Regionalidade Entre A Influencia Frances
Regionalidade Entre A Influencia Frances
Regionalidade Entre A Influencia Frances
Organizadores
A literatura e a vida:
por que estudar literatura?
(RCG-PRAIA)
VILA VELHA, 2015
Conselho Editorial
Gilberto Medeiros
Flávio Marcelo Pereira
Flávio Borgneth
Tarso Brennand
Vitor Cei
Comitê Cientíico
Coordenador
Vitor Cei Santos
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Membros
Andressa Zoi Nathanailidis
Universidade Vila Velha (UVV)
André Tessaro Pelinser
Universidade de Caxias do Sul (UCS)
David G. Borges
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Fábio Goveia
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Paulo Edgar R. Resende
Universidade Vila Velha (UVV)
Sérgio da Fonseca Amaral
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
© 2015 Os autores
facebook/praiaeditora
praiaeditora.blogspot.com.br
email: [email protected]
twitter: @praiaeditora
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-69472-01-8
Modo de acesso: <http://www.praiaeditora.blogspot.com.br>
CDU: 821.134.3(81).09
“Escrever é uma questão de devir, sempre
inacabado, sempre a fazer-se, que
extravaza toda a matéria vivível ou vivida”.
Apresentação
Os organizadores 11
Trauma
Luciana Silviano Brandão Lopes 322
11
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em especíico, encorajando a diversidade de enfoques
teórico-metodológicos no trato com a literatura.
Agradecemos a todos os professores membros do
colegiado do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Universidade Federal de Minas Gerais,
em especial aos professores Marcos Alexandre, Tereza
Virgínia Ribeiro Barbosa e Graciela Ravetti, pelo apoio
institucional e inanceiro durante a organização do II SPLIT
– Seminário de Pesquisa Discente do Pós-Lit – UFMG.
Agradecemos aos professores que aceitaram
os convites para serem conferencistas do evento: Raúl
Antelo, da Universidade Federal de Santa Catarina; Pádua
Fernandes, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos
Sociais, de São Paulo; Ronald Augusto, da Editora Éblis,
de Porto Alegre; Olimpio Pimenta, da Universidade
Federal de Ouro Preto e Ana Chiara, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Os temas de suas conferências
contribuiram para garantir a pluralidade de visões sobre os
Estudos Literários.
Agradecemos aos professores que aceitaram os
convites para serem debatedores das sessões de projetos
de dissertação e tese: Emilio Maciel, da Universidade
Federal de Ouro Preto; e Andréa Werkema, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.
E, por im, agradecemos a ajuda de todos os que
colaboraram conosco nos bastidores do SPLIT e deste
livro: Alemar Rena, Alice Barros, Ana Xavier, André Tessaro
Pelinser, Carol Oliveira, Clara Vanucci, Fabiano Salazar,
Fernanda Mourão, Gilberto Medeiros, Letícia Magalhães
12
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Munaier Teixeira, Marina Câmara, Paula Sollero, Pedro
Brito, Yasmin Schiess, CENEX-FALE, Diretório Acadêmico
da Faculdade de Letras da UFMG e Praia Editora.
Os organizadores
13
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A PESQUISA É UMA ESCRITA
AUTONOMAMENTE REAL
Raul Antelo
23
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fuerza y la forma, entre la fuerza y la
signiicación; se trata siempre de fuerza
‘performativa’, fuerza ilocucionaria o
perlocucionaria, de fuerza persuasiva
y de retórica, de airmación de la irma,
pero también y sobre todo de todas las
situaciones paradójicas en las que la
mayor fuerza y la mayor debilidad se
intercambian extrañamente. Y esto es
toda la historia—conclui, porque—los
discursos sobre la doble airmación,
sobre el don más allá del intercambio y
de la distribución, sobre lo indecidible,
lo inconmensurable y lo incalculable,
sobre la singularidad, la diferencia
y la heterogeneidad, son también
discursos al menos oblicuos sobre la
justicia.14
Si la sublimación se redujera a un
cambio de objeto, la realidad óntica de
los objetos permanecería inalterada
y en tal caso no habría suppléance,
no habría exceso: el objeto del amor
30
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por causa de tanta felicidade. Estou
tendo uma liberdade íntima que só se
compara a um cavalgar sem destino
pelos campos afora. Estou livre de
destino. Será o meu destino alcançar
a liberdade? não há uma ruga no
meu espírito que se espraia em leves
espumas. Não estou mais acossado.
Isto é a graça.23
38
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
la hace doler; en las piernas y produce
la parálisis; en los ojos y deja ciego; en
los oídos y deja sordo; en la lengua y
hace enmudecer.
Gualicho es en extremo ambicioso.
Conviene hacerle el gusto en todo.
Es menester sacriicar de tiempo
en tiempo yeguas, caballos, vacas,
cabras y ovejas; por lo menos una vez
cada año, una vez cada doce lunas,
que es como los indios computan el
tiempo.
Gualicho, es muy enemigo de las
viejas, sobre todo de las viejas feas:
se les introduce quién sabe por dónde
y en dónde y las maleicía.
¡Ay de aquella que está engualichada!34
La matan.
Es la manera de conjurar el espíritu
maligno.
Las pobres viejas sufren
extraordinariamente por esta causa.
Cuando no están sentenciadas, andan
por sentenciarlas.
Basta que en el toldo donde vive una
suceda algo, que se enferme un indio,
o se muera un caballo; la vieja tiene la
culpa; le ha hecho daño; Gualicho no
se irá de la casa hasta que la infeliz no
muera.
Estos sacriicios no se hacen
públicamente, ni con ceremonias. El
indio que tiene dominio sobre la vieja
la inmola a la sordina.
En cuanto a los muertos, tienen por
ellos el más profundo respeto. Una
48
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
neoconservadora de Sarlo, nos anos mais recentes) que
a forma é uma simples aparência; a arte visual é cega; e
a literatura deine-se como uma obliteração e uma rasura,
uma diferença que nunca se capta em simultâneo, mas
sempre em diferido, em fusão temporal. A crítica, como a
de Antonio Candido ou Beatriz Sarlo, limitada à mimese,
não passa, portanto, de um trompe l’oeil, porque, quando
muito, ela consegue descerrar o véu que cobre algo
situado para além do que se pode ver. Capta o mistério,
mas não o enigma.
Giorgio Agamben nos fornece, aliás, um último
elemento para pensarmos o ser e não-ser coexistentes à
maneira de Guimarães Rosa. Trata-se de uma fórmula que
poderia ser iliada ao sintagma regula et vita de Francisco
de Assis. Nela, conjuga-se, mas também separa-se,
uma tensão recíproca entre a regra e a vida. Em outras
palavras, não há mais espaço para a aplicação da regra
(evangelicum canon) aos poderes mundanos, entre os
quais, os da própria Igreja, assim como o cânone ocidental,
à maneira de Bloom, não dá mais conta das pesquisas
na Universidade. A fórmula franciscana regula et vita e, na
sequência, a idéia muriliana ou roseana, em uma palavra,
a imagem pós-lógica, inserida, em suma, no Real, de ser e
não-ser, não signiicam confusão entre os dois termos, mas
neutralização e transformação de ambos como formas-
de-vida. Na emergência de uma exceção—a janela do
caos, o ininito-mundo—regra e vida se separam: o estado
normal não se apresenta mais, então, como aplicação da
regra à bios, mas como “forma-de-vida”, praticamente zoé,
49
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao passo em que, simultâneamente, a exceção aparece
como dispensatio regulae.48 É a chave do contemporâneo,
a cicatriz do moderno. Reletir sobre esse tópico talvez
nos ajude a melhor entender a situação de nosso trabalho
crítico no âmbito da Universidade.
REFERÊNCIAS
51
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Rio de
Janeiro: José Aguilar, 1960.
JAMESON, Fredric. History and elegy in Sokurov. Critical
Inquiry, Chicago, v. 33, n. 1, p. 1-12, autumn, 2006.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Lo puro y lo impuro. Buenos
Aires: Las Cuarenta, 2010.
KABAKOV, Iliá. Sobre el vacío. In: LA ILUSTRACIÓN
total: arte conceptual de Moscú 1960-1990/ TOTAL
enlightenment conceptual art in Moscow 1960-1970 .
Madrid: Fundación Juan March, 2008.
LACLAU, Ernesto. Joan Copjec y las aventuras de lo Real.
In: COPJEC, Loan. El sexo y la eutanasia de la razón:
ensayos sobre el amor y la diferencia. Traducción de M.
Gabriela Ubaldini. Buenos Aires: Paidós, 2006.
LADDAGA, Reinaldo. La estrategia del paroxismo. In:
______. Espectáculos de realidad: ensayo sobre la
narrativa latinoamericana de las últimas dos décadas.
Rosario: Beatriz Viterbo, 2007.
LEGENDRE, Pierre. El tajo: discurso a jóvenes estudiantes
sobre la ciencia y la ignorancia. Traducción de Irene Agoff.
Buenos Aires: Amarrortu, 2008.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida: pulsações. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
MANSILLA, Lucio V. Una excursión a los indios ranqueles.
Edición de Saul Sosnowski. Caracas: Biblioteca Ayacucho,
1989.
NANCY, Jean-Luc. L’expérience de la liberté, Paris :
Galilée, 1988.
NANCY, Jean-Luc. La pensée dérobée. Paris: Galilée,
2001.
NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris:
52
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Christian Bourgois, 1990.
NANCY, Jean-Luc. La création du monde ou la
mondialisation. Traducción de Pablo Perera Velamazán.
Paidós: Barcelona, Buenos Aires, México, 2003.
NANCY, Jean-Luc. El “hay” de la relación sexual.
Traducción de Cristina de Peretti y F. J. Vidarte. Madrid:
Síntesis, 2003.
POPOLIZIO, Enrique. Vida de Mansilla. Buenos Aires:
Pomaire, 1985.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
SARLO, Beatriz. El saber del texto. Punto de Vista, Buenos
Aires, n. 26, abr. 1986.
SARLO, Beatriz. Literatura y política. Punto de Vista,
Buenos Aires, n. 19, dic. 1983.
SARLO, Beatriz. Política, ideología y iguración literaria.
In: BALDERSTON, Daniel et al. Ficción y política: la
narrativa argentina durante el proceso militar. Buenos
Aires: Alianza Estudio, 1987.
SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
TZARA, Tristan. Manifeste de Monsieur a l’antiphilosophe.
Littérature, Paris, n. 13,
maio, 1920.
VERLAINE, Paul. Oeuvres Poétiques Completes.
Rédaction de Y-G. Le Dantec. Paris: Gallimard, 1938.
WAJCMAN, Gérard. El objeto del siglo. Buenos Aires:
Amorrortu, 2001.
53
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
POESIA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS:
ENDOGAMIA E TOLERÂNCIA
Ronald Augusto
54
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir)
implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e
anuncia.
Portanto, a poesia contemporânea, como
fenômeno inconcluso, ilha e protagonista de um presente
contínuo, signagem manifestada dentro do “horizonte do
provável” do nosso tempo, não estaria em situação de ser
mapeada “cabalmente”, pois como coisa viva, algo de sua
efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico
consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção,
melhor, de superestimação. Parece estar-se exigindo, para
o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico
que, enquadrando o mais ínimo e distante exemplar dessa
poesia, capturasse num mesmo golpe o mundo e o tempo
conhecidos que o envolvem. Mas, o fazer, o saber e o julgar
inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados
numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras,
crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de
abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se
relaciona ao possível, ao impermanente das limitações e
das parcialidades do sujeito. Desta maneira, a leitura, ou a
crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser,
tal como ela, uma expressão em construção, ainda não
canônica e não canonizada. Sequência de interpretações
e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por
assim dizer, “câmera-na-mão”, ou para usar outro lugar-
comum, crítica mais como transpiração do que como
inspiração. Leitura interessada, severa e experimental
embrenhada na nervura do dissenso.
55
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica
totalizadora que “de fato” venha a dizer, quem sabe um dia
— pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós
— aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos)
ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também
reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio
de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia
perante a nossa recepção.
Às vezes fala-se a propósito da poesia
contemporânea em termos de que tratar-se-ia de uma
experiência capaz de provocar um estranhamento e um
incômodo em determinadas zonas da audiência similares
àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea.
Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora
passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em
cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da
frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte.
Então, por que reivindicar para a produção contemporânea
um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do “meu
tio iauaretê”, na presunção de glosá-la eruditamente e de
uma vez por todas?
Desde a realidade insossa das manifestações
poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta
cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento
dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça
justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não
passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade
e eiciência dessa mesma poesia por meio da chantagem
cult de um metadiscurso que assomaria para “pôr as coisas
56
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em ordem”, problematizando uma farsa com outra.
Assim, desde um ponto de vista fatalmente precário,
pretendo destacar alguns aspectos do estado de espírito
dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro
aspecto: a) os poetas de agora-agora, grosso modo,
dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem
poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da
tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz
dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos
da versiicação quer seja livre, quer seja metriicada; e,
por im, simpatizar, naturalmente, com proposições das
vanguardas de quatro décadas atrás. A soisticação, no
caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais
uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos
têm uma consciência de linguagem de causar inveja (aos
seus pares, naturalmente). A propósito disso, Heloisa
Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia (26
Poetas Hoje) em que discute, entre outras, essa questão.
Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora
avança na contramão daqueles que denunciam na poesia
contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga
da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos,
seriam resultantes dessa opção pela extrema soisticação.
A autora não nega a existência desse traço requintado,
algo emasculado, mas no recorte que nos apresenta,
ica demonstrado que esses poetas não participam
inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente
em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição
intertextual não estão necessariamente em contradição
57
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com a consciência política e social e também histórica.
Vejamos outro aspecto: b) a poesia atual se
acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo.
Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão
“ecletismo retrô” para provocar ironicamente essa geração
que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível
depois das vanguardas históricas das décadas de
1950/60. A tolerância poeticamente correta permite desde
o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu.
É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar
das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo
afã talibanesco do alto modernismo. As vanguardas tão
esclarecidas quanto totalitárias (porque indecorosamente
utópicas) da virada do século 19 para o século 20,
talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do
banho. O poeta carioca Alexei Bueno, defende essa
tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica
toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela
parelha dicotômica novo-velho, suportada pelos diversos
discursos do modernismo (que serve de escopo a eles,
que os informa). O poeta-crítico repropõe os nomes de, por
exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos,
Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta
criticando o que chamou de “uma apropriação midiática e
totalitária do neoconcretismo” e dos seus epígonos, entre
eles é mencionado o poeta Nelson Ascher. Não obstante o
tom algo tresloucado e mesmo ofensivo – motivado talvez
pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo – o conteúdo
da carta foi e é importante na medida em que mexe com
58
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em
torno do valor e das consequências da poesia concreta
– apologia que, se de fato existe, não condiz, em im de
contas, com o radicalismo desse movimento – e que, por
tabela, denuncia na espinha do sistema literário esse
constante risco de estagnação a que está sujeito.
Um terceiro aspecto também interessante da poesia
atual é o seguinte: c) nunca, como hoje, vimos os poetas
tão entranhados nas regras de eiciência e competência
exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer,
se conigura em representação especular, embora com
suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos
abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que
outra razão haveria para a grande presença de poetas
dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra
iliações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno
pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos;
pelos poetas sem proissão; enim, pelos poetas “à margem
da margem”: onde estão eles? Isso parece coisa de outro
tempo. Uma parcela signiicativa dos poetas vivos, isto é,
nascidos no século passado, se formam ou se formarão no
interior dos muros acadêmicos. Mestrandos e doutorandos
em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não
faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o
gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem im
ofusca a nossa compreensão.
Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo
vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática
corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir,
59
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por exemplo, uma sextina de um soneto, identiicar tanto
nos traços fonológicos quanto nos grafológicos, insumos
estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste
sentido que uma formação burocratizante numa atividade
equívoca como a poesia, termina sendo, ao im e ao
cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja
útil apenas para ratiicar a existência ou a importância do
nosso “censor interno” (W. H. Auden dixit) numa situação
que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis
Borges diz que “o poeta não condena nem absolve”.
Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por
cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos
quanto à informação nova, por discursos presunçosamente
totalizadores? Esses questionamentos precisam ser
feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o
“literário” do mercado livreiro-editorial) não restem tão-
só a serviço do “controle institucional da interpretação”
(Frank Kermode dixit), representado pela universidade,
pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem
relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou
privados ligados à cultura.
Dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto
que identiico na atualidade da produção poética, diz
respeito ao espaço para o exercício da experimentação:
d) a bem da verdade, um espaço reconhecido um
pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou
vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra
ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro
virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de
60
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite
da aporia.
Ainda é interessante experimentar uma suspeita
relexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste
em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que
estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um
vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento
a uma noção de vanguarda que busca conquistar
territórios, acúmulo de feitos num “ensaio de totalizações”.
Movimento que visa a uma “etapa inal” ou um éden.
Vanguarda que se apresenta como “ponto de otimização
da história”. Devir utópico calcado sobre linearidade
progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o
risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no
âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo
na arena da “politicagem literária”, tudo isso faça algum
sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de
exclusões e obsolescências cujo questionamento — a
bem de “um mundo transformado”, digamos, para melhor
—, é deixado de lado “por tempo indeterminado”.
Preiro imaginar um quadro de tensões de
perspectivas, propostas de linguagem em confronto.
Formas e poesias em “conjunções e disjunções”
sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado
pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato
lamentável) pode ser revogado a qualquer momento.
Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da
obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer,
não signiicará, necessariamente, involução. A poesia se
61
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se
comporta como o administrador das intraduzibilidades e
das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura
criativa e desobediente. Com relação à dialética das
consagrações e revisões alguns poetas-críticos de agora-
agora buscam, através de textos e publicações, entronizar
outros artistas e mestres, fazendo-os ocupar um lugar de
proeminência e destituindo, por consequência, outros que
com o passar dos anos começaram a representar, segundo
seus simpatizantes, inluência supostamente nociva para
a formação do nosso repertório. Sou forçado a fazer essa
consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui
e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método)
manifestações cujo teor, grosso modo, é acusatório a
propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por
assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua
vez, imporia interdições às linguagens mais emocionadas,
imagéticas e descomprimidas. Os “seguidores” da juvenília
presente e os retardatários da beat generation e de uma
escrita delirante e magmática vêm, nos últimos anos,
chamando a atenção para a poesia de Roberto Piva como
uma espécie de “solução para o problema”.
Roberto Piva parece ter sido também a preiguração
de toda uma poesia que, hoje, se beneicia cada vez mais
de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás,
relete uma espécie de preferência cultural contemporânea
no que respeita ao gênero. Preferência que pretende
farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim
dizer, mais curiosos e existenciais. Com efeito, situações
62
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de signiicação antes secundária, tais como, se o poeta
é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a
poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da
periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o
fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de
monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zen-
budismo, enim, todos esses elementos de catalogação
que compareciam sempre após a vírgula, justiicam e
tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje.
Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se
imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o
lugar de sua diferença social, sexual e antropológica.
As considerações acima me obrigam a evocar
um episódio que vivi há mais de duas décadas e que diz
respeito ao debate da literatura negra ou afro-descendente.
No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia,
inal da década de 1980, fui procurado, certa ocasião,
por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil
disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura
negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande
entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava.
Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio
de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial
Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente,
estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores
também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me
lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo
entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa
dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário
63
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
um poema caligráico-visual. A jovem alemã, cujo nome
preiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas
traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam
senão mínimos índices de informação verbal. Com um
misto de desconiança e inquietação, parecia procurar na
folha de papel a porta de entrada ou, desesperadamente, a
primeira fresta por onde escapar. Não demorou muito para
que ela, erguendo a cabeça loira, me izesse a seguinte
indagação. Onde está o Negro neste poema?
Com efeito, até hoje não sei ao certo a que negro a
loira estudante quis se referir. No entanto, sua indagação
me forneceu algum material para relexão. Assim, cheguei
à conclusão de que tal pergunta traz em seu bojo algo
como uma expectativa ready-made no que diz respeito às
constantes que, supostamente, deveriam servir de marca,
de escopo a uma poética negra. Apresento agora ao leitor
algumas variantes que talvez traduzam ou, melhor, que
talvez façam vir à tona aquilo que restava subjacente ao
questionamento da minha entrevistadora: (1) onde está
o típico?; (2) onde estão as palavras chibata, tronco,
quilombo, liberdade?; (3) o que é feito do Lamento, da Dor,
da Magia Negra?; (4) onde está o almost extinct?. Pois
bem, esta expectativa consagrada à força da repetição,
e que sobrevive sob o véu esbranquiçado desta(s)
pergunta(s) constitui a matéria que pretendo discutir aqui.
Felizmente, uma parcela pequena, porém viva, de
escritores negros vem nos oferecendo, há algum tempo,
outros e necessários escurecimentos. Por meio de suas
obras, conseguimos vislumbrar o posicionamento mais
64
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
radical ou plural da idéia de transnegressão. Atentos ao risco
da diluição - os esclarecimentos do controle institucional
da interpretação -, que acompanha como sombra os bem-
intencionados defensores de uma “verdadeira” literatura
negra; estes autores transnegressores e seus poemas vão,
aos poucos, tornando cada vez mais complexa qualquer
deinição pretensamente consistente e acabada a respeito
das linhas de força do total desta escritura.
Semelhante tomada de posição nos permite detectar
o seguinte: a pergunta angustiada da estudante germânica
também comparece com um peso considerável nos
critérios de gosto e de valoração da maior parte daqueles
que têm fundamentado o seu sucesso debruçando-se
sobre o caso ímpar dessa literatura, quer seja através da
organização de antologias fortemente temáticas, onde
os conteúdos inessenciais se sobrepõem à realização
poética mais penetrante, quer seja através da publicação
de ensaios que investigam estes objetos literários tão só
como exemplos de uma airmação identitária, cuja função
básica consistiria em ampliicar e dar nobreza documental
aos anseios de uma coletividade ou segmento étnico.
Em outras palavras, toda essa fortuna crítica aponta para
a responsabilidade social do escritor; o compromisso
histórico do poeta como porta-voz de questões situadas
aquém ou além do âmbito mesmo da invenção verbal.
E segundo estes intérpretes, almas quase renomadas,
tal literatura, para fazer jus ao apodo negro, precisa dar
mostras claras, incontestes da presença do Negro. Ou
seja, o texto examinado (“a patient etherised upon a table”,
65
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
T. S. Eliot) precisa responder airmativamente e com
provas cabais àquela pergunta da estudante estrangeira;
deve sustentar o paradigma imaginado, promovê-lo à
verdade irretocável, que possa ser reiicada ao longo de
um discurso-livro de, pelo menos, umas duzentas páginas
e que, por um efeito dominó, faça escola e granjeie
defensores argutos e/ou indignados. As provas de que
há um negro entremeado ao texto, insulando-lhe vida,
são identiicadas pela frequência com que aparecem, por
exemplo, além daquelas palavras já mencionadas acima,
as de origem africana que adoçam e singularizam a fala do
brasileiro, tais como: moleque, bunda, cachaça, empate,
etc. Ou ainda, outra prova, por uma insistente reiteração
de um nós negros, ideologicamente correto, indicando
uma espécie de irredutível essência negra que cumpriria,
principalmente ao criador e complementarmente ao
exegeta, preservar a todo custo, como se tal essência fora
um santuário repleto de ex-votos curiosos ou uma reserva
natural ameaçada. Como consequência, temos a literatura
feita pelos negros comodamente atada ao tronco da
temática transitiva ou circulando livremente pela senzala
de um estreito ismo.
