evidência e que foi nesse período que surgiu a minis -
saia – na época, um escândalo. Por isso, o estilo ousado de Matilde se configura como uma maneira de
se rebelar contra a sociedade tradicional em que está inserida.
O espaço tradicional no qual transitam mulheres como Matilde coloca à margem todo tipo de
transgressor ou àquele que não pactua com o discurso tradicional. Matilde já era, a essa altura, com suas
vestimentas excêntricas e seu comportamento destoante, considerada socialmente como um tipo de lou-
ca, fruto das pressões sociais de seu tempo. Esta reflexão é efetuada por Sofia e sua amiga Maíra, ao
pensarem nas rupturas e nas tradições na cidade de Salvador, como se observa em:

Mas apesar de toda a mudança, a modorra da cidade resiste – diz Sofia. – O que há por
baixo do verniz de modernismo é uma realidade ainda patriarcal, cabeças do século pas-
sado. Uma cidade que vive em torno de famílias patriarcais. – Talvez seja essa modorra
que enlouqueceu as pessoas (COUTINHO, 1989, p. 120).

A leitura social ora proporcionada pela autora leva à visão de um espaço ligado ao discurso patri-
arcal, branco e de classe média. Isso está claro nas reflexões acerca das mudanças ocorridas na cidade,
dos lugares agora também ocupados por negros, onde antes era restrito a uma parcela branca da socieda-
de baiana. Tais posturas são vivamente apresentadas pelo personagem Fernando em suas reflexões. O
trecho que se segue é exemplar dessa discussão:

54
Essa negritude cada vez mais assumida é um fenômeno que ele é inteligente demais para
rejeitar, pelo menos publicamente, talvez porque saiba que é inevitável. Mas tem que
admitir que se sente, às vezes meio nostálgico. Tem saudades, por exemplo, da beira-
mar de antigamente, área aristocrática, onde aos domingos, as moças desfilavam com
seus melhores vestidos. Hoje, nos fins de semana, a população negra já se senta maciça-
mente nas cadeiras das sorveterias que, antes, eram consideradas ‘chiques’, ou seja, re-
duto exclusivo de seu grupo branco (COUTINHO, 1989, p. 35).

O espaço apresentado por Fernando já não condiz com as aspirações de seu grupo, pois passaram
a ser ocupados por outras camadas populares. No trecho acima, o que se observa é uma nostalgia de um
lugar onde a forma de vestimenta feminina, bem como a cor da pele, eram elementos que condiciona-
vam com maior rigidez o acesso a lugares de lazer nas áreas nobres da cidade de Salvador. Assim, o es-
paço sempre ditava a maneira de vestir e a quem lhe era concedido acesso. Agora, ainda que sob fortes
críticas e repressões, tanto negros como mulheres transgressoras – camadas sociais que destoam dos pa-
drões burgueses – ocupam novos lugares na cidade representada por Coutinho.
Não muito diferente da perspectiva apresentada por Fernando, João Paulo também declara que não
há outra palavra além de “provincianismo” para explicar sua trajetória naquela cidade, branca, de classe
média e preconceituosa. Tais declarações remetem ao tempo em que ele teve que enfrentar sofrimentos no
colégio por ser filho de uma mulher que não se casou e que era amante de um coronel. Remete, também, à
sua relação com Alina, mulher casada que “não teve forças” para enfrentar a família e permanecer ao seu
lado. Para ele, havia um círculo de ignorância e de medo que girava em torno do cotidiano dos moradores
da cidade, levando-os a uma acomodação, a uma “opaca apatia” (COUTINHO, 1989, p. 24-25).
O personagem/autor João Paulo – e suas relações com as mulheres de sua vida – também são ins-
trumentos fundamentais, segundo considero, para evidenciar uma ótica mais ampla sobre o registro de
mulheres diversas no tempo retratado. Considero que este é um artifício narrativo apresentado pela me-
taficção que serve ao esclarecimento de outros panoramas sobre a condição da mulher, bem como serve
de justificativa para o personagem escritor e possível assassino do romance de crime. A primeira mulher
na vida de João Paulo que influenciou de maneira definitiva as suas relações e perspectivas sobre o gê-
nero ao longo de sua vida foi a sua própria mãe. Sobre a mãe, João Paulo esclarece:

Cenas da infância no interior, onde nasceu, o sentimento de inferioridade diante dos co-
legas por causa de sua mãe, mulher muito bonita, mas com uma aura maldita porque,
quando adolescente, tinha sido prostituta e, mais tarde, tornou-se “rapariga” de um coro-
nel do cacau. […] Estava com 12 anos quando ela começou a se relacionar com o coro-
nel, Seu Francisco, como nunca deixou de chamá-lo […] (COUTINHO, 1989, p. 40).

55
A mãe, por quem o personagem declara nutrir uma relação de amor/ódio, foi uma mulher que se
submeteu ou foi submetida à condição de prostituição ainda muito jovem. Neste ponto, Sônia Coutinho
leva os leitores a refletirem sobre a condição provinciana que o personagem João Paulo tantas vezes re-
pete. Afinal, sua mãe, aos doze anos, tinha muitas outras escolhas diante da situação social e de ofertas
de um coronel do cacau?
Outra personagem feminina marcante na vida de João Paulo foi Alina. Refletindo sobre sua in-
serção como mais uma personagem de seu romance, o escritor e possível assassino reflete:

Uma história datada, pensa ele, que só poderia ter acontecido naquele lugar, naquela épo-
ca, fruto de um período em que se anunciava a chamada revolução dos costumes, mas não
se concretizava ainda. Alina casou-se virgem, com um homem muito mais velho, pouco
atraente, e que a impediu de terminar um curso universitário, repetindo frases como: ‘Mu-
lheres casadas têm deveres de casa’. […] Mas havia os filhos de Alina, os preconceitos da
família dela e do marido, o patriarcalismo de clãs de fazendeiros. Ela não teve coragem de
enfrentar a situação e, depois de combinar ir com ele para o Rio, desistiu na última hora e
morreu, poucos meses depois (COUTINHO, 1989, p. 54).

As histórias da mãe de João Paulo, de Alina e de Sofia convergem na morte, destino fatal dos su-
jeitos que, de alguma forma, não coadunam com o discurso de seu espaço social. É por meio desse re-
curso e seu enredamento que entendo que a autora dá voz a outras classes sociais, diferentes da que se
insere o personagem burguês Fernando.
Outro aspecto proporcionado pelos múltiplos olhares dos personagens na obra é perceptível a
partir das observações que João Paulo efetua acerca dos novos frequentadores das sorveterias nas proxi-
midades do farol. Ele verifica, especificamente, o vestuário e aparência de seus frequentadores, que se
transformaram em shorts e camisetas em seus corpos muito bronzeados. João Paulo constata que:

No fim da tarde, João Paulo sai para dar uma volta de carro e, ao chegar à avenida, à
beira-mar, tem a sensação de que a cidade, afinal, não mudou tanto. É o horário em
que as sorveterias próximas do Farol ficam repletas e, junto da amurada, ainda se faz o
footing, como há vinte anos. Quando se aproxima, porém, vê que a frequência é intei -
ramente diferente, agora são rapazes e moças de calção ou short, camisetas, todos
muito bronzeados, conversando em grupo perto de seus Bugres. […] Sob os raios de
sol oblíquo e úmido, todos os rostos são desconhecidos, registra ele, passando em seu
velho fusca enferrujado. Os sobreviventes de sua geração não frequentam esse meio
jovem (COUTINHO, 1989, p. 95).

A perspectiva masculina de João Paulo está ligada à transformação do público em relação à


moda, coincidindo com o ponto de vista apresentado pelo protagonista Fernando, sendo que este implica

56
um fator a mais a sua observação, que é a crescente presença dos negros em um espaço antes majoritari-
amente para os brancos.
A visão feminina acerca do lugar, expressada especialmente por Sofia, denota outros tipos de
preocupações. Sofia, inserida em espaços públicos como clubes e sorveterias, tece suas observações so-
bre as famílias burguesas e tradicionais que vê por ali transitar, bem como utiliza o espaço como local
para reflexão, rememorando sua vida e refletindo sobre sua condição. Sofia não está preocupada com as
transformações dos costumes e das formas de vestimenta, mas em compreender e chegar a uma conclu-
são sobre suas escolhas e sua própria história.
A discussão acerca da condição das minorias, em aspecto social, é colocada em destaque na obra
de Coutinho, particularmente, ao se tratar da mulher. Neste sentido, a relação cidade/mulher é mais den-
sa, tendo em vista que os manuais de conduta, as instituições religiosas e suas práticas, como o casamen-
to, estavam diretamente voltados para o controle feminino.
Assim, o “destino de mulher” é a marca que a cidade impõe ao feminino por meio de casamentos
arranjados, de uma sexualidade controlada e, também, como no caso da personagem Milena, com o es-
tigma de ser filha de Sofia, uma mulher divorciada. Acerca de Salvador e das relações matrimoniais im-
postas pela tradição, pelo “destino”, reflete Sofia que

[os] casamentos aqui, na geração da minha mãe, eram longos exercícios de ódio. A mu-
lher deveria permanecer sempre criança, para melhor agradar e servir ao homem. Ao
longo dos séculos, seu único aprendizado foi a esperteza doméstica. Só podia tirar algu-
ma vantagem ou satisfação da retribuição que, por acaso, os homens oferecessem por
seus serviços. Prazeres físicos eram considerados inadequados, impróprios, pecamino-
sos, para uma mulher ‘direita’. Gerações inteiras de mulheres de que não temos nenhu-
ma notícia, de cuja vida não ficou registro nenhum. Mulheres de quem nada se sabe, so-
bre a vida inteira cumpriram tarefas consideradas subalternas. Preparar comida, lavar
fraldas, amamentar, cuidar de doentes e agonizantes, esperar. Apenas deveres, causaria
estranheza se tentassem alguma coisa diferente. Mulheres que se desabituaram de dizer
‘eu sou’, ‘eu quero’ (COUTINHO, 1989, p. 50).

As questões destacadas pela autora no trecho supracitado, como o ideal de mulher estereotipada
por não expressar o próprio desejo, revelam alguns dos discursos da sociedade tradicional. Quebrando
esses paradigmas, Sofia se afirma como senhora de si, do seu corpo, e busca, por meio de seu retorno e
suas reflexões, determinar quem era.
Ainda sobre o trecho anterior, notadamente, a partir desta cidade da memória, aponto para uma
reflexão acerca do casamento, conforme propõe Carla Bassanezi (2004), em Mulheres dos Anos Doura-
dos, sobre o período no qual os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres. Elas eram defini-
57
das a partir de papéis como as ocupações domésticas, maternidade, pureza e resignação. Apesar de a
mencionada autora apresentar esse panorama nos anos 1950, vê-se que o reflexo desses padrões tradicio-
nais se estendeu aos anos 1960 e 1970, tempo no qual Sofia e sua geração sofreu com as tentativas de li-
bertação feminina.
Nas décadas de 1960 e 1970, conforme aconteciam diversas reformas sociais, as relações famili-
ares foram uma das áreas modificadas. Especialmente o casamento passa a ser discutido, junto com os
temas da relação sexual e do divórcio, alcançando algumas transformações, embora a posição da mulher
permaneça como a de submissão dentro da relação matrimonial. Este universo é claramente apresentado
no romance em estudo, destacando-se a permanência dos valores tradicionais em relação ao comporta-
mento feminino.
Dessa forma, tomando as implicações sociais e a influência da tradição de um povo, de um tem-
po e de determinadas classes sociais como atestam os próprios personagens, é possível observar que os
espaços pelos quais transitam ganham contornos determinantes no enredo apresentado.

2.2 CIDADE TEMPO: PAISAGEM E LABIRINTO

As obras literárias que apresentam o movimento de personagens por diversos espaços são signi-
ficativas para se compreender a influência desses ambientes no modo de vida dos sujeitos. Neste estudo,
um dos recursos agenciados para este efeito que busco demonstrar são os macroespaços apresentados
nas figurações das cidades do Rio de Janeiro e de Salvador que, em suas feições dos anos 1960, assu-
mem relevância como contexto histórico e sociocultural na formação das personagens.
É certo que trajetória da narrativa brasileira foi marcada por leituras urbanas em que o homem
aparece como sujeito de ação no plano social, conforme discute Regina Dalcastagné (2003) em Sombras
da Cidade: o espaço na narrativa brasileira contemporânea, ficando legado à mulher o espaço domésti-
co. Entretanto, na contramão dessa vertente, Sônia Coutinho confere às suas personagens femininas um
olhar amplo sobre paisagens, cidades e casas, construindo a sua representação do espaço urbano. Con-
forme discute Bailey (2008), Coutinho adota uma visão desassociada da Bahia exótica até então apre-
sentada pela perspectiva masculina, como a dos romances de Jorge Amado.
Em Atire em Sofia, as personagens transitam entre as cidades ocupando também outros espaços
(microespaços) como os de trabalho, domésticos e de lazer, que vão se caracterizando como importantes
para a descrição psicológica dos protagonistas e a definição dos papéis sociais da época, assim instigan-
do o leitor a analisar criticamente as relações de classe, raça e gênero.
58
As mulheres que falam nesse romance adquiriram, de alguma forma, a independência financeira,
e por isso, de maneira particular, o trabalho foi fundamental para que elas pudessem alcançar uma vida
mais livre dos ditames da tradição. Sofia, a protagonista, por meio de seu trabalho como jornalista, pode
obter êxito ao decidir se divorciar e partir para o Rio. Refletindo sobre as benesses de ter escolhido ficar
sozinha, fazer as viagens que desejou, viver no ambiente da casa sem as obrigações rotineiras legadas à
mulher casada, como lhe exigia o marido, ela conclui que: “se pôde ficar sozinha, foi porque já confiava
em suas possibilidades de sobreviver com seus próprios recursos, com seu trabalho” (COUTINHO,
1989, p. 29). Contudo, o enredo mostra que o privilégio da escolha não era estendido a todas as mulhe-
res, principalmente àquelas que não tiveram acesso a uma educação de nível superior, como Alina, mu-
lher a qual João Paulo amava e não pode partir com ele, sempre presa ao casamento, já que, ao se casar,
o marido não lhe permitiu continuar os estudos, repetindo frases como: “Mulheres casadas têm deveres
de casa” (COUTINHO, 1989, p. 53).
A ponderação sobre uma educação repressora ou libertadora pode ser empreendida neste ponto,
tendo em vista que, para Sofia, o acesso à educação superior proporcionou a oportunidade de fazer suas
escolhas e sobreviver, até certo ponto, a elas. Já outras mulheres, como Matilde, já mencionada ao longo
deste texto, não pode construir uma carreira profissional e o acesso à educação no colégio religioso onde
estudou a preparou para a ingenuidade e a subserviência do papel de mulher. As mulheres que sobrevivi-
am ao divórcio são representadas como aquelas que conseguiram uma herança familiar, alguns bens com
o divórcio ou mesmo o trabalho, contudo, sempre frisando a precariedade em que foram submetidas por
não integrarem um núcleo familiar tradicional. A esse respeito, Maíra, amiga de Sofia, é questionada e
trata desta questão, comum à mulher de seu tempo. “– Mas você conseguiu viver à sua maneira, não? –
pergunta. Todos os homens que você teve, que tem ainda. – Vivo à margem, não sei se sou aceita. Sobre-
vivi porque o casamento me deixou com alguma coisa” (COUTINHO, 1989, p. 121).
O acesso à educação e ao mundo do trabalho revela, na obra, uma segregação de classe, raça e
gênero. O que se observa é que a educação estava a serviço do discurso burguês e patriarcal legando à
mulher um papel de subalterna, pois não lhe era permitido acesso aos mesmos recursos que os homens e
quando os obtinham, na maioria das vezes, o direcionamento de até que ponto deveriam prosseguir e que
tipo de conhecimentos poderia adquirir ainda era ditado pela figura masculina. Além dessa dissonância
entre classe e gênero em relação à raça, as diferenças eram ainda mais acentuadas, como já observado
nas próprias reflexões do burguês Fernando. Os negros e/ou as mulheres negras não tinham sequer aces-

59
so aos mesmos espaços de lazer que os brancos e, por isso, o ato das mulheres transitarem livremente
por tais espaços representa um aspecto do caráter de autoafirmação desses personagens.
A abordagem do tempo climático também contribui para a compreensão do projeto literário de
Sônia Coutinho, já que o verão, com suas fortes chuvas, vai dar o aspecto sombrio para o romance que
se apresenta em tom policial. Além disso, favorece a leitura das paisagens urbanas e da estrutura das ci-
dades de Salvador e do Rio de Janeiro, que vão marcar a vida de seus protagonistas e direcionar a leitura
desta ficção. Por isso, a necessidade de se observar o olhar dos sujeitos sobre a paisagem no romance.
De acordo com Collot (2012), a paisagem urbana somente poderá ter definida sua atividade
constituinte dependendo do olhar de um sujeito sobre a mesma. Neste aspecto, Collot toma sua defini-
ção como “Parte de uma região [pays] que a natureza apresenta ao olho que a observa” (COLLOT apud
NEGREIROS; LEMOS; ALVES, 2012, p. 11). Neste sentido, observo as distinções dos olhares de Fer-
nando, João Paulo e Sofia sobre determinado ponto da orla em Salvador e as diferentes raças e classes
sociais que passeavam por lá. Por isso que, de acordo com a proposta de Collot, a visão vai além da su-
perfície: a definição do espaço dependerá da relação de um sujeito com este. Assim, existe um prolonga-
mento do olhar para aquilo que está invisível, completando o objeto que está sendo observado. Nesse
âmbito, o personagem Fernando analisa a paisagem, o clima da capital baiana naquele verão, após o as-
sassinato de Sofia, observando que:

Verão esquisito, muito esquisito, pensa Fernando outra vez, mas esquisito parece uma
palavra insuficiente, alguma coisa fica sempre obscura quando procura entender o quê
exatamente aconteceu neste verão, com sua chuva em proporções catastróficas, fora de
temporada, espalhando desabamentos, mortes, boatos (COUTINHO, 1989, p. 11).