O grande dano deste traçado programático,
delimitador e, de resto, extremamente eicaz para coninar
esta prática poética dentro do universo dos estudos
culturais e das literaturas de testemunho, é a exclusão
sumária de outros textos/autores que apontam hoje –
ou que apontaram no passado – para zonas limiares,
imprecisas, abertas à sedução da instabilidade dos
66
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
signiicados, onde a inteligência em movimento costuma
puxar o tapete à mediocridade conformadora; o esforço
dos poetas/escritores que focalizam a sua atenção mais
no como dizer e menos, bem menos, no que é urgente
dizer talvez ao ouvido do pesadelo da História.
Mas, por im, todos os dilemas, ou os vícios e
virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam
ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que
é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero
insistir em dizer que o “ciclo histórico do verso está
encerrado”, parece icar cada vez mais claro que o verso
livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria
pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas
contradições e possibilidades constitutivas — experimenta
um momento de estagnação. Em artigo publicado
recentemente, Paulo Franchetti estuda na versiicação
contemporânea a “crise de verso” ou “crise do verso” na
linguagem de alguns poetas. De acordo com o crítico,
tornou-se já prática consagrada a “quebra arbitrária da frase,
sem que se perceba na quebra mais do que o desígnio de
quebrar”. Há algum tempo, num artigo publicado em Sibila,
onde avaliava a cena das revistas literárias, me referi a
esses poetas que operam sobre o verso a partir tão-só
do corte como “convencionais versemakers da fratura, da
fragmentação”. Para Franchetti, uma parcela da poesia de
hoje representa um “atestado de recusa do verso livre, ou
de desconiança nele como eicácia poética”. Enquanto
isso, irmandades de poetas apuram suas ferramentas
no aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na
67
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
estabilidade de uma sempre e afetada elipse sintática.
Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a
“música sem-versista”: o poema como uma constelação
suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram
mudar o quadro. É como se as coisas atinentes ao verso
e seus modais corressem num trilho à parte. Talvez isso
se deva, em alguma medida, à precoce canonização do
versilibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo
representou uma possibilidade expressiva mais aim
àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto,
essa máquina parnasiana onde os poetas-medalhões
se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara
a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso não-
metriicado, em alguns casos, foi tão dogmática quanto
a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre
— mais como prática inercial do que como airmação ou
ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem
muita coisa a ver com o verso metriicado que pretendeu
substituir. Ou seja, embora pareça, o debate não se
encerra aqui.
Em resposta à poesia “em greve”, isto é, negativa,
daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século
pós-utópico conina com um cinismo fashion e não tem
compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda
(e principalmente como movimento coletivo) deixa de
ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito,
perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de
performance dentro de um determinado repertório oferecido
pela tradição. A este propósito caberia dizer uma ou duas
68
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
palavras sobre o tema da “poesia em meios não impressos”
que, hoje, parece fazer as vezes de uma vanguarda.
Segundo as boas almas envolvidas direta ou indiretamente
com a coisa, a poesia digital representa o último refúgio
da experimentação na literatura contemporânea. A “arte-
inicial” da poesia não-verbal e pós-tipográica de algumas
décadas atrás sucumbe frente à arte-inal high-tech, inalista
e inancista das práticas poéticas de hoje. Os poetas de
tal vertente fazem uso pesado da tecnologia digital. Os
recursos computacionais, de simples ferramentas para a
otimização e a realização de projetos editoriais, de uma
hora para a outra passaram a lançar os dados disso que
(com a permissão de Mallarmé) talvez se converta em
nada ou quase em uma arte. Pode-se dizer que para a
preguiça vigente, esses recursos foram investidos de um
poder criativo graças à sua capacidade de manipulação
e deformação de fontes, imagens e sons retocados
virtualmente por meio de distorções, animações, fusões
e animações em 3D. Se, até a pouco, para fazer chover
no piquenique dominical da poesia bastavam papel, cola e
tesoura (ver, por exemplo, o poema “Organismo” de Décio
Pignatari, publicado em 1960), agora sequer se imagina
a fatura de um poema intersemiótico sem a parceria de
computadores, celulares de última geração, câmeras
digitais, enim, desses videogames adultescentes onde o
letrismo sem fundo dos caracteres luta consigo mesmo:
ferramentas-mercadorias típicas de uma coniança ou
de um entusiasmo, ao im e ao cabo, naïf com relação
aos poderes e avanços que marcam a ultramodernidade
69
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narcisista. Vírus da virtualândia. Joan Brossa (1919-1998),
com seu sorriso esturricado à la Buster Keaton, dizia que
a nossa não é uma época multimídia, mas “multimerda”.
70
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ESCRITA DE SI E EXPERIÊNCIA DO
MUNDO: NOTAS SOBRE O “ECCE HOMO”
DE FRIEDRICH NIETZSCHE
Olímpio Pimenta
71
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
enim.
Assim, para começar interessa cogitar um pouco
sobre o que é este livro, o “Ecce Homo”. O título, uma
dentre tantas brincadeiras do erudito Nietzsche, repete as
palavras de Pilatos ao apresentar Jesus ao povo depois da
lagelação. Trata-se, nos dois casos, da exibição pública de
alguém. Nesse primeiro sentido, tomado enquanto projeto
editorial, o livro consiste em uma autobiograia intelectual
que, mesmo sendo bastante heterodoxa, deveria prestar-
se para a divulgação de um autor cujas demais obras
começavam a encontrar repercussão no mundo culto.
Entretanto, a coisa muda de igura ao considerá-lo
em sua dimensão ilosóico-literária. De imediato, entre os
mais próximos do autor, as impressões de leitura foram
bastante desfavoráveis. Recriminou-se o que soava como
ambição desmedida, e também a grandiloqüência. A opinião
posterior dos biógrafos é também reticente, vinculando o
escrito à loucura que se manifestaria pouco tempo depois.
Para eles, apreciado à luz do esquema vida e obra, o livro
peca por ser pobre em material factual, restando buscar
nele apenas elucidações psicológicas sobre os estados
internos do ilósofo—nada que seja dotado de maior apelo
ilosóico.
Entre os intérpretes e comentaristas, por sua vez,
nenhum consenso: há quem goste, quem desgoste e
quem lhe seja indiferente. Mas para nós, secundando, por
exemplo, Rosa Dias e Sandro Kobol—respectivamente:
Nietzsche, vida como obra de arte, Civilização
Brasileira/2011 e Sobre o suposto autor da autobiograia
72
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de Nietzsche, Discurso/2004, aos quais devo muito do
que digo aqui—um tesouro, enquanto reapresentação de
pensamentos e teses centrais da ilosoia de Nietzsche do
ponto de vista privilegiado das condições existenciais que
facultaram a emergência desses mesmos pensamentos
e teses. Uma espécie de coroamento de um percurso
ilosóico-vital, prova provada de que quase nada do que
importa na obra nietzschiana é postiço ou arbitrário mas,
muito ao contrário, atende à exigência mais difícil que a
ilosoia e a vida ilosóica põem para seus adeptos, a da
coerência entre o que se vive e o que se pensa.
Mas cabe logo uma advertência: não convém
confundir tal preceito com integrismo literal, sistematicidade,
homogeneidade entre princípios e resultados ou qualquer
outro critério que depende apenas da lógica estrutural da
escrita. Na direção sublinhada por Pierre Hadot, “a teoria
por ela mesma não é considerada como um im em si. Ou
ela é clara e decididamente posta a serviço da prática”,
o que inclui, evidentemente, a prática inventiva de quem
conta sua história.
Aliás, vem a calhar um outro parêntese. Tenho
insistentemente me perguntado, e também aos colegas,
se nosso magistério pode se resumir às tarefas técnico-
acadêmicas, a chamada “transmissão de competências”,
ou se há imperativos próprios, no mínimo no campo das
humanidades, a serem observados—que dizem respeito
à formação pelo exemplo. Ficam duas pistas: se se é
estudioso de Nietzsche, parece que uma postura assim é
desautorizada pelo próprio “objeto” de estudo; além disso,
73
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
não dá para escapar à questão pleiteando a suspensão
de juízo, pois essa atitude é fruto de outros tantos juízos,
todos engajados na realização de alguma prática de
vida. Assim, uma postura a favor da especialização e do
academicismo já é, por si só, indício bastante eloqüente
do que se quer com os estudos e de como se pensa sua
relação com a vida.
Dito isso, os objetivos da nossa leitura são
os seguintes. Um primeiro, escolar, é reconhecer a
continuidade subjacente ao desenvolvimento do que
Nietzsche escreve nas seções em foco, muito despistada
à primeira vista, mostrando a ordem em que as ideias,
impressões e comentários estão dispostos. O segundo é
mais ambicioso: referenciar o que vai sendo lido a alguns
aspectos mais notáveis do pensamento nietzschiano e
a outros momentos da sua obra, tomada em conjunto. A
combinação entre os dois objetivos aspira a mostrar que
este livro é tremendamente conseqüente, na medida em
que, ao repertoriar as realizações ilosóicas de uma obra
complexa, corrobora o laço constitutivo entre o teor dessas
realizações e a trajetória existencial de quem a deu à luz.
Prevendo, a partir de alguns indícios—
principalmente um curso de introdução ao seu pensamento,
ministrado por um respeitado scholar na Escandinávia,
além de certas correspondências muito elogiosas vindas
da França e da América—uma virada no status de sua
obra, então cercada de um silêncio incômodo, nosso autor
decide se dar a conhecer, falando do que escrevera e,
principalmente, de como o izera. Numa direção parecida,
74
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
já havia preparado, dois anos antes, uma série de cinco
prefácios para as segundas edições de Nascimento da
tragédia, Humano, demasiado humano I e II, Aurora e
Gaia ciência. Apesar da convergência de propósitos—
tornar as obras mais acessíveis, evidenciando o caráter
contínuo de seu desenvolvimento a im de promover o
debate das ideias que as constituem, além de desencalhá-
las nas livrarias—esses escritos têm um caráter diferente
do Ecce Homo. Nos prefácios, é como se estivéssemos a
um grau de distância dos respectivos livros, contemplando
a encenação do que transcorre em cada um deles desde
um primeiro bastidor. No livro de 1888, nos afastamos mais
um grau, contemplando a cena a partir de um segundo
bastidor, cuja perspectiva abrange a arte geral que pôs
todo o conjunto da obra em movimento.
Mas isto, a perspectiva mais afastada, é anunciada
de um modo nada singelo—e menos ainda isento de
desaios para o leitor. A seguir, passamos à apresentação
dos aspectos principais do Prólogo e das duas primeiras
seções, com a qual esperamos recuperar tal ponto de
vista geral de maneira linear. Já adianto, para quem não
conhece, seus títulos; diante da etiqueta mais costumeira
entre ilósofos, tendem a provocar curiosidade, senão
espanto: Porque sou tão sábio e Por que sou tão esperto.
As dúvidas mais imediatas são do tipo: será mesmo?
Como assim?
Vejamos o Prólogo, primeiro parágrafo: “Prevendo
que dentro em pouco deverei me dirigir à humanidade
com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada,
75
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
parece-me indispensável dizer quem sou”. O que signiica
isso? Qual é o alcance exato desta “mais séria exigência”?
Em primeiro lugar, uma campanha sem descanso contra
o ideal, contra a duplicação da realidade em “essência”
e “aparência”, que resultou em depreciação completa do
que nos é mais próprio—nossos corpos, nossa condição
natural, as coisas que nos são mais próximas. Pois, ainal,
“a realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal”.
Ora: logo nesta abertura está reiterado o núcleo
de toda a empresa ilosóica nietzschiana. Se falamos em
apolíneo e dionisíaco, vontade de potência, além do bem
e do mal, perspectivismo, genealogias, gaia ciência, amor
fati, morte de Deus, espírito livre, eterno retorno, inversão
do platonismo, moral de senhores e moral de escravos,
superhomem, transvaloração de todos os valores, falamos,
no fundo, de airmação da existência, contrapartida
propositiva da crítica ilosóica inalmente bem sucedida
do ideal.
Mas por que este privilégio, o que justiica esta
presunção? Aí entra um dos segredos deste Ecce Homo:
o esvaziamento da metafísica não é uma coisa pensada
em abstrato dentro da cabeça de alguém, um projeto
teórico-conceitual, mas a conquista de uma forma de vida
inteiramente nova, até então experimentada nos termos
referidos acima apenas pelo indivíduo Friedrich Nietzsche.
É dessa forma de vida que se fala de ponta a ponta no
livro. Em suma: trata-se, ali, de narrar o amálgama
criado entre pensamento e vivências, corpo e espírito,
76
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
possibilidade e necessidade, ilosoia e existência, a partir
das singularidades da trajetória única do personagem
Friedrich Nietzsche. Ou, como dissemos no título, valendo
justamente para este livro extraordinário, o que entra em
cena é o amálgama entre narrativa de si e experiência do
mundo.
E que não haja engano: logo no próximo parágrafo
encontra-se uma chamada direta, a favor da diferença em
relação a qualquer mestre, pois só se torna o que se é
tomando distância, largando noções e doutrina alheias,
provando a solidão. Citando seu Zaratustra, Nietzsche
diz: “Retribui-se mal a um mestre, continuando-se
sempre apenas aluno... Agora ordeno que me percais
e vos encontreis; e somente quando me tiverdes todos
renegados voltarei a vós”.
Chegamos, por essa via, à seção Por que sou tão
sábio. Por que? O primeiro parágrafo o indica: ausência
de partidarismo em relação ao problema global da vida.
Ora, isto é ilosoia em sentido estrito, isto é socrático
“por deinição”, pois remete ao “sem lugar”, àquele que
não fala de nenhum lugar especíico. Mais precisamente:
a construção do que é mais próprio e peculiar, do que é
a própria singularidade, como o mais impessoal, livre de
idiossincrasia. Ou, de novo, as vivências como eventos do
mundo, implicando a escrita de si como um experimento,
uma jogada do mundo consigo mesmo através de alguém.
Nesse sentido, a lição dada de graça ensina que
conta demais para qualquer um investido em ilosoia
saber icar na sua, explorar ao máximo as circunstâncias
77
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da própria existência, se dar ao mundo para que o mundo
se abra e o acolha. Mas não custa repetir: não é o caso
de se irmar um caráter íntegro e unívoco, mas de se abrir
para a seleção do que se dá conta de provar. Não resulta
daí um ego consolidado, mas um personagem à altura de
viver aqui, no tempo e no espaço e entre os eventos que
constituem a sua cota.
Uma tal disposição para o instante evidencia a
distância em relação à grande maioria, sempre agarrada
aos seus bens e posses e tralhas—e isto, não obstante
a primeira impressão, não signiica ingratidão, recusa
da chamada realidade imediata, mas o máximo de boa
vontade com ela, embora num nível de vínculo super
expandido e elaborado.
Disso tudo decorre a conclusão seguinte: o mais
fundamental é a conquista da liberdade em relação ao
ressentimento, essa doença dos excessos de memória,
responsável pelo desgosto diante da existência dada.
Sua cura passa por não mais reagir, impermeabilizar-se,
nada mais receber de fora pelo tempo que for necessário
e, com isso, despedir de si toda fraqueza, raiz única do
próprio mal do ressentimento. Moral da história: bom é
aqui, onde quer que isto seja, onde quer que o fado nos
tenha lançado, ao contrário do que preconiza o proverbial
pessimismo à moda russa, não isento de inluência cristã,
que ensina que “bom é onde não estamos”.
O que não implica, claro, acomodação,
conformismo: quem diz isso é um mestre da guerra, que
apresenta então as suas regras para essa arte. A distinção
78
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
entre compromisso e partidarismo ajuda a esclarecer o
passo, conirmando este modo de guerrear sem nunca se
misturar ou confundir com o antagonista, se servindo do
exercício como caminho para uma perfeita solidão, em um
movimento antidialético por excelência.
O saldo é uma forma de viver muito diversa daquela
que é prezada pelo consenso das gentes e que traz consigo
uma espécie de nova sabedoria—que por sua vez se
ergue contra o consenso dos sábios de outrora, para quem
a vida não presta. Conhece-se suas palavras: “ofereçam
um galo a Esculápio por esse dia”, “a vida de um homem
é curta e cheia de aborrecimentos”, e por aí vai. Só para
reiterar: nos termos desta seção, o vivente se reconhece
como um pedaço da vida, e é nisso que suas atividades
encontram referência e limite dignos de consideração.
Quando escrevo, por exemplo, quem escreve é a vida—
ou, no dizer de um samba também conhecido “não sou eu
quem me navega, quem me navega é o mar.”
A próxima seção se chama Por que sou tão
esperto. Por que será? Trata-se do lugar em que o ilósofo
cuida da exploração daquilo que, na prática, intervém para
favorecer a sabedoria referida antes, ao mesmo tempo em
que se serve dela. O primeiro passo nessa direção registra
uma completa inapetência para questões religiosas,
contrabalançada pelo grande interesse em encontrar
e cultivar os regimes de vida mais convenientes para si
próprio. A questão de fundo é a seguinte: a observação
indica que os tenebrosos problemas da teologia moral—
culpa, pecado, arrependimento, penitência, salvação—
79
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
estão invariavelmente associados a más escolhas quanto
à dieta e à culinária. Os maus tratos dedicados ao corpo
numa dimensão tão primordial de sua existência trazem
conseqüências funestas: “Todos os preconceitos vêm das
vísceras”.
Uma coisa puxa outra, da alimentação Nietzsche
passa a considerar clima e lugar. O que melhor convém a
cada um nesses termos é também questão fundamental,
elaborada à luz de observações sobre metabolismo e
atmosfera. Segue valendo a lição: continuidade entre quem
se é, onde se está e como se escreve, para bem e para
mal. Mas uma cautela teórica se impõe ao leitor apressado:
o grau das determinações e reciprocidades deve sempre
ser investigado caso a caso, no velho sentido da “mathesis
particularis”, evitando que se tirem conclusões universais
a partir de um quadro de referências tão cheio de sutilezas
e meios tons.
Seguem-se ponderações a respeito de distração,
divertimento e passatempos. Uma nos concerne de
perto aqui, pois situa em primeiro plano as leituras. As
estratégias principais repercutem a opção pela solidão:
quanto mais trabalho, menos livros em volta—o exato
oposto do treinamento para especialistas que ministramos
em nosso magistério. Depois da gravidez levada a termo,
aí sim, alguma companhia literária, preferencialmente a
mais leve e ligeira, exempliicada para o alemão por uma
constelação de franceses. Da prosa passa-se à poesia,
desta à música e, nessa levada, aparecem diversas notas
de caráter biográico, relativas aos tempos passados pelo
80
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ilósofo junto a Wagner. Aproveita-se para o comentário
mais uma vez depreciativo sobre o ser alemão, sua falta
de malícia e inura.
Toda essa preparação permite, por im, que venha à
baila o miolo do problema, a relexão sobre “como alguém
se torna o que é”. O resultado é mais ou menos o seguinte:
interessa destravar o trânsito entre os impulsos, facilitando
as chances de acontecerem combinações melhores entre
eles, sem que se recorra às ideias solenes de inalidade
ou destinação. Por hipótese, o que existe e constitui a nós
e ao mundo são impulsos, forças, energia em luxo. Qual
deve ser a hierarquia entre tais forças, que nos permitiria
falar do melhor e do pior no domínio das coisas humanas?
Aquela que sirva ao vivente no que mais importa, a fruição
de sua condição presente, dada na imanência. Não como
o tirano infantil, mas como o adulto esclarecido sobre sua
situação no mundo—parte dele e não seu dono, limitado
por leis, tanto naturais quanto sociais, embora apto a jogar
com tais leis em posição criativa. Eis aí o lance decisivo:
fazer mais acessível a disposição para criar—inventar,
exercitar, arranjar, ordenar, trocar de lugar, dar nome,
enfrentar, recuar, enim, jogar com o que estiver à mão, a
partir do amor de si, par perfeito do amor fati.
Para arrematar esta visita sumária à seção, cabe
perguntar qual é o segredo disso tudo. Respondendo de
maneira também sumária: aprender a gostar da própria
existência a ponto de nos tornarmos capazes de airmá-la,
mesmo em seus aspectos mais difíceis e problemáticos.
Aprender a viver sob a formidável perspectiva do
81
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dionisíaco, cuja paixão não é a do sofredor, mas a do que
se regozija com o espetáculo da existência, ininitamente
mais desejável do que a segurança do nada. Em suma:
“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati:
nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja
em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário,
menos ainda ocultá-lo—todo idealismo é mendacidade
ante o necessário—mas amá-lo...”.
Para efeito de arremate, interessa aludir a algo da
terceira seção do livro, em vista de sua proximidade com o
tema geral desta semana de estudos. Trata-se de pensar
com Nietzsche sobre a escrita, tema que ali aparece sob
o título “Porque escrevo livros tão bons”. Peço licença
para fazer um recorte e tratar pontualmente de um tópico
apenas: a questão do estilo.
Antes de mais: a abordagem da questão não é
feita, como de costume, em chave estritamente estética.
A ausência de clivagens entre os assuntos com que se
ocupa Ecce Homo não autoriza a vigências das divisões
tradicionais, separando o que é metafísico ou moral do
que é epistemológico ou estético. Na vida as coisas não
são assim, e isto é o que foi captado e conigurado pelo
pensador nessa reconstrução de sua obra. Assim, o cultivo
da “arte do estilo” não é um negócio descontínuo em
relação a quem se é, como se vive, o que se entende sob o
nome de realidade, como e porque se conhece. A oposição
matricial entre isiologia e idealismo alude à imagem do
mundo como vontade de potência, na mesma medida em
que os cuidados dietéticos substituem as receitas éticas
82
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e que as noções de lisura e higiene remetem a virtudes
epistêmicas centrais.
O mais importante em relação ao estilo é ter algo a
dizer. Quem se cria no amor fati inicia-se no cultivo do estilo,
pois se torna palco e cenário para a circulação das forças
que constituem o mundo. Sem essas, nada há a fazer. A
partir delas, todavia, tudo o que já foi mobilizado antes—
um corpo saneado dos ideais, física e psicologicamente
lexível, uma consciência honesta e satisfeita com seu
caráter instrumental e uma sensibilidade trabalhada pela
experiência—pode lorescer e frutiicar, dando vazão a
feitos e obras que poderão aspirar ao estado da arte.
Com isso fechamos o círculo, voltando ao mote
“porque pesquisar literatura?” em condição de dar nosso
palpite. Pesquisar literatura para aumentar um ponto, isto
é, para acrescentar mais um capítulo à literatura e ao
mundo, planos diferentes de uma realidade só, aquela que
amamos livres do ideal.
REFERÊNCIAS
83
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Paulo: Schwarcz, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução de
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 1974.
(Coleção “Os Pensadores”).
84
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ESGOTAR A VIDA: CENAS DE LEITURA
85
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ler como Nietzsche. Adoecendo na saúde. Ganhando
forças na doença. Explodindo as carapaças do ser para
atingir um “não ser mais aquilo”, o estado violento da
vontade de potência. Aprender a ler com a alegria difícil
de Clarice Lispector anunciada em Paixão Segundo GH:
“A mim, por exemplo, o personagem GH foi dando pouco
a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria”.49
Imolar-se na vivência de uma subjetividade sacriicial, de
uma subjetividade abstrata, ectoplasma de sensações,
lembranças entrecruzadas, icções: corpo recriado que se
gasta numa economia de presença/ausência que é a do
tempo da leitura como um existir num “ punto abstracto,
matemático, de uma singularidad virtual”.50 Ler para limpar
os olhos com Macabéa. Aprender com Lourenço Mutarelli
a escorregar pelo furo da paranoia delirante de um desejo
que escoa sem encontrar o limite do possível. Estar com
Mutarelli no descontrole. Ler então para perceber o que
Raúl Antelo deine como “vida ali embaixo. Isso não é bom
nem ruim. Simplesmente é.”
Não tratarei, portanto, da leitura ediicante, da
educação pela leitura, da formação do leitor, nem da
cidadania, examino possibilidades de associar vida
e leitura, em movimentos de abalo, de lembrança e
esquecimento, de gasto e de perdas, de reprodução e
desaparecimento,51 gozo, ferida, morte. Ler como “dançar
49 LISPECTOR. A Paixão segundo GH, p. 5
50 LEPECKI. Agotar La danza: performance y política
del movimiento, p. 224
51 A partir da sugestão do título “Esgotar a vida: cenas
de leitura” tomado de empréstimo do livro de LEPECKI.
86
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
em cadeias”, experimentar a “jouissance” barthesiana, que,
ao contrário do “plaisir” não é posse, mas “pura perda”: “Il
se dépense’ que deve ser lido como “ele se gasta”, tanto
quanto ele se “des-pensa”,52 ou seja, como quem pensa
fora de si em ambos os sentidos.
Nietzsche
II. Lispector
III. Mutarelli
98
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com A Metamorfose e Carta ao pai, de Kafka, também com
Burroughs,78 que aparece criptografado no fait divers de
um assassinato, Jr. vai-se metamorfoseando de homem
adulto em espécie larvar, quase um natimorto (título de
outro romance do autor) com todos os sintomas corporais
da psicose paranóica: extrema sudorese, taquicardia,
dores de cabeça, prostração, insônia, a sensação do corpo
cindido,79 tremores, percepção distorcida.80
A icção de Mutarelli expõe cartas (de baralho,
de tarô, de mensagens dos maços de cigarro) que
confundem o real com a projeção inesgotável de imagens
aparentemente sem controle, mas paranoicamente
encadeadas com lógica de modo a criar a ilusão de
uma totalidade fechada e absurda, falsa coerência cuja
78 Burroughs (aparentemente embriagado, matou
Joan Vollmer com um tiro na cabeça no que teria sido uma
tentativa de brincar de Guilherme Tell) disse que o tiro
em Vollmer, no dia 6 de setembro de 1951, foi um evento
crucial na sua vida, e que o provocou a escrever: “Eu sou
forçado à terrível conclusão que eu nunca teria me tornado
um escritor, a não ser pela morte de Joan, e nunca teria uma
compreensão da extensão em que este evento tem motivado
e formulado a minha escrita. Eu vivo com a ameaça
constante de posse, e um constante necessidade de escapar
da posse, do controle. Assim, a morte de Joan trouxe-me
em contato com o invasor, a Alma Suja, e manobrou-me
para uma longa luta na vida, em que não tive escolha a não
ser escrever a minha saída dela”. WILLIAM S. Burroughts.
Wikipedia.
79 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p. 62.
80 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p.
119.
99
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
força constrói uma parábola ininita e circular como as
imagens dos suplícios do mundo ctônico. Não se trata
de associações livres como nos programas surrealistas,
aqui herança aleatória paranóico-dada transtorna tudo.
Um ‘Fort- Da’, um esconde-mostra, uma construção
rigorosa e anárquica. Loucura programada por softwares
demoníacos. Em Lourenço Mutarelli as personagens,
quando não espiam pelos buracos, eniam-se neles.
Quando o leitor é exposto a esse contágio com
a miséria dos transtornos mentais contemporâneos
(e mais comuns do que se pode pensar), também ele
pode escorregar por um furo, ao entrar nessa cabeça
decorada por uma imaginação estranha e inquietante,
podendo dizer junto com o próprio quadrinista: “Aí ele
começa (ou) a bagunçar a minha cabeça e a foder com
meus pensamentos...”.81 O leitor pode arriscar o método
crítico-paranóico de um modo mais consciente para poder
vivenciar a miséria-tesarac reproduzida nas narrativas.
Experimentar essa imaginação delirante como se
experimenta a dor de terminações nervosas inlamadas,
deixando que a lucidez –paranóica descortine a cena
contemporânea como punctum bartesiano, como um feixe
de luz e dor agudas.
Em 1933, Salvador Dali leu a tese de Jacques
Lacan que aparecera no ano precedente, um texto árduo,
consagrado ao estudo da paranóia. Desta leitura iria
nascer o método crítico-paranóico, que Dali apresenta
em dois escritos fundamentais “A conquista do irracional”
REFERÊNCIAS
106
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Janeiro: Rocco, 2009.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 9ªed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São
Paulo: Martins Fontes, 2012.
ROSSET, Clément. A antinatureza: elementos para uma
ilosoia trágica. Tradução de Getulio Puell. Rio de Janeiro:
Espaço e tempo, 1989.
MUTARELLI, Lourenço. A arte de produzir efeito sem
causa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MUTARELLI, Lourenço. Mundo Pet. Ilustrações do autor.
São Paulo: Devir, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. Tradução de Tavares
Fernandes. Lisboa: Europa-América, 1977.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Tradução
de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo: Hemus, [s.d.].
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna
o que é. 2. ed. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma
polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. O livro do ilósofo. Tradução de
Ana Lobo. Porto: Rés Editora, 1984.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou
Helenismo e pessimismo. 2. ed. Tradução de J. Guinsburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Seleção de
107
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Gerárd Lebrun. Tradução de Rubens Rodrigues Torres
Filho. Pós-prefácio de Antonio Candido. São Paulo: Abril
Cultural, 1983. (Coleção “Os Pensadores”).
NIETZSCHE, Friedrich. Seconde considération
intempestive. Traduction de Henri Albert. Paris: Flammarion,
1988.
SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: iguras da
escrita. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.
WILLIAM S. Burroughs. Wikipedia. Disponível em: <http://
pt.wikipedia.org/wiki/William_S._Burroughs>. Acesso em:
20 fev. 2014.
108
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LITERATURA E JUSTIÇA:
JULIÁN AXAT E OS DESAPARECIDOS NA
ARGENTINA
Pádua Fernandes
Te espero:
Pai
115
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
os ruídos causados pela derrota
não conseguem quebrar-nos
embora seja por um instante
essa incrível luz de teus olhos
esperança ou fulgor de a cada instante ser
grito100
1.
a rosa
um raio
arsenal
latente
prepara espinhos
118
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que se cravam em nós
ou por acaso
os incrustamos
para fazer
a revolução
salvar
nossos pais
de sua derrota
não sei
realmente
se penso
em salvá-los
a eles
ou a nós
mesmos103
que me devolve
a pele viva de sua voz 107
ao fechar os olhos
escutei a voz:
repartidos
108 “al cerrar los ojos/ escuché la voz:/ … y los pedazos/ del poeta/
repartidos/ para alimentar niños/ con fusiles en la boca” [M, p. 74].
122
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
livres e brancos em que a poética detetive selvagem
é desenvolvida além de Médium. Como escrevi em
outro artigo,
[...]
N-ÓS sim
escrevemos o romance
aquilo - o grande romance da ditadura?
125
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
os anônimos e os desconhecidos (em “Bolaño &
co.”, lemos que “anoche soñé / en nuestra fuga
/ visitábamos poetas / menores”), revisita a obra
anterior e a reelabora. Em “nosotros 2011”, temos a
transformação do mencionado “diário de viaje v”:
e antes de ser
a fracassada equipe
de-nós-legista
deixamos os ossos
escrevemos um poema
nos devolve
a pele viva
da voz111
onde os ilhos
del pasado resulta vicaria (en tanto siempre está mediada por la
interpretación o un relato), los hij@s viven ese pasado con una
intensidad vicaria mucho mayor que sus padres, en el senido de una
pos-memoria y la necesidad de narrar la historia. Pos-memoria: como
memoria de la generación siguiente a la que padeció o protagonizó
los acontecimientos (memoria de los hij@s sobre la memoria de
los padres). Se trata de formas de la memoria que no pueden ser
atribuidas directamente a una división sencilla entre la memoria de
quienes vivieron los hechos y la memoria de quienes son sus hij@s,
por supuesto que haber vivido un acontecimiento y reconstruirlo
a través de informaciones no es lo mismo.” AXAT, Julián.
Ponencia en San Pablo. 2 jul. 2010. Disponível em <http://
coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com.br/2010/07/
ponencia-en-san-pablo.html>. Acesso em 12 jan. 2013.
115 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 112.
116 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 113.
129
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fazer esse tipo de reconstituição da história dos pais,
a tornar as difíceis e fragmentárias reconstituições do
passado em poesia? Parece-me que não.
O poeta Emiliano Bustos, em texto que escreveu
em apresentação da antologia que Axat organizou
de sua própria geração (Si Hamlet duda le daremos
muerte), e que o incluem, como a alguns outros hijos,
bem caracterizou que para esses poetas “a política,
por exemplo, já não é uma paisagem”; “A política e a
história ingressam pela própria experiência de muitos
dos poetas aqui reunidos”117.
De um lado, a experiência dos hijos permite-
lhes dizer que apresentam suas próprias memórias
sobre o terror de Estado: o fato de terem perdido os
pais e outros parentes, de terem tido, muitas vezes,
sua identidade negada ou subtraída marcou-lhes a
infância e representa a marca do terror de Estado em
sua história pessoal, inscrita nessa história coletiva.
Nesse sentido, suas subjetividades também foram
coniguradas pelo terror, e isso os autoriza a falar
como testemunhas diretas da ditadura.
Por outro lado, a obra de Axat não se limita
a reconstituir relatos e a revisitar a ditadura: em
seu caso, coniguram-se poéticas que constituem
117 BUSTOS, Emiliano. Papel picado, Kerouac y
Hamlet. In: AXAT, Julián. Si Hamlet duda le daremos
muerte: Antología de poesía salvaje. City Bell: Libros de la
talita dorada, 2010, p. 16.
130
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narrativas novas, seja sobre fatos do passado, seja do
presente, movidas pela criação literária de aspirações
sociais de justiça. O papel desta poesia passa a ser
de criar símbolos eicientes para o desbloqueio das
imaginações jurídica e política.
À guisa de conclusão:
132
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dos falecimentos118.
Referências:
2. Outras referências:
135
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
136
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A ESCRITA LITERÁRIA EM FOUCAULT: DA
TRANSGRESSÃO À ASSIMILAÇÃO
137
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
quando Foucault passou a demonstrar grande desinteresse
e mesmo rejeição à “escrita institucionalizada sob a forma
da literatura”. São os discursos anônimos, tomados como
falas propriamente infames e marginais, que despertarão
o interesse de Foucault nessa época.
Neste artigo, pretendo analisar os motivos que
provocaram essa mudança. Entendo que ela relete uma
nova concepção de poder, na qual não há mais espaço para
oposições simples, entre discurso/contradiscurso, ordem/
transgressão ou dentro/fora. Toda resistência, como foi a
experiência literária em um curto período, assume formas
provisórias e regionais, que produzem sem cessar novos
procedimentos de institucionalização, sendo, mais cedo ou
mais tarde, integrada e assimilada. Em suma, este estudo
encontra seu lugar no interior desse grande problema que
é a relação entre literatura e vida, e, mais especiicamente,
entre a escrita literária e seu poder de transgredir ou de
instaurar algo novo capaz de transformar nossas maneiras
de pensar. Para tratar (ou tatear) essa questão complexa
e multifacetada, gostaria de oferecer uma pequena
contribuição, partindo de Foucault e, especialmente, de
como se deu no seio de seu pensamento uma mudança de
perspectiva quanto ao lugar ocupado pela escrita literária
como uma experiência transgressora. Acredito que essa
análise poderá contribuir para uma compreensão mais
adequada da força e dos limites que a literatura possui
como um meio de resistência e de produção de novas e
radicais experiências de pensamento.
Convém ressaltar que o foco do presente estudo
138
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
limita-se ao pensamento de Foucault dos anos sessenta
e setenta, deixando de lado os desenvolvimentos
posteriores que marcaram o “último Foucault”. No seio
de seus estudos dos anos oitenta sobre a constituição
de si, Foucault dedicou uma nova atenção à escrita
literária, em particular à chamada “escrita de si” (diários,
conissões, anotações pessoais, etc.). Contudo, mais do
que uma “volta”, entendo que há um deslizamento ou
desdobramento em seu pensamento sobre a literatura a
partir de outro ângulo, de modo que permanecem válidas
(ao menos parcialmente) sua visão crítica e sua concepção
de poder dos anos setenta. Com certeza a análise desse
período inal do pensamento de Foucault constitui um
interessante canteiro de pesquisa, que escapa, contudo,
ao modesto objetivo deste texto.
O presente artigo está divido em três partes.
Primeiro (I), será analisado o interesse que Foucault
demonstrava pela escrita literária nos anos sessenta,
na tentativa de esclarecer qual o lugar da literatura e o
que exatamente entusiasmava Foucault. Em segundo
lugar (II), a análise recairá sobre o desinteresse que
Foucault passa a demonstrar pela questão da linguagem
e da escrita literária a partir dos anos setenta, procurando
explicitar as razões que o conduziram a essa mudança
de perspectiva. Por im, na terceira e última parte (III),
procurar-se-á abordar, no seio desse desencanto com a
literatura, a emergência de um novo e diverso fascínio,
dirigido aos “discursos anônimos”, esses textos marginais
e não domesticados que servem de contraponto ao mundo
139
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das belles lettres.
140
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de si mesmo. Sendo assim, já nesse período, vemos em
Foucault um interesse pelas experiências de pensamento
que colocam em questão a linguagem e a posição
do sujeito. O interesse por outras formas de pensar
acompanha, de certa maneira, todo percurso foucaultiano.
Ele se manifesta, nesse primeiro momento, como um
grande entusiasmo pela escrita literária, assim como por
alguns temas tradicionais, quando se trata de pensar o
limite do pensamento, como a loucura e a morte. Em uma
conferência intitulada Literatura e linguagem, proferida
em Bruxelas em 1964 (que só veio a ser publicada
postumamente), Foucault deixou claro que a transgressão
ou a fala transgressiva (parole transgressive) é uma igura
exemplar e paradigmática daquilo que é a literatura.119
Outra advertência importante merece ser feita. Essa
forma de pensar transgressiva que encontra seu lugar na
literatura não deve ser compreendida em termos político-
partidários. É importante ressaltar que o caráter subversivo
ou transgressor que Foucault, nos anos sessenta, acredita
encontrar na literatura, não está associado a uma escrita
engajada, comprometida diretamente com uma causa
revolucionária. O “ato de escrever” (l’acte d’écrire) como
uma força de contestação nada tem a ver com a posição
política daquele que escreve. Tal possibilidade seria visível,
por exemplo, em Blanchot, cuja postura conservadora de
extrema direita nada teria diminuído da força transgressora
de sua escrita. Em suma, é a escrita que mantém, em si
II
III
Conclusão
Referências
164
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
1959.
CASTELO BRANCO, Guilherme. Michel Foucault: a
literatura, a arte de viver. In: HADDOCK-LOBO, Rafael
(Org.). Os ilósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archéologie
des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966.
FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la
prison. Paris: Gallimard, 1975.
FOUCAULT, Michel. Préface à la transgression (en
hommage à Georges Bataille). In: _____. Dits et écrits I:
1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Débat sur le roman. In: _____. Dits et
écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Débat sur la poésie. In: _____. Dits et
écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard , 2001.
FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. In: _____. Dits
et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault et Gilles Deleuze
veulent rendre à Nietzsche son vrai visage. In: _____. Dits
et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Présentation, in Bataille (G.), Œuvres
complètes. In: _____. Dits et écrits I: 1954-1975. Paris:
Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Folie, littérature, société. In: _____.
Dits et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Je perçois l’intolérable. In: _____. Dits
et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. De l’archéologie à la dynastique. In:
_____. Dits et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Foucault, le philosophe, est en train
165
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de parler. Pensez. In: _____. Dits et écrits I: 1954-1975.
Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. La fête de l’écriture. In: _____. Dits et
écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Sade, sergent du sexe. In: _____.
Dits et écrits I: 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. L’extension sociale de la norme. In:
_____. Dits et écrits II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. La vie des hommes infâmes. In:
_____. Dits et écrits II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Pouvoir et savoir. In: _____. Dits et
écrits II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. La folie et la société. In: _____. Dits et
écrits II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Présentation. In: _____. Dits et écrits
II: 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
FOUCAULT, Michel. Littérature et langage. In: ______. La
grande étrangère: à propos de littérature. Paris: EHESS,
2013.
KURY, Ângela Marta Haddad Parente. A transgressão
da palavra: considerações sobre a análise foucauldiana
da linguagem. In: CALOMENI, Tereza Cristina B. (Org.).
Michel Foucault entre o murmúrio e a palavra. Campos:
Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora: Blanchot,
Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ilosoia e a literatura. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
MACHEREY, Pierre. À quoi pense la littérature? Paris:
PUF, 1990.
166
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MALLARMÉ, Stéphane. Crise de vers. In: ______. Œuvres
complètes. Édité par G. Jean-Aubry et Henri Mondor. Paris:
Gallimard, 1945.
PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da
clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense,
1989.
REVEL, Judith. Histoire d’une disparition: Foucault et la
littérature. Le Débat, Paris, no 79, p. 65-73, mars-avril,
1994.
REVEL, Judith. La naissance littéraire de la biopolitique. In:
ARTIÈRES, Philippe (Dir.). Michel Foucault, la littérature et
les arts. Paris: Kimé, 2004.
REVEL, Judith. Michel Foucault: expériences de la pensée.
Paris: Bordas, 2005.
167
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CHOMÓN, PASTRONE, D’ANNUNZIO E
CABÍRIA: GÊNESE DE UM ÉPICO DE
TRANSIÇÃO
Introdução
170
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
incorporaram modos de representação distintos entre si.
Em parte espetáculo esfuziante, em parte veículo para
contar histórias, o cinema desse período resultava híbrido,
“impuro”, tensionado entre práticas cinematográicas
nem sempre convergentes. Recebeu do historiador Tom
Gunning, por isso, a denominação de cinema de integração
narrativa, termo que deine uma fase na qual os planos
buscaram, cada vez mais, integrar-se em sequências
narradas, pondo-se em relação de interdependência uns
em relação aos outros.
No início dos anos 1910, diversas companhias
europeias seguiram o exemplo da SCAGL e da Film D’Art,
indo buscar, junto à literatura e ao teatro, o prestígio de
que precisavam para converter suas películas em produtos
dotados do carimbo de arte. Criada em Turim, num tempo em
que essa cidade passava por uma forte industrialização, a
Itala Film deu origem a uma vasta ilmograia, composta de
dramas, comédias, épicos e ilmes de aventura. Os ilmes
dessa produtora também se deixaram percorrer pelas
tensões entre narração e espetáculo comuns à ilmograia
europeia dos anos 1910. Tensões que aparecem com
especial destaque no ilme Cabíria (Giovanni Pastrone),
épico realizado em 1914 com a intenção manifesta de
aproximar cinema e literatura, valendo-se, para isso, da
assinatura de um famoso escritor, o poeta, romancista e
demagogo nacionalista Gabriele D’Annunzio.
Referência na história do cinema pela ousadia de
seu projeto artístico, Cabíria é um dos primeiros produtos
da parceria entre o diretor piemontês Giovanni Pastrone
171
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e o diretor de fotograia espanhol, Segundo de Chomón.
Tipicamente um ilme de transição, permite vislumbrar
as contradições inerentes a esse período acidentado,
irregular, no qual o cinema buscava airmar-se como um
meio narrativo, sem, contudo, deixar de mostrar elementos
de puro gozo estético, mais atinentes aos ilmes dos
primeiros anos. O presente artigo examina a realização
de Cabíria à luz dessas contradições, focalizando as
contribuições dos principais personagens envolvidos em
sua construção, com ênfase para o trabalho de Segundo
de Chomón, responsável pelos efeitos especiais e pela
iluminação do ilme, de grande inluência no cinema
narrativo que então se inaugurava.
I – Cinema à la Pastrone
IV – Conclusão
185
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
para estimular as exibições da película naquele país.
Se houve um reparo ao colosso italiano, entretanto, foi
precisamente quanto aos letreiros de D’Annunzio. Seus
versos pomposos, rebuscados, cheios de símbolos
e alegorias verbais revelaram-se pouco ajustados a
um ilme que funcionaria melhor se submetido a uma
narratividade mais estrita. Longos e tediosos, os letreiros
não contribuem, de fato, para o melhor entendimento dos
acontecimentos vistos na película. A trama intrincada,
composta de diferentes linhas de ação enoveladas entre si
também colabora pouco para uma imersão sem traumas
do espectador na diegese narrativa. Homem de letras,
D’Annunzio, enim, nem mesmo se dava ao trabalho
de assistir aos ilmes que levavam a sua assinatura.174
Passava ao largo das especiicidades da linguagem em
gestação no cinema, tendo declarado, certa vez: “Deixei
que despedaçassem em ilmes alguns de meus dramas
mais conhecidos para comprar carne fresca para minhas
lebres”.175
Grifith foi um dos que perceberam a fragilidade
do roteiro de Cabíria, relevada pelo diretor em nome da
grandeza plástica do ilme. Nisso foi ecoado pelo próprio
Pastrone, que, em carta a D’Annunzio, admitiu ver, na
película, “uma autêntica salada entre Aníbal, Escipião,
Cirta e a rainha de Cartago”.176 A narração, de qualquer
modo, não parece ter sido a preocupação central dos
174 D’Annunzio teve cinco de seus romances adaptados
para o cinema.
175 VIDAL. El cine de Chomón, p. 158-159.
176 VIDAL. El cine de Chomón, p. 180.
186
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
criadores de Cabíria, como souberam reconhecer Grifith
e Pastrone, mais interessados na visualidade espetacular
do ilme do que em sua história confusa. Pode-se airmar,
nesse sentido, que a poesia torneada de D’Annunzio não
se desviava tanto assim da empresa levada a cabo pelo
restante do colosso. O tonitruante roteiro dannunziano
sintonizava-se com a espetacularidade da cenograia,
também carregada de exibicionismo, para resultar neste
ilme híbrido, impuro, meio narração, meio espetáculo,
típico daquele cinema em fase de transição.