Vê-se, no excerto acima, que a paisagem está sendo alterada devido à ação do clima, mas que
também existe algo que vai além do aspecto físico, completado pelo olhar da personagem que relata
não só problemas nas estruturas sociais, na organização da cidade, mas também questões intrínsecas
ao povo que ali habita, como boatos. Além disso, entendo que a paisagem descrita deixa subentendido
um aspecto mítico gerando uma expectativa ao leitor. Para mim, tal percepção só é possível porque o
sujeito não vê do exterior, mas de dentro, pois está englobado na própria paisagem, sendo que ela está
ao seu redor e não diante dele. Neste sentido, a preocupação do sujeito masculino é representada pela
autora tendo em vista aspectos dos costumes, enquanto os personagens femininos voltam o olhar para
a compreensão dos fatos e de si.

60
O olhar sobre a paisagem urbana no romance também revela aspectos acerca das transformações
pelas quais passa a cidade de Salvador, como revela o personagem João Paulo: “A vista da varanda é
para horrendos espigões que proliferam, desordenados, ao lado de casas baixas, na ladeira defronte. Lá
embaixo, na rua, o barulhento caos do trânsito e, na calçada, sacos de lixo empilhados” (COUTINHO,
1989, p. 24). A visão aqui descrita aponta para uma cidade que cresce a partir de uma desordem estrutu-
ral e também de classes, pois o próprio João Paulo é quem continua e declara que esta é uma “cidade
branca, de classe média e preconceituosa” (COUTINHO, 1989, p. 24).
Estudando os aspectos geográficos da cidade de Salvador a partir de obras literárias, o geógrafo Pau-
lo Roberto Baqueiro Brandão (2004), em O Imaginário Urbano: a cidade de Salvador no final do século
XVIII, apresenta a distribuição das casas de acordo com a renda e com as questões raciais. Assim, nota-se
uma tendência para o afastamento das classes menos favorecidas economicamente, majoritariamente com-
posta por mestiços e negros, para as regiões periféricas de Salvador – isso desde o século XVIII:

Aqueles menos favorecidos, mestiços e negros, habitavam a periferia da cidade, tanto


em direção ao norte, como nas áreas menos privilegiadas da Península Itapagipana, ou
nas aglomerações localizadas nas proximidades da ermida de Monte Serrat, ou ainda em
direção ao sul, na Gamboa, por exemplo (BRANDÃO, 2004, p. 64).

Coutinho apresenta claramente esta dualidade entre essa cidade do passado e a emergente que
possui aspectos excludentes descrevendo, em alguns momentos, as partes históricas em contraponto com
as novas construções e o movimento da cidade. Tais descrições marcam o tempo na obra, não somente o
cronológico, mas o mítico e de rememorações de suas personagens que, por meio do olhar para uma pai-
sagem urbana já transformada, refletem sobre o seu pertencimento a um lugar e a estranheza gerada pelo
que se tornou diferente.
De acordo com Santos e Oliveira (2001), o tempo que emerge na literatura, ainda que fantasioso, é
social, tratando-se de um modo coletivo de atribuir sentido às coisas. Entretanto, o que se observa no roman-
ce coutiniano, segundo noto, é o diálogo entre tempo histórico e tempo mítico, em que se pode presenciar um
espaço-tempo como lugar de reflexões sobre a vida e sobre o papel social da mulher relacionando suas im-
possibilidades e retrocessos com aspectos cósmicos, alheios à sua vontade, como a circularidade do tempo.
Nesse sentido, refletindo sobre o espaço-tempo em seu retorno à Bahia, o personagem João Paulo diz:

Provincianismo, um recuo no tempo. Subdesenvolvimento, como viver em outro tempo


anterior. Como voltar ao passado. O lugar do subdesenvolvimento, percebe João Paulo,
permanece como um bolsão do passado, de comportamentos e situações arcaicos. De re-

61
pente, como voltar a outro século. O tempo aqui é circular, conclui, ouvindo o riso louco
dos trovões. Um tempo mítico, tempo de antigas civilizações, que ainda não tinham no-
ções de História como marcha para a frente. Civilizações voltadas para a repetição do
eterno – Babilônia, Egito, Grécia (COUTINHO, 1989, p. 85).

As alusões a um viés grego-ibérico são recorrentes no romance, sobretudo, quando denotam os as-
pectos mitológicos, como na referência ao tempo na cidade de Salvador. Este, à imagem da antiguidade
grega, não parece linear para os personagens, mas entram em um labirinto cíclico trazido pelo verão, como
as próprias estações do ano que sempre se repetem. É assim que, refletindo sobre o tempo e o espaço ficci-
onal, Santos e Oliveira (2001) pontuam que, “no mundo greco-latino, o círculo constitui o modelo da tem-
poralidade. Circular, o tempo é algo de inexorável, do qual não e possível fugir – sempre retorna, gerando
a eterna repetição” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 55), tema este que tratarei mais detidamente adiante.
Diante desses processos de produção, observo que os cenários urbanos e a relação espaço-tempo
construídos no romance de crime coutiniano, oscilantes entre valores do passado e outros emergentes,
colocam a mulher em um contexto que, desde a disposição arquitetônica às funções sociais, está visivel-
mente à margem. O próprio tempo circular, estabelecido pelo clima daquele verão atípico, parece enre-
dar a protagonista em uma teia de acontecimentos que a impedem de submergir, de escapar de seu desti-
no final, sua punição.
Neste aspecto, questiono: os elementos míticos colocados em evidência na voz dos personagens
masculinos poderiam indicar um aspecto crítico ao destino de mulher? Sofia seria um sacrifício para
aplacar a fúria dos deuses sobre a cidade, que abrigava tantos sujeitos subversores a suas funções? A mu-
lher se correlaciona com o mito da antiguidade, afirma-se como transgressora e aceita o mesmo destino
imposto àquelas? Essas questões serão tratadas em capítulo posterior.
Os aspectos relacionais entre espaço-tempo-identidade se evidenciam, também, pelo fato de se
poder compreender que somente é possível perceber um ser a partir de suas relações. Coadunando com
tal perspectiva, Santos e Oliveira (2001) indicam que o espaço da personagem na narrativa seria

um quadro de posicionamentos relativos, um quadro de coordenadas que erigem a iden-


tidade do ser exatamente como identidade relacional: o ser é porque se relaciona, a per-
sonagem existe porque ocupa espaços na narrativa. Percebemos a individualidade de um
ente à medida que o percebemos em contraste com aquilo que se diferencia dele, à me -
dida que o localizamos. Só compreendemos que algo é ao descobrirmos onde, quando,
como – ou seja: em relação a quê – esse algo está (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 68,
grifos do original).

62
A identidade da protagonista se delineia a partir da relação com a cidade da memória, sendo,
pois, uma consubstanciação de cidade-tempo, esse Omphalós8 e Thanatos9 que delimita o início e o fim,
o aspecto cíclico, histórico e mítico, pois ela mesma descobre finalmente: “a cidade sou eu, ela sabe”
(COUTINHO, 1984, p. 90), para a qual ela voltou porque deveria aprender a morte “como um dia se
aprende a velhice, mesmo sem querer, estabelecendo à própria revelia os necessários elos no tempo”
(COUTINHO, 1984, p. 90).
Em relação à estrutura da obra, ela é disposta como recortes de jornais, fotografias ou, como pon-
tua Patrício (2006), pela colagem de memórias. Sendo assim, existe uma alternância entre os espaços da
cidade de origem – Salvador – e a cidade onde se busca a realização – Rio de Janeiro – ora se fala tendo
em vista a experiência do retorno de Sofia e João Paulo à cidade natal, ora se fala na perspectiva das vi-
vências do passado naqueles espaços e ora das situações e aprendizados na cidade do Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro é apresentado como cidade labirinto, que consome seu tempo, (“– jamais dis-
punha de um tempinho neste labirinto, o Rio de Janeiro”) (COUTINHO, 1989, p. 15), o que faz uma
proposta de trabalho na cidade natal de Salvador se tornar irresistível. A linguagem utilizada representa,
também, o próprio labirinto da realidade vivida pela personagem Sofia em meio a um espaço que carre-
ga os valores de um tempo, de um povo, que a deixa sem saída frente às pressões sociais.
De fato, a cidade do Rio de Janeiro é um labirinto que aponta para a libertação da mulher, afinal,
é o lugar para o qual se direciona Sofia em busca de uma nova vida, já divorciada. Neste espaço, encon-
tra oportunidade de emprego e começa a descobrir outras facetas de si, declarando que “Ter aprendido a
viver sozinha talvez fosse o maior patrimônio que acumulara em quase vinte anos de Rio de Janeiro”
(COUTINHO, 1989, p. 13). O que emerge no discurso da protagonista sobre sua partida para o Rio, bem
como da necessidade do retorno à cidade natal, é bem característico da crise da mulher, que é discutida
por Julian Marías (1981), entre viver seu destino de mulher e/ou sua vocação de ser humano. A solidão,
ao mesmo tempo em que foi desejada, também se apresenta como um pesado fardo. Por isso, também, a
necessidade de voltar às raízes, ao lugar de início, na tentativa de fazer um balanço, observando as per-

Termo utilizado no romance relacionando a cidade de Salvador ao Omphalós, como o umbigo do mundo, lugar
de início de tudo.
9

Termo utilizado no romance relacionando a cidade ao tempo/morte e a efemeridade deste.


63
das e conquistas alcançadas a partir de suas decisões. Sobre a solidão e a impossibilidade de permanecer
no Rio, a protagonista Sofia é quem diz:

[…] pensando bem talvez jamais tivesse conseguido deitar raízes fundas no Rio, aliás só
tentara isso uma vez, durante aquele seu segundo casamento, com Jacinto. O resto fora
viver à superfície, ameaçada de submergir a qualquer momento, fosse por falta de di-
nheiro ou por excesso de solidão (COUTINHO, 1989, p. 14).

A contraditória solidão da personagem, como ela mesma conclui, é “um tesouro duvidoso”
(COUTINHO, 1989, p. 29), pois permanece ora como prêmio, ora como castigo.
De fato, a cidade do Rio de Janeiro aparece como caracterização de uma mulher mais livre, ou
como a busca por uma identidade feminina afastada dos padrões patriarcais, e surge em diversos contos
de Sônia Coutinho, como em “Doce e Cinzenta Copacabana”, que é totalmente descritivo e interativo
com o espaço do bairro carioca, expressando relação peculiar com a vida da personagem que vive o dile-
ma entre a liberdade e a solidão. Este será um dos pontos de reflexão das personagens de Coutinho,
como no conto que serve de título para a obra O Último Verão de Copacabana, a qual gira em torno das
contemplações da personagem sobre solidão e liberdade sexual, mas que, ao final, remete à cidade do
Rio como sendo o interesse central do narrador, completando a essência da figura daquela mulher livre.
A presença de Copacabana como um ideal, isto é, como um espaço de busca pelo sonho e pela li-
berdade é frequente, especialmente porque sua imagem pode ser claramente relacionada com a mulher
que foge dos padrões impostos pelo patriarcalismo. Esta fuga é declarada pelo personagem João Paulo
em seu regresso a Salvador, referindo-se a ele e a Sofia, quando coloca a partida de ambos nos seguintes
termos: “Os dois se conhecendo há tanto tempo, nascidos na mesma cidade, pertencentes à mesma gera-
ção, fugitivos para o Rio ao mesmo tempo” (COUTINHO, 1989, p. 18). Contudo, ainda que lugar de re-
fúgio, a cidade carioca se torna um labirinto que flui exatamente dos conflitos vividos pelas personagens
de Coutinho, já que estas apresentam, em sua maioria, um grande dilema entre a educação tradicional re-
cebida e a sua realização como mulher.
É importante frisar que as cidades apresentadas no romance são construções discursivas que,
conforme pontua Fernandes (1996, p. 23), “É uma cidade intermediada pela necessidade de se ajustar a
um tema, que hospeda personagens com densa psicologia individualizada”. Assim, esta cidade é ideali-
zada, apresentada por um narrador que tem o compromisso com determinado discurso.
Fernandes discute a ideia de utopia urbana, colocando, especialmente, a cidade do Rio de Janeiro
como uma das que podem ser indicadas como recriada, pois, apesar da intenção de verdade e registro,

64
está vinculada ao olhar de um criador. É neste sentido que, acompanhando o movimento histórico dos
anos de 1960 a 1980, quando todo o centro da vida cultural convergiu para a antiga capital do Brasil de-
vido aos rigores da ditadura militar, a personagem de Coutinho acompanha esse deslocamento geográfi-
co e projeta, em sua utopia urbana particular, este espaço como um ideal de cultura, lazer e liberdade fe-
minina. Além disso, o ideal da cidade carioca foi estabelecido em seu projeto de urbanização, de acordo
com Renato Cordeiro Ramos (2008), em Todas as Cidades, a Cidade: literatura e experiência urbana,
de modo que o progresso significava colocar-se nos mesmos padrões e ritmos europeus. Sendo assim,
um dos elementos que a caracterizam com ares libertários é o afastamento de hábitos ligados pela me-
mória à sociedade tradicional.
Salvador, como supracitado, está relacionada com o local de origem dos protagonistas. O nome
da cidade não é mencionado diretamente, mas é possível identificá-la pelas características geográficas,
pelos os nomes de bairros e pelas ruas apresentadas na obra.
É exatamente uma capital que põe em evidência as diferenças e conflitos inter-raciais, sociais e
de gênero apresentados pela autora, de modo a incorporar a cidade em sua narrativa como um espaço
ativo de vivência dos sujeitos. Assim, além de palco, interage e influencia, de maneira determinante, o
destino de seus habitantes, como uma marca do romance de crime, pois a subversão social, neste gênero,
está primariamente ligada a aspectos do crescimento urbano e suas implicações sociais. Assim sendo, a
volta ao passado, ao interior, é um movimento constante na obra: é, em verdade, um efeito produzido pe-
las cidades e pelos espaços; por isso, estas funcionam como um labirinto.
O labirinto na ficção policial se estabelece a partir da dificuldade de se esclarecer a verdade, asso-
ciada ao medo, no intuito de buscar, novamente, o equilíbrio da ordem social, outrora atingido pelo crimi-
noso. Sobre essa perspectiva, Sônia Coutinho (1994) discute que esta característica do romance policial
está diretamente ligada ao barroco, bem como à estética pós-moderna. Com a perda de uma visão global
daquilo que é racional, os sujeitos buscam encontrar uma ordem final, através do exercício da inteligência.
A presença do labirinto no romance de crime coutiniano se manifesta de maneiras distintas, desde a
relação entre cidade transformada e o próprio ser dos sujeitos, até a própria linguagem utilizada na obra.
Dessa maneira, Nizia Villaça (1996, p. 142), em Paradoxos do Pós-moderno: sujeito e ficção, aponta a es-
crita de Sônia Coutinho como bem representativa da realidade labiríntica, segundo a qual “[a] linguagem
que a ficcionista cria responde à necessidade de representação de uma realidade labiríntica, que já não obe-
dece à possibilidade de uma saída, ou seja, a resolução final encontrada no labirinto clássico”, expressan-
do, assim, o caos dos espaços e sujeitos contemporâneos, tudo aquilo que não tem resolução.

65
A questão da identidade também é um percurso que leva ao labirinto, sendo manifestada no ro-
mance policial por meio da busca pela identificação do transgressor. Esse aspecto, também peculiar do
discurso pós-moderno, apresenta-se em um tom diverso do tradicional na ficção de Coutinho, pois a bus-
ca não é pela identidade do criminoso, mas para saber quem é a mulher ou o que é ser mulher na socie-
dade semipatriarcal. Neste sentido, de acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1999), em Dicio-
nário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números),

O labirinto também conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuá -


rio interior e escondido, no qual reside o mais misterioso da pessoa humana. Pensa-se
aqui em mens, templo do Espírito Santo na alma em estado de graça, ou ainda nas pro -
fundezas do inconsciente. Um e outro só podem ser atingidos pela consciência depois de
longos desvios ou de uma intensa concentração, até esta intuição final em que tudo se
simplifica por uma espécie de iluminação. É ali, nessa cripta, que se reencontra a unida-
de perdida do ser, que se dispersa na multidão dos desejos (CHEVALIER; GHEER-
BRANT, 1989, p. 531).