Se a adição literária resulta quase num
elemento de subtração para a narrativa de Cabíria, a
engenharia fotográica do ilme surge mais ainada com
os fundamentos do cinema que então se formulava. As
maquetes, a iluminação, os truques e os movimentos
de câmera aparecem em grande medida ajustados à
diegese da película, emprestando plausibilidade ao seu
discurso narrativo. Embora não isenta de momentos de
puro espetáculo, a metalurgia fotográica posta em prática
no ilme por Chomón auxilia enormemente a condução
da trama de Cabíria, permitindo a absorção diegética do
espectador em seus momentos cruciais. E não podia ser
diferente: Chomón ingressara na Itala Film com cerca de
200 ilmes na bagagem. Sabia que o cinema passava por
profundas mudanças e procurava adaptar-se aos novos
tempos. Confrontado com o regime narrativo que então
emergia, cercava-se de todos os recursos para galvanizar
a narração das películas em que trabalhava. Operava,
com isso, a transformação do truque como um im em
187
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
si mesmo, típico dos ilmes dos primeiros anos, em um
procedimento “invisível”, plenamente integrado à narrativa
cinematográica.
É de se mencionar o juízo que o autor de Vita laboriosa
e geniale di Giovanni Pastrone (suspeita-se seja o próprio
Pastrone) logrou fazer sobre o colosso italiano: “Cabíria
foi um luxuoso catálogo de profecias cinematográicas,
já que em seus fotogramas icou registrado todo o futuro
programa do cinema” (ibidem). Hiperbólico na segunda
parte, esse juízo é verdadeiro se tomado em sua primeira
proposição. Maquetes perfeitas, truques “invisíveis”, luz
artiicial aplicada em grande escala, Cabíria é, de fato, um
“luxuoso catálogo de profecias cinematográicas”. Com
algumas de suas melhores páginas escritas pela câmera
do “imperador dos truques”, Segundo de Chomón.
Referências
189
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
NARRATIVIDADE E TEMPORALIDADE: O
SI-MESMO COMO UM TEXTO
João B. Botton
190
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
identidade numérica, identidade qualitativa, identidade
como continuidade e como princípio de permanência se
enxertam na problemática do reconhecimento relexivo, ou
melhor, do sentido dos atos pelos quais o que está em jogo
na identiicação, um si-mesmo, a pessoa propriamente
dita, é capaz de se dar à identiicação e de reconhecer-se
como a mesma.
O que ica implícito aqui é que se esta conferindo
à pessoa um estatuto ontológico radicalmente distinto
do da coisa e que esse estatuto depende do seu modo
próprio de temporalização: poder-se-ia dizer que as coisa
simplesmente duram e perecem enquanto a pessoa se faz
ela própria temporalidade, por isso a questão da identidade
aqui envolve muito mais do que um conjunto de operações
de identiicação ou individuação.
É precisamente a má compreensão da questão da
temporalidade - má compreensão que tendeu a ignorar
a diferença entre o tempo da coisa e a temporalidade da
pessoa, forçando à redução desta àquele - o motivo da
necessidade de formulação de um conceito de identidade
em termos narrativos. Pois a operação narrativa mostra
uma dimensão do tempo que está para além do cronológico,
ou cronométrico, embora não lhe seja alheia.
Amiúde, é em torno do tempo que giram todos
os problemas relativos à identidade: o transcurso do
tempo como fator de dessemelhança, de alteração,
de transformação, de corrupção, como um desaio às
operações de identiicação. Por isso a tese que sustenta
a teoria da identidade narrativa é a de que as operações
191
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de estruturação narrativa correspondem às estruturas da
temporalidade e nessa medida respondem às aporias
inerentes à sua organização. Em dois níveis diferentes: 1)
o tempo tomado como o conjunto sucessivo de instantes
não constitui problema se nossos relógios funcionam,
mas a temporalidade se torna problemática quando se
trata de coordenar de modo inteligível, ou seja, de modo
signiicativo para nós, as três dimensões temporais que
constituem a experiência do tempo: passado, presente e
futuro - a psicanálise investiga à poria as consequências
dessa diiculdade sob a forma da patologia psíquica; 2)
em um segundo nível, o próprio tempo objetivo, torna-
se problemático quando se trata de coordenar a vivência
intima do tempo com o tempo do relógio, quando se trata
de coordenar o sentido do luxo do tempo, do passado ao
futuro através do presente, com a ocorrência objetiva dos
fenômenos determinados pelos expedientes de datação
que nos permitem “contar o tempo”. Ou seja, a experiência
intima do tempo extrapola a cronologia temporal e por
vezes até a abole, e, em sentido inverso, os aspectos
cronológicos do tempo diicilmente se coordenam
completamente à experiência da vivencia temporal. A
história da ilosoia mostra isso muito bem: da Física de
Aristóteles às Lições sobre a consciência intima do tempo
de Husser, a especulação que se ocupou de uma das
problemáticas só o pode fazer por exclusão expressa
da outra. Mesmo Heidegger ao pretender dar conta da
experiência integral do tempo só o pode fazer relegando
o tempo do calendário ao inautêntico. É o que pretende
192
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mostrar o terceiro e mais volumoso tomo de Tempo e
Narativa (1985).
É a propósito do segundo nível de aporicidade, mas
pela articulação do primeiro, que a questão da identidade
em termos narrativos ganha lugar. Ela surge como a grande
solução aos paradoxos da temporalidade ao coordenar as
duas perspectivas da especulação que icavam até então
desarranjadas de um ponto de vista teórico: ao versar sobre
um personagem a narração faz convergir simultaneamente
os elementos objetiváveis que instituem a ixação da ação
em uma ordem de sucessão e os elementos de sentido que
coniguram a narração em uma totalidade inteligível; pela
concorrência desses elementos, o personagem extrai sua
identidade ao longo da narração. E é precisamente esse
poder de composição atribuído à narração que permite
conceber a questão da identidade ao mesmo tempo do
ponto de vista das operações de identiicação de uma
entidade em suas ocorrências distintas e da perspectiva
do sentido da totalidade temporal que a duração dessas
ocorrências desenha.
Primeira objeção
193
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e dispersão episódica: as crônicas nacionais em geral,
a telenovela, os contos de fadas, enim, todos os modos
de narrar em que a identidade do personagem é mantida
pela denegação calculada de todos os possíveis efeitos
perturbadores. A identidade pessoal assim concebida
não seria, então, outra coisa senão o efeito violento do
artifício literário sobre a vida. Ainal, se se considera a
ininita exploração das possibilidades de expedientes de
narração, sobretudo na literatura que se fez depois de
Kafka, o caso parece ser o contrario do pretendido pela tese
de Ricoeur. Parece conirmada exatamente a fragilidade e
mesmo a impossibilidade da identidade em sentido forte.
Essas formas narrativas que perderam a ingenuidade da
necessidade de coesão do sentido efetivamente parecem
corresponder e mesmo multiplicar os paradoxos da
temporalidade antes que resolvê-los.
Mas a questão é mais sutil, não se trata de dizer
que em todo caso a questão da identidade da pessoa ou
do personagem possa ou deva comportar uma resposta
positiva, trata-se, no entanto, de dizer que em todo caso
essa questão é de importância capital, ainda que por vezes
ique sem resposta. Seria inclusive possível advogar que
grande parte do nosso interesse pelas narrativas que
escapam ao controle da coesão reside na imposição
latente dessa questão sob o modo problemático.
O que a narração faz, muito mais do que
simplesmente responder pela identidade de um
personagem determinado é problematizar a questão como
tal pelo exercício de composição variável entre as duas
194
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dimensões de aporicidade da temporalidade e as duas
componentes da questão da identidade: compondo a
problemática da distensão temporal e a problemática da
coordenação da vivencia do tempo com a temporalidade
objetiicada a narração toma conjuntamente e faz
indissociáveis a problemática do sentido da identidade.
Ainal, quando se pergunta: “Quem é o personagem fulano
de tal?”, o que se busca é mais do que uma descrição
deinida como: “o homem que combatia moinhos de vento”.
Busca-se, antes, as características que ligam o nome
próprio à uma existência singular. Por isso a resposta à
pergunta depende da leitura da obra inteira que exibe essa
existência singular como totalidade temporal.
O que Ricoeur pretende pelos recursos de
esclarecimento que a narração aporta a nossa confusa
experiência do tempo é mostrar que a despeito de certo
modo de pensar cotidiano, uma e outra das problemáticas
que estão ligadas a identidade não podem icar isoladas,
sob pena de não corresponder ao estatuto ontológico da
pessoa.
É aqui que os modelos narrativos que mais se
afastam dos paradigmas da coesão e inteligibilidade se
tornam interessantes para a questão da identidade. É certo
que esses casos impressionantes em que o personagem
parece reduzido à igura negativa da subjetividade
pertencem mais ao imaginário literário, aqui a serviço da
ilosoia, do que à experiência viva. No entanto, isso não
signiica conferir-lhes somente uma importância heurística;
longe disso, eles são, antes, um expediente em função
195
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
da autêntica compreensão de si, desde que revelam a
ambiguidade da relação de “posse” do que, em cada caso,
nos é considerado mais próprio, as “qualidades” pelas
quais nos são adscritas características identiicantes.
Em outras palavras, o que essa possibilidade
de variação extrema no regime da composição que um
momento de desapossamento de si é essencial à autêntica
compreensão de si.177 O que essas experiências literárias
por vezes aterradoras sobre a identidade fazem é um
convite a narrar-mo-nos de modo diferente, e, portanto,
a nos compreendermos diferentemente, alertando para o
risco da compreensão egocêntrica ou alienante de si.
Segunda objeção
198
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
narrativa, a iniciativa capaz de instaurar um novo curso
de ação compromete o indivíduo com as consequências
dessa ação e o engaja em um curso de vida, ixando a
identidade. Distingue-se assim o componente ético e o
componente narrativo da identidade e faz-se recair sobre
o primeiro a força estabilizadora da identidade quando nos
faltam os recursos da coniguração.
Tendemos a aceitar esse tipo de argumentação
quanto menos estivermos dispostos a identiicar a vida aos
expedientes iccionais de coniguração. No entanto, mais
uma vez, as variações imaginativas que experimentamos
na literatura põem a prova os modelos de inteligibilidade
que adotamos para a vida.
Na literatura ao menos, onde a hipótese da
dissolução do sujeito é tornada pensável, o apagamento
de si parece ser paralelo à debilidade do poder de
engajamento moral. Na obra de
Musil, por exemplo, somente vê-se o “início de uma moral
do homem sem qualidades”,182 à medida que se sucedem as
tentativas de Ulrich tornar-se um homem com qualidades,
em contrapartida Ulrich passa a se acostumar com a
falta de unidade da moral ao aceitar-se um homem sem
qualidades. A dissolução da identidade do personagem
de Musil parece em tudo paralela à dissolução de sua
capacidade de engajamento em um curso de ação. E não
poderíamos dizer o mesmo de Oliveira, o argentino que
Cortazar faz errar indeinidamente em Paris? Ainal, por
que meios nos sentiríamos moralmente engajados se não
200
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências
201
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LITERATURA E MILITÂNCIA: O ESCRITOR
BRASILEIRO E SEU OFÍCIO EM SOCIEDADE
NAS DÉCADAS DE 1930-1950
“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma / e que você não
pode vender no mercado / como, por exemplo, o coração
verde / dos pássaros / serve pra poesia”.183 Para Manoel
de Barros, é do reino da poesia – e, creio, da arte de modo
geral – tudo o que no mundo objetivo foi descartado como
sem inalidade, por não ser comercializável ou aproveitável
em qualquer outro nível utilitário. Esse parece ser um dos
aspectos a primeiro deinir o artista: sua especial afeição
por aquilo que é sem valor material ou útil, ou talvez, mais
precisamente, sua atitude diante de todas as coisas, que
não é a de atribuir utilidade ou funcionalidade a elas, mas
de contemplá-las, e esse estar diante delas constitui, por
excelência, o seu papel.
Como na fábula da cigarra e da formiga, em
que a primeira, ociosa, passa seus dias a cantar, e a
183 BARROS. Matéria de Poesia, p. 12
202
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
segunda, obreira, aprovisiona alimento para o inverno,
o artista é – como se convencionou entendê-lo – aquele
que, impenitentemente, ocupa-se da beleza, enquanto o
homem do mundo, o burguês civil e tributável, está inscrito
na ética capitalista do trabalho e movimenta a engrenagem
econômica.
Ambos, homem prático e homem de contemplação
entesouram capital. O primeiro, monetário, quantiicável;
o segundo, estético, imponderável. O que os distingue
fundamentalmente está associado ao que, para Olavo
de Carvalho, é expresso pela antinomia theoria X práxis,
referentes à atitude de cada uma frente a seu objeto.
Enquanto a theoria vê no objeto sua essência, ou arquétipo,
à qual subjazem inúmeras possibilidades (exemplo: o
arquétipo de mesa pode realizar-se em uma mesa de
mármore, madeira, vidro etc.), a práxis prioriza a forma
imediata assumida pelo objeto, excluindo todas as outras.
Mais importante, “a theoria se interessa pelo que um ente
é em si”, na sua integridade ontológica, de maneira que ele
não é mero meio, mas seu im. A práxis, em contraparte,
“se interessa pelo que ele não é”, ao buscar transformá-lo
em outra coisa, destinada ao uso.184 Em outras palavras,
a theoria contempla o objeto, de maneira ilosóica, já que
busca captar sua essência; a práxis, por sua vez, quer
transformá-lo em utilidade. Por exemplo, a atitude teorética
apreciaria a lor pelo que é, seu encanto, cor e perfume; a
prática a converteria em cosmético.
A distinção entre theoria e práxis está no centro do
204
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
encenam não poderia sobreviver.185
ESCREVER X TRABALHAR
206
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Agora mesmo estou estendido e por
isso que escrevendo a lápis. Só me
levanto mesmo por causa de alguma
lição mais bem remunerada. Estou
carecendo de arames pra pagar o
médico... Então me levanto, ganho um
pouco e zaz! cama outra vez...”187
209
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
linguística, crítica histórica e alta política no Brasil, com, de
outro lado, o farto cultivo do romance e da poesia lírica,189
uma assimetria possivelmente reveladora da escassez de
lugares de relexão no país a respeito de temas formadores
da cultura, em que está incluído o próprio Brasil. Assim,
argumento que restava ao romance – estimado no Brasil
como a forma literária por excelência, ou a própria literatura
– a tarefa de meditar sobre o país, reletir a respeito de sua
formação histórica, conjeturar os rumos futuros, além de
apontar as feridas da sociedade.
Para Silviano Santiago, a necessidade de pensar o
Brasil, de formar a identidade nacional e corrigir a realidade
estorva assinaladamente a liberdade literária:
LITERATURA INCUMBIDA
219
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que importa é aquela a que as palavras dão vida e as
personagens, corpo e voz.
Exemplar dessa consciência sobre o papel da
literatura em um escritor, no Brasil, é Carlos Drummond de
Andrade. Na crônica “Divagações sobre as ilhas”, publicada
na década de 1950 no Correio da Manhã, põe-se a salvo de
eventuais acusações de covardia e abstenção ao escolher
por seu lócus discursivo uma antiutópica ilha, meio-termo
entre evasão e presença, longe o suiciente para preservá-
lo das inconveniências exteriores, perto o bastante para
que pudesse contemplar a paisagem circundante:
223
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
literatura brasileira, com a sintonia com a renovação
estética empreendida pelas vanguardas, e para a
consolidação do estatuto da modernidade no Brasil a
partir de uma tomada de consciência da ausência de um
caráter na cultura e no homem brasileiro, representada em
Macunaíma, o livro não existe como icção independente –
ou “caso inventado”, nas palavras de Mário – e diicilmente
pode ser lido de forma descontextualizada, sem evocar os
muito particulares caminhos da formação histórica, social
e cultural do Brasil. No processo de composição, Mário
procedeu de modo a criar uma mistura de elementos
culturais tipicamente brasileiros, ou seja, ligados às muitas
e diversas tradições populares que povoam o celeiro
cultural brasileiro, as quais icaram silenciadas sob as
tradições do homem branco. Para lograr o que pretendia
com a obra, Mário se serve das inúmeras viagens que fez
pelo Brasil, conforme o propósito modernista de desvendá-
lo. Em carta de 1927 a Luís da Câmara Cascudo, o escritor
assim explica o empreendimento:
224
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
quase sempre lendário porém como
lenda de índio e negro. O livro quase
que não tem nenhum caso inventado
por mim, tudo são lendas que relato. Só
uma descrição de macumba carioca,
uma carta escrita por Macunaíma e
uns dois ou três passos do livro são
de invenção minha, o resto tudo são
lendas relatadas tais como são ou
adaptadas ao momento do livro com
pequenos desvios de intenção. [...] Um
dos meus cuidados foi tirar a geograia
do livro. Misturei completamente o
Brasil inteirinho como tem sido minha
preocupação desde que intentei me
abrasileirar e trabalhar o material
brasileiro. Tenho muito medo de icar
regionalista e me exotizar pro resto
do Brasil. Assim lenda do Norte botei
no Sul, misturo palavras gaúchas com
modismos nordestinos ponho plantas
do Sul no Norte e animais do Norte
no Sul etc. etc. Enim é um livro bem
tendenciosamente brasileiro.204
227
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
— Maria, o que ‘ocê tem! você está
cansada, não!...e segurou-a pelos
braços lhe soerguendo um bocado
o busto, que ela largara sobre as
ancas, acentuando ainda mais a sua
incorreção de mulher um bocado
baixa.206
230
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
contrário, perde-se “o io da meada”, e a cadência do texto
pode ser comprometida.
No trecho citado a seguir, Mário de Andrade medita
sobre o tema, a propósito da progressão de Quatro
pessoas, e corrobora essa visão:
Oneida
Estou com preguiça de escrever à
máquina mais hoje. Batia máquina o
dia inteiro e avancei inesperadamente
doze páginas no meu romance que
não há meios de avançar, tempo não
chega. Estou apenas na p. 27, tipo
ofício, datilografado, isto é, pra aí umas
50 páginas de impressão. Acabei o I
capítulo. Não sei se estará bom, é uma
coisa louca, uma análise psicológica
feroz. Duvido que alguém aguente e, o
pior, duvido que seja qualquer coisa de
bom. Mas é desses livros que o milhor,
se acabar, é não pedir a opinião de
ninguém, ou publicar ou destruir, mas
por conta própria, sem me garantir
de ninguém. Estou numa inquietação
horrível, e isso ainda maltrata mais o
avanço do livro, porque quando penso
em escrever me sinto sem força,
sem coragem pra perder tempo com
uma possível borracheira longa. Um
poema, até um conto, ainda a gente
não se inquieta de escrever e jogar
fora, mas um romance inteirinho, é
horrível, minha amiga.209
232
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de sentimentalismo fácil que uma
honestidade mais atenta não me
permitiria publicar. [...]
Outra obra que me deu desgostos
foi o Macunaíma. Sinto que tive
nas mãos o material de uma obra-
prima e o estraguei. Fazendo obra
sistematicamente de experimentação,
jurei no princípio de minha vida
literária jamais não me queixar
das incompreensões alheias. Acho
ridículos os incompreendidos. Mas,
por uma só vez, me seja permitido
airmar que esse livro foi, no
geral, apreciado por uma feridora
incompreensão. Embora graciosa
porém não complacentemente tratado,
Macunaíma é uma sátira irritada, por
muitas vezes feroz. Mas brasileiro
não compreende sátira, em vez, acha
engraçado.210
CONSIDERAÇÕES FINAIS
234
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
marim”. Habitando-a, ele não se converte em um inquilino
do sublime; a torre é a trincheira de onde deve combater
como lhe é mais natural: com palavras. As mesmas
mãos que, dispensadas de sujarem-se com a política dos
homens, encontrarão na torre a situação de liberdade ideal
à escrita:
235
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Airmar que a literatura – a arte da icção – não tem o
encargo de “salvar o mundo”, pela tematização do social,
não corresponde à defesa, para o escritor, do “não-
me-amolismo”, ou do alheamento aos problemas que
concernem à coletividade em seu tempo-espaço. Antes,
signiica reconhecer que a literatura, indiferentemente de
possuir ou não uma coloração ideológica, deine-se pelo
caráter imaginativo e por suas especiicidades enquanto
linguagem artística. Em outras palavras: ideologia por
ideologia faz panleto, mas não necessariamente arte. À
guisa de conclusão, sobre o vezo, na obra literária, de
explicar e analisar, em detrimento da fabulação, Isaac
Bashevis Singer sentencia: “A busca da mensagem fez
muitos escritores esquecerem que contar histórias é a
raison d’être da prosa artística.”
Referências
236
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ANDRADE, Mário de. Quatro pessoas. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1985. (Coleção Buriti)
ANDRADE, Mário de. Começo de crítica. In: SACHS, Sonia
(Org.). Vida literária. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993.
ANDRADE, Mário de. Carta de 29 de outubro de 1926. In:
MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Mário, Otávio: Cartas
de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite. São Paulo:
IMESP, 2006.
ANDRADE, Mário de. Carta de 26 de novembro de 1925.
In: MORAES, Marcos Antonio de (Org.). Câmara Cascudo
e Mário de Andrade: cartas, 1924-1944. São Paulo: Global,
2010. p. 75.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: ______.
Obras completas de Machado de Assis. São Paulo: Nova
Aguilar, 2000. v. 3.
BARROS, Manoel. Matéria de poesia. In: ______. Matéria
de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2001.
CARVALHO, Olavo de. O jardim das alições. 2. ed. São
Paulo: É Realizações, 2000.
FERNANDES, Karina Pinheiro. O povo é arte: as
ilustrações em periódicos do PCB e o realismo socialista
no Brasil. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26.,
2011, São Paulo. Anais do XXVI simpósio nacional da
ANPUH - Associação Nacional de História. São Paulo:
ANPUH-SP, 2011. Disponível em: <https://docs.google.
com/ile/d/0B8_gvWjrwU3ZdnZRa09rbTlrLVk/edit?pli=1>.
Acesso em: 27 mar. 2014.
FREITAS, Marcus Vinícius. A Literatura e os Ofícios. In:
SEMINÁRIO ARTE EDUCAÇÃO, MUSEU DE ARTES E
OFÍCIOS, Belo Horizonte, 9 novembro 2006.
237
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Patrulhas ideológicas:
arte e engajamento em debate. Rio de Janeiro: Brasiliense,
1980.
MICELI, Sérgio. Os intelectuais e a classe dirigente no
Brasil (1920-1945). São Paulo; Rio de Janeiro: Difel, 1979.
SANTIAGO, Silviano. A atração do mundo: políticas de
globalização e de identidade na moderna cultura brasileira.
In: ______. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.
SANTIAGO, Silviano. O intelectual modernsita revisitado.
In: ________. Nas malhas da letra: ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? 3. ed. Tradução
de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1999.
SINGER, Isaac Bashevis. 47 contos. Tradução de José
Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SOUZA, Eneida Maria de. Autoicções de Mário. In: ______.
A pedra mágica do discurso. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.
238
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
239
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CONTROLE DO IMAGINÁRIO E FICÇÃO: O
VAZIO COMO CATEGORIA CENTRAL DA
FICCIONALIDADE LITERÁRIA
250
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A EXPRESSÃO E A LINGUAGEM
CARNALIZADA DE MAURA LOPES
CANÇADO EM HOSPÍCIO É DEUS
251
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Pelo fato de a narrativa de Hospício é deus favorecer
o deslizamento entre Maura autora e Maura narradora
no discurso, seu relato situa-se na fronteira híbrida
da autobiograia e da icção, abarcando o conceito de
autoicção construído por Serge Doubrovsky. Em Fils, 1977,
este autor airma que no discurso autoiccional o escritor
estabelece um pacto oxímoro com o leitor, e este, por sua
vez, levanta o questionamento sobre a identidade real do
sujeito, estabelecendo a dupla recepção da obra – iccional
e autobiográica. Entende-se, com isso, que a narrativa de
Hospício é deus, caracterizada como autoiccional por ser
de cunho íntimo, não está afastada do real, pois Maura é
afetada pelos acontecimentos sociais na sua interioridade,
repercutindo, assim, na escrita, suas dores, frustrações,
alegrias e anseios. Esse tipo de narrativa, que surge no
inal do século XIX e ganha espaço com novas roupagens
em sua estrutura nos anos 1960, enfrenta barreiras para
ser classiicada como fazer literário pela análise crítica.
Compreende-se que autoicção não constitui gênero
especíico, por transcender o pacto autobiográico entre a
vida da autora e a idelidade do fato narrado, pois podem
fazer referência a uma suposta realidade. Doubrovsky vai
deinir a escrita autoiccional como versão pós-moderna
da autobiograia, uma vez que há uma ambivalência do
sujeito e deslizamento do vivido, mesclando os gêneros
referencial e iccional, ou seja, romance e autobiograia,
verdade e invenção. Embora encontre o registro de
datas, Hospício é deus é uma escrita do presente, em
que não se constrói uma recapitulação histórica e iel dos
252
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
acontecimentos, mas, sim, uma atualização dos fatos, com
novas possibilidades de criação. Segundo Doubrovsky,
Referências
266
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da
percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
4 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. A carnalidade
da relexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São
Leopoldo(RS): Nova Harmonia, 2009.
267
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A MULTIPLICIDADE NA OBRA
COSMOCOCA - PROGRAMA
IN PROGRESS
268
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
oferecida, a imagem em movimento inserida no circuito
da arte, por outro lado, oferece uma nova temporalidade
que é inerente à obra em si, por meio, muitas vezes, de
narrativas fragmentadas, mas também por meio da relação
espacial mais livre – que diferencia-se da imersão. Em um
galeria de arte, a duração do ato de assistir é determinada
pelo espectador e não pela obra. A ele também é oferecida
maior abertura espacial no sentido de, algumas vezes, não
serem dispostas cadeiras enileiradas e direcionadas à
tela. A relação que o espectador – ou participante, como
foi chamado por Oiticica e D’Almeida – tem com a obra é,
em si, mais fragmentada.
É sobre esta liberdade que o “quasi” diz. Os autores
das CCs frisavam o fato dos blocos serem um programa
e não um projeto, já que o primeiro termo remeteria
a proposições experimentáveis que não remetem à
previsibilidade ou à antecipação do tempo, refutando a
ideia da projeção temporal, inerente à própria etimologia
da palavra projeção: algo que prevê um lançamento,
antecipa o futuro, compreendendo o tempo como uma
seta. De acordo com a raiz latina da expressão projicere,
que, em italiano, por exemplo, é progettare, podemos
pensar em uma pró-getação, em que está implícita a
noção da pre-visão, do vislumbramento do por-vir, em
uma temporalização que tenta antecipar o futuro, antever
o acontecimento, o destino ou pouso de algo ainda está
por ser lançado. “Projeto associa-se a visões utópicas de
construção de um futuro. Programas não idealizam ações
269
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e obras para o futuro, mas anunciam a experimentação.”251
Ou seja, era uma preocupação de Oiticica e D’Almeida
que a obra não constituísse uma narrativa linear,
sequencial e histórica, mas que elidisse, esteticamente,
em contrapartida, a formação de discursos dominantes.
Em outras palavras, que não izesse parte da constituição
da história dos res gestae – os Feitos Ilustres.
De acordo com o ilósofo italiano Giorgio
Agamben, as transformações culturais estão atreladas
às transformações sobre a representação temporal.
Enquanto compreendermos o tempo como uma sucessão
contínua de instantes conforme um antes e um depois,
existirá sempre uma incongruência e um hiato entre a
representação temporal e a nossa experiência que dele
fazemos, não sendo então possível construirmo-nos como
seres autênticos.252 É a esta concepção de linearidade que
se distancia a ideia do programa Cosmococa que propõe,
por sua vez, relações outras com o tempo que não seja o
encadeamento sequencial de ações.
Como vimos, nas CCs somos convidados a
desvincularmo-nos da temporalização do tempo desde o
contato com seu título que privilegia o caráter experimental
dos programas em detrimento do planejamento futuro dos
projetos. Os espectadores são convidados a participarem
do programa, experimentando a multisensorialidade para
além da experiência multimídia, mediada e em contato
251 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress:
heterotopia de guerra.
252 AGAMBEN. Infância e história: destruição da
experiência e origem da história.
270
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
com o próprio corpo, de modo i-mediato. Para isso, antes
de entrar nos blocos, os participantes devem, por exemplo,
retirar os sapatos.
Em seu pavilhão, as CCs são apresentadas por
ichas técnicas que contém indicações sobre a trilha sonora
e sugestões de ações a serem desenvolvidas durante a
fruição. As imagens projetadas são slides, fotograias de
desenhos feitos por carreiras de cocaína em capas de
discos ou livros. Os artistas, que foram usuários sem culpa
da cocaína, faziam dela também uso estético, remetendo
ao ócio.
274
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
altera [o calendário] e o destrói.259
Referências
279
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Cosmococa - programa
in progress: heterotopia de guerra. Fórum Permanente,
2007. Edição especial organizada por Martin Grossmann.
Disponível em: <http://www.forumpermanente.org/.painel/
coletanea_ho/ho_bia_carneiro/>. Acesso em: 06 maio
2012.
CERA, Flávia. Evang’Hélio. 2012. Disponível em:
<http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/2012/03/
evanghelio.html>. Acesso em: 16 mar. 2012.
COCCIA, Emanuele. “Inobedientia”: il peccato di Adamo
e l’antropologia giudaico-cristiana. Filosoia Politica,
Bologna, v. 22, n. 1, 2008.
DANTO, Arthur. Após o im da arte: a arte contemporânea e
os limites da história. São Paulo: Odysseus; Edusp, 2006.
DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de
controle. In: ______. Conversações: 1972-1990. Tradução
de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p.
219-226.
HUCHET, Stéphane. A “elasticidade” da arte para com a
política: breves bases críticas. In: COLÓQUIO DO COMITÊ
BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 30., 2010, Rio de
Janeiro. Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de
História da Arte. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas
Artes; Petrópolis: Museu Imperial, 2010. p. 1095-1101.
Disponível em: <http://www.cbha.art.br/coloquios/2010/
anais/site/pdf/cbha_2010_huchet_st%C3%A9phane_art.
pdf>. Acesso em: 03 abr. 2012.
MELLO, Christine. Experiências com o vídeo no Brasil anos
1950-60: Carvalho, Oiticica e Duke Lee. In: COLÓQUIO
DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 30.,
2010, Rio de Janeiro. Anais do XXX Colóquio do Comitê
Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: Museu
Nacional de Belas Artes; Petrópolis: Museu Imperial,
2010. p. 921-927. Disponível em: <http://www.cbha.
280
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
art.br/coloquios/2010/anais/site/pdf/cbha_2010_mello_
christine_art.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2012.
O ABECEDÁRIO de Gilles Deleuze. Produção: Pierre-
André Boutang. Paris: Editions Mont Parnasse, 2004. 1
DVD (450 min.), son., color. Disponível em: <http://www.
youtube.com/watch?v=-MQWTaHAf0c&feature=relmfu>.
Acesso em: 04 jun. 2012.
TEMPO: o eterno movimento. Direção: Dean Love. São
Paulo: Discovery Channel Video; Abril Video, 1994. Super
Interessante Coleções. 1 VHS (50 min.), son., color.
281
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A POESIA AUTORAL COMO VEÍCULO DE
COMPOSIÇÃO CÊNICA: UMA EXPERIÊNCIA
DE DRAMATURGIA DE ATOR
REVOLUÇÕES NA CENA
EVOLUÇÃO DO PAPEL
OS ACTANTES E O ATOR-COMPOSITOR
A POESIA E O TEATRO
299
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
REFERÊNCIAS
301
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
APONTAMENTOS SOBRE A CRÍTICA
LITERÁRIA A HOMERO NO TRATADO
SOBRE O ESTILO DE DEMÉTRIO290
308 § 61.
312
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de Homero revelam ainda outro traço notório de sua crítica
ao poeta. Reiro-me à capacidade que atribui a este último
de fazer com que assuntos a priori de pouca relevância
tornem-se grandiosos,309 como pode ser notado nos
parágrafos 54 e 61, mencionados anteriormente, os quais
tratam, em um primeiro momento, dos versos da Ilíada
que indicam o nome das cidades beócias e, depois, da
personagem de Nireu.
No primeiro caso, as cidades, embora comuns e
irrelevantes, adquiririam volume e grandeza nos versos do
poeta; no segundo, um personagem considerado pouco
relevante, graças ao engenho de Homero no emprego
dos recursos estilísticos, teria se tornado grande, e seus
bens, antes poucos, numerosos. Vale ressaltar que o
poder da igura nos versos referentes a Nireu é a tal ponto
sobrevalorizado que, no parágrafo subsequente, Demétrio
chega a propor que, mesmo tendo sido nomeado uma única
vez na ação, essa personagem menor seria lembrada por
nós tanto quanto Odisseu ou Aquiles.
Ainda outro aspecto dessa crítica, digno de nota,
é o de reportar-se à engenhosidade do poeta em lançar
mão de determinados recursos para transmitir emoção
(páthos). Um desses recursos diz respeito ao uso das
partículas expletivas; de fato, no parágrafo 56, esse uso é
abordado simplesmente como um fator de grandiosidade,
309 Embora isso represente uma contradição com a
forma adequada de tratar questões irrelevantes de modo
irrelevante e as grandiosas com grandiosidade, expressa no
parágrafo 120 (cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um
olhar crítico sobre a Literatura Grega, cap. 2).
313
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mas, no parágrafo seguinte, é tratado como um elemento
patético (pathetikós), na conhecida fala de Calipso a
Odisseu na Odisséia, V, 203- 204: “Descendente de Zeus,
ilho de Laertes, multifacetado Odisseu/ Assim, então, para
casa, para a querida terra paterna?”
O emprego da partícula, no caso, dḗ (então), é
de tal modo valorizado pelo autor do PH que a ausência
dela signiicaria a perda de toda a emoção, lembrando que
partículas como essa assumiriam o lugar de murmúrios e
lástimas, próprias de expressões como o aí, aí (ai, ai!),
pheû (ó!), dentre outras. Também um recurso ligado ao
patético em Homero, e assinalado por Demétrio, seria
a criação de palavras. Por seu caráter mimético, essas
palavras exprimiriam uma emoção (páthos) ou uma ação
(prâgma), conforme se veriica em dois termos extraídos
da obra do poeta: um, da Odisséia, IX, 394: síze (chiou); e
o outro, da Ilíada XVI, 161: láptontes (lambendo).310
Mas há ainda um detalhe na crítica de Demétrio
a Homero que não deve passar despercebido. Apesar do
tom elogioso com que o poeta é tratado em praticamente
toda a obra, ele não escapa também à censura, e isso
ocorre precisamente em duas passagens. Uma delas, no
parágrafo 83, em que a metáfora da Ilíada, XXI, 388 (“E,
ao redor, trombeteou o vasto céu”) é tratada como um
fator de irrelevância mais do que de grandeza, mesmo que
empregada para conferir volume ao enunciado. E a outra,
no parágrafo 124, em que se discute a frieza da hipérbole,
315
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
despertar”.
A temática graciosa é, pois, notada, nesses versos,
na presença do rouxinol e da primavera, mas, além disso,
Demétrio salienta que muito adorno é acrescido quando
se aplicam os termos “menina de Pandáreo” a um pássaro
ou pelo emprego do adjetivo khlōrēïs (do verdor da
mata), palavra de destacada beleza, dada a sua raridade,
conforme se nota mais a frente, no parágrafo 164.
Aliás, nesse mesmo parágrafo, podemos ainda
perceber outra faceta do poeta revelada pela crítica de
Demétrio. Nessa oportunidade, as chamadas “belas
palavras” (kalá onómata), apresentadas como as principais
responsáveis pela graciosidade do estilo e que têm como
exemplo a acima mencionada, contrapõem-se às ditas
“comuns e mais conhecidas” (eutelē kaí koinótera), as
quais, por sua vez, estão ligadas diretamente ao cômico,
o que, ao certo, constitui um exemplo da contraposição
sinalizada no parágrafo anterior entre o elemento risível
(tò géloion) e o gracioso (tò eúkhari). A este, então,
teríamos associados assuntos como os jardins das ninfas,
amores, enim, aqueles sobre os quais não se ri, mas ao
primeiro (ao cômico) se associariam de forma exemplar
duas personagens, justamente, da obra de Homero:
Iro e Tersites. E, assim, a versatilidade do poeta se faz
notar em sua capacidade de, ao lado de temas de inteira
graciosidade, retratar de forma cômica o ridículo.
Mas além dessa graciosidade e, por vezes, do
traço cômico presente em alguns momentos de sua obra,
Homero é também reconhecido pela simplicidade. Nos
316
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
parágrafos 209 e 210, por exemplo, o poeta se sobressai
por sua precisão (akribología), a qual resulta, por sua vez,
na chamada “evidência” (enárgeia), atributo estreitamente
ligado ao estilo simples. A esse respeito, é lembrada a
passagem do poeta na Ilíada, XIII, 379-381: pnoiḗi d’
Eumḗloio metáphrenon,/aiei gàr díphrou epibēsoménoisin
eïktēn (no arfar, as espáduas de Eumelo,/ parecia, a todo
instante, que ambos iam subir no carro).
E a evidência (enárgeia) será ainda mencionada
como uma virtude do poeta no parágrafo 219, mas, dessa
vez, em razão do uso da cacofonia, recurso exempliicado
em dois de seus versos: na Odisseia, IX, 290: kópt’ ek
d’enképhalos (chocou e da cabeça os miolos),311 e na
Ilíada, XXIII, 116: pollà d’ánanta, kátanta (muitas vezes
acima, abaixo).
Já no parágrafo seguinte, a evidência será
veriicada em Homero no emprego das palavras criadas (tà
pepoiēména onómata), as quais trazem consigo a imitação
daquilo que exprimem, e, como exemplo, teríamos o termo
láptontes (lambendo), da Ilíada, XVI, 161, que reproduz
a ação de lobos bebendo – embora o autor do PH diga
que se trate de “cães” (kýnes) –, ao qual antepor-se-ia
também o termo glṓssēissi (línguas), que tornaria ainda
mais evidente o discurso.
E, como não poderia deixar de ser, o poeta também
é lembrado pela veemência de alguns de seus versos.
É o que podemos veriicar naquele da Ilíada, XII, 208:
311 Acerca da cacofonia nesses versos, cf. FREITAS,
Sobre o estilo de Demétrio: um olhar crítico sobre a
Literatura Grega, no tópico 3.4.1.1.
317
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Trōes d’errígēsan, hópōs ídon aiólon óphin (Os troianos
arrepiaram-se quando viram a serpente de várias cores),
citado no parágrafo 255. Demétrio chega, inclusive, a
propor uma ‘solução’ mais eufônica para o hexâmetro,
mas, segundo ele próprio, ela não transmitiria o terror
experimentado pelo poeta e transmitido pela própria
serpente, uma vez que, do verso, seria retirada a cacofonia
requerida pelo assunto proposto.
E assim, inalmente, teríamos a passagem que
associa ainda o poeta ao tipo de estilo veemente e que
merece nossa última consideração. Trata-se do parágrafo
262, em que Demétrio aproxima a famosa fala do Ciclope
a Odisseu, presente na Odisseia, IX, 369 (“Ninguém vou
comer por último”), do chamado “modo cínico” (ho kynikós
trópos), descrito nos parágrafos precedentes.312
Ela se relaciona, pois, diretamente com outras
duas anteriores, dos parágrafos 130 e 152, revelando,
juntamente com essas, uma visão única no contexto da
crítica antiga. Nota-se, pois, nessas menções, traços
peculiares de uma acurada crítica literária. Nessa crítica,
como não poderia deixar de ser, enfatiza-se o horror da
personagem Polifemo, sua aparência e ações monstruosas.
No entanto, menções à famosa fala do Ciclope, nos versos
369 e 370,313 revelam mais do que isso: elas salientam o
caráter cômico da passagem. Indo além, esse caráter é
não apenas examinado da perspectiva do horror, mas
também apresentado como um elemento que o intensiica,
312 §259-262.
313 Odisseia, IX, 369-370.
318
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dentro de uma abordagem sem paralelo na crítica literária
da Antiguidade.314
Referências:
320
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MOXON, T.A. Aristotle’s Poetics; Demetrius on style.
London: Everyman’s Library, 1963.
NEVES, Maria Helena de Moura. A vertente grega da
gramática tradicional. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 1987.
MORPURGO-TAGLIABUE, G. Demetrio: dello stile. Roma:
Edizioni dell’Ateneo, 1980.
PERNOT, Laurent. La Rhétorique dans l’Antiquité. Paris:
Librairie Génerale Française, 2000.
ROBERTS, W. Rhys. Demetrius on style. Cambridge:
University Press, 1902.
SCHENKEVELD, D. M. The intended public of Demetrius’s
on style: the place of the treatise in the hellenistic
educacional system. Rhetorica. Leiden, v. 18, n. 1, p. 29-
48, Winter 2000.
SCHENKEVELD, D. M. Studies in Demetrius on style.
Amsterdam: A. Hakkert, 1964.
321
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
TRAUMA
Referências
327
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A imagem do autor: um estudo sobre
Gustave Flaubert
Introdução
Análise
Considerações inais
337
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação.
São Paulo: Cortez, 2001.
MAINGUENEAU, D. Ethos, cenograia, incorporação. In:
AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção do
ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92.
MAINGUENEAU, D. O discurso literário contra a literatura.
In: MELLO, R. (org.). Análise do Discurso & Literatura.
Belo Horizonte: NAD, 2005. p. 17-29.
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar
Edições, 2005.
MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo:
Contexto, 2006.
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A.
R.; SALGADO, L. Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto,
2008. p. 11-29.
MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do Discurso. In:
SIGNORINI, I. (org.). [Re] discutir texto, gênero e discurso.
São Paulo: Parábola, 2008. p. 135-155.
MAINGUENEAU, D. Doze Conceitos em Análise do
Discurso. São Paulo: Parábola, 2010.
MAINGUENEAU, D. Ethos literário, ethos publicitário e
apresentação de si. In: MACHADO, I. & MELLO, R. (orgs.).
Análises do Discurso Hoje vol. 3. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2010. p. 193-207.
MAINGUENEAU, D. Les phrases sans texte. Paris: Armand
Collin, 2012.
PATER, W. The Life and Letters of Gustave Flaubert.
In: BART, B. F (org.) Madame Bovary and the Critics: A
Collection of Essays. New York: New York University Press,
1966. p. 26-32.
PATER, W. Flaubert’s Literary Art. In: BART, B. F (org.)
338
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Madame Bovary and the Critics: A Collection of Essays.
New York: New York University Press, 1966. p. 33-39.
POYET, T. Madame Bovary: Le roman des Lettres. Paris:
L’Harmattan, 2007.
REY, P. -L.; SÉGINGER, G. (orgs.). Madame Bovary: et les
savoirs. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2009.
SARRAUTE, N. Nathalie Sarraute a réponse à tous. In: Le
Figaro, 1972.
SARRAUTE, N. Flaubert, le précurseur. In: ____. Œuvres
Complètes. Paris: Gallimard, 1996. p. 1621-1640.
SARTRE, J.-P. L’idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1971.
SARTRE, J.-P. Entretien à Catherine Clément et à Bernard
Pingaud. L’Arc. no. 79, Paris, 1980a, p. 33-37.
SARTRE, J.-P. Notes sur Madame Bovary. L’Arc. no. 79,
Paris, 1980b, p. 38-43.
339
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
340
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
A MULTIPLICIDADE DAS COISAS
POSSÍVEIS: LABIRINTOS DE JORGE LUIS
BORGES E ITALO CALVINO
352
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao ininito, não tem nem interior nem
exterior. Pode ser inito ou (contanto
que tenha possibilidade de expandir-
se) ininito. Em ambos os casos, dado
que cada um dos seus pontos pode
ser ligado a qualquer outro ponto, e
o processo de conexão é também
um processo contínuo de correção
das conexões, seria sempre ilimitado,
porque a sua estrutura seria sempre
diferente da que era um momento
antes e cada vez se poderia percorrê-
lo segundo linhas diferentes372.
354
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre
literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CALVINO, Italo. O desaio ao labirinto. In: _____. Assunto
encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 100-117.
CALVINO, Italo. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre
a narrativa como processo combinatório). In: _____.
Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 196-215.
CALVINO, Italo. La foresta-radice-labirinto. Milano: Oscar
Mondadori, 2011.
CANFIELD, Marta. Borges: del minotauro al signo
laberíntico. In: TORO, Alfonso de; REGAZZONI, Susanna.
El siglo de Borges: literatura, ciencia, ilosofía. Madrid:
Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuet, 1999. v. 2,
p. 67-76.
ECO, Umberto. O antiporfírio. In: _____. Sobre os espelhos
e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 316-341.
ECO, Umberto. Dall’albero al labirinto: studi storici sul
segno e l’interpretazione. Milano: Bompiani, 2007.
355
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
REGIONALIDADE: ENTRE A INFLUÊNCIA
FRANCESA E A BRASILIDADE
356
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
daqueles elementos capazes de expressar a unicidade
de determinado contexto social. Tomando a airmação do
professor José Clemente Pozenato, podemos constatar,
no Brasil, “a presença do regionalismo no movimento
romântico, no realista e no modernista: nos três momentos,
a tônica foi a vontade de fazer um levantamento de
características regionais, com vistas à constituição de uma
literatura ‘brasileira’”373. A ênfase dada pelo autor recai sobre
o adjetivo justamente devido à capacidade da corrente de
veicular as especiicidades locais, o que lhe garantiu por
muito tempo a função de ferramenta programática para
a consolidação dos anseios políticos da intelectualidade
nacional. Paradoxalmente, porém, enquanto por um
lado assegurou-lhe longevidade ao longo de variados
movimentos estéticos, por outro contribuiu para vinculá-
la negativamente a noções ufanistas e panletárias da
nacionalidade.