Para João Paulo, Sofia e Fernando, o centro do conhecimento, bem como a sua compreensão, so-
mente podem ser atingidos a partir do labirinto, que é a cidade interiorizada, como declara Sofia ao men-
cionar que “está mais uma vez sozinha, sozinha nesta cidade que tinha ficado dentro dela” (COUTI-
NHO, 1989, p. 14), a qual, agora, vinha sendo desvendada, revisitada. Conforme se observa e é aborda-
do pelos próprios protagonistas, Salvador é mitologicamente o omphalos, umbigo do mundo, revelando,
mais uma vez, a ideia de princípio ou base de suas existências.
A relação de habitação construída pelas personagens leva a um mergulho no labirinto do próprio
ser, afinal, tratando de Sofia, o narrador mostra que:

Sofia vai à janela e vê grandes rios barrentos correndo pelas sarjetas. Os quarteirões
com pequenas lojas e a fatia de mar que avista da varanda de seu apartamento estão co -
loridos de cinza e, aparentemente, tudo mergulhou numa calma profunda. Pela primeira
vez, desde que chegou, sente-se plenamente devolvida a sua interioridade, capaz de se
lembrar de todos os acontecimentos de sua vida, mesmo os mais soterrados, como quem
observa de uma distância infinita. Quem ela foi, quem vinha sendo, as muitas pessoas
que é (COUTINHO, 1989, p. 43).

O olhar de Sofia e demais personagens, sempre recorrente para a paisagem, para seu horizonte
em seu prolongamento, expressa uma visão sobre estes como o espelho da alma. Existe um diálogo
constante entre estado da paisagem e do tempo com o estado do ser e com a descoberta de si. Parafrase-
ando Bachelard (1978), isto revela que a cidade é o padrão de comparação de Sofia, seu divino, onde,

66
poeticamente, habita. O mesmo movimento de distanciamento, de perspectiva do alto, é vivido por João
Paulo, especialmente quando, na perspectiva de Fernando, ele mata Sofia. Neste sentido, homem e pai-
sagem, ou homem e espaço, se complementam, pois, como reflete Collot (2012), a noção de unidade
corporal é tomada à distância de si mesmo, do outro lado do espelho.
O processo de retorno à cidade natal, bem como as diversas implicações simbólicas do labirinto,
tais como a ideia de afastamento, apresentadas por ambos os personagens nos momentos finais da morte
de Sofia, refletem os aspectos pós-modernos da narrativa urbana de Coutinho. Neste sentido, de acordo
com Bailey (2009), em De Janelas e Calçadões: Copacabana na ficção de Sônia Coutinho,

[a] peregrinação urbana das personagens, especificamente aquelas que transitam pelo
espaço de Copacabana, será o elemento articulador da sintaxe urbana que Coutinho
arma em sua ficção e através da qual registra aspectos reveladores da vida no famoso
bairro carioca, o qual, por sua vez, constitui um microcosmo representativo da vida cos-
mopolita. Deve-se esclarecer, no entanto, que a Copacabana de Coutinho é signo da pós-
modernidade, pois embora a ficcionista tenha surgido na cena literária brasileira no final
da década de 1960, período ainda marcado pela modernidade e pelo Modernismo brasi-
leiro, o melhor de sua ficção aparece a partir de 1978 e explora tropos constantes da
pós-modernidade, tais como alienação, exílio, deslocamento, movimento no tempo e es-
paço. Além disso, sua linguagem narrativa apresenta elementos da literatura pós-moder-
na, como por exemplo, a metaficção, a auto-referencialidade, mis-en-abîme, ambigüida-
de, escrita fragmentária e labiríntica (BAILEY, 2009, p. 348, grifo do original).

A completude entre homem e espaço por meio da representação do feminino no romance Atire
em Sofia leva à compreensão do poder que um espaço social gera sobre a mulher e sobre sua construção
identitária. Este é um fato abordado claramente pela personagem quando assinala que:

É preciso construir uma nova cidade encima da antiga, um novo eu. Mas talvez seja tar-
de, a cidade transformou-se em labirinto, seu inconsciente, que procura inutilmente de-
vassar. A nova cidade em que ousa pensar o mais fundo de si – a cidade sou eu, ela sabe
(COUTINHO, 1989, p. 90).

É certo que a personagem e a cidade se ligam intimamente, o que leva a uma ideia de pertencimen-
to e revela seu lugar-no-mundo, como uma mulher que desvenda a importância e a marca de suas raízes
para a compreensão de si. Nesse âmbito, entendo que o texto é um espelho em que o eu e a cidade se refle-
tem, identificados. Dessa maneira, para mim, o labirinto e o estranhamento gerado pelas transformações da
cidade também refletem nas transformações da própria personagem feminina. Logo, entendo que, ainda
que a cidade natal trouxesse diversos estigmas da sociedade patriarcal, o movimento constante da persona-
gem em outros espaços como a cidade da libertação, Rio de Janeiro e o retorno às origens geraram um
67
processo de autoconhecimento. Contudo, as mulheres representadas em Atire em Sofia reconfiguram suas
relações com os espaços privados, para as quais já não basta um lar tradicional, uma prisão comum à mu-
lher de seu tempo. Sob tal pressuposto, os espaços ou a casa ganham novas representações.

2.3 DA CASA PARA A RUA

A dinâmica fluida entre os espaços da casa e da rua são elementos constitutivos do romance cou-
tiniano. À medida que os personagens transitam entre o público e o privado, as impressões do olhar fe-
minino são registradas sobre os diversos ambientes, seja pela visão da personagem ou da autoria femini-
na. Assim, é possível observar que existe uma lógica social que situa o ambiente da rua como propício
ao perigo ao passo em que coloca o ambiente da casa como lugar do “amor”, do “local seguro” e “fami -
liar”, conforme propõe Roberto DaMatta (1997), em A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte
no Brasil, sendo esta o lugar reservado à reclusão da mulher.
De fato, consoante com o proposto por DaMatta, pode-se verificar que, na obra aqui tratada, os
espaços não existem de forma individualizada, mas estão envoltos a valores que servem para orientação
dos sujeitos em seu meio social. Este é o caso das configurações das cidades do Rio de Janeiro e de Sal-
vador, possuindo espaços delimitados a partir de questões econômicas e sociais que contribuíram para a
própria dinâmica arquitetônica das mesmas. Dessa forma, entendo que casa e rua demarcam mudanças
de atitudes, gestos, roupas e, inclusive, os papéis sociais, sendo representados e fundamentais no roman-
ce de crime coutiniano, já que espaço e o discurso social estão intimamente ligados.
Ao se analisar a casa, é relevante compreender que a mesma é tomada, na acepção de Bachelard
(1978), como todo ambiente em que se faz morada, no qual se estabelece uma relação de lugar ou de
pertencimento. Sendo assim, na obra Atire em Sofia são apresentados espaços como o apartamento da
protagonista, os sobrados de João Paulo e de Matilde, o escritório de Fernando, o quarto de Milena, e al-
guns objetos nestes ambientes descritos que caracterizam social e psicologicamente os personagens, bem
como representam o estado de alma destes. Neste sentido, percebemos fatores do ambiente natural como
a chuva, ligada ao sofrimento, à angústia e ao medo, como quando demonstra que: “Sozinha, no escuro,
a chuva caindo lá fora, é dominada por um frio pânico” (COUTINHO, 1989, p. 137). Além disso, a chu -
va continua sendo associada a outras dores, outros gritos como se verifica em:

68
Porque chove, chove ainda – como um pranto. Prestes a dormir, pensa no destino in-
terminável de gerações sucessivas de mulheres que precederam nesta cidade, mulheres
que, sem prazer, deitavam na escuridão e faziam sexo quando aos homens aprazia.
Mulheres silenciosas cuja memória se perdeu, suas lágrimas caem sob forma de chuva
e inundam a cidade. Iansã, abrandando sua cólera, deixa de lado seus raios e trovões e
chora por elas. Ouve vozes de mulheres esquecidas, em meio ao ruído da chuva – são
como vozes de crianças, com suas frases sem nexo (COUTINHO, 1989, p. 30).

Como é observável, a chuva está associada às lágrimas, à dor das mulheres naquela sociedade
baiana e, comumente, ao estado do ser da própria protagonista, quem declara que “Chora baixinho na
rede, agora, unindo suas lágrimas às que Oiá-Iansã verte do céu. […] Embora tente disfarçar, o fato é
que ela é uma mulher e há todo um legado latino-americano de lágrimas femininas a se considerar”
(COUTINHO, 1989, p. 138). De maneira similar, vê-se o personagem João Paulo transitando entre a
casa e a rua, ficando recluso quando as chuvas se intensificam e saindo assim que o tempo climático mo-
difica e aparece o sol. Esta oscilação do clima representa simbolicamente a própria oscilação de lucidez
e devaneio que é conferido ao personagem, como no seguinte trecho:

Através da porta de vidro da varanda, vê que a chuva cessou e decide ir à praia, embora
já passe do meio-dia. (…) Segue pela beira-mar, a certa altura pára assombrado. Sobre a
areia ainda molhada da praia deserta, vê em um palco imenso, parecendo pronto para a
encenação de um espetáculo. O cenário é um painel kitsch, com um desenho da praia de
Copacabana, contornado por imagens tropicais multicoloridas – onças, macacos, tuca-
nos, flores exóticas. Raios de sol, filtrando-se entre as nuvens, incidem de repente numa
figura masculina que até agora lhe passara despercebida, a um canto do palco. – Nelson!
Nelson Rodrigues! – brada, reconhecendo o homem de rosto sombrio, com um cigarro
enfiado no canto da boca, como o vira há alguns anos, numa redação de jornal, datilo-
grafando sua crônica. Torna a gritar: – Nelson Rodrigues! Mas Nelson não responde e,
com uma rápida meia-volta, desaparece por trás do cenário, enquanto os outros persona-
gens vão surgindo no palco. Um deles é Laura Luedi, loura e lindíssima, como nos tem-
pos em que quase foi Miss Universo. Uma boneca, mulher criança, cujo rosto, de repen-
te, sob seu olhar perplexo, transforma-se agora em outro, moreno, com traços de índia,
cabelo liso e negro e batom muito vermelho. É Sofia que ele vê desfilar, no lugar de
Laura (COUTINHO, 1989, p. 42).

O aspecto social e estrutural da cidade também é exposto a partir do ambiente da casa, de manei-
ra que, da varanda do sobrado velho e emprestado, o leitor pode contemplar, junto a João Paulo, as
transformações da cidade de Salvador: “A vista da varanda é para horrendos espigões que proliferam,
desordenados, ao lado de casas baixas, na ladeira defronte. Lá embaixo, na rua, o barulhento caos do
trânsito e, na calçada, sacos de lixo empilhados” (COUTINHO, 1989, p. 24). E é de dentro dessa mesma

69
habitação da qual seu olhar é lançado sobre a paisagem que se tem a visão mais profunda de seu ser, de
suas percepções sobre a sociedade baiana de seu tempo, pois o mesmo personagem é quem revela:

Provincianismo, diz João Paulo a si mesmo, na varanda do velho apartamento onde se


instalou. Como se pronunciasse uma fórmula mágica, ou encantatória – provincianismo.
A chave para explicar tanta coisa, uma explicação para sua trajetória, a partir do que vi-
veu aqui há quase vinte anos, numa cidade branca, de classe média e preconceituosa.
Sua vida, de repente, nesta varanda, ganha até um sabor épico, de luta contínua para so-
breviver aos efeitos de surdos tabus (COUTINHO, 1989, p. 24).

É a partir desse cenário que, do apartamento quarto-e-sala alugado por Sofia, ao leitor é permiti-
do desnudar sua alma, sua solidão e as incertezas acerca de suas escolhas. Estas e outras habitações e
seus respectivos aspectos estruturais e objetos funcionam como um parêntese explicativo na obra, reve-
lando os pensamentos mais íntimos de seus personagens.
A incidência recorrente desse ato de olhar da varanda, tomada em uma vertente sociológica, confor-
me DaMatta (1997), representa a própria ligação do espaço doméstico, que é privado, com o espaço da rua,
que é público. É significativo que, mesmo no ambiente fechado da casa, as personagens, com relevante fre -
quência, voltem seus olhares para a rua. Neste momento, é permitido a todos os leitores compreenderem a
natureza de um discurso proposto na obra, na qual, ainda que no ambiente privado, os protagonistas e as mu-
lheres não deixam de voltar sua visão para a sociedade, figurando uma análise do que é interno, íntimo, rela-
tivo ao ser, ligado aos reflexos do sistema de valores e crenças da sociedade urbana em que estão inseridas.
Tratando da escrita de autoria feminina, Elódia Xavier (2012), em obra intitulada A Casa na Fic-
ção de Autoria Feminina, atravessa corredores, salas e quartos em uma visita pelo imaginário da mulher.
Neste estudo, a pesquisadora ressalta que a casa “não é um simples cenário da ação narrada, mas uma in-
terseção significativa entre ser e espaço” (XAVIER, 2012, p. 15). Por isso, é representada de acordo com
o tipo de relação com o ser feminino, ora como casa-jaula, ora como casa-de-espera, entre outras simbo-
logias. De maneira análoga, é possível observar alguns aspectos da “casa” no romance de Sônia Couti-
nho como mais que um cenário: um local de descobertas do ser.
Matilde, mulher de quarenta anos, recita uma fórmula mágica em sua casa no intuito de trazer de
volta um homem casado com quem mantinha uma relação. Esta casa está localizada à beira-mar, um so -
brado fruto da herança de seus avós e representa o “máximo de luxo nos anos 40”, mas, vinte anos de -
pois, é descrita como cheia de rachaduras, pintura manchada, “destoando da aparência dos prédios vizi-
nhos”, como quem está destoando da imagem do seu próprio tempo. A casa desta personagem, se toma-
da em seu contexto histórico, representa o estágio de transformação da cidade de Salvador. Milton San-
70
tos (2008), em O Centro da Cidade de Salvador, discute a paisagem urbana do centro da capital baiana
mostrando como o impacto do capitalismo e o investimento no comércio geraram profundas transforma-
ções na cidade baixa. Este é um cenário apresentado na obra como “destoando dos prédios próximos”, já
que, de acordo com o pesquisador, os sobrados foram perdendo lugar para os grandes edifícios e casas
de comércio, tornando-se apenas um pedaço do passado da cidade. O sobrado no qual vive Matilde traz
à tona a condição social de uma mulher que está decadente, pois já foi um lugar de glamour, mas que
agora guarda em si paredes descascadas, móveis velhos e sofás amarelados:

À entrada da casa onde mora, na avenida à beira-mar, um sobrado que pertenceu a seus
avós, o máximo de luxo na cidade por volta dos anos 40, mas agora cheio de rachaduras,
com a pintura manchada destoando dos prédios próximos, (…) Acende a luz da sala e se
senta no sofá amarelado, com os braços puídos, como os das poltronas (COUTINHO,
1989, p. 19).

Entretanto, mais que um pedaço da deterioração causada pelo tempo sobre o imóvel, sua casa re-
presenta também a própria condição daquela mulher, como ela mesma afirma em:

Cidade maldita que os ventos do entardecer sacodem, velozes ventos como se passaram
os anos, sopro sem fim em direção às estrelas, carregando folhas mortas e fantasmagóri-
cas fragmentos de meu vestido longo de debutante, de renda branca rebordada, com que
dancei a valsa nos braços de meu pai, diante de ricos fazendeiros, comerciantes, profis-
sionais liberais bem sucedidos e suas mulheres embonecadas, todos sentados em torno
da pista de danças daquele clube considerado o mais chique. Bem vestida que eu era,
conhecedora de etiqueta, prendada e bem comportada, minha virgindade, a educação re-
ligiosa que eu tive, atendendo a todas as normas, seguindo os padrões estabelecidos, no
entanto esperei em vão pelas recompensas, enquanto tabus caíam e costumes eram revo-
lucionados, nada do que eu aprendera fazia mais sentido nem interessava a ninguém, a
cidade se transformando em outra e meu passado, como frágil renda já amarelada, des-
pedaça-se agora ao sopro do vento (COUTINHO, 1989, p. 153).

Assim como a casa que já foi glamourosa, Matilde está ultrapassada, uma vez que a educação
que recebeu, isto é, os valores tradicionais, não se encaixam mais com as necessidades de seu tempo e
de sua vida. Enganada e abandonada pelo marido, que lhe tomara quase todos os bens deixados pelo pai,
Matilde, ao longo do texto, projeta na educação conservadora que a preparou para uma posição ingênua
a culpa por seu estado emocional e financeiro atual, adquirido após o divórcio. Sua imagem em paralelo
com a imagem da casa remete ao que Elódia Xavier (2012) denomina de “Casa exílio”, reduto de perso-
nagens condenados pelas leis sociais, como as lésbicas e as divorciadas, contrapondo com a “casa lar”,
onde existe a imagem da família e onde se aguarda o retorno do filho.

71
A metáfora da “casa exílio” é apresentada desde a localização do sobrado herdado por Matilde, já
que, diante das transformações estruturais da cidade, esta sobrevivia como apenas um pedaço esquecido
da história. Sobre esse aspecto, Bachelard (1978) fala da casa como um relicário de lembranças, cuja
existência permite a manutenção da memória. Para Matilde, memória e devaneio se confundem e a mai-
or expressão de exílio ocorre por meio da “imaginada” presença de Maria Callas no andar superior de
seu sobrado: “Maria Callas debruça-se no peitoril da varandinha no andar de cima do sobrado, e olha o
mar, no escuro, cantarolando para si mesma a Alceste de Gluck” (COUTINHO, 1989, p. 21). Como
uma espécie de espelho, a vida da cantora é evocada de modo a refletir as próprias vivências da persona-
gem Matilde, os amores, o abandono, a velhice e a solidão – posição de uma mulher de 40 anos, divorci-
ada que, em uma sociedade que reflete valores patriarcais, não era mais adequada para as funções femi-
ninas, como o casamento e a maternidade.
À medida que sobe as escadas que atinge os andares superiores e que se movimenta do espaço
mais geral para o mais íntimo – o quarto – se estreita o devaneio, isto é, ocorre a integração entre pensa-
mentos, lembranças e sonhos, que se vê logo em seguida:

Matilde ouve um ruído de queda, no andar de cima. Sobe correndo a escada e encontra
Maria Callas estirada no chão, lívida. Ela murmura: ‘Não me sinto bem’. E desaparece.
Segundos depois, torna a aparecer, estirada em sua cama. Aproxima-se e verifica que
Maria está morta. Usa um vestido de musselina cinzenta, sem nenhuma jóia, e seu rosto
parece mais jovem, o rosto dos tempos dos seus primeiros papéis na ópera, depois do
emagrecimento. Antes que Matilde possa fazer qualquer movimento, o corpo torna a de-
saparecer (COUTINHO, 1989, p. 23).