Não surpreende, portanto, que no ano de 1873
Machado de Assis tenha publicado no periódico O Novo
Mundo, em Nova Iorque, o clássico ensaio conhecido
como “Instinto de Nacionalidade”. Tal texto, nas palavras
de Maria Zilda Cury, tornou-se referência matricial “para
a relexão sobre a tradição e sobre os caminhos da
literatura nacional, entorno do dilema da assimilação do
modelo europeu, dos valores pretensamente universais
da modernidade e da obrigatoriedade de prover as obras
artísticas da ‘cor local’, que nos distinguiria enquanto
364
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Antes a conspurca e depaupera-lhe, estreitando por
demais o campo de manifestação e, por isto, a realidade. O
regionalismo é uma praga antinacional.”387. É signiicativo
que nesse mesmo momento de início do Modernismo
uma parcela da icção regional tenha recebido duras
críticas devido a suas inluências estrangeiras, já que
virá mormente da França o pensamento vanguardista
característico da arte modernista. Num movimento
complexo, o elemento europeu passa por pelo menos três
fases na conturbada existência do Regionalismo brasileiro:
de referencial fundador durante o Romantismo, torna-se
ameaça antinacional na virada do século, para inalmente
igurar com poder de libertação no Modernismo.
Como alternativas e possíveis caminhos para se
equacionar a questão podem contribuir as relexões de Lígia
Chiappini e Marisa Lajolo. Para Chiappini388, a crítica, diante
de obras que se enquadram na tendência regionalista, deve
indagar da função que a regionalidade exerce nelas, a im de
compreender como a arte da palavra sintetiza os espaços
regionais e lhes expande a signiicação simbólica. Sem
desconsiderar o contexto da época, mas lançando outras
luzes sobre as produções teóricas e literárias do período,
talvez se revelem possíveis tanto uma interpretação dos
sentidos que emergem daqueles debates, quanto uma
avaliação dentro de uma perspectiva mais ampla. Ainal,
conforme a lição de Santiago Nunes Ribeiro, referindo-se
387 ANDRADE apud CHIAPPINI. Velha praga?
Regionalismo literário brasileiro, p. 669.
388 CHIAPPINI. Do beco ao belo: dez teses sobre o
regionalismo na literatura, p. 158.
365
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao debate intelectual sobre o Arcadismo brasileiro ocorrido
durante o Romantismo, não se pode exigir de uma época
aquilo que não lhe é dado oferecer, não se pode cobrar de
um artista que sinta inspirações completamente diferentes
de seu tempo389. A partir disso, torna-se possível não só
entender porque tivemos a “praga antinacional” que tanto
importunou Mário de Andrade, como também porque
o Regionalismo se tornou paulatinamente identiicado
por essa alcunha, chegando mesmo ao ponto de atuar
como simples diferenciador entre literatura de boa e má
qualidade, como explica Marisa Lajolo390, em seu ensaio
intitulado “Regionalismo e história da literatura: quem é o
vilão da história?”.
Como outro caminho, então, Lajolo, ao inal do
trabalho mencionado, no qual procede a uma revisão
crítica das diversas posturas relativas ao Regionalismo em
nossa historiograia, expande o raciocínio para as letras
sul-americanas e anuncia uma posição teórica arrojada.
Assinala a possibilidade de as manifestações regionais
latino-americanas constituírem justamente a dissidência da
matriz europeia, através de uma articulação ao hibridismo
cultural do continente americano. Não obstante muito
incentivada quando do nascimento de nossas literaturas,
tal independência talvez tenha acabado sufocada pelos
contornos ideológicos e pela dimensão política presentes
na visão dos historiadores da literatura, de olhos urbanos
389 RIBEIRO. Da nacionalidade da literatura
brasileira, p. 39.
390 LAJOLO. Regionalismo e história da literatura:
quem é o vilão da história, p. 327.
366
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e europeizados, no dizer de Lajolo391. Em outros termos,
se inicialmente, como pudemos observar, vêm da Europa
as diretrizes sobre o caráter que devem assumir as letras
brasileiras, na perspectiva continental de Lajolo as inlexões
aqui introduzidas aos modelos podem representar mais do
que simples peculiaridades. Antes, quiçá apontem para
novas articulações entre a arte e seu objeto, a partir de um
trabalho especíico com as regionalidades do continente.
Com isso, esperamos ter assinalado, dentro
da forma breve que impõe este trabalho, o caminho
inicialmente percorrido pela prosa regionalista brasileira,
apontando para algumas das tensões que caracterizaram
o período, bem como ter relançado as duas hipóteses de
trabalho formuladas por Chiappini e Lajolo, que parecem
capazes de contribuir para o avanço das discussões
acerca do Regionalismo.
BIBLIOGRAFIA
368
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
DESLOCAMENTOS E ANACRONIAS EM
TERRA ESTRANGEIRA
Introdução
369
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nacional. Na presente comunicação, serão apresentados
resultados parciais de uma pesquisa acadêmica de maior
fôlego e ainda em curso. Aqui, buscaremos analisar as
formas fílmicas dessa memória anacrônica.
370
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Assim, parte numa viagem a Portugal, de onde pretende
posteriormente ir a San Sebastian, incorporando o sonho
da mãe.
A revisão do enredo demonstra que há, no ilme,
elementos que garantem compreensão supericial
satisfatória por parte de espectadores com olhares mais
desatentos: a empatia com os personagens; a instauração
de conlito bem deinido que se desenvolve rumo ao
clímax – mesmo que o desfecho seja um tanto heterodoxo;
o romance – Paco e Alex se envolverão num excêntrico
caso amoroso; além do lerte com diferentes gêneros
facilmente reconhecíveis, como o ilm noir, o road movie
e o drama – tal mistura de gêneros, no entanto, acaba
gerando certa angústia, já que o ilme não se resolve
deinitivamente em nenhum deles: por exemplo, o mistério
que envolve o sumiço da mercadoria contrabandeada por
Paco é elemento secundário. Logo, são identiicações
genéricas rarefeitas, pois se dão apenas a meio caminho –
não por falta de habilidade dos realizadores, mas por uma
vontade explícita de estranhar as formas de representação
genéricas hegemônicas.
Mas, entre a identiicação de gênero e o registro
histórico, a obra oferece algumas arestas que permitem
imersões mais profundas. Pois, não recai em cristalizações
de sentido fáceis – pelo contrário, alarga as possibilidades
de compreensão, e exige ao intérprete colocar em relação
elementos exteriores à própria obra.
Dentre a fortuna crítica que orbita em torno da ita,
composta por críticas cinematográicas, livros e demais
371
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
produções acadêmicas, é possível encontrar diferentes
leituras – cf. Freire (2009), Oricchio (2003), Nagib (2006),
Figueiredo (1999), Strecker (2010). Essa pluralidade
sugere a amplitude da abertura interpretativa permitida
em Terra estrangeira e as diiculdades de determinar
sentidos homogêneos. Algumas análises identiicam-
no como uma narrativa universal sobre sujeitos à deriva
numa contemporaneidade fugidia, frutos do colapso pelo
qual estariam passando as identidades culturais na era
da globalização. Assim, também é possível enxergar
um traço da dita dissolução de fronteiras nesse mundo
globalizado. Ainda, pelo lerte com gêneros consagrados
do cinema internacional, compreende-se Terra estrangeira
como operando certa transnacionalização do próprio fazer
cinematográico. Ao mesmo tempo, cabe constatar que tal
cenário globalizado acarreta certas angústias e, assim,
no ilme, também se faz presente uma denuncia sobre
a falácia daquele discurso globalizante que pregava a
emergência de um mundo sem fronteiras, o sonho de uma
aldeia global. Essa utopia globalizada se mostrou injusta e
longe de se realizar, uma vez que as benesses dessa nova
ordem mundial não eram compartilhadas por todos.
Mas, em linhas gerais, a interpretação que parece
mais recorrente dentre a fortuna crítica em questão é a
que compreende o ilme como documento da crise social
causada pelas medidas políticas, e do exílio não forçado,
ação que marcou aqueles anos. Assim, numa visão
abrangente sobre essas diferentes leituras, associando-as
ao próprio ilme, é possível identiicar a tentativa de colar a
372
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma narrativa iccional um comportamento empiricamente
observado na sociedade em um determinado período
histórico; o sintoma social e sua inevitável consequência
no cinematográico, mesmo que essa relexão apenas
encontre lugar na representação alegórica.
No ilme, é nítida a vontade de realizar um registro
histórico, devido, sobretudo, à proximidade temporal
entre o processo de ilmagem e a ocorrência dos eventos
políticos: na diegese, é possível identiicar uma série de
elementos que caracterizam aqueles fatos políticos, como
transmissões de rádio que veiculam anúncios e comentários
sobre medidas do novo governo; imagens de televisão,
também na diegese, que exibem pronunciamentos de
Collor, do vice Itamar Franco e da ministra Zélia Cardoso;
e cartazes com slogans da campanha vistos em cenas
ilmadas em ambientes externos. No entanto, a forma do
registro é peculiar e extrapola o simples documento de
um contexto. Isso parece ocorrer, como dissemos, devido
a uma postura relexiva que conforma Terra estrangeira.
Ou seja: em grossas palavras, não se trata de um
documentário, no sentido usual do termo, tampouco de
um ilme de icção que busca recriar os incidentes com
verossimilhança. Ao cabo, Terra estrangeira é uma obra
de icção que, inicialmente, se debruça sobre o cotidiano
de uma família de classe média paulistana que, em dado
momento, se viu – como a maioria das famílias brasileiras –
diretamente afetada pelas medidas arbitrárias do governo.
Após a brusca ruptura – a morte da mãe em aspecto
micro; o conisco das poupanças no macro –, no entanto,
373
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
abandonam-se os traços que remontavam, indiretamente,
o contexto no interior do enredo iccional.
Assim, Terra estrangeira parece iliar-se a uma
estirpe relexiva do cinema, inaugurada por Roberto
Rossellini no princípio do neorrealismo italiano: uma
forma de cinema que, segundo Regina Mota (2001),
nasceu de uma lacuna – falta de verba, atores, estúdios,
negativos, câmeras etc. – para construir uma estética do
vazio no cinema: sobretudo, uma imagem da ética. Para
Mota392, a câmera de Rossellini vai às ruas para desnudar
um cenário real do pós-guerra, mas, “não se trata”, no
entanto, “de colocar um espelho diante do real, mas de
operá-lo, utilizando a câmera como um bisturi que corta
fundo a carne, até os ossos”. Nesse cinema – bem como
nos de outros diretores do neorrealismo italiano – não
se encontram respostas e soluções fáceis para aquele
contexto de crise. “É nesse ponto que a modernidade se
imiscui sorrateira”, diferindo o movimento italiano de outras
formas de realismo. Assim, Rossellini é reconhecido como
o pai do cinema moderno por ter causado uma issura
no jogo de opacidade e transparência393; entre a janela
de identiicação do cinema clássico hollywoodiano e as
vanguardas de início de século. Uma lógica do paradoxo,
segundo a autora, pois, ao mesmo tempo em que investe
no direto da imagem, ou seja, na simultaneidade entre a
captação do momento e sua enunciação, formalizada em
longos planos-sequência e na saturação do tempo da
392 MOTA. A épica eletrônica de Glauber: um estudo
sobre cinema e TV, p. 23.
393
374
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ação, a signiicação do espectador não emerge da ilusão
de ver em sua frente o acontecer do movimento: ele se
interessa pelas forças que o produzem e o intensiicam.
Um cinema relexivo, portanto, que frente à
impossibilidade de descrever o indescritível, procura
pensar através das imagens. Rossellini, como expõe
Glauber Rocha (2004), foi o primeiro a utilizar a câmera de
cinema como instrumento de investigação e relexão. E,
na visão de Mota:
376
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o cinema, como discurso composto
de imagens e sons é, a rigor, sempre
iccional, em qualquer de suas
modalidades; sempre um fato de
linguagem, um discurso produzido e
controlado, de diferentes formas, por
uma fonte produtora395.
379
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
carregadas por uma iluminação expressionista com
grande contraste entre preto e branco e pelos movimentos
de câmera maneiristas, intensiicadas pela manipulação
explícita dos efeitos sonoros – cenas como o ensaio da
peça de Shakespeare que Paco assiste escondido; o teste
de atores do qual o protagonista participa; a apresentação
musical de Miguel em um bar de Lisboa; entre outras.
Assim, a utilização do preto-e-branco acaba por produzir
percepções ambíguas, pois, ao mesmo tempo em que
confere uma estética de documento, proporciona uma
utilização expressionista da iluminação, criando grande
contraste devido ao alto coeiciente de intervenção
estilística na imagem.
Entre o documental e o teatral/expressionista, entre
o registro histórico e a narrativa iccional e alegórica – ou
melhor, nas intercessões entre essas dicotomias, parece
emergir, em Terra estrangeira, uma visão de mundo
que – evocando o ilósofo Jacques Rancière (2005) – é
cara a um regime estético das artes: um novo regime de
historicidade que não se opõe aos antigos regimes – os
sistemas ético e representativo. Pelo contrário, trata-se, no
estético, de uma nova forma de relação com o antigo, no
qual tanto a arte quanto a história podem ser resumidas
como formas de rearranjos dos signos da linguagem.
Com esse movimento, o ilósofo demonstra que a antiga
classiicação da Poética de Aristóteles (1990) não mais é
possível na contemporaneidade. Mas, ao equiparar arte e
história e resumir ambas a uma iccionalização, Rancière
não pretende airmar que a história é um engodo, pois,
380
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nesse caso, pressupor-se-ia haver uma verdade a ser
totalmente desvendada. Logo, tratar-se-á sempre de um
desvelamento, um acontecimento – parcial – da verdade,
tanto na a poesia quanto na história, e por isso, as duas
atividades se equivalem – propositalmente – em Rancière.
Assim, nota-se que a cada desvelamento corresponde um
velamento, tornando-se impossível alcançar a totalidade
do conhecimento.
A partir desse complexo entrelaçamento entre
o documental e o teatral, é possível dizer que, em Terra
estrangeira, o histórico ganha tons operísticos. E, com
isso, acionaremos mais um dos elementos que constituem
o longa-metragem: a música. Composta por José Miguel
Wisnik, desde o início a banda sonora traz arranjos do fado,
tradicional canção portuguesa associada à lamentação, à
entrega ao destino e à providência divina. Executado ora
ao piano, ora com violinos ou com a tradicional guitarra
portuguesa, o fado dá ritmo à narrativa. O ilme é regido
pelo fado.
Incluir a música de forma determinante nas
análises e interpretações fílmicas é fundamental, pois
devemos considerar que o cinema é um fenômeno
audiovisual, logo, não somente visual. Mais do que uma
simples trilha sonora que sirva tão-somente a um pano
de fundo, um acompanhamento à ação dramática, a
dimensão musical da percepção pode ser compreendida
como exercendo funções estruturantes num ilme. Assim
acontece, por exemplo, em ilmes como Roma, cidade
aberta (1945) e Alemanha, ano zero (1948) de Rossellini,
381
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em
transe (1967), de Glauber Rocha. A noção de “regência”
cinematográica é aqui decisiva se lembrarmos de que, no
idioma italiano, a palavra que designa a direção de cinema
é regia, guardando comparações diretas entre o diretor
e um maestro de orquestra. Nesses casos, assim como
em Terra estrangeira, a música parece reger a cadência
fílmica, e com isso, a câmera baila entre imagens. Falamos,
portanto, mais que sobre música, de um ritmo da narrativa
cinematográica:
384
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
lança Paco numa viagem em busca de uma igura paterna,
no caso, representada pela cidade de San Sebastian.
Todo este imaginário lusitano, de tão profundo e
longínquo, acaba por tornar-se mítico. E, além de igurar
no próprio enredo e no fado, faz-se presente em Terra
Estrangeira através das imagens de navios que aparecem
ao longo da ita – imagens que não tecem relações diretas
com o enredo, com exceção da última, aquela grande
carcaça encalhada que se tornou símbolo do ilme. À
primeira vista, esses navios parecem funcionar como
adereços da montagem, utilizados como imagens de
corte entre cenas diferentes; elipses. Mas, um olhar mais
atento permite considerá-los como constituidores desse
imaginário lusitano das navegações que é a própria forma
de ser e de estar no mundo do português: a razão errante
em língua portuguesa. Ao ritmo do fado, esse imaginário
rege o ilme. Mas, rege em direção a quê? Para onde
navega Terra estrangeira? Em que direção aponta essa
razão em língua portuguesa?
O enredo nos apresenta uma resposta provisória:
o destino ao qual o personagem pretende alcançar é a
cidade de sua mãe, San Sebastian, no norte da Espanha.
Mas, esse lugar, mais do que a meta a se alcançar, é o
incômodo existencial que move Manuela, mesmo que de
maneira errante e, posteriormente, também moverá seu
ilho, Paco. Como exemplo, veem-se, em uma das cenas
que compõem a parte inicial do ilme, os dois conversando
no sofá da sala sobre os planos da mãe. Ela quer utilizar o
dinheiro da poupança para pagar a viagem a San Sebastian,
385
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e inanciar o restante do valor em 36 vezes. Ele, ciente dos
problemas que cercavam o aumento constante das taxas
de juros no país, tenta dissuadi-la do projeto – sem muito
êxito, no entanto. Ela, deprimida, com voz embargada e o
olhar fugidio – quase em transe, responde:
387
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E, de fato, o tema é recorrente em diversas obras da
literatura e do cinema no país, como em Euclides da
Cunha e Glauber Rocha, entre outros. Neste ponto, vale
uma comparação, a partir de semelhanças, intencionais ou
não, entre a obra de Glauber e de Salles: além do evidente
uso da palavra “Terra” no título, as estruturas dramáticas
se aproximam: em Deus e o diabo..., é após a morte da
igura materna que o vaqueiro Manoel, assim como Paco,
se lança à errância. Neste caso, pelos sertões, seguindo,
junto a dezenas de iéis, o beato Sebastião, todos com fé
nas promessas de paraíso: a “ilha”, contraponto utópico
ao contexto de miséria, fome e seca no sertão nordestino.
Uma “terra onde tudo é verde. Os cavalo comendo as lor
e os minino bebendo leite nas água do rio. Os homi come
o pão feito de pedra. E a poeira da terra vira farinha”, como
proclama Sebastião, no alto do Monte Santo. E, mesmo
não se tratando de uma legítima adaptação, são notáveis
as inspirações da obra de Euclides da Cunha permeando
o ilme de Glauber.
Vemos que o mito opera como telos, alimentando
uma vontade pela viagem, pelo risco e pela aventura e que
acaba por transigurar-se numa vocação épica, saudosista
e messiânica. Esses traços, no entanto, nada mais são
do que a própria forma de estar e de se expressar no
mundo para aqueles personagens. Assim, como propõe
Varela (1996), é a face misteriosa do mythos que move o
heterologos, ou seja, sua constituição paradoxal enquanto
lugar inalcançável.
Em Terra estrangeira, o destino San Sebastian
388
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
transforma-se também em uma utopia. Confunde-se,
portanto, com o próprio movimento caro a um heterologos
e sua eterna procura por uma razão que está num Outro
inalcançável. E aqui retornamos aos primeiros planos
de Terra estrangeira, que formam uma espécie de
prelúdio, nos quais vemos uma grande avenida, quase
sem im, que adentra a larga profundidade de campo do
plano cinematográico, de forma que os postes de luz
que acompanham a via icam cada vez mais próximos
e se transformam numa contínua linha luminosa, com
intensidade que cresce proporcionalmente à distância ad
ininitum. Ao mesmo tempo, na banda sonora, em off, o
protagonista – ensaiando trechos de Fausto, de Goethe –
declama: “eu não era nada, e aquilo me bastava. Agora não
quero mais a parte, eu quero toda a vida”401. O único destino
possível após a crise cultural e social desencadeada pela
irresponsabilidade política é apresentado alegoricamente
de forma conjunta na narração e na imagem, e a estrada
sem im se combina à busca pela eternidade e se
confundirá com a morte do personagem. Ora, a eternidade
é um espaço sem tempo: um não-lugar, uma u-topia.
Para Foucault, utopias são posicionamentos
sem lugar real. Mesmo que mantenham certa relação
de analogia, direta ou indireta com o espaço real da
sociedade, são essencialmente irreais. Mas, para o
ilósofo francês, existem, em qualquer cultura e civilização,
utopias realizadas: “espécies de lugares que estão fora
Considerações inais
393
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que vemos e reescrevemos o passado. Rememoramos.
Ligamos uma imagem de passado a outra de maneira
arbitrária – a escritura histórica é sempre arbitrária. Assim,
representa-se a memória de uma genealogia a partir da
anacronia.
Os quadros, as fotograias, os rostos dos velhos,
os navios, a música: em Terra estrangeira ilma-se o
presente e nele reconhece-se a intenção de uma imagem
do passado, que tende a presidir as maneiras com as quais
os seres sentem (pathos) e pensam (logos) – percebem
os fenômenos no presente, e aqui estamos a falar tanto
no contexto do enredo fílmico quanto da cultura que o
extrapola, mas da qual ele surge. Há, pois, certa relação
que atravessa as gerações humanas, pois, se o ser habita
a linguagem, ou seja, é por ela constituído – ele não fala,
ele é falado –, a linguagem o transcende, i.e., precede sua
existência carnal, sua presença – uma transcendência,
portanto, que não se confunde com a metafísica. Daí Varela
(1996) propor um pensar-sentir em língua portuguesa.
Mas, aqui, há de se fazer uma ponderação: a
percepção do presente não pode ser compreendida como
sendo de todo inerte ou passiva – ou seja, totalmente
coordenada por essa transcendência –, pois a cada
percepção corresponde uma intencionalidade. Por isso, no
presente também podem ser traçados contrapontos entre
as imagens tornando visível tal transcendentalidade. Que
estas formas de perceber os fenômenos – o fenômeno
Collor, por exemplo – são presididas por intencionalidades
passadistas, é o que parece demonstrar Terra estrangeira.
394
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
E assim vemos, com Lezama Lima (1988), que, em última
instância, todo discurso histórico é uma icção do sujeito.
E o niilismo que Benjamin demonstra como inluência de
suas teses sobre o conceito de história parece demonstrar
algo dessa natureza: é o sujeito, no presente, quem dá
sentido ao passado que se acumula disforme.
Sendo assim, mais do que sobre a história em si,
estamos a falar de processos de subjetivação operados
pela linguagem, mas também das possibilidades de o
sujeito dobrar essas linhas de força que o presidem.
Nesse sentido, a partir de todas as intervenções iccionais
que opera na construção – e desconstrução – histórica, o
que Terra estrangeira parece realizar é a recriação de uma
memória que incorpora fatos históricos e mitos culturais
para, a partir dessa matéria sensível e anacrônica,
inscrever uma visão crítica de mundo, perpassando pelos
dilemas da identidade e do nacional. Propõe um devir da
consciência de uma brasilidade que se propõe enquanto
travessia, “o eu coletivo quem se procura, sujeito e objeto
da viagem”407. A memória de uma genealogia em devir que
toma forma, no ilme, num conjunto de alegorias.
Referências
396
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac
Naify, 2006.
ROMA, cidade aberta. Direção: Roberto Rossellini. Itália:
Excelsa Film, 1945. DVD (100 min.).
STRECKER, Marcos. Na estrada: o cinema de Walter
Salles. São Paulo: Publifolha, 2010.
TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Brasil: Mapa
Filmes, 1967. DVD (111 min.).
TERRA estrangeira. Direção: Walter Salles e Daniela
Thomas. Brasil: Videoilmes, 1995. DVD (100 min.).
THOMAS, Daniela, et al. Terra estrangeira: roteiro. Rio de
Janeiro: Rocco, 1996.
VARELA, Maria Helena. O heterologos em língua
portuguesa: elementos para uma antropologia ilosóica
situada. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995.
XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográico: a opacidade
e a transparência. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
397
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
LIVROS PERDIDOS, LIVROS ESCRITOS: A
LITERATURA DIANTE DA PERDA
398
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
suas coleções misteriosas. Conhecer seus volumes
incertos. Tarefa indiscutivelmente impossível: trata-se,
ainal, de um conjunto de livros cuja única marca deixada
no tempo do agora é a de sua ausência.
Disso já nos dá notícia o texto da Bíblia cristã,
livro-biblioteca cuja riqueza reside, também, em sua
ampla história de deturpações, transformações, perdas,
escritas apócrifas e inacabamentos. Uma de suas lacunas,
destacada por Stuart Kelly em O livro dos livros perdidos,
seu duplamente fascinante e melancólico compêndio de
escritas tragadas pelo tempo, encontra-se justamente em
torno de uma de suas iguras mais complexas – Paulo de
Tarso. Da leitura de suas epístolas (algumas, segundo o
pesquisador escocês, apócrifas) e da narrativa dos Atos
dos Apóstolos, o leitor depreende que, após converter-
se ao cristianismo e planejar evangelizar as regiões mais
distantes da Europa, Paulo, vítima de uma conspiração,
é preso e levado a Roma para encontrar-se com um dos
imperadores mais temidos da História: Nero. Entretanto,
muito embora a narrativa dos Atos caminhe para esse
encontro no mínimo emblemático, ela se interrompe antes
que ele aconteça. “O enfrentamento entre Nero e Paulo
ou está perdido ou nunca foi escrito”, constata o crítico408.
Já no século XX, ocorre o que talvez seja um dos
mais intrigantes desaparecimentos da história da literatura.
O escritor e desenhista polonês Bruno Schulz mencionara,
em 1934, que escrevia um romance intitulado Messias.
Acredita-se que era um trabalho minucioso, narrando um
401
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
[…]410.
Referências
411
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
POESIA, CARNAVAL E OUTRAS FESTAS
EM SACIOLOGIA GOIANA, DE GILBERTO
MENDONÇA TELES
412
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma entidade de uma perna só, com uma versão erudita
e outra popular.
Percebemos então que muitas imagens atribuídas
ao deus grego Dionísio podem ser observadas no Saci.
Das possíveis interpretações sobre o mito Dionísio,
consideramos os aspectos da dualidade do mito.
Dionísio é, entre outros atributos, o deus da vida, da
metamorfose, da morte, da desmedida, do sexo, da dor
e da música. Portanto, uma personalidade complexa e
cheia de contradições. Conforme Pierre Brunel (1997),
a contradição que cerca esse mito é porque certamente
o caráter peculiar do culto de Dionísio (possessão, ritos
de orgia, excursões pela montanha) sempre fez dele um
deus à parte, um deus mais do povo que da aristocracia,
durante muito tempo menos prestigiado que outros deuses
do Olimpo.
Em contraponto ao mito Dionísio, veriica-se que o
mito Saci está incorporado nos poemas investigados do livro
Saciologia Goiana de Gilberto Mendonça Teles, airmando
as múltiplas facetas que povoam o imaginário popular.
Além disso, tanto Dionísio quanto o Saci são cultuados
fora do centro, cuja posição é marginalizada na literatura.
A narração do Saci possui diversas interpretações. Dentre
elas, conforme Luís da Câmara Cascudo em Dicionário do
folclore brasileiro (2001), o Saci é um negrinho de uma
só perna, usa carapuça vermelha na cabeça, que o faz
encantado, ágil e astuto. O Saci usa barretinho encarnado,
e a carapuça vermelha lhe dá poderes milagrosos. Se
alguém lhe arrebata a carapuça, o Saci dará montões de
413
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ouro para reaver o chapeuzinho. O Saci ainda é conhecido
por fumar cachimbo e diverte-se criando diiculdades
domésticas, apagando o fogo, queimando alimentos e
espantando os animais. Em outras versões do mito, o Saci
surge como um ser maléico, ora brincalhão e gracioso.
Observamos que nos poemas em análise o poeta
funde as diversas características atribuídas ao mito
Saci. Ora ele é maléico, ora ele assume uma identidade
brincalhona, lúdica e sedutora. Percebemos que essas
facetas o aproximam da igura mitológica do deus grego
Dionísio. Ambos possuem intensidades e encantamentos
que perpassam pela duplicidade dos contrários da vida,
como a tristeza e a alegria, o êxtase e o trágico.
Nesse sentido, percebemos que o texto telesiano
possui elementos que dialogam com os pressupostos
teóricos formulados por Mikhail Bakhtin quando estudou
a estética do carnaval no contexto de François Rabelais.
Para Bakhtin o grotesco, elemento primordial do carnaval,
possui diversas características. A mais recorrente é
o afastamento do quadro habitual do mundo. São as
inversões, os destronamentos, a metamorfose e o eterno
inacabamento da existência. Pois o grotesco rompre com
todas as fronteiras e apresenta seu aspecto essencial que
é a deformidade. Além disso, o riso constitue elemento
inseparável da concepção do grotesco, às vezes na forma
atenuada de humor, ironia e sarcasmo. Ao transpor para
literatura essas concepções do mundo carnavalizado é
também uma forma de violação das fronteiras e também
de liberdade.
414
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nos poemas de Saciologia Goiana observamos
imagens grotescas que constitue uma reelaboração da
festa. A festa do carnaval na poesia telesiana perpassa
por caminhos atenuados do grotesco, ou seja suas
estratégias estéticas mais acentuadas são a ironia e
o cômico. Podemos perceber que a festa marca uma
interrupção provisória de todo sistema oicial, como suas
interdições e barreiras hierárquicas. Em aproximação à
festa carnavalesca, a escrita é uma forma libertadora do
sujeito, dá-lhe a sensação de liberdade e de transgressão
tão almejada no carnaval. Por meio da escrita e nas
entrelinhas do discurso, o sujeito poético veste a máscara
do carnaval e se liberta das cadeias das convenções do
mundo. Conforme Bakhtin:
418
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e namorou a esperança
com todo direito e lei.
Deu um pulo mais pra frente,
viu novas terras e céu,
conheceu coisas e gente,
parou, tirou o chapéu,
traçou as gringas no dente
pulando de déu em déu427.
422
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
grimpas,
entre as galharadas verdes,
reduzindo a cinzas os ninhos
balouçantes do sabiá nativo,
[...]430.
424
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
encarnam a mácara do riso, da alegria, do prazer e da
festa. Observamos o poema intitulado em “Exorcismo”:
427
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Referências
428
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CONFIGURAÇÕES DO RISO
CARNAVALESCO EM SERAFIM PONTE
GRANDE
Viviane Rodrigues
(BAKHTIN)
432
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
mas também zombeteira e sarcástica. Dessa forma, ao
mesmo tempo em que esse riso nega, acaba por airmar
valores sociais e posicionamentos ideológicos.
No romance, o princípio do riso carnavalesco
manifesta-se em diferentes momentos da narrativa, seja
na voz do narrador, seja na fala e no comportamento dos
personagens. O tom carnavalesco se faz presente na
composição do discurso da obra, tornando-se um aspecto
essencial na discussão sobre a comicidade do enredo.
O riso na festa popular volta-se aos próprios
festeiros; o povo não se exclui desse “mundo às avessas”
em que o rei é destronado, sendo esse ato o centro da
carnavalização, pois qualquer pessoa poderia assumir
o lugar de majestade, o que simbolizava o avesso da
estrutura hierárquica social. Seu caráter universal faz
com que todos riam de tudo, transformando esse mundo
em um cenário extremamente cômico. Nesse sentido
é que, revestidos por máscaras, são extravasadas suas
necessidades mais reprimidas.
De acordo com Bakhtin, a cultura carnavalesca
pode ser entendida como um “mundo às avessas”. Suas
manifestações culturais apresentam-se a partir de uma
visão cômica de mundo, elaborada de maneira autônoma,
fora do controle das autoridades, adquirindo, assim,
liberdade extravagante. Ela se exprime sob três formas
principais: ritos e espetáculos (festejos carnavalescos,
obras cômicas representadas nas praças públicas, festas
cômicas medievais); obras cômicas verbais de diversas
naturezas (inclusive as paródias) e diversas formas e
433
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos,
juramentos, e outros).
O “mundo às avessas” em que se manifesta a
carnavalização não consiste em um espetáculo, mas
representa a segunda vida das pessoas que vivenciam
o carnaval. Essa atitude libertadora não pode ser
confundida com o papel dos bufões e dos bobos; esses
eram personagens que se caracterizavam para fazer os
outros rirem, ao passo que as pessoas que participavam
da festa se divertiam pelo desejo de se alegrarem, rindo
de si mesmas:
435
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao lado do amigo Pinto Calçudo, que se tornou seu
secretário particular. Nessas viagens, Seraim experimenta
uma nova forma de viver, regada pela liberdade e pelo
riso, não aceitando mais os ditames sociais a que estava
submetido. Assim o texto faz uma paródia da vida rotineira
e apresenta a vida pelo avesso, suspendendo as leis que
determinam o funcionamento da conduta habitual.
A natureza da festividade no romance relaciona-
se com o que a liberdade representava para a cultura
medieval e renascentista, pois na liberdade conquistada
pelo protagonista insere-se o sentido da festa: o prazer de
experimentar uma liberdade efêmera, uma outra forma de
viver.
Bakhtin explica que o carnaval possui caráter
universal. Todos que participam da festa são motivados
pela ideia da renovação. O carnaval torna-se, então, uma
maneira de viver, mesmo que efêmera, rápida, provisória.
Nele, a própria vida é representada e interpretada; não
é um espetáculo teatral, mas é uma nova vida assumida
pelas pessoas e alicerçada pelo fundamento do riso:
439
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
nem atores cômicos439.
447
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Mostrando o mundo sob um novo dia,
o riso liberta, diante dos interditos e
das intimidações do sério: “É a razão
pela qual o riso, menos que qualquer
outra coisa, pode ser instrumento de
opressão e de embrutecimento do
povo. Nunca ninguém chegou a torná-
lo inteiramente oicial. Ele sempre
permaneceu como arma da liberdade
entre as mãos do povo”.449
450
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
das permutações constantes do alto e
do baixo (a roda), da face e do traseiro,
e pelas diversas formas de paródias,
travestis, degradações, profanações,
coroamentos e destronamentos
bufões.451
REFERÊNCIAS:
452
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
DO PESO DE VIVER À LEVEZA DAS
PALAVRAS:
REFLEXÕES SOBRE A EXISTÊNCIA
EM FLOR DA MORTE, DE HENRIQUETA
LISBOA
Considerações Iniciais
Flor enjaulada
457
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Se considerarmos uma vida marcada pela consciência
da transitoriedade, inúmeras contingências, inquietudes,
amarras, ansiedades e máscaras que cerceiam a liberdade
do ser, que limitam a existência humana, o poema Jaulas é
bastante representativo:
Vida de mordaças
Exercício de paciência
nos esconsos.
Já se viu tamanho arcano
gota a gota!
Cegueira tece uma rede
que não acaba.
Muitas mãos, até que o tempo
460
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
amadureça, juntando
io a outro io.
Conquista de palmo a palmo
com cem anos
de lastro.
Sombra se desdobra
em sombra
a cada vencido
passo.
Passo vencido não conta
e exercício de paciência
não se esgota.
Das subterrâneas jazidas
suspira fundo
o mistério.
Volição por onde queira
à solapa na espessura
vai abrindo seus
túneis.
Vida de mordaças, férrea
vida de masmorras, bronzes.
Vida nas sagradas
fontes
para depois - o que vier460.
Considerações inais
464
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
É possível airmar que o labor poético e estético
de Henriqueta Lisboa é alicerçado nos procedimentos
e nas formas escolhidas, nos ritmos, no enxugamento
dos textos, nas pinceladas poéticas de palavras, cores,
formas, sensações e imagens. Na poesia de Henriqueta
percebe-se a preocupação do sujeito poético em relação
à elaboração precisa da linguagem, registrada na maneira
de interpretar o mundo e as coisas. A poeta, de maneira
peculiar, apresenta o ato criador como um exercício e
comprometimento perante a vida e a arte, mediante a
efetivação de um pensamento capaz de (re)inventar
universos imaginários.
Estando vida e morte irremediavelmente atadas,
o eu lírico, em vida, pensa na morte e relete sobre sua
própria existência. Apesar de certo mal estar e inquietação
frente a inevitabilidade da morte, posturas assumidas pelo
sujeito poético, é possível sair da inautenticidade e assumir
a autenticidade perante o estar-no-mundo.
Referências
465
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
UNICAMP, n.23, 2003, p. 26.
LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: poesia geral.
São Paulo: Duas Cidades, 1985.
LISBOA, Henriqueta. Henriqueta Lisboa: unida aos homens
e a Deus pela poesia. [Entrevista concedida a Edla Van
Steen]. O Estado de São Paulo. São Paulo, 5 mai. 1984.
Caderno de Programas e Leituras. p. 4.
LISBOA, Henriqueta. [Carta a Helena Antipoff, escrita em
29 de novembro de 1973]. In: ACERVO HENRIQUETA
LISBOA – Acervo de Escritores Mineiros – UFMG.
MOTTA, Paschoal. [Algumas opiniões sobre a poesia
de Henriqueta Lisboa]. In: LISBOA, Henriqueta. Obras
Completas I – Poesia Geral. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1985, p. 562.
WERLE, Marco Aurélio. Anguish, nothingness and death in
Heidegger. Trans/Form/Ação, Marília, v. 26, n. 1, p. 97-113,
2003.
466
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
EROS E THÂNATOS: O CORPO E SUAS
“CRUÉIS” EXIGÊNCIAS EM A VIA CRUCIS
DO CORPO DE CLARICE LISPECTOR
467
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
uma coletânea de treze contos e nota prévia da autora que
também será de grande valia para analisarmos o corpus
desta pesquisa. Trata-se de narrativas em que a trajetória
de vida ou de morte dos personagens e a dos leitores
começa pelas provocações, tendo como eixo o caminho
do corpo, narrado subversivamente. Segundo Vilma
Arêas a linguagem usada por Clarice, em A Via Crucis do
Corpo, é sem polimento e, algumas vezes, escandalosa,
uma mistura de humor negro e paródia. Assim, em outros
livros de Clarice, como em Laços de Família, as histórias
se movem em torno do ambiente familiar. É-nos oferecido
o cotidiano, fatos interessantes, comuns, simples com
descrição aparentemente banal, mas que se coniguram
numa escrita de paradoxo, tanto no plano da língua
como no plano do “enredo”, extrapolando os sentidos
habituais da narrativa com um jogo vocabular, no qual “as
palavras” (que representam a realidade extralinguística)
transformam-se em “sentidos” ou “sentimentos”.
Para Sônia Roncador, a escrita derradeira de
Clarice Lispector, ou melhor, os textos produzidos após
1970, revela uma produção estética diferente da anterior,
com uma linguagem heterogênea, sem rebuscamento
na forma, um estilo “menos” artístico, deselegante, às
vezes coloquial, com temas como a pobreza existente no
mundo, a crueldade social, e ainda a inscrição de textos
circunstanciais da produção. Em A via crucis do corpo,
Roncador diz que há um encontro cômico, às vezes
absurdo, que não chega a construir um clímax e que não
culmina numa experiência de autoconhecimento.
468
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Nilze Maria Reguera ao analisar A via crucis
do corpo, tenta suscitar elementos que permitam uma
(re) avaliação sob a perspectiva de uma encenação da
escritura, considerando que houve uma simulação e
dissimulação, nos mostra outro modo de ler, invertendo
assim a visão cristalizada da recepção crítica negativa
do livro. Para Reguera, há um travestimento em que
Clarice fraqueja em relação às exigências de um mercado
consumidor, talvez pelo fato de que autores judeus que
trabalhavam na publicação, inclusive Lispector, foram
demitidos do Jornal do Brasil. Na verdade, Clarice
aperfeiçoa seu projeto literário problematizando a questão
da escrita intimista na qual se pressupõe uma literatura
da alma. Nesta pesquisa, pretende-se esclarecer que
as sensações da alma perpassam, obrigatoriamente,
pelo corpo conigurando-o como elemento signiicativo e
produtor de subjetividade. Dessa forma, Clarice Lispector
“adapta-se” à moda consumista da época sem, contudo,
desviar-se de sua proposta estética.
Em 1970, Clarice Lispector já era uma autora
reconhecida pela crítica literária e se destacava no
cenário literário brasileiro. Passava por um momento de
instabilidade inanceira, pois havia se separado do marido
e precisava se manter com seu trabalho de escritora e
tradutora.
Na “Explicação” de A Via Crucis do corpo, uma
espécie de prefácio ou nota prévia, a autora relata a
tarefa para a qual o livro é proposto: “Este livro é um
pouco triste porque eu descobri, como criança boba,
469
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
que este é um mundo-cão”463. Clarice tentou convencer o
leitor de que não teve a sua parcela de “culpa”, tentando
resistir à escrita desses textos, considerados por muitos
como pornográicos, o que destoava da icção clariceana
produzida até então: “Só peço a Deus que ninguém me
encomende mais nada, porque, ao que parece, sou capaz
de revoltadamente obedecer”464.
Clarice Lispector recebeu uma ligação na sexta-
feira, do seu editor Álvares Pacheco, da editora Artenova,
para escrever sobre um assunto que ela mesma classiicou
como perigoso. A princípio recusou o convite, mas enquanto
falava ao telefone “sentia nascer” a “inspiração” e rendeu-
se ao desaio de escrever por encomenda. Sábado,
começou a escrever e no domingo dia 12 de maio, dia das
mães, já estavam prontos três dos treze contos, são eles
“Miss Algrave”, “O Corpo” e “Via Crucis”, “O homem que
apareceu” e “Por enquanto” também foram escritos no
“mesmo domingo maldito”.
Na segunda-feira, dia 13 de maio, dia da libertação
dos escravos, e também considerada por Clarice como
sua própria libertação: em tom de denúncia, a escritora
se adapta à moda consumista da década de 70. O Brasil
perpassava por uma indústria cultural de massa, Silviano
Santiago em Nas malhas da letra, esclarece que “[…] o livro
na década de 70 foi movimentado e direcionado pelas leis
de mercado, sendo banalizado, semelhante à banalização
do corpo encontrado nas pornochanchadas”465.
463 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11.
464 LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11.
465 SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 32.
470
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Apesar de os contos em A Via Crucis do Corpo
serem compostos por questões que são consideradas
tabus, em que os desejos sexuais pulsam a cada momento,
o corpo é um caminho a ser percorrido por cada indivíduo,
com o objetivo de suprir as sensações de desamparo
outra ora como celebração do prazer, não se admitindo
discussão sobre a conduta moral das personagens, mas
cada uma possui seu próprio código de honra, sem uma
visão reducionista. Beth Brait destaca que
— Quem é?
E a resposta veio em forma de
vento:
478
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dissertação. Temos, portanto, pelo menos três narrativas
que possibilitam uma abordagem psicanalítica sob o viés
do recalque e da duplicação.
Já no conto O Corpo, o “corpo” é um “motivo” de
traição. Xavier tinha duas esposas, Carmem e Beatriz,
trabalhava para mantê-las e levavam uma vida tranquila,
pois nenhuma das duas mulheres tinha ciúmes uma da
outra. “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo
era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se
excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste”478. A
vida pacíica acabou quando elas descobriram que Xavier
tinha uma amante, começaram a desprezá-lo e icaram
cada vez mais amigas e ao “pensar na vida perdida” e “na
morte”, nasceu o desejo de vingança. Enquanto Xavier
dormia, as duas mulheres foram à cozinha pegaram dois
“facões amolados” de “aço polido” e entraram no quarto
matando-o. E agora?
Referências
481
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
educação pela noite e outros ensaios. 2 ed. São Paulo:
Ática, 1989. p. 199-215.
CECCARELLI, Paulo Roberto. Uma breve história do
corpo. In: LANGE, Elaine Soares Neves & TARDIVO, Leila
Cury (Org.). Corpo, Alteridade e Sintoma: diversidade e
compreensão. São Paulo: Vetor, 2011, p. 15-34. Disponível
em: <http:// http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=519>.
Acesso em: 27 maio 2012.
FERNANDES, Maria Helena. Entre a alteridade e a
ausência: o corpo em Freud e sua função na escuta do
analista. In: CINTRA, Elisa de Ulhôa (Org.). O corpo, o eu e o
outro em psicanálise. Goiânia: Dimensão, 2006. Disponível
em <http://xa.yimg.com/kq/groups/22703089/1978112449/
name/Jornal_Simp%C3%B3sio_MH_Fernades.pdf.>
Acesso em 08 junho 2012.
FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias
sobre psicanálise e outros trabalhos. In: ______. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1969. v. XXII.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11 ed. São Paulo:
Ática, 2006.
LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
PEREIRA, Andrea Cristina Martins. Ruído de passos:
a palavra e a imagem. In: OLIVA, Osmar Pereira (org.).
Vínculo. Montes Claros: Editora Unimontes, 2002.
REGUERA, Nilze Maria de Azeredo. Clarice Lispector e
a encenação da escritura em A via crucis do corpo. São
Paulo: Editora UNESP, 2006.
RONCADOR, Sonia. Poéticas do empobrecimento:
482
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
a escrita derradeira de Clarice Lispector. São Paulo:
Annablume, 2002.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro:
Rocco, 2002.
483
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
EMOÇÕES E A PERVERSIDADE
DO BARÃO BELFORT: DISCURSO
E DECURSOS DO SUJEITO NA
MODERNIDADE
484
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
o limiar entre a lei e o prazer, a lucidez e o delírio de um
retrato, ainda que fosco, daquilo que o sujeito moderno
na Belle Époque carioca, veiculado à Cultura vigente do
capitalismo aburguesado e subjugado aos seus ditames,
poderia ainda se tornar pelo seu devir (segundo a acepção
nietzschiana do termo).
Tal sujeito, que se encontra sob as inluências
castradoras da Cultura burguesa moderna, entrega-se
à busca compulsória e fatal por sua natureza libertina e
totalitária, isolando-se e desaiando os ditames da própria
pulsão erótica que o orienta, enquanto emissário dos
impulsos destrutivos que o regem. E, contudo, um “tipo”
como este traz à baila aspectos tanto do espaço labiríntico
da cidade que o cerca no cenário de modernidade, quanto
da problematização da própria vida e do sujeito, do poder
opressor da Cultura (constantemente associada a uma
autoridade de cunho paternal) e da rejeição adotada por
aqueles que optam pelo “avesso” da Lei e da Ordem,
habitando e validando os espaços umbrais presentes na
cidade moderna. Portanto, para melhor compreender o
tipo perverso no qual se encerra a igura do Barão André
Belfort, é válido um estudo cauteloso deste fenômeno da
perversão do ego, associado ao intervalo histórico que
compreende o espírito decadente da Belle Époque carioca
e do clima de bovarismo teatral que imperou durante a
primeira década do século XX no Rio de Janeiro, tornando
a capital na famigerada “frívola city” de João do Rio.