É por meio da voz de Maria Callas, cantora de ópera, que o drama existencial de Matilde é apre-
sentado naquele sobrado. Inicialmente, cantando ária dramática que trata do abandono e da morte, ela
aparece no andar superior da casa da personagem. Nas linhas que seguem, sua história é narrada, seus
amores e desilusões, culminando em sua morte. Como um prelúdio da vida e do destino de Matilde, mu-
lher, separada, enganada, desiludida e destoante dos padrões comportamentais de sua época. O que lhe
restaria senão a morte? A então personagem exuberante reaparece sem maquiagem, já não mais Maria
Callas, mas chamada apenas de Maria, trajando um comum tecido de musselina acinzentada, tão comum
quanto qualquer outra mulher ou Maria de seu tempo, dando lugar a outro tipo de mulher, assim como a
casa cede espaço a novos tipos de edificação.

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Outrossim, é da varanda do quarto com vista para o mar, em cima de um morro, que a casa tam-
bém apresenta as particularidades de Milena, filha de Sofia. Jovem de 19 anos, assume-se enquanto mu-
lher negra, como revelam suas memórias:

Ela lembra a avó que a obrigou, até certa idade, a alisar o cabelo, com um produto quí-
mico que os negros costumavam usar. Já seu pai, um mulato, comportava-se como se
fosse branco puro, ariano, e fala contra os negros em todas as oportunidades. Quanto a
ela, sempre se sentiu uma negra. Nas escolas chiques que freqüentou, o preconceito lhe
chegava através de alusões veladas à sua cor, a seu cabelo. Sua rebeldia começou, con -
cretamente, com o ato simbólico de deixar de alisar o cabelo e adotar um penteado afro
(COUTINHO, 1989, p. 142).

Em sua descrição, Milena é apresentada em seu quarto, trajando apenas uma camiseta negra, ou-
vindo rock e se estirando em seu sofá, que também é negro. O olhar para o ambiente e a chegada da noi-
te trazem à personagem uma tristeza profunda, recordando sua condição de virgem que desmente a ima-
gem de si que gostaria de transparecer. Sendo assim, o quarto, neste contexto, revela-se, segundo as pa-
lavras de Bachelard (1978, p. 64), “como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço que
deve condensar e defender a intimidade”, cobrindo sua verdadeira faceta, suas fragilidades e medos.
É importante frisar que a música, nos diversos ambientes, também será instrumento para revelar fa-
cetas das personagens na obra, por isso é significativo pontuar que a personagem Milena ouve constante-
mente o rock da banda Iron Maiden, cujos trechos de canções são dispostos ao longo do romance. De
acordo com Jeder S. Janotti Junior (1994) em Heavy Metal: o universo tribal e os espaços dos sonhos:

Na análise da nomenclatura de uma das mais importantes bandas do heavy metal con-
temporâneo, o Iron Maiden, é possível perceber que seu nome evoca em uma polissemia
entre o lado medieval-donzela de ferro, instrumento de tortura usado na Idade Média,
que também demonstra a filiação metálica da banda pela utilização da palavra Iron,
além de ser uma alusão ao apelido da ex-primeira ministra da Inglaterra Margaret Tat -
cher. Inter-relação que remete a “Idade das Trevas” associadas aos nossos dias, o tempo
caminha, mas as torturas e os medos presentes no imaginário medieval continuam vivos
(JANOTTI JUNIOR, 1994, p. 54).

Como esclareceu Janotti, é observável que, na obra Atire em Sofia, o rock relacionado à persona-
gem Milena revela os medos e as torturas impostas pelo sistema de crenças e regras patriarcais que se
instalam na sociedade contemporânea. Além disso, a origem do estilo musical remete ao grito negro dos
escravos norte-americanos e da melancolia dos acordes do blues, reafirmando a identidade da persona-
gem no romance Atire em Sofia.

73
Não obstante ao olhar para o exterior das demais personagens, Sofia é quem conduz o leitor para
decifrar as moradas de seu ser em duas casas/apartamentos distintos, um em Salvador e outro no Rio. No
retorno de Sofia à Bahia, é apresentado o contexto humano e cultural de uma época histórica da cidade:
ela está fragmentada, como o eu da personagem, sobre o qual ela inicia um processo de contemplação
para identificar “quem ela foi, quem vinha sendo, as muitas pessoas que é” (COUTINHO, 1989, p. 43).
Contudo, é no ambiente da casa que suas impressões sobre a cidade, sobre si e sobre seu ser são tecidas
a partir da volta a espaços significativos para a memória.
É importante observar que o fluxo entre casa de Salvador e casa do Rio representa, em certo pon-
to, a própria dualidade da personagem, seus conflitos e uma crescente necessidade de se compreender
como mulher. Tal fato pode ser observado nas declarações da protagonista em relação ao seu sentimento
quando estava com Ricardo, um homem casado com quem teve um breve caso na cidade do Rio:

Em seguida, a Sofia do Rio tomava uma ducha, pensando rapidamente em qualquer ou-
tra coisa, para evitar aquela pontada no peito, quando a porta batendo indicava que Ri-
cardo tinha ido embora. E a Sofia da cidade, depois do amor, mantinha-se longas horas
fechada em seu quarto, repetindo para si mesma, cheia de êxtase e culpa: ‘puta, puta’
(COUTINHO, 1989, p. 168).

A dualidade de sentimentos expressa no trecho acima reflete parte das questões levantadas por
Sofia no ambiente da casa/apartamento, revelando aspectos distintos de sua personalidade. Também
aponta para a condição dual de mulheres que, ambientadas em um contexto moderno, carregam consigo
marcas da tradição, da educação e da censura impostas ao longo dos tempos.
Estas questões se revelam ainda mais latentes quando a personagem central, ao ser questionada
por um amigo, se recorda da pergunta freudiana: “Afinal o que querem as mulheres?” (COUTINHO,
1989, p. 123). Com este pensamento há o início de um processo simbólico de invisibilidade, que será vi -
vido em seu apartamento, na cidade do Rio de Janeiro, com momentos de intensos questionamentos e
buscas de sua face no espelho.
A metáfora do espelho vem sendo discutida sob diversas perspectivas, considerando que sua ins-
piração partiu do mito grego de Narciso e encontrou destaque especial nos estudos psicológicos de La-
can, para o qual o “estádio do espelho” trata da formação da “função do eu”. Para Lacan (1977), em seus
Escritos, a definição da identidade da criança se dá em relação à sua ligação com a mãe, pois, quando
essa é rompida, a criança torna-se consciente de si. Sendo assim, a “fase do espelho” é o momento em

74
que a criança tem sua primeira compreensão de subjetividade, quando percebe a mãe como algo separa-
do de si, tomando consciência de um “eu” (LACAN, 1998).
Ainda segundo os estudos de Lacan, a identidade surge a partir de uma falta, trazendo um desejo
de retorno de unidade com a mãe, a qual já foi rompida na infância. Neste sentido, elucidando a relação
dual de conflito presente na personagem Sofia é que, a partir de um questionamento sobre a identidade
feminina, começa um processo de autoanálise. Este processo de buscar a si, ou do olhar sobre si, revela
que o que está em jogo é a própria alteridade.
Lobo (1999) trata sobre essa revelação de uma alteridade a partir da compreensão não de um outro
antropológico ou filosófico, mas a partir de um confronto de consciente e inconsciente que revela aquilo
que é fragmentado no ser. Por isso, a experiência gradativa da invisibilidade traz à tona um tempo em que
era uma “mulher normal”, porém, ainda retornando a visibilidade, continua sua vida com a postura de que
algo ainda está incompleto, o que a leva ao retorno à casa natal, casa-ninho, da cidade de Salvador:

Sofia vira-se e revê de repente, na parede de espelhos, seu corpo nu e um rosto pálido e
envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara,
um rosto qualquer, enfim, mas é o seu, então o recebe de volta, com uma gratidão triste.
[…] Sofia Caminhou até a parede de espelhos da sala e, como Alice, atravessou-a, foi dar
outra vez na rede de seu apartamento na cidade, onde há horas se balançava, ouvindo in-
terminavelmente o ruído da chuva, entregue às lembranças (COUTINHO, 1989, p. 126).

Com o que Alice se depara ao atravessar o espelho? Não é o outro que a tão enigmática Alice,
de Lewis Carroll, encontra, mas com sua alteridade. Assim, entendo que a citada cena anterior demar -
ca o início da viagem de Sofia – não apenas a viagem física para a cidade de Salvador, mas a simbóli -
ca – através de si, da memória do eu e da própria circularidade da história das mulheres. O retorno à
cidade-ninho, ao abrigo inicial (omphalós) é como uma tentativa de aconchego no lugar do início da
vida, o próprio útero materno, na expectativa de responder qual a sua identidade. Sendo assim, em de -
terminados momentos, é difícil determinar o tempo na obra: o fluxo de imagens, de cenas e de memó -
rias se entrelaça com o presente, tornando o espaço, em alguns momentos, atemporal. Está ali configu -
rado o entrelugar, reservado, especificamente, para as descobertas mais profundas, constituindo-se o
espaço da memória e do mito.

75
Todo este caminho de labirintos e de espaços físicos e da memória revela o quão imbricados estão
a representação feminina e o espaço da casa na obra, tão bem expressos no cântico a Iemanjá, que encerra
o romance: “Odò Iyá, Iemanjá Ataramagbá. Ajejê Iodô, ajejê nilê10!” (COUTINHO, 1989, p. 183).
Como se sabe, o assassinato de Sofia foi cometido em seu apartamento, o que revela uma cons-
trução diferente da proposta de casa como ambiente doméstico privado e, portanto, abrigo seguro, cons-
truída no imaginário social brasileiro. Sendo assim, considero que o romance de crime de Coutinho, di-
ante do teor crítico em toda sua extensão, leva ao questionamento das implicações simbólicas acerca de
uma mulher que sofre graves violências no ambiente doméstico. Um aspecto que exemplifica isso é a
própria violência sofrida por Sofia, ainda na infância, ao ser abusada pelo tio, sobre a qual, sendo no seio
da família, presume-se ligada a casa. Também podem ser mencionadas as vivências de outras mulheres
na obra, como Matilde que, por meio das regras de etiqueta para meninas e de uma educação opressora
no meio familiar acabou em uma vida decadente.
O que percebo por meio dessas observações é que Sônia Coutinho, diferente do viés tradicional
do romance policial, não intenta situar o crime apenas como um mal social, oriundo do crescimento da
urbe, mas como um fato imbricado em um conjunto de valores impostos à mulher e contra esta, dentro
da sociedade urbana, o qual é disseminado tanto na rua como na casa. Assim, a mulher não está em peri-
go apenas por transitar nos espaços legados ao homem, como a rua, mas por transitar entre comporta-
mentos e ideais que lhe foram suprimidos ao longo dos tempos.

10

Mãe das águas, Iemanjá que se estendeu ao longe, na amplidão. Paz nas águas, paz na casa!
76
- CAPÍTULO 3 -

A MULHER (E O) MITO
__________________________________

Quero experimentar um feminino terrível. O grito da revolta pisoteada, da angústia ar-


mada em guerra e da reivindicação. É como a queixa de um abismo que se abre: a
terra ferida grita, mas vozes se elevam, profundas como o buraco do abismo, e que são
o buraco do abismo que grita
(Antonin Artaud, O Teatro de Seraphin).

Ao longo deste estudo, tenho tentando demonstrar que a leitura do imaginário feminino na obra
de Sônia Coutinho é conduzida pela estrutura da mesma, que está intimamente ligada ao romance de
crime, bem como pela representação dos espaços físicos em diálogo com os simbólicos. Estes são pro-
cessos de criação que resultam da peculiar habilidade da escritora Sônia Coutinho, mas são também re-
sultantes das virtualidades e possibilidades inerentes da produtividade imanente da matéria literária. So-
mente a literatura tem o poder de ser moldada e de moldar, constituindo-se, pois, um continuum entre
autor, texto e leitor. Neste sentido, este capítulo almeja analisar as personagens femininas de destaque da
obra Atire em Sofia considerando as implicações tanto da estrutura do romance em tom policial, como
dos espaços físicos e simbólicos de representação sobre as mesmas.
O universo que retrata a imagem de mulher em relação ao mito reverbera, segundo percebo, em
toda obra Atire em Sofia. À primeira vista, seria este um fato natural, dadas as características do romance
de crime que, por muito tempo, apresentaram elementos fantásticos ou mitológicos em sua construção.
Contudo, o que se observa é uma implicação mais profunda que integra uma tendência de um gênero
literário, e conduz a uma leitura do mito na perspectiva apontada por Ronaldo Costa Fernandes (1996),
para o qual o sobrenatural é uma simbologia ou alegoria do real.
Desde a epígrafe, Sônia Coutinho já indica a seus leitores caminhos para a compreensão do femi-
nino no romance ao empregar a frase do escritor e dramaturgo Antonin Artaud que expressa: “Quero ex-
perimentar um feminino terrível” (ARTAUD apud COUTINHO, 1989, p. 10). Este dramaturgo, dentre
outros aspectos, é reconhecido por sua visão inovadora sobre o campo do teatro, trazendo uma perspec-
tiva profunda e dinâmica que abarca ator e personagem, conforme propõe o crítico Cassiano Sydow

77
Quilici (2004) em Antonin Artaud: teatro e ritual. Ainda segundo o estudioso, o teatro Artaudiano de-
nota um duplo em contraste com a interpretação realista da mímesis, não criando uma realidade da cópia,
mas outra realidade, a das forças e princípios. Neste sentido, o teatro atuaria tratando dos fenômenos
como um drama mítico que envolve processos de criação e de destruição, preenchendo e influenciando a
cultura. Este processo resulta para o dramaturgo na criação de um “grito”, que é uma atitude de guerra e
de reivindicação.
Os princípios artaudianos, ainda que voltados para o teatro, estão de outro modo relidos no ro-
mance coutiniano, já que a mulher é apresentada, muitas vezes, em contraponto com o duplo existencial,
como discutido anteriormente acerca do processo de projetar-se no espelho e da busca da alteridade, re-
alizada pela protagonista Sofia. O grito coutiniano, assim como em Artaud, parte de uma desconstrução
do masculino que, para Quilici (2004), se inicia com a evocação da polaridade oposta, do mito na figura
de um “feminino terrível”.
O feminino terrível artaudiano rememora as imagens de Medeia ou da deusa Kali, residindo no
poder sobre a vida e a morte. Assim, também o feminino coutiniano as evoca em uma mulher que se
opõe a tudo que se inscreve com a ideia de dominação macho/fêmea em uma sociedade com influências
do discurso patriarcal. Apesar de ser possível uma relação entre os princípios artaudianos e a ficção cou-
tiniana, não é meu objetivo analisar a obra pautada em teorias do teatro, mas aqui me remeto a estas pelo
fato delas sinalizarem convenientemente a esta abordagem sobre o tipo de discurso proposto pela autora,
que rememora mulheres fantásticas, terríveis e necessárias para traduzirem o imaginário crítico do femi-
nino construído ao longo do romance.
A presença de elementos sobrenaturais no romance coutiniano ocorre em diversos momentos,
como, por exemplo, ao trazer à tona personagens da mitologia yorubá, como Iansã; da mitologia grega e
suméria, como as harpias, o cão de Hades, Lilith e Istar, respectivamente; além de uma simbólica cena
na qual Sofia se transforma em bruxa e participa de um sabá. Para elaborar melhor acerca dessas evo-
cações do fantástico/mítico na narrativa de crime, revisito a crítica pertinente ao tema, segundo a qual,
em estudo apresentado por Todorov (1981), no gênero literário policial no qual se insere o romance de
crime é comum a apresentação de elementos fantásticos, especialmente, no que diz respeito à busca por
decifrar a identidade do criminoso ou como ocorreu o crime. Para esse estudioso, as novelas policiais
trazem, muitas vezes, duas opções de solução para o crime, uma sendo muito fácil e logo descartada, e
outra totalmente inverossímil, chegando ao fantástico.

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A classificação do termo fantástico elaborada por Todorov (1981) remete à ideia de algo que,
apesar de completamente sobrenatural, estabelece-se no limite entre realidade e imaginação, levando o
leitor a oscilar entre crer na veracidade de sua aparição ou rechaçá-la. Contudo, apesar de recorrente nos
romances de crime, este trabalho não se deterá na análise sobre a incidência ou descrição de elementos
fantásticos no romance de crime coutiniano, mas busca abordar uma leitura de cenas em que figuras
míticas são inseridas na narrativa como expressão de um inconsciente individual ou coletivo, favore-
cendo a representação e a leitura dos protagonistas na obra, especialmente as personagens femininas.
Para tanto, me pauto nas teorias de C. G. Jung (2000), Joseph Campell (1997), Elizabeth Banditer
(1985) e Valéria Fabrizi Pires (2008) para tratar sobre arquétipos, inconsciente coletivo, mito, imagens
arquetípicas da mulher, bem como outros autores que julgo contribuírem para uma leitura do feminino
na obra Atire em Sofia.
A leitura do aspecto mítico no romance de Coutinho, conforme propõe Villaça (1996), pode ser
abordada tendo em vista a perspectiva de uma fábula mística e lugar de fala do outro, trazendo figuras
monstruosas, animais diabólicos e demônios. Tais imagens remetem a diversos elementos da mitologia,
bem como da música, da arte, como o “Jardim das Delícias” ou a “Tentação de Santo Antônio” do pintor
mítico Jerônimo Bosch (VILLAÇA, 1996). É possível perceber que tais elementos e outros aparentemente
secundários são recorrentes no romance em estudo e são fundamentais para a leitura da representação da
mulher na obra. Sendo assim, considero que seja essencial analisar tais imagens tendo em vista a mulher
sob a voz de narradores masculinos, bem como sob a perspectiva de seus próprios lugares de fala.

3.1 IMAGENS ARQUETÍPICAS DA MULHER – O MITO DE LILITH E A PROTAGONISTA SOFIA

A história das mulheres, em grande parte de seu itinerário, aponta, inicialmente, uma polaridade
entre macho/fêmea que naturalizava as explicações para as relações de dependência entre os sexos, bem
como no seio social. Este viés vem sendo desconstruído à medida que avançam as discussões acerca de
gênero, especialmente sob a bandeira feminista que se despontou e expandiu no século XX. Contudo,
apesar dessa nova tônica concedida ao tema, o seu caráter ideológico difundido ao longo dos tempos
colocou em lados opostos a mulher do lar (a mãe, esposa e filha) e a mulher da rua (a Eva tentadora, de-
moníaca e prostituta).
É possível observar nas produções contemporâneas os padrões rígidos que legavam à mulher pa-
péis específicos, como os das obrigações domésticas e o cuidado com os filhos e que foram sendo alter-

79
ados significantemente, como em A Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha (1983), e as próprias
obras de Sônia Coutinho, por exemplo: O Último Verão de Copacabana (1985) e Atire em Sofia (1989).
Contudo, em tais produções, surge o discurso da culpa e da ambiguidade de sentimentos, afirmando, por
uma parte de suas personagens, a polaridade entre a ideia de mulher anjo/demônio, do lar/prostituta que
na obra Atire em Sofia pode ser lida por meio dos arquétipos femininos apresentados.
Jung (2000) aborda, de maneira salutar, a teoria dos arquétipos demonstrando como sua construção
se deu desde tempos remotos e como suas manifestações são renovadas de acordo com cada sociedade.
Segundo este estudioso, os arquétipos podem ser tomados como formas de pensamento ou comportamento
comuns a qualquer indivíduo em épocas e lugares distintos, sendo experiências repetidas ao longo de
diferentes gerações. Os arquétipos são, portanto, representações coletivas que fazem alusão às vivências
primitivas, os quais serviam como parâmetro para construção dos mitos, ritos e fábulas e para o desen-
volvimento religioso dos povos. Neste sentido, Mariza B. T Mendes (2000), tratando dos significados das
funções femininas nos contos de Perrault, propõe uma leitura dos arquétipos femininos, para a qual:

Entre os arquétipos do inconsciente coletivo estão o nascimento, a maternidade, o casa-


mento, a morte, o renascimento, o poder, a magia e as respectivas figuras da criança, da
mãe, do herói, dos deuses e demônios. Todas essas imagens e figuras arquetípicas estão
nos mitos e contos de fada, embora não sejam percebidas racionalmente pelos ouvintes e
leitores (MENDES, 2000, p. 33).

É incontestável que o discurso patriarcal, questionado pela escrita coutiniana, utiliza tais modelos
femininos arquetípicos para ditar o padrão de vida e de comportamento da mulher. É nesse sentido que
se pode observar o narrador Fernando, típico homem burguês e tradicional, remetendo a imagem de
Sofia ao simbólico mito de Lilith.
De acordo com Mircea Eliade (2004), o mito conta uma história sagrada; ele relata um aconteci-
mento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra
como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade to-
tal, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
intuição. Portanto, é sempre a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser. Dessa maneira, logo nas páginas iniciais, a protagonista se apresenta relacionada à figura
mitológica de Lilith. Com uma fala em primeira pessoa, a voz de Lilth salta aos olhos do leitor quando o
primeiro narrador, Fernando, começa observar a imagem da personagem em uma fotografia, como se
verifica no trecho:

80
Examina outra vez a foto, detém-se em Sofia adolescente, já um rosto de época, com sua
maquilagem pesada, sobrancelhas muito grossas, obviamente pintadas a lápis, cabelos
duros de laquê e um vestido, sem dúvida, comprado numa loja de departamentos no cen-
tro, naquele tempo a mais elegante da cidade. Eu, Lilith. A primeira companheira de
Adão, a mulher suja de sangue e saliva que lhe perguntou: “Por que devo me deitar
embaixo de você? Por que devo me abrir debaixo de seu corpo? Por que ser dominada
por você? Mas eu também fui feita de pó e por isso sou sua igual”. Voei então para
muito longe, em direção às margens do Mar Vermelho, e Jeová decretou: “O desejo de
mulher é para seu marido. Volte para ele.” Ao que eu respondi: “Não quero mais nada
com meu marido”. Jeová mandou à minha procura uma formação de anjos, que me al-
cançaram nas charnecas desertas do Mar Arábico, cujas águas atraem demônios. Es-
tava cercada de criaturas das trevas, quando chegaram os anjos enviados por Jeová.
Disse a eles: “Não vou, este é meu lugar.” E fiquei, e conquistei minha liberdade e
minha solidão (COUTINHO, 1989, p. 12, grifos do original).

O olhar de Fernando sobre Sofia traz à tona essa figura arquetípica de mulher transgressora, já
apontando como seu castigo a solidão que acumulara ao longo dos anos, para, mais tarde, culminar em
seu assassinato. Contudo, além do trecho anterior, a relação da protagonista com o mito de Lilith se faz
presente em suas próprias palavras, como no seguinte trecho: “No dia seguinte, o telefone tocou, ela
atendeu: ‘Sim, sou eu, Lilith’” (COUTINHO, 1989, p. 15).
É interessante observar a leitura simbólica que o mito proporciona, já que sua referência estab-
elece um padrão de mulher. Revisitando os relatos sobre tal mito, pode-se observar que, segundo Cheva-
lier e Gheerbrant (1990), Lilith foi a primeira mulher de Adão, criada ao mesmo tempo do pó da terra, e
não de uma costela como foi sua esposa, Eva. Por esse motivo, se posicionou como sua igual e se recu-
sou a se submeter a ele em todos os aspectos e, de modo particular, no âmbito sexual. Por tal recusa, par-
tiu para longe do homem e se tornou a rainha dos demônios, tornando-se inimiga de Eva e passando a
representar o ódio contra a família, os casais e os filhos. Sua imagem na tradição rabínica também é as-
sociada aos súcubos11, surpreendendo os homens durante o sono com sua fúria sexual, causando-lhes or-
gasmos, sufocando-os, levando a uma penetração abrasante, sendo que aqueles que não morriam, fi-
cavam doentes.
Em contraponto à imagem de Lilith, temos a figura de Eva, que nasce com a tradição judaica e é
propagada pelo cristianismo. Para Chevalier e Gheerbrant (1990), ela simboliza a primeira esposa, a
carne, a vida e a mãe de todas as coisas, significando a sensibilidade do ser humano e o seu elemento ir -

11

Os Íncubos/Súcubos são gênios do folclore romano; dizia-se que vinham, de noite, pousar sobre o peito
das pessoas que dormiam, a quem causavam pesadelos (CHEVALEIR; GHEERBRANT, 1990, p. 250).
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racional. Em consonância com a imagem idealizada de mulher que se desponta, particularmente, a partir
da cultura tradicional, a mulher começa a ser definida por meio de funções biológicas e sociais, como a
maternidade e o casamento.
Vale ressaltar que as temáticas do casamento e da maternidade são recorrentes nas produções
literárias de Sônia Coutinho e são evidentes na obra em estudo: revelam-se ao longo de todo o percurso
da personagem, por meio de sua solidão, seu castigo, parte de sua ruptura com a família tradicional, a in-
terrupção de seu casamento e o abandono do papel de mãe pela busca do prazer, a partir de uma sexuali-
dade livre. Tais aspectos geram a possibilidade de relacionar a protagonista com Lilith, já que, especial-
mente por sua busca sexual e negação do casamento e da maternidade, Sofia não se adequava aos
padrões arquetípicos de mulher de família apresentados pela cultura tradicional no contexto social da dé-
cada de oitenta do século XX no qual se insere.
Para Sofia, o seu primeiro casamento representava uma situação que a prendia aos modelos im-
postos por sua família, que já não a satisfazia. Sendo assim, quando o seu romance com o amante foi de-
scoberto pelo marido, nem questionou: aceitou logo a separação e deixou com ele as duas filhas. Justi-
fica-se Sofia:

Sinto necessidade de me justificar outra vez, como venho fazendo há anos, de dizer
que aquela era minha chance, se não tivesse saído naquele momento seria tarde de -
mais, era o prazo limite para escapar daquele esquema sufocante, para tentar conhecer
a vida fora da redoma da minha família, viver uma experiência mais ampla, integral
(COUTINHO, 1989, p. 28).

Apesar da frustração e da consequente fuga desse modelo tradicional de casamento, Sofia se uniu
a outros homens em relacionamentos duradouros, na tentativa de viver plenamente uma relação
amorosa. Contudo, a qualquer sombra de repetição dos modelos tradicionais, ela abdicava da vida a
dois, ainda que lhe custasse pesadamente, como foi no seu último romance,

[ter] aprendido a viver sozinha talvez fosse o maior patrimônio que acumulara em quase
vinte anos de Rio de Janeiro. Saber ser sozinha lhe permitira, por exemplo, deixar um
homem com quem vivia há cinco anos, mesmo prevendo que aquele seria seu último
casamento. Mas, sabendo ser sozinha foi embora sem olhar para trás, entre outras coisas
porque ele se tornara um castrador, porque não parava de cobrar, porque fazia a toda
hora perguntas como – ‘Quando é que você, afinal, vai assumir a cozinha?’ – mesmo
sabendo que ela detestava isso (COUTINHO, 1989, p. 13).

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Notadamente, o primeiro aspecto que leva a protagonista a ser equiparada com a transgressora
mulher mitológica Lilith é o fato de se colocar como igual ao homem, por não aceitar se submeter aos
papéis domésticos tidos como naturalmente femininos e também pelo fato de ir “embora sem olhar para
trás”. A protagonista se preocupa em realizar seus próprios desejos e em buscar o prazer individual,
questionando, inclusive, o sexo dentro do matrimônio que, segundo ela, muitas vezes era feito sem que
estivesse totalmente disposta. Permanecer casada seria, a seu ver, se igualar a gerações de mulheres que
a antecederam, como sua mãe, suas tias e sua avó, que mesmo diante de homens opressores, “ranzin-
zas”, continuaram casadas porque esse era o destino da mulher.
Se opor aos moldes do casamento tradicional é simbolicamente se posicionar no sentido inverso do
discurso tradicional burguês – classe a qual pertencia o esposo e família de Sofia – já que, conforme nos
aponta Michel Foucault (1976) em História da sexualidade 1: a vontade de saber, as relações contem-
porâneas entre os sujeitos, em determinado momento se pautam na sexualidade útil e conservadora. A
monogamia, as relações matrimoniais possuem, assim, um alto peso político nas relações sociais burgue-
sas, sendo através do corpo e da sexualidade reguladas que a burguesia se fortalece como classe, explica
Foucault (1999). Neste sentido, deparar com o narrador Fernando apontando para o caráter arquetípico de
uma mulher transgressora e seu assassinato como ápice de suas escolhas, é contemplar a voz masculina
que representa o discurso tradicional e burguês, tratando do percurso e da condenação da mulher.
Simone de Beauvoir (1949), em O Segundo Sexo, trata da importância assumida pelo casamento na
formação da subjetividade das mulheres, para a qual este é o destino que a sociedade tradicionalmente
propõe para elas. Ainda de acordo com a autora, o casamento assume tal papel pela compreensão social
que coloca a mulher em uma posição de fútil e frágil, necessitada dos cuidados e da proteção masculina.
Na mesma linha, a maternidade pode ser vista como um dos elementos que reforçam o caráter
social e utilitário do casamento e da própria condição de mulher. A força de tais parâmetros históricos e
sociais leva a protagonista a manifestar, em certo ponto, o sentimento de culpa em relação ao seu papel
de mãe, ficando oscilante entre a necessidade de cumprimento do seu “dever” materno e a busca por seu
desejo individual, como se vê em: “No seu caso, teria alguma razão? Será que, em certa medida, não
está mentindo, não desejava também, o tempo todo, sentir-se inteiramente livre e disponível? Não tem
resposta” (COUTINHO, 1989, p. 28).
O posicionamento de Elisabeth Badinter (1985), em Um Amor Conquistado: o mito do amor
materno, é de que o amor materno não está necessariamente inscrito na suposta natureza feminina, não

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sendo um sentimento universal e necessário. Segundo a autora, tal noção começa a ser esboçada apenas
no final do século XVIII:

Data dessa época o aparecimento de uma floração de obras que incitam os pais a novos
sentimentos e particularmente a mãe ao amor materno. É certo que o médico parteiro
Philippe Hecquet, desde 1708, Crousaz, em 1722, e outros, já havia feito a lista dos de-
veres da boa mãe. Mas não foram ouvidos pelos contemporâneos. Foi Rousseau, com a
publicação de Émile, em 1762, que cristalizou as novas idéias e deu um verdadeiro im-
pulso inicial à família moderna, isto é, a família fundada no amor materno. Veremos que
depois do Émile, durante dois séculos, todos os pensadores que se ocupam da infância
retornam ao pensamento rousseauniano para levar cada vez mais longe as suas impli -
cações (BADINTER, 1985, p. 54-55).

Diante desta concepção, o leitor é levado a notar que o amor materno é uma construção histórica
e, portanto, algo que não se encontra na genética feminina, mas que se aprende. Portanto, a relação da
mãe com os filhos depende da sua história, sua convivência e relações interpessoais.
Neste sentido, quando se presencia a tentativa de reaproximação de Sofia com as filhas e sua
posterior relutância sobre as verdadeiras motivações para tal, se está diante de uma mulher que, apesar
de tentar romper com as cadeias ideológicas que a aprisionou historicamente, ainda está em conflito en-
tre seu destino de mulher e sua vocação de ser humano. Este conflito se mostra presente em diversos
momentos no romance, sobretudo, a partir da construção de personagens que se sobrepõem, como as
duas Sofias relatadas pela protagonista – uma do Rio e outra de Salvador:

De noite, ouvindo outra vez o ruído da chuva, Sofia lembra Ricardo, o último homem
por quem se apaixonou. Ao mesmo tempo, pensa em si mesma com um estranho distan-
ciamento, vendo-se não como uma Sofia apenas, mas como duas. Sim, a Sofia do Rio,
mulher descasada, vivida, exercitando a agilidade mental de que necessitam, para sobre-
viver, as mulheres de sua condição e com uma prontidão para captar todas as possibili -
dades de cada situação, com o dom do improviso. E a Sofia desta cidade mais imag -
inária do que real, onde ela passeia, como num sonho ou pesadelo, entre anômalas flo -
rações de hibiscos, flamboyants, buganvílias e acácias (COUTINHO, 1989, p. 167).

O que destaco nesse âmbito são dois aspectos, duas mulheres que se constroem de acordo com os
espaços em que estão inseridas. Mais adiante no romance, as Sofias irão expor suas dualidades quando
estão com Ricardo, um homem casado com quem a personagem se envolvera no Rio. A relutância entre
estas Sofias expressa o conflito gerado pela educação recebida no espaço social da Bahia, para o qual re-
torna, e a nova vida construída longe dos olhares da família e da tradição, na cidade do Rio de Janeiro.
Também outras sobreposições aparecem ao longo do texto, com a presença não apenas de Lilith, mas

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também Maria Quitéria e Iansã, todas personagens emblemáticas que demonstram a postura social as-
sumida por Sofia. Entretanto, a mulher, apesar de lutar, não chega a alcançar uma total libertação, mas
permanece de maneira cíclica, como o próprio tempo daquele verão mítico, presa a valores e estigmas
do passado. Por isso, é importante observar que a personagem Milena, filha de Sofia, estabelecerá uma
quebra no tempo cíclico, bem como na repetição da história das mulheres da geração de Sofia, conforme
tratarei mais detalhadamente em tópico posterior.
O processo de sobreposição ou a presença do duplo no romance coutiniano remete aos princípios
artaudianos, os quais se expressam na epígrafe do romance, sob a forma de “um feminino terrível”. Con-
forme mencionei, o feminino artaudiano denota o duplo, que atua no processo de criação, destruição e
consequente reconstrução, por meio de um drama mítico. A experiência da sobreposição para Sofia fun-
ciona como seu processo de construção, autoconhecimento e aprendizagem da morte que, por sua vez, é
um dos saberes explicados pela tradição mitológica e necessários para que se estabeleça o rito, ou o rit-
ual de passagem, para os jovens a serem iniciados nas sociedades primitivas, neste caso, Milena.
Em relação à caracterização da protagonista, como mencionado, tanto Fernando como Sofia em
seus papéis de narradores a relacionam com a imagem mitológica de Lilith. Além disso, outros episódios
corroboram o caráter mítico da personagem, como o que é feito pelo narrador em terceira pessoa no
seguinte trecho:

Tarde da noite acorda de repente, cheia de uma estranha inquietação, o corpo todo do-
lorido. Atendendo a um apelo irresistível, corre até a cozinha, abre um armário, pega
uma pequena lata de pomada. Antes de abri-la, torna a ler a receita, escrita num rótulo
colado na tampa: ‘Gordura, haxixe, um punhado de flores de cânfora, outro de flores de
papoula, sementes de girassol esmagadas e raízes de heléboro’. Despe a camisola, tira a
tampa da latinha, vai passando pelo corpo todo, com a ponta dos dedos, o ungüento es -
verdeado, com cheiro acre, enquanto murmura fórmulas mágicas. Vai em seguida ao
quartinho dos fundos, abre outro armário, tira de dentro um camisolão negro e o enfia
por cima do corpo nu. Volta para a cozinha, pega uma vassoura, unta também seu cabo
com o ungüento, cavalga-o e sai voando pela janela. Segue rumo à periferia da cidade e
lá do alto, vê nas estradas grupos de pessoas que caminham todas na mesma direção.
Baixa o vôo, procura descobrir alguma encruzilhada onde exista uma árvore apodrecida,
uma coruja, um jumento, um porco ou uma cabra – os animais que indicam o local de
um sabá. Avista, afinal, um tronco oco e uma coruja e vê que, nas proximidades, o cír -
culo já está formado. Desce e, quando chega, mistura-se com mulheres que pulam e gri-
tam, os seios descobertos. Bruxas acocoradas respondem, também aos gritos. Logo
chega o demônio, sob a forma de um bode, mas imediatamente se transforma em gato.
Pouco depois, aproximam-se crianças nuas, chifres, carregando grandes bandejas com
iguarias. Todos se sentam a uma mesa comprida, colocada de um lado, e bebem vinho,
comem carne e pão. À cabeceira, está sentado o Grão-Mestre do banquete, usando uma
máscara. Numa travessa vem agora um monstro cozido, metade pássaro, metade sapo.
Mais tarde, terminam de comer, começa uma grande orgia. O demônio chama a si todos
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os presentes, um de cada vez, e pede que o beijem. Quer o beijo diabólico, o beijo ob-
sceno (COUTINHO, 1989, p. 93-94).

O trecho supracitado integra uma série de fatos fantásticos que se passam ao longo do verão atípico
e sobrenatural que é narrado na cidade de Salvador. Aqui, Sofia se torna uma verdadeira bruxa, em um
misto de descrições fantásticas. Conforme propõe Todorov (1969), quem o percebe deverá optar por uma
de duas soluções: ou acredita que seja uma ilusão dos sentidos, produto da imaginação e as leis do mundo
seguem como são; ou o acontecimento é real, neste caso, a realidade está regida por leis que desconhece-
mos. Desse modo, opto por tomar a cena tratada acima pelo viés do imaginário e simbólico, não apenas em
sua caracterização como um ser diabólico, mas também por sua relação com o espaço da periferia, ou seja,
àquilo que está à margem. Dessa maneira, a leitura possível da cena remete, mais uma vez, à mulher trans-
gressora que, sob o olhar da tradição, é revelada como bruxa, estando o fantástico colocado de maneira
oposta à tradição do romance policial, não como uma possível explicação para o crime, mas em diálogo
com os estereótipos e arquétipos sociais para representação da mulher como vítima.
Cabe ressaltar, novamente, que tanto a voz do narrador Fernando como a do narrador em terceira
pessoa e a da protagonista a associam ao mítico, à bruxa e ao demônio. Porém, apesar de a personagem
também se colocar em tal posição, em seu último gesto, no momento de sua morte, mais uma vez a voz
de Lilith aparece, fornecendo uma visão mais ampla sobre a simbólica sobreposição das personagens:

Sou eu Lilith. Encarnada também nas Harpias, na Medusa. Eu, o íncubo. Quem, du-
rante a noite, sofria de terrores e tinha delírios, quem saltava da cama apavorada e
corria, era do meu ataque que estava fugindo. Cubro o corpo dos homens com meu
corpo quente e dizem que meu abraço é tão furioso que sufoca. Minhas vítimas têm o
maior orgasmo de suas vidas, mas depois desfalecem e entram em crises de melancolia.
Um dos meus privilégios é causar a loucura. Assim me viram os homens, porque eu era
livre e solitária (COUTINHO, 1989, p. 178 grifos do original).

É interessante que, neste último momento, seja possível compreender melhor como a vida de
Sofia, ainda que em sua tentativa de se tornar uma mulher liberta, gravitava em torno do passado, da
cidade e da visão masculina sobre si. Desta forma, é possível observar que sua aceitação como uma
transgressora, como uma bruxa, está vinculada mais com o olhar masculino e social sobre ela do que
com sua própria visão. Como demonstrarei a seguir, é na voz de Fernando que o verão mítico é apresen-
tado; sob a Lua Negra, considerado também um dos símbolos de Lilith é que se pode começar a perce-
ber o terror que a mulher liberta lhe causava, como em:

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Folheia novamente o álbum de fotografias, demora-se observando o rosto de Sofia, com
suas sobrancelhas grossas, pintadas a lápis, na foto do grupo de escola. Certa tarde, en-
quanto conversavam e bebiam, num bar à beira-mar, viu ao lado dela o cão de Hades, Cér-
bero – cinqüenta cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçado de serpentes. A encar-
nação do terror e da morte, personificação dos infernos e do inferno interior de cada um.
Depois foi a vez de Queres, as três figuras aladas que anunciam a violência, cada qual des-
tinada a um ser humano, indicando seu tipo de morte (COUTINHO, 1989, p. 79-80).

No excerto anterior, pode-se observar como a imagem de Sofia traz a Fernando uma relação com
vários elementos que também estão vinculados com as descrições de Lilith. Mais tarde, ele mesmo teve
uma experiência de encontro com uma esfinge que lhe propunha um enigma, extasiado, hipnotizado, foi
em sua direção e a mesma foi transformando-se em “princesa, fada, ovelha negra, cadela, gata, pantera,
em Iemanjá. Ávida de sangue e de sexo, aproximando-se dele o derrubou, sentando-se em seguida sobre
o seu corpo” (COUTINHO, 1989, p. 80).
Outros personagens mitológicos aparecem na narrativa, como Iansã, lembrada pelas fortes chu-
vas, como se a mesma estivesse furiosa por algum motivo, ou, segundo a visão de Sofia, chorando pelo
destino de milhares de mulheres daquela cidade. Noutro ponto, João Paulo a descreve em uma visão es-
treitamente relacionada à Sofia, como se vê em:

Pára, surpreso, ao perceber que vem dançando uma curiosa dança com gestos de quem
afasta alguma coisa do corpo. Cada vez mais próxima, verifica que é muito bonita, usa
uma roupa comprida, vermelha e branca, traz numa das mãos um sabre, aparentemente
de cobre, e na outra um objeto que, depois de alguns segundos, identifica como um rabo
de boi. ‘Esparrei, Iansã!’, diz, instintivamente, como se outra pessoa falasse por sua
boca. (…) Vinda da zona de sombra, no sentido contrário da praia, vê uma mulher que
se aproxima. (…) bonita, ainda, pensa, olhando seu corpo enxuto num biquíni vermelho
e branco (COUTINHO, 1989, p. 48).

Para Carl Gustav Jung, “o papel dos símbolos religiosos é dar significação à vida do homem”
(JUNG, 1977, p. 93). Iansã, como um ícone da religião afro, de acordo com Rafael Jesus da Silva Dan-
tas (2018), em O Poder Feminino de Iansã e o Esquecimento do Negro no Museu, é marcada como o
perfil de mulher independente, guerreira, corajosa, sensual e bonita, sendo que a simbologia de suas
cores, o vermelho e o branco, presentes também nas vestes de Sofia, aludem ao fogo e ao sangue, associ-
ado à guerra, perigo e paixão, representando aquela que decide seu próprio caminho.
Por seu turno, Mariza B. T. Mendes (2000) compreende que os mitos eram fundamentais nas so-
ciedades primitivas para explicar as iniciações, os ritos de passagem e darem uma resposta para a so-

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ciedade. Nesta perspectiva, o diálogo entre mito e história, nesta ficção, revela o papel da mulher no
imaginário da sociedade brasileira, especialmente no contexto dos anos oitenta do século XX. O ato de
relacionar a mulher que estava desvinculada dos valores tradicionais ao ideal de bruxa ou demônio, sub-
jugando-a às margens de sua história social e individual, demonstra o caráter tirânico do discurso patri-
arcal naquela sociedade, que passava justamente pela chamada revolução dos costumes. Além disso,
perceber a mulher se colocando também em tal posição baseada no discurso masculino e observar suas
dúvidas entre seu desejo individual e sua forjada obrigação social são indícios do poder opressor do dis-
curso vigente. Neste sentido, surge a personagem Milena para contrabalancear esta perspectiva, pas-
sando do mito para o rito, ou seja, através dos mitos relacionados a esta personagem, bem como de out-
ros elementos simbólicos, é possível observar o rito no romance: como um ritual de passagem de uma
geração de mulheres que transita entre os conflitos do destino social imposto à mulher – representada
por Sofia – para uma nova fase de busca por libertação por meio de outra geração feminina – represen-
tada por Milena.

3.2 MILENA: ENTRE O MITO E O RITO

Os postulados de Joseph Campbell são claros ao pontuar que as figuras simbólicas ou imagens
arquetípicas do mito aparecem em dois momentos da dinâmica da psique: nos sonhos, os quais são car-
regados pelos problemas do indivíduo e no mito, que apresentam a solução para a humanidade. Dessa
forma, “o mito é o sonho público, e o sonho é o mito privado” (CAMPBELL, 1990, p. 42).
Assim, ao observar o percurso da personagem Milena, é possível verificar que a mesma transita
entre os polos do sonho e da resolução, já que é acometida de constantes pesadelos que retratam seu
medo, como relata: “Mas só de pensar em penetração sente o mesmo calafrio, o pânico de todas as vezes
em que ele tenta. E volta a lembrar seus pesadelos constantes – está sendo empalada num espeto por
demônios que, em seguida, arrancam suas entranhas” (COUTINHO, 1989, p. 38). Por meio de sua rep-
resentação mitológica a partir da deusa babilônica Isthar e da influência da música como um ritual de
passagem, ela passa a representar uma extensão simbólica do encerramento do ciclo de rupturas e con-
quistas femininas iniciadas a partir da geração de Sofia.
Transitando entre sonho e mito, após o início da “viagem” imbricada por Milena, outras imagens
são descritas, como a Górgona12, a qual é ressaltada pela personagem como uma figura mitológica idên-

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tica ao que aparece em seus constantes pesadelos. Ela mesma questiona: “Por que se identifica tanto
com figuras mitológicas?” (COUTINHO, 1989, p. 37). Além disso, surge o seu grande dilema: “Tem 19
anos, um namorado negro e lindo, com longos cabelos em mechas, ao estilo rastafári, com quem desfila
à beira-mar em seu MP amarelo, capota abaixada, todo fim de tarde de verão – e não consegue deixar de
ser virgem” (COUTINHO, 1989, p. 37). Por meio da crise entre o que era e a imagem que gostaria de
transparecer, Milena começa efetivamente sua jornada. Segundo Valéria Fabrizi Pires,

[a] jornada do herói começa por um chamado de aventura ou uma crise pessoal, cujo
mistério, ritual ou momento de passagem, ao ser completado, equivale a uma morte
seguida de um nascimento. Esse despertar do eu possibilita ao indivíduo cruzar o hori-
zonte familiar, deixando para trás velhos conceitos, ideais e padrões emocionais e
atingindo um novo limiar (PIRES, 2008, p. 14, grifo do original).

Perpetuar uma imagem rebelde e transgressora é o objetivo de Milena. Para ela, esta é sua vin-
gança contra “a marca que a cidade lhe impôs – continuará sempre sendo a ‘filha de Sofia’, uma ‘mulher
perdida’” (COUTINHO, 1989, p. 38). Destaco aqui que a consciência da personagem sobre a projeção
dos arquétipos sociais é bem clara, diferente de Sofia, não se atém à imagem transgressora apenas por
causa da leitura social que lhe é imposta, mas se assumindo como tal como forma de confrontar os val-
ores tradicionais de seu tempo.
Neste movimento de afirmação, outra figura mitológica é colocada em cena, pois, sob a “evo-
cação” promovida pela música do Iron Maiden, Milena se coloca diante do espelho e surge Isthar que,
refletida na personagem, se apresenta:

Eu sou Isthar, a deusa babilônia. As estrelas são meu cinto dourado, que tiro antes de
descer para o mundo subterrâneo das trevas. Minha descida é no tempo da Lua Negra,
ou quando chega o inverno e a terra se torna árida. Aproximo-me do porteiro do in-
ferno, digo: ‘Abre teu portão para eu poder entrar. Se não abrir, arrebentarei a porta,
farei os mortos se levantarem e devorarem os vivos, de modo que o número dos mortos
ultrapassará o dos vivos’. Sou a deusa do amanhecer e a deusa do fim de tarde, deusa
guerreira ou deusa do amor. E foi meu amor, segundo o herói Gilgamesh, que causou a
morte de Tamuz, deus da colheita. Para salvar Tamuz é que concebi o plano de descer
aos infernos, viajar para aquela terra de onde ninguém volta, para aquela casa da qual
não se torna a sair. Os portões se abriram, entrei nos sete aposentos, em cada portão ia
tirando um adorno ou uma peça de roupa. A grande coroa da minha cabeça, brincos

A Górgona é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino e
com grandes presas. Tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra, o que fazia com que, muitas vezes,
imagens suas fossem utilizadas como uma forma de amuleto. Na mitologia grega tardia, diziam-se que existiam três Górgonas:
as três filhas de Fórcis e Ceto. Seus nomes eram Medusa, Esteno e Euríale (CHEVALEIR; GHEERBRANT, 1990, p. 194).
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das orelhas, o colar do pescoço, as jóias do peito, a tiara enfeitada com pedras zodia-
cais, as pulseiras dos pulsos e dos tornozelos – e, finalmente, a roupa que cobria minha
nudez (COUTINHO, 1989, p. 39, grifo do original).

A apresentação feita na cena já elenca algumas características inerentes à deusa Isthar, também
conhecida por Innana. Conforme Simone Aparecida Dupla (2016), essa personagem da mitologia Acá-
dia era exaltada por atributos, algumas vezes, ambíguos, pois, ao mesmo tempo, personificava a força
criadora e também a destruição da vida, sendo representada pelos ciclos da vegetação e as fases lunares.
Também relacionada ao planeta Vênus, era idealizada como deusa do amor e da fertilidade, bem como
uma vingadora da ignorância humana por meio de tempestades e inundações, possuindo poder sobre os
demais deuses. Apesar de possuir atributos díspares, os mesmos são complementares e podiam ser cul-
tuados, cada um, em sua especificidade.
A projeção de Milena em relação ao mito de Isthar é feita pela própria personagem, o que a
difere de sua mãe Sofia, que, como visto anteriormente, assume uma comparação, um duplo em re -
lação à imagem mitológica de Lilith, porém, demonstrando um aspecto de aceitação e talvez de pas -
sividade frente à imagem que a sociedade fazia a seu respeito. Contudo, ambas comungam do fato de
estarem relacionadas a imagens que se opõem ao discurso cristão e tradicional, já que tais personagens
mitológicas são representações do ideal oposto de mulher apregoado pela tradição e presente na mi -
tologia cristã ocidental.
Ao pensar em Milena e seu duplo, por meio de uma personagem mitológica tão abrangente e
contraditória, compreendo a descrição da jovem conferida pela autora, já que sua dualidade entre ele-
mentos da morte, do terrível e da sexualidade oscilam durante o romance. Assim, é permitido ao leitor
contemplar Milena, em diversos momentos, admirando, apresentando e se identificando com tais ima-
gens, como em:

– Tenho pesadelos todas as noites. Sonho com figuras monstruosas – animais diabólicos,
demônios. Bosch conhecia essas criaturas, estão nos quadros dele – diz, folheando o livro.
– veja esse “Jardim das delícias”. O demônio, segurando uma vara, na ponta da qual bal-
ança um pêndulo. Já vi isso em meus sonhos. E vi esse demônio que ilumina o lodaçal
onde se movimenta a multidão de condenados ao inferno (COUTINHO, 1989, p. 60).

Além da breve descrição deste quadro de Bosch, Milena trata de outros dois: “A carroça de feno”
e “A tentação de Santo Antônio”, ambos do mesmo artista. Estas obras compõem uma tríade destacada
por Carlos Eduardo Ströher e Cássia Simone Kremer (2011) em Os Pecados e os Prazeres Terrenos no

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Jardim das Delícias de Bosch como de cunho fantástico, distinguindo-se das de caráter religioso que
produzira anteriormente.
Ströher e Kremer (2011) consideram as implicações das influências literárias e o contexto social
medieval sobre a produção de Bosch, compreendendo que, particularmente, a sua tríade fantástica
remete a temas como a origem do pecado, todo tipo de culpa e condenação, à luxúria e à sexualidade.
Obviamente, faço uma análise restrita das obras, dado o objetivo deste texto. Contudo, não posso deixar
de observar que os temas apresentados em tais obras de arte são bem representativos da própria crise ou
dualidade vivida por Milena em seu tempo. Assim, considero que as implicações em relação ao prazer
feminino, bem como as restrições ao seu comportamento são temas que, mesmos distantes do contexto
medieval, ainda figuravam como uma barreira vigente. Assim, os três estágios propostos nos quadros de
Bosch – Éden, profano, condenação – apontam, também, para a trajetória social feminina.
Apesar de compreender o posicionamento afirmativo de Milena em relação à própria identidade,
o medo da condenação social não deixa de ser um fantasma a ser vencido. Por isso, as várias facetas os-
cilantes de seu duplo Isthar, apesar de contraditórias, são para mim complementares, já que, para trans-
por o seu quadro social, Milena terá que utilizar não apenas a inebriante sexualidade da deusa, mas sua
força de guerreira infernal.

3.3 MITO E RITO: MÚSICA E CARNAVAL COMO UM RITUAL DE PASSAGEM

O retorno de Sofia à Bahia é bem significativo em relação à leitura mitológica do romance Atire
em Sofia, pois um dos aspectos do mito é o retorno à origem, como ritual de aprendizado sobre si e sobre
o mundo que cerca o indivíduo. Isto é, conforme propõe Mircea Eliade (2004), ao viver o mito, o indi-
viduo deixa-se impregnar pelo poder do sagrado, por meio dos elementos e seres mitológicos, passando
de uma experiência cotidiana para uma experiência religiosa. A evocação de tais personagens leva o in-
divíduo a sair do tempo cronológico, que é uma angústia do homem moderno, que possui consciência de
sua trajetória finita para a morte e o nada. Estes são temas levantados por João Paulo e por Sofia em suas
indagações, diante da juventude que passaram e das constantes mortes de antigos colegas. Em certo
ponto, a própria Sofia conclui:

Mas, de repente tranqüila, neste fim de tarde em esparso cinza, então pensa que entende,
afinal, lição da cidade – a de que vai ter que morrer. A dádiva da cidade, o aprendizado
da morte da morte, sua sedução. A humilde certeza da morte, uma verdade que vê em
cada rosto. Quase em paz, a morte na cidade descarnada pelo sol, desfeita pela chuva,
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cidade onde as frutas amadurecem depressa demais, oferecendo sua perecível polpa. En-
tão, foi por isso que voltou, descobre agora, ouvindo essa vaga musiquinha, era preciso
que aprendesse a morte. Como um dia se aprende a velhice, mesmo sem querer, estab-
elecendo à própria revelia os necessários elos no tempo (COUTINHO, 1989, p. 90).

Vida, morte e ressureição estão intimamente ligadas à narrativa mítica a partir do tempo, que é
cíclico, no qual o homem é capaz de abolir o passado e recriar sua vida, estabelecer um novo começo.
Assim, o romance estabelece uma fuga no tempo, que aparece construída por meio de uma transição en-
tre tempo cronológico e o mítico, a partir da qual se aprende a morte, em que o rompimento com essa
lógica repetitiva do tempo e da história das mulheres não ocorre por meio da geração de Sofia, mas na
geração de Milena, por meio do rito.
Conforme Bruno Brulon Soares (2011), em Carnaval e Carnavalização: algumas considerações
sobre ritos e identidades, as noções de coletivo suscitadas com as identidades modernas lançam novos
desafios para a sociedade, cabendo ao ritual promover a superação de tais entraves. Neste sentido, os ri-
tos possuem a função de suscitar, manter ou refazer certos estados mentais do grupo social, sendo seu
processo capaz de unir as diferenças ou separar os iguais. O resultado é sempre a modificação ou o
reestabelecimento da ordem perturbada, como comenta Soares (2011).
Os rituais podem ser variados e, nesse ínterim, conforme lembra Arnold Van Gennep (2011), a
vida de um indivíduo é constituída, em qualquer sociedade, de uma série de passagens, seja de idade,
ocupação ou de identidade. Assim, os ritos de passagem realizam mudanças no indivíduo e, por meio
disso, afetam a estrutura da sociedade e promove algum tipo de transformação.
No romance em estudo considero que a presença do rito na forma de ritual de passagem ocorre por
meio da personagem Milena que, em seu percurso, constrói um processo de autoconhecimento, algo indi-
vidual, expresso nos momentos de reflexão e de introspecção no ambiente de seu quarto, ouvindo músicas
que variam entre o rock ‘n Roll e outras, de origem africana. Finalmente, tal processo se expande para o
plano coletivo por meio, mais uma vez, da música em uma festa de carnaval, bem simbólico do processo
ritualístico de integração entre as diferenças, especialmente, no caso em estudo, da mulher no contexto da
sociedade baiana em plena ruptura com os lugares tradicionais a elas determinados.
A importância da música na representação da personagem Milena é destacada logo em sua apre-
sentação inicial, ocasião em que ela aparece observando a paisagem baiana e ouvindo o som da banda
Iron Maiden, a canção “Moonchild13”, sendo o seguinte trecho citado no romance:

13

Filho da noite.
92
Seven deadly sins
Seven ways to win
Seven holy paths to hell
And your trip begins14 (COUTINHO, 1989, p. 36).

Os termos utilizados na letra desta canção, os quais frisam “E sua viagem começa” são indi-
cadores iniciais do percurso de ruptura com o aspecto cíclico da história das mulheres apresentadas por
sua mãe Sofia, até aquele momento. A apresentação de músicas ao longo do romance é significativa para
demonstrar fases dos personagens ou momentos de contemplação destes, mas, em relação à Milena, o
conjunto de músicas indica o ritual de passagem pelo qual ela se encontra, sendo que em todos os mo-
mentos narrativos em que a ação recai sobre a personagem, aparece algum elemento musical.
De acordo com Roberto DaMatta (1983), em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociolo-
gia do dilema brasileiro, os ritos são momentos especiais construídos pela sociedade, já que as con-
venções sociais são fundadas em símbolos. Assim como o mito, o rito coloca em evidências os postula-
dos do mundo social.
A importância da música para o ritual é frisada no próprio romance, quando João Paulo, ouvindo
em uma mesa de restaurante a descrição que era feita de Milena, escuta o som dos atabaques no rádio e
isso faz emergir na memória a explicação de Fernando, que era também professor de língua e mitologia
grega: “Não existe teleté, ou iniciação, sem ruídos. Na Grécia, os deuses eram atraídos com tambores”
(COUTINHO, 1989, p. 160).
O estilo musical rock, conforme já discutimos em capítulo anterior a partir de Janotti (2004), é
representativo da reivindicação e da manifestação da cultura marginal, revelando em Milena a faceta do
medo e da tortura social imposta pelo discurso patriarcal. Contudo, além das batidas da banda Iron
Maiden, Milena apresenta particular apreciação pelas canções de Jim Morrison 15, sobre quem ela, em
diálogo com o namorado Tetu, ouve e declara:
14

Sete pecados mortais/Sete modos de vencer/ Sete estações para o Inferno/ E sua viagem começa. (tradução
apresentada em nota no próprio romance).
15

Foi um cantor, compositor e poeta norte-americano, mais conhecido como o vocalista da banda de rock
The Doors. Era conhecido por suas poesias improvisadas enquanto a banda tocava ao vivo. Devido às suas performances e à
sua personalidade selvagem, ele é considerado como um dos vocalistas mais icônicos, carismáticos e pioneiros da história do
rock e, extensivamente, da música.
93
Os dois ficam calados, olhando o pôr-do-sol sobre o mar. Milena põe outra fita, são os
Doors. Canta Jim Morrison.
Open the doors of perception break on thru the other side

Take the highway to the end of night


Visit weird scenes inside the golden mine16
– As letras das músicas dele são as minhas poesias favoritas – diz ela. – sabe, tenho
certeza de que este ano ele vem para cá, no carnaval, vai dançar em cima de um camin -
hão de trio elétrico. – Ele está morto, você sabe – diz Tetu. – Não, é tudo mentira, ele
não morreu. Continua vivo, é um feiticeiro, um xamã. E vem para cá no carnaval
(COUTINHO, 1989, p.143 grifos da autora).

A abertura da percepção para o processo de travessia na simbólica estrada noturna é uma pre-
sença recorrente na poesia de Jim Morrison, conforme destaca Marcel de Lima Santos (2013), em seu
estudo intitulado Jim Morrison: o poeta xamã. Segundo o estudioso, a estrada pode ser interpretada
como o próprio fluxo de consciência de Morrison, como um xamã rumo ao domínio espiritual, especial-
mente por sua relação com a noite no processo de trânsito que, “diferentemente da geração ‘flower-
power’ com seu grito de liberdade, geralmente associada aos anos de 1960, a voz de Morrison chamava
à rebeldia e não a atitudes pacíficas” (SANTOS, 2013, p. 35).
O xamanismo, conforme Santos (2013), pode ser entendido como uma das mais antigas formas
de vocação religiosa, que provém de culturas pré-históricas na qual o xamã, desperta para uma jornada
pela sabedoria, cura e clarividência. Conforme suas palavras:

[o] xamã é o curandeiro ferido pela própria morte em vida, aquele capaz de restaurar os
males mortais, através da ajuda do espírito presente nas forças invisíveis da natureza, por
ele controladas. Ele é a manifestação dos poderes da cura mística; para além do alcance da
ciência e da medicina, as quais saram mas não curam, o xamã age de acordo aos manda -
mentos dos espíritos da natureza; ele se dirige ao conhecimento como quem vai á guerra,
disposto a derramar seu sangue nos campos de batalha (SANTOS, 2013, p. 17).

O poder transcendente do xamã se estabelece por meio do ritual que envolve expressões artísti-
cas como a dança, o teatro, a música e a poesia, tornando-se um elo entre a realidade dos seres míticos e
o curso da natureza por meio de sua performance cerimonial. Contudo, seu poder de cura se encontra,
primariamente, por meio da palavra, não apenas pelo sentido, mas também pelo ritmo e a cadência.

16

“Abra as portas da percepção, atravesse para o outro lado/Siga a auto-estrada até o fim da noite/ Visite
cenários sobrenaturais dentro da mina de ouro” (COUTINHO, 1989, p. 143 tradução da autora em nota no romance).
94
As letras, músicas e ritmos são marcantes para o processo de representação da personagem
Milena que, além de mergulhar profundamente nas letras das canções de Morrison, utiliza a dança no
seu processo de conhecimento e libertação do corpo, semelhante ao ritmo performático xamânico. Em
diversos momentos, ela protagoniza cenas de dança como em: “corre em direção ao aparelho de som,
põe outro disco, um conjunto senegalês, Touré Kunda17, canta Ousmane Touré e ela dança sozinha,
quase nua, com movimentos convulsivos” (COUTINHO, 1989, p. 38).
Além da experiência transcendental do xamã, sua ligação com o mundo espiritual pode ser desta-
cada por outro elemento singular, a busca da sabedoria e do poder curativo por meio da palavra e da con-
sciência. Tais elementos são importantes tendo em vista que, se as gerações de Sofia e de Milena fossem
divididas, haveria uma geração extremamente abalada pelos reflexos da educação e dos valores tradi-
cionais inconscientemente absorvidos, os quais elas tentam superar, mas, de algum modo, não sabem como
escapar de sua lógica. A segunda geração que, usufruindo do legado de conquistas deixado pela primeira,
fluindo com mais consciência e autonomia em relação aos próprios desejos e atitudes frente a uma so-
ciedade ainda com valores tradicionais impostos às mulheres, rompe de maneira mais precisa com os laços
da tradição. Por isso, é importante frisar a relação de Milena com o xamã pelo fato da figura deste ser mar-
cada pela liberdade de imperativos sociais rotineiros, conforme propõe DaMatta (2000).
O processo ritualístico que a personagem se submete aparece, inicialmente, em seu sentido indi-
vidualizado, a partir de reflexões sobre o “eu”, partindo de seu dilema pessoal e da imagem social que
foi elaborada de si, pela marca de ser filha de Sofia, e pelo desejo particular de manter tal imagem “neg-
ativa” tendo em vista sua aspiração consciente de ser uma transgressora dos valores patriarcais. Após
este processo, o ritual vivido por Milena se consolida no carnaval como o ápice do ritual de passagem
que, conforme DaMatta, trata de “transformar individualidade em complementaridade, isolamento em
interdependência, e autonomia em imersão na rede de relações que os ordálios, pelo contraste, estabele-
cem como um modelo de plenitude para a vida social” (DAMATTA, 2000, p. 23). Nesse âmbito, ocorre
a cena emblemática do poeta xamã Jim Morrison, que aparece no trio elétrico em pleno carnaval baiano,
num momento em que o fantástico dialoga com o mitológico a fim de promover a transformação men-
cionada anteriormente, como se observa em:

[…] e, erguendo os olhos, Milena vê Jim Morrison dançando lá encima. Ele usa uma
camisa de soldado mexicano, calças de couro preto, botas. Rodopia em cima de uma das

17

O Touré Kunda é uma banda senegalesa conhecida pela sua versatilidade musical e ativismo político.
95
botas, curva-se para a frente, como se sentisse uma dor profunda, mas torna a ficar ereto
e, agora, aperta os brações pendentes contra o sexo, mão em concha. – Jim! Jim! – ela
grita. Ele para de dançar, inclina-se na direção de Milena, diz: – Estou interessado em
tudo que se relaciona com a revolta, a desordem, ao caos. Estou mais interessado no
lado sombrio da vida, no pecado, na face escondida da Lua, na noite. O que eu quero é
liberdade para experimentar tudo. Quero experimentar tudo, pelo menos uma vez
(COUTINHO, 1989, p. 172, grifo meu).

São interessantes os diversos elementos simbólicos que podem ser extraídos deste momento car-
navalesco que vivem Tetu e Milena, especialmente a presença de elementos fantásticos que, destoando
dos modelos mais aplicáveis ao romance policial ou de crime, aqui se manifestam de maneira dissociada
do crime. Como se observa no trecho anterior, a personagem estabelece um diálogo com Jim Morrison,
que já havia falecido na ocasião do evento, apesar de tal fato ter sido ressaltado por Tetu antes da festa
de carnaval. Aqui, a presença do fantástico se relaciona ao ritual de passagem iniciado a partir da
música, da presença mítica do xamã e da festa de carnaval como um ritual de transição tipicamente
brasileiro. O anseio expresso na fala de Morrison parece expressar bem as expectativas de uma geração
de mulheres, representadas por Milena e Sofia.
DaMatta aponta para uma ampla compreensão sobre as implicações simbólicas e sociais do car-
naval no Brasil como um importante ritual nacional, capaz de “dramatizar valores globais, críticos e
abrangentes de nossa sociedade” (DAMATTA, 1983, p. 36). O carnaval como uma comemoração de
origem popular é tomado pelo estudioso supracitado como um desfile polissêmico, já que reúne a diver-
sidade, o discurso dos opostos e do improvável. Assim, a figura de um artista/xamã do universo do rock
não seria destoante. Além disso, tem-se que,

[o] carnaval se situa numa escala cronológica cíclica, que independe de datas fixas. O
tempo do carnaval é marcado pelo relacionamento entre Deus e os homens, tendo por isso
mesmo, um sentido universalista e transcendente. Assim, o começo do carnaval perde-se
no tempo – estando ligado a toda a Humanidade, do mesmo modo que pensar no tempo do
Carnaval é pensar em termos de categorias abrangentes tais como o pecado, a morte, a sal-
vação, a mortificação da carne, o sexo e o seu abuso ou continência. Exatamente por ser
definido como um tempo de licença e abuso, o Carnaval conduz de modo aberto à focal-
ização de valores que não são somente brasileiros, mas cristãos. A cronologia do carnaval
é, assim, uma cronologia cósmica, diretamente relacionada à divindade e a ações que
levam à conjunção ou disjunção com os deuses (DAMATTA, 1983, p. 42-43).

Como é notável, o carnaval, por possuir um tempo cósmico e cíclico, remete aos participantes
deste ritual para o contato com o mundo do sagrado, do divino ou do sobrenatural. Desta maneira, o
caráter cíclico do carnaval pode ser relacionado com a própria circularidade da história das mulheres,

96
como já mencionado, sendo que a festividade altera e ressignifica os espaços públicos e privados que es-
tas se inserem.
Os espaços da casa e da rua, como discutimos no capítulo anterior, são marcados socialmente
pelo discurso de gênero, já que o espaço da rua não seria tão acessível para as mulheres, ficando elas
mais voltadas para aquilo que é interior e privado do âmbito doméstico. Conforme DaMatta, a própria
divisão do espaço da casa brasileira já denota gradação, já que a varanda é um espaço ambíguo entre a
casa e a rua, ao passo que a sala de visitas seria um espaço intermediário. Estes ambientes são descritos
com frequência no romance em questão, em que as personagens coutinianas se apresentam continua-
mente com seus olhares da varanda voltados para a rua, inclusive Milena e Sofia.
O espaço ocupado no carnaval por Milena, Tetu e os demais foliões destaca-se por socialmente
tratar-se de um ambiente em que cotidianamente abriga o centro comercial que, no período do ritual, fica
fechado ao trânsito, sendo que as ruas e avenidas são domesticadas. Além das praças e avenidas, em al-
guns casos, ruas inteiras são fechadas, com decorações próprias, para concursos de fantasias e desfiles.
Como é possível ver no trecho a seguir, a praça torna-se o local de encontro dos foliões e ganha um novo
aspecto no período carnavalesco:

Na praça, em cima de uma barraca de bebidas, ao lado de Tetu, Milena vê desfilarem


os milhares de integrantes dos blocos Ilê Ayê, Araketu, Olorum Baba Mi, Malê Debalê
e outros, neste sábado de carnaval. A multidão enlouquecida pula e grita à passagem
de trios elétricos que vão e voltam, saindo da praça e tornando a entrar (COUTINHO,
1989, p. 172).

A inversão dos espaços também gera uma modificação do comportamento, já que a rua se abre
para todos de maneira equânime; mulheres e homens brincam, fantasiam-se e o próprio corpo e a sexual-
idade são exploradas ultrapassando o limite do privado. Assim, conforme DaMatta:

[o] corpo exibido no carnaval, então, mesmo quando visto sozinho, exige seu comple-
mento masculino ou feminino. É um corpo que ‘chama’ o outro, tornando-se sempre
alusivo do ato sexual (…). Além disso, aquilo que no mundo diário é considerado um
‘pecado’, ou seja, a provocação intensa do público e dos homens pelas mulheres, passa a
ser tomado como algo absolutamente normal, como parte do estilo do festival. A norma
do recato é substituída pela ‘abertura’ do corpo ao grotesco e às suas possibilidades
como alvo de desejo e instrumento de prazer. Por outro lado, os gestos indicadores do
ato sexual invertem o mundo, pois eles devem ser realizados em casa, na plena intimi-
dade de um quarto e numa cama, nunca de pé, num andor e nem em meio a uma multi-
dão (DAMATTA, 1983, p. 109-110).

97
Neste jogo de inversões, Milena se despe das amarras psicológicas e sociais no ápice da música e
da passagem, assim concluindo uma fase importante de aprendizado em meio à sua viagem, já que o
mais importante do rito não é a conclusão da jornada, mas o aprendizado durante o percurso.
DaMatta (1973), em O Carnaval como um Rito de Passagem, se debruça sobre a simbologia do
carnaval brasileiro, tratando sobre o ideal de communitas nesta ocasião, ou seja, a competência de unificar
raças, credos, classes e ideologias, pacificamente, ao som da música. Dessa maneira, o carnaval configura-
se um ritual que rompe com o continuum da vida diária e aponta para alguns tópicos da vida social na-
cional, ocasionando uma morte social temporária para um recomeço, assim como os ritos de passagem.
A respeito desta grande festa brasileira, chamo a atenção para o fato de que uma das maiores mu-
danças por ocasião do carnaval são as inversões e quebras de barreiras de classe, já que as posições e re -
lações sociais deixam de ser importantes ao se brincar o carnaval. Pensando neste sentido e tendo em
mente todo o enredamento das personagens femininas aqui tratadas, é importante observar que alguns
elementos são significativos para promover tais mudanças, como o uso de máscaras, por meio das quais
as pessoas podem ocultar sua identidade e realizar seus desejos com liberdade. Mas outro elemento
aponta para a figura feminina com maior expressividade no jogo de inversões carnavalescas: o corpo.
Segundo DaMatta:

[n]o carnaval o corpo é despido e o normal é uma nudez, senão física (como acontece
freqüentemente), ao menos social. É uma afirmação do corpo humano como instru-
mento básico de expressão do ser ou a mais simples redução da pessoa humana àquilo
que ela possui de mais autenticamente seu (DAMATTA, 1973, p.135).

Enquanto na vida diária o corpo deve ser resguardado, no carnaval deve ser revelado, desta-
cando-se, especialmente, o corpo feminino e sua atuação no espaço, já que as mulheres ganham livre-
mente os espaços das ruas e o exibicionismo de seus corpos é uma característica da festa. O recato que
tende a comandar as relações cotidianas é suspenso, dando lugar à ousadia feminina no ambiente
público. Outro aspecto relacionado ao comportamento feminino é a possibilidade de se instaurar um
“transe carnavalesco”. Este, segundo DaMatta, ocorre em situações em que as pessoas possuídas pelo
ritmo e pela música parecem perder o controle de seus corpos. A mulher, neste âmbito, estaria mais su-
jeita a tal prática, já que sofre mais repressões diariamente em relação ao próprio corpo, encontrando no
ambiente de carnaval a liberdade plena.

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O transe alcançado por Milena também se relaciona ao ideal xamânico, como se observa em seu
diálogo com Morrison:

– Por que você entra em transe desse jeito, quando está num palco? – A única altura em
que me torno realmente acessível é o palco – responde Jim, do alto do caminhão. – A
máscara da atuação me dá essa oportunidade. O palco, lugar onde me escondo, e, por
isso, posso me revelar. Para mim, as apresentações sempre foram mais do que simples-
mente aparecer, cantar umas músicas e ir embora (COUTINHO, 1989, p. 173).

A máscara mencionada na fala de Morrison também se utiliza, literal e figurativamente, no car-


naval, seja por meio das fantasias ou pelo espaço de inversões sociais que se abre nesta festividade. Neste
espaço em que as lógicas das relações cotidianas são alteradas, o corpo e a sexualidade de Milena são dile-
mas que começam a ser resolvidos, pois, à medida que os foliões se tocam, a música se intensifica e, em
meio à multidão, a personagem parece realmente entrar em um estado de transe ou plenitude de sua pas-
sagem ritual, conseguindo encontrar o ápice de sua corporalidade e sexualidade, como se verifica em:

Dominada por uma onda de sensualidade, Milena aperta seu corpo contra o de Tetu. Já
estão na periferia da praça e ele a conduz para uma rua lateral, deserta. De minissaia, ela
abre as pernas, baixa a calcinha. Fazem sexo ali, encostados a uma parede, o corpo dele
protegendo-a dos olhares de eventuais passantes (COUTINHO, 1989, p. 174).

De acordo com Van Gennep (2011), o ritual marca tanto a mudança de posição dos indivíduos
e grupos nas estruturas sociais como mudanças de ano, estações ou atividades. No caso brasileiro, cen -
traliza-se no ideal do encontro e da comunhão dos sexos e classes sociais, sendo o sexo um elemento
de integração.
O espaço da cidade de Salvador, bem como a festa de carnaval, simbolizam claramente o pro-
cesso de transposição, de passagem de uma fase daquela geração de mulheres a partir da personagem
Milena. Como relata o narrador Fernando, ao fazer um balanço dos resultados de todos os acontecimen-
tos em torno da vida da personagem, Milena engravidou de Tetu durante a festa de carnaval, utilizando
tal fato para enfrentar, com veemência, a sua família tradicional, passando a uma nova possibilidade de
posicionamento feminino no romance. À vista disso, conclui Fernando: “E a cidade terá cumprido, mais
uma vez, sua inescapável vocação para a mestiçagem e o congraçamento” (COUTINHO, 1989, p. 182).
O ritual de passagem efetivado durante o carnaval levou Milena a quebrar as barreiras do corpo e
da sexualidade como em uma missão cósmica iniciada por meio do rock ‘n’ roll e das letras das canções

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de Jim Morrison, já que tanto esta festa como as canções possuem o mesmo objetivo, o de levar os su -
jeitos ao estado de communitas (comunhão). Como afirma o próprio Jim, em diálogo com Milena no trio
elétrico, na festa de carnaval:

Só sinto que cumpri meu trabalho quando consigo colocar a platéia inteira numa espécie
de território comum. Ás vezes, pura e simplesmente para de cantar, deixo que surjam
longos silêncios, que irrompam todas as hostilidades, inquietações, tensões latentes –
antes de, afinal, nos unirmos todos (COUTINHO, 1989, p. 173).

O diálogo fantástico entre Jim e Milena é esclarecedor também para, definitivamente, destacar o
processo ritualístico iniciado com a música, já que ele explica seu intuito com a letra da canção favorita
de Milena que, por sua vez, foi apresentada em trechos ao longo da maioria das falas e das ações no ro-
mance. Questionado, Jim responde:

– E “Celebration of the Lizard”, o que você pretendia com essa letra? – Essa música é
uma espécie de convite às forças obscuras – responde Jim – Mas não é para ser levada a
sério. É como se a pessoa representasse um papel de mau num western, o que não sig -
nifica, que seja realmente má. É apenas uma aparência, para efeito de espetáculo
(COUTINHO, 1989, p. 173).

Esta evocação, que partiu do âmbito individual, se estendeu ao longo do romance em uma busca
pelo que é comum a uma geração de mulheres: o desejo de liberdade para experimentar. Assim, naquele
contexto, os ritos ensinam a lição da unicidade entre um indivíduo, seu grupo e a cidade. Ainda que o
carnaval seja uma fração de tempo cósmico, um interstício transitório, entendo que sua capacidade para
promover a unicidade, a relativização e a transposição de valores reflete, no romance, a possibilidade de
rompimento com uma história cíclica de opressão em relação às mulheres.

100
- ALGUMAS ÚLTIMAS REFLEXÕES -

Na tentativa de compreender o processo de representação da mulher na obra de Sônia Coutinho,


procurei elucidar ao leitor alguns elementos que considero serem fundamentais na tessitura de sua narra-
tiva. Os protagonistas, especialmente Sofia, apresentam-se conscientes da perenidade não apenas da
vida, mas também da própria história. No caso da construção da personagem central Sofia, aparece la-
tentemente consubstanciada a história de mulheres que foram e ainda são silenciadas de diversas formas
ao longo dos tempos.
Assim sendo, ao longo deste estudo procurei situar a produção de autoria feminina no contexto
dos anos oitenta, orientada especialmente por discussões pertinentes levantadas pela crítica feminista
naquele período, como as questões de gênero e de representação, tratadas na produção do primeiro ro-
mance de Coutinho, Atire em Sofia. A partir de Chartier (2002) foi possível observar que a representação
intenta substituir um objeto ausente, resgatando a partir da memória, sua essência.
De modo a fortalecer a abordagem, busquei também apontar como os postulados históricos e so-
ciais foram cruciais para a constituição de uma autoria feminina e feminista no Brasil a partir do século
XX, suscitando protagonistas cujas essências se voltam para a crise vivida pela mulher entre sua individ-
ualidade e as amarras sociais – crise esta que as levam a refletir sobre a própria noção do que é ser mul-
her e de como desejam sê-lo em meio a uma sociedade fundamentada em um discurso tradicional. Para
tanto, o rompimento com a tradição, a partir de um discurso que evoca a voz feminina e desnuda o apar-
elhamento ideológico do patriarcalismo, constituiu-se a tônica do romance coutiniano. Assim, a autora
lança mão do gênero romance de crime, subvertendo-o em alguns pontos, porém, utilizando um tom
crítico permitido nesta categoria. Neste sentido, apresenta o enredo preponderantemente a partir da voz
de um narrador masculino, entrelaçando outras vozes e fatos que culminaram no assassinato da protago-
nista Sofia do Rosário. Destaco que é expressivo o propósito de utilizar o tom crítico permitido na estru-
tura do romance de crime para efetuar uma leitura das relações sociais na sociedade carioca e baiana dos
anos 80, assim sobressaindo-se o lugar social da mulher neste contexto.
Ao enveredar pelos diversos espaços apresentados na obra, procurei discutir, inicialmente, sobre as
implicações sociais e simbólicas da cidade de Salvador como lugar de origem e de retorno dos person-
agens Sofia e João Paulo. Nesta oportunidade, foi possível observar quão imbricados os sujeitos estavam
com o discurso cultural e suas influências nas ocupações dos macro e microespaços da capital baiana.

101
Neste romance, a cidade de Salvador é reconfigurada para além dos aspectos estruturais e descri-
tivos, se apresentando a partir do prolongamento do olhar de seus protagonistas. Esta interação em que
os sujeitos a complementa com percepções da estrutura, da sociedade e da cultura, levando o leitor à
compreensão da cidade como parte destes indivíduos. Ademais, faz-se também necessária para o resgate
da memória e permanência da própria história. Sendo assim, posso afirmar que a narrativa de crime fe-
minista e feminina de Sônia Coutinho, ambientada na capital baiana, compromete-se com o registro da
memória e com a denúncia da condição social de determinadas gerações de mulheres.
A cidade do Rio de Janeiro também é de grande relevância para a caracterização dos person-
agens, pois a mesma, em contraponto com Salvador, apresenta-se como lugar de fuga e de realizações.
Ao comparar as cidades de Rio e Salvador figuradas na obra de Coutinho, chamo a atenção para a frag-
mentação da própria identidade da protagonista, já que, assim como as cidades de suas vivências eram
múltiplas, seu Eu também era multifacetado. Na Bahia, devido à influência cultural, bem como da edu-
cação e da família, Sofia se apresenta cheia de culpas refletidas sobre suas atitudes e tomadas como
parâmetro para avaliação da postura social das mulheres naquele contexto geográfico e social. Sendo as-
sim, os valores patriarcais eram refletidos na autopercepção da personagem que se aceitava como uma
Lilith, transgressora, assim como a cidade a nomeava.
O Rio de Janeiro foi analisado como cidade da libertação, onde, apesar das influências das
crenças e dos valores aprendidos em Salvador, Sofia trazia por meio desta cidade o sentimento de que a
mesma havia “permanecido dentro dela”, mas que, ao mesmo tempo existia um distanciamento por meio
do qual era possível viver os amores, os desejos, o trabalho e pensar em si como mulher de forma mais
autônoma. Além disso, outros espaços como a relação entre a casa e a rua são apresentados no romance
sob a leitura dos diversos personagens. Assim, é permitido observar um mesmo ambiente sob o olhar de
Fernando, de João Paulo e de Sofia demonstrando a visão distinta dos sujeitos em relação aos processos
de ocupação social por parte das classes menos favorecidas naquela sociedade, como negros e mulheres.
O limiar entre a casa e a rua abordados a partir do olhar dos personagens, recorrentemente da
varanda, denota a simbologia de um lugar intersticial, de onde se relaciona os aspectos públicos e priva-
dos, bem como do interior do ser para seu exterior.
Neste ínterim, procurei abordar, ainda, a representação da mulher análoga às personagens mi-
tológicas como uma leitura da identidade transgressora assumida por Sofia e Milena, no romance. Neste
sentido, busquei destacar que, conforme a teoria dos arquétipos formulada por Jung (2000), o mito
cumpre aqui a função de demonstrar a leitura social de determinado contexto cultural em relação à mul-

102
her, tomando o estereótipo como modelo para a representação geral dos sujeitos ou de um segmento,
neste caso, as mulheres.
Transitando entre o mito e o rito, Sofia e Milena são remetidas a duas personagens mitológicas
emblemáticas, Lilith e Isthar, respectivamente. A leitura dos aspectos mitológicos os quais se relacionam
às personagens, bem como outros elementos do mundo musical e artístico, leva o leitor a compreender o
movimento cíclico e simbólico da história das mulheres, como as inúmeras tentativas de Sofia de es-
capar da lógica sufocante da sociedade tradicional.
Outrossim, foi possível observar também que o carnaval aparece na obra de Coutinho como um
ritual de passagem tipicamente brasileiro que conduziu Milena, como a uma geração de mulheres, a
romper barreiras para a afirmação da identidade, do desejo e do corpo. Contudo, ainda que imersa nesta
sociedade que já vivia uma série de avanços dado às conquistas sociais oriundas das lutas feministas, os
obstáculos impostos pela tradição ainda são diversos. É o que se pode observar com Milena que, ao final
do romance, engravida, colocando-se, assim, a questão da maternidade, mais uma vez, em foco. A per-
sonagem é colocada diante de um destino de mulher que a ela caberá se posicionar, neste novo contexto
e nos novos espaços. Todavia, cumpre a mim apontar que, diferentemente das mulheres da geração de
sua mãe que sofrem por uma educação repressora em casa e na escola, que não puderam continuar os es-
tudos por exigência dos maridos, como Matilde e a própria Sofia, Milena ocupa novos locais como a
Universidade, as sorveterias, os espaços de lazer à beira-mar, as casas de show e o carnaval, que ela,
como mulher e negra, ousa se inserir e se afirmar.
Estudar a obra de Sônia Coutinho, sobretudo como viu e apresentou o drama social e existencial
consumida pela dúvida entre viver seu destino de mulher ou sua vocação de ser humano, foi escopo para a
leitura de Atire em Sofia ora apresentada. O tom policial sustenta a estrutura da narrativa, mas sua vertente
de crime possibilita a inserção da crítica social e da representação do espaço para além de cenário, mas
como contextos geográficos e culturais que interferem na maneira de pensar e no modo de vida feminino.
As idas e vindas, a movimentação nos diferentes espaços, as aparições mitológicas e fantásticas
suscitadas no texto formaram – naquilo que se cruzam – a escrita deste texto. A colaboração desta
análise, embebida pela leitura do feminino, do espaço e do mito, conferiu, ao romance Atire em Sofia
uma série de movimentos, contradições e possibilidades que me estimularam a compreender a represen-
tação do feminino e a extrair disto a voz coutiniana – uma voz que, em todo seu percurso literário, es -
teve comprometida com a condição da mulher.

103
REFERÊNCIAS

OBRAS DA AUTORA

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SOBRE A AUTORA

Nêmia Ribeiro Alves Lopes é doutoranda em Literatura, área de concentração:


Literatura e Práticas Sociais, pela Universidade de Brasília – UnB.
È Mestra em Letras Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros- Unimontes,
professora de Língua Espanhola, sob o regime de dedicação exclusiva, do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas – IFNMG.
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora do IFNMG.
Todos os direitos desta edição reservados pela Editora do IFNMG.
Tel.: (38) 3218-7326 – E-mail: [email protected] / [email protected].
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