Esta vasta gama de experiências do próprio ego
revela que o sujeito perverso guia-se a partir de uma
485
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dinamicidade e capacidade agregadora notáveis, posto
manifestarem-se em consonância com uma série de
pulsões (quase tão naturais quanto os próprios instintos)
íntimas à constituição psíquica do ego, que, graças ao
efeito castrador da Cultura sobre suas paixões, não
vê outra saída senão a perversão das mesmas. Tais
estruturas, desencadeadas a partir de pulsões sufocadas,
correspondem à realização do desejo enquanto uma
correção perversa da realidade insatisfatória ao sujeito,
que se permite ultrapassar as limitações impostas pela
Cultura moderna ao exigir obediência à lei comunitária –
mesmo que essa própria Cultura forneça os espaços e
circunstâncias nos quais o prazer possa ser alcançado de
maneira perversa.
Desta forma, este sujeito encontra-se, enim,
apto a conquistar o que lhe desperta o desejo, obtendo
o reconhecimento e admiração de seus iguais além de
também despertar o desejo através de seus afetos – objetivo
ao qual o Barão Belfort irá entregar-se, apaixonadamente,
no conto Emoções. É o trabalho do sujeito enunciador de
um discurso, a partir de suas pulsões e devaneios que de
outra forma o constrangeriam se trazidos à tona – discurso
este que, portanto faz-se disfarçado e sublimado no objeto
artístico que lhe permite, ao mesmo tempo, a expressão
sem o temor de represálias, além de fortalecer o senso de
alteridade que une este sujeito aos seus pares.
Desta forma, com o amparo da teoria psicanalítica
freudiana, é possível notar que o sujeito criativo compartilha,
com os demais impulsos de sua constituição psíquica, o
486
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
processo de criação de um dispositivo que lhe irá sublimar
as pulsões reprimidas pelo viés da fantasia erigida através
de uma transgressão metafórica, ao mesmo tempo em
que inserida num universo de valores defendidos pela
Cultura. Quando Freud sugestiona a procura, no ludismo
infantil, dos traços formadores desse impulso criador no
adulto, é notável a necessidade do sujeito de experimentar
algo além do lúdico. Trata-se da elaboração de um desejo
que lhe é, até certo ponto, desconhecido e inescrutável, o
que é uma marca notável da excepcionalidade do sujeito
diante do objeto de seu prazer: “A antítese de brincar
não é o que é sério, é o que é real” (FREUD, 1980, 149).
Trata-se aqui da construção de um discurso – ou mesmo
de decursos – do sujeito na modernidade, concebido pela
representação do desejo que insiste em ser atendido,
ainda que perversamente, por seu ego, e cuja abdicação
torna-se lhe deveras penosa justamente por tratar-se de
uma satisfação já experimentada, ainda que na tenra
idade. Como o próprio Freud airmava, não há a renúncia
do objeto de desejo: apenas a troca por algum outro,
pervertido em uma fonte de prazer possível ao sujeito sob
o jugo da Cultura, através da formação de um substituto.
Já em se tratando de Emoções, segundo conto
da coletânea Dentro da noite, escrita por João do Rio
e publicada pela Casa Garnier em 1911, destaca-se
a presença do ilustre “velho Barão Belfort”, elemento
simbólico da lânerie e do dandismo da Belle Époque
carioca, do cinismo cavalheiresco e da elegância leviana
que irão marcar não apenas os maneirismos, mas o próprio
487
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
discurso desta singular e perversa sociedade. Belfort,
presente apenas enquanto personagem perversora do
discurso, possui a verve e a carisma de se fazer uma igura
central na narrativa de Emoções, sua presença libertina e
iniciatória no universo da perversão e do vício inluenciando
perniciosamente as personagens de Oswaldo e Praxedes,
este último conhecido pela alcunha “O Chinês”.
Logo ao início do conto se observa a primeira nota
de perversidade no discurso do Barão, ao revelar ao seu
interlocutor (o narrador anônimo do conto) que, mesmo
perdendo a partida de cartas que jogava com Oswaldo, não
poderia deixar de apreciar um sujeito singular como aquele,
“que ainda tem emoções”. O inominado interlocutor então
observa que os olhares do Barão “seguiam, frios e argutos,
o jogo do bom Oswaldo”, sorrindo “um sorriso mau, entre
desconiado e satisfeito” (RIO, 1978, p. 15). A fala talvez
desperte estranhamento justamente por deixar antever
algo de inesperado na igura do Barão: por apreciar o rival,
mesmo em face à derrota no jogo, Belfort confessa também
apreciar o fato de Oswaldo ainda ter emoções, o que dá a
pista da natureza de sua própria perversão – espécie de
nevralgia do voyeur, direcionada às emoções alheias. A
respeito do jogo de azar, a grande linha de força que irá
orientar o discurso narrativo do conto – e a perversão que
igura expressivamente em Emoções – Anatole France (in
BENJAMIN, 1989, p. 249) airma que a “atração do perigo
(do jogo) é subjacente a todas as grandes paixões. Não
há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo
embriaga”, e justamente o caráter vertiginoso do jogo dá-
488
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
se porque “suas razões não são absolutamente as nossas
razões”, fazendo-se assim o objeto de desejo ao sujeito
“mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus”.
Retomando a narrativa do conto, Belfort revela
que “o homem é um animal que gosta” – e caracteriza-se
enquanto um connaisseur das emoções, particularmente
as alheias: não um “bisbilhoteiro das taras do próximo”,
mas “gozador das grandes emoções de em torno”. Para
o Barão, “ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os
paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada
das observações e a mais ina emoção” (RIO, 1978, p.
17), e estabelece nesta fala a sua função de voyeur do
prazer alheio e gozador das emoções daí advindas, o que
o constitui enquanto “ser horrível e macabro”, por suas
próprias palavras, “mas delicado”: Belfort não se entrega
às simples perversões da observação de comportamentos
impróprios à Cultura burguesa moderna; alimenta-se,
antes, de emoções mais reinadas, produzidas em seus
objetos pela exploração sucessiva e compulsória das
perversões por si descobertas em outrem, permitindo e
gozando a déviation dos mais incautos desejos em seus
objetos.
Uma vez sugerida esta sua natureza no limiar entre
o grotesco e o sublime, o Barão irá narrar a história do
prazer conquistado no explorar o vício do jogo – e o contar
esta própria história rende-lhe prazer, posto que aí também
possa gozar os efeitos de seu discurso por intermédio de
seu ouvinte anônimo, incitando nele emoções as mais
intensas. A partir deste ponto é introduzida à trama a
489
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
personagem de Praxedes, tal como o descreve o Barão:
“Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês
espantoso, sem dragões e sem vícios!”. Quando Belfort
percebe tratar-se de um sujeito “legislativamente moral”,
observa-se o seu interesse perverso pelo Chinês frente
àquela sociedade, burguesa e bovarista, na capital carioca
em plena Belle Époque.
O vício de Praxedes – ou antes, a válvula que
se abrirá às suas perversões retraídas frente a uma
Cultura burguesa moderna – será antevisto em casa do
Barão, durante um jantar no qual os homens jogavam e
Clotilde (a esposa do Chinês) cantava, “com a voz triste,
a ária do suicídio da detestável Gioconda”, em curioso
adiantamento ao desfecho da trama. Belfort descreve,
ao tomar das cartas, que o Chinês “olhou-as indiferente,
mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente.
Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a
luzir. Jogamos outra” (Idem, p. 18). A partir deste ponto
rebenta em cheio a virtuose da perversão, “a paixão
voraz, que corrói, escorcha, rebenta” (Idem, p. 19), para
usar as palavras de Belfort. Para Benjamin, este tipo de
sujeito representa um mecanismo de perversão buscado
pelos jogadores em geral, burgueses que, inseridos no
universo dos jogos de azar, comportam-se “de tal forma
que, mesmo em sua esfera pessoal, não importando
quão apaixonados eles possam ser, não podem atuar
senão automaticamente” (BENJAMIN, 1989, p. 128).
Testemunha-se o inabalável poder de sedução e aliciação
de Belfort, que em uma única noite encontra o ponto de
490
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
impacto mais volúvel na constituição psicológica de seu
afeto (Praxedes, o Chinês) e o introduz na perversão que
o irá condenar à maior das fatalidades.
Dando continuidade ao pequeno experimento
social que realiza, Belfort deixa-se estar ao lado do
Chinês, “só para não perder algumas horas o interesse
desse espetáculo”. O Barão revela que a personagem não
abandonava a mesa de jogo, deixando-se vampirizar pela
permissividade daquele espaço através da encenação
social de aceitação e camaradagem, posto que “a gente
do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já
o tratava de dom Praxedes” – o próprio Barão testemunha
de sua fortuna e sua procedente ruína que, como o era
de se esperar, se fez breve: “Ao cabo de uma semana,
entretanto, a chance desandou” (RIO, 1978, p. 18).
Belfort então informa ao seu anônimo interlocutor
de um longo intervalo de tempo, após o qual se reencontra
com o Chinês “numa batota da Rua da Ajuda, com o fato
enrugado e a gravata de lado”, já totalmente dominado
pela paixão do jogo. Este pede ao Barão algum dinheiro,
alegando estar “cansado de peruar”, necessitado de sentir
e gozar o prazer vertiginoso da mesa, e “arrumar tudo no
00”. E então Belfort, após ceder à quantia suplicada, dá o
seu aval da perjura alheia: “Compreendi então a descabida
vertigem daquela queda” (Idem, p. 20). É, portanto no jogo,
segundo Benjamin (1989, p. 244), que se pode observar
o advento de uma “superstição” ligada ao destino e à
sorte do sujeito, que perverte o seu prazer na experiência
sadomasoquista que apenas a mesa de jogo pode propor,
491
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de forma tão elegante e em doses imperiosamente
homeopáticas. Para Belfort, é “a alucinação”: o Barão
observa, ansioso, o desvelar da história do Chinês e de
seu vício como um espectador num teatro, “como quem
espera o inal de uma tragédia, porque tinha a certeza do
paroxismo daquele vício” (RIO, 1978, p. 22) – o que de fato
ocorre mediante o suicídio brutal e cruento de Praxedes,
no mais profundo desespero, rebentando o crânio pelas
quinas do cômodo no qual se encontrara com a esposa
pela última vez.
Belfort, após ceder alguma atenção à viúva, busca
regalar-se com a visão do defunto, “com a cabeça fendida
e os lábios coagulados de sangue roxo”. Mas o que lhe
desperta a atenção no cadáver de Praxedes foi “o olhar
vítreo, a mão recurva” – uma pose que, segundo o próprio
Barão, deixava-o como a “acompanhar o mal a que o
impelira a sua bola de aço”. Praxedes jogou com a própria
vida e encontrou-se em severos débitos, ao passo que
Belfort vive para se refestelar naquela pequena tragédia
e passar a história adiante. Ao inal do conto, o Barão
confessa uma vez mais a satisfação de seus prazeres
pela perversão do voyeur, através das emoções alheias,
projetando seu próprio ego num intrincado e singular
jogo de espelhamento e alteridade – e faz esta conissão
através de seu diálogo com o desconhecido interlocutor,
como que metonimicamente, “mirando-se no alto espelho
do vestiário” (RIO, 1978, p. 23).
A tensão construída ao longo do conto revela
o profundo clima de miséria e abandono que havia se
492
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
instaurado sobre o casal Clotilde e Praxedes, culminando
no desfecho simbolicamente sugerido pela música tocada
naquele distante jantar em que Belfort lançara a semente
do vício ao Chinês. Culmina então o prazer perverso
do Barão, pois o tom trágico que traz a história ao seu
desfecho é recebido com o frenesi prazenteiro que Belfort
revela sentir, eximindo-se de qualquer culpa para com
aquele fatal evento ao airmar que o Chinês “é o único
culpado por sua sina” – quando o que se percebe no conto
claramente sugere um assassínio, ainda que indeliberado,
cuja condução se dá magistralmente pelas sutilezas e a
inesse do próprio Barão.
Disto entende-se que o sujeito encontraria
a realização plena de suas pulsões através de uma
vivência regrada pela perversão, dominada pelo caos
e engendradora da ruína, condensada em Emoções na
permissividade da mesa de jogo enquanto ambiente lícito
frente à Cultura vigente. O incomum desta fenomenologia
da perversidade atesta para a marginalidade e o bovarismo
latentes no Barão Belfort e à sociedade que representa
metonimicamente, na qual os processos de obtenção
do prazer pervertem-se como em operações de câmbio
– ainal, é Belfort quem interpreta com maestria o papel
perversor do sujeito moderno, meistofelicamente lançando
mão dos vícios alheios para perverter, de forma notável, a
narrativa do conto e, enim, alcançar o próprio gozo.
493
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Bibliograia consultada
494
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
VENEU, Marcos Guedes. O lâneur e a vertigem: metrópole
e subjetividade na obra de João do Rio. Revista de estudos
históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, p. 229-243, 1990.
495
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
HISTÓRIA E LITERATURA EM NOVAS
FORMAS: CABEZA DE VACA, O
ENTRECRUZAR DE CULTURAS
496
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
escritor argentino Abel Posse faz uma releitura da crônica de
viagens Naufrágios (1542) do conquistador espanhol Álvar
Núñez Cabeza de Vaca. Publicado em 1542, em Zamora,
e, em 1555, em Valladolid, Naufrágios é composto de 38
breves capítulos em que Cabeza de Vaca, utilizando-se
da primeira pessoa do plural, faz um apanhado do que ele
apresenta como um testemunho do que teria sofrido, visto,
conhecido e feito na América. Cabeza de Vaca descreve
suas aventuras e as de seus três companheiros (Dorantes,
Castillo e Estevão), supostamente vividas na América. O
espanhol relata três desafortunados naufrágios sofridos
pela tripulação, seguidos de uma série de diiculdades,
desaios e encontros com o imprevisível (tempestades,
doenças, ameaça do inimigo (índios arqueiros), fome, sede,
frio, animais desconhecidos, sol, chuva, etc.). Utilizando a
técnica da autobiograia revisada, a personagem Cabeza
de Vaca, mediante lashbacks, relata as aventuras que
viveu na América entre os anos de 1527 e 1537, alternando-
os com momentos do presente, na enunciação ictícia, na
Sevilha de 1557.
O narrador protagonista de El largo atardecer
del caminante relata o processo de construção de sua
nova autobiograia, desde quando recebeu de uma
jovem bibliotecária (Lucinda) uma resma de papel até o
momento que encerra a obra e decide guardá-la em uma
das estantes de uma biblioteca espanhola, para que não
se perdesse no esquecimento.
Ao presentear o velho conquistador com uma
resma de papel, a jovem Lucinda oferece a possibilidade
497
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de viver novamente e escrever um relato mais convincente
que o anterior. O depósito dessa nova versão de sua
história em uma biblioteca atua como o “passaporte” do
conquistador para a suposta imortalidade que nos propõe
o escritor argentino Jorge Luis Borges (2005) em seu conto
“El inmortal”, e insere o protagonista da narrativa em uma
eterna geração de conquistadores.
Longe de ser um Pierre Menard, Abel Posse
não tem a pretensão de produzir uma reescrita literal do
discurso da Nação. O “laço” entre os textos acontece
de forma oposta. O relato histórico de Cabeza de Vaca
é tomado pelo autor justamente para dar “voz” aos
possíveis hiatos que tenham sido deixados para trás pela
historiograia, questionando, assim, suas “origens” e os
referentes “legítimos” do discurso histórico.
Nessa sua versão da História, a personagem
critica o processo de construção do seu primeiro relato
uma vez que ele está permeado de omissões, lacunas
e intervalos inexplicados. O questionamento sobre a
suposta verdade do discurso histórico, ou seja, a fonte
e os processos de transmissão e testemunho e a visão
homogênea e horizontal associada com a comunidade
imaginada da nação são alguns dos temas fundamentais
desse romance, que poderiam vir a ser pensados como um
discurso performativo do qual nos fala Homi Bhabha (2007)
em “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da
nação moderna.” Como uma contra-narrativa da Nação,
como as que “continuamente evocam e rasuram suas
fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais
498
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
– perturbam aquelas manobras ideológicas através das
quais “comunidades imaginadas” recebem identidades
essencialistas” (BHABHA 2007, p. 211.), El largo atardecer
del caminante suplementa a narrativa pedagógica do
colonizador (Naufrágios), colocando em evidência o tempo
disjuntivo da Nação, a incompletude do conhecimento
a que o homem pode aspirar e a História oicial que se
apresenta como pretensa portadora da verdadeira fonte
de interpretação da História.
499
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ressaltar que a estratégia de suplementar sugere que
“o ato de acrescentar não necessariamente equivale a
somar, mas pode, sim, alterar o cálculo”. (BHABHA, 2007,
p. 219). É o sinal da adição que vai compensar um sinal
de subtração na origem, o movimento de esquecer para
lembrar.
O conquistador se vê obrigado a participar da sintaxe
do esquecer ou esquecer para lembrar. Ser obrigado a
esquecer para lembrar se torna necessário e base para
recordar a nação, pois conforme teoriza Bhabha “ser
obrigado a esquecer – na construção do presente nacional
– não é uma questão de memória histórica; é a construção
de um discurso sobre a sociedade que desempenha a
totalização problemática da vontade nacional” (BHABHA,
2007, p. 226). É o autor contemporâneo, leitor do relato de
Cabeza de Vaca, quem preenche as lacunas e pontos de
indeterminação do discurso histórico, interferindo, dessa
forma, na leitura atual daquele documento.
O conquistador tem sua vida completamente
modiicada após a experiência do naufrágio. De volta à
Espanha, ele não se reconhece mais, sente-se “outro”
nesse espaço, que já não consegue mais chamar de seu.
Com a vida e o corpo marcado pela cultura americana, não
consegue se adaptar aos antigos costumes: “era otra vez
don Alvar Núñez Cabeza de Vaca, el señor de Xerés. Pero
era otro, por más que yo simulase. Era ya, para siempre,
otro.” (POSSE, 2005, p. 179.)
Essa perda de um “sentido de si”, pela qual Cabeza
de Vaca passa, é chamada por Stuart Hall (2006), de
500
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
deslocamento ou descentração do sujeito, e esse duplo
deslocamento — descentração dos indivíduos tanto de
seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos
— constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
Também podemos analisar esse novo sujeito que retorna a
partir da perspectiva do Unheimlich, do sentimento de não-
pertencimento de que fala Freud. Cabeza de Vaca torna-
se um sujeito fragmentado, “composto não de uma única,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). O conquistador
assume identidades que não podem ser uniicadas em
um “eu” coerente, e “projeções exteriorizadas retornam
para assombrar e dividir o lugar em que são produzidas.”
(BHABHA, 2007, p. 211.)
De conquistador a conquistado, Cabeza de Vaca
passa por inevitável processo de transformação e volta à
Espanha para assombrar o Império: de identidade única
e estável - o sujeito cartesiano - situado no centro do
conhecimento, a sujeito fragmentado, transculturado, que
leva em si todas as partes que compõem a monstruosa
estrutura social: aquela e a de hoje.
501
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Cabeza de Vaca, tanto o do relato oicial quanto
o do iccional, passa por um profundo processo de
transculturação — neologismo criado pelo antropólogo
cubando Fernando Ortiz em Contrapunteo cubano del
tabaco y el azúcar (1940), em substituição ao termo
aculturação, que, segundo ele, há muito tempo vinha
sendo questionado e utilizado de modo reducionista. Nesse
novo processo, a cultura de origem não é desprezada,
ela se revela resistente e ativa. Nessa concepção há um
intercâmbio entre duas culturas, ambas contribuintes e
cooperantes para o surgimento de uma nova realidade.
Essas personagens têm suas vidas completamente
alteradas depois do período de experiência com o outro
e passam a viver entre duas identidades, em uma terceira
margem, no espaço de liminaridade entre o discurso
pedagógico e o performático, ou entre a História e a
história.
Conforme se sabe o encontro inicial das culturas
europeias e americanas ocorreu de forma drástica e
traumática: “una de ellas pereció, casi totalmente, como
fulminada. Transculturación fracasada para los indígenas
y radical y cruel para los advenedizos.” (ORTIZ, 1963, p.
101.) Os índios foram os que mais incorporaram elementos
da cultura europeia, pelo fato de terem sido vítimas do
violento processo de aculturação a que foram submetidos
pelo conquistador europeu.
Valendo-se do conceito antropológico de
transculturação, o uruguaio Ángel Rama, na década de
1970, o transpõe para o plano das Artes, da Literatura
502
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
e das operações culturais resultantes do contato entre
culturas diferentes. Rama vê a transculturação de forma
otimista, como um processo mediador e integrador da
cultura dominada sobre a dominante. O uruguaio identiica
o peruano José María Arguedas, o mexicano Juan Rulfo,
o colombiano Gabriel García Márquez e o brasileiro João
Guimarães Rosa como narradores transculturadores, que
levaram a fundo o projeto transculturador: “escritores que
son absorbidos por las capitales donde muchas veces
cumplen su tarea literaria adulta, sin que por eso puedan
desligarse de sus orígenes y de los moldes culturales
formativos.”481 Tais escritores, provenientes de regiões
que conservam suas particularidades culturais, como a
costa peruana, o planalto de Jalisco, a costa colombiana
e o sertão de Minas Gerais, respectivamente, dialogam
diretamente com o moderno, mantendo, contudo, os
valores de suas culturas regionais. Esses escritores se
enquadram no grupo que Rama denomina de regionalistas
plásticos: escritores que não se rendem ao projeto
homogeneizante da modernização, ou seja, incorporam a
cultura do outro de modo vivo e original, como “fermentos
animadores”, recorrendo a componentes próprios e
tendo como respostas formas inventivas e criativas. A
plasticidade cultural permite ao regionalista apropriar-
se seletivamente de propriedades do “outro” e, com elas
enriquecer sua experiência de mundo. Esses escritores
mantêm um discurso literário ancorado em fortes tradições,
504
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
de largos cuernos. Creo que comprendí
que en la callada y disimulada vida de
los seres del desierto podía encontrar
también el sustento de mi propia
vida482.
REFERÊNCIAS
508
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la
América Latina, 1979-1992. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993.
MOREIRAS, Alberto. O im do realismo mágico. In: ______.
A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais
latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
p. 220-247.
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo Cubano del tabaco y el
azúcar. Habana: Universidad Central de Las Villas, 1963.
POSSE, Abel. El largo atardecer del caminante. Buenos
Aires: Booket, 2005.
RAMA, Angel. Novísimos narradores hispanoamericanos
en “Marcha”, 1964/1980. México: Marcha Editores, 1981.
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América
Latina. México: Siglo Veintinuo Editores, 2004.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Muerte de una disciplina.
Santiago: Palinodia, 2009.
509
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
CARTA DO EDITOR
510
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
511
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora