Meu Lugar Ao Sol - Leah Johnson

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DADOS DE ODINRIGHT

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Tradução
Thaís Britto
Foto © 2020 de Reece T. Williams

Leah Johnson é escritora, editora e eterna


moradora do centro-oeste dos EUA, no momento fazendo
hora extra em Nova York. Formada pela Universidade de
Indiana e com um mestrado pela Sarah Lawrence College,
ela atualmente leciona escrita criativa. Quando não está
escrevendo, você pode encontrá-la no Twitter
(@byleahjohnson), onde ela fala sobre cultura pop e política.
Seu primeiro romance jovem adulto, Espere até me ver de
coroa, foi publicado no Brasil também pela Alt.
SUMÁRIO

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Olivia
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Olivia
Agradecimentos
Créditos
Para as garotas negras que foram chamadas de
exageradas e para aquelas que não acreditam ser o
suficiente: vocês são a música mais linda do mundo.
MEU LUGAR AO SOL é um romance que celebra a
alegria compartilhada dos shows e o entusiasmo feroz do
primeiro amor. Para aproveitar por completo a experiência
de leitura, que espero ser inspiradora e reconfortante,
alguns leitores podem preferir saber de antemão que este
livro inclui referências a perda dos pais, ataques de pânico,
violência à mão armada e compartilhamento de imagens
sem consentimento.

Com amor,
LEAH
Olivia

SEXTA-FEIRA DE MANHÃ

Minha melhor amiga sempre foi a primeira pessoa a


quem recorro quando preciso dar um sacode na minha vida.
O rádio está no último volume dentro da SUV de Imani, e
nós duas estamos com a cabeça jogada para trás, gritando
a letra da música a plenos pulmões para o teto do carro.
Não é exatamente o sacode pelo qual eu estava procurando
quando fui atrás dela, três meses atrás, no início do verão —
quando estava triste, frustrada e, mais uma vez, de coração
partido —, mas é uma sensação boa. Do tipo que só é
possível quando você está com sua melhor amiga, a
caminho de seu primeiro festival de música, deixando para
trás os escombros de um segundo ano do Ensino Médio
desastroso.
É a sensação de possibilidade.
— Não estou dizendo que o amor não é real! Só estou
dizendo que, estatisticamente, não tem como ter sido amor
de verdade todas as vezes em que você disse estar
apaixonada — grita ela, durante o solo estrondoso de
bateria saindo das caixas de som.
Ela abre a boca para que eu lhe dê um Twizzler e se
inclina na minha direção sem tirar os olhos da estrada,
avançando devagar na fila de carros. Imani está usando um
de seus muitos óculos de sol de grife, o único capricho
fashion que ela se permite, mas posso ver a expectativa em
suas sobrancelhas definidas levantadas por trás dele.
Cumpro com minha função de copilota e ponho o doce em
sua boca.
Ela mastiga e engole, depois balança a mão no ar para
enfatizar seu argumento.
— Eu li um estudo sobre isso. Em geral, você precisa ter
pelo menos dois relacionamentos longos, um
relacionamento a distância, quatro ficadas de uma noite só
e morar junto com uma pessoa antes mesmo de se
apaixonar pela primeira vez. Você nem passou pelos
requisitos básicos ainda. Levando em conta os dados, a
probabilidade de algum dos seus relacionamentos ter sido
amor de verdade é bem pequena.
Imani Garrett e suas probabilidades. Imani e seus dados.
Às vezes seu cérebro trabalha demais e ela não consegue
ver o que vejo — que o amor não é uma equação
matemática. Encontrá-lo requer tentativa e erro, como
todas as boas canções de amor sempre me ensinaram. E,
no meu caso, requer mais tentativas do que consigo contar
e mais erros do que deveria ser humanamente possível.
Está quente do lado de fora, dá para perceber pelo suor
nas camisetas laranja com os dizeres VOLUNTÁRIO DO FARMLAND
do pessoal que sinaliza para que sigamos em frente, mas,
dentro do carro, o clima está perfeito. Há o zumbido do ar-
condicionado, a batida do grave e Imani e eu, quicando de
expectativa — o melhor tipo de nervosismo. O tipo que
precede um fim de semana grandioso o suficiente para
mudar alguma coisa, mudar tudo. E, apesar da insistência
de Imani em usar uma matemática insuportável para tentar
me convencer de que meu coração não anda fazendo hora
extra, é exatamente disso que preciso no momento.
A vocalista da banda, Teela Conrad, solta um agudo
brilhante, e, nesse momento, esqueço totalmente de todo o
meu histórico romântico catastrófico e do meu mais recente
fracasso.
Eu vivo para testemunhar momentos como este. Imani
canta a letra junto a plenos pulmões enquanto tamborila os
dedos no volante no ritmo da música, e quase consigo me
convencer de que estamos na mesma sintonia. De que em
algum lugar no fundo daquele cérebro brilhante e
engenhoso há o mesmo tipo de inquietação que existe no
meu. Mas esses momentos nunca duram muito. Porque no
fim ela sempre desliga o rádio e volta a ser ela mesma.
Eu ainda estou procurando meu botão de desligar.
— E aí, Farmers! — cumprimenta uma das voluntárias ao
pararmos no guichê de entrada. Ela sorri para mim, e abro
meu maior sorriso em resposta. Já sei que essa é a minha
galera. — Vocês parecem prontas pra se divertir!
— Sim, algumas de nós mais do que outras.
Imani aperta o pause na tela que está controlando a
playlist do Spotify e, pronto, já está mal-humorada de novo.
Como se eu não me lembrasse de que o Festival Farmland
não é exatamente o seu conceito de diversão.
Ela estaciona o carro e nós saímos para os voluntários
conferirem se há algo proibido nele: nada de animais,
armas, drogas. Enquanto esperamos, meu minivestido
larguinho começa a colar na pele graças à umidade do norte
da Geórgia em agosto, mas continuo sorrindo. Nada vai me
desanimar hoje, nem mesmo uma melhor amiga relutante e
uma vida inteira de romances trágicos, nem um celular
vibrando com as mensagens de uma mãe que acha que, no
momento, estou no retiro da igreja de Imani que acabei
inventando.
Não consigo nem me sentir culpada pela mentira ridícula
— praticamente blasfêmia — que precisei contar a ela para
vir.
Obviamente não sou religiosa como minha mãe. A igreja
dela é um santuário com bancos de madeira, ministros e um
pratinho onde as pessoas depositam doações. A minha
igreja é o calor humano de corpos juntos na multidão, a
vibração do baixo pulsando sob nossos pés e um vocalista
que prega a palavra da rebeldia, da revolução e do amor por
meio de belas harmonias e uma progressão de acordes
perfeita. Algumas pessoas encontram a salvação em
prédios adornados com vitrais, outras, num show de punk
rock em um porão.
— Essa foi uma péssima ideia, Liv — diz Imani,
inclinando-se para apoiar o cotovelo no capô do carro, mas
rapidamente desistindo ao se lembrar de como a superfície
deve estar quente. É como se ela estivesse lendo minha
mente. — Você devia estar se preocupando com tantas
outras coisas neste fim de semana. Tipo, sei lá, talvez a
audiência judicial? — Sua voz ganha aquele tom irritado,
mas ainda afetuoso, que sempre aparece quando Imani
entra no modo maternal. — Você está demorando uma vida
pra decidir o que vai dizer. Não pode improvisar esse tipo de
coisa.
Não consigo ver seus olhos através das lentes dos óculos
escuros, mas sei que estão apertados. Não quero falar sobre
a audiência. Não quero nem pensar nisso. Eu me recuso.
— Não vamos falar sobre isso. — Minha voz sai mais
rápida e mais ríspida do que eu queria. Tento logo aliviar o
clima. — Devíamos falar sobre o fato de a minha melhor
amiga ser literalmente um gênio que ganhou de bandeja
uma vaga antecipada na Universidade de Chicago!
Pode até ser uma tentativa de desviar a atenção de mim,
mas quero mesmo falar sobre isso. Imani passou o verão
inteiro trabalhando em um projeto de pesquisa na
Universidade de Chicago e já está com a vaga praticamente
garantida para o próximo outono. Ela é brilhante e linda,
com sua pele negra e sua autoconfiança. É o pacote
completo. Pena que seu cérebro enorme não encontrou um
jeito de consertar o meu.
Imani fica corada, envergonhada com o elogio, e diz:
— Não importa. Não tente mudar de assunto. Você tem
que...
E, como os voluntários do Farmland são a minha galera,
meus camaradas, meus parceiros, Imani não consegue
terminar a frase, porque somos liberadas e então
conduzidas para a área de camping. Por mais que eu ame
Imani e valorize sua opinião, quase sempre fico agradecida
quando ela perde a linha de raciocínio.
Imani não queria vir ao festival de jeito nenhum. E, como
em muitas outras ocasiões, foi convencida pelos destroços
reais e terríveis do meu mais recente término. Ainda
estávamos no outono, mas meu segundo ano já tinha sido
uma série de catástrofes românticas; a última delas
inclusive me tornara uma excluída nas rodinhas da escola e
uma vergonha completa para a minha mãe.
Logo depois do acontecido, fiz o que qualquer garota
com o mínimo de senso faria: liguei para minha melhor
amiga e pedi a ela para me levar no drive-thru do
McDonald’s, onde eu poderia chorar no estacionamento
enquanto devorava um McFlurry de Oreo, como era da
vontade de Deus.
— Imani, por favor, por favor, por favor, vamos fazer
alguma coisa no verão. Alguma coisa legal. Alguma coisa
bem longe daqui — implorei, em meio às lágrimas.
Eu já estava pensando alguns meses à frente. Precisava
de alguma coisa que me ajudasse a aguentar o restante do
ano na escola, ou então não sobreviveria com a sanidade
intacta.
— Olivia, tudo bem, para com isso. — A voz dela assumiu
um tom reconfortante pós-término. O tipo de tom que se
usa com criaturas da floresta apavoradas e, aparentemente,
também com garotas de dezesseis anos cujo coração foi
arrancado e atropelado pelo Dodge Charger ridículo do ex-
namorado. — Você está muito melhor sem aquele papel
higiênico de folha simples em formato de ser humano na
sua vida.
— Mas eu — soluço — queria que ele — soluço — fosse —
assoada de nariz num lenço de papel chique perfumado — o
cara ceeeeeerto!
— Eu sei — disse ela, sem desviar o olhar do meu. Limpei
o nariz na manga da camiseta e ela pegou o álcool em gel
tamanho família. Segurou até que eu estendesse a palma
da mão, onde esguichou um pouco do produto, e continuou:
— Sei que queria.
Sou muito boa em ter o coração partido. Algumas
pessoas podem até dizer que o potencial de destruição do
meu coração é infalível. Mas meu verdadeiro talento secreto
parece ser, na verdade, ter o coração partido ao mesmo
tempo em que destruo a vida de alguém. Me amar — ou, na
maior parte das vezes, ser amado por mim — é garantia de
desastre.
Imagine que sou o gêmeo malvado e desconhecido dos
Fab Five, os cinco apresentadores do Queer Eye. Em vez de
entrar na sua vida e dar um jeito nas suas pontas duplas,
transformar seu apartamento numa página de revista de
decoração e renovar seu guarda-roupa, eu digo as coisas
erradas, faço as coisas erradas e sou a prefeita da cidade
dos Exagerados e Apressados desde que nasci.
Mas Imani não é assim. Por algum golpe de sorte,
arranjei o tipo de melhor amiga cujo superpoder é encontrar
as soluções, enquanto o meu parece ser criar problemas.
Ela é uma das poucas pessoas do universo que ainda não
afastei. Obviamente tenho muitos motivos para amá-la, mas
o fato de ela sempre me apoiar está no topo da lista. Logo
depois de seu gosto musical impecável.
Odeio que tudo sempre termine desse jeito, que eu
sempre termine desse jeito. Mas pelo menos tenho Imani
para ajudar a me resgatar de todos os buracos que cavo
para mim mesma.
— Só vamos para outro lugar! Qualquer lugar, não
importa. — Dava para sentir aquele formigamento de
urgência na base do meu pescoço, que sempre sinto
quando preciso fazer algo grande: cortar o cabelo,
mergulhar de cabeça num novo relacionamento, tentar me
alistar no Corpo da Paz aos quatorze anos “pegando
emprestada” a identidade da minha irmã mais velha para
usar como se fosse minha. — E se fizéssemos uma viagem
de carro? Podíamos ver uns monumentos e coisas assim.
Imani riu com deboche.
— Você odeia monumentos.
Apoiei a cabeça no painel e soltei um resmungo. Parte do
problema aqui sempre foi o fato de que Imani é a pessoa
que tem o carro, então é ela quem escolhe todos os nossos
passeios-para-curar-o-coração-partido. Essa foi mais uma
ocasião em que a falta de mobilidade sobre quatro rodas
limitou bastante minhas opções.
— Tá bem, tá bem, eu acho mesmo que monumentos são
o destino mais chato e mal-empregado do dinheiro dos
contribuintes. — Assoei o nariz no lenço. — Então vamos ver
alguma outra coisa.
— Acho que você está se esquecendo de alguns detalhes
cruciais. Um: sua mãe nunca vai deixar você ir. Dois: você
está sem um centavo.
— Contraponto: minha mãe já me odeia mesmo, então
mais uma decepção não vai ser nada. E tenho algumas
centenas de dólares que economizei para o negócio do
carro. — Não que eu não estivesse investindo no negócio do
carro. Estava só levando um tempinho. Tipo o tempinho do
meu Ensino Médio inteiro.
O rádio estava com o volume no mínimo, mas mesmo
em meio às lágrimas eu conseguia identificar o cantarolar
baixinho da banda favorita de Imani tocando ao fundo.
Kittredge era quase uma peça do carro dela. Era sua banda
favorita em parte pela música, mas principalmente por
causa de Davey Mack, o baixista ruivo, magrelo e excêntrico
que dividia os vocais com Teela Conrad — e a única pessoa
do planeta por quem Imani já admitiu sentir algum tipo de
atração.
Imani abriu a boca para responder, mas parou
imediatamente ao identificar a melodia que saía das caixas
de som. Aumentou o volume até o máximo.
— “Sou só uma garota que mordeu a isca, e você ainda é
o garoto que meu o destino arrisca!”
Ela berrou o verso completo, depois encostou de volta no
assento e diminuiu o volume.
— Ai, nem acredito que vou perder a turnê de verão
inteira.
Essa conversa era conhecida. Imani tinha perdido os
shows do Kittredge nas últimas duas turnês de verão por
causa do programa de que participou na Universidade de
Chicago, e também perdeu a turnê antes disso porque os
ingressos que comprou eram falsos. O que no fim das
contas foi perfeito para mim, porque acabei precisando dela
para me apoiar durante mais um término naquela noite.
E desta vez, logo depois que terminassem a parte
europeia da turnê, corria o boato de que entrariam num
hiato.
Naquele momento eu me lembrei de ter esquadrinhado o
roteiro da turnê com ela quando fora anunciado, meses
antes, e uma lâmpada de desenho animado acendeu sobre
a minha cabeça. De repente, eu soube o que fazer. A última
data da turnê era um festival de música gigantesco na
Geórgia, no fim de agosto, onde eles seriam a atração
principal. Seria alguns dias depois da data em que Imani
voltaria de Chicago e uma semana antes de começar nosso
último ano no Ensino Médio. Eu teria minha viagem de
carro, Imani veria o amor da vida dela e, por um efêmero
fim de semana antes de voltar à escola e à visão do inferno
que aquilo seria para mim, nós poderíamos ter a maior
diversão das nossas vidas.
— Festivais de música são perigosos — argumentou ela.
— Insolação? Desidratação? Um atirador louco matando
todo mundo? Não me olhe assim. Não se lembra do que
aconteceu naquele festival em Las Vegas?
— Acho que você se preocupa demais — respondi.
Imani sempre foi muito certinha a respeito de qualquer
coisa que envolva o mínimo risco de perigo. Para mim, isso
é porque ela ouve a BBC World e a NPR com o pai desde
antes de saber falar. Muito noticiário deixa a pessoa
paranoica.
— Bem, uma de nós precisa se preocupar.
Não foi fácil convencê-la, nem mesmo com os
argumentos tentadores. Ela rebatia todos com estatísticas e
mais estatísticas de tudo que poderia dar errado, mas se
tem uma coisa na qual sou boa, é em dar um jeito de dobrar
as pessoas. E o amor de Imani por Davey Mack sempre vai
prevalecer sobre qualquer lógica. Não posso dizer que não
fico agradecida por ter encontrado seu ponto fraco.
Antes de concordar, ela impôs uma condição.
— Você não pode fazer o que sempre faz — disse,
parando com o dedo já quase no botão para comprar os
ingressos pelo telefone. A luz amarela horrorosa do letreiro
do McDonald’s entrava pela janela e iluminava o interior do
carro. — Quando a gente chegar lá, precisa me prometer
que não vai decidir passar o fim de semana inteiro pegando
alguém novo.
Ela olhou para mim com uma franqueza que Imani só se
permite ter quando estamos nós duas, e eu sabia que o que
viria depois era importante.
— É para ser um programa nosso, só eu e você, ok? Fim
de semana das melhores amigas.
Ela levantou o dedo mindinho e enrosquei o meu no dela.
Beijamos os dedões para selar a promessa, do mesmo jeito
que sempre fazíamos desde que viramos melhores amigas.
Então Imani comprou o ingresso e imediatamente começou
a explorar o site do Farmland.
— E quero andar de roda gigante quando a gente estiver
lá. O site diz que eles têm uma. Então não podemos perder.
Ela abaixou a cabeça logo depois de dizer isso, como se
estivesse envergonhada de ter algo tão mundano na sua
lista de desejos, como se as únicas coisas que ela pudesse
desejar fossem um Prêmio Nobel, uma Medalha Fields ou
algo assim.
Fiquei me lembrando de todas as vezes em que Imani foi
a algum lugar só porque eu pedi, e do quanto a amava por
isso. Depois de tudo que ela fez por mim, manter essa
promessa era o mínimo que eu podia fazer. Um fim de
semana épico para nós duas assistirmos às nossas bandas
favoritas, ganharmos uma marca de bronzeado bem ridícula
e termos uma experiência tão divertida que me seguraria ao
longo de todo o ano escolar que me aguardava.
— Combinado — concordei.
Porque é isso que melhores amigas fazem.
TONI

SEXTA-FEIRA DE MANHÃ

Meu verão está terminando do mesmo jeito que


terminaram todos os verões de que me lembro na vida:
montando acampamento sob o sol inclemente no terreno de
três quilômetros quadrados do Festival Farmland, ao lado de
alguém que entende isso e que me entende. É perfeito. É
familiar. Até que a pessoa na minha frente abre a boca, e eu
me lembro, com impressionante clareza, que nada está
igual aos verões anteriores.
— Toniiii — choraminga Peter, sentado na grama. — Isso
seria muito mais rápido se você me deixasse ajudar.
Peter tira o boné velho dos Oakland A’s da cabeça e
sacode os cachos do cabelo escuro antes de colocá-lo de
volta, com a aba para trás. Está com as pernas cruzadas a
poucos metros de onde estou montando o acampamento, e
faço o meu melhor para ignorar aqueles olhos grandes e
castanhos de cachorro pidão que me encaram. São quase
irresistíveis, até mesmo para mim.
Solto um grunhido em vez de responder e puxo a rede
sobre a barraca para prender com mais segurança. Tudo vai
mais rápido quando faço sozinha. Não é para ofendê-lo, é
apenas um fato.
— Não é da natureza humana ser uma ilha, T-Bone! Veja
o caso do John Tyler. Chamavam ele de “presidente sem
partido”, nunca teve qualquer chance de ser reeleito. E sabe
por quê? O homem se isolou.
Mais uma vez, ele obviamente andou assistindo por
conta própria um daqueles documentários que passavam
para a gente na aula de história. Minha única resposta é um
olhar que diz Você está mesmo me comparando a um
homem branco morto de novo, Peter?.
— Está bem, a estética é um pouco diferente — completa
ele, nervoso —, mas você entendeu o que eu quis dizer.
Faço uma expressão contrariada com o volume alto de
sua voz, e Peter se explica:
— Opa, desculpa, T. Eu fico exaltado quando falo dos
presidentes pré-Reagan. — Ele toca na tela no celular, que
acende. — Ei! Alguém acabou de postar que viu Bonnie
Harrison na barraquinha de tacos. Temos que ir lá. Não é?
Com certeza. Sei como você gosta de Sonny Blue.
Ele está certo, Sonny Blue é minha dupla queer de folk-
soul favorita, mas estou concentrada na tarefa de agora. Ele
espera um segundo antes de falar de novo. Peter faz isso
desde o dia em que nos conhecemos, neste festival, há seis
anos. Ele não se importa nem um pouco de preencher todas
as lacunas da conversa que deveriam, teoricamente, ser
ocupadas por mim. Mas tento não dizer mais do que o
absolutamente necessário. Este, assim como meu trabalho
solitário e eficiente, é mais um tijolo usado para construir a
impenetrável Fortaleza de Toni Foster.
Peter é a única pessoa que já conseguiu ultrapassar
minhas defesas. Seis anos atrás, nossas barracas ficavam
lado a lado — ele com seu tio Rudy e eu com meu pai —, e
não consegui me livrar dele o fim de semana inteiro. Não
importava o quão retraída ou mal-humorada eu estivesse,
Peter continuava aparecendo, fazendo perguntas, insistindo
para que eu provasse sua receita inconfundível de
sanduíches de marshmallow diante da fogueira. Era como
se ele nem percebesse o quanto eu era antissocial. Eu não
conseguia fazer com que ele se mandasse. E em algum
momento, ali entre a quadragésima terceira curiosidade a
respeito de um presidente morto e a décima segunda
história sobre quebrar uma parte do corpo graças a seu jeito
atabalhoado, esqueci que era isso que eu queria.
Peter se levanta e é como se eu estivesse olhando para
um palhaço se esticando depois de sair de um daqueles
carros minúsculos — como conseguiu parecer tão pequeno?
Ele põe os braços ao redor dos meus ombros, embora esteja
um calor de trinta e cinco graus sob o sol de meio-dia e eu
esteja afundando uma estaca no chão com o pé, então é por
pouco que Peter não ganha uma joelhada na costela. Ele me
abraça forte, como se estivesse com medo de que eu fosse
tentar fugir, o que mostra que me conhece bem.
— Eu te amo assim mesmo, minha parceira platônica —
sussurra ele.
E, por um momento, fico tentada a retribuir a frase, por
puro instinto. Quando alguém diz que te ama, você diz que
ama também, meu cérebro me lembra. Mas eu não faço
esse tipo de coisa.
Dou dois tapinhas no braço dele, e de repente estou
louca para sair daquele abraço e começar o que viemos
fazer aqui. Este fim de semana não é para declarações de
amizade eterna ou para Peter tentar bancar o terapeuta
comigo usando as técnicas da mãe dele de “criação dos
filhos com amor”. Não é nem pelos shows que estamos
aqui, embora isso seja um ótimo bônus. Estamos aqui para
que eu possa resolver a minha vida. É isso.
Consigo respirar melhor quando Peter se afasta, e quase
me sinto culpada por isso. Mas me impeço. Se deixar
espaço para qualquer outro sentimento que não seja
motivação, é capaz de eu perder a cabeça. Respiro fundo e,
em vez disso, termino de afundar a estaca no chão. E assim,
de repente, o acampamento fica parecido com o do ano
passado, e o do ano anterior a esse, e os de todos os anos
desde que eu tinha idade para andar.
Mas quando começo a pensar no que — em quem — está
faltando, balanço a cabeça como se pudesse fisicamente
afastar o pensamento. Tento focar no que está acontecendo
ao meu redor. O barulho de nossas vizinhas abrindo duas
latas de cerveja Pabst Blue Ribbon, uma risada leve vinda
do acampamento em frente, a rádio do Farmland tocando
na caixa de som da minha caminhonete.
— E não se esqueça de se inscrever no concurso Golden
Apple! — A voz do locutor é tão animada e radiofônica que é
impossível ignorar. — É uma tradição antiga do Farmland, e
temos certeza de que este ano vai ser ainda mais especial.
Não é, Carmen?
Entra uma voz de mulher, meio rouca mas ainda assim
bem comercial.
— Com certeza, Jason. Os jurados deste ano são os
melhores em muito tempo. Para os competidores, sem
dúvida é uma oportunidade única. E não podemos nos
esquecer de outra competição importante neste fim de
semana, o #EncontradoNoFarmland...
Os apresentadores continuam falando, mas paro de
prestar atenção. O Farmland é famoso por uma série de
coisas — ser um dos maiores festivais do país, lançar a
carreira de algumas das maiores bandas do mundo —, mas
o que eles valorizam mesmo é o Golden Apple. É um
concurso de talentos que dá a músicos amadores a chance
de tocar diante das atrações principais do festival, que
atuam como jurados, e o vencedor ganha a oportunidade de
tocar com uma das bandas no palco no último dia do
festival.
É uma das maiores atrações do evento, e é um sucesso
enorme todo ano. Desta vez, quem ganhar vai tocar com o
Kittredge, uma das bandas de rock alternativo mais famosas
do mundo e, coincidentemente, os antigos patrões do meu
pai. Ele foi gerente de turnê deles durante a maior parte da
minha vida, e antes trabalhou para umas outras bandas dos
arredores do Meio-Oeste, mas nenhuma que tenha
deslanchado como aconteceu com o Kittredge.
— Ouviu isso, Toni? — chama Peter, de dentro da
caminhonete, onde está tentando carregar o telefone com
um adaptador um tanto temperamental. — Estão falando da
sua grande chance!
Ele coloca a parte de cima do corpo toda para fora da
janela e toca uma guitarra imaginária, completamente fora
do ritmo. Quero rir, mas a ideia de ter uma grande chance
— um momento em cima do palco que define toda a sua
vida — está próxima demais para o meu gosto. Não quero
ser famosa. Não quero ser uma estrela. Só quero algumas
respostas.
Pego a case que agora abriga meu violão favorito — um
belo Fender de mogno que meus pais me deram no meu
aniversário de quinze anos — na caçamba e a apoio na
lateral da caminhonete. Está enfeitada com adesivos do
mundo inteiro, indicando todos os lugares em que já esteve.
As poucas partes ainda vazias são lembretes de que ainda
há lugares para ir. Cidades grandes incríveis, botecos sujos
e locais de show gigantescos decoram seu exterior. É uma
espécie de tapeçaria, com uma narrativa bem coesa: uma
vida fragmentada que levou meu pai para longe de mim
mais vezes do que eu conseguia aceitar.
Mas bem ali no meio, novo e brilhante em comparação
com o restante dos adesivos desgastados com o tempo,
está o mais recente deles. Um adesivo vinho e bege onde se
lê BEM-VINDO À SUA CASA, HOOSIER, da recepção aos calouros da
Universidade de Indiana, no mês passado. Minha mãe deve
ter colado ali enquanto eu arrumava as malas ontem à noite
e não prestava atenção. Estou até surpresa que ela não
tenha colado o adesivo da Faculdade de Direito Maurer lá
também, só para eu não esquecer meu destino. Olhar aquilo
faz meu estômago revirar, assim como qualquer outro
lembrete de para onde eu devo ir na semana que vem.
Sei que Peter não entende exatamente por que isso é tão
importante para mim ou por que interrompo a conversa
toda vez que ele tenta falar sobre faculdade, embora eu
saiba que ele se esforçaria para entender se eu tentasse
explicar. É que tudo para Peter se resume a grandes sonhos
e grandes amores. O pai dele é um artista contemporâneo
famosíssimo que vende suas instalações por tipo um bilhão
de dólares cada uma, e a mãe tem uma loja na Etsy onde
vende joias artesanais para outras mulheres brancas para
ajudá-las a encontrar a “fonte da alma” — o que quer que
isso signifique.
Peter podia dizer a eles que queria se formar em
Tecnologia da Indústria de Boliche e ficariam felizes (ele
chegou a cogitar isso durante cerca de um mês no primeiro
ano, depois de assistir a um documentário sobre a história
da bola de boliche). Os Menon são o tipo de família que
escolhe sempre a paixão em vez da lógica. E tem
funcionado para eles. Mas não é assim para a maioria de
nós.
Eu me ocupo arrumando o colchão de ar dentro da
barraca enquanto Peter puxa assunto com nossas vizinhas,
duas garotas de regatas de irmandade e rabos de cavalo
altos, que têm um adesivo da Universidade do Tennessee
colado no jipe. Por mais agradecida que eu esteja por ele ter
concordado em vir comigo neste fim de semana, respiro
aliviada por ter um momento sozinha. Sinto que estou
perdendo o controle, apesar dos meus esforços para engolir
toda a ansiedade que está me consumindo desde que
chegamos ao Farmland. Todas as memórias que se recusam
a ficar enterradas, todas as promessas que meu pai fez e
que agora nunca mais serão cumpridas.
A verdade é que nada poderia ter me preparado para a
forma como perdemos meu pai. Mas isso não muda o vazio
torturante que se instalou dentro de mim pelos últimos oito
meses.
Não sei se acredito num poder divino ou em vida após a
morte ou em qualquer uma dessas coisas que o padre disse
no velório do meu pai. Mas os incontáveis verões no melhor
festival de música do mundo, numa antiga fazenda em
Rattle Tail, na Geórgia, junto com outros sessenta mil fãs de
música, assistindo a shows montada nos ombros queimados
de sol do meu pai, me ensinaram uma verdade inalienável:
em algum lugar nos anos-luz que separam o espiritual e o
científico, o conhecido e o indescritível, é lá que está a
música ao vivo.
Temos Jimi Hendrix num show de duas horas no
Woodstock que revolucionou o rock’n’roll para sempre.
Temos Beyoncé, que se tornou a primeira mulher negra a
ser atração principal do Coachella, numa performance que
redefiniu a cultura. Temos Bob Dylan plugando sua guitarra
elétrica no Newport Folk em 1965, e o Queen se reunindo no
Live Aid vinte anos depois. Música ao vivo é a parada: é a
chave para o universo, e você só precisa prestar atenção.
Se você tem uma dúvida, meu pai me ensinou que a
música ao vivo tem a resposta. E eu não tenho outra opção
a não ser acreditar. Porque nunca precisei mais de uma
orientação do que agora.
Desde que eu era criança, minha mãe sempre deixou
claro o que ela queria para mim: estabilidade, consistência.
Algo mais do que a vida que meu pai levava. Preciso fazer
algo concreto, algo real. E isso significa ir para a faculdade.
Não porque ela me castigaria, cortaria a minha grana, me
expulsaria de casa ou qualquer coisa do tipo se eu não
fosse, mas porque partiria o coração dela me ver terminar
como meu pai. O tempo inteiro correndo atrás de um sonho
que nunca se realizaria.
Não vou fazer isso com ela. Não posso.
Quero acreditar no discurso da minha mãe de que
começar o curso na Universidade de Indiana vai me mostrar
o caminho que ando buscando, mas minha intuição diz bem
alto que meu propósito não é ficar sentada numa sala de
aula em Bloomington lendo as irmãs Brontë e tentando me
recuperar da festa da noite anterior. Quando penso na
faculdade, minhas mãos começam a tremer e mal consigo
respirar. Mas quando penso em não ir, me dá um branco
completo.
Minha mãe não tem a menor dúvida de que o motivo do
meu total descontrole nos últimos meses é o luto. Mas a
principal razão, a mais assustadora, é que tenho quase
dezoito anos — praticamente uma autêntica adulta — e não
tenho a menor ideia do que quero fazer com a minha vida. E
agora eu sei, com total clareza, que não dá para perder
tempo tentando descobrir esse tipo de coisa. Meu pai foi o
exemplo perfeito disso.
Meu pai sempre disse que, quando as pessoas sobem no
palco, elas simplesmente sabem. Foi o que aconteceu com
ele. Quando tinha dezoito anos, ele pegou a guitarra e tocou
para um público pela primeira vez num café em
Bloomington. E assim, de repente, ele teve certeza de que
queria passar o resto da vida ajudando a colocar música boa
no mundo. Segundo meu pai, mesmo que eu não fosse
trabalhar na indústria fonográfica como ele, era impossível
mentir em cima de um palco.
Qualquer coisa da qual esteja fugindo, qualquer coisa
que deveria estar buscando, tudo se revela sob aquelas
luzes.
Não foi aqui neste festival que ele encontrou seu
propósito, mas pode ser onde vou encontrar o meu. Tem
que ser.
É muita coisa para explicar ao Peter ou a qualquer
pessoa, então não explico.
— Toni! — Como sempre, ouço Peter antes de vê-lo.
Passo a mão no rosto e saio da barraca para encontrá-lo.
Quando olho, ele está passando a mão na barriga, bem
onde a camiseta cropped do Fleetwood Mac deixa seu
abdômen magro e bronzeado à mostra. Ele está numa onda
de trazer de volta os croppeds para homens ultimamente.
De acordo com ele, “Um maluco no pedaço fazia isso! A
masculinidade frágil não pode nos impedir de abraçar o
melhor da moda dos anos 1990”.
Posso ouvir o estômago dele roncando mesmo a alguns
metros de distância. Ele levanta as sobrancelhas para mim.
— Barraquinha de taco?
Concordo com a cabeça. Pego meu telefone, embora o
sinal seja horrível aqui, e começo a andar na direção do
Core — o centro do festival, onde fica tudo, desde comida
até merchandising e os palcos. Caminhamos por uns cinco
minutos até que noto uma confusão de movimento pelo
canto do olho e paro. Minha primeira reação é ficar com
medo diante da imagem de alguma coisa se movendo de
forma rápida e imprevisível, até que compreendo o que
estou vendo.
Uma garota está toda enrolada na corda verde da
barraca. Está usando um vestido rosa de verão que
provavelmente seria mais indicado para um encontro
pretensioso no Museu de Arte de Indianápolis do que para
um festival de música, tranças grandes enroladas num
coque tão enorme que me surpreende ela não ter perdido
totalmente o centro de gravidade, além de um par de
óculos gigante em formato de coração que obviamente tem
muito mais estilo do que utilidade.
Já vi muita coisa nessa minha vida de Farmland, mas
dificilmente alguém que estivesse tão desastrosamente
despreparada para montar um acampamento.
— Na verdade — começo, a voz meio rouca pelo pouco
uso. — Vá sem mim. Eu vou...
Aponto com a cabeça na direção da garota enrolada com
a barraca.
Peter abre um sorriso.
— Esse é o espírito do Farmland! Pode deixar, amiga. Vou
pegar para você a melhor opção sem glúten que eles
tiverem na barraquinha de tacos.
— Espera! Pode me inscrever no Golden Apple, já que vai
lá?
Digo a ele para usar meu nome do meio em vez do
sobrenome, só para garantir. Não quero nenhum nepotismo
atrapalhando as coisas.
A gente deveria ter chegado ontem à noite para eu me
inscrever mais cedo — só tem umas cinquenta vagas por
dia —, mas Peter estava muito cansado para dirigir depois
do voo até Indianápolis, onde me encontrou, e já tínhamos
planejado sair de manhã cedo mesmo. Também não ajudou
nada um dos nossos pneus ter furado perto de Nashville e
Peter praticamente ter quebrado o dedo só de sair do carro
para tentar me ajudar a trocá-lo.
Ele me cumprimenta e quase sai correndo. Enquanto ele
se afasta, vou em direção à garota, que agora está tão
enrolada na barraca que parece um pouco com uma múmia.
— Ei — chamo. Ela não responde, e percebo que é
porque estou falando muito baixo. Às vezes esqueço que
preciso calibrar o volume quando estou falando com alguém
que não é Peter ou minha mãe. É como se minha voz ficasse
presa na garganta. — Ei!
Os olhos da garota encontram os meus por meio
segundo, como se não tivesse certeza se estou falando com
ela ou não. E então ela imediatamente cai de cara no chão.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À TARDE

Não era minha intenção ficar encarando, mas eu sou


apenas uma reles mortal com um probleminha de atenção e
um olho bom para coisas bonitas.
Não é nada mal que a coisa bonita em questão seja uma
garota que é muita areia para o meu caminhãozinho, tipo
uma praia inteira de areia. E eu não vou entrar nessa de
novo. Não, Olivia Brooks não vai mais ficar atrás de
ninguém. Não vai mais conquistar ninguém. Não vai mais se
jogar de cabeça em casinhos que inevitavelmente acabam
em fracasso. Já passei dessa fase.
Mas não tem problema nenhum em ficar apenas
admirando enquanto a garota caminha pela pista lamacenta
e finge não rir de algo que o amigo falou. É totalmente
irrelevante para mim o momento em que ela tira o chapéu
de caubói com abas largas e sacode os dreads como se
estivesse num comercial de xampu. Não me abala em nada
o fato de aquele short desfiado fazer com que ela pareça ter
pernas absurdamente longas, num tom de marrom tão vivo
que me lembra o Chiron no pôster de Moonlight — e elas
são tão brilhantes, meu Deus, como alguém pode ter umas
pernas dessas? Qual é a rotina de skincare dessa menina?
Mas de repente ela está andando na minha direção, e eu
não levo o menor jeito para esse negócio de acampamento,
não importa quantas mensagens eu tenha lido nos fóruns
do Farmland, e estou toda enrolada com essa barraca idiota
que comprei na internet há três semanas, e ela está
gritando para mim e...
Estou no chão, um montinho tamanho Olivia cercado de
fios de náilon verdes e estruturas de alumínio. Dá para
sentir que meu coque foi derrubado e meus óculos de sol
novos estão caídos para o lado. Pouquíssimas situações
seriam mais constrangedoras do que essa. E olha que já tive
a minha cota de momentos constrangedores diante de
pessoas bonitas. Pergunte a River Brody sobre o incidente
com a tigela de ponche no baile de despedida dos calouros.
Se Imani não tivesse ido até o Core tentar conseguir sinal
no celular para ligar para os pais, certamente ela estaria
parada aqui do lado, fazendo beicinho e aquela expressão
de Olivia-como-você-sempre-acaba-assim antes de me
ajudar. Mas, no momento, a pessoa que se aproxima de
mim tem um rosto indecifrável e óculos de sol Wayfarer
espelhados que refletem minha imagem.
— Hã.
Pele Perfeita tapa o sol ao se inclinar sobre mim. Assim
de pertinho, posso ver cada detalhe de seu rosto, do
piercing no septo até a forma de suas sobrancelhas, uma
um pouquinho mais arqueada do que a outra. Ela passa a
mão na nuca e abaixa levemente os óculos para ver meus
olhos. Eu poderia dizer alguma coisa, lançar algum flerte
deplorável pensado exatamente para o tipo de pessoa que
acho que ela é só de olhar rapidamente, mas essa barraca
está apertando meus braços ao lado do corpo, e a queda no
chão meio que me deu um pico de adrenalina, e a Pele
Perfeita está me encarando, e nada disso é bom para os
meus pulmões.
Eles fazem o melhor possível, os pobrezinhos chiam que
só, mas qualquer coisa é capaz de sobrecarregá-los. E... Isso
mesmo. Aí está.
Eu me sacudo toda, ofegante, tentando liberar os braços
para conseguir pegar o inalador que está guardado na
pochete.
— Você está bem? — pergunta Pele Perfeita, e eu até
ficaria impressionada com sua perplexidade diante dessa
bagunça que sou eu tendo um ataque de asma a seus pés
se eu não estivesse, sabe como é, lutando para fazer o ar
chegar aos meus pulmões.
— Meu. Inalador — mal consigo dizer.
Aponto a pochete com a cabeça, na esperança de que
ela se recomponha para salvar a minha vida, literalmente, e
então possa voltar a ser linda como uma deusa.
— Seu o qu... Ah, meu Deus.
Sua expressão agora é de completo terror, e então ela se
joga no chão e revira a pochete até encontrar meu inalador
cor-de-rosa e enfiá-lo na minha boca. Nem penso nisso
quando ela aperta e libera o salbutamol. Respiro fundo
como faço desde criança, quando ainda era minha mãe que
cuidava dos meus remédios. Prendo a respiração pelos dez
segundos necessários e, como se ela soubesse o que está
fazendo, aperta o inalador mais uma vez.
Quando sinto minha frequência cardíaca se estabilizar e
o ar começa a fluir melhor, deixo minha cabeça cair na
grama e solto um suspiro. Pele Perfeita faz a mesma coisa.
Ela se deita ao lado do sushi de barraca que sou eu e solta
um suspiro aliviado também.
Leva uns trinta segundos até eu dizer:
— Ei, hã, desculpe pela situação de vida ou morte, mas
será que você pode me dar uma ajuda?
É como se minha voz a tirasse de seus próprios
pensamentos com um solavanco, e ela se senta
imediatamente. A garota empurra meu corpo um pouquinho
para a direita com a mão firme, mas gentil, e puxa os fios
com a outra. Antes que eu perceba, já estou em pé
novamente e em dívida eterna com uma estranha e seu
rosto impassível. Depois de tudo, ela se levanta, se ajeita e
está ótima, como se nada tivesse acontecido.
Quero apertar suas bochechas só para suavizar sua
expressão. Era mais fácil decifrá-la antes, quando estava
com medo por mim, mas agora ela parece uma espécie de
estátua. Linda, mas sem emoções. Depois de anos de
treinamento diante de pessoas lindas e indisponíveis, e
vendo ali tanto um desafio quanto uma situação familiar,
aprendi que, se eu piscar de certa maneira ou rir de uma
piada nem um pouco engraçada, em algum momento
consigo arrancar uma reação de qualquer um. Uma reação
que me colocaria no centro do universo da pessoa enquanto
eu tivesse sua atenção.
E seria bom no começo: ser notada, trocar minha pele
para me tornar alguém digna de seu olhar enquanto
durasse nossa interação. Mas não terminaria bem. E Imani
está certa. Preciso parar de pensar assim. Preciso parar de
procurar o fogo e depois me perguntar por que acabei
queimada.
— Você está bem? — pergunta ela, e me dou conta de
que fiquei encarando por tempo demais. Ela aponta para os
escombros da barraca atrás de mim e ajeita seu Ray-Ban. —
Eu posso, hum... ajudar.
— Ah, meu Deus, sim! Por favor!
Eu e Imani chegamos quase meio-dia, então já faz um
calor desumano. Tivemos um incidente com um burrito do
posto de gasolina que, três horas depois de sairmos de
Indianápolis de manhã, deixou Imani incapacitada. Ainda
estou tentando esquecer aquilo tudo. Vamos dizer apenas
que nós duas tivemos nossa dignidade abalada no banheiro
daquele posto.
Saio da minha barraca-casulo para que minha salvadora
possa pegar os materiais e imediatamente lembro por que
as mensagens nos fóruns também diziam para tomar
cuidado ao andar descalça nos acampamentos. Sinto uma
dor forte no pé e vejo que pisei em um daqueles ganchos de
metal idiotas que servem para manter a barraca no chão.
Estremeço de dor e Pele Perfeita logo me pega pelo
braço.
— Vem comigo. — Ela olha para o meu pé. — Tenho kit
de primeiros socorros.
Eu nem discuto, e ela sustenta basicamente todo o meu
peso enquanto me leva até a SUV de Imani. Ela me ajuda a
sentar na beira da mala do carro e promete voltar logo.
Tento me recompor conforme ela corre até sua caminhonete
para buscar o kit. Queria ter um espelho, mas, na falta dele,
vou me virar com um simples inventário do meu estado
atual. Puxo meu minivestido para baixo, ajeito o coque e
limpo os óculos escuros antes de ela voltar segurando uma
caixinha vermelha com o símbolo médico da cruz branca em
cima.
Deixo as mãos sobre o colo, como se não estivesse
tentando me arrumar para ficar apresentável segundos
atrás, um pouco envergonhada embora provavelmente eu
nem devesse estar. Ela parece aquele tipo de pessoa que
levanta da cama impecável, a pele perfeita sem
maquiagem, e invejo essa facilidade.
— Muito sério isso aí — digo, já que ela ficou quieta de
novo. — Não acredito que me esqueci de trazer um kit de
primeiros socorros. É a primeira coisa que todos os fóruns
dizem para trazer.
Ela resmunga concordando, mas não responde. Passa
álcool em gel nas mãos e pega o meu pé. Com as mãos
seguras, passa a pomada, e seu silêncio me deixa nervosa.
Eu não lido bem mesmo com silêncios constrangedores.
— Normalmente demora até o segundo encontro para as
pessoas revelarem seu fetiche por pés.
Se eu pudesse enfiar a mão na cara forte o suficiente
para voltar no tempo e me impedir de dizer isso, eu faria.
— Sou do tipo que gosta mais de mãos — diz ela, sem
qualquer emoção. — Mas obrigada.
Diante disso, eu gargalho tão alto que chega até a ser
meio mal-educado, a julgar pela expressão confusa da
garota. Então me dou conta de que ela salvou minha vida,
se ofereceu para montar minha barraca e cuidou do meu pé
depois de mais uma amostra da minha falta de jeito, e nem
sequer sei seu nome. Ela termina de enfaixar meu calcanhar
e solta meu pé devagar, e estendo a mão.
— Meu nome é Olivia. — Ela demora um pouquinho para
segurar minha mão, mas enfim me cumprimenta. — Juro
que normalmente sou mais organizada do que isso. E que
minhas piadas costumam provocar risadas e não silêncio.
— Não me diga. — A voz dela é quase inaudível, mas
consigo ver claramente um sorrisinho no canto de sua boca.
— Toni. — Ela guarda o kit de primeiros socorros na pochete
e dá de ombros. — Já vim aqui muitas vezes para saber que
não dá para esquecer os Band-Aids.
Em vez de continuar a conversa, Toni vai direto ao
trabalho. Recolhe todas as peças soltas da barraca que
deixei espalhadas e nem pega o manual de instruções, já
sai consertando tudo o que eu basicamente destruí. O
telefone dela vibra ao meu lado na mala, onde o deixou.
— Toni? — Pego o celular e o estendo para ela. — Alguém
está te ligando.
Ela pega o telefone, coloca no viva-voz e o posiciona
numa cadeira para continuar com as mãos livres.
— Más notícias, T-Bird! — É a voz estridente de um cara,
e Toni imediatamente para o que está fazendo. Ela fica
quieta de novo. O cara continua falando, como se não
esperasse uma resposta. — As vagas solo para o Golden
Apple estão esgotadas.
Ela pega o telefone devagar, desliga o viva-voz e o leva
até a orelha, fazendo com que eu só consiga ouvir o lado
dela da conversa.
— Não é possível — ela grita e sussurra ao mesmo
tempo. Faz que não com a cabeça enquanto o cara fala.
Depois responde de modo quase inaudível: — Peter, não é
possível que esteja. Eu não sou... Não posso ser uma dupla.
O Golden Apple. Está em todos os fóruns de mensagens
sobre o festival. Se eu tivesse a mínima suspeita de que
minha experiência na última fila do coral me levaria a algum
lugar, eu até teria feito a minha inscrição só por fazer. Mas
pela expressão de Toni nesse momento, completamente
perdida, dá para ver que não era uma coisa que ela queria
fazer só para anotar no diário depois.
E, do nada, um tipo de plano diferente começa a se
formar na minha cabeça. Nada de mudanças de visual ou de
alterar minha personalidade para ser algo que alguém
talvez queira que eu seja — um plano que pode ajudar a
colocar as coisas no lugar em vez do habitual roteiro de
destruição. Toni precisa de alguém para competir junto com
ela. Eu preciso de uma distração.
A garota encerra a ligação e se joga na cadeira ao lado.
Desço da mala do carro e toco em seu ombro. Ela mal se
vira e, mesmo quando faz isso, é como se tivesse se
esquecido de que eu estava ali.
Eu me tornei quase uma especialista em adivinhar quais
são os papéis que as pessoas querem que eu interprete. Sei
tudo que é possível saber sobre criação de galinhas sem
gaiolas graças a meu namoro com Hilton, que fazia parte do
Futuros Fazendeiros da América. Fiquei incrível em fazer
cartazes de protesto quando estava saindo com Brandon,
que era presidente da sede do PETA no Colégio Park Meade.
Cheguei a considerar me alistar no Corpo da Paz quando
Jenna, da aula de literatura, disse que só namoraria garotas
que se dedicassem ao serviço público.
Sou um camaleão, mudando constantemente para me
adaptar ao meu entorno.
Mas o problema de mudar de pele o tempo inteiro para
virar outra coisa, ou outra pessoa, é que isso requer
manutenção constante para funcionar. E quando não
consigo mais — quando a superfície começa a rachar —, eu
viro alguém que causa mais mal do que bem.
Minhas mãos começam a suar só de imaginar o que
acontece quando me envolvo na vida de alguém, quando os
machuco sem querer. Seco as mãos na barra do vestido e
sacudo a cabeça para afastar os pensamentos. Não, neste
fim de semana não vou fazer nada disso. Só trouxe meus
vestidos favoritos, meus sapatos mais bonitos. Vou ser a
melhor versão de mim mesma neste fim de semana. Não
vou cometer os mesmos erros de sempre. E esse é o melhor
jeito de fazer isso.
— Toni — digo, tentando imprimir o máximo de confiança
e segurança à minha voz. Uma onda súbita de clareza me
faz perceber que preciso disso. Mais do que um fim de
semana divertido com a minha melhor amiga, eu preciso
fazer algo de bom para alguém e para mim mesma. Preciso
que ela diga sim. — Acho que posso ajudar.
TONI

SEXTA-FEIRA À TARDE

— Não.
Pego novamente a barraca para terminar de ajudar essa
menina e voltar para o que sobrou do meu fim de semana.
Agora que não posso competir no Golden Apple, isso tudo
não passa de uma última farra antes de mais uma futura
universitária se mudar para o campus. Parece clichê, parece
vazio, parece todas as coisas que eu não queria que fossem.
— E por que não? — Olivia dá a volta para ficar bem no
meu campo de visão e coloca as mãos nos quadris. Ela
tomba a cabeça para o lado, como se tivesse a audácia de
estar indignada. — Você precisa de mim e eu acabei de me
oferecer com toda a bondade do meu coração. E sou uma
cantora bem ok. Você deveria me agradecer.
Abaixo os óculos escuros para conseguir vê-la sem
nenhuma lente colorida no caminho. Ela é baixinha, mas o
coque formado pelas tranças lhe dá quase trinta
centímetros a mais de altura. A maquiagem está perfeita,
mesmo com todo o ataque de asma/barraca, e suas
bochechas brilham. Ela tem a pele clara o suficiente a ponto
de eu conseguir ver o vermelho da queimadura de sol
inevitável já aparecendo em seus ombros descobertos. E
embora esteja agora com uma expressão carrancuda, ela
é... bonitinha. Esse é o primeiro sinal.
— Porque não trabalho em equipe — respondo,
finalmente. — E não aceito favores.
Coloco os óculos de volta e passo uma das hastes de
alumínio pelo tecido da barraca. Essa interação está me
deixando mais lenta. Esse é o segundo sinal.
Talvez fosse para ser assim. Que tipo de iluminação eu
estava buscando ao me apresentar numa performance
fracassada? Não consigo tocar uma música inteira há oito
meses. Mal consegui pensar na ideia de tocar desde o
funeral do meu pai. Por que achei que vir aqui e me
inscrever nessa cópia barata do The X Factor me faria
decidir o que fazer da vida? Era um tiro no escuro de
qualquer forma.
— Mas! — Ela bufa. — Lembra aquela vez em que você
salvou a minha vida? Bons tempos, não é? Criamos umas
belas memórias, eu diria.
— Por que você está insistindo tanto nisso? — pergunto,
olhando para ela.
Eu me dou conta de que essa é a conversa mais longa
que tive com alguém sem ser minha mãe ou Peter em muito
tempo. Conheço essa garota há apenas meia hora e ela já
conseguiu transpassar meus anos e anos de prática para
falar o mínimo e apenas quando necessário. Esse é o
terceiro sinal.
— Na verdade, não responda. Não preciso saber. —
Limpo as mãos no short e aponto a barraca com a cabeça.
Já está na hora de acabar com essa interação. — Bom fim
de semana.
Começo a andar na direção do Core e mando uma
mensagem para Peter avisando que vou encontrá-lo. Minha
cabeça está rodando tentando entender o que significa não
competir no Golden Apple. A vida adulta é apenas uma lista
de concessões. Sem qualquer rumo para o futuro, passo
quatro anos numa faculdade que não quero cursar. Eu me
formo com um título para o qual não dou a mínima, caio
numa carreira qualquer e fico ali por quarenta anos. Minha
mãe fica orgulhosa porque fiz a coisa certa, a coisa estável,
mas, antes que eu perceba, já esqueci o que é ter dezessete
anos e ter opções. Mesmo que eu não tenha a menor ideia
de quais opções são essas, ou como alcançá-las.
Estou vendo um filme do resto da minha vida e não gosto
de para onde vai esse enredo.
Começo a andar mais rápido por instinto, tentando
chegar a algum lugar, qualquer lugar onde eu possa fugir do
meu destino.
— Espera!
Viro para trás e Olivia está correndo em minha direção.
Ou, bem, correndo do jeito que dá, com suas sandálias
enormes batendo no caminho de cascalho que leva ao Core.
Quando ela me alcança, imediatamente usa o inalador e
suspira.
— E se fosse uma troca?
Pisco os olhos.
— Como assim?
— Uma mão lava a outra. Uma via de mão dupla. Eu já
namorei umas quatro pessoas que faziam discursos e
participavam de debates, então sei mais um milhão desses
ditados.
Ela sorri, e é um sorriso brilhante e aberto. Se eu fosse
outro tipo de pessoa, com outro tipo de bagagem, eu
provavelmente ficaria encantada. Mas não estou. Na
verdade, só estou ficando mais frustrada.
— Não faz sentido.
Continuo a andar, mas ela vem caminhando ao meu
lado. Nunca vi alguém tão difícil de despachar,
especialmente por mim, a não ser o Peter, talvez.
Normalmente basta um olhar para impedir as pessoas de se
sentarem à minha mesa no refeitório, tentarem ser minha
dupla na aula de química ou me venderem algo na rua.
Existe um motivo para eu ser chamada de Sra. Noel pelos
meus colegas de turma, e não é porque asso biscoitos ou
tenho as bochechas rosadas.
É porque sou uma rainha de gelo. E em geral sou muito
boa nisso.
— Faz sentido sim, Dona Rabugenta, você só não está
prestando atenção direito — insiste ela. — Estou dizendo
para fazermos uma troca. Então não é como se eu estivesse
te fazendo um favor, vamos ficar quites. Um acordo de
damas!
Paro de andar. Não respondo, e ela encara isso como
uma oportunidade para continuar falando.
— Já ouviu falar do #EncontradoNoFarmland?
É claro. É claro que essa garota quer que eu a ajude a
encontrar aquelas maçãs idiotas para aquela caça ao
tesouro idiota. Eu devia ter imaginado. Todos os novatos no
Farmland caem na cilada de tentar ganhar essas
pegadinhas comerciais. Em um ano foi uma campanha nas
redes sociais da Live Nation para ver quem conseguia
postar mais com a hashtag deles em troca de ingressos
para shows por um ano. No ano seguinte era algo ainda
mais irritante. Nunca tem nada a ver com música.
Além de ser ridículo e, sinceramente, vergonhoso (meu
pai se reviraria no túmulo se soubesse que estou
participando de alguma campanha de marketing capitalista
que usa a música como pretexto para fazer as pessoas
comprarem e consumirem mais), é impossível. E digo isso a
ela.
— Esse festival fica numa área de trezentos hectares.
Não existe nenhuma chance de você encontrar todas.
— Não é impossível para alguém como você. Alguém que
conhece o lugar tão bem depois de anos vindo aqui. — Ela
dá de ombros. — Se você precisa de mim tanto quanto
preciso de você, sabe que não vou te decepcionar.
Combinado?
Ela levanta os óculos em formato de coração até o
cabelo e estende a mão como se estivesse tudo certo.
Como se seu argumento tivesse sido tão certeiro que eu não
pudesse recusar.
E talvez ela esteja certa. Que escolha tenho? Sem
qualquer outro plano, vou para Bloomington na semana que
vem sem nem poder argumentar. Vou ser a filha que minha
mãe me criou para ser, a que toma decisões sólidas e se
mantém firme nelas. Então, a não ser que eu suba no palco
e, como meu pai sempre dizia, ele me revele outra opção,
vai ser faculdade mesmo. É assim que funciona.
— Eu queria muito ganhar aquele carro. — Olivia estende
a mão para mais perto de mim e abre um sorriso ainda mais
largo. — E gostaria de ajudar você a ganhar o concurso. E
então, o que vai ser?
Não posso contabilizar um quarto sinal, então decido
apagar tudo. Começar do zero.
Tento apaziguar a confusão no fundo do meu cérebro
dizendo que essa é uma má ideia, que Toni Foster não faz
esse tipo de coisa, que não posso e não devo fazer isso. Que
quanto mais você confia em outras pessoas, mais fácil é
você se ferrar. Seguro a mão dela e faço o possível para
ignorar o fato de a palma de sua mão encaixar
perfeitamente na minha.
— Beleza. — Aperto a mão dela. — Tô dentro.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À TARDE

Assim que deixo Toni perto dos acampamentos, vou


procurar Imani para contar sobre a mudança de planos para
o fim de semana, e minha expectativa é encontrar minha
melhor amiga fazendo várias coisas. Talvez esteja parada
diante de algum ventilador gigante no Core, tentando se
recuperar do que ela chamou mais cedo de “calor
irracional”. Ou até comprando comida na barraquinha de
tacos, onde todo mundo nos fóruns diz que é obrigatório
comer. Eu até poderia imaginar que ela encontrou um show
legal e já está assistindo a alguma banda tocar.
Mas nunca na minha vida eu esperaria que ela estivesse
conversando com um cara. E, pelo que estou vendo, um
cara gatinho!
— Olivia! Aqui!
Ela acena ao me ver serpenteando pela multidão.
Surpreendentemente, levei um tempão para passar pela
segurança porque eram muito meticulosos. Pelo visto, tanto
tempo que minha melhor amiga foi substituída por um clone
especialmente falante.
Quando chego mais perto da barraquinha de tacos onde
eles estão — então ela foi mesmo comer na barraquinha de
tacos! —, o cara, que deve ter mais ou menos a nossa
idade, sorri como se eu fosse um velho amigo de guerra.
Dou uma analisada rápida: o cabelo preto cacheado está
escondido sob um boné de beisebol velho e seus braços
longos e magros, de pele escura, lembram os daqueles
bonecos de vento que ficam nos estacionamentos de
concessionárias. Ele é tão alto quanto um jogador de
basquete, mas não tem o mesmo porte atlético dos
jogadores de basquete que namorei. E está usando uma
camiseta cropped. Com um short jeans.
Depois de cinco segundos, já o considero meu filho, meu
rolinho de canela magrelo.
Ele levanta a mão para me dar um high five, e eu
imediatamente bato de volta. Se tem uma coisa de que
gosto, essa coisa é um high five animado.
— Peter Menon, muito prazer — se apresenta ele.
Olho para Imani e ela dá de ombros, como se, assim
como eu, também estivesse confusa sobre os motivos para
estar conversando com um estranho. Não é que Imani não
seja sociável, ela é. Mas normalmente só com pessoas que
já conhecemos. Ela nunca foi muito fã de estranhos. Esse é
o meu campo de atuação.
— Eu e Imani estávamos aqui nos conhecendo graças a
essas coisinhas muito apimentadas.
— Você devia ter visto como a gente ficou. Tipo o Paul
Rudd naquele meme do Hot Ones.
Eles riem dessa piadinha interna, mas eu nem reclamo,
porque quem não ama o Paul Rudd? Pego a minicâmera
instantânea pendurada no pescoço para tirar uma foto dos
dois no meio da risada. Sacudo a foto e sorrio. Ei. Olha só
pra gente.
— Vocês têm uma energia ótima — diz ele, ainda
sorrindo. De repente, tem uma ideia. — Cara! Vocês duas
precisam conhecer a minha amiga. Estou indo encontrar ela
perto do letreiro do Farmland. Ela vai se inscrever no Golden
Apple. — Ele pega o celular e começa a vasculhar as
mensagens. — Vocês precisam ouvir a voz dela. É incrível.
Dou risada da animação de Peter. Sua energia é tão
tangível que sinto estar absorvendo um tanto só de estar
perto dele.
— Ah, perfeito, é pra lá mesmo que estamos indo.
Pego Imani pelo braço, e Pete vai tocando uma bateria
imaginária enquanto caminhamos.
Imani odeia quando mudo os planos em cima da hora,
então tento ir suavizando a notícia. Não pensei na reação
dela quando decidi fazer isso, e agora percebo que pode ter
sido um erro de julgamento. Ela queria um fim de semana
estritamente de melhores amigas, e isso dá uma bagunçada
na nossa programação. Mas! Pensando pelo lado positivo,
eu posso ganhar um carro, o que significa que Imani não vai
precisar me levar a todos os lugares o tempo inteiro e, como
estou sempre falida, pagar pela gasolina extra. Só preciso
colocar as coisas nessa perspectiva e ela vai basicamente
me implorar para incluir Toni nos planos do nosso fim de
semana. É quase certo.
Quase sendo a palavra importante aqui.
— Então, o negócio é o seguinte: depois que você saiu do
acampamento, aconteceu uma coisa...
— Eu organizei um roteiro pra gente não se perder —
interrompe ela, já pensando bem à frente, como sempre. —
Pensei que a gente podia ir na roda-gigante hoje, talvez
assistir a um dos shows do palco Red Delicious, e depois ver
as lojinhas.
Abro a boca para interromper só por tempo o suficiente
para contar sobre a caça ao tesouro, mas meu telefone não
para de apitar. Fico achando que pode ser algo urgente,
mas, quando pego o celular, as mensagens da minha mãe
aparecem na tela. Elas são a lembrança da minha mentira,
a única que seria capaz de mantê-la fora da minha cola por
um fim de semana inteiro, e lê-las deixa um gosto amargo
na boca. Não quero usar o Deus dela para conseguir o que
quero, o que preciso, mas não havia outro jeito.
Não é como se ela ainda confiasse em mim, depois de
tudo o que aconteceu. Não é como se ela fosse confiar em
mim de novo um dia.
Não se esqueça de dar a Imani o dinheiro da gasolina pela carona
até o retiro.

E não deixe de rezar antes de comer. Você sempre


esquece.

Isso vai ser bom pra você.

É essa última mensagem que me abala e me faz tropeçar


um pouco enquanto andamos. É como se ela estivesse
sacudindo uma bíblia na minha cara. Isso vai ser bom pra
você fica martelando na minha cabeça até ser a única coisa
que consigo ouvir. Tem tanta coisa contida nessas seis
palavrinhas. O quanto preciso mudar, o quanto ela acha que
preciso mudar. Eu sou muito rápida, muito soltinha, muito
imoral, e isso é ruim para mim. Ela me lembra disso quase
todos os dias desde tudo o que aconteceu com Troy.
Já é ruim minha mãe achar que sou incapaz de tomar
boas decisões. E que até minhas boas intenções acabam
magoando as pessoas. O pior é ela estar totalmente certa.
Sinto uma onda de determinação me invadir. Nós vamos
ganhar essa caça ao tesouro. Vou cumprir minha promessa
a Imani, ganhar esse carro, ter um ótimo fim de semana e
deixar esse lugar — e Toni — melhor do que o encontrei. Eu
posso virar a página. Posso.
— Olha só, Imani, antes de fazer tudo isso, temos só uma
pequeeena mudança de planos — me apresso em dizer.
Quero explicar antes que encontremos Toni, e o tempo
está acabando. O rosto de Imani assume uma expressão
confusa, o que é raro, porque ela sempre, sempre tem a
resposta para tudo.
Peter aponta para o letreiro com uma das mãos e cutuca
o ombro de Imani com a outra.
— Lá está a minha amiga!
Imani olha para onde Peter está apontando, e acabo
seguindo seu gesto também. Tem umas vinte pessoas
paradas ao lado do letreiro, então é difícil saber de quem
ele está falando, até que completa:
— É aquela de chapéu!
Peter dispara na direção dela — sai correndo como um
cachorrinho que se soltou da coleira —, e não demora muito
até eu perceber para quem ele estava apontando. Quando a
vejo, meu coração vem à boca, e não de um jeito divertido,
tipo numa montanha-russa. É claro que vai ser assim. Eu me
enrolo toda tentando terminar minha explicação às pressas,
mas sei que não estou sendo rápida o suficiente.
— Sabe quando eu disse que estava querendo um carro?
Então, olha que história engraçada, essa garota que eu
conheci...
— De onde você conhece o Peter? — pergunta Toni,
assim que nos aproximamos. Sua voz é tão clara e seu olhar
tão duro que é impossível fingir que ela não está falando
comigo.
Peter olha para Imani e depois para Toni, animado, mas
um tanto desconcertado.
— Espera aí, você conhece a Imani?
Imani solta meu braço e aponta para Toni com o queixo.
— Não. De onde você conhece a Olivia? — pergunta.
E então, de repente, como se tivessem ensaiado, todos
eles olham para mim.
Jogo as mãos para o alto, o retrato de uma mulher
culpada.
— Hum — começo, olhando para eles, que estão
impacientes aguardando uma resposta. — E aí, Farmers?
TONI

SEXTA-FEIRA À TARDE

Sinto que estou no meio de um duelo do Velho Oeste e,


não tenho muita certeza, mas talvez eu tenha sem querer
sacado minha arma primeiro. Quando Olivia apareceu com
Peter e a amiga dela, eu não sabia muito bem o que pensar.
Nunca concordei em incluir Peter nesse plano e,
principalmente, nunca considerei que isso se tornaria um
grande esforço colaborativo. Já sinto um curto-circuito na
cabeça só de pensar em misturar essa coisa temporária
com Olivia e meu lance permanente com Peter.
— E eu nessa história? Vou ter que ficar andando atrás
de uma garota que nem conheço o fim de semana inteiro?
A amiga de Olivia — Imani, eu me lembro — cruza os
braços e me fuzila com o olhar.
Ela parece ter detestado a explicação sobre a caça ao
tesouro e meu envolvimento nisso tanto quanto eu. Mas por
algum motivo — e talvez valha aqui dar o crédito ao recado
da sra. Robertson no meu boletim da sétima série que dizia
“Tente não se retrair quando se deparar com pessoas e
circunstâncias novas” — minha reação não é me levantar e
ir embora.
— Claro que não era isso o que tínhamos em mente... —
começo.
— Liv, se você quer tanto assim esse carro, podemos
fazer isso nós duas — interrompe Imani. — Acho que a
gente não precisa fazer esse cosplay de “siga a estrada de
tijolos amarelos”.
Olivia contorce os lábios, como se estivesse lutando
contra um sorriso, mas parece nervosa, mexendo na câmera
em seu pescoço.
— Bom, se eu sou a Dorothy, isso quer dizer que você é o
Homem de La...
— Meu Deus, Olivia, você consegue levar alguma coisa a
sério? — Imani joga as mãos para cima e olha para o céu.
Isso já foi longe demais. Se vamos fazer isso, subir no
palco para participar do Golden Apple e ganhar a caça ao
tesouro para Olivia, precisamos começar logo. Então faço
uma coisa que nunca faço em situações tensas. Abro um
sorriso.
Peter parece estar em choque, mas Imani não se
comove.
Meio que gosto disso nela. Nunca sei o que fazer com
lobos em pele de cordeiro. Se vai me morder, gosto de
saber logo com o que estou lidando.
Dou um passo à frente e Imani se aproxima ligeiramente
de Olivia, como se estivesse pronta para protegê-la com o
próprio corpo caso eu faça algo para machucá-la. Deve ser
legal ter esse tipo de conexão com alguém disposto a trocar
a própria segurança pela sua proteção.
Peter é ótimo, e é uma parte irritante, porém
inestimável, da minha vida desde que tenho onze anos, mas
ele mora do outro lado do país. Enquanto as meninas com
quem eu estudei estavam indo ao cinema com os melhores
amigos, fazendo festas do pijama e postando tudo em seus
perfis no Confidential, ou então posando todas
arrumadinhas para fotos em seus belos jardins antes dos
bailes, eu estava em casa testando riffs na minha guitarra.
Estava andando atrás do meu pai no backstage dos shows.
Estava escolhendo o caminho mais seguro — o caminho
familiar —, me escondendo atrás da música e da solidão,
em vez de sair no mundo e tentar fazer amigos da minha
idade.
Antes que eu me desse conta, já tinha virado a rainha de
gelo — a garota que se achava boa demais para conviver
com os outros. A garota arredia demais para participar das
coisas. Claro, era uma solidão que eu tinha escolhido, mas
nem por isso me sentia menos sozinha.
Então sempre sinto uma pontadinha diante desse tipo de
lealdade. Tudo bem que também vi as mesmas garotas da
escola brigando, fazendo drama e deixando de seguir umas
às outras nas redes sociais, mas parte de mim ainda
ansiava por aquilo. Como deve ser gostar tanto de alguém a
ponto de brigar com ela e depois fazer as pazes? Eu não
sabia. Eu não sei.
— Acho que a gente precisa escutar o que ela tem pra
dizer, sabe? Temos todo um plano. — Olivia aperta
gentilmente o braço de Imani. — Confie em mim.
Ela obviamente não confia em mim, mas está disposta a
confiar em Olivia, o que é suficiente por enquanto.
— Pensei no seguinte... — começo.
Olho para Olivia e ela está me encarando com uma
expressão aberta, os lábios curvados num leve sorriso,
como se nem estivesse se dando conta de que está
sorrindo. Nesse momento, ela me lembra muito o meu pai, a
expressão dele quando estava tocando sua velha Gibson SG
no porão. Uma esperança tão plácida que você nem quer se
mexer muito, com medo de estragar.
— Primeiro de tudo: ativem as notificações para receber
um aviso toda vez que o perfil @EncontradoNoFarmland
postar alguma coisa. O sinal aqui fica meio instável, e
precisamos ser os primeiros a ver quando eles postarem
alguma dica — digo.
Peter concorda com a cabeça, o rosto atento e
aguardando as instruções. É um olhar familiar, que já vi
milhões de vezes no FaceTime desde que ficamos amigos.
Qualquer coisa que puder fazer para ajudar — ou para ser
necessário –, ele topa.
Pego meu celular e volto até a primeira foto que eles
postaram, uma hora atrás. De acordo com as regras, eles
vão postar pistas aleatórias de onde encontrar cinco maçãs
durante todo o fim de semana. Mas elas já podem ter sido
recolhidas quando você chegar, e, se perder uma, você
praticamente perdeu todas, então é preciso ser rápido.
Meu coração já está batendo acelerado, como se eu
estivesse participando de um desses reality shows caóticos
tipo The Amazing Race. Eu nem me importo com esse
maldito carro, mas de repente ganhar isso se tornou algo
grandioso e importante. E já estamos atrasados.
A primeira imagem mostra a maçã dourada contra um
fundo vermelho. Com certeza foi tirada de manhã cedo, pela
luz rosada sobre ela, mas está brilhando demais para ser
apenas efeito do flash. A foto tem um tom de algodão-doce.
— E acho que precisamos nos separar. Só consigo
imaginar dois lugares onde essa foto pode ter sido tirada.
Já vim tantas vezes ao Farmland que não tem muitos
lugares aqui por onde eu não tenha passado na última
década da minha vida. Falo para Peter e Imani irem procurar
atrás do galpão Goldspur, perto da área de barraquinhas de
comida, enquanto eu e Olivia vamos até o outdoor — um
muro baixo com uma plataforma que ilumina os pôsteres
colados ali, como se fosse um outdoor de beira de estrada.
Vamos nos aproximando, e já consigo ver que, como
sempre, está cheio de cartazes sobre se registrar como
eleitor e redução de desperdício, além da programação do
fim de semana.
Fica bem perto do chão, então as pessoas também
tomam a liberdade de assinar atrás do mural. Eles pintam
por cima todo ano para que o próximo grupo de Farmers
possa usar também, mas é uma tradição do festival.
Eu e Olivia nos movemos rapidamente, caso alguém
tenha tido a mesma ideia. Faz sentido que tenhamos nos
separado em duplas com uma pessoa que já esteve no
Farmland e um novato, e Peter estava um pouco ansioso
demais para ir com Imani até o outro ponto.
— Chicago tem ótimos shows, mas o estacionamento é
sempre horrível, sabe? Imani odeia ir porque... Ei, espere aí!
— Olivia para e segura a câmera pendurada em seu
pescoço diante dos olhos. É uma dessas pequenininhas e
cor-de-rosa que se compra na Urban Outfitters e que
imprimem instantaneamente fotos vintage em miniatura.
Ela aponta a câmera para a frente e tira uma foto. — Viu
aquilo?
Pega a foto impressa e entrega para mim. A imagem
ainda está aparecendo, então não sei exatamente o que ela
quer que eu veja. Ela aponta com a cabeça na direção do
palco à nossa frente.
— Aquela criança no ombro do pai. Está vendo?
Ela não está virada para mim, então sigo seu olhar até a
multidão diante do palco Granny Smith. Uma criança de uns
quatro ou cinco anos está com os braços para cima e um
fone de ouvido antirruído assistindo ao show de uma banda
indie que não conheço.
É um momento totalmente comum, mas há certa beleza
ali. Especialmente quando o pai olha para cima e sorri para
o filho. É simples, mas especial. Memorável.
A foto não captura exatamente o que estamos olhando
ao vivo, mas entendo por que ela quis guardar o momento.
Eu não teria pensado nisso, provavelmente mal teria
guardado nos confins da minha mente, mas Olivia parou
para olhar. Para registrar aquilo.
Devolvo a foto para ela sem enunciar nada disso.
— É legal — digo.
— Legal. — Ela abre um sorrisinho. Começa a andar de
novo. — Você é uma mulher de poucas palavras, Toni. Não
posso dizer o mesmo sobre mim!
Então ela gargalha de sua própria observação, o som tão
alto que parece saído de um desenho animado, e eu sorrio,
embora não queira. É difícil não sorrir quando ela ri assim.
Quando chegamos mais perto do outdoor, fica claro que
minha aposta estava certa: a maçã está encaixada entre as
ripas da plataforma de madeira, escondida apenas pela
luminária gigante que ilumina o outdoor à noite. Foi fácil de
adivinhar porque foi a primeira pista, com certeza.
Olivia fica ainda mais animada quando a encontramos.
— Ai, meu Deus, Toni, você estava certa! — Ela dá um
empurrãozinho no meu ombro, brincando. — Tenho um faro
bom para pessoas boas. É, tudo bem, também tenho um
faro para pessoas que parecem boas e acabam se revelando
criaturas terríveis, mas nesse caso...
— Hum, Olivia. — Levanto a mão para interromper o
discurso e faço um sinal com a cabeça para o lado. Duas
meninas com asas de fada e coroas de flores parecem ter
tido a mesma ideia que nós. Elas vêm andando
casualmente, rindo, do lado oposto de onde estamos, até
que uma delas para e se ajeita de repente. Olha para mim e
aponta disfarçadamente para nós duas. — Você está com
seu inalador?
Olivia segue meu olhar até a dupla de fadas e congela
por um segundo. Ela leva a mão até a pochete, sente o
objeto em formato de L ali dentro e concorda com a cabeça.
— No três? — pergunto.
Ela concorda de novo. As fadas estão andando devagar
na direção da maçã, com certeza tentando nos
desconcentrar com seus passos sinuosos. Começo a contar.
— Um, dois...
Mas Olivia sai em disparada como um raio antes que eu
tenha a chance de dizer três, correndo entre as pessoas que
estão entre nós e o outdoor, berrando pedidos de desculpa
pelo caminho. Essa é minha deixa para fazer o mesmo, e,
no minuto em que começo, as fadas também saem
correndo, descalças. As asas oferecem alguma resistência
ao vento e elas ficam mais lentas, então, embora
estivessem mais perto, Olivia consegue pegar a maçã
primeiro.
Ela levanta a maçã sobre a cabeça, vitoriosa.
— Toni! Conseguimos! — grita para mim.
Paro para respirar, tentando não sorrir. Quero ficar
aliviada, mas então percebo que as fadas não pararam de
correr. Na verdade, enquanto Olivia coloca uma das mãos
no joelho para recobrar o fôlego, a fada que está com asas
cor-de-rosa arranca a maçã de sua outra mão. Olivia olha
para cima e bufa, em meio à respiração entrecortada.
— O qu... Espera aí! Isso é super nada a ver com o
espírito do Farmland!
Mas a fada não ouve nem para — ela passa por baixo do
outdoor e continua correndo, com a amiga a reboque. Estão
agora mais perto de mim do que de Olivia, que se enrola
toda para pegar o inalador. E isso, mais do que tudo, é o
que me deixa irada e pronta para agir. Já é ruim o suficiente
que elas tenham desrespeitado o espírito deste festival e
feito algo horrível como roubar de outra Farmer, mas ainda
fazer isso enquanto ela está tendo um ataque de asma?
Isso já é maldoso demais.
Quando vou na direção da fada que está com a maçã,
esbarro num cara grandão sem camisa que carrega um
totem com um ursinho iluminado em cima e perco o
equilíbrio. Caio exatamente diante da Asa Cor-de-Rosa e,
num ato de misericórdia um tanto deselegante do destino,
ela tropeça em mim. Sua amiga, Asa Verde-Limão, tenta
resgatar a maçã que caiu em meio ao caos, engatinhando
entre as pernas de todas as pessoas que passam por ali a
caminho dos primeiros shows do dia.
Perco a maçã e Olivia de vista, até que ouço sua voz em
meio a tentativas não tão bem-sucedidas de levar ar aos
pulmões.
— Tente — chiado — tirar ela de mim — chiado — agora
— chiado —, Sininho.
Eu me levanto aos trancos e barrancos e Olivia guarda a
maçã na pochete. A fada que está caída por cima de mim
rola para o lado, derrotada, e a outra, aos pés de Olivia, dá
um soco no chão. A cena é absurda, estranha e
bizarramente cinematográfica. Passo a mão na testa suada
e encontro o olhar de Olivia do outro lado da trilha de terra
batida. Ela está radiante e satisfeita, e meu peito se enche
com uma emoção que se parece muito com orgulho.
Desta vez, não consigo evitar abrir um sorriso para ela.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À TARDE

Estou suada, nojenta e mal consigo respirar direito, mas


nem um pouco envergonhada de tudo isso. E lá está Toni,
sorrindo para mim como se eu não estivesse totalmente
desgrenhada. O fato de ter decidido não me apaixonar por
ela me dá uma sensação de liberdade. Afasta a pressão e
aquela tensão que paira sobre todas as conversas quando
você quer que uma pessoa te deseje da mesma maneira
que você a deseja — e que muda os comportamentos e faz
com que todas as interações sejam um pouco como uma
performance.
Meu coração bate um pouco mais rápido, e não é por
causa do movimento ousado que consegui fazer para
resgatar a maçã. Quando Toni sorri, aquele sorriso sincero,
ela parece uma princesa da Disney que chegou por acaso
no cenário de um clipe do Kittredge, e isso é demais para
mim, beleza? Não está certo. Devia ser ilegal. É
simplesmente criminosa a forma como o canto dos seus
olhos se enruga e ela mira o chão como se estivesse meio
constrangida por se permitir um momento de alegria. Eu
devia lhe dar voz de prisão. Alguém precisa me tirar de
perto dela antes que eu...
— Olivia!
Imani e Peter de repente estão na minha frente, e nem
sei bem de onde eles vieram. Toni está atrás deles, o sorriso
um pouco esmaecido depois da minha cena ridícula e sem
fôlego de alguns segundos atrás. Quero que ela sorria para
mim de novo daquele jeito.
Até que olho para o rosto de Imani e vejo que os olhos
dela estão praticamente fechados de tão apertados. Fui
descoberta.
— Então, já pegou sua maçã. Podemos ir agora?
Ela estende a mão e balança os dedos, para eu lhe dar a
mão e ir embora com ela. E eu iria, eu juro que iria, mas
com ou sem o sorriso de Toni, ainda temos quatro maçãs
para encontrar hoje, então não podemos deixá-los mesmo
se eu quisesse. E eu não quero. Ainda não.
Mas é Peter o primeiro a falar.
— Temos que fazer isso o dia inteiro, não? Pode surgir
uma pista a qualquer momento.
Ele olha para nós três rapidamente, mas seus olhos se
demoram em Imani por uma fração de segundo a mais. Ele
está implorando, e é o tipo de olhar que conheço bem, pois
já o lancei muitas vezes ao longo da vida. Neste momento,
se eu fosse um personagem de desenho animado, uma
lâmpada se acenderia sobre a minha cabeça.
Imani não entende minha razão para ser uma romântica
incorrigível porque ela nunca sentiu isso. Ela não conhece
aquela revirada que o estômago dá quando a garota de
quem você gosta entra num cômodo, ou a onda de
ansiedade que invade o corpo depois de enviar uma
mensagem perguntando “e então, o que exatamente nós
somos?” para o seu quase-namorado. Ela nunca amou
ninguém além de Davey Mack, e ele não conta, porque
celebridades não contam (está no livro de regras; acredite,
eu o escrevi). Nunca percebi o que estava bem na minha
frente: ela fica tão incomodada com meus romances porque
se sente excluída.
Eu me xingo internamente por não ter percebido antes
que isso pode ser mais uma maneira de ajudar alguém
neste fim de semana. Pode me chamar de Jane Austen, mas
estou prestes a dar uma de Emma com Peter e Imani.
— A gente devia assistir aos shows solo do Golden Apple
hoje — sugiro, unindo as mãos como uma animadora de
torcida. — Acabei de receber uma notificação do aplicativo
do Farmland. Vão começar agora. Podemos ir lá no galpão
Cortland dar uma olhada no nível dos competidores. Vai ser
útil pra gente — faço um gesto apontando para mim e para
Toni — e uma boa maneira de matar o tempo até a próxima
pista.
É tudo verdade, mas o mais importante é que show no
galpão significa escurinho e todo mundo sentado perto. O
cenário perfeito para uma cena romântica entre os dois
pombinhos.
Peter se anima imediatamente, e, naquele momento, sua
expressão e seu cabelo escuro bagunçado parecem tão
esperançosos que tenho uma vontade súbita de lhe dar um
abraço. Imani fecha o punho da mão que estava estendida,
depois abre a palma novamente antes de enfiar a mão no
bolso. Toni dá de ombros como se não se importasse muito,
e tento não sentir nada a respeito. Isso não tem a ver com
ela. Tem a ver com Imani e Peter. (Até a hora de procurar a
próxima maçã, e aí nesse caso vai ter a ver comigo. Mas
não importa.)
— Beleza — resmunga Imani.
Peter pula e dá um soquinho no ar. Estou quase
convencida de que esse cara nunca teve um episódio de
mau humor na vida, de tão feliz.
Ele e Toni saem na frente, em direção ao galpão, e Imani
fala em voz baixa apenas para mim:
— E então, por quanto tempo vamos ter que aguentar
Coisinha Um e Coisinha Dois? — pergunta. — Já estou
irritada com essa imitação de Zoë Kravitz. Sério, quem ela
pensa que é com esse chapéu?
Imani costuma mesmo ser rabugenta, então o
comentário não me surpreende, mas me incomoda um
pouco. Toni pode até não ser a garota mais agradável do
Farmland, mas ela foi tranquila comigo até agora. Legal,
até. E em nenhum momento ela me mandou ficar quieta, o
que já é melhor do que a maioria das pessoas depois que
me conhecem há dez minutos. Sinto que preciso defendê-la.
— Eu gosto do chapéu. — Tento mudar de assunto
rapidamente. Cutuco Imani com o cotovelo. — Mas o Peter é
gatinho, hein?
— Não sei — responde, revirando os olhos de um jeito
tão exagerado que só ela seria capaz de fazer. — Não presto
atenção nessas coisas. Esse é seu departamento, lembra?
Sei que ela está brincando, mas sinto meu pescoço
esquentar de vergonha. Eu não devia me sentir mal por
gostar de beijar as pessoas, mas às vezes acontece. Nesses
momentos, quando alguém que amo critica minha
tendência a me jogar de coração em tudo que faço, percebo
que o que eu menos deveria querer era ser uma
adolescente que sente demais.
Tem muito tempo que nós duas não brigamos. Tipo, uma
briga de verdade. Então, a reação dela me pega
desprevenida. Quase tenho vontade de cancelar tudo;
simplesmente pedir desculpas a Toni por propor essa ideia,
e manter o plano inicial de curtir o fim de semana antes do
inevitável. Porque, em poucos dias, haverá uma audiência
judicial na qual o destino do mais proeminente futuro
jogador de basquete de Indiana está em minhas mãos. E
não tenho nenhuma intenção de estar lá.
E quando eu contar a verdade a Imani, que eu não posso
fazer isso, não vou ficar surpresa se a decepção dela for tão
grande a ponto de nem tentar mais me convencer a fazer a
coisa certa. É assim que sabemos quando a Imani desistiu
da gente — quando ela não se importa o suficiente para
discutir. Mas não tenho escolha. Se eu ficar diante do
conselho inteiro da escola e contar a eles o que aconteceu
entre Troy e eu do meu ponto de vista, vou destruir a vida
dele — e a minha também, consequentemente.
Tento afastar o pensamento, mas não consigo esquecer
por completo. Sinto um aperto no peito contra a minha
vontade.
— Não quero falar sobre nenhum deles — diz Imani. Ela
balança a cabeça e os cabelos longos e ondulados se
agitam suavemente, como se ela também não estivesse
interessada em entrar nessa briga. — Este é um fim de
semana de melhores amigas. Eu e você. — Ela ajeita os
óculos de sol tartaruga e levanta as sobrancelhas. —
Lembra?
Lembro. É claro que lembro.
Imani e eu não ficamos amigas porque gostamos dos
mesmos filmes, compramos nas mesmas lojas ou temos
crush nas mesmas celebridades. Nossos irmãos mais velhos
namoram praticamente desde que começaram a estudar
juntos na Park Meade. Nia e Wash. Primeira e segundo da
turma, eleitos a mais provável de ser bem-sucedida e o
mais provável de ser presidente, Harvard e MIT,
respectivamente. Superestrelas e gêmeos em charme,
carisma e na boa e velha excelência negra. Não foi
nenhuma surpresa que tenham encontrado um ao outro. E
nenhuma surpresa que eu e Imani tenhamos nos
encontrado também.
Quando você sabe o que é ser o segundo melhor da
família, acho que é quase inevitável encontrar a única outra
pessoa que realmente entende como você se sente e se
tornar o número um dessa pessoa.
Não falamos disso com frequência, ou nunca, na
verdade. Mas foi o suficiente para construir uma amizade
verdadeiramente icônica. Porque, por mais diferentes que
sejamos, somos muito parecidas no que realmente importa.
Naquilo que não se pode quantificar. É por isso que dou
ouvidos a ela em momentos como este, mesmo que não
concorde muito.
Mas seu olhar agora me diz tudo o que preciso saber. Ele
diz exatamente por que não posso deixá-la na mão por
causa de Toni e por que preciso manter o foco nos objetivos:
ganhar a caça ao tesouro, competir no Golden Apple
amanhã e ajudar minha melhor amiga a viver um romance
de fim de semana épico com um garoto bonitinho — e meio
bobão — que ela nunca mais vai ver.
Não digo mais nada enquanto caminhamos até o celeiro
onde acontecem as apresentações. Está no intervalo, então
há um zunido baixo da conversa do público e um palco
vazio com um feixe de luz apontado diretamente para o
microfone.
O celeiro é grande, mas não enorme. Tem uns 150
assentos e um mezanino onde só cabem uma mesa e os
três jurados. Não consigo ver os rostos deles por causa da
luz, mas fico animada assim mesmo. Quem quer que sejam,
eles são famosos. Não sou blasé e admito que estar no
mesmo lugar que alguém que talvez conheça a Beyoncé é
bastante impressionante, está bem?
Nós quatro caminhamos pelo corredor até uma fileira no
fundo onde há lugares vazios. Estamos entrando na fileira
quando percebo que a ordem está toda errada. Peter, eu,
Imani e Toni. Isso acaba com todo o meu plano! No último
segundo, chamo Peter.
— Peter, me desculpe, se incomoda de trocar de lugar
comigo? Eu sou muito baixa, é mais fácil de enxergar se
estiver mais perto do meio.
É uma desculpa completamente esfarrapada, uma
medida desesperada, mas Peter concorda tão rápido com a
cabeça que seu boné quase sai voando.
— É claro! — Ele se entusiasma muito rápido, como se
estivesse querendo ser mais útil. — Sabia que o presidente
americano mais baixo tinha mais ou menos a sua altura?
James Madison chegava a colossais um metro e sessenta e
dois centímetros. Sempre achei muito injusto isso de as
pessoas não conseguirem alcançar a última prateleira e tal.
Isso aqui é praticamente uma reparação histórica de altura.
Eu rio e resmungo ao mesmo tempo em resposta à
comparação horrível.
— Você não devia usar o termo reparação histórica com
três mulheres negras, Pete — murmura Toni. Ela se senta
bufando, tira os óculos escuros e pendura na blusa. Solta
um suspiro e leva a mão ao rosto. — Saiba com quem você
está falando. Já conversamos sobre isso.
Peter arregala os olhos. Mas faço um gesto deixando
claro que as desculpas que ele ia pedir não são necessárias.
Aquilo provavelmente o fez perder alguns pontos com
Imani, mas acho que vamos conseguir recuperá-los se ele
parar de falar besteira.
— Eba! Estou ansiosa pela próxima apresentação — digo,
alto demais, tentando evitar o climão que promete se
instalar se eu não fizer nada.
Eu me sento rapidamente, e Peter faz o mesmo. E foi
bem na hora, porque, assim que nos ajeitamos, as luzes se
apagam e o apresentador sobe ao palco para anunciar o
próximo artista.
Dou uma olhada em Imani, que está me encarando com
uma expressão aterrorizante. Sei que ela está irritada de
estarmos com Pete e Toni, mas um dia vai entender que foi
para seu próprio bem. Ela não está conseguindo ver o
quadro geral da situação. O próximo artista é um cara
branco que deve ser pouco mais velho que a gente — talvez
nos primeiros anos da faculdade. Ele sobe ao palco apenas
com um ukulele e ajeita o microfone de acordo com sua
altura. Não ouço direito sua introdução; acho que ele diz
que vai fazer um cover de Sonny Blue, mas quando noto um
movimento de Toni pelo canto do olho, é impossível não me
virar para encará-la. É impressionante como seu olhar está
grudado no palco.
Ela se concentra em cada movimento, sua expressão
revelando o foco de uma musicista intensa. Fico pensando
em como ela vai estar quando subirmos ao palco amanhã,
se vai arriscar dar uma olhada para os jurados, se vai se
apresentar de frente para o público ou se simplesmente
vamos ficar olhando uma para a outra. Tipo uma versão
negra de Sonny e Cher.
Estou perdida nos meus pensamentos, imaginando a
apresentação de amanhã, quando Toni levanta tão rápido
que parece ter surpreendido até a si mesma. É como se ela
não visse mais o cara no palco nem ninguém. E sai pela
porta sem dizer nada.
TONI

SEXTA-FEIRA À TARDE

Eu me encosto à lateral do celeiro e ponho a mão no


peito, como se aquilo fosse afastar o que estou sentindo
aqui dentro. Meu coração está batendo praticamente fora
do ritmo, numa intensidade que é demais para aguentar.
O cara no palco estava tocando todas as notas corretas,
cantando adequadamente, mas aquilo não estava certo. Ele
não entendeu a música, não mesmo. Sua voz não tinha a
crueza necessária para contar aquela história. Ele acertou
nas notas, mas passou longe da história: parecia radiante
quando devia estar sombrio, fofinho quando devia estar
determinado. Sinto um nó na garganta ao me lembrar da
primeira vez em que ouvi essa música.
Eu me sinto quase dentro do momento em que meu pai
colocou a música para tocar em sua antiga caminhonete
cinco anos atrás, quando estávamos a caminho do
Farmland. Eu tinha acabado de dizer “Acho que não gosto de
garotos do jeito que eu deveria gostar”. E ele me
respondeu: “Não existe deveria. Quando Bonnie Harrison
escreveu Vou enfrentar o trovão, a terra não vai me engolir,
certamente não era porque ela achava que amar sua
esposa seria fácil. Amar não é algo que você faz porque
acha que é a coisa certa. Você faz porque tudo que temos é
nosso coração. Ouça isso”. E então ele colocou o primeiro
CD do Sonny Blue no rádio do carro.
De repente sou invadida por todas as coisas que nunca
mais vou poder compartilhar com ele. Todas as músicas,
todas as memórias, todos os anos que não teremos.
Respiro devagar, inspirando e expirando. Inspirando e
expirando. Tento focar no presente. No calor que aquece
minha pele mesmo à sombra do celeiro, no barulho de
sandálias caminhando sobre as folhas secas ao meu redor.
— Toni?
Olivia dá a volta no celeiro e sua voz é
surpreendentemente suave. Olho para cima e, por um
momento, fico meio confusa: é estranho ser abordada por
alguém com tanta familiaridade. Naquele momento,
esqueço que mal conheço essa menina.
— Peter queria vir ver como você estava, mas disse a ele
que eu cuidaria disso. — Ela encosta o ombro na parede e
fica de frente para mim. Abre um sorriso. — Acho que ele e
Imani são perfeitos um para o outro.
Engulo o nó da garganta na esperança de que ela não
perceba que eu estava quase chorando segundos atrás.
— Você acha?
— Pode apostar. — Ela balança os dedos em um gesto
entusiasmado de certeza. — Sou meio genial para essas
coisas. — Ela para por um instante e depois acrescenta: —
Quer dizer, sou boa na parte de juntar as pessoas. No resto,
nem tanto.
Parece haver uma história ali, mas não tenho certeza de
que ela quer contá-la, e eu certamente não sei se quero
ouvi-la. A gente nem se conhece. E isso é bom. Não preciso
de mais complicações do que já tenho neste fim de semana.
Olha só para mim. Ouvi um cover medíocre de uma música
de quinze anos atrás e praticamente desabei.
Estou desmoronando.
— Você saiu muito rápido, nem viu o final da
apresentação do cara. Uma das cordas arrebentou no
começo do último refrão. — Ela balança a cabeça com
pesar. — Fiquei triste por ele. Provavelmente vai ficar se
culpando o fim de semana inteiro, sabe?
O pobre do cara provavelmente nem tinha chances
mesmo, já que é tudo muito aleatório, mas acho que essa
não é a questão. Eu entendo. Ainda que tudo estivesse
contra ele, o cara perdeu a única oportunidade por causa de
algo que estava fora do seu controle. Você não supera algo
assim facilmente, por mais que faça o melhor para
encontrar algum sentido na experiência. Queremos
acreditar que o nosso melhor é o suficiente, mas nem
sempre funciona assim.
Peter tropeça ao fazer a curva do celeiro, os braços
longos balançando, e escorrega como se fosse um
personagem fugindo do vilão num episódio de Scooby-Doo,
vindo parar bem na nossa frente. Imani vem pelo mesmo
caminho bem mais devagar, os braços cruzados e o olhar
fulminante para todos os envolvidos.
— Gente. — Peter destrava o celular e mostra para todas
nós.
Na tela, há uma foto do Instagram cheia de filtros onde
se vê uma garota branca com dreadlocks (na minha visão,
um crime pelo qual alguém deveria pagar) sorrindo e
segurando uma maçã dourada. A nossa maçã dourada. A
legenda diz: “Olha o que eu achei! Ganhei?”.
— Acho que temos concorrência.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À TARDE

Não sei como foi que essa garota pôs as mãos na minha
maçã, só sei que ela é minha nêmesis e tudo que quero é
derrotá-la. Ela é o que me separa do meu carro, e isso não é
uma opção.
“Sem contar que se você perder essa caça ao tesouro,
Toni não tem mais qualquer motivo para ficar perto de você.
O acordo se anula”, meu cérebro faz questão de me
lembrar. “Se você não serve pra ser divertida, então serve
pra quê?”.
Travo o maxilar, rangendo os dentes, como fazia quando
era mais nova, antes de me dar conta de que podia usar
meu corpo para convencer as pessoas a fazerem minhas
vontades, a me verem, ainda que só vissem o que eu queria
mostrar naquele momento. É um tique nervoso que
reaparece em momentos de estresse.
— Como, pelo amor de Deus, essa garota conseguiu
achar a maçã se ainda nem existe pista? — As mãos de
Imani estão no quadris e ela aponta para o telefone na mão
de Toni, como se a garota tivesse, de alguma forma,
planejado isso. — Não era para você ser a grande sabichona
aqui?
Toni olha para mim e para ela, tentando entender alguma
coisa, e eu desvio o olhar. Por algum motivo, é ainda mais
difícil de processar o olhar dela para mim do que quando ela
parece meio distante. Eu realmente não sei lidar com isso.
— Bom, eles nunca disseram que espalhariam as maçãs
a medida que fôssemos procurando. Só disseram que iam
deixar pistas — diz ela, a voz baixa e pensativa. — Então,
tecnicamente, elas estão por aí desde sempre.
— Então, o que fazemos? — pergunto.
Ela me olha por um segundo antes de soltar um suspiro.
— Vamos ter que pegar a maçã dessa garota.
Peter se anima com isso, embora ele provavelmente
soubesse que a solução era essa. Pega o telefone e abre o
perfil da garota no Instagram. @FestyFrankie tem vinte e
cinco mil seguidores e está postando fotos de si mesma
pelo festival nas mais diferentes poses a cada duas horas,
mais ou menos. Toda alongada e fazendo o sinal da paz com
as duas mãos diante da roda-gigante. Mandando um
beijinho para a câmera perto da entrada, com uma coroa de
flores na cabeça.
É fácil saber onde ela está. Há cinco minutos, ela postou
um story com a foto de um bolinho e a legenda em fonte de
máquina de escrever, toda em caixa alta: “QUE DELÍCIA”.
Toni revira os olhos, como se o bolinho a tivesse ofendido
pessoalmente. Eu solto uma risada. Quando faço isso, ela
vira de repente a cabeça para mim, meio surpresa. Mas
seus lábios fazem uma curva de leve para cima num sorriso,
e me sinto vitoriosa. Uma vitória merecida contra a frieza
dela.
— Tem, tipo, o quê? No máximo umas três barraquinhas
que vendem esse tipo de bolinho, segundo esse mapa.
Imani pegou o mapa que nos deram na entrada e já está
elaborando um plano alternativo. Ela sempre foi o tipo de
pessoa que se coloca no comando, a voz da razão, mas
parte de mim queria ser a pessoa que tem as respostas
desta vez. Queria ser a pessoa dizendo como todo mundo
devia se comportar.
Peter está radiante, e Toni concorda com a cabeça. Eu
dou uma sugestão:
— Verdade, você está certa. Vamos nos separar. Peter e...
Imani interrompe.
— Peter pode ir olhar a barraquinha perto da entrada.
Toni pode ir naquela perto do Pavilhão de Comédia. Eu e Liv
vamos na que fica lá atrás.
Normalmente fico agradecida pelas interferências dela,
por sua habilidade em perceber antes de mim mesma
quando estou prestes a cometer um erro, mas agora estou...
frustrada. Talvez eu não tivesse escolhido formar uma dupla
com Toni. Mas acho que nunca saberemos. É como se ela
estivesse tirando a escolha das minhas mãos, sem me dar
nem a chance de provar que posso fazer o que disse que
faria. Que não vou me jogar na primeira garota que piscar
para mim ou algo assim.
— Beleza. Tá bem, beleza. — Toni olha para nós duas de
novo, mas dessa vez sua expressão é um pouco vaga, um
pouco dura. — Vamos nos separar e, quando um de nós a
encontrar, mandamos mensagem para o grupo. Aí
decidimos o que fazer depois.
— Pop Top vai tocar em meia hora — diz Peter, olhando
para Toni, suplicante. Ele junta as mãos, como se estivesse
rezando. — Ela literalmente reinventou o pop punk. Você
sabe que não posso perder minha Pop Top.
Toni dá um tapinha de leve com as costas da mão no
braço de Peter e revira os olhos.
— Melhor se apressar então, Menon.
É um momento breve, mas, vendo o jeito como eles se
olham, consigo entender por que duas pessoas tão
diferentes são amigas. Eles se equilibram e se amam do
mesmo jeito.
Imani bufa ao meu lado e começa a andar na direção
oposta. Parece que ela está sempre tentando se afastar das
pessoas enquanto eu estou tentando me aproximar, mas
nós duas estamos sempre nos movimentando. Ao me virar
para ir atrás dela, fico pensando por quanto tempo essa
dinâmica de movimentos opostos pode se sustentar.
Reconheço Festy Frankie no minuto em que coloco os olhos
nela. Principalmente porque, bem, eu reparo nos dreads.
Festy — ou Frankie? FF, talvez? — ainda está sentada na
grama entre a barraca do bolinho e o palco Granny Smith
quando a vejo. Ela ri de alguma coisa que um dos amigos
disse, depois faz um beicinho e encosta a cabeça na pessoa
ao lado dela para tirar uma selfie. Não quero parecer velha
nem nada, mas isso me irrita um pouco. Você roubou minha
maçã e ainda por cima não está nem prestando atenção na
banda que está tocando no palco? Como se atreve?
Imani resmunga a meu lado como se estivesse lendo
minha mente.
— Você cuida dessa ou eu vou? — pergunta.
Fico pensando em quantas garotas brancas Imani já
esculhambou no Confidential ao longo da nossa amizade,
pelos mais diversos motivos, de apropriação cultural a
feminismo branco, e nego com a cabeça. É melhor eu
mesma resolver isso para termos alguma chance de
recuperar essa maçã. É mais fácil capturar garotas brancas
com mel do que com vinagre, ou seja lá o que diz esse
ditado.
— Vou cuidar disso — respondo. — Espere aqui.
Caminho até a garota.
— Com licença. — Tento deixar minha voz num tom um
pouquinho mais agudo que o normal para ficar mais
parecido com o de Festy. Eu não a conheço, mas estudo
com várias meninas desse tipo. A mudança de registro é
natural para mim. — Você é a @FestyFrankie?
Frankie olha para cima, radiante, os olhos escondidos
atrás dos óculos de sol redondos estilo John Lennon. Depois
de vasculhar um pouquinho seu perfil, sei que ela usou os
mesmos óculos no Electric Forest, em junho, e no
Stagecoach, na última primavera.
Mesmo com eles, ela põe a palma da mão sobre a linha
da sobrancelha, para evitar olhar diretamente para o sol ao
se virar para mim.
— Isso! Você é uma das minhas queridas Festiloucas?
Festiloucas. Loucas por festivais. O apelido dos
seguidores que frequentam festivais com o mesmo
entusiasmo que ela. Preciso lhe dar o crédito — ela sabe
construir uma marca. Mas não é por isso que estamos aqui!
— Não. Bem, não exatamente. Mas vi seu post sobre a
maçã dourada? Aquela do desafio #EncontradoNoFarmland?
— Não é incrível? — Ela se levanta e, num passe de
mágica, mostra a maçã. Está em sua mão esquerda e, com
a direita, ela faz carinho distraidamente, como se a fruta
fosse um cachorrinho. — Foi uma coincidência muito louca!
Eu estava tentando tirar uma foto perto da fonte e lá estava
ela, esperando por mim!
Reviro os olhos por dentro. Dá um tempo, Festy! Não
tenho tempo para falar sobre isso. Tenho um festival para
curtir e uma caça ao tesouro para concluir, e nem comecei
ainda a pensar em como vou ajudar Toni a vencer o Golden
Apple amanhã. Diplomacia é essencial aqui.
— Você está procurando as outras? — pergunto.
— Não!
Ela está radiante, como se não tivesse nenhuma
preocupação na vida. E, bom, talvez eu esteja julgando,
mas, pela aparência dela, não deve ter mesmo. Vai a vários
festivais o ano inteiro e ganha dinheiro sendo influenciadora
no Instagram, vendendo sabe Deus o quê. Vi pelo menos
um anúncio de chá para perder barriga no perfil dela. Seja
lá qual for sua história, tudo que sei é que com certeza
preciso mais dessa maçã do que ela.
— Será que você me emprestaria essa? — Eu me apresso
a explicar a situação: — Preciso muito dela para ganhar a
caça ao tesouro que está rolando. Tenho grandes chances
de encontrar as outras, mas preciso dessa que você tem
para completar as cinco. Posso até te devolver quando
acabar o fim de semana, se...
— Desculpa, amor. Eu coleciono Memórias. — Ela diz
memórias com um M maiúsculo, como se fosse um nome
próprio e tudo.
— Espera, quê? Você não pode me emprestar, ainda que
não precise dela, porque vai guardar numa caixinha de
lembranças quando chegar em casa?
Ela concorda com a cabeça, séria, feliz por eu ser tão
compreensiva.
— Isso, exatamente.
— Mas eu vou te devolver. Se é importante pra você,
levo a maçã quando acabar a gincana.
— Desculpe, amiga. Mas não consigo me separar dela.
Ela toca meu ombro com gentileza. Se eu não estivesse
tão irritada, acho que ficaria tudo bem. Provavelmente ia
sorrir, morder a língua e passar o resto do fim de semana
me recuperando — essa parte da aventura teria terminado.
Mas isso também significaria desistir do Golden Apple e de
Toni. Significaria me despedir dela e nunca a ver
novamente, e eu acabei de conhecê-la.
Uma parte de mim que não consigo explicar ainda não
está pronta para isso.
Então faço o que qualquer pessoa racional faria: roubo a
maçã. Mas não como aquelas Sininhos que tentaram roubar
de mim mais cedo, é claro. Eu pelo menos tentei fazer um
acordo antes. Fui praticamente uma diplomata!
Pego a maçã da mão da garota tão rápido que se não
fosse eu mesma roubando, nem teria percebido. Em um
piscar de olhos, a maçã foi da mão dela para minha
pochete. Jogo a câmera para as costas e ela bate nas
minhas escápulas enquanto corro. Embora duas fugas
dramáticas num mesmo dia nem chegue perto do meu
recorde — o verão depois do primeiro ano foi meio louco,
nem pergunte —, isso está acabando com meus pulmões!
Depois preciso agradecer a Justin pelas três semanas que
passei ajudando-o a treinar para as eliminatórias do time de
cross-country da escola (durante as quais, depois dos
treinos, antes de Justin me levar para casa, a gente se
pegava no Ford Fusion do irmão dele).
— Imani, vamos! — grito quando passo por ela, que sai
correndo comigo.
Vou desviando dos corpos reunidos no Core, tentando
fazer minha fuga parecer o mais inocente possível, apesar
de @FestyFrankie estar gritando atrás de mim, sua voz mais
fraca à medida que avanço para o outro lado do núcleo do
festival. Mas, se pensarmos na quantidade de drogas que
essas pessoas certamente vão usar neste fim de semana,
meu comportamento com certeza não é nem de longe o
mais estranho que alguém vai ver.
Meus pulmões estão queimando quando dobro a esquina
perto do palco Red Delicious, bem longe de onde
encontramos a Festy. É só quando paro que me dou conta
do quão ridículo é o que acabei de fazer — a completa
loucura que é roubar uma maçã dourada de alguém. Meu
coração bate um pouco mais rápido ao perceber que
realmente perdi a cabeça. Estou completamente louca.
Uso o inalador e minha mente começa a rodar de
repente, e é tão rápido que parece que meu corpo está
vibrando. Espere aí.
Eu estou literalmente vibrando.
Pego o celular no bolso de trás e faço o melhor para me
recompor antes de atender.
— Nada por aqui. O que está rolando por aí, O-Town?
A voz de Peter na linha é sua habitual mistura entre
rouca e animada.
Olho para Imani, curvada ao meu lado, olhando para
mim, depois para o chão, depois para mim de novo, como
se estivesse tentando decidir com quem ficar irritada. Passo
a mão na pochete, estufada com meu pertences
conquistados. Eu fiz isso. Eu fiz isso mesmo. Não foi Imani,
não foi Toni — eu consegui essa, e fiz tudo sozinha.
Não consigo lembrar quando foi a última vez que isso
aconteceu. Eu não ter precisado depender de alguém para
conseguir algo. A vitória é minha e só minha. É uma coisa
pequena, mas parece enorme nesse momento.
Um sorriso surge no meu rosto.
— Peguei a maçã.
TONI

SEXTA-FEIRA À TARDE

Quando Olivia volta, sacudindo a maçã de forma


triunfante em nossa direção, Peter a cumprimenta com um
high five e eu fico só olhando. Ela nos conta a história, um
feito ousado que envolve uma tentativa de negociação, sua
posterior fuga e a derrota de Festy Frankie, e parece
orgulhosa. Com razão. O que ela já conseguiu fazer hoje
para tentar ganhar esse carro é impressionante. Ela é
impressionante, e não sei muito bem o que pensar a
respeito.
Não é que outras pessoas não me impressionem.
Acontece o tempo inteiro: Teela Conrad ostentando seu
alcance vocal de cinco oitavas, quando ouço o lick de Chuck
Berry na introdução de “Johnny B. Goode”, ao ver Rihanna
fazendo qualquer coisa, mesmo que só respirando. A
questão é que normalmente consigo transformar minhas
reações em algo indecifrável para os outros. Mas tem algo
em Olivia que não me deixa ficar impassível. Não sei por
que ou como essa garota está conseguindo se infiltrar pela
cerca de arame farpado que dá acesso à terra das pessoas
com as quais eu tenho vontade de me abrir, mas não gosto
disso. Não gosto nada disso.
Fico em silêncio enquanto ela e Peter fazem uma espécie
de dancinha da vitória e tento me concentrar na missão do
momento.
Peter se volta para o grupo depois que eles terminam a
dancinha e levanta as mãos.
— Hora de assistir ao show do ícone Pop Top.
Paramos para encher nossas garrafinhas de água pela
oitava vez em menos de oito horas. Minha garrafa de edição
limitada do Farmland não é tão usada assim desde o festival
do ano passado. O sol está baixando no céu, quase se
pondo, mas não é essa a sensação. Parece que estamos
respirando por um canudinho a caminho do show da Pop Top
em meio à multidão.
Apesar da umidade, essa é minha parte favorita do
Farmland: ver o festival ganhando vida. O primeiro dia é
cheio de artistas mais novos e independentes, e sempre
demora um pouquinho até o público lotar os palcos. Mas no
fim da tarde começa o burburinho de animação. As barracas
de comida e merchandising no Core já estão com filas mais
longas, os Farmers ainda estão cheios daquela energia que
a gente tem antes de passar três dias sob o calor abafado e
voltar para casa, para a realidade. A certeza de que, pelos
próximos dias, você pertence a um lugar.
Provavelmente estou sendo otimista, ou talvez seja o
fato de que fui criada acreditando na magia da música ao
vivo, mas até o fato de ser negra e estar rodeada por uma
maioria branca me incomoda menos do que o normal.
Passamos por multidões de pessoas que nos cumprimentam
com o tradicional aceno de “Ei, Farmer!”, e é como entrar
no mar pela primeira vez: algo grandioso que fica ainda
maior quando você se joga e vira parte daquilo.
Parte meu coração não poder mais compartilhar isso com
meu pai. Eu o amo ainda mais por ter me apresentado a
este lugar.
Apesar de me sentir muito bem aqui, não consigo deixar
de lado os avisos da minha mãe antes de sair hoje de
manhã: “Se cuida. Nunca se sabe do que as pessoas são
capazes”. Só tem cinco anos daquele tiroteio na boate em
Orlando, quatro desde que aquelas pessoas foram mortas
no festival em Vegas. Dois anos que aquele racista matou
todas aquelas pessoas no Walmart, no Texas. E a lista
continua.
Ela estava certa em se preocupar que eu viesse para um
lugar como esse, eu sei. Hoje em dia, o perigo de
simplesmente estar vivo e ao ar livre é quase tão americano
quanto fogos de artifício no quatro de julho, ou torta de
maçã, ou desencorajar eleitores a votar. Mas isso. Isso é o
que importa.
Você se arrisca indo ao cinema, saindo para comer ou
para ir a um show porque é isso que nos faz sentir vivos.
Sentir o ar sufocante do fim do verão no corpo, as pessoas
de quem você gosta a seu redor, músicas que você ama
tocando ali do lado e te fazendo lembrar do motivo desse
amor.
Vamos caminhando em meio à multidão diante do palco
Honeycrisp, corpos se espremendo por todos os lados.
Como sempre, estou empolgada e cheia de expectativa
enquanto esperamos o show começar — meu primeiro show
do festival. A garota ao nosso lado está usando uma
camiseta com o logo da Pop Top, e o cara atrás segura um
cartaz escrito “POP TOP, CASA COMIGO?”. Ela ainda não é uma
superestrela, mas está se encaminhando para isso. Grupos
de pop punk liderados por mulheres negras de black power
verde-limão não são muito comuns. É impossível ignorá-la.
Quando Pop Top sobe ao palco com a banda atrás, a
galera imediatamente vai ao delírio. E, sem muita
enrolação, o guitarrista já manda a introdução de uma nota
só do primeiro sucesso dela, “Flowergirl”.
— Isso é incrível! — grita Olivia para mim, enquanto as
pessoas na nossa frente formam uma rodinha punk. Peter
surta quando Pop Top começa a cantar o primeiro verso, e
seu entusiasmo se iguala ao do restante da plateia. — Isso
tudo é tão...
Ela gesticula para o nosso entorno e nem precisa
explicar. Sei exatamente o que ela quer dizer.
O público vai à loucura quando Pop Top chega ao refrão
— uma volta ao emo dos anos 2000 que faz todo mundo se
empurrar, pulando sem controle como uma garrafa que foi
sacudida e alguém tirou a tampa. Nunca deixa de ser
incrível ver centenas de pessoas se movendo juntas desse
jeito.
Olho para a esquerda e Olivia está no clima, mexendo a
cabeça no ritmo da música e cantando a letra como se nada
disso fosse novidade para ela, mas é Imani que me
surpreende. Pela primeira vez desde que a conheci, ela se
joga por completo na música, na multidão, com uma
energia igual à de Peter.
Eu e Olivia aguentamos os quinze primeiros minutos do
show antes de precisarmos de uma pausa. Estou suando
como nunca, e ela está respirando com alguma dificuldade,
então pego a canga na mochila de Peter e levo até a grama
lá no fundo, onde estão os últimos fãs da Pop Top. Estendo a
canga e Olivia imediatamente tira os sapatos. Estica os
dedos e se deita para olhar o céu.
— Amei esse lugar — diz ela, sorrindo na direção do sol.
— É — digo. Percebo que estou encarando antes que ela
abra os olhos e desvio o olhar rapidamente. — Essa
sensação, hum, nunca muda.
— Essa é uma das minhas partes favoritas de ir a um
show, sabe? — Ela vira de lado e apoia a cabeça num dos
braços. — É como fazer parte de, sei lá, um organismo?
Uma coisa viva. Somos todos parte de um corpo que precisa
da participação de cada uma das células pra funcionar.
Entende o que estou dizendo?
Eu era apenas mediana em ciências na escola, mas sei
do que ela está falando.
— Sim, exatamente. As bandas são os pulmões, mas nós
somos a respiração.
Ela abre a boca para responder, mas, em vez disso, pega
o telefone e começa a digitar furiosamente.
— Nós somos a respiração que dá sentido aos seus
pulmões. Esse movimento é o maior presente do seu corpo
— diz ela, ao terminar. Dá um sorriso tímido, meio
envergonhado, pela primeira vez desde que nos
conhecemos. — É que... eu faço esse negócio on-line.
Pequenas frases com fotos que tirei. Como se fosse meu
diário de shows, só que compartilhado com o mundo? Não
sei, parece idiota quando explico, mas...
Talvez seja a forma como ela parece resignada ao dizer
isso, ou a velocidade com que perdeu o entusiasmo, como
se alguém tivesse lhe dito para ser menos ela mesma, mas
sinto uma vontade incontrolável de contradizê-la.
— Posso ver? — pergunto. Não parece ser nada idiota e,
quando ela me entrega, tenho certeza absoluta de que não
é. — Você é uma escritora. Isso é impressionante.
— Não, meu Deus, não! Não sou. Não sou mesmo. Só
gosto de catalogar tudo, sabe? Não quero perder esses
sentimentos e esses momentos e, sei lá, me parece que
cadernos ficaram na era dos dinossauros, e manter um
diário é algo que só vejo no Tumblr e...
— Isso parece uma letra de música — interrompo. Não
quero que ela duvide de si mesma. Devolvo o celular para
ela e passo a mão na nuca. — É difícil fazer isso. Você é boa.
As palavras parecem estranhas ao saírem da minha
boca, mas não consigo evitá-las. Tento não ir ainda mais
longe neste terreno perigoso — esse espaço onde ganhar o
Golden Apple e descobrir a minha Verdade deixa de ser a
coisa mais urgente da minha vida —, mas sinto que estou
falhando.
— Bem, obrigada? Acho. É que... isso não vai ser uma
carreira nem nada disso, é só uma coisa que faço para
passar o tempo. Tento não apostar muito nisso, sabe? É
divertido e tudo mais, mas...
— Olivia.
— Hã?
— Você já aceitou um elogio sem tentar ficar explicando
por que você não o merece?
Ela dá uma risada e fica olhando para um ponto aleatório
da canga.
— Você... pode. De mim — digo. Espero ela me olhar
antes de concluir: — Aceitar um elogio vindo de mim, quero
dizer. Eu não mentiria para você.
Sei que disse isso de maneira meio séria, mas quero que
ela saiba disso a meu respeito. Acredito que tudo o que
temos é a nossa palavra, que quando dizemos alguma coisa
deve ser com sinceridade, e de coração. Eu sei por
experiência própria o quanto declarações vazias e
promessas que não se cumprem podem destruir alguém aos
poucos. Não faria isso com ela.
— Eu... — começa ela, e depois se cala. — Não ganho
muitos elogios por ser assim. — Ela ri um pouco. — Sou bem
melhor interpretando a versão que as pessoas esperam de
mim.
Meu estômago dá uma cambalhota. Parte de mim quer
chegar perto dela. A parte que sempre esteve meio que por
aqui, pulsando, implorando para abraçar e ser abraçada.
Mas não faço isso. Não consigo ser esse tipo de pessoa.
Então pego a câmera que está ao nosso lado em cima da
canga e tiro uma foto dela de perfil, olhando para a
multidão diante de nós. O sol dá uma luminosidade a seu
rosto, como se ele se levantasse todos os dias para vê-la,
não o contrário. A foto é o suficiente para que ela olhe para
mim novamente, mas desta vez a expressão é diferente de
todas que já a vi fazer. É contemplativa, um pouco
reservada. Ela pega a foto que sai da câmera e sacode.
— Pra você — diz, depois que a foto se revela. — Para se
lembrar de mim quando tudo isso acabar. — Ela sorri de
leve e põe a foto na minha pochete aberta. — Mande para
uma galeria com o título Efeito do elogio de uma garota
linda. Vai ficar rica com certeza.
Não tenho resposta para isso — nem sei como começar a
explicar o momento que acabamos de ter. Então finjo que
estou escutando a Pop Top. Tento ignorar a sensação de que
estou afundando em algo contra o qual não tenho
ferramentas para lutar.
E o fato de que talvez eu não queira lutar.
Olivia

SEXTA-FEIRA À TARDE

— Quero ir na roda-gigante.
Odd Ones, a banda que veio depois da Pop Top, terminou
o show, e agora Imani está na minha frente com os braços
cruzados e uma expressão que diz que aquilo não é um
pedido, mas uma ordem. Eu deveria saber que ficar sentada
durante dois shows não ia cair bem com ela. Olho para Toni
— não para pedir permissão, apenas para, tipo, me
despedir.
— Vou dar uma olhada no Peter — diz ela. — Ele é tipo
uma suculenta, pode sobreviver sozinho por um tempo, mas
fica melhor quando tem alguém cuidando.
Eu me ajeito e vou atrás de Imani.
Ela anda meio rápido por um tempo, até estarmos fora
do alcance de Toni, Peter e do último show que vimos. Ela
está surpreendentemente em forma para alguém que
passou a maior parte do ano escolar almoçando na
biblioteca para poder estudar por mais tempo. Tenho que
desviar de pessoas deitadas na grama e pular as pontas dos
cobertores para acompanhar o passo dela. A roda-gigante
está iluminada ao longe, enorme, brilhante e colorida, e na
hora penso em tirar uma foto. Mas decido esperar o sol se
pôr.
Dou um aceno de “Ei, Farmer” para um casal que passa
por mim e eles acenam de volta, e isso é tão legal. Tão
tranquilo.
Eu me dou conta de que embora esteja coberta por uma
fina camada de suor, já sinta algumas marcas de sol
horrendas aparecendo e tenha bebido mais água nas
últimas horas do que em toda a minha vida, estou feliz.
Pela primeira vez em meses, passei quase uma hora sem
pensar na audiência. Não estou pensando na minha próxima
conquista — para falar a verdade, nem estou pensando em
encontrar a próxima maçã. Estou confortável comigo
mesma. Isso é tão estranho para mim que quase não
reconheço a sensação. Mas eu sou eu, então é claro que
não dura muito tempo.
— Você precisa tomar cuidado — diz Imani, pulando as
pernas de um cara com uma camiseta do Kittredge. Ele
acena quando passamos, mas acho que ela não percebe.
— Já disse que estou usando fator 30 — digo, tentando
fazer uma piada para fugir do tom que ela está usando. —
Eu li em algum lugar que se usar um número muito mais
alto nem funciona.
— Você sabe que não estou falando disso. — Paramos na
frente da roda-gigante e ela olha para meus ombros
vermelhos. — Você precisa mesmo passar o protetor solar
de novo, mas estou falando disso. — Ela mexe a mão,
indicando tudo ao nosso redor.
Digo para mim mesma que Imani só quer o melhor para
mim, quer um futuro em que as pessoas que partiram meu
coração sejam punidas de alguma forma para compensar.
Mas isso é porque ela não me vê do jeito que eu sou, por
quem eu sou. A parte de mim que provavelmente merece o
coração partido. Sou um time inteiro de destruição de uma
mulher só, e às vezes destruo as pessoas mais próximas de
mim, principalmente as que decido amar.
Em determinado momento, eu fiquei muito boa na
conquista. Fiquei tão boa que na maioria dos dias, ou das
noites, eu mal precisava tentar. Aquilo se tornou instintivo,
colocar uma fantasia e me transformar em quem eu
precisava ser para ganhar a atenção de alguém mais
inteligente, mais engraçado e mais talentoso que eu. E eu
conseguia prender a atenção deles por um tempo. Mas
pedaços de mim inevitavelmente começavam a escapar. Eu
falava muito sobre as coisas erradas, exagerava nas
demonstrações de afeto, ou coisa pior.
Cal, o capitão do time de debate, disse que o distraí de
sua chance no campeonato estadual quando apareci com
um macacão laranja que tinha comprado numa venda de
garagem. Moira, a estrela em ascensão do time de futebol
feminino, torceu o tornozelo na noite anterior ao
campeonato porque insisti em ir à pista de skate no nosso
aniversário de dois meses de namoro. Usei um belo par de
sandálias plataforma de veludo Saint Laurent comprado no
brechó no dia da apresentação de Kai na Batalha das
Bandas, mas acabei tropeçando e caí em cima da bateria,
destruindo seu prato da sorte cinco minutos antes de as
cortinas se abrirem. E aí teve o Troy.
Todos terminaram do mesmo jeito. Em chamas.
O único relacionamento que não destruí foi esse aqui, a
nossa amizade.
— Sei que veio aqui para se afastar um pouco de tudo,
mas você teve meses para pensar no que vai dizer na
audiência e ainda não me contou o que vai ser — diz ela.
Sua voz fica um pouco mais baixa. — Desde quando temos
segredos uma com a outra?
Eu meio que quero bater o pé no chão como uma criança
fazendo pirraça, porque meu Deus do céu. Não quero fazer
isso hoje. Não quero fazer isso nunca.
É incrível o quão rápido aquele acolhimento que acabei
de sentir, há dez minutos, deitada na grama com Toni,
desapareceu. Esse pequeno lembrete do meu último e mais
retumbante fracasso, o último relacionamento que se
autodestruiu por causa das minhas péssimas escolhas,
parece um balde de água fria na cara. E só fica pior, porque
estou me afogando na minha própria vergonha.
— Imani, por favor. — Posso ouvir o tom choroso da
minha voz e preciso apelar para meu último recurso. Lanço
meu olhar mais inocente. E, porque não sei o que mais
posso fazer, eu minto. — Não estou escondendo nada de
você. A gente pode focar no fim de semana?
Não sei quando foi que as coisas mudaram, quando foi
que nossa relação se tornou esse peso no qual eu sinto que
sou um fardo para ela também. É a mesma forma como me
sinto com minha mãe ou Nia — como se eu fosse algo
defeituoso e sem conserto —, mas não gosto disso. Não
entendo. Se tem alguém que eu sempre soube que iria me
amar apesar de todos os meus defeitos, é ela.
— Você não está... — Ela para de andar e se vira para
mim assim que chegamos à bilheteria. — Não está tentando
ficar com a Toni, certo? — Ela mexe no anel de prata no
dedo mindinho. Compramos no Navy Pier durante um fim de
semana do ano passado, quando viajamos para Chicago
para superar meu término com Brianna, maestrina da banda
marcial. Tínhamos dois iguais até eu perder o meu enquanto
nadava à noite na piscina do Theodore, da aula de teatro. —
Porque você prometeu que seríamos só nós duas.
Sinto uma pontada forte e repentina no peito.
— E é verdade. — Balanço a cabeça, grata por ela não
me odiar. Por ela não estar sendo tão inflexível nos últimos
dias, porque já está prestes a me jogar na sarjeta. —
Fizemos uma promessa de dedinho — completo.
Passo os braços ao redor dela e a abraço forte. Enfio o
rosto no espaço entre seu pescoço e seu ombro, e ela
levanta os braços para me envolver também. Ela parece
muito firme, como sempre. Minha melhor amiga, o farol nas
piores tempestades.
— Amo você, Mani. — Minha voz é abafada pela camiseta
dela. — Você sempre cuida de mim.
— Amo você também — diz ela, em voz baixa.
Quando nos separamos, ela solta um suspiro e parece
exausta, sem dúvida por causa do sol absurdo e da umidade
da Geórgia.
Seus olhos passeiam pelo meu rosto rapidamente e ela
balança a cabeça. Espera alguns segundos antes de dizer:
— Wash odiava altura quando éramos crianças. Íamos
para a feira estadual todo ano e meus pais nunca me
deixavam ir na roda-gigante porque ele não podia ir. Não
queriam que ele “se sentisse mal”. — Ela faz aspas com os
dedos no ar e me lança um meio sorriso (porque talvez ela
distendesse um músculo se abrisse um sorriso completo).
Sorrio de volta, um sorriso bem mais largo. — Estou
esperando por isso a vida inteira. Você devia escrever para
a posteridade.
Olho para cima, para a roda-gigante, com luzes cor-de-
rosa e roxas serpenteando no céu de fim de tarde. Enorme,
imponente, sua presença incontornável. Levanto o dedinho
para Imani.
— Considere isso uma promessa solene. — Ela enrosca o
mindinho no meu e beijamos os dedões. — Nunca vou
deixar minha leve acrofobia atrapalhar seu caminho para a
grandeza.
Ela solta uma risada e ficamos de mãos dadas
balançando. Imani está um pouco mais radiante depois
disso e, enquanto estamos na fila, ela fala mais do que
durante todo o tempo desde que chegamos ao Farmland. E,
porque sou uma cientista do amor, é sobre o Peter!
— Eu só acho que ele é engraçado. Os caras
normalmente pensam que você tem a obrigação de rir de
tudo que eles dizem, porque o patriarcado opera até nesses
microníveis. — Um canto de sua boca se curva para cima, e
ali vejo que consegui. Minha obra-prima foi achar um
gatinho para Imani no Farmland. Meu Deus, eu mereço um
Pulitzer. Ou um Nobel. Não lembro direito a diferença, mas
qualquer um deles serve. — Mas ele se esforça para isso,
sabe? Ele tenta realmente ganhar cada sorriso. É... legal.
Nós somos as próximas na fila dos ingressos e já estou
planejando o casamento e decidindo como os filhos deles
vão me chamar: Tia Liv? Titi Livi?
Ela revira os olhos com seu próprio discurso.
— Mas quem se importa com tudo isso quando estamos
prestes a finalmente andar nesse negócio? Você não foi a
única a ler as mensagens dos fóruns, sabe? Esse é, tipo, um
gigante dos festivais.
— O que é maior que gigante? Colossal? Porque, se for, é
isso mesmo — digo.
Ela ri, sua risada baixa e encorpada que só me traz as
melhores lembranças.
A funcionária da bilheteria está com a mão estendida
para pegar o dinheiro quando nossos celulares vibram. A
próxima pista da caça ao tesouro está ali — as únicas coisas
visíveis na imagem são um fundo quadriculado e a maçã
diante dele — e como não posso me arriscar a perder a
próxima maçã para outra pessoa, começo a correr na
direção de onde deixamos Toni e Peter.
— Olivia, espera! — Imani grita atrás de mim. Não sei por
que ela ainda está na fila depois de receber a mesma
notificação que eu, mas seus pés estão plantados quando
me viro para olhar. Sei que ela está animada para andar
nesse negócio, mas ainda temos mais dois dias e
precisamos pegar essa maçã agora. Ela mexe
distraidamente no anel. — Não podemos só fazer isso aqui
rapidinho?
— Vamos andar depois, eu juro! Mas estamos perdendo
um tempo precioso, Mani. Isso é uma emergência.
Sinto meu corpo inteiro começar a vibrar. É isso. É para
isso que vim aqui: uma aventura. Um grande fim de
semana. Tudo pode ser bom se a gente se permitir.
Dou um sorriso largo e começo a caminhar rapidamente.
Leva alguns segundos, mas finalmente ouço os passos de
Imani atrás de mim e me entrego à emoção deste novo tipo
de conquista.
TONI

SEXTA-FEIRA À TARDE

Olivia e Imani voltam assim que recebemos uma nova


pista da maçã, e Olivia aparece como um raio, os olhos
brilhando, empolgados. Meu coração acelera um pouquinho
ao vê-la, e fico sem saber se é expectativa ou medo. O fato
de não saber torna tudo ainda mais intenso.
— Você sabe onde é isso, não é? — pergunta Olivia,
apontando para a tela do celular.
Ela está ofegante por causa da caminhada, mas parece
motivada, não exausta. Imani, por outro lado, parece
apenas estar de saco cheio.
Olivia joga o longo cabelo para trás do ombro e fica
olhando para o horizonte. É quase como se o resto de nós
não estivesse aqui, reunidos em círculo olhando a pista em
nossos respectivos telefones. Seu semblante me lembra
muito de mim mesma — ou da minha versão de quando não
estou fazendo seja lá o que for com essa menina que acabei
de conhecer —, o que me deixa desconfortável.
— Está vendo essa parede quadriculada preta e branca
desfocada no fundo? — Mal dá para ver se você não estiver
olhando com atenção, mas conheço esse espaço como a
palma da minha mão. Só pode ser um lugar.
Vamos andando pelo Core, e Peter dá uma piscadinha
para mim por cima de Imani e levanta a sobrancelha como
quem diz: “Cara, olha só! Estamos num encontro duplo!”.
Dá para ver nos olhos dele que está caidinho por essa
garota que mal conhece, apesar de anos ouvindo meus
conselhos para não fazer isso. Ele não disse com todas as
letras enquanto Imani e Olivia estavam na roda gigante e
nós ficamos assistindo ao show que rolava, mas é como se
tivesse dito. Peter é assim mesmo — quase obsessivo com
suas paixões.
Paramos diante de uma estrutura com telhado de metal
e paredes de vidro no fundo do Core. Levanto a mão para
fazer o gesto de “Ta-nan!” mais desanimado que consigo,
embora no fundo esteja realmente orgulhosa por ter
decifrado mais um mistério. Olivia dá um sorrisinho, como
se soubesse mais do que aparenta sobre meus sentimentos,
mas não diz nada.
— Discoteca Silenciosa? — pergunta, as sobrancelhas
arqueadas. — Acha mesmo que está aqui?
Olho em volta e analiso a cena. O pavilhão da Discoteca
Silenciosa está cheio de gente usando fones de ouvido
enormes e dançando seja lá o que esteja tocando neles.
Parece um filme de terror para mim, mas Olivia parece
animada com essa descoberta.
Concordo com a cabeça.
— Atrás da antiga cabine de DJ.
Tento não me apegar à memória do dia em que vi os
fundos da cabine de DJ pela primeira vez — era muito
pequena para olhar por cima da mesa de som enquanto
meu pai conversava com seu velho amigo. Antes de ser
reformada e virar a Discoteca Silenciosa, era apenas a
Discoteca: uma festa com decoração retrô para todas as
idades e que durava o dia inteiro, e também uma das
atividades a que meu pai mais gostava de me trazer quando
eu era criança. Naquela época, parecia que ele conhecia
tudo e todo mundo.
— Precisa engatinhar atrás da cabine para ver. Mas o
painel ali embaixo é coberto com papel de parede
quadriculado — digo, e passo a mão no pescoço. — Esse
lugar era uma grande mistura de décadas. Estampas
quadriculadas para os anos cinquenta. Globo espelhado
para os setenta. Cores néon para os oitenta.
— Adoro quando você nos mergulha em seu poço
interminável de conhecimento, Toni Baloney. Vamos lá!
Peter esfrega as mãos e se voluntaria para entrar. Ele
olha para Imani, esperando que ela entre no pavilhão, com
uma expressão esperançosa no rosto. Em nome do meu
melhor amigo, sinto uma onda quente de irritação e
indignação subir pelas minhas costas quando ela cruza os
braços e responde, com desprezo:
— Prefiro não ir.
Sem nunca perder o ânimo, Peter entra saltitante assim
mesmo. Ele e Olivia entram na fila e logo estão lá dentro,
enquanto eu e Imani ficamos esperando lado a lado. Há o
som ambiente de risadas e música tocando à nossa volta,
mas claramente fica um silêncio entre nós duas enquanto
esperamos.
— Você tem medo de altura? — pergunta ela, depois de
alguns minutos. Ela nem olha para mim.
— Não — respondo, devagar. Não sei se isso é um teste,
mas, se for, com certeza não estou indo bem. — Você tem?
Ela aperta os lábios um contra o outro e se vira sem
responder. Fico pensando o que será que fiz de errado para
essa garota me odiar tanto e tão rápido, mas Peter e Olivia
saem do pavilhão e me distraem. Peter está segurando a
maçã dourada com as duas mãos, como se estivesse com
medo de derrubá-la, e Olivia está de braços abertos, como
se fosse a dona do mundo.
— A gente devia voltar lá pra dentro juntos! — diz Peter,
quando chega perto. — Imani, acho que você ia gostar.
Tenho quase certeza de que em pelo menos um dos fones
está tocando Pop Top.
Imani não parece entusiasmada com a ideia, mas o rosto
de Olivia se ilumina. Ela estala os dedos como se tivesse
acabado de resolver um grande mistério.
— Vocês dois deviam ir! — sugere, apontando para eles.
— Eu e Toni precisamos ensaiar para amanhã, e acho que
não teremos pistas por um tempinho.
Ela olha para mim procurando um apoio, levantando as
sobrancelhas para que eu concorde. Mas Peter fala primeiro.
— Isso, podemos dançar enquanto elas ensaiam! Eu, por
exemplo, não consigo distinguir as notas, então acho que
atrapalharia mais do que ajudaria. O que você acha, Imani?
Peter olha para Imani com expectativa, mas ela encara
Olivia. Elas parecem se comunicar apenas por uma
sequência de complicadas piscadas de olho.
Enfim, ela solta um suspiro.
— Está bem, vamos lá.
Peter praticamente se joga de volta no pavilhão da
Discoteca Silenciosa, enquanto Imani, relutante, se arrasta
atrás dele. Olho para Olivia, que caminha à minha frente, a
barra do vestido balançando com seu andar, como se cada
passo fosse parte de uma dança. Olho de volta para Peter,
sorrindo para Imani na fila. Eu me pergunto como foi que
acabamos nessa situação. E me pergunto se isso importa.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À NOITE

Temos que voltar para o acampamento, já que o violão


de Toni está lá, e estou me sentindo como Ginger Rogers, ou
Fred Astaire, ou algo assim. Como se estivesse andando nas
nuvens. Tudo está saindo perfeitamente bem. Imani e Peter
estão a caminho de se acertar e só precisam de mais alguns
empurrõezinhos, seguimos encontrando as maçãs e o
semblante de Toni parece um pouco menos assassino do
que hoje de manhã. Só precisamos ensaiar e, a não ser que
eu estrague tudo de alguma forma, podemos até fazer uma
apresentação decente no concurso amanhã.
E, já que estou me sentindo tão bem, é neste momento
que resolvo dar uma olhada no celular.
Algumas notificações apareceram desde que paramos
para pegar a última maçã. Tem o de sempre: algumas
mensagens da minha mãe perguntando como está o retiro.
Respondo com uma frase das escrituras que encontrei no
Google e tento ignorar a pontada de culpa.
“Não é como se ela estivesse sentindo a minha falta”,
lembro a mim mesma com uma risada de deboche. Ela deve
estar se perguntando por que sua pressão arterial voltou
aos níveis normais pela primeira vez desde que comecei a
falar.
Ao fechar as mensagens e abrir meu perfil no
Confidential, me preparo para o pior. Há algumas
mensagens privadas de um perfil anônimo sem foto, e meu
estômago se revira imediatamente. Tenho recebido essas
mensagens todo dia desde o último semestre, apesar de ter
trancado meu perfil há meses, e elas ainda me deixam
abalada, todas as vezes.
De @justicaprotroy000 para @OliviaTwist:

se n quer ser tratada como uma piranha, não aja como


uma.

se troy não puder jogar essa temporada vc nem devia


voltar pra escola

melhor nem voltar mesmo. ninguém te quer aqui

Apago as mensagens rapidamente e nem me dou ao


trabalho de denunciar a conta. Não importa mesmo, eu sei,
porque vai aparecer uma nova no lugar amanhã. Pelo visto,
essas pessoas da minha escola que adoram me assediar on-
line têm uma lista inesgotável de e-mails para usar. E o
Confidential... — um site criado pelos alunos do ensino
médio como uma rede social estilo Big Brother com o intuito
quase único de compartilhar fofoca —, bem, obviamente
bloquear trolls não está entre as suas prioridades. Desabilito
as notificações, assim pelo menos isso não vai ser a
primeira coisa que vou ver amanhã.
De repente me sinto cansada. Estou muito cansada de
tudo isso. Não quero voltar para a escola na semana que
vem. Não quero nada disso. Só quero voltar no tempo para
o primeiro semestre, antes de Troy Murphy prestar atenção
em mim. Não era assim que eu tinha imaginado meu último
ano. Mas ainda tenho alguma esperança de que as coisas
possam voltar ao normal. Só vai custar o meu silêncio.
Enquanto andamos, minha mente entra numa espiral,
como sempre acontece quando sem querer começo a
pensar no que vai acontecer semana que vem. Quando se é
como eu, depois do término de todos os términos, talvez
você nunca se recupere. Talvez sua vida nunca mais seja a
mesma.
Não porque você amava aquela pessoa demais, ou
achava que aquela era “a” certa, mas porque pensou que
você — vulnerável e exposta em sua essência — talvez
pudesse ser boa o suficiente para segurá-la. Que alguém
como Troy Murphy pudesse mesmo amar uma garota como
eu.
O tipo de garota que sente demais, fala demais e faz
todas as coisas erradas nas horas erradas.
— Olivia. Tudo bem? — pergunta Toni.
Tiro os olhos do celular e percebo que estou parada no
meio do caminho, e as pessoas estão desviando para não
me derrubar. Já saímos do Core e estamos nas ruazinhas
improvisadas de cascalho que levam de volta ao
acampamento.
Meu estômago embrulha. Meus olhos começam a arder e
estou prestes a chorar. Então, recorro ao que sei fazer
melhor. Resolvo mudar o rumo das coisas. Preciso de algo
diferente, algo que não sejam metas, objetivos e aquele
olhar de Toni que se parece perigosamente com pena. Não
quero que sintam pena de mim. Não quero sentir
absolutamente nada do que estou sentindo agora.
Estou ávida pela sensação de me perder no meio da
multidão, ser tragada pelo som, os corpos, o movimento.
Fazer parte daquela massa de suor e gente estranha, algo
que sempre conseguiu apaziguar o ruído na minha cabeça,
constantemente martelando o refrão que diz exagerada
exagerada exagerada.
Uma parte de mim, uma parte maior do que eu gostaria
de admitir, espera que Toni entenda isso. Pego a mão dela e
a puxo de volta para o Core, parando apenas por um
segundo para rezar para que ela não se solte. Não sei o que
vou fazer agora se ela soltar.
Olho para ela, as sobrancelhas arqueadas, a pele
brilhando com a mesma fina camada de suor que sinto no
meu próprio rosto. Espero que minha intuição esteja certa
sobre ela.
Espero que ela esteja pronta para se libertar.
TONI

SEXTA-FEIRA À NOITE

— Não tenho certeza se quero fazer isso.


Ela está de costas para o galpão gigantesco adiante, mas
tudo em sua postura corporal mostra que ela só quer se
virar e correr para dentro. Em todos os meus anos vindo ao
Farmland, nunca entrei nesses celeiros com música para
dançar — são estruturas de madeira enormes, usadas para
abrigar cavalos e montes de feno quando isso aqui era
realmente uma fazenda, mas que foram transformadas em
belas cópias de boates —, no entanto, aqui está um deles,
imponente à nossa frente, sob o céu quase escuro do início
da noite.
— Qual o problema? Você não curte música eletrônica?
Acho que provavelmente deve ter um galpão que toque
pop, talvez? Quem sabe folk? — pergunta.
Ela está perto de mim, mas ainda preciso me inclinar
para ouvir por causa do som grave que sai do celeiro.
Tiro o chapéu a passo a mão pelos dreads antes de
colocá-lo de volta. Não quero entrar nesse celeiro gigante.
Essa é a única área do Farmland onde nunca me atrevi a ir
porque eu simplesmente não danço. Sob nenhuma
circunstância. Tenho muitas regras que norteiam a minha
vida neste mundo, mas essa está no topo da minha lista de
NÃO, com letras garrafais em cores neon.
Racionalmente, meu cérebro sabe que temos que voltar
para o acampamento, sabe que precisamos ensaiar juntas
antes de amanhã, sabe que não tenho outra escolha se
quiser uma chance de ganhar o Golden Apple e ter aquele
momento de iluminação no palco do qual meu pai sempre
lembrava. Mas a parte mais fraca de mim ainda não chegou
lá.
É constrangedor admitir, até para mim mesma, mas
estou com medo.
Mas também só de pensar em tocar meu violão na frente
de alguém, e de Olivia especificamente, meu coração bate
mais forte do que o recomendado pelas organizações de
saúde. Tenho medo de pegar o violão e não ser mais tão
boa quanto era antes, tenho medo de que a habilidade até
volte, mas o resto não. Fico apavorada de pensar que talvez
a paixão, a alegria, a conexão que eu tinha com a música
tenham desaparecido para sempre. E isso é razão suficiente
para me levar a considerar que, embora Olivia não tenha
me dito por que ela está querendo matar o ensaio agora,
talvez entrar nesse galpão enorme e assustador possa
servir de fuga para não admitir que eu não sei se estou
pronta para isso.
— Não, não é... Não é o gênero musical. É só que. Eu
não. Sabe. Danço — digo, tentando parecer menos
envergonhada do que estou, mas sei que não consegui ao
ver os olhos de Olivia brilhando e ela virando a cabeça para
o lado.
— Como assim não dança?
Eu me sinto uma idiota por estar com vergonha disso,
algo que nunca me envergonhou antes, mas estou. Mas é
que Olivia está me olhando com esses grandes olhos
castanhos, e ela é destemida, o tipo de pessoa que se joga
nas coisas e acredita que vai dar certo. E aqui estou eu,
medrosa demais para ser sincera e contar por que não
quero tocar violão na frente dela, e ao mesmo tempo
medrosa demais para ganhar um tempinho dançando na
frente de pessoas que nunca mais vou ver na vida.
A expressão de Olivia se suaviza, e ela põe uma das
mãos no meu ombro. É quase preocupante o quão rápido
minhas defesas caem aos pedaços. Algo na ternura desse
gesto me faz querer ser sincera.
— Só não danço. E por um bom motivo. — Ponho a mão
na testa e resmungo. Aqui está ele, o momento da verdade.
Hora de romper a ilusão de que sou autossuficiente e
impassível. — Isso é tão humilhante. Esquece o que falei.
Vamos dançar.
Tento passar pelo lado dela para entrar, mas Olivia é
mais rápida. Ela se coloca na minha frente com a mão nos
quadris.
— Na-na-não. Nós temos um combinado aqui, Toni. Uma
parceria, por assim dizer. E já me disseram que parcerias
não funcionam sem honestidade.
Sua expressão é tão séria e severa, apontando o dedo
para mim, que acabo soltando uma risada.
— E quem disse isso?
— A Teen Vogue, obviamente. Logo depois de me ensinar
como destruir o patriarcado. — Ela dá um sorrisinho. — Mas,
por favor, continue.
— Você não pode me sacanear.
— De jeito nenhum!
— Está escrito na sua cara que isso é mentira.
Ela faz um gesto como se estivesse passando um zíper
nos lábios, e eu reviro os olhos. Tenho a mesma sensação do
momento em que estávamos sentadas na grama, durante o
show da Pop Top. Sinto uma serenidade quando falo com
ela, minha habilidade de me fechar e não compartilhar nada
se dissolvendo sem a minha permissão.
— Ok, então, na única vez em que fui a uma festa... Bom,
você precisa entender que é difícil para alguém com braços
como os meus realmente se mexer, sabe, sem cometer um
homicídio induzido por dança. Enfim, eu estava meio que
sozinha nessa pista de dança improvisada no porão da casa
de alguém, até que uma menina cutucou meu ombro e me
chamou para dançar.
— Ah, não — diz Olivia, porque já deve ter entendido
onde vou chegar.
— Ah, sim — respondo. — Fiquei em choque, e já estava
um pouco chapada com a marola do pessoal do canto,
então eu me virei sem saber a que distância o rosto dela
estava do meu cotovelo e...
— Você quebrou o nariz dela, não é? — Ela arregala os
olhos e completa, a voz quase sussurrando: — Ah, Toni, sua
gazelinha fofa.
Nem preciso responder, porque todo o autocontrole de
Olivia explode de repente e ela começa a rir de forma
descontrolada. E não sei explicar muito bem, mas alguma
coisa no jeito como acontece — o rosto dela cheio de
empatia, embora achando graça — me dá vontade de rir
também. Uma daquelas risadas profundas e verdadeiras
que você não consegue evitar e vem lá de dentro. Nem
lembro quando foi a última vez que ri assim, e nem que
acho alguma coisa tão engraçada.
Mas tem algo nela, parada ali na minha frente, tão feliz e
leve, que torna sua energia contagiante. Eu nem sei por que
ela quer dançar comigo, por que não vai fazer outra coisa
entre as notificações das pistas. Não é como se eu fosse
uma companhia muito divertida. Quer dizer, Peter até acha
que sou engraçada, mas é porque ele é o único cara hétero
na face da terra que eu não jogaria na lata do lixo, tirando
Paul Rudd e LeVar Burton. Mas pessoas como Olivia não
costumam se aproximar de pessoas como eu.
Finalmente chega a nossa vez na fila, e o voluntário que
está na porta pega a mão de Olivia para carimbar seu
punho. Quando ele a deixa entrar, ela fala:
— Juro que vou proteger meu nariz. Não precisa se
preocupar comigo. — Ela levanta o braço fazendo um sinal
de escoteiro errado, com um risinho debochado. — E
prometo guardar seu segredo comigo enquanto estivermos
vivas.
Respiro fundo e estendo o braço para ganhar o carimbo.
— É melhor proteger mesmo seu rosto. Não é mentira
quando digo que sou uma ameaça para a sociedade.
Acho que ela até responde alguma coisa, mas no
momento em que as portas se abrem e entramos, não
consigo ouvir mais nada além do pulsar do grave.
O celeiro surpreendentemente se parece mesmo com
uma boate, apesar do chão de terra e das baias onde ainda
há montes de feno, como se um animal pudesse entrar aqui
a qualquer momento para pastar. Tem umas cem pessoas
no galpão dançando o que quer que seja isso que o DJ está
tocando. Elas se movem juntas, algumas com mais ritmo
que outras, mas todo mundo parece completamente
despreocupado com a opinião alheia. Não quero me mexer,
mas isso não parece ser uma opção, porque Olivia me puxa
pelo punho até o meio da pista de dança.
Ela olha para cima, e o globo espelhado sobre nós lança
prismas de luz em seu rosto. Estamos perto uma da outra,
mas não o suficiente para nos tocar. O fundo do meu
cérebro está gritando recuar!, mas não consigo ouvir. Só
quero ficar olhando para Olivia enquanto ela se move,
deixando a música invadi-la. É incrível.
Quando ela abre os olhos e vê que estou encarando, não
desvio o olhar, embora eu queira. Quero ser honesta, como
ela disse. E, com toda honestidade, saiba eu dançar ou não,
só quero ficar vendo enquanto ela se perde no momento.
Mas Olivia não me deixa escapar assim tão fácil.
Ela estende as mãos para mim e passa os dedos
suavemente ao redor dos meus punhos, me puxando para
perto. É tão lento e suave, o completo oposto da maneira
com que as pessoas se movem a nosso redor, a massa de
corpos pulsando e se batendo como se fossem átomos. Mas
no meio de todo o caos estamos apenas eu e Olivia, minhas
mãos roçando seus quadris enquanto ela dança. Ela sorri e
sinto meu coração subir à boca. Não sei bem o que fazer ou
como catalogar essa sensação.
Só me decepcionei com alguém uma vez, porque desde
então não me importo o suficiente com as pessoas que
entram na minha vida a ponto de lhes dar esse poder. Eu
me isolei, fiquei olhando as pessoas em volta formarem
grupos e casais e, até conhecer Olivia, nunca tinha me dado
conta do quão solitária era a minha vida. Eu já tinha
refletido por alto sobre como seria ter um relacionamento,
óbvio, mas isso nunca foi o bastante para efetivamente ir
atrás de um — para arriscar sentir o que viria quando ele
acabasse.
Eu sou do tipo que corre. Meu pai também era. Ele nunca
aprendeu a manter uma emoção por tempo suficiente para
analisá-la. Mas toda essa corrida do meu pai só serviu para
afastá-lo cada vez mais das pessoas que mais o amavam.
Tudo que ele ganhou foi um coração inquieto e uma filha
que só o conhecia por meio de momentos fugazes entre
turnês, histórias da vida na estrada e riffs de guitarra.
Talvez aquilo fosse o suficiente para ele. E talvez, por
muito tempo, eu tenha me convencido de que era o
suficiente para mim. Mas não mais. Não agora.
Aqui, neste momento, estou ancorada. Estou decidida,
olhando para esta garota e para a grandiosidade de tudo
isso.
— Confie em mim — pede ela.
As palmas das minhas mãos estão suando. Só confiei em
três pessoas na vida — e nunca cheguei perto de confiar em
mais ninguém. Seguro sua cintura um pouco mais forte.
E respondo com meu corpo: eu confio.
OLIVIA

SEXTA-FEIRA À NOITE

Mesmo que Toni não se sinta confortável aqui, se tem


uma coisa que eu sei é dançar. A pista de dança é meu
território, o único lugar onde me sinto eu mesma e
totalmente no controle do meu corpo. Imani sempre diz que
é como se apertassem um botão e eu fosse da Olivia que
age como as outras pessoas querem para a Olivia dona de
si mesma, que se movimenta com graça, cheia de energia e
em sincronia com a música.
Começo a dançar. Espero que Toni acompanhe minha
deixa. Fecho os olhos e respiro fundo. O lugar tem cheiro de
suor e do barro que as pessoas trazem de fora em seus
sapatos, mas nem consigo odiar isso. Há corpos me
espremendo por todos os lados, mas não é sufocante, é
libertador. Neste momento, estamos todos nos movendo
juntos, uma massa suada que encontra refúgio em uma
mesma coisa. Levanto os braços sobre a cabeça e deixo o
ritmo me levar.
Uma música emenda na outra, depois em outra, e mais
outra, e ainda estou com os olhos fechados. Um corpo
encosta na lateral do meu, e de repente sou transportada
para outra festa. Não estou mais no galpão, estou na casa
de alguém. A música não é eletrônica, mas um trap que
nunca ouvi antes, e o corpo encostado no meu não é de um
estranho. É da mesma pessoa que disse que responderia
que também me ama se eu parasse “de agir como uma
freira o tempo todo”.
“Se gostasse mesmo de mim, você faria isso”, ele
sussurrou no meu ouvido, a respiração quente. Ele podia
estar falando de qualquer coisa, na verdade. Das fotos que
ele queria, mas eu tinha medo de enviar, do fato de
estarmos namorando há três semanas e ainda não termos
feito nada além de dar uns beijos no banco de trás do seu
precioso Charger, embora ele quisesse. De repente, sinto
um gosto de serragem na boca.
Pisco os olhos rapidamente e diante de mim não está
Troy Murphy, com um copo vermelho na mão e a jaqueta de
couro idiota do time de basquete da Park Meade, que eu
achava tão especial. Que me fazia sentir tão valorizada
quando ele a colocava sobre meus ombros no corredor.
Quem está aqui é Toni, e meu coração se tranquiliza ao vê-
la. Toni é segurança. Eu e Toni temos um combinado, um
acordo justo. Um sorriso é apenas um sorriso e uma jaqueta
é apenas uma jaqueta.
Os olhos dela estão fechados também, e ela se move
com os braços ainda firmes na minha cintura, mas pelo
menos se mexendo. Está dançando no ritmo da batida,
permitindo a si mesma se perder na música.
Quando ela abre os olhos, não finjo que não estava
olhando. E não estava esperando aquele semblante em seu
rosto, tão esperançoso e acolhedor. É diferente da carranca
que ela vem exibindo praticamente desde o momento em
que nos conhecemos, mas combina perfeitamente com seu
rosto. Faz com que ela pareça mais nova, o tipo de pessoa
que toma sorvete mesmo quando está frio e que usa a
roupa que quer, não importa a ocasião, porque que regras
são essas?
Se eu tivesse conhecido Toni numa outra vida, ou
nascido como uma pessoa diferente, com uma
personalidade diferente e sem a minha bagagem de um
milhão de histórias mais ou menos de amor, eu acharia que
ela é o tipo de garota sobre a qual você escreve uma carta
para apresentar aos seus pais. Quer dizer, não exatamente
uma carta, porque ninguém é mais Jo March hoje em dia,
mas sabe como é. O tipo de garota que você diz aos seus
pais que vai levar para passar o Natal com vocês.
Ela é linda. Tento ignorar como estou me sentindo por
causa de sua beleza, mas a parte do meu cérebro que
nunca desliga me convence que só pensar é seguro. Sob
essas luzes, a pele escura luminosa e brilhante, não tem
problema admirá-la. Mas ela também estava linda mais
cedo, claramente pirando ao lado do celeiro onde foram as
apresentações, ou caída no chão depois de fazer aquela
garota com asas de fada tropeçar, ou quando me explicou o
alcance das notas para um vocalista enquanto estávamos
andando mais cedo.
E... aí está. Não sei como consegui ignorar isso antes.
Mas é claro que estou a fim dela. Já consigo ver a cara de
decepção da Imani. Consigo ver minha mãe com a cabeça
apoiada nas mãos, a aparência cansada, sentada na mesa
da cozinha depois de descobrir o que aconteceu entre mim
e Troy, dizendo: “Por que você não pode ser mais como a
sua irmã, Olivia? Por que não consegue ir mais devagar?”.
A música muda, e Toni não está mais sorrindo. Está
apenas olhando para mim, mas não como as outras pessoas
da dupla Olivia ama [insira nome aqui] normalmente olham
para mim. Ela está olhando como se realmente me
enxergasse. E então ela começa a chegar perto, os olhos
ainda abertos, e eu poderia fazer isso. Meu corpo e meu
cérebro estão num duelo até a morte para deixar isso
acontecer, me entregar a esse bom momento, essa ótima
sensação e a Toni. E talvez não fosse tão ruim me entregar,
acho. É tão natural para mim quanto andar de bicicleta,
aquele momento sem fôlego logo antes de um beijo
importante. As mãos dela se movem ligeiramente na minha
cintura, eu me aproximo, abro meus olhos antes de fechá-
los de novo e...
Paro de repente. Algo chama minha atenção logo atrás
dela, algo dourado e brilhante em cima de um dos montes
de feno. A próxima maçã. É o suficiente para me tirar
daquele clima, e eu praticamente pulo para trás quando me
dou conta.
Quase estraguei tudo. Quase deixei meus instintos
idiotas me levarem a mais um romance com péssimo
timing, que com certeza terminaria em ruínas. Tudo isso
antes de eu conseguir ajudar Toni no concurso, aperfeiçoar
meus dotes de cupido para juntar Imani e Peter e, claro,
vencer a caça ao tesouro. A maçã dourada é um sinal.
Minha mãe chamaria de intervenção divina. Mas vou dizer
apenas que é o destino jogando uma boia para me salvar do
meu próprio mar de imprudência.
Dou um passo para trás e aponto para o lugar atrás dela.
Eu me recomponho um pouco e respiro fundo. Acabei com o
clima do momento e provavelmente estraguei toda a
evolução que fizemos desde a manhã, quando ela mal
falava comigo. Mas ela apenas pisca, como se estivesse
voltando a si, e sinto um aperto no estômago. Porque este é
o semblante que eu estava esperando ver. Foi tudo só um
breve momento de insanidade, penso.
Ela olha na direção que apontei, para a maçã encostada
na parede. Não recebemos a pista ainda, mas nem
precisamos. Tento dar um sorriso, que sai mais parecido
com um cachorro mostrando os dentes do que com uma
garota tentando fingir que está tudo normal. Passo por ela
para ir pegar a maçã.
Tento dizer a mim mesma que não doeu nem um
pouquinho. Queria esquecer tudo, e por um momento
consegui. Por um segundo, enquanto ela me segurava e nos
movíamos conforme a música, eu só estava pensando nela.
Neste momento. Neste lugar.
Era tudo o que eu queria para o fim de semana, de
qualquer forma.
Não era?
TONI

SEXTA-FEIRA À NOITE

“Uma mão lava a outra. Uma via de mão dupla.”


Foi o que ela disse. Nós concordamos. Quer dizer, não é
como se ela não tivesse meio que deixado claro que aquele
clima era totalmente coisa da minha cabeça. Não sei o que
deu em mim. Não sei por que achei que dançar juntas
significava mais do que só dançar juntas. Engulo a vergonha
amarga e tento sorrir quando Olivia volta com a quarta
maçã.
Ela tinha espaço na pochete depois de entregar as outras
maçãs para Peter, então guarda e indica a porta com a
cabeça. Quando saímos, já está escuro lá fora, uma
escuridão que só se vê no Farmland. As luzes dos palcos e
dos brinquedos do Core formam uma ilusão de estrelas,
deixando o céu indistinto, meio escuro e meio brilhante.
Olivia boceja ao meu lado e tento ignorar que seu ombro
toca o meu a cada poucos passos, como se ela estivesse
muito cansada para se segurar.
— Nada mal para sua primeira vez na pista — diz,
apontando com o polegar para o celeiro. Ela sorri com cara
de sono. Acho que ainda é meio cedo para bocejar, mas
então me lembro do estrago que um festival pode fazer com
seu corpo da primeira vez. Ficar doze horas debaixo do sol
quente, andar quilômetros e quilômetros e no meio-tempo
ainda se manter em pé ou dançando pode ser exaustivo. —
Você não empalou ninguém, nem chegou perto. Sabia que
conseguiria.
Sorrio, mas não digo nada. Não porque esteja com medo
de dizer algo que a faça se aproximar de mim, já passamos
dessa fase. Mas porque tem algo especial nesse momento
que não quero estragar com palavras.
A verdade é que gosto de estar com a Olivia. Gosto
quando ela me dá bronca, quando me empurra para dançar
em celeiros sujos e quando fala um pouco mais do que
deveria. Nós fizemos um acordo, e amanhã depois da
competição e de encontrarmos a última maçã,
provavelmente nunca mais vamos nos ver. Vou cumprir com
a minha parte do combinado, ela vai cumprir com a dela e é
assim que vamos levar.
— Você acredita muito em mim para alguém que me
conheceu hoje — respondo.
Ela se alonga e boceja de novo, mas não responde. Estou
começando a me acalmar depois da confusão da festa e da
dança, e também sinto minha adrenalina baixar. Mas tenho
mais experiência do que ela em ficar acordada até tarde e
lutar contra a exaustão do festival, então continuo mais
ligada.
— Bem, Toni — diz ela, em meio a outro bocejo. — Eu sou
boa em saber essas coisas.
Quando voltamos para a área das barracas, Olivia segue
na direção do meu acampamento sem hesitar. Quase digo
que ela está indo para o lado errado, mas então eu me
lembro. É claro, ainda precisamos ensaiar. Uma onda de
nervoso corre pelo meu corpo. Enfio a mão no bolso e passo
o dedo na palheta barata de plástico que sempre carrego
comigo para me distrair desse sentimento.
Passamos por um casal que tem a idade da minha mãe e
deve ter montado o acampamento depois que saímos para
o Core hoje de manhã, bem de frente para o nosso. Eles
levantam suas latinhas de White Claw para nos
cumprimentar e sorriem quando passamos. Dá para
perceber que já fizeram isso antes: barraca, bandeirinha do
Farmland com o símbolo das três maçãs no meio, um toldo,
um gazebo e cangas penduradas em volta do toldo para
proteger do sol. Preciso me segurar para não prestar
continência. Tenho uma certa reverência por veteranos do
Farmland.
Olivia se joga na cadeira dobrável velha que está do lado
da minha barraca e deixa a cabeça cair para trás para olhar
o céu.
— Acredita que a gente está aqui? Isso é uma
intervenção cósmica de outro nível.
Sento em cima do pequeno cooler com gelo já derretido,
algumas garrafas de água e bananas. Estico as pernas e
olho para cima também.
— Você acredita em sinais? — sussurra Olivia.
— Como assim?
— Tipo — diz ela, e faz um gesto com a mão mostrando
tudo ao redor —, acredita que tudo acontece por um
motivo? Que é um sinal o fato de você ter parado para me
ajudar no meio do ataque de asma, e o seu concurso, e
minha caça ao tesouro, tudo ter praticamente nos forçado a
nos juntar?
— Acho que depende — digo, puxando um pedaço de
grama e torcendo nos dedos. — Um sinal de quê?
Posso ver a resposta se formando, sem dúvida alguma
coisa meio maluquinha demais para mim, mas os olhos dela
param na janela da caminhonete. Na mesma hora, sei o que
ela viu, antes mesmo que diga qualquer coisa.
— Seu violão! — Ela se ajeita na cadeira, e de repente
está bem acordada. Quando aponta para mim, já
estremeço, porque sei qual vai ser a próxima pergunta: “Se
está tão empenhada nisso, não devíamos estar
ensaiando?”. — Sabia que a vocalista do Sonny Blue nunca
tinha tocado violão até os trinta anos? “The Argonauts” foi a
primeira música que ela escreveu.
Fico paralisada.
— O quê?
Não é possível que eu tenha ouvido direito.
— Pois é, é muito incrível! Eu já ouvi, tipo, umas
oitocentas entrevistas dela. Ela fala sobre isso às vezes,
como não tinha dinheiro para comprar um violão ou pagar
aulas na infância, então só conseguiu comprar quando
estava mais velha. Não é muito legal isso? Encontrar sua
paixão aos trinta anos e não aos dezoito? — Ela solta um
suspiro. — Parece que todo mundo tem que saber tudo
antes mesmo de sair da escola, sabe? Bonnie é a prova de
que acelerar as coisas é superestimado.
— Eu... É. Isso é incrível.
Tem algo muito revigorante em ouvi-la falar exatamente
tudo o que tenho pensado desde antes do verão — que não
tenho mais muita certeza de nada.
— Eles têm uma música demo que nunca entrou em
nenhum disco que eu gosto muito. O nome é “Too Much, Too
Soon” — digo. Pigarreio, sem saber muito bem por que
estou contando isso, mas não paro. — Meu pai amava essa
música. Ele me ensinou a tocar.
Vou até a caminhonete e pego a case. Tiro o violão, toco
as notas iniciais e, pela primeira vez, pensar no meu pai não
me causa um nó na garganta nem vontade de chorar. Nesta
lembrança, tenho treze anos e estou sentada no porão com
meu primeiro violão no colo. Ele tinha acabado de trabalhar
na primeira turnê de verão do Sonny Blue, quando abriram
os shows do Mumford & Sons.
— Tenta fazer assim. — Ele estende a mão e muda a
posição dos meus dedos nas cordas. Sorri quando acerto e
consigo mudar facilmente de um acorde para outro. — Isso
aí, TJ. Você vai ser grande um dia, sabia?
Reviro os olhos, porque tenho treze anos e revirar os
olhos é a regra e porque meu pai sabe que nunca vai
acontecer. Nunca vou tocar em lugar nenhum além desse
porão, e nunca vou dizer a ninguém que toco. Esse negócio
de música só acontece aqui e morre aqui.
— Não vou ser famosa, pai.
— Eu não disse famosa, filha, eu disse que vai ser
grande! Tem uma diferença. — Ele dedilha o violão e sigo a
deixa. Meu pai fecha os olhos e faz que sim com a cabeça
no ritmo da música. — Você não precisa de público para ser
grande. Não se esqueça disso.
Ele abre os olhos e marca o ritmo com a mão na coxa
enquanto continuo dedilhando.
— Por que está indo tão rápido, garota? Quem disse que
você não pode conquistar o mundo inteiro? — canta,
baixinho. A voz dele é linda como sempre.
Nesses momentos, sei que minha voz provavelmente
nunca vai conseguir fazer o que a do meu pai faz —
preencher todo o espaço até ser a única coisa que as
pessoas sentem —, mas posso compensar com minha
habilidade no violão.
O tempo que passo tocando com ele é em intervalos
entre turnês, mas sempre levo a sério. Trabalho duro.
Aprendo muito rápido. Tento deixá-lo orgulhoso de mim.
— Caramba! — digo, quando ele termina. — O que é
isso?
— Uma música da banda que acompanhei nesse verão.
Sonny Blue?
Ele olha para cima de repente e sei que também ouviu o
barulho das chaves da minha mãe. Meu coração se
despedaça. Quando ela chega, a gente para, ele sobe para
cumprimentá-la e ou vão ser muito gentis pelo resto da
noite ou tenho que me conformar em ir para o meu quarto
com fones de ouvido para não escutar a briga.
É sempre uma dessas duas opções, e algo me diz que
hoje vai ser a segunda.
Ele olha para mim com um sorriso tão largo quanto falso.
Coloca o violão de volta no lugar e pega o meu para
pendurar na parede. É incrível como tudo naquele cômodo
volta ao normal. Volta a ser vazio.
— Quando eu digo grande, sabe essa sensação que você
teve com a música? É disso que estou falando. — Ele aponta
para a escada com a cabeça. — Vamos ajudar sua mãe com
as compras.
Por que está indo tão rápido, garota? Quem disse que
você não pode conquistar o mundo inteiro?
Engulo em seco enquanto Olivia olha para mim sem
expectativa, mas visivelmente animada. Estou um pouco
enferrujada, eu sei. Não toco há mais ou menos um ano,
mas, ao terminar o último verso, com a voz rouca pela falta
de prática, não me sinto exatamente bem, mas aliviada.
Tocar essa música é como chegar à superfície de uma
piscina depois de ficar tempo demais debaixo d’água. É
como voltar para casa.
— Olha, que bom que Sonny Blue nunca lançou essa
música — diz ela quando devolvo o violão à case do meu
pai.
Meu coração para por um segundo. Não parece um
insulto, não pelo jeito como ela está sorrindo para mim, mas
não consigo ver de outra forma.
— Por quê?
— Porque — ela toca minha bota com sua sandália — ia
ser vergonhoso para Bonnie Harrison ser tão
completamente superada por uma de suas fãs, no canto e
no violão. — Ela sorri e meu corpo todo relaxa. — Sério
mesmo. Um cover que é melhor do que o original? O poder
que isso tem? Surreal.
Sinto meu rosto esquentar e agradeço à escuridão e ao
tom da minha pele por esconder algo que certamente
apareceria como uma vermelhidão para alguém de pele
mais clara.
— Você nunca nem ouviu a original.
Ela põe a mão sobre o peito e faz um gesto indignado.
— Estou ofendida com sua falta de confiança na minha
avaliação! — Ela faz uma cara de desgosto e acrescenta: —
Que, está bem, eu admito ser questionável às vezes, mas
neste caso é absolutamente confiável.
— Confiável, é? — pergunto.
— Absolutamente incontestável.
Ela me encara por um tempinho além do que posso
aguentar, e minha pele parece estar vibrando. Eu me
levanto e me alongo, embora nem precise. Só tenho que
achar algo para fazer com as mãos.
— É isso que você quer fazer agora que está livre neste
mundo cruel? — Ela me analisa e cruza as pernas na altura
dos tornozelos. — Virar uma mega rockstar?
— Teoricamente, eu começo a faculdade na semana que
vem. — Dou de ombros. — Talvez vá estudar direito, como a
minha mãe. Não sei.
Soa como uma mentira quando falo. De alguma forma, a
sensação de tocar aquela música para Olivia há alguns
instantes ainda ecoa dentro de mim. Pareceu tão perfeito,
tão diferente de qualquer outro momento desses últimos
oito meses. Repreendo a mim mesma só de pensar. Só
porque parece bom não significa que é um bom plano. Vou
tocar nesse festival para encontrar um plano, para ter
alguma grande revelação sobre a minha vida, descobrir
minha Verdade, como meu pai sempre me prometeu que
aconteceria.
Além do mais, ainda que isso fosse mais do que um
capricho, se eu quisesse investir na música, partiria o
coração da minha mãe. Não tem chance de isso acontecer.
Olivia não responde de cara, apenas concorda com a
cabeça e bate com os dedos nos lábios enquanto pensa. Há
um silêncio entre nós, mas o refrão noturno de sons do
festival segue a toda: a música abafada das bandas tocando
ao longe, as risadas vindas de acampamentos próximos, um
carro passando sobre o cascalho. É uma das minhas
músicas favoritas.
— Você sabe o que tem que fazer — diz ela, depois de
um tempo. Quase esqueci que estávamos no meio de uma
conversa. — Mesmo que você ache que não, está aí dentro
em algum lugar.
— Você acha? — pergunto.
Eu me recosto na cadeira, tentando ficar tranquila. Faço
o que sempre fiz ao longo de todo o ensino médio: me
escondo por trás de uma expressão facial que parece
ambígua, mas, principalmente, insatisfeita. Mas quando
Olivia me encara por um segundo sequer, sei que minha
tática habitual não está funcionando. Ela me enxerga,
enxerga a Toni que eu normalmente guardava para quando
meu pai estava em mais uma turnê e minha mãe, enfurnada
no quarto, fingindo não estar com o coração partido: jovem,
vulnerável e mais solitária do que gostaria de admitir.
— Acho. — Olivia concorda com a cabeça. — Acho
mesmo.
A voz dela é confiante. Não há um pingo de dúvida ali.
Ela me conhece há menos de doze horas, mas, na sua
perspectiva, é o suficiente para saber disso. Assim como
meu pai, estou começando a perceber que Olivia também
tem suas Verdades.
Ela é uma confusão de contradições. Ao mesmo tempo
confiante e desajeitada, em igual escala. Consegue
transparecer ansiedade nos trejeitos inquietos com as mãos
e as roupas e também se jogar completamente numa
música que nunca ouviu antes.
— Então é essa a música que quer tocar amanhã? —
pergunta, quando demoro para falar mais alguma coisa.
Faço que sim com a cabeça, e ela une as mãos. — Beleza.
Vamos ensaiar.
Olho em volta, como se alguém fosse aparecer para dizer
que essa é uma má ideia. Mas, claro, sou só eu mesmo,
surtando, os nervos à flor da pele. Mas Olivia está
determinada a me ajudar, e eu estou determinar a resolver
minha vida. Pego minha braçadeira para tocar num tom
provavelmente mais adequado à voz de Olivia. Ela puxa a
cadeira para ficarmos ainda mais próximas, se oferece para
cantar as partes mais agudas e simplesmente... cantamos.
É um clichê dizer que nossas vozes combinam
perfeitamente, ou que o soprano melodioso dela é o
complemento ideal para o meu contralto, mas, o que quer
que estejamos fazendo, dá certo. Estamos mandando bem.
Ela dá algumas sugestões — “Sei do que estou falando!
Participei do coral por dois anos antes de ser expulsa por
causa de um incidente envolvendo tinta de cabelo e metade
dos tenores no campeonato estadual. Nem pergunte” — e
aceita minhas críticas quando tenho alguma.
Duas horas depois, os olhos de Olivia estão tão pesados
que ela poderia cair no sono no meio do refrão. Quando
terminamos a música, ela se levanta, boceja e estica os
braços sobre a cabeça.
Eu me dou conta de que quero que isso dê certo. Está
me parecendo algo mais do que apenas um último esforço
para resolver minha vida. Quero cantar essa canção com ela
e quero vencer e quero acreditar que a música ainda guarda
algumas respostas para mim. Que o modo como me sinto
agora significa alguma coisa.
— Então vamos mesmo fazer isso — digo.
Até começarmos de fato a cantar juntas, acho que parte
de mim ainda pensava que aquilo não tinha a menor chance
de acontecer. Olivia não ia saber cantar, eu ficaria
paralisada na hora de finalmente tocar, ou, mesmo que tudo
desse certo, nós duas não íamos combinar em nada. Mas
nada disso aconteceu.
Olivia apenas concorda com a cabeça, como se
entendesse tudo que não estou dizendo. É legal essa
sensação de que estamos nos comunicando sem trocar
nenhuma palavra. Olho para o céu na tentativa de ver o que
ela está vendo e tento ignorar o calorzinho que se espalha
pelo meu peito.
Talvez eu devesse contar a ela a verdade sobre o que
aconteceu com meu pai. Se ela vai fazer isso comigo, se
estamos nessa juntas, então talvez precise saber. Mas
quando a vejo observando as estrelas, sei que isso não é
uma opção. Ela está feliz e eu... eu me sinto o mais próxima
que estive da felicidade em meses. E não posso fazer isso.
Sei muito bem que alguns recantos sombrios dentro de nós
devem ser deixados na escuridão, e Olivia é pura luz.
— Ai, meu Deus. Ai, meu Deus — grita ela, a voz
esganiçada.
Imagino que ela deve ter pisado em alguma coisa e se
machucado de novo, então já me aproximo, pronta para
cuidar de mais um ferimento de festival. Mas quando me
agacho perto dela, Olivia está rindo e, ao mesmo tempo,
balançando a cabeça sem acreditar.
— Minha melhor amiga está apaixonada! — exclama.
Ela levanta o celular e me mostra uma foto de Peter
babando sobre um saco de dormir na barraca delas, cheio
de cartas de UNO no rosto, com uma mensagem embaixo:

Fui ao banheiro cinco minutos e, quando voltei, ele estava assim

Dou risada da cara de Peter, largado, babando, dormindo


o sono dos inocentes.
— Imani vai ter que comprar outro saco de dormir para
mim — reclama ela. — Nem tive a chance de dormir nesse!
— Não sei como, mas Peter consegue dormir em
qualquer lugar, sob qualquer circunstância. E ele não
acorda, não importa o quanto você tente. — Eu me lembro
de tentar acordá-lo para conseguir pegar o voo da última
vez que ele esteve aqui e mal consigo conter o calafrio.
Aquela imagem de Peter desesperado, apenas meio vestido
e com a cara amassada de sono correndo para passar pela
segurança do Aeroporto Internacional de Indianápolis não é
algo que eu queira ver de novo. — Acho que você devia
considerar seu saco de dormir apenas um dano colateral em
meio à experiência de conviver com Peter Menon.
Ela não responde logo de cara, então continuo:
— Você pode, hum, ficar aqui. Se quiser. Tenho um
colchão de ar enorme. Você e Imani, quero dizer. Podemos,
hum, trocar de barraca hoje?
Odeio que isso tenha saído como uma pergunta, mas
estou meio sem opções aqui. Não consigo carregar Peter de
volta para nosso acampamento, então talvez a melhor saída
seja trocar. Não consigo ler seu rosto quando ela olha para
mim. Ela pende a cabeça para o lado, como se estivesse
tentando entender alguma coisa, e, depois de alguns
segundos que parecem durar uma eternidade, assente
como se tudo tivesse se resolvido na cabeça dela.
Ela digita algo rapidamente no celular antes de me
responder:
— Vou ficar aqui. Mas vou logo avisando: se dançar com
você é perigoso, dividir a cama comigo pode ser mortal.
Estou basicamente no piloto automático quando pego
minha mala e tiro de lá uma camiseta extra e um short
velho de softball. Estou prestes a dividir meus aposentos
com um ser humano vivo que por acaso é a mesma pessoa
que pensei que talvez pudesse beijar algumas horas atrás.
Entrego tudo para ela, respiro fundo e penso: “Vai dar tudo
certo. Claro, vamos dormir a poucos centímetros de
distância uma da outra, ela vestindo minhas roupas, mas
está tudo bem”.
Eu sou a versão humana daquele meme do cachorro em
meio às chamas.
Olivia segura as roupas contra o peito. Olha para mim,
para a barraca, depois para mim de novo e diz,
estranhamente tímida:
— Você vai ficar aqui fora enquanto eu me troco, certo?
Parece uma pergunta tão estranha, tão óbvia — afinal,
por que eu invadiria a privacidade dela desse jeito? —, que
minha resposta com a cabeça demora um pouco. Mas
parece ser o suficiente, porque ela abre um sorriso de novo.
Tira as sandálias e abre o zíper da barraca. Depois que
entra, coloca a cabeça para fora da abertura.
— Você é uma boa moça, Toni — diz.
Ela fecha o zíper e eu me sento no cooler novamente.
O que estou sentindo agora não é a mesma coisa de
quando toquei na frente dela agora há pouco — esse medo
estaciona bem no meu estômago, não no meu peito. É
estranho e assustador e acolhedor. Posso ouvir Olivia se
mexendo lá dentro, os cotovelos esbarrando no tecido da
barraca e ela cantarolando baixinho o refrão do novo hit do
Kittredge. Ela está tão desarmada que é quase um
momento íntimo.
Ao pensar nisso, sinto minhas bochechas quentes. E é aí
que percebo que isso não é medo. Não mesmo. É aquele frio
na barriga sobre o qual Taylor Swift tanto fala em todas
essas músicas que adoro ouvir escondida.
E de jeito nenhum vou conseguir me livrar dele.
OLIVIA

SÁBADO DE MANHÃ

A primeira coisa que percebo quando acordo é o


quentinho que sinto no rosto, onde o sol está batendo, e
bocejo sem abrir os olhos. Estou muito confortável e
aninhada sob meu cobertor, sozinha, espalhada sobre o
colchão enorme. Mas... eu não trouxe um cobertor para o
Farmland. Trouxe um saco de dormir. Ai, meu Deus. Abro os
olhos instantaneamente e me sento, apertando o cobertor
contra o peito, o coração na boca. Eu dividi a barraca com
Toni esta noite!
Tomo consciência desse fato tão rápida e intensamente
que nem sei direito como estou me sentindo. Cara... Eu
dividi a barraca com Toni esta noite. Continuo pensando,
mas não parece real, então sussurro em voz alta para mim
mesma algumas vezes, só para ter certeza.
— Eu dividi a barraca com Toni esta noite. Eu e Toni
dormimos no mesmo colchão. Eu e Toni estávamos na
mesma barraca e no mesmo colchão e... — solto um
grunhido e esfrego o rosto com as duas mãos até ficar
parecendo uma pintura do Munch. — Nem usei meu lenço
de seda para dormir.
Mal dá tempo de me acalmar e pensar num plano para
sair dessa barraca bem mais apresentável do que estou me
sentindo agora e já sou convocada pela minha amada irmã
mais velha. Toco no celular para abrir a mensagem mais
recente.
Estou voltando para Boston hoje. Mamãe vai me levar no aeroporto
agora.

Foi um longo verão com Nia em casa. Ela e Wash vieram


de Boston para fazer um estágio de verão na mesma
startup de tecnologia no centro de Indianápolis, ela no
departamento jurídico, ele, no de TI. Não sei como, mas eles
conseguiram passar pelos dois primeiros anos de faculdade
e não apenas continuam aquele mesmo casal
instagramável, como, de alguma forma, estão ainda mais...
poderosos.
Nia trocou suas famosas perucas longuíssimas pelo
cabelo natural, um cacheado perfeito, que nunca fica
ressecado e quebradiço como o meu (“Você está usando os
produtos errados, Olivia, é por isso. Não pesquisou sobre
cuidados com o cabelo natural?”). Trocou também os
casacos do uniforme da escola por camisetas com frases de
ordem, como ABAIXO O FEMINISMO BRANCO e NINGUÉM É ILEGAL EM TERRA
ROUBADA.
Ela parecia mais estável e ainda mais segura de suas
convicções (“Está comprando material de acampamento na
Amazon? Por que não dá logo um soco na cara de um
operário da próxima vez? Provavelmente seria melhor.”). O
que significa, é claro, que a minha mãe está ainda mais
segura de sua escolha de filha favorita.
Imani estava em seu curso de verão, ninguém da escola
falava comigo e eu não tinha um carro para dirigir sem
rumo pela cidade como qualquer outra adolescente
entediada faria, então sobrou muito tempo para minha mãe
e Nia me lembrarem da decepção que eu sou. Conversas a
respeito das minhas escolhas de cursos na faculdade cheias
de insultos sobre como eu na verdade só me importaria em
arranjar um casamento, não um diploma. Discussões na
hora do jantar sobre refazer o vestibular ou me inscrever
em mais um grupo de estudos. Ou, pior de tudo, os olhares
de Nia que sempre diziam mais do que qualquer comentário
arrogante: “Você envergonhou essa família de novo, e dessa
vez não há nenhum feito meu que seja grande o suficiente
para distrair todo mundo”.
Eu odiava admitir — porque ninguém devia se sentir
assim a respeito da irmã —, mas, em uma semana, eu já
estava querendo que ela fosse embora.

Beleza! Boa viagem! Tenha um ótimo semestre!

A resposta vem quase instantaneamente.

Como é possível que eu consiga ouvir você gritando até por


mensagem? Jesus. Não precisa responder isso.

Tome decisões melhores este ano.

Não respondo. Resolvo apagar logo de uma vez a


conversa inteira. Não posso lidar com isso agora.
Gostaria de dizer que minha relação com Nia não foi
sempre assim, mas eu fui a coadjuvante e ela a atriz
principal por muito tempo. Desde que minha mãe arranjou o
emprego como orientadora educacional na Park Meade e
Nia ganhou o desconto de mensalidade por causa disso no
começo do primeiro ano, ela se tornou uma pessoa
intocável. E eu me tornei a irmã mais nova constrangedora
da qual ela queria fugir. Ela tinha uma vida nova e perfeita
de aluna de escola particular na Park Meade. Circulava entre
os garotos ricos e falava sobre o futuro em universidades de
ponta, e eu não me encaixava nisso.
Eu era um lembrete da vida como era antes —
imperfeita, quase impossível de consertar —, e ela nunca
me deixou esquecer disso.
Das notas até a nossa aparência — ela, com as pernas
longas de modelo e cintura fina como a minha mãe, eu com
todas as minhas curvas e uma altura que regulo com uma
coleção de sandálias plataforma —, nós nunca estivemos do
mesmo lado, seja qual for a linha que separa as pessoas
que estão com a vida resolvida das que não estão.
Bloqueio o telefone e tento ao máximo controlar aquela
insegurança assustadora que sempre aparece depois de
qualquer interação com a minha irmã. Sacudo as mãos e
giro os ombros algumas vezes, tentando recuperar aquela
sensação de quando acordei, em vez desta dor que se
apossou do meu corpo. Hoje vai ser um dia bom. Vou ajudar
Toni com esse concurso. Vou mexer meus pauzinhos e fazer
com que finalmente Imani e Peter parem de enrolar um ao
outro.
Mesmo que só por esse fim de semana, e nessas
pequenas ações, posso trazer algo de bom para as vidas
das pessoas de quem eu gosto. Esfrego os olhos para tirar
os últimos resquícios de sono e me arrasto para fora da
barraca, toda desgrenhada e certamente com uma cara
horrenda.
Toni está sentada em uma das cadeiras dobráveis com o
violão no colo, e a noite passada volta à minha mente em
um estalo. O som da voz dela, baixo, rouco e perfeito,
completando perfeitamente o som de suas dedilhadas
gentis no violão. O jeito como ela cantou aquela música
que, embora eu nunca tivesse ouvido, me deu a sensação
de reencontro com uma velha amiga depois de muito tempo
longe. Eu meio que queria mergulhar na música. Eu meio
que com certeza queria dar um abraço nela.
— Bom dia — diz Toni, olhando rapidamente em meio aos
cílios grossos.
Não quero nem começar a imaginar como devem estar
meus cílios neste momento, totalmente grudados, já que
não tirei a maquiagem direito antes de dormir. É o básico do
básico da rotina de skincare.
— O que está fazendo acordada? Está muito cedo. — Ela
me oferece uma banana e nego com a cabeça. — A gente
basicamente acabou de ir dormir.
Os acampamentos ao redor ainda estão silenciosos e
quietos, mas o som abafado das passagens de som no Core
chega até nós.
— O que posso fazer? Como dizem por aí, Deus ajuda a
quem cedo madruga.
Ela dá uma risada de leve e volta sua atenção para o
violão. Parece muito confortável com o instrumento nas
mãos e ainda um pouco sonolenta. Os dreads caem para a
frente, emoldurando seu rosto enquanto ela afina o violão
em silêncio, e eu fico lá parada olhando como uma idiota.
Sinto um aperto momentâneo no peito. Definitivamente,
eu deveria ir embora. Deveria voltar para minha barraca
antes que eu diga ou faça alguma coisa que vai estragar
tudo. Está tudo indo tão bem entre nós que quero que
continue assim. E, de acordo com meu histórico, a melhor
maneira de fazer isso é me afastar um pouco. Mas não
quero me afastar dela. Não quero ir embora, mesmo que
seja só até a hora da apresentação mais tarde.
Engulo o nó que se formou na minha garganta e coloco
um sorriso no rosto.
— Vamos ficar famosas hoje à noite!
Uno as mãos e tento manter o pensamento positivo. Mas
estamos perto do momento da verdade: é apenas uma
questão de tempo até eu fazer o que sempre faço. Talvez eu
pise sem querer no braço do violão de Toni e o quebre antes
mesmo de chegarmos ao palco. Talvez eu compre um
burrito para ela na barraquinha que acabe lhe dando uma
intoxicação alimentar — ai, meu Deus, e se eu tiver uma
intoxicação alimentar e ela ficar sem dupla? Sabe de uma
coisa? Tomei uma decisão: não vou comer nada até depois
da apresentação. E vou voltar para o acampamento e calçar
meus chinelos, só para garantir. Não custa nada usar um
calçado leve.
Ficamos com um dos primeiros horários depois do
intervalo para o almoço, então temos poucas horas para
ensaiar, ver alguns shows e talvez encontrar mais uma
maçã se aparecer uma pista a qualquer momento. Mas,
antes de qualquer coisa, eu preciso me recompor. Estou me
sentindo ansiosa e insegura, e colocar um vestido bonito e
passar um tempinho me maquiando sempre ajuda. É como
vestir uma armadura. E, com as mensagens de Nia ainda
povoando meus pensamentos e o nervosismo para a
apresentação, preciso de toda ajuda possível.
— Sei que uma pessoa tão criativa e genial como você
provavelmente precisa de um tempinho sozinha para se
concentrar, então vou pegar minhas coisas e deixar você
em paz. — Volto para dentro da barraca para pegar minhas
roupas do dia anterior e digo alto o suficiente para que ela
ouça lá de fora: — Só um minutinho e já vou embora!
Quando encontro minha sandália esquerda, saio da
barraca e a levanto, num sinal de vitória.
— Achei! Beleza, vou indo... — Olho por cima do ombro e
aponto com a cabeça na direção da minha barraca.
— Você se movimenta tão rápido — diz Toni.
Sua voz é tão baixa que quase não dá para ouvir, mas eu
paro.
— Hã?
— Você parece um audiolivro em velocidade acelerada.
— Ela olha para o meu rosto e esfrega os olhos, ainda
sonolenta. — Na maior parte do tempo, acompanho o que
você está dizendo, mas às vezes acho que devo estar
perdendo algumas das nuances.
Meu coração para. É isso. Nem acabou o fim de semana
e já estraguei tudo. Ela está irritada comigo; fui eu mesma
demais.
— Desculpa — começo. Fecho o punho em volta das tiras
prateadas da minha Birkenstock. Minhas pernas começam a
balançar sem motivo. — Tudo bem, eu entendo. Isso
acontece às vezes. Eu e minha boca enorme, sabe? Sempre
fazendo...
— Desculpa? Pelo quê? As pessoas precisam se esforçar
para acompanhar você, sabe?
Ela põe o violão gentilmente dentro da case e esfrega as
mãos nas coxas antes de colocá-las nos bolsos do casaco
vermelho do time de basquete masculino de Indiana. Ai,
meu Deus, como eu não tinha percebido que o short de
dormir dela era tão curto?
Ela passa a mão na parte de trás do pescoço e se
levanta.
— Estou dizendo que, hum, você é o tipo de pessoa que
dá trabalho para entender. — Ela olha para mim e quase
tenho vontade de chorar com a sinceridade em sua
expressão. — Estou dizendo que você vale o trabalho,
Olivia. Enfim, é... — Ela desvia o olhar e depois ajeita a
postura e sorri de leve. — Quer tomar banho e café da
manhã antes de irmos?
Estou dizendo que você vale o trabalho, Olivia. Não sei o
que responder a isso, mas essas oito palavras invadiram o
meu cérebro e fixaram residência onde há apenas alguns
segundos morava a insegurança. Se ela quer ter esse
trabalho por mim, posso fazer o mesmo por ela.
Faço que não com a cabeça. Não quero voltar e trocar de
roupa, nem comer, nem ir embora e ponto-final. Quero
ensaiar. Quero que a gente seja tão boa a ponto de não
haver chance de estragar nada. Quero provar a Toni que ela
está certa a meu respeito. Quero ter entrado na vida dela e
feito algo para deixá-la melhor e sair sem destruir tudo. Isso
tem que ser possível, senão não sei o que estou fazendo.
Não sei que esperanças restarão para alguém como eu se
fizer o meu melhor e ainda assim acabar arruinando tudo.
Quando minha mãe conseguiu fazer o mestrado com
aulas à noite e arranjou o emprego como orientadora na
Park Meade, a ideia era que aquilo mudasse nossas vidas.
Aquilo deu a mim e a Nia a chance de estudar numa das
melhores escolas do estado com desconto na mensalidade,
nos deu a chance de mudar do apartamento ruim de dois
quartos na zona leste para uma casinha fofa perto de um
bairro legal. Deu a Nia uma vaga em Harvard e à minha
mãe o trabalho administrativo respeitável que ela sempre
quis. Eu até podia vestir a saia plissada e o cardigã cinza e
vermelho do uniforme da Park Meade, mas roupa nenhuma
conseguiria esconder quem eu era de verdade.
A peça defeituosa sempre seria eu. As notas medíocres,
o interesse muito maior nos shows de punk rock do que nos
grupos de voluntariado, o número excessivo de encontros e
namoros e términos. De novo e de novo. E então as fotos
que nunca deviam ter vazado, o escândalo e a estrela do
basquete cujo futuro depende de eu testemunhar ou não
contra ele daqui a alguns dias. A vergonha de uma família e
a carreira arruinada de um garoto com mais potencial no
dedo mindinho do que muita gente tem no corpo inteiro,
tudo por minha culpa.
Então, se eu tiver só uma chance, a vida dessa garota vai
ser melhor por minha causa. É só isso que eu quero.
— A gente devia ensaiar. — Aponto para a case do
violão, encostada na caminhonete. — Podemos começar a
partir da ponte? Acho que meu tom está errado na parte
mais rápida.
Toni olha para mim por um segundo antes de se sentar
novamente. Ela hesita, mas por fim concorda com a cabeça.
— Beleza — diz. — Vamos ensaiar.
TONI

SÁBADO DE MANHÃ

Ensaiamos por tanto tempo que, quando resolvemos


fazer um intervalo, minha voz parece até um pouco trêmula.
Graças aos céus pela curta, mas espetacular, experiência de
Olivia no coral, porque acho que estamos nos saindo bem
juntas. Bem mesmo. A voz dela é um pouco mais suave que
a minha, um tanto delicada, mas conseguimos nos entrosar
como as duas metades de um todo.
Ensaiamos por quase duas horas, e eu nem percebi.
Peter vem em nossa direção, o cabelo preso num coque
frouxo que, ele insiste, o deixa parecendo um “Brad Pitt de
pele marrom”, enquanto Imani vem atrás, os braços
cruzados como sempre. Nunca vi alguém tão determinada a
manter os braços firmes naquela posição. É realmente
impressionante.
Ambos parecem prontos para seguir o dia,
diferentemente de Olivia e eu. Peter olha para mim e depois
para ela várias vezes, as duas com a aparência ainda pior
depois de passar a manhã inteira ensaiando em vez de nos
arrumar.
— Vocês duas são um colírio para os olhos! — diz ele, os
braços abertos. — Amiguinha e futura amiguinha. Ah, eu
decidi que nós vamos ser melhores amigos, aliás, só pra
constar. Vocês precisam se arrumar. O DJ Louddoc começa
em meia hora!
Ainda não é nem meio-dia, já que eu e Olivia começamos
o dia mais cedo do que todo mundo à nossa volta. Peter
parece um raio de sol resplandecente, só sorrisos ao contar
para Imani, com sua expressão indiferente, sobre os
mergulhos sem roupa de John Quincy Adams no rio Potomac
— um de seus factoides favoritos.
Eu provavelmente também estaria sorrindo se tivesse
dormido alguma coisa esta noite. Fiquei elétrica com Olivia
ao meu lado. Não conseguia relaxar sabendo o quão perto
seu corpo estava do meu, que, se ela virasse de lado, eu
poderia sentir sua respiração no meu pescoço. Era como se
eu não conseguisse desligar. O calor do corpo dela, o som
baixo de seus roncos suaves — foi impossível dormir diante
de tudo isso. Então eu me levantei assim que amanheceu e
decidi pegar o violão. Não me senti tão viva quanto na noite
anterior, em que toquei com e para Olivia, mas me senti
bem. Melhor do que nos últimos oito meses.
— Vocês precisam se vestir!
Peter aponta para Olivia e para mim. Nem comento sobre
o fato de ele ainda estar usando as roupas do dia anterior, o
que não lhe dá muita moral para dizer qualquer coisa.
Imani revira os olhos.
— Eu me recuso a perder esse DJ depois que o Peter
passou a manhã inteira falando dele — diz ela. — Preciso
poder jogar na cara dele se no fim das contas for uma
bosta.
— Nada disso, não vai colocar isso nas minhas costas —
responde Peter, com um olhar totalmente apaixonado. —
Você super quer assistir também.
— Liv? — Imani ignora Peter e se vira para Olivia, e me
dou conta de que ela não falou nada desde que os dois
chegaram.
Ela morde o lábio e vira a tela do celular para baixo, de
um jeito quase nervoso. Penso em perguntar o que está
errado, mas ela muda de expressão. Olha para nossos
amigos como se os estivesse vendo pela primeira vez e
abre um sorriso.
E se ninguém mais percebeu o quão falso é aquele
sorriso, quem sou eu para falar alguma coisa?

Chegamos ao Core em cima da hora do começo do show.


— Só vamos ter tempo de ensaiar a música mais
algumas vezes depois disso — diz Olivia, um pouco mais
alto para superar a reverberação das caixas de som atrás
de nós. Ela aperta meu ombro como se precisasse me
acalmar. — Vai ser ótimo.
Sua voz é abafada pela onda de pessoas que nos
empurra cada vez mais para o meio da confusão — um claro
sinal de que o show está prestes a começar. Já aconteceu
comigo centenas de vezes na vida nas minhas dezenas de
vindas ao Farmland, mas com Olivia ao meu lado é
surpreendentemente diferente.
Ela está praticamente na ponta dos pés enquanto
esperamos.
Nós quatro recebemos uma notificação no celular com a
pista para a próxima maçã, mas é aquela que Olivia
encontrou no celeiro ontem. Saber que estamos à frente da
competição me deixa mais relaxada, mais livre.
Do meu lado esquerdo, Peter não para de falar sobre sua
obsessão por presidentes mortos de um jeito que acho
fofinho hoje em dia — “Você sabia que James K. Polk proibiu
que as pessoas dançassem na Casa Branca? Aquilo lá era
tipo Footloose!” —, enquanto Imani concorda com a cabeça
distraidamente. É uma sensação boa estar parada entre
meu melhor amigo e Olivia, embora eu ainda não saiba
exatamente o que ela é para mim. Só sei que, seja lá o que
formos uma para a outra, está funcionando. E que enfim me
sinto animada em relação a alguma coisa — a alguém.
— Gente, isso é bom demais — diz Olivia, por cima do
som da multidão. Ela sorri para nós três e levanta a câmera.
— Fiquem mais juntinhos aí.
Ela leva a câmera ao rosto e aponta para Peter e eu. Ele
posa rapidamente, jogando o peso para cima de mim, a
língua para fora e fazendo um sinal de hang loose com a
mão. Isso é tão ele que solto uma risada antes mesmo de
pensar em segurá-la. Até Imani arrisca um sorriso hesitante,
na ponta dos pés para aparecer atrás do ombro de Peter.
O flash vem tão rápido que ainda estou rindo mesmo
depois de Olivia tirar o papel da câmera e ficar segurando,
esperando a foto aparecer. Quando aparece, sinto algo
borbulhando dentro de mim, algo perigosamente parecido
com feliz pra caramba.
Eu me sinto quase como se estivesse fora do meu corpo
— não exatamente como se os últimos oitos meses
tivessem desaparecido, mas como se as pontas afiadas
desse período tivessem ficado mais arredondadas, me
permitindo respirar. Estou de volta ao meu lugar favorito no
mundo, e a sensação de estar rodeada de pessoas que
amam música tanto quanto eu é quase avassaladora. Há
uma energia fluindo pelas minhas mãos e pés que parece
quase infinita de tão subitamente intensa. Quero tocar
violão, dançar, abraçar Olivia e gritar o mais alto possível,
tudo ao mesmo tempo. Há pessoas me espremendo de
todos os lados e, em vez de claustrofobia, o que sinto é um
abraço acolhedor.
Peter põe o braço ao redor do meu ombro e eu não reviro
os olhos nem me desvencilho. E nem quero fazer isso. Em
vez disso, eu o abraço pela cintura e aperto um pouquinho.
O braço de Olivia toca no meu, e aquela sensação se
espalha pelo meu corpo.
Sempre ouvi as pessoas dizerem que algumas coisas
podem ser eletrizantes, mas nunca tinha entendido até
agora.
Imagino o que meus antigos colegas da escola diriam se
vissem minhas fotos deste fim de semana. Consigo ter uma
ideia. Eu sorrindo para uma garota linda e animada. Peter
me abraçando e fazendo uma careta ridícula para a câmera.
Nós quatro bebendo água das nossas garrafinhas e depois
rindo ao perceber como estávamos sincronizados. Quem me
visse nesse momento veria uma versão de mim que
ninguém na Ardsley Academy jamais viu.
Eu me sinto muito longe daquela Toni agora.
— Ficou perfeita — diz Olivia, entregando a foto para
mim.
Olho para ela e penso sobre que jogada estranha e
maravilhosa do destino resultou daquela folha de inscrições
lotada e da caça ao tesouro.
— Nada é perfeito — digo, ainda deixando escapar um
pouco da Toni rainha de gelo. Nem eu acredito nisso.
Devolvo a foto, embora quisesse ficar com ela — ficar
nesse momento — para sempre.
— Eu discordo. — Como se estivesse lendo a minha
mente, Olivia abre a pochete na minha cintura e coloca a
foto lá dentro. — Isso aqui. — Ela fecha a pochete e olha
para mim. Seu sorriso é tão doce e suave que invoco toda
minha força para me segurar e não estragar as coisas como
quase fiz ontem à noite. — É perfeito.
Peter solta meu ombro e junta as mãos ao redor da boca
para gritar. Todo mundo começa a assobiar e berrar, o que
significa que o DJ Louddoc deve estar entrando no palco,
mas mal consigo enxergar com a multidão na minha frente.
Quando penso em liberdade, vejo um palco, os primeiros
momentos de um show, o acender das luzes e a explosão
do público para saudar a chegada de seu artista favorito.
Neste momento, eu sou o público. No ano passado, nesta
hora, eu me imaginava no palco, olhando para os rostos
diante de mim que queriam a mesma coisa que eu: estar ao
mesmo tempo fincados no chão e flutuando.
Mas aí meu pai morreu — foi tirado de mim —, e eu não
peguei no violão de novo até ontem à noite. Até o momento
em que toquei para Olivia e depois passei o resto da noite e
a manhã de hoje tocando com ela. E tudo pareceu se
encaixar, como se meu corpo fosse meu mais uma vez,
totalmente à vontade. A ansiedade que revirava minhas
entranhas há meses — há anos, provavelmente, se eu for
honesta — sumiu.
— Está pronta? — Olivia se vira para mim e grita sobre o
barulho da música.
Ela levanta os óculos em formato de coração para o
cabelo e sorri. Estou pronta, acho. Talvez tenha estado
pronta para isso desde sempre e nem soubesse. A multidão
começa a se mover para a frente, nos arrastando, e os
gritos vão ficando mais e mais altos enquanto o DJ Louddoc
se prepara. Estou olhando para Olivia, ela olhando de volta
para mim, e meu coração parece uma banda marcial,
enorme e impetuoso e impossível de ignorar, e naquele
momento...
Quase não ouço o estrondo.

Meu pai morreu com um tiro num assalto que deu errado a
um posto de gasolina.
Estávamos a caminho da Indy Classics, uma loja de
música que fica perto de casa. Ele tinha chegado de turnê
fazia só uma hora, mas mesmo assim bocejou, calçou as
botas, pegou o casaco e lutou comigo pelas chaves da
caminhonete antes de subirmos no carro. A caminhonete é
velha e não tem entrada de som, então ele ficou batendo as
mãos no volante enquanto dirigia, tentando me fazer
acertar a harmonia de uma música antiga da Loretta Lynn
que estava cantando.
Eu precisava de papéis de pauta musical. Na verdade, eu
queria mais do que precisava. Ou, no fundo, nem isso, só
queria mesmo passar um tempo com meu pai e sabia que,
se dissesse a ele que precisava daquilo, ele me levaria até a
loja e deixaria para depois a soneca que estava planejando
tirar antes da chegada da minha mãe. Queria passar um
tempo com ele, mas não tinha como saber que faríamos
uma parada e que aquela seria a última parada que ele faria
e... porra.
Vamos começar de novo.
Meu pai estava no lugar errado na hora errada — num
país em que qualquer lugar e qualquer hora podem ser
errados.
A Classics fica a exatamente quatro quilômetros e meio
da minha casa. Sei disso agora, embora não soubesse
naquela época. A exatamente dois quilômetros e meio da
minha casa há um posto de gasolina Shell que fica meio
afastado da rua principal. É um pouco sombrio. A iluminação
é ruim — o estacionamento é apenas parcialmente
iluminado por um único poste de luz piscando e uma
lâmpada em cima das duas bombas de gasolina. Não é o
tipo de lugar aonde se deve ir sozinho à noite.
Sei disso agora também, embora não soubesse naquela
época.
— Ah, cara, deixa eu parar aqui rapidinho! Estou com
desejo de comer uns Hot Chips. Sabe como é difícil achar
esse negócio na estrada? — Ele entrou no estacionamento
com um sorriso enorme no rosto. Deu uma puxadinha em
um dos meus dreads antes de desligar o aquecimento. —
Não morra de frio até eu voltar, está bem?
Sorri e passei a mão na careca dele — era assim que
sempre fazíamos. Ele tinha dreads como os meus
antigamente. Eu era muito pequena para me lembrar, mas
posso vê-los numa foto dele no Farmland, o cabelo longo
preso num rabo de cavalo baixo, e ele sorrindo ao lado de
Anthony Kiedis. Seu rosto não tinha nenhuma linha de
expressão na foto, apenas uma leve ruga ao redor dos olhos
quando sorria. Seu sorriso nunca mudou, mas o rosto, sim,
em algum momento.
Quando olhei para ele sob a luz baixa daquele
estacionamento, parecia cansado. Como se a vida na
estrada estivesse cobrando seu preço para ele também, do
mesmo jeito que fazia comigo e com minha mãe.
— Eu podia ter mandado Hot Chips pra você, pai — disse,
enquanto ele abria a porta.
Uma corrente de ar gelado entrou na cabine e senti um
calafrio. Ele olhou para mim e deu uma piscadinha.
— Não, filha. Encontrar as coisas das quais sinto falta
enquanto estou fora faz a volta para casa ficar ainda
melhor. Vai ser rapidinho, prometo! — respondeu ele, dando
uma corridinha até a loja de conveniências.
Não pensei em impedi-lo quando ele saiu da
caminhonete e bateu a porta. Não pensei que o desejo dele
por seu salgadinho favorito e o meu desejo de passar mais
tempo com ele podiam dar errado. Não pensei em nada a
não ser no quanto estava feliz por ter meu pai em casa e no
que poderia fazer para mantê-lo ali.
Não prestei atenção quando o cara encapuzado entrou.
Não vi quando ele puxou a arma, apontou para o
funcionário e exigiu o dinheiro da caixa registradora.
Não olhei quando meu pai tentou intervir.
Mas ouvi o tiro.
Pela vitrine encardida, vi meu pai cair no chão de linóleo,
e então o cara encapuzado fugindo, certamente com o
dinheiro roubado nos bolsos.
Eu não me lembro de entrar cambaleando pela porta,
nem de cair de joelhos ao lado do corpo do meu pai, o
sangue ensopando minha calça jeans desbotada, nem de
gritar enquanto o funcionário se enrolava com o telefone e
finalmente conseguia chamar a polícia. Não me lembro de
correr para o estacionamento depois que a ambulância
levou o corpo. Eu só sei dessas coisas porque me contaram.
O resto da noite me vem à memória em flashes.
Mas vejo tudo com nitidez agora — as imagens passam
na minha frente como um resumo de melhores momentos
da pior noite da minha vida. Meus ouvidos estão zumbindo,
não consigo respirar, e as pontas dos meus dedos estão
formigando, como se até meu sangue tivesse se esquecido
de como circular normalmente. Sinto gosto de cobre.
Alguém põe a mão no meu rosto e sussurra no meu ouvido:
“Volte pra mim. Você está bem. Está tudo bem. Volte pra
mim. Você está segura. Eu prometo”.
OLIVIA

SÁBADO À TARDE

Não sei o que está acontecendo ou por que Toni de


repente ficou completamente paralisada do meu lado, mas
estou assustada para caramba. Nem consigo ouvir o que o
DJ Louddoc está tocando, porque só consigo pensar em
ajudar Toni. A respiração dela vem em pequenos soluços
abafados que se parecem tanto com um ataque de asma
que instintivamente levo a mão à pochete para pegar o
inalador. Mas então percebo que não é isso, porque nunca
tive um ataque de asma que me deixasse com os olhos
perdidos e desfocados como ela está agora.
Consigo empurrá-la junto comigo para fora da multidão,
segurando sua mão e acotovelando as pessoas de maneira
não tão educada, até que consigo colocá-la sentada no
chão, encostada numa árvore. Não sei o que aconteceu, não
sei muito bem o que fazer, e os olhos de Toni estão
fechados agora, como se ela tivesse abandonado o próprio
corpo por completo. Então faço a única coisa que sei fazer.
Eu falo.
Seguro os braços dela e repito um mantra que, mais do
que qualquer coisa, eu gostaria que fosse verdade.
— Volte pra mim. Você está bem. Está tudo bem. Volte
pra mim. Você está segura. Eu prometo. Você está no
Farmland. Está aqui comigo, lembra? Coisas ruins não
acontecem no Farmland. Você vai ficar bem. Eu juro — digo
tudo isso da forma mais enfática possível, como se apenas
minha crença no que estou falando fosse o suficiente para
tornar aquilo verdade.
A respiração dela começa a desacelerar, o peito subindo
e descendo de maneira mais controlada, mas ela ainda não
voltou ao normal.
Deslizo minhas mãos pelos seus braços e seguro suas
mãos. Entrelaço nossos dedos. Aperto só um pouquinho, o
suficiente para trazê-la de volta para este momento, para
mim.
Quando os olhos de Toni finalmente encontram os meus,
é como se ela não me reconhecesse. Bem, não exatamente.
Mais como se ela estivesse me vendo pela primeira vez.
Não sei bem o que pensar a respeito, só sei que estou
aliviada por tê-la de volta.
— Toni! — Peter corre na nossa direção, Imani logo atrás
dele. O coque frouxo se desfaz e seus cabelos caem no
rosto enquanto ele se ajoelha diante da amiga. — Não sabia
aonde vocês tinham ido. Desculpa, cara. Eu me esqueci dos
efeitos de som. Eu devia ter pensado nisso. Devia ter te
avisado. Nem pensei nisso.
Ele a abraça de forma instintiva e Toni praticamente cai
sobre ele. Ela apoia o rosto no ombro de Peter, e ele
murmura algo que não ouço. Toni concorda com a cabeça,
só uma vez, e ele se afasta, mas continua segurando os
ombros dela.
— Devia ter pensado em quê? — Olho para os dois, mas
Toni se recusa a olhar para mim. — Peter, o que aconteceu?
Meus instintos gritam: “O que foi que eu fiz?”.
— Nada. — É a primeira coisa que ouço Toni dizer desde
que o show começou, e sua voz sai baixa e mal-humorada.
— Isso não é... — Ela para e esfrega o rosto com uma das
mãos. — Não posso fazer isso.
— Não pode fazer o quê? — Tem alguma coisa que não
estou entendendo e não sei o que é.
Peter e Toni parecem estar se comunicando sem palavras
mais uma vez, e é Peter quem responde. Ele aperta meu
ombro e, pela primeira vez desde que nos conhecemos,
parece realmente triste. Ele ajuda Toni a se levantar e olha
para mim com o rosto fechado.
— Desculpa, Olivia. Acho que talvez esse seja o fim da
linha.
Os dois começam a se afastar e Toni parece
completamente destruída. Cada centímetro do seu corpo
está tenso, e está tudo errado. Não sei o que aconteceu ou
o que está acontecendo agora, e só quero voltar para hoje
de manhã, quando parecia que as coisas estavam dando
certo e Toni e eu estávamos na mesma sintonia — a
perfeição de nossas vozes combinadas ainda deixando um
quentinho no meu peito.
Preciso ir atrás dela.
— Olivia, espera aí. O que está fazendo? Não ouviu o que
ela disse? — Imani corre para me alcançar e se coloca no
meu caminho. — Ela quer ficar sozinha. Ela praticamente
disse que não quer você por perto.
— É claro que ouvi. — Mas tudo o que construímos estes
dias, todas as coisas boas que pareciam estar se
encaixando, agora estão desmoronando diante dos meus
olhos e eu nem sei por quê. — É exatamente por isso que
preciso ir atrás dela. Se ela for embora, tudo isso, todo esse
fim de semana, foi por nada.
Não sei por que Imani está irritada, mas, para ser
sincera, acho que ultimamente eu nunca sei. Parece que
não consigo fazer nada certo aos olhos dela. Tudo bem que
ela talvez não quisesse nem vir ao festival para começo de
conversa — mas olha até onde ela chegou! Não ignorou
Peter em nenhum momento hoje de manhã, até sorriu para
ele algumas vezes, o que para Imani é quase um pedido de
casamento. Eu fiz isso. E ela nem liga.
Mas não preciso entender isso agora. Cada segundo que
fico parada aqui discutindo com Imani é um segundo
perdido em que Toni está assustada ou magoada ou... nem
sei o quê. Eu devia estar lá ao lado dela. Sinto que agora é
mais do que uma obrigação pelo nosso acordo. Em algum
momento entre ela fazer um curativo no meu pé e abrir um
sorriso tão lindo para aquela foto a ponto de eu saber que
podia deixar com ela — porque nunca tiraria aquela cena da
minha cabeça —, Toni se tornou alguém que tenho medo de
perder.
E não de um jeito temporário, como estou acostumada.
Não é a mesma coisa que eu senti por June ou Katie ou
Jared ou Moira ou Nick, pessoas a quem eu me apeguei pela
maneira como me faziam sentir enquanto estavam
prestando atenção em mim — porque eu estava com medo
de ser uma pessoa que eles não queriam. Não quero perder
Toni porque, quando ela olha para mim, não vejo uma
pessoa que pode me consertar; vejo alguém que acredita
que não preciso de conserto.
Vejo as silhuetas de Peter e Toni menores e menores à
medida que eles se afastam, e dou um passo para o lado
para tentar contornar Imani. Mas ela fica no caminho de
novo.
— Você me prometeu. — Ela levanta a cabeça,
desafiadora, e aponta para o meu peito. — Você fez uma
promessa de dedinho, Olivia. Desde quando quebramos
essas promessas?
Ela precisa entender. Preciso que ela compreenda que
não estou fazendo a mesma coisa que sempre faço. Isso
não tem a ver com meu desejo de beijar, namorar ou passar
o resto da vida com Toni. Isso não é uma fantasia. Isso é
maior do que meus sonhos de romances de cinema. Só
desta vez eu preciso que ela confie em mim.
— Você andou atrás dela todo esse tempo, Olivia. E eu
tentei não estragar as coisas pra você porque parecia
importante, mas... — Seu rosto se contorce e vejo que ela
está magoada. Porque passei cada vez mais tempo com
Toni, mesmo quando não precisava. Porque nem tentei tirar
Peter do meu saco de dormir ontem à noite. — Isso não tem
mais nada a ver com o concurso ou com aquela caça ao
tesouro idiota. — Ela fecha os olhos e fala tão baixo que mal
consigo ouvir. — Você prometeu para mim.
A decepção dela é como um soco no meu peito. Não há
nada mais sagrado entre nós do que nossas promessas.
— E você diz que não está escondendo nada sobre a
audiência, mas você está. — Ela passa o dedo sobre o anel
no mindinho e sua voz falha um pouco. — Eu sei que você
está.
Não respondo, porque sei que dizer a verdade a ela vai
arruinar tudo. Não posso consertar o que aconteceu com
Troy. Mas, se eu ficar quieta, posso impedir que as coisas
fiquem ainda piores.
Quero muito que ela entenda isso, então seguro suas
mãos e as aperto com força. Esta não é como todas as
outras vezes. Não é que nem foi com o Troy. Desta vez, sou
só eu aqui, sem truques nem disfarces para fazer Toni
prestar atenção em mim, e ela parece gostar do que vê
assim mesmo. Não posso estragar isso, porque acho que
pode ser de verdade.
— Eu fiz uma promessa para ela também, Mani. Preciso
consertar isso. Posso consertar isso.
Tento ignorar a expressão de traição no rosto da minha
melhor amiga enquanto me afasto.
TONI

SÁBADO À TARDE

— T, você precisa contar para ela — diz Peter. Ele me


entrega um frozen de limonada de uma barraquinha ali
perto e me obriga a beber. — Você não pode fugir disso. E,
para falar a verdade, acho que você nem quer.
Andamos até o outro lado do Core, até eu me sentir
melhor para finalmente me sentar, como se tivesse um fio
invisível me prendendo ao pior ataque de pânico que tive
em meses e eu precisasse andar para bem longe para me
soltar. Dobro os joelhos e coloco o queixo sobre eles. Preciso
voltar ao normal. Preciso me recompor. Estou totalmente
perdida.
Peter está certo. Preciso enfrentar o que quer que seja
isso de que estou fugindo: o fato de que meu futuro está
completamente indefinido, o fato de que sinto tanta falta do
meu pai que parece que vou ser esmagada por esse
sentimento, o fato de que quero Olivia mais do que já quis
qualquer outra pessoa na vida e não tenho a menor ideia do
que fazer com isso. Mas não sei nem por onde começar.
— E se eu quiser? — pergunto. Peter está sentado na
minha frente, com as pernas cruzadas, esperando. Para
alguém que fala tanto, ele é bom em ouvir quando é
necessário. — E se eu não servir mesmo para isso? E se
tudo que eu souber fazer na vida for fugir?
Nem preciso dizer “igual ao meu pai”.
Quero confiar na Olivia, o que me assusta. Nunca quis
fazer isso com ninguém antes. E contar sobre o meu pai é a
maior intimidade que poderia compartilhar com ela. Depois
de perdê-lo continuamente durante toda a minha vida a
cada vez que ele saía para alguma turnê ou ia tocar com
alguém, essa última perda deixou uma ferida aberta. Vai ser
sempre uma ferida aberta.
Quando você se abre para alguém, quando essa pessoa
conhece suas partes mais vulneráveis, o que a impede de te
machucar? Quando finalmente digo isso em voz alta,
percebo que é a primeira vez na vida que confesso para
outra pessoa por que sou desse jeito. Por que afasto todo
mundo em vez de aproximar, por que recuo em vez de
seguir em frente.
— Acho que você precisa começar a se perguntar quem
você está realmente protegendo quando mente para si
mesma, sabe? — diz Peter. Ele arranca algumas folhinhas de
grama e joga sobre as minhas botas. — Porque, pelo que
estou vendo, fugir machuca mais do que ficar. E, além
disso... — ele abre um sorrisinho — você se abriu para mim.
E olha como deu certo.
E como se ele a tivesse evocado ao dizer seu nome, ouço
a voz de Olivia antes mesmo de ver seu rosto, e só pelo som
já dá para saber que ela correu para nos alcançar. Eu me
sinto culpada, especialmente levando em conta quão ruim
sua asma está nesse clima úmido, mas não consigo olhar
para ela. Estou muito envergonhada.
Ninguém nunca tinha me visto daquela maneira,
tentando voltar de um ataque de pânico, a não ser Peter e a
minha mãe. Eu não tinha isso antes. Eles começaram depois
da morte do meu pai, e têm acontecido mais frequente e
intensamente nos últimos meses. Qualquer coisa pode ser
um gatilho: de algo extremo, como o estouro do
escapamento de gás de um carro que parece um tiro, até
algo mais simples, como uma música que me lembre ele.
É como se eu estivesse tentando segurar minha vida
com as duas mãos, mas elas estão tremendo demais para
se manterem firmes. Quando tenho um ataque de pânico, é
o momento em que me sinto mais fraca, mais frágil. Jurei
que nunca deixaria ninguém me ver sem meus mecanismos
de defesas a toda potência, nunca. Foi a única maneira que
encontrei para me proteger durante todo esse tempo. Mas
não consegui desta vez. E não apenas isso: Olivia conseguiu
me trazer de volta mais rápido do que eu mesma consigo
normalmente sozinha.
Já preciso demais dela. Isso não vai funcionar.
— Eu vou... hum, pegar um negócio... lá. — Peter sai
acelerado que nem um mosquito e anoto mentalmente que
preciso esmagá-lo como um quando voltar. Grande melhor
amigo esse.
Olivia estende a mão para mim.
— A gente tinha um acordo, lembra?
Não digo nada sobre o fato de já ter violado minha parte
do acordo, incluindo a parte implícita. Era para eu ajudá-la a
encontrar essas maçãs, manter a maior distância possível e,
quando terminasse o fim de semana, seguiríamos cada uma
o próprio caminho, ilesas. Mas estraguei tudo. Ela me disse
que aquilo era apenas um acordo de negócios e eu
concordei, mas menti.
— É, bem, vou dispensar você da sua parte do acordo. —
Olho para cima e a encaro. Ela tira os enormes óculos de sol
em formato de coração que agora nunca mais vou
conseguir ver sem pensar nela. Sua expressão é gentil e
curiosa. — Considere cancelado. Anulado e sem valor.
Tranquilo?
O rosto dela vai de suave e empático para algo mais
fechado instantaneamente.
— Não, não está tranquilo, Toni. É o oposto de tranquilo.
É a exata definição de intranquilo, na verdade. — Ela se
senta ao meu lado e põe as pernas embaixo do corpo. Solta
um suspiro. — Não estou falando do concurso. Estou falando
de ontem à noite, no celeiro. Você concordou em confiar em
mim.
“Porque, pelo que estou vendo, fugir machuca mais do
que ficar”.
Ela está certa. Tudo que tenho é a minha palavra, então
conto para ela. E continuo contando para ela. E não paro de
falar até despejar tudo, toda a confusão que é a minha
história. A noite em que meu pai morreu. O primeiro ano da
faculdade, que devo começar daqui a dois dias. O fato de
não ter a menor ideia do que quero para a minha vida e
morrer de medo de que a música não seja mais o suficiente
para me fazer descobrir. Por que o Golden Apple parece tão
importante.
— Acho que devíamos começar do zero — diz ela,
quando termino de falar. — Oi, meu nome é Olivia Brooks.
Tenho dezesseis anos. Sou de Indianápolis, Indiana. Estou
prestes a começar o último ano na pior escola na história
das escolas. Sou muito asmática. E tenho alergia a frutos do
mar.
Ela estende a mão e, mesmo não entendendo ao certo o
que está acontecendo, a aperto ainda assim.
— Pior escola na história das escolas. Isso é um belo
título.
Ela sorri.
— E é verdade. O inferno está vazio e todos os demônios
estão na Escola Park Meade.
Concordo com a cabeça. Ela está me oferecendo uma
bandeira branca. Uma tela em branco para recomeçar.
— Antonia Jackson Foster. Toni para a maioria das
pessoas, TJ às vezes. Tenho dezessete anos, mas faço
dezoito daqui a uma semana. Também sou de Indy e não
tenho alergia a nada, mas às vezes digo que tenho alergia a
cebola para não colocarem na minha comida. E me formei
na Ardsley Academy há dois meses. — Ela arregala os olhos
e dou um sorrisinho. — Então, tecnicamente, somos rivais.
Para cima deles, Blue Devils.
— Prazer em conhecer você, Toni. — Ela enfim solta
minha mão e aperta os lábios, pensando. — Olha, não quero
forçar você a nada e, honestamente, sabendo o que sei
agora, não acredito que você tenha sequer cogitado fazer
isso, mas ainda gostaria de competir com você, se quiser.
Penso em dizer não, em ir embora, em nunca mais me
sentir como ontem à noite, tocando a música do meu pai
sob as estrelas com Olivia — mesmo que não tenha o
mesmo significado para ela que tem para mim. E sei que
não é uma opção.
— Tirando o drama — faço um esforço para me levantar
e estendo a mão —, eu também gostaria.
Quando ela segura minha mão e se levanta também, o
que sinto é que finalmente tenho algo sólido diante de mim,
não mais em movimento constante. Parece que tudo está
no lugar.
— Bem, Toni Foster da Ardsley Academy, é melhor a
gente se apressar. — Ela me empurra na direção da saída, a
caminho dos acampamentos, onde está meu violão. — Acho
que tem um palco com nosso nome por aí.
Se eu achei que estava em pânico antes, agora o que
sinto é um balde de água fria ao me dar conta de que temos
menos de vinte minutos para trocar de roupa, pegar o violão
e voltar a tempo para o celeiro. Mas Olivia parece estar
lidando bem com a situação. E o que quero dizer com isso é
que ela está tão enlouquecida com nossa preparação como
sempre está com qualquer outra coisa, então não quer dizer
muito.
Saímos correndo do Core para o acampamento. Quando
chegamos lá, pego a case do meu pai na caminhonete e
começo a correr de volta na direção do galpão, até que ela
diz:
— Espera aí. Você está pensando em vestir isso mesmo?
Olho para minha roupa, confusa. Estou usando uma
regata preta levemente manchada na gola por causa do
suor, um short jeans cortado e desbotado com as bainhas
desiguais porque fiquei com preguiça de consertar e botas
de caubói. Alguns poderiam dizer que meu visual é festival-
chique, mas Olivia balança a cabeça, incrédula. Ela entra na
minha barraca e vasculha o lugar, como se fosse a dona de
tudo.
— O que tem de errado com a minha roupa? — pergunto,
e se minha voz saiu um pouco indignada, quem se importa?
— Eles avaliam a música, não a aparência.
— As meninas bonitas sempre dizem isso! — Olivia grita
lá de dentro.
Fico feliz por ela não poder ver o quanto essas palavras
me afetam. “Mantenha o foco, Foster.”
— Aqui! — Ela joga um punhado de roupas em cima de
mim e me empurra para entrar na barraca para trocar de
roupa. — Anda, anda!
E, como Olivia é o tipo de pessoa que a gente não
consegue ignorar nem consegue deixar de obedecer,
trocamos de lugar e eu me visto. É a troca de roupa mais
rápida da história.
Tão rápida que nem percebo que estou usando uma
camiseta de Peter. É uma autêntica camiseta manchada do
Nirvana da turnê de 1993 — aquela do “In Utero”, com um
anjo na capa —, que Peter encontrou no eBay e transformou
num cropped no início do verão. Também estou usando um
short que é meu mesmo, mas de cintura alta, um jeans
preto com franjas na bainha que fazem minhas pernas
parecerem ainda mais longas do que são.
Quando saio, Olivia tira a bandana que estava amarrada
na minha testa o dia inteiro e amarra no meu pescoço.
Deixo que ela faça tudo e tento ignorar a onda de calor que
me invade quando ela solta o cabelo que estava preso num
coque e coloca meu chapéu de abas largas sobre os dreads.
— Pronto. — Ela dá um passo para trás e sorri. Nem
preciso olhar no espelho para ver o que ela conseguiu fazer
ou para saber que gostei. Estou confortável e parece
natural, mas tem uma bossa. — Só porque você tem
conteúdo não significa que não possa se enfeitar um
pouquinho. Agora eles não têm nenhum motivo para
duvidar de você.
Tudo que estou tentando esconder desde ontem ameaça
jorrar nesse momento, mas não temos tempo. Ela pega a
case, enfia na minha mão e começamos a correr de volta
para o Core.
Por sorte, ainda estamos no início da tarde, então a
situação está mais calma e a fila anda mais rápido do que
nas outras horas. Agradeço aos deuses dos festivais pela
sorte ao passarmos pela segurança — com uma parada
para checar se tem algo mais dentro da case do meu pai
além do violão — e corrermos pelo Core até o galpão de
apresentação. Nossos celulares vibram com uma mensagem
do Peter dizendo que ele e Imani estão na plateia e desejam
sorte, e logo entramos correndo nos bastidores.
— Toni Jackson e Olivia Brooks? — pergunta um
funcionário com um fone de ouvido enorme.
Ouvimos a plateia aplaudir outra dupla que está
entrando no palco. São duas mulheres brancas que parecem
ter acabado de sair de uma loja de roupas moderninhas, e
fico ainda mais agradecida a Olivia por ter sugerido que eu
me trocasse. Esse pessoal veio pronto para as câmeras.
Concordamos com a cabeça.
— Ótimo, vocês são as próximas. — E, sem qualquer
outro aviso, ele vai embora.
— Está pronta? — pergunto a Olivia.
O sorriso dela é um pouco vacilante, mas ela faz que sim,
sem dizer mais nada.
Antes que eu possa perguntar qualquer outra coisa, uma
voz vinda de trás de nós interrompe:
— Toni?
Quando olho na sua direção, vejo um cabelo ruivo
familiar e a garota me puxa na hora para um abraço. Ela
continua praticamente a mesma desde a última vez que a
encontrei, mas o cabelo está um pouco mais longo e há
uma nova tatuagem no braço que diz “Eu não tenho medo
de nada”.
— Mack? — Abro um sorriso. E sei que ela está surpresa
em ver isso, porque levanta as sobrancelhas e abre outro
para mim. — O que está fazendo aqui?
Dou um passo para trás para dar uma olhada melhor
nela, feliz em vê-la e surpresa com a minha própria
surpresa. Mack é a prima mais nova de Davey Mack — ou
David McCarthy, como diria a Wikipédia —, mas os dois
sempre foram mais como irmãos. Tanto que em todos os
verões desde que eu tinha trezes anos e ela catorze, Mack
acompanha o Kittredge em alguns dos shows da turnê pelo
Meio-Oeste.
Nos conhecemos alguns anos atrás, quando eles tocaram
no Lollapalooza. Nós éramos as únicas menores de idade
nos bastidores, então nos aproximamos por conta do nosso
amor por Sheila E. e ficamos assistindo a vídeos no YouTube
no camarim enquanto esperávamos o show terminar. Eu
não a chamaria exatamente de amiga, mas poucas outras
pessoas entenderiam o que era fazer parte de todo aquele
esquema do Kittredge a não ser outra adolescente.
— Voltei a viajar com a banda para alguns shows neste
verão. Legal, né? Não acredito que Davey não cansou de
mim ainda, mas aqui estou!
Ela levanta os braços e vejo a camiseta com os dizeres
KITTREDGE “BACK WHERE WE BELONG” - TURNÊ NORTE-AMERICANA 2021.
Um voluntário pede que ela fale mais baixo e Mack tenta
abaixar o volume (sem muito sucesso) para não atrapalhar
a apresentação no palco.
— Você vai competir?
Dou de ombros, um pouco constrangida. Não sei por quê.
Não tenho nada do que me envergonhar, a não ser do fato
de que não sei como vai ser. Ainda não tenho certeza se vou
conseguir fazer isso na frente de mais alguém que não seja
Olivia.
E aí lembro que Olivia está parada ali do lado, olhando
para mim e para Mack com uma expressão vagamente
confusa.
— Ah, ei, Olivia. — Estendo o braço e a chamo para mais
perto. — Essa é Mack McCarthy. Ela é prima do Davey Mack.
A gente sempre andava juntas quando éramos mais novas,
quando meu pai trabalhava para o Kittredge.
Olivia estende a mão e Mack a aperta com sua habitual
animação.
— Prazer em conhecer você, Olivia! — Mack sussurra e
grita ao mesmo tempo. Ela faz uma saudação rápida e se
inclina para dizer: — Vou lá para a plateia, mas me manda
uma mensagem depois, Toni!
Ela estende a mão com a palma para cima e entrego
meu celular. Ela digita o número e manda uma mensagem
para ela mesma, assim fica com meu número também.
Assim que vai embora, um voluntário com uma prancheta
chega para dizer que somos as próximas.
— Sua amiga era... legal.
Olivia parece meio verde quando ficamos sozinhas. Nem
posso pensar em Mack agora. Tudo o que vejo são as pernas
de Olivia, que não param quietas, enquanto ela olha
alternadamente para mim e para o palco. Nem considerei o
fato de que talvez ela tenha medo de palco, já que tem uma
personalidade tão solar, mas não me importo de confortá-la.
Na verdade, quero fazer isso.
Quero dizer a ela que vai dar tudo certo e que, não
importa o que aconteça lá em cima, estou feliz por termos
feito isso. Estou feliz por ela ter se enrolado com aquela
barraca e ter precisado de ajuda com uma caça ao tesouro
furada, e estou feliz por ela não ter fugido quanto tentei
afastá-la. Estou feliz por ela ter ficado. Mas não sei como
dizer tudo isso ainda. Não há palavras para descrever o
quanto a presença dela significa para mim.
Então confio nos meus instintos. Seguro a mão dela e
aperto. Não sei onde Olivia deixou a câmera, mas tiro uma
foto mental desse momento, com as luzes do palco
formando um halo sobre a sua cabeça.
Meu pai estava certo em relação a várias coisas, mas,
quando olho para Olivia, quando penso em como me senti
ontem à noite tocando para ela, sei que não preciso subir ao
palco para descobrir o que tenho que fazer a seguir. Eu me
inclino, fecho os olhos e sigo minha Verdade.
OLIVIA

SÁBADO À TARDE

Minha mente está em parafuso e tento fazer o melhor


possível para não perder a calma que consegui fingir até
agora, mas estou pirando por dentro. Talvez eu tenha
omitido um pouco o meu desconforto com apresentações
em público? Talvez. Mas eu estava controlando isso até
aquela Mack — que, admito, era bonitinha, ainda que meio
esquisita — aparecer e Toni abrir um sorriso que eu só tinha
visto uma vez.
Isso significa alguma coisa? Elas são apenas ex-
namoradas muito educadas? Toni disse que elas andavam
juntas, mas talvez isso seja um código de pessoas
descoladas do universo musical para dizer “Sim, a gente
com certeza se pegava”. Bem, sei que não é como se ela
tivesse dito explicitamente que algo está rolando entre a
gente, a não ser por alguns breves momentos que talvez
tenham significado alguma coisa, mas que podem ser
negados sob pressão.
Sei que isso não devia importar, que não é da minha
conta, que fui eu quem tomou a decisão de não a beijar
ontem, mas de repente estou louca de ciúmes. Sinto uma
onda invadindo todo o meu corpo.
Meu joelho começa a tremer e aquele formigamento
familiar percorre minha pele. Tento ser racional, lembrar que
isso não tem importância, que está tudo bem entre mim e
Toni, que nos divertimos muito juntas nestes últimos dois
dias. Mas não consigo parar de pensar no que posso estar
perdendo. Estou sendo eu, não mostrei nada a ela além da
versão descontrolada que sou eu mesma. E se não for
suficiente? E se tudo que ela precisava para pular fora era
de um lembrete do passado?
— Olivia? — Ouço e viro a cabeça.
Minha mente estava em disparada para um lugar muito
ruim. Já estive lá muitas vezes, mas Toni aperta minha mão
com gentileza, nosso único ponto de contato, e me traz de
volta à Terra. Sua expressão é suave e seu sorriso é
diferente de todos os que já compartilhamos até agora. É o
tipo de sorriso que me diz que já estou envolvida demais.
Que, apesar dos meus esforços — e eu realmente fiz o
melhor possível —, não tem a menor chance desse fim de
semana terminar sem que eu me perca um pouquinho nisso
que está acontecendo entre nós.
É o suficiente para fazer minhas dúvidas desaparecerem.
— Oi?
— Posso...
É como se estivéssemos de volta ao celeiro de música
eletrônica, mas desta vez é ainda melhor. Não estou
questionando se essa é a decisão certa, não estou
duvidando de mim mesma. Nós chegamos até aqui. Nós
fizemos isso.
Nem fecho os olhos ao me inclinar para tocar seus lábios.
Não quero perder nada. Parece que é a primeira vez —
como todo primeiro beijo com alguém deve ser. As palmas
das mãos suando e tudo muito, muito suave. Os narizes se
esbarram de modo quase desajeitado. É demais e não é o
suficiente e termina muito rápido.
Ela se afasta e sorri.
— Eu precisava fazer isso antes de começarmos — diz
ela. Eu apenas movo a cabeça para cima e para baixo
porque tenho certeza de que se tentasse falar alguma coisa
nesse momento, não ia sair nada. Ela está com as
sobrancelhas levemente arqueadas, mordendo o lábio e,
meu Deus, é justo que alguém seja tão linda? — Obrigada.
Por tudo.
Só vamos saber se ganhamos amanhã de manhã, então
quero dizer para ela guardar o agradecimento até lá. A
dupla anterior termina e recebe um aplauso modesto da
plateia. Nem ouvi nada da apresentação delas. É agora. Meu
coração parece estar alojado no esôfago, e eu estendo a
mão por instinto para pegar o inalador, embora esteja
respirando normalmente.
Mas nem dá tempo de usá-lo para acalmar o pânico. O
apresentador chama nossos nomes — ele diz “Toni Jackson”,
o sobrenome do meio em vez do último, e penso que até o
nome dela é o de uma estrela em ascensão —, a multidão
começa a aplaudir e subimos ao palco.
O som das palmas é ensurdecedor, embora eu consiga
ver em meio às luzes apontadas para nós que não há mais
de duzentas pessoas no galpão. As palmas das mãos
começam a suar, e levanto um dos braços para tentar
proteger meus olhos das luzes. Era para estar tão quente
assim aqui? Não dá para diminuir um pouquinho essas luzes
bizarras?
Diferente de mim, Toni acena com desenvoltura, o sorriso
de volta ao rosto, totalmente à vontade. Aqui, ela não
parece ter qualquer problema em se aproximar das pessoas.
Parece estar em casa, como se fosse exatamente onde ela
deveria estar, cercada de música.
E, de repente, fico absoluta e ridiculamente nervosa.
Bem no estilo Olivia Brooks, não pensei muito em tudo que
essa situação envolveria quando me joguei nela. Só vi uma
oportunidade e decidi aproveitar. Agora, estou olhando para
a multidão e os vocalistas do Sonny Blue e do Kittredge.
Duas das bandas principais do festival e uns dos maiores
artistas do mundo estão aqui para me ver passar vergonha.
Mas a pior parte é que vou passar vergonha e arrastar Toni
comigo. Meu coração está batendo meio rápido demais e
sinto que estou respirando que nem faço depois de correr
da polícia numa festa — o nervosismo e a sensação de
perigo subindo juntos pela minha espinha.
Vou estragar o sonho dela. Vou arruinar a vida dela como
fiz com todas as outras pessoas que já se aproximaram de
mim.
Meus olhos praticamente saltam do rosto quando olho
para Toni.
— Aquela... aquela é Bonnie Harrison. E Davey Mack —
sussurro e cubro o microfone para não ele captar o som.
Meus batimentos cardíacos estão fora de controle e pego o
inalador. Solto um jato, porque minha respiração está ruim,
mas também porque me faz ganhar tempo. Isso é uma
loucura. — Não consigo fazer isso, Toni. Desculpa, eu sinto
muito, mas de verdade não posso...
Toni joga o violão para trás do corpo e vira de costas
para o público. Ela fica de frente para mim, e seu chapéu
até bloqueia a luz que vem na minha direção. Olha bem
para o meu rosto, pensa, então coloca as mãos nas minhas
bochechas.
Paro de respirar de novo, mas desta vez por uma razão
completamente diferente. O sorriso dela não é como os que
estou acostumada. Não é daquele tipo que Troy costumava
usar, ou Casey, Lisa, ou Andy, que parecia dizer que eu era
algo a ser devorado, um prêmio a ser conquistado. Um que
dizia: “Estou de olho em você. E nos seus defeitos”.
O sorriso dela é tão gentil e tão concreto e, de certa
forma, é tão ela que me faz relaxar.
— Sabe quando você me disse que é boa em ser o que
as pessoas querem que você seja?
Abro a boca imediatamente para tentar discordar. Achei
que tinha explicado aquilo. Não quero que ela pense que
isso — o que quer que esteja acontecendo entre nós — é
algo assim. Ela é especial. Isso é especial.
— Toni, eu não quis...
— Escute, está bem? — Ela balança a cabeça
rapidamente. Consigo ouvir o murmúrio da plateia atrás
dela, mas tento bloquear todos os ruídos. Tento direcionar
toda a minha atenção à garota na minha frente. — Só olhe
para mim o tempo inteiro. Esqueça eles. Apenas olhe
diretamente para mim. Seja a pessoa que você é quando
estamos só nós duas, está bem? Eles vão acabar se
sentindo como eu me sinto quando estou com você.
TONI

SÁBADO À TARDE

Não toquei na frente de ninguém além de Olivia nos


últimos oito meses. Há três dias, eu ainda estava mais ou
menos convencida de que nunca mais ia tocar de novo. Mas
ao me sentar no banquinho e começar a dedilhar o violão,
sigo o conselho que dei para Olivia e olho diretamente para
ela.
Neste momento, não existe plateia, não existe Davey
Mack ou Bonnie Harrison avaliando cada passo nosso. Não
existem grandes decisões de vida a serem tomadas, nem
concurso para ganhar ou uma caça ao tesouro para
terminar. Só existe Olivia. Apenas a garota que fez eu me
sentir mais viva nas últimas vinte e quatro horas do que já
me senti em toda a minha vida, me fez querer correr mais
riscos do que nunca, cantando comigo.
Eu já sabia que a voz dela era boa por causa dos nossos
ensaios, mas neste momento ela soa perfeita — tão limpa e
cristalina. Isso é mais do que uma canção. A forma como eu
me sinto? Isso é música. Isso é tudo.
Tudo parece tão natural e, com Olivia ali na minha frente,
voltar à minha música é como andar de bicicleta. Estou no
porão com meu pai me ensinando a tocar “Seven Nation
Army” em sua Gibson SG. Estou no carro com ele ouvindo
as demos do Sonny Blue nas velhas caixas de som da
caminhonete. Estou em seus ombros no meu primeiro
Farmland. E, pela primeira vez em muito tempo, pensar no
meu pai não me afunda, mas me eleva. Talvez não
tenhamos tido todo o tempo que queríamos juntos, mas
sempre vamos ter isso, esses acordes que nos ligam um ao
outro.
Antes que eu me dê conta, toco as últimas notas da
música, Olivia se levanta do banquinho, me viro para acenar
para o público, vejo o painel de jurados — Davey Mack, Pop
Top e Bonnie Harrison — sorrindo na minha direção e vou
atrás de Olivia para os bastidores.
A magnitude do que acabou de acontecer me invade
assim que chegamos ao backstage. Nós conseguimos. Isso é
verdade.
Mal paro para colocar o violão de volta na case, na
pressa de encontrar Olivia. Quando finalmente a vejo,
seguro sua mão e ficamos frente a frente, porque a essa
altura do campeonato seria necessário um esforço hercúleo
para me afastar dela, e acho que já não tenho mais essa
capacidade.
— Conseguimos. Você... Você é mesmo de verdade?
Não sei quem beijou quem, mas de repente meus lábios
estão colados nos dela sem qualquer cerimônia, e não
quero parar. Esse beijo é diferente daquele de antes de
subirmos ao palco, suave e delicado. Desta vez, sinto que
eu poderia explodir.
Beijar Olivia é como uma revelação. Não sei como vivi a
minha vida antes de beijá-la. Não sei como vou viver minha
vida sem beijá-la, quando tudo isso acabar. Quero fazer isso
de novo, e de novo, e de novo. E então, me dou conta: eu
posso fazer isso.
Estou zonza só de pensar. Eu posso beijá-la. Posso
abraçá-la tão forte que praticamente respiramos juntas, e
isso não é apenas tolerado, é bem-vindo.
Então faço de novo. E de novo. Fico um pouco aérea,
porque, para falar a verdade, isso é algo que nunca pensei
que aconteceria. Não é como aprender uma música nova,
quando é possível dizer que notas vão em cada parte e por
que estão naquela ordem e o que isso significa. Beijar pode
ser uma ciência, pode ter alguns elementos de estratégia, é
claro, mas isso está tão fora da minha área de atuação que
não consigo definir. Talvez eu esteja fazendo tudo errado.
— Pare de pensar tanto — diz Olivia, batendo com os
dedos na minha têmpora e sorrindo, como se me
conhecesse. Percebo que é porque ela conhece. Ela me
conhece mesmo. — Isso é bom. Estamos bem. — Ela para
por um momento e noto uma expressão de medo em seu
rosto. — Não é? Estamos bem, certo?
Concordo tão efusivamente com a cabeça que parece
que vou separá-la do meu corpo.
— Estamos bem.
Quando o sorriso volta a seu rosto, aquilo é facilmente a
melhor coisa que eu já vi. Estou tão entregue a essa garota
que seria vergonhoso, não fosse a forma como o corpo dela
se encosta ao meu como se não quisesse se soltar, me
dizendo que ela está no mesmo estágio que eu neste
momento.
— Beleza — diz ela. — Bom.
Pego o violão e a case aberta no chão e saímos correndo,
rindo e pedindo desculpas em meio aos competidores que
ainda estão lá. Do lado de fora, me encosto à lateral do
celeiro, puxo Olivia pela cintura e ela me dá outro beijo. Meu
chapéu cai um pouco para o lado e suspiro como se fosse
uma heroína de romances quando Olivia o ajeita para mim.
Em quem eu me transformei?
— Vamos para algum lugar — diz ela, os olhos brilhando
e focados nos meus.
— Para onde? — pergunto.
Mas não importa. Não faz diferença para onde vamos.
Penso nos quilômetros e quilômetros de área deste
festival, em como o terreno se estende diante de nós,
parecendo infinito. Já fizemos tanta coisa nesse fim de
semana, andamos por tantos lugares. Fico pensando o que
mais falta fazermos. Que aventura ainda nos sobrou. Mas
confio que Olivia vai encontrar. Ela sempre encontra.
Foi como me encontrou.
Olivia põe as mãos no meu rosto. Olha para a entrada do
palco na lateral do galpão, procurando algo que não sei o
que é. Fico observando enquanto olha, o movimento de sua
garganta enquanto engole a saliva, os olhos fechados por
um segundo. Ela respira fundo e meu coração bate
completamente fora de controle.
Quando olha de volta para mim, quero beijá-la de novo.
Não me inclino imediatamente, mas Olivia se aproxima e
para pouco antes de chegar aos meus lábios.
— Não decidi ainda. — Eu sinto mais do que ouço suas
palavras, e ela completa: — Mas temos o resto do fim de
semana para descobrir.
OLIVIA

SÁBADO À TARDE

Toni beija bem. Não, espera aí. Vou ser um pouco mais
específica.
Toni beija incrivelmente bem. O tipo de beijo que garante
uma vaga nas Olimpíadas, que poderia ganhar uma bolsa
de estudos em qualquer faculdade, uma indicação ao Oscar,
um beijo digno de filme. Quando ela me beijou e se afastou
nos bastidores, foi tão rápido que achei que talvez tivesse
sido um acidente, e tive certeza de que ela não faria de
novo. Tinha sido tão depressa, e ela pareceu tão chocada
logo depois, que eu sabia que nunca mais teria a
oportunidade de fazer aquilo de novo. Mas eu tive. Estou
tendo.
Estamos do lado de fora do galpão, imprensadas contra a
parede e sem fazer qualquer menção a ir lá dentro para
procurar Imani e Peter. Tínhamos combinado de encontrá-
los depois da nossa apresentação, quinze minutos atrás,
mas... Bem. Aqui estamos.
Não conseguimos parar. Não consigo parar. Eu me sinto
febril, animada e fora de controle no melhor sentido
possível. As mãos dela passeiam pela lateral do meu corpo,
e não consigo pensar em nada. Nada mais importa para
mim nesse momento. É mais do que o simples alívio
temporário para as inquietações que eu costumava sentir
em outras relações. Isso aqui é mais profundo.
É como correr uma maratona e, enfim, cruzar a linha de
chegada. É como pular de um precipício e alguém te
segurar antes de atingir o chão.
Não sei qual é o meu propósito na vida nem nada disso,
mas sei que quero me sentir desse jeito pelo maior número
possível de dias até não poder mais. Esse calor que começa
na boca do estômago e irradia para fora, que me diz que fiz
algo de bom para alguém, que consegui deixar alguém de
quem gosto feliz, ou realizado, ou seja lá qual for o nome
que se queira dar — não quero largar esse sentimento
nunca mais.
Isso não pode ser um erro, penso comigo mesma. Nada
que me faça sentir assim pode estar errado.
Toni encosta a testa na minha, o peito arfando. Suas
mãos estão nas laterais do meu pescoço, tão gentis que
sinto um arrepio. Parece que este nem é meu corpo.
Ninguém nunca fez com que eu me sentisse prestes a sair
da minha pele a não ser que continuasse em seu abraço,
como é o caso com ela agora. É assustador e emocionante e
me faz jogar no lixo tudo que eu achava que sabia sobre
desejo.
Tudo que senti com cada um dos meus ex não é nada
comparado a isso aqui. Aquilo era brincadeira de criança.
Isso aqui é para valer. Isso aqui é o Super Bowl do amo...
— Eu me sinto meio louca — diz Toni, parando para
respirar. Ela ri de um jeito meio histérico, mas com o qual
me identifico totalmente. — Você está se sentindo meio
louca? É normal sentir isso? Eu nunca...
— Eu também.
Balanço a cabeça. É uma frase completa, ainda que seja
um pensamento indefinido, mas tudo em mim parece meio
indefinido no momento. Toni Foster me desestruturou.
— Mas, mas... Eu nunca mesmo. — A voz dela é baixa,
quase uma confissão.
— Você nunca...
— Nunca tinha beijado ninguém até hoje — diz ela,
olhando para baixo. — Aquele, nos bastidores, foi meu
primeiro beijo.
Se fosse fisicamente possível, eu poderia jurar que ela
tinha acabado de roubar o ar diretamente dos meus
pulmões. Sério. Sinto um nó na garganta, e não é o
prenúncio de um ataque de asma, mas algo totalmente
diferente. Algo maior e mais assustador.
Não sei como contar a ela que já beijei centenas de
vezes, dezenas de pessoas, na primeira fila de shows, no
armário do zelador da escola ao lado de uma vassoura velha
e no banco de trás de carros minúsculos. Mas nenhum deles
se comparou a isso.
E que não importa o quanto ela saiba ou não, ou quanta
experiência tenha com quantas namoradas, porque é isso
aqui que importa. É assim que a gente deve se sentir.
E que passei muito tempo procurando, mas aqui, com
ela, foi a primeira vez que senti ter encontrado algo.
— Tudo bem. — É só o que digo. As palavras ficam presas
na minha garganta.
Envolvo a cintura dela com meus braços e encosto a
bochecha em seu peito. Mexo a cabeça e espero que ela
entenda o que estou dizendo.
Está tudo contido nessas duas palavras, e confio que ela
vai conseguir ouvir.
Tudo bem como uma confissão: Quero você como nunca
quis ninguém na vida.
Tudo bem como uma promessa: Não vou te magoar. Vou
te proteger.
Tudo bem como um apelo: Não quero te soltar. Por favor,
não me solte.
E quando ela me puxa para mais perto e pressiona o
nariz contra minha cabeça, sei que entendeu. Esse tempo
inteiro, achei que Toni não era uma pessoa falante, que
tinha dificuldades para se comunicar. Mas talvez ela
estivesse falando comigo. Talvez eu só não soubesse como
ouvir até agora.
— Isso — sussurro. — Isso, tudo bem.
Ficamos ali juntas, meio que só respirando o mesmo ar
por um minuto. Até que uma voz familiar demais aparece
para quebrar o momento.
— Ei! Ei, você!
Os olhos de Toni se arregalam como se fosse um desenho
animado ao ouvir Festy Frankie atrás de nós. Ela me puxa
pela mão e saímos correndo.
— Para aí! Tipo, Raposo, não pegue!
Corremos desembestadas pelo Core como se tivéssemos
roubado alguma coisa, o que, tudo bem, tecnicamente nós
fizemos. Mas as pessoas mal notam as expressões idênticas
em nossos rostos, ou que Frankie está bem no nosso
encalço. Imagino que toda essa situação pareça uma
brincadeira divertida, que por isso todo mundo
simplesmente sorri para nós enquanto serpenteamos pelas
barraquinhas tentando despistá-la no meio da multidão que
se reúne para assistir ao show da Kacey Musgraves, prestes
a começar.
Para alguém que em teoria passa a maior parte dos
verões pulando de festival em festival, pegando sol e
tirando selfies estrategicamente perfeitas, até que Festy
Frankie é bem rápida. Sua calça boca de sino, de crochê, é o
que parece a estar atrasando, as barras prendendo toda
hora em volta do tornozelo, e é só por isso que eu e Toni
temos uma chance de escapar.
Toni tira o chapéu para tentar chamar menos atenção
enquanto nos misturamos à plateia. Agradeço aos céus por
ser baixa o suficiente para poder pedir a refeição infantil no
Applebee’s.
Pego meu inalador e solto um jato. Mas quando olho para
baixo e percebo que Toni ainda está de mãos dadas comigo,
sinto meu rosto corar. Eu juro que sinto um rubor por causa
de algo tão simples quanto andar de mãos dadas com uma
garota.
Dá para contar nos dedos quantas vezes fiz isso com
alguém. No meu caso, a maioria das pessoas com quem eu
saio sempre quer pular essas partes mais inocentes — as
mãos dadas, as noites de jogos de tabuleiro, ficar até três
da manhã rindo com o outro no telefone e se recusando a
ser o primeiro a desligar.
— Acha que nos livramos dela? — Toni olha por cima do
ombro e depois ao meu redor, como se Festy Frankie
pudesse se esconder atrás da minha imponente silhueta de
um metro e sessenta e dois. Eu rio e Toni olha para mim
com um sorriso ao perceber o quão ridículo foi o
movimento. — Caramba, ela corre. Eu imaginei que ir a
tantos festivais significaria um alto consumo de maconha e,
consequentemente, uma inabilidade em correr longas
distâncias.
— Subestimar as pessoas pode ser fatal, senhorita
Foster.
Ela bate de leve seu ombro no meu e olha para baixo,
para nossas mãos ainda juntas, então solta a dela para
ajeitar o chapéu. Mas não parecia que ela queria soltar, o
que me dá um quentinho de satisfação.
Somos empurradas e imprensadas pela multidão, e ela
solta um suspiro.
— Às vezes eu romantizo tanto a experiência de estar
aqui que esqueço como é insuportável em alguns
momentos. — Ela desvia de alguém com o braço levantado
que quase enfia o sovaco peludo na cara dela. — Quer sair
daqui e organizar as coisas?
Organizar as coisas, na concepção de Toni, é comprar um
algodão-doce para dividir, encher as garrafinhas de água e
encontrar um lugar embaixo de uma árvore para pegar uma
sombra.
— Quero te dizer uma coisa — começa.
Ela tira o chapéu, o coloca sobre a barriga e deita com a
cabeça em minhas pernas.
Pego um pedaço maior do algodão-doce só para não
dizer nada constrangedor. Metade de todas as péssimas
conversas que tive na vida começou com “Posso te
perguntar uma coisa?” e a outra metade com “Precisamos
conversar”. Concordo com a cabeça, esperando o baque.
Olhamos uma para a outra e ela levanta a mão para tirar
um fio de algodão-doce da minha bochecha. Seu toque é
tão gentil que mal sinto.
Ela sorri.
— Gosto muito dessa versão sua.
TONI

SÁBADO À TARDE

Não sei há quanto tempo estamos sentadas debaixo


dessa árvore, mas isso já não parece mais importante.
Tempo e planos e solidão, todas as coisas que eu achava
serem muito importantes para mim no começo deste fim de
semana, desapareceram em algum lugar entre o galpão-
boate e este momento.
Talvez fosse isso que meu pai queria dizer quando falava
que a música está sempre com a gente. Olivia é uma
melodia que transformou meu universo em canção, e quero
passar muito tempo tentando descobrir todas as suas notas.
Não quero rearranjá-las, mas com certeza quero analisá-las.
Descobrir como e quando tocá-las.
— Um centavo pelos seus pensamentos? — Sorrio para
ela e tiro seus óculos escuros para colocar no meu próprio
rosto. A armação branca e enorme em formato de coração
certamente não combina nem um pouco comigo, mas gosto
da ideia de usar algo de Olivia.
— Um centavo? Você não tem respeito pela classe
trabalhadora? São no mínimo quinze dólares pelos meus
pensamentos, senhora — responde ela.
Dou uma risada e parece que ganhei alguma coisa. Devo
ter feito algo certo para merecer esse sentimento.
— Você está certíssima. — Como o último pedaço do
algodão-doce e dou um sorrisinho. — A tabela de preços
para os pensamentos de garotas adolescentes está
desatualizada há tempos.
Ela passa o dedo grudento pelo meu nariz e seu rosto
fica sério.
— Preciso te contar... — Ela para um instante antes de
perguntar: — Você gosta de mim?
Ela pergunta como se fosse uma questão possível de
responder com sim ou não. Como se gostar fosse o
suficiente para chegar perto de tudo o que sinto por ela.
Não ouço nada a meu redor, não consigo distinguir o som
abafado da banda que está tocando do outro lado do
gramado. Não vejo as pessoas com biquínis de franjas e
camisetas vintage do Farmland com a lista de bandas dos
anos anteriores que estão andando por ali esperando o
próximo show começar. Tudo o que vejo é ela. Os olhos
castanhos que ficam quase pretos depois que o sol se põe.
Os lábios apertados um contra o outro quando está
pensando. A tensão em seus ombros enquanto se prepara
para o que acha que vou dizer.
Eu não só gosto dela.
Eu poderia fazer isso, digo a mim mesma. Eu poderia ter
algo legal, e não seria simples, mas espetacular. Não seria
perfeito, mas seria precioso. Não estou exatamente pronta,
mas minha mente vai ter que se esforçar para alcançar meu
coração dessa vez. Dessa vez eu vou escolher me jogar.
Meus batimentos cardíacos estão cada vez mais
acelerados, mas da melhor maneira possível. Chego mais
perto e pego sua mão, que repousa sobre o vestido na
altura na coxa. Eu vou dizer. Aquelas três palavrinhas que
estão na minha cabeça o dia inteiro, mas que estava com
medo de falar.
— Olivia, eu...
Mas não consigo dizer. Não consigo me desculpar por
seja lá o que fiz para que ela questionasse se estou nessa
por completo, nem fazer uma promessa, nem perguntar a
ela todas as coisas que quero perguntar.
Ouço um estampido familiar, e dessa vez não dá para
confundir com um efeito sonoro. De repente, os olhos de
Olivia se arregalam, assustados, ao ouvir um tiro. Ela me faz
levantar e começamos a correr. E todo mundo à nossa volta
também. Alguém está gritando. Talvez seja Olivia, mas não
sei dizer. Meus pés parecem pesados demais para o resto do
corpo, e não consigo acompanhar. Não sei bem o que está
acontecendo, e está acontecendo tão rápido.
— Toni! — grita ela, me puxando desesperadamente, a
correria da multidão quase derrubando nós duas. — Por
favor, precisamos correr! Você precisa ir mais rápido!
E, de repente, não estou vivendo um momento, mas uma
memória. Estou correndo do posto de gasolina na esquina
da 56 com a Georgetown, em disparada pela rua tentando
escapar, tentando achar alguém que possa ajudar meu pai.
Não consigo respirar direito. Não consigo ver nada além das
minhas próprias lágrimas. Estou tendo um ataque de
pânico.
Alguém esbarra com o ombro em mim e tropeço. Olivia
está chorando na minha frente, me implorando para eu me
levantar.
Acho que talvez haja sirenes ao longe.
Acho que eu a amo.
Acho que isso significa que vou perdê-la.
Não consigo respirar direito. Estou me deixando levar
pelo momento. É aquela sensação avassaladora de medo
que me deixou paralisada hoje mais cedo no show do DJ
Louddoc. E não sei como aconteceu ou onde ela foi parar,
mas me perco de Olivia na confusão de gente ao redor.
Preciso concentrar todos os meus esforços para me
lembrar da voz na minha cabeça hoje de manhã, Olivia
repetindo palavras suaves até eu voltar para ela. É o
suficiente para eu conseguir me mexer. Sou levada pela
multidão na direção da saída, e a única coisa que quero
fazer é voltar para o acampamento. Olivia só pode ter ido
para lá, e Peter e Imani devem estar lá também.
Então eu corro.
OLIVIA

SÁBADO À TARDE

Quando chego de volta ao acampamento, suada, triste e


muito, muito assustada, a primeira coisa que faço é gritar
por Toni. Eu me perdi dela; não acredito que me perdi dela,
é minha culpa. Devia ter segurado mais forte, mas não
conseguia ver nada, não conseguia fazer mais nada além de
seguir o fluxo da multidão, e não consegui mais encontrá-la.
Ela estava bem ali, sua mão na minha, e estava tudo bem,
bem demais, estávamos fazendo tudo certo, estava tudo
tranquilo, e de repente não estava mais. O mundo ao nosso
redor ficou uma loucura. Estou parada em pé, gritando até
ficar rouca, como se a minha voz fosse o suficiente para
desfazer todo o estrago.
— Olivia, Liv, por favor. — Imani está na minha frente, as
mãos apertando meu ombro. — Liv, você está bem. Para de
gritar. Você precisa parar de gritar.
Atrás dela, Peter olha para o telefone como se ali
estivessem todos os segredos do universo. Seu rosto parece
tão jovem e tão aterrorizado, e ele não para de repetir:
— Meu telefone não está funcionando. Não tem sinal.
Não consigo a porra de um sinal!
Tento respirar, tento me concentrar na voz suave de
Imani enquanto ela me puxa para um abraço. Imani.
Sempre tão firme. Ela me aperta até quase quebrar, mas é
o suficiente para dissipar a névoa na minha mente. Agora
consigo avaliar nosso entorno com mais clareza.
Está todo mundo em suas barracas e entrando nos
carros, com expressões desesperadas e estressadas.
Pessoas chorando. Farmers jogando os equipamentos de
camping de qualquer jeito na mala dos carros ou na
carroceria das caminhonetes, prontos para ir embora.
Você acha que sabe o que é o caos — acha que ir ao
Walmart durante a Black Friday ou comprar um Xbox no dia
do lançamento são o auge da insanidade — até estar em
meio à verdadeira definição de caos. Até ver as pessoas à
sua volta gritando pelos amigos, fazendo perguntas que
ninguém sabe responder, torcendo pelo melhor, mas se
preparando para o pior.
— Imani, já estão falando no rádio — diz Peter, se
inclinando para fora da janela na caminhonete de Toni.
Imani olha para mim e passa a mão pelo meu rosto
rapidamente.
— Vou ali escutar o que estão falando rapidinho, tá bem?
Fica aqui. Eu já volto. Vai ficar tudo bem.
Não sei por quanto tempo fico ali parada, perdida e
aérea, até que ouço Peter gritar:
— Toni! Meu Deus, você está bem.
Toni vem mancando em nossa direção e nem penso em
nada, só corro até ela e a abraço. Coloco meu rosto no
espaço entre seu pescoço e seu ombro, e só então me
permito chorar. Estou tão feliz que ela esteja aqui, que
esteja bem, que ter me perdido dela não tenha acabado em
algo horrível. Ela ainda está aqui.
— Achei que tinha perdido você — sussurra Toni.
Ela soa tão destruída quanto eu me sinto.
— Estou aqui. — Há tanta coisa que eu gostaria de dizer,
mas não consigo fazer isso agora.
Ela se afasta e seca os olhos.
Peter vem correndo e beija a testa de Toni. Eu me afasto
para dar um pouco de espaço aos dois, que se abraçam
com força.
— Não me assuste desse jeito de novo, cara — diz Peter.
Imani sai da caminhonete e até ela aperta o ombro de
Toni. A gratidão por estarmos todos seguros é tão forte que
quase se pode sentir como algo físico. Talvez a gente não se
conhecesse antes desse fim de semana, mas agora somos
um grupo. É o espírito do Farmland: enquanto estivermos
aqui, somos uma família.
— Disseram que não é um atirador — diz Imani com sua
voz séria de professora, a mesma que ela usa para me
ensinar cálculo. Fecha os olhos e, quando volta a falar, sua
voz está vacilante. — Foi só um disparo. Não é outro...
Escola Sandy Hook, ou boate Pulse, ou Charleston, ou
festival Route 91 Harvest, ou, ou, ou.
A lista é infinita. Até mesmo um lugar como este, o
primeiro onde me senti livre, segura e totalmente em casa
em muito tempo, não é imune ao medo de armas e o que
elas podem fazer. Mesmo que não tenha nos atingido dessa
vez, é difícil de ignorar a proximidade do que poderia ter
acontecido.
— É — diz Toni, em voz baixa. — Por sorte.
— O que disseram sobre o restante do festival? —
pergunta Peter.
Imani diz que não sabem ainda, mas que é melhor
continuarmos ouvindo a rádio, porque é o único meio de
informação no momento, já que as torres de celular
parecem estar sobrecarregadas. Todas as pessoas nos
acampamentos ao nosso redor estão reclamando da mesma
coisa enquanto arrumam suas malas.
Nenhum de nós se mexe. Ficamos parados em silêncio
perto um do outro, em um círculo.
— Acho que temos que ir embora — diz Imani. Ela se vira
para mim. — Não importa muito o que eles vão fazer, acho
que não temos motivo pra ficar aqui a essa altura. O festival
acabou.
O que ela está dizendo faz sentido. Mas pensar nessa
possibilidade? É inimaginável para mim a ideia de ir embora
daqui sem saber o que poderia ter acontecido entre mim e
Toni, ou Imani e Peter, ou até mesmo com a caça ao
tesouro. É como tirar a chave da ignição antes mesmo de
parar o carro. Não estou pronta para ir embora. Não estou
pronta para o mundo real. Ainda não.
Embora muitas pessoas estejam fazendo as malas,
também tem um monte de gente parada exatamente onde
está. O número de carros em fila para sair do acampamento
e de carros estacionados é mais ou menos o mesmo. Alguns
Farmers ainda estão abalados, apesar de as coisas não
serem tão terríveis quanto se pensava inicialmente, mas
não estão indo embora. Precisamos ficar também. Pelo
menos até de manhã.
— Não temos condições de dirigir até Indianápolis agora
— digo. Levo as mãos para a frente, com as palmas para
cima, para enfatizar. Elas ainda estão tremendo. — A gente
devia ficar pelo menos até de manhã.
Imani morde o lábio e olha para nosso acampamento, ao
longe. Sei que ela quer dizer não. Sei que seu lado racional
está vencendo, mas não posso ir embora. Simplesmente
não posso.
— Vamos ficar também — diz Peter, a voz séria. Ele olha
para Toni, e ela concorda com a cabeça. — Provavelmente
estamos seguros agora.
“Nada é seguro”, tenho vontade de dizer. Penso em
todas as pessoas com as quais eu me sentia segura e que
acabaram se revelando nem um pouco confiáveis, cada
uma a sua maneira. Todos os lugares para onde fui
esperando um refúgio e que acabaram tornando as coisas
ainda piores. Mas tem algo reconfortante nessa ideia de
ficarmos juntos esta noite, nós quatro enfrentando a
tempestade. Talvez não exatamente seguros, mas o mais
próximo possível disso se ficarmos juntos.
Imani suspira.
— Ok — diz ela. — Só por esta noite.
Dou uma olhada para Toni, e ela está me encarando.
Quero atravessar esse círculo que criamos e me aninhar nos
braços dela, mas não faço isso. Ainda não, pelo menos.
Porque estando ou não nos braços dela, aquele olhar
significa alguma coisa.
E acho que talvez signifique tudo.
TONI

SÁBADO À NOITE

Nós quatro ficamos juntos no acampamento de Olivia e


Imani a noite inteira. Ficamos ouvindo a rádio do Farmland,
esperando mais notícias, e acendemos o fogo numa grelha
que trouxemos.
Cada um está lidando de forma diferente. Imani olha o
celular religiosamente, tentando conseguir sinal para ver se
acha alguma informação sobre o que aconteceu na grande
imprensa; nos intervalos, observa Olivia como se estivesse
com medo de que ela fosse desaparecer quando não
estivesse olhando. Na cadeira ao meu lado, Olivia está
sentada com as pernas dobradas e um cobertor sobre os
ombros. Eu dedilho as cordas do violão, tentando encontrar
alguma melodia que nos tire desse lugar por um momento.
Mas é a reação de Peter que mais me assusta. Meu
melhor amigo, cujos sorrisos e piadas normalmente
parecem infinitos, está sentado isolado e em silêncio.
— Isso é uma loucura — murmura. Agora já está escuro e
ainda não se sabe nada de novo. Os Farmers do
acampamento ao lado arrumaram as malas correndo há
mais ou menos uma hora, e só deixaram para trás uma
garrafa vazia de alguma cerveja artesanal local. Ele olha
para nós três e repete, desta vez mais alto: — Isso é uma
loucura. Quero saber quem fez isso.
Ele se levanta do chão e passa a mão no cabelo. Soltou o
coque mais cedo e ainda não o prendeu de novo. Ele parece
esgotado, os cachos do cabelo se desfazendo de tanto que
mexeu neles hoje. Até trocou o cropped por um velho
casaco de moletom preto com capuz. Quando vejo seus
olhos por cima do fogo, percebo que não parece nem
assustado. Ele está furioso.
— Vamos mesmo ficar sentados aqui e deixar isso pra lá?
Devíamos fazer alguma coisa. — Seus punhos estão
cerrados nas laterais do corpo, e ele anda de um lado a
outro. — Sabe, Andrew Jackson nunca recuou em situação
nenhuma. Ele participou de mais de cem duelos. Isso é...
— Ah, meu Deus, pode dar um tempo, Peter? — reclama
Imani. — Chega desses presidentes, pelo amor de Deus. Uns
velhos brancos senhores de escravos não vão nos ajudar em
nada agora. — Ela se levanta e joga as mãos para cima. — A
gente não sabe de nada. Não entendeu isso ainda? Não
sabemos dos fatos. Não tem nada que possamos fazer.
— Alguns de nós não são robôs, Imani! — Nunca tinha
ouvido Peter falar com uma voz tão raivosa, e isso me faz
estremecer. — Tem gente que se importa com ações. Tem
gente que consegue tomar decisões baseadas em
sentimentos e não em fatos.
Imani respira fundo e, pela primeira vez em todo o fim de
semana, seu rosto revela o que ela está sentindo. Mas, em
vez de retrucar, ela se fecha. Senta perto de Olivia e as
duas se apoiam uma na outra. Peter vira de costas para o
círculo, para o fogo, e fecha os olhos. Ele foi longe demais
com aquele comentário. O Peter que eu conheço não perde
o controle com as pessoas, principalmente não desse jeito,
jogando indiretas e acusações cheias de raiva.
— Você precisa ficar calmo, beleza? — Deixo meu violão
no chão e me levanto para ficar ao lado dele. Esfrego o
rosto com as mãos e falo baixo, para que só Peter consiga
me ouvir: — Imani está certa. Ou vamos embora, ou
esperamos. São as únicas opções.
Entendo a frustração dele, posso senti-la em mim
também. Como alguém se atreve a tirar esse lugar de nós?
Esse fim de semana? Passei a noite inteira reprisando na
minha cabeça o momento logo depois do tiro. Cada osso do
meu corpo estava sincronizado com Olivia. Todos os meus
pensamentos focados na segurança dela. “E se eu a perder?
E se ela não correr rápido o suficiente? Por que deixei mais
alguém entrar no meu coração se isso só leva a mais
sofrimento?”
Peter concorda com a cabeça, mas não se senta de novo.
Ele respira fundo, devagar.
— Vou dormir cedo — diz ele, a voz sem emoção. Não
parece estar se dirigindo a ninguém em particular. Não faz
contato visual enquanto pega o boné no chão e anda em
silêncio de volta para nossa barraca. — Vejo vocês de
manhã.
Depois disso, parece que não há outra saída a não ser ir
dormir. Em determinado momento, o fogo se apaga e cada
uma se dirige para sua barraca, todas nós cansadas dos
acontecimentos do dia e nos preparando para amanhã.
Talvez a gente vá embora de manhã, talvez o Kittredge
ainda se apresente amanhã à noite. Talvez esse seja o
último Farmland que vamos ter. Não existe certeza de nada.
Mas quando coloco o pijama e deito no saco de dormir
em cima do colchão de ar, ao lado de Peter — que já está
roncando —, tenho certeza de uma coisa: acho que não sou
forte o suficiente para isso.
Não sou forte o suficiente para levar uma vida focada na
música, para me apaixonar por Olivia, para nada disso.
Fico deitada em silêncio por uma hora, muito tempo
depois de as últimas vozes ao redor terem silenciado. Até
que vejo o zíper da barraca subindo e me sento
rapidamente para tentar enxergar, em meio à pouca luz,
quem pode ser aquele invasor. As tranças de Olivia estão
presas num coque baixo e envoltas por um lenço com
estampa de leopardo. Seu rosto está completamente sem
maquiagem e ela enfia a cabeça para dentro da barraca.
Não diz nada, apenas faz um sinal com a mão para que eu
saia.
Peter segue roncando ao meu lado, então pego os
sapatos e saio sem pensar muito.
Há algo gelado no ar, mas não está exatamente frio.
Coloco uma blusa de flanela, para garantir, e vou atrás de
Olivia. Ela não fala nada a princípio, e nem eu. O que
podemos dizer quando sentimos que a base do nosso
mundo foi estremecida? Não há nada que alivie isso,
nenhuma frase mágica que eu dissesse nos traria qualquer
conforto. Então só continuo andando.
Nossos braços se tocam tanto que, em determinado
momento, entrelaçamos os mindinhos e deixamos nossas
mãos balançarem entre nós. Tem algo nesse movimento
que parece ainda mais íntimo do que dar as mãos. Só de
pensar me dá vontade de chorar.
O festival está adormecido. Todos os shows programados
para esta noite foram cancelados enquanto os
organizadores decidem o que fazer. Apesar de sabermos
que não foi um ataque, todo o evento parece estar meio
fora do eixo. Neste momento, era para a festa no galpão de
música para dançar estar fervendo, o som do grave tão alto
que daria para ouvir de qualquer lugar na área de camping.
As luzes dos brinquedos do Core deveriam estar brilhando a
ponto de mal conseguirmos ver as estrelas.
Devíamos estar fazendo o cumprimento do Farmer para
todo mundo que passasse pela gente na trilha de cascalho,
mas, em vez disso, não há nada nem ninguém, a não ser
uma ou outra pessoa indo ou voltando do banheiro. A única
coisa que escuto é a respiração de Olivia e o som de nossos
sapatos.
— Olivia — digo finalmente, depois de quinze minutos
andando sem qualquer destino aparente. — Aonde estamos
indo?
Ela para e põe as mãos nas minhas bochechas. Espero
que me dê um beijo, mas não é o que ela faz.
— Se esta é a última noite do Farmland... — começa. Sua
voz está baixa, séria, e eu odeio isso. Odeio o que
aconteceu e odeio que essa garota na minha frente, a
garota com o melhor sorriso de todos e que deveria estar
sempre sorrindo, esteja querendo se ater ao que sobrou. A
gente não devia precisar fazer isso. — Não quero
desperdiçar.
Ela diz que quer ir até o letreiro do Farmland para tirar
uma foto, um rito de passagem para todo Farmer de
primeira viagem, só para garantir caso não consiga
amanhã. Ou hoje, tecnicamente, porque já passa da meia-
noite. Mas quando chegamos ao portão que nos levaria ao
Core, há barreiras na frente. E um cartaz dizendo “PROIBIDA A
ENTRADA ATÉ SEGUNDA ORDEM”.
— Merda. — A voz de Olivia é um sussurro, ainda que
não haja ninguém aqui para ouvir, e não é como se alguém
fosse se importar se ouvisse.
Ela encontra um vão nas barreiras perto da cerca, se
espreme para passar por ele e entra no Core. Dou uma
olhada em volta para checar se tem algum segurança por
perto e faço o mesmo.
Lá dentro, seguimos direto para o letreiro. Tudo dentro do
Core está desligado, algo que nunca vi no Farmland. Até
mesmo o letreiro e seu glorioso brilho estão apagados —
suas lâmpadas grandes e reluzentes descansando. Ela para
e tira uma foto — o flash desorientando nosso olhar
brevemente em meio à escuridão —, mas não demonstra
mais querer aparecer nela. Não pergunto o que a fez mudar
de ideia.
Ela continua andando até chegarmos à roda-gigante.
Também está desligada, um brinquedo fantasma, mas, já
que chegamos até aqui, Olivia pula o pequeno tapume que
bloqueia a entrada.
Ela se senta no banco da cabine e abraça os joelhos no
peito. Não está vestindo nada além de um short e uma
camiseta grande, então tiro a blusa de flanela e coloco
sobre seus ombros quando começa a tremer. Ela aperta a
blusa contra o corpo e eu me sento a seu lado.
— Tinha que ter mais segurança — digo. Uma frase
curta, sem emoção, mais fácil do que aquilo que eu
realmente queria dizer.
Ela concorda com a cabeça e a apoia em meu ombro.
Não tivemos nenhum momento de silêncio entre nós desde
que nos conhecemos — não um momento realmente quieto
como esse —, e parte de mim quer ficar parada aqui por um
bom tempo. Nesse espaço onde somos só nós duas, sem
distrações, enquanto o ar em volta vibra com a eletricidade
que criamos. Mas sei que é efêmero. Como tudo na vida,
esse momento também vai passar.
— Eu meio que sou especialista em me meter em
situações em que não devia estar. — Ela ri, mas com
tristeza.
Balançamos para frente e para trás na cabine, e eu me
permito imaginar uma noite normal no Farmland, em que
estaria a noventa metros do chão olhando para a loucura
em neon lá embaixo, ao lado de uma garota de quem gosto
tanto que me assusta. Uma garota de quem gosto tanto a
ponto de estar disposta a abandonar minha regra de ouro.
Uma garota de quem já estou me afastando porque isso não
pode durar. Eu não posso... Eu não vou me machucar de
novo por perder alguém que amo.
Mas decido me deixar levar por este momento. Este
último.
— Toni?
— Sim?
— Preciso te contar uma coisa.
OLIVIA

SÁBADO À NOITE

Toni não me apressa quando percebe que está sendo


difícil começar a falar. Desvio o olhar e tento achar as
palavras certas para permitir que ela veja o pior de mim.
O problema em ser o tipo de pessoa que se apaixona
facilmente é que, em determinado momento, os outros
captam isso — especialmente numa escola pequena como a
Park Meade. Eles veem a rotatividade grande de namorados
e namoradas e começam a tirar conclusões sobre você. Ou
sobre o que você estaria disposta a fazer, acho.
Mas eu não sabia disso quando Troy me chamou para
sair. Só entendi quando já era tarde demais.
Estávamos juntos há um total de duas semanas quando
ele se encostou ao meu armário depois da terceira aula,
pegou na gravata do meu uniforme e me puxou para perto,
cochichando no meu ouvido e abafando o som dos outros
alunos que corriam ao nosso redor e gritavam uns com os
outros nos corredores.
— Você devia ir lá em casa hoje — disse ele, os lábios
tocando minha têmpora. Park Meade tem algumas regras
em relação a demonstrações públicas de afeto, mas não me
importei. Era gostoso e ousado que Troy quebrasse as
regras tão descaradamente para ficar mais perto de mim. —
Depois do jogo de futebol.
A casa de Troy era quase sempre o lugar das festas de
sexta à noite durante a temporada de folga dos jogos.
Nunca precisei de um convite formal para ir, nem mesmo
quando não estávamos saindo. Ele era a epítome do
estereótipo de galãzinho da escola: lindo, meio burro, com
um senso de humor mais maldoso do que engraçado, e
inacreditavelmente bom no basquete. Seu nome esteve em
todos os times de estrelas e listas de “jogadores para ficar
de olho” desde o ensino fundamental, e por sua causa a
escola ganhou pela primeira vez o campeonato estadual no
ano passado.
O basquete não foi inventado em Indiana, mas algumas
pessoas ainda dizem que lá é o berço do esporte. Momentos
decisivos não é um dos filmes de esporte mais populares de
todos os tempos só porque é divertido. As pessoas amam o
filme porque é verdade. (É sério, alguns ex-alunos ainda
choram só de falar no momento em que Christian Watford,
jogador de basquete da Universidade de Indiana, marca
aquele ponto decisivo no último segundo em 2011 contra a
Universidade de Kentucky, que na época era a primeira do
ranking.)
Ser uma estrela do basquete numa cidadezinha de
Indiana, especialmente se já está com um pé na liga, faz de
você mais do que uma celebridade. Torna você intocável.
— Claro que vou! — respondi, rindo. — Imani vai ter que
me levar de carro, obviamente, o que significa que vou
precisar esperar ela acabar o dever de casa, porque você
sabe que ela não vai terminar a semana com dev...
— Não, estou chamando só você. Estou sozinho em casa
hoje. — Ele puxa o cabelo castanho claro para o lado, para
não cair nos olhos. — Acho que devíamos ficar só nós dois.
O jeito como ele falou “só nós dois” disse tudo o que eu
precisava saber. Ele vinha sendo mais e mais insistente
sobre irmos mais rápido desde o dia seguinte ao que me
chamou para sair. Sabia o que ele queria e sabia que ele
achava que eu já era bem experiente em certos assuntos,
mas eu estava com muita vergonha de contar a verdade. A
verdade era que, apesar da quantidade de pessoas que
namorei e que terminaram comigo, eu nunca tinha transado
com nenhuma delas.
Talvez porque não tivesse sido a hora certa, ou a pessoa
certa, ou porque as relações não duraram tempo suficiente
para chegar a esse ponto, mas, qualquer que fosse o
motivo, eu não era a pessoa que Troy achava que era. E
aquilo era um lembrete constante de que mais uma pessoa
na minha vida queria algo que — por mais que tentasse —
eu não conseguia proporcionar.
— Ah — eu disse. Dei um passo para trás de leve e fechei
o armário com delicadeza. — Troy, eu... não posso fazer isso
hoje.
Mesmo naquela época, eu conseguia enxergar o clichê
que tinha me tornado: a namorada delicadinha e inocente
com medo de perder a virgindade com o atleta gostosão.
Mas eu também sabia que gostava de ser a garota nos
braços dele, gostava de ser a pessoa que os outros
invejavam pelo menos uma vez na vida. Gostava do fato de
Kayla Mitchell — capitã do time de tênis e rainha do baile do
penúltimo ano — ter dito a todo mundo que Troy nunca
namoraria ninguém a não ser ela, e de ele ter me chamado
para sair uma semana depois.
Aquilo me fazia sentir poderosa, sentir que eu tinha
valor.
— Bom, então o que vamos fazer, gatinha? Eu sou um
garoto crescido, preciso de alguma coisa para me impedir
de enlouquecer.
Ele chegou a dar uma rosnadinha, como se aquilo tudo
fosse uma grande piada, e então eu ri como se estivesse
achando engraçado. Porque aquele era o papel que eu
estava interpretando.
Se ele era o Atleta Gostosão, eu era a Namorada
Devotada. Ia até o armário dele de manhã com anotações
das aulas nas quais eu sabia que ele não tinha prestado
atenção. Aparecia depois dos treinos com biscoitos
fresquinhos ou comida para viagem de um restaurante que
ele gostava, me oferecendo como um prêmio que ele já
ganhara. A gente se beijava no carro dele, com os
companheiros de time sacaneando ao lado, e eu o deixava
me levar para casa. Eu me ajustei perfeitamente à
personagem que precisava ser para manter o interesse
dele. A não ser por esse detalhe.
Mas eu sabia a verdade por trás disso: se ele não
conseguisse comigo, ia buscar em outro lugar.
Não demorou muito para eu tomar a decisão de, mais
tarde, em casa, naquele mesmo dia, mandar fotos minhas
para ele diante do meu espelho de corpo inteiro, vestindo o
único conjunto de calcinha e sutiã mais ou menos sexy que
eu tinha. Adoraria dizer que pensei muito a respeito daquela
ideia antes, pesei os prós e contras e decidi que o risco
compensaria, mas isso não é verdade. Eu não sou assim.
Eu não penso lá na frente, não levo em conta as
consequências. Simplesmente me jogo na esperança de que
a queda valha a pena.
Então, quando ele me mandou emojis com a língua de
fora em vez de uma resposta de verdade, ainda achei que
tinha feito a coisa certa. Foi só quando Imani me ligou,
desesperada, à uma da manhã, que percebi que finalmente
tinha ido longe demais. Dessa vez, eu tinha me jogado
diretamente de um precipício e não tinha nada lá embaixo
para me salvar.
E paguei o preço.
As fotos foram parar no Confidential e, na segunda-feira,
estavam coladas por todo o meu armário. A escola inteira
tinha me visto praticamente nua, e nada poderia ter me
preparado para a sensação de exposição que veio com
aquilo. É diferente ser ousada e famosa quando você
escolhe isso, eu aprendi, mas quando essa escolha é tirada
de você, é como se estivesse sendo despida da pior
maneira possível.
Os efeitos colaterais vieram bem rápido: Troy
desmentindo publicamente que tivesse algo a ver com o
vazamento das fotos. A insistência dele de que eu mesma
vazei as fotos para chamar atenção. O término vergonhoso
e pouco civilizado. A diretora Meyer pedindo o adiamento, e
mais tarde um segundo adiamento, da audiência judicial
para decidir sobre o envolvimento de Troy no caso, de forma
que acontecesse depois da temporada de basquete. Minha
mãe parando de falar comigo. Nia praticamente me
renegando. As pessoas que achei que eram minhas amigas
me evitando por ter tido a audácia de tentar responsabilizar
Troy em vez de simplesmente lidar com o que eu tinha feito.
Eu ainda tinha minha melhor amiga, mas não muito mais
do que isso. Queria voltar atrás, dizer que não tinha sido
nada de mais, que não queria punição nenhuma, mas não
conseguia fazer isso. Toda vez que quase ia até a sala da
diretora, o que me fazia parar era a lembrança da expressão
animada e despreocupada de Troy dando entrevista no
canal WTHR depois de mais uma vitória num jogo.
Não existe uma saída satisfatória para alguém na minha
posição. Se testemunhar contra ele, posso destruir seu
futuro. Posso fazer com que ele perca suas bolsas de estudo
e sua única chance de jogar na primeira divisão do
basquete. Deixaria minha mãe numa situação tão
desconfortável no trabalho que talvez precisasse se demitir
de seu emprego dos sonhos. Eu ficaria ainda mais excluída
na escola, e da pior forma possível.
Nunca vou recuperar essas fotos, de qualquer forma.
Nunca vou recobrar a sensação de privacidade. Eu só
conseguiria estragar tudo para as outras pessoas. Tipos
como o Troy não são punidos, eles ganham uma bolsa de
estudos completa para a faculdade. Ganham a glória, a
empatia e uma fila de gente que sempre estará lá para
chamá-los de heróis.
Tipos como eu, por outro lado? Tipos como eu têm sorte
se terminarem com qualquer coisa que seja.
No fim dessa semana, haverá uma audiência e Troy
Murphy estará lá, com sua elegante camisa de botão branca
e a gravata vermelha reluzente que ele sempre usava nos
dias de jogo. Ele vai sorrir, vai seduzir todo mundo e sair
ileso dali. Porque eu não estarei lá para me defender. Eu me
recuso a implorar para que eles se importem, a explicar
como fui prejudicada e todas as coisas que perdi. Não, meu
silêncio é a única maneira de manter o mínimo de dignidade
que ainda me sobrou.
Ele já me tirou todo o resto.
TONI

SÁBADO À NOITE

Quanto mais Olivia fala, mais sinto meu coração partir.


Quero voltar no tempo e destruir todas as pessoas que a
magoaram. Quero encontrar esse garoto e mostrar a ele,
usando um pouco mais do que palavras, que o corpo e a
privacidade de Olivia sempre, sempre vão ser mais
importantes do que a habilidade dele de quicar uma bola de
basquete. Queria que ela tivesse muito mais do que
recebeu até agora.
Mas tudo o que tenho no momento são minhas palavras,
e esse nunca foi o meu forte.
Uma vez, quando eu era mais nova, estava chorando no
quarto à noite, com saudade do meu pai. Minha mãe abriu a
porta, veio andando devagar sobre o piso de madeira e se
sentou ao meu lado na cama. Ela me consolou em silêncio,
pousou a mão com delicadeza nas minhas costas,
esfregando em círculos, e depois disse:
— Às vezes as pessoas não sabem como demonstrar o
quanto elas te amam. — Eu solucei no travesseiro. — Mas
não significa que não amem.
Foi a primeira vez que eu e minha mãe admitimos a
existência daquele buraco na nossa casa e na nossa família
provocado pela ausência de Jackson Foster. E aquilo não
parecia justo. Fiquei imaginando quantas vezes ela deve ter
dito aquilo a si mesma, logo após uma ligação perdida ou
mais uma turnê estendida. Fiquei imaginando se ela se
sentia do mesmo jeito que eu: como se nunca fosse boa o
suficiente para fazer alguém ficar.
Olivia funga e se aproxima de mim, como se nos meus
braços pudesse se esconder de todo o mal que já lhe
aconteceu. E ali finalmente entendo o que minha mãe fez
de errado. Amar alguém é ter a coragem de admitir quando
você erra, e então fazer tudo o que está a seu alcance para
não repetir aquilo.
— Se alguém ama você, precisa demonstrar. E se não
souber como fazer isso, aprende, porque é isso que a gente
faz quando ama alguém — digo. — Você merece ser tratada
com carinho, Olivia. Não sei o que essas pessoas...
Minha voz fica um pouco mais dura, e então paro para
reorganizar meus pensamentos. Só de pensar em todos
esses ex, no que Troy fez com ela, meu corpo já fica todo
tenso. Nunca briguei fisicamente com ninguém, mas, neste
momento, tenho certeza de que eu poderia acabar com ele
com as minhas próprias mãos.
— Todo esse amor que você dá aos outros, você merece
guardar um pouco para si mesma. Você vale muito. Você
merece todas as coisas boas.
— Eu namorei tanta gente. — Ela seca os olhos com as
costas da mão. — E sempre terminou do mesmo jeito. Em
desastre. O problema sou eu.
— Não tem nada de errado em querer que as pessoas te
amem. Várias pessoas, inclusive. É seu direito.
— É, mas... Está sempre errado. Tudo sempre acaba
muito mal. Sou eu. É o que eu faço — diz ela, os olhos
fechados.
— Olha, você não é uma pessoa ruim por querer que
alguém te ame. Isso não é errado, tá bem? — Eu chego um
pouquinho para trás. Pego em seu queixo para que ela me
olhe nos olhos. — Está bem, Olivia? Eles é que estão errados
por te tratarem mal. Você precisa entender isso.
— Mas eu devia ser mais esperta e saber das coisas.
Eu... — Ela se desvencilha e balança a cabeça. — Eu sempre
faço isso. Você não sabe porque não me conhece
totalmente ainda, mas eu sempre vou longe demais. É algo
dentro de mim. — Ela põe a mão diante do peito. — Tem
algo aqui dentro que me impede de ser como as outras
pessoas. Eu esqueço toda a lógica e a racionalidade
quando... — Ela para.
Nem espero que ela conclua o raciocínio. Preciso que ela
entenda.
— Amar é estar presente. Ponto-final. Você merece
alguém que esteja presente.
Sei que isso é verdade. Sinto no fundo da alma como
nunca senti nada antes. Mas é aí que está o problema. Se
amar é estar presente e ser melhor para as pessoas de
quem gosto do que meu pai foi para mim e minha mãe, não
sei se sou capaz disso.
Não sei se algum dia serei esse tipo de pessoa.
OLIVIA

DOMINGO DE MANHÃ

Eu não me lembro de ter caído no sono com Toni na roda-


gigante, mas queria me lembrar. Porque adoraria ficar um
pouco mais naquele momento em que me senti segura e
protegida em seus braços, nós duas aninhadas no
banquinho. Em vez disso, estou sendo acordada por um
segurança grandão — com sobrancelhas arqueadas que,
para minha surpresa, são também imaculadas — sacudindo
meu ombro.
— Vocês não podem ficar aqui — diz. — Não deviam nem
ter conseguido entrar.
Fico desorientada por um segundo, até que Toni tira o
braço que estava ao redor do meu corpo e murmura:
— Podia ter rolado uma abordagem mais delicada.
O segurança fica ali parado com expressão de poucos
amigos até sairmos da cabine, e, quando olho para trás, ele
está balançando a cabeça para nós. Mas não é aquela
sacudida de cabeça típica de um funcionário irritado, e sim
a de alguém que entende aquilo — o porquê de duas
garotas se arriscarem invadindo um local proibido para ter
uma última noite juntas —, mas precisa fazer seu trabalho
mesmo assim. Ou pelo menos é no que escolho acreditar.
Espero que Toni segure a minha mão enquanto
caminhamos de volta, mas ela não faz isso. Há uma
distância entre nós que não entendo, mas tento não
analisar muito. Tento me ater à animação de saber que
passei a noite aninhada nos braços dela, mesmo que seja a
última vez que façamos isso por um tempo. Tento me ater
ao fato de que ela sabe tudo sobre mim, que contei toda a
história sobre Troy e eu e os estragos que causei apenas por
ser eu mesma, e ela não foi embora. Ela me olhou com
tanta paciência que até doeu, e ainda me abraçou.
Ninguém nunca fez aquilo por mim antes, nem mesmo
Imani. Nenhum julgamento, nenhum “eu te disse”, nenhum
olhar de decepção. Só um abraço apertado sem a intenção
de me consertar. Como se soubesse que sou forte o
suficiente para passar por isso sem ela, mas quisesse estar
ali mesmo assim.
Não falamos sobre isso, mas acho que é assim quando é
de verdade. Deve ser isso que a gente sente quando está
com alguém e sabe — sabe mesmo, no fundo da alma —
que não vai ser algo temporário. Que quer que construam
algo juntos. Quando olho para Toni, as marcas em seu rosto
por ter dormido apoiada na camisa, ou o bocejo que dá sem
se preocupar em cobrir a boca, não vejo isso terminando
amanhã. Vejo a gente acordando juntas outros dias no
dormitório dela em Bloomington, ou fins de semana
assistindo a shows no The Vogue, ou noites debatendo
sobre as melhores músicas da discografia do Fleetwood
Mac.
Vejo anos e anos de possibilidades se desdobrando à
minha frente.
— Eu vou... — Quando chegamos à área de camping, Toni
aponta com o dedão para a barraca dela e de Peter.
Quero dar um beijo nela, mas penso que talvez não seja
a melhor ideia, considerando que nós duas devemos estar
com bafo. Concordo com a cabeça.
— Beleza, hum, vejo você mais tarde.
Quando me viro, estou um pouco arrebatada e bastante
nervosa ao pensar no que esta noite significou. Fui honesta
com Toni e ela ainda assim ficou comigo. Isso tem que
significar alguma coisa, não é?
— Onde você estava a noite inteira? — Imani pergunta
assim que chego perto.
Olho para nosso acampamento e tudo que estava dentro
da barraca agora está do lado de fora, na grama, e ela já
começou a desmontar as coisas. Imediatamente sinto meu
coração acelerar, um sinal de que meu corpo está entrando
no modo de pânico.
Está muito cedo para isso. Não podemos ir embora
ainda. Não podemos. Eu não posso.
Depois da conversa de ontem com Toni, sinto que ainda
há muita coisa a fazer. Muita coisa para entender. Eu
precisei me sentar com ela, chorar com ela e ser sincera
com ela para enfim compreender o que acabou sendo
engolido pelos trolls do Confidential, os avisos nada sutis da
minha mãe e os olhares de pena de Imani, durante todo
esse tempo. Talvez eu seja um pouco excessiva. Talvez eu
seja um pouco exagerada. Mas isso não significa que não
mereço ser tratada com dignidade.
O fato de Troy me descartar, violar minha privacidade e
partir para a próxima garota sem qualquer punição e sem
ser responsabilizado de nenhuma forma não é culpa minha
— é dele. Então ele deveria sofrer as consequências
também.
Eu não tinha certeza se deveria testemunhar contra ele
— não achava que ajudaria em nada —, mas nem que seja
só por mim, porque eu mereço algo melhor, acho que
preciso testemunhar. Não importa o que aconteça depois.
Se Imani parasse para me ouvir, ela ficaria feliz por eu ter
entendido tudo. Mas ela está furiosa.
— Estou te ligando e mandando mensagem desde que
acordei e você não estava aqui. — Imani balança o telefone
na minha frente.
Eu sacudo a cabeça, discordando antes que ela diga
mais alguma coisa.
— Por que você está arrumando tudo? — Começo a
pegar as coisas que ela já guardou para devolvê-las a seus
lugares. O casal que estava do nosso lado esquerdo já foi e
o grupo de amigos do lado direito está guardando tudo na
mala do SUV. — Ainda nem sabemos se a programação de
hoje está cancelada. Não podemos simplesmente ir embora.
Imani revira os olhos.
— Bom, eu já estou pronta pra ir embora. Pra mim já deu
de aventura por um fim de semana. — Ela se vira para a
barraca e começa a dobrar o tecido horrível de nylon. — Por
que não levou o telefone? Estava preocupada com você.
— Nem pensei nisso — digo. Quero que ela pare de
arrumar tudo, mas não sei como. Imani já está com seu
objetivo traçado, determinada a ir embora. — Imani,
espera...
— Você passou a noite toda com a Toni, não é? — Sua
voz não está alta, nem raivosa, apenas sem emoção.
Sei da promessa que fiz a Imani, que este seria um fim
de semana de melhores amigas, mas isso foi antes. Ela
passou os últimos dois dias se aproximando de Peter,
construindo algo que poderia ser muito legal (graças a
mim!), e agora tenho a Toni. Imani não queria que eu a
deixasse sozinha e saísse atrás daquela sensação de ser
desejada por alguém. Mas não foi isso que aconteceu.
Eu não fui atrás de Toni. Eu trombei com ela, quase
literalmente, e fui fisgada. E ela continuou me fisgando ao
longo do fim de semana inteiro.
— Passei — digo, com cuidado. — Mas foi bom! Eu contei
tudo pra ela, e ela ficou de boa. Toni é... diferente.
Imani solta um suspiro.
— E nosso fim de semana de melhores amigas, Olivia?
Se ela parasse para ouvir um pouco, veria que a
mudança no nosso fim de semana foi uma coisa boa. Foi a
melhor coisa. Abro a boca para contar a ela que mudei de
ideia sobre o testemunho contra Troy, e que vou fazer isso.
Que Toni me ajudou a ver o que eu não estava enxergando
antes, mas ela me corta.
— Nisso você não pensou, mas aposto que já imaginou
exatamente quais vão ser as cores de seu casamento com a
Toni. Ah, não, já sei, você provavelmente já decidiu nomear
os filhos de vocês em homenagem a uns músicos
pretensiosos que já morreram! — Ela passa a mão pelo
cabelo, as ondas de alguma maneira ainda intactas depois
de um fim de semana nessa umidade. — Esse é o seu
problema, Olivia. Está sempre preocupada com as pessoas
erradas.
Uau. Essa doeu. É a confirmação do medo que tive
durante todo esse tempo, de que Imani me visse
exatamente como todas as outras pessoas da minha vida:
uma fracassada incorrigível. Que não dá mais para confiar
na minha avaliação. Talvez nunca tenha dado.
— Isso não é justo. Você não deu nem uma chance a ela.
Como sabe que é a pessoa errada?
— Porque foi você quem escolheu.
Tenho um sobressalto. Não foi intencional, mas é como
se ela tivesse me furado e agora eu estivesse murchando.
Nenhuma de nós fala nada. Só olhamos uma para a outra,
esperando que alguém desista. Enfim, Imani suspira.
— Vou ver se encontro alguma coisa pra comer — diz. Ela
se afasta de mim e pega a pochete. — Quando voltar, eu
vou embora. Mal posso esperar para ficar o mais longe
possível desse festival e desse pesadelo de fim de semana.
— Ela olha por cima do ombro. — Você tem meia hora. Pode
vir comigo ou ficar aqui, mas eu vou embora.
Ela sai andando em direção ao Core e eu me jogo na
cadeira que ela ainda não guardou.
Imani nunca iria embora sem mim, então sei que é só
uma ameaça vazia. Mas o simples fato de ela dizer uma
coisa dessas, de jogar isso no ar, me faz parar um pouco.
Ela está mesmo tão irritada assim comigo? Está mesmo
com tanto ciúme a ponto de achar que foi trocada por Toni
ou algo do tipo? Nós nos afastamos tanto assim?
TONI

DOMINGO DE MANHÃ

Pego o violão na case e me sento em cima do cooler.


Penso sobre a noite em que toquei aqui com Olivia, sobre
como voltar a estar em contato com a música me fez
visualizar tudo com mais clareza. Talvez isso vá revelar um
outro tipo de Verdade para mim. Tento dedilhar os acordes
de “The Argonauts”, mas não saem direito. Não há magia.
As notas estão certas, mas tudo parece mecânico, artificial.
A sensação de oito meses atrás está de volta, e eu odeio
isso.
Tento de novo. E de novo. E o resultado é o mesmo.
Estou frustrada comigo, e com meu violão, e com esse
festival idiota, e não consigo fazer isso. Não consigo fazer
nada disso.
Peter ainda está dormindo, ou pelo menos acho que está.
Ainda não saiu da barraca, e normalmente isso é um sinal
bem certeiro de que ele ainda não voltou ao mundo dos
vivos. Fico feliz de estar sozinha por um momento, mesmo
irritada.
Por um segundo antes da apresentação de ontem, eu
senti tanta clareza em relação à minha vida, mas não tinha
nada a ver com uma carreira. Tinha a ver com um
sentimento, e esse sentimento tinha tudo a ver com Olivia.
Mas ontem à noite, enquanto ela me contava sobre o ex-
namorado, senti aquela coceirinha dentro da cabeça que já
me aconteceu tantas vezes. A voz que me sussurra para
não ir adiante, não me aproximar mais. Porque, se eu fizer
isso, uma de nós vai acabar sendo magoada pela outra.
Porque é isto que acontece quando você se importa
demais com as pessoas: você se despedaça, se despedaça,
até que não sobra nada a não ser poeira.
Estou tentando recuperar a sensação do nosso beijo e
daquele momento eletrizante no palco desde que
aconteceram — elas são do tipo que consome tudo, chamas
que lambem minha pele e queimam tudo pelo caminho. Eu
já consigo sentir a avidez que meu pai devia sentir o tempo
inteiro. Querer tanto alguma coisa que aquilo consegue
eclipsar todo o resto. Vim aqui em busca de um plano para a
minha vida, algo que pudesse deixar minha mãe orgulhosa
e me dar um propósito. Mas nas poucas horas que fiquei
grudada em Olivia, eu me esqueci de tudo. E isso é
perigoso.
Nenhuma de nós precisa de mais perigo em nossas
vidas. Precisamos de um amor mais estável do que o que
estamos acostumadas. E é aí que me dou conta. Só há uma
coisa a fazer, e vai doer demais.
Quando Olivia aparece, as tranças soltas e balançando
enquanto anda, eu viro a Toni de antigamente. A Toni da
Ardsley Academy, a rainha do Polo Norte. Preciso me
esforçar à beça para não me jogar em cima dela, beijá-la,
dizer que sinto muito. Dizer que adoraria que existisse uma
solução melhor. Mas não existe. Não quero magoá-la, então
preciso me afastar.
Ela parece estar se sentindo do mesmo jeito que eu, há
um tipo de urgência em seu rosto que nunca tinha visto.
Ponho o violão de volta na case e me levanto. Ela
imediatamente me abraça pela cintura e eu a aperto forte,
embora saiba que não deva fazer isso.
— Toni. — Olivia diz meu nome como se fosse uma
oração, com suavidade e reverência. Parece que há um
balão cheio ocupando meu peito, e mal posso respirar.
Quero continuar abraçada com ela, talvez para sempre. Ela
apoia a cabeça no meu ombro. — Estou tão feliz por ter
você.
Tento convencer a mim mesma que não é só pelo meu
bem. Que isso vai ser bom a longo prazo para ela também.
Ela realmente não sabe que tipo de pessoa eu sou. O tipo
que se torna fria rapidamente, que não demonstra
sentimentos, que mantém os outros à distância. Ela não
sabe que isso está no meu DNA — que sou a cópia de um
homem que escolheu a música em vez das pessoas que ele
amava todas as vezes, e que provavelmente vou fazer a
mesma coisa um dia se tiver a chance.
Coloco as mãos em seus ombros e a afasto de mim.
Quando ela me olha, vejo tudo em seus olhos. Todos os
futuros possíveis. Todas as decepções inevitáveis.
Vejo minha mãe fingindo que não estava chorando nos
aniversários de casamento que passou sozinha. Vejo fotos
minhas em apresentações de piano, minha mãe sorridente,
mas nenhum sinal do meu pai. Vejo ele chegando à cidade e
sendo tão sedutor a ponto de nos fazer esquecer por quanto
tempo tinha ficado fora e o quão rapidamente iria embora
de novo. Vejo a mim mesma começando a faculdade daqui
a alguns dias e sendo a adulta que meu pai nunca foi.
Vou escolher o caminho seguro, o caminho estável, o que
eu devia ter feito desde sempre.
— Olivia — digo. — Precisamos conversar.
OLIVIA

DOMINGO DE MANHÃ

Qualquer pessoa que tenha dito que todas as decepções


amorosas são iguais claramente nunca teve o coração
partido por Toni Foster.
Uma onda de frieza me atinge enquanto me afasto do
acampamento dela, e sinto arrepios pelos braços, embora
hoje esteja ainda mais quente do que ontem. Estou
tremendo, me abraçando, mas mal dando conta de me
manter inteira e não despedaçar. Mando uma mensagem
para Imani dizendo que preciso dela — que Toni e eu
terminamos —, do mesmo jeito que sempre faço. Como
manda o roteiro. Mas tudo que recebo do outro lado é o
silêncio. Atordoada, perambulo de volta para meu
acampamento inexistente, e não consigo nem chorar. Acho
que estou em negação.
Como é possível que uma pessoa esteja tão errada todas
as vezes? O que é que há de errado comigo? O que faz meu
julgamento ser tão ruim e meu amor tão facilmente
rejeitado?
Sou sempre eu quem afasta as pessoas. É sempre algo
que faço ou digo. Não importa se estou sendo eu mesma
desde o começo ou se estou interpretando uma
personagem — é assim que sempre acaba para mim. Essa
sou eu.
Uma inquietação familiar borbulha dentro de mim. Uma
urgência de correr, ir, fazer alguma coisa.
Nunca vou ser igual a Nia, com suas notas e looks e
relacionamentos perfeitos. Nunca vou ser o tipo de garota
para quem as pessoas olham e pensam: “Nossa, ela
conseguiu tudo mesmo, né?”. Algumas pessoas são
abandonadas e outras abandonam. Não há nenhuma dúvida
em relação a qual grupo pertenço, se é que havia antes.
Passo as mãos pelo rosto e ajeito a postura. Sei
exatamente que personagem preciso ser para resolver isso.
A primeira coisa a fazer é tomar um mais do que
necessário banho.
Estou coberta por uma camada de sujeira depois de dois
dias de suor e sujeira. Aqueles lencinhos umedecidos
sugeridos pelas mensagens nos fóruns não vão ser
suficientes para tirar isso. Pego meus chinelos, toalha,
sabonete e vou andando até os chuveiros. Ponho algumas
moedas para ativar a água e entro no banho. Limpo cada
centímetro de poeira do corpo. Esfrego os braços até
ficarem quase em carne viva. Faço o ritual de lavar e deixar
escorrer as partes de mim que não quero mais.
Foi o que fiz com Troy, com Aaron, Jessie, Kai — e a lista
continua. Enquanto lavo, tento sentir o alívio de ver a
pessoa que fui neste fim de semana descendo pelo ralo,
mas tudo que consigo sentir é uma tensão profunda e
vibrante, como um elástico prestes a se romper. Mas
conheço bem esse sentimento. Eu o acolho como um velho
falso amigo. Quero me livrar dele, mas anseio pela
familiaridade que provoca. Pelo menos, quando me
transformo assim, sei exatamente o que esperar. Sei o que
preciso perder para ganhar o que quero.
Acho que foi aí que estraguei as coisas com Toni. Era um
território desconhecido. Eu tropecei. Escorreguei sem nem
saber que estava escorregando. Não vai acontecer de novo.
Fico no chuveiro até a água esfriar, e então fico mais um
pouco. Desligo a água, e o contato da toalha com meu
corpo machuca um pouco depois de tanto esfregar. Volto
para o acampamento e me visto no banco de trás do carro.
Levo um tempo excessivo passando maquiagem diante do
espelho retrovisor. Vou usar esse uniforme como se fosse
uma armadura.
Vou pedir desculpas a Toni. Não sei exatamente pelo que
vou pedir desculpas, mas não é como se nunca tivesse feito
isso antes. Posso pedir desculpas por qualquer que tenha
sido o motivo para ela se afastar hoje de manhã. Posso
recuar um pouquinho, posso ser um pouquinho diferente,
guardar as partes de mim que foram demais para ela.
Não posso consertar a mim mesma, mas posso consertar
isso.
Não quero mais me sentir assim. Eu me preparo. Visto
minha nova pele.
Vou andando para o acampamento de Toni e Peter.
— Olivia.
Peter está encostado na caminhonete quando chego. Seu
cabelo está molhado e bagunçado como se também tivesse
acabado de tomar banho, mas está vestido do mesmo jeito
de sempre: tênis Vans preto sujo, algo que era uma calça
skinny e virou um short e uma camiseta cropped tie-dye
azul e verde do Bowie.
— Toni não está aqui — diz ele.
Meu coração para por um segundo. Claro que Toni não
está mais aqui. Ela já deve ter ido para o Core viver a vida.
Mas Peter devia ter ido com ela. Percebo que sua voz não
está tão entusiasmada como sempre.
— O que houve? — pergunto, tentando manter um tom
neutro.
Ele levanta o telefone e balança.
— Imani está bem irritada pela forma como me
comportei ontem. Me mandou uma mensagem dizendo que
vocês iam embora e que eu não devia mais entrar em
contato... Sabe como é. — Ele desliza pela lateral da
caminhonete e se senta na grama. Olha para mim com a
expressão fechada. — Aliás, ouvi sua conversa com a T hoje
mais cedo. Sinto muito.
Considero isso um sinal para me sentar ao lado dele. Se
eu já não tivesse sido dispensada em um carro alegórico no
meio da parada de volta às aulas, na frente de todos os
representantes de turma do segundo ano, até teria ficado
mais envergonhada por ter sido dispensada com alguém
ouvindo. De tantos términos, sinto que já devo ter
ultrapassado direto a fase da humilhação, porque só consigo
dizer:
— Vim aqui para conquistar ela de volta.
Peter solta uma bufada. Olha para o telefone, mas não
diz nada por um longo tempo.
— Às vezes, a melhor coisa que a gente pode fazer é dar
espaço às pessoas, sabe? — solta ele, dando de ombros. —
Dizer adeus pode ser a resposta certa, mesmo que você não
sinta que é.
Peter, que a conhece melhor do que ninguém, está
dizendo que acabou.
Sinto meu peito apertar de uma maneira conhecida, a
pior possível. Sei bem como é quando alguém te diz para
desistir. Quando alguém te diz que nunca vai rolar, que é
hora de seguir em frente, que você não era boa o suficiente
desde o começo. Quero correr. Quero fazer alguma coisa
imprudente. Quero afastar esse sentimento.
Abro e fecho os punhos, tentando me estabilizar. Tento
desacelerar meus pensamentos, mas não consigo. Eles não
param. Tudo está se movendo muito rápido.
Peter passa as mãos pelo cabelo de novo. Sei que é um
hábito nervoso, mas penso distraidamente no quanto aquilo
o faz parecer com o gatinho da vez do Twitter. Peter, com
seu sorriso largo, os olhinhos de cachorro, as emoções
sempre comandando tudo. Ele é... bonitinho. Faço uma lista
das qualidades de Peter sem nem mesmo me dar conta. Ele
é inteligente — inteligente o suficiente para acompanhar
Imani, inclusive. Engraçado. Legal. E, acima de tudo, ele é
transparente.
Não existem joguinhos com Peter. Você sempre sabe
exatamente o que ele está sentindo. Se ele te quiser, você
vai saber — vai se tornar o sol no sistema solar dele.
E, de repente, minha postura se ajusta. Minha visão
parece mais aguçada, renovada. Isso é bem familiar
também. Mais familiar até do que a rejeição. Aquilo toma
conta de mim com tamanha rapidez que quase nem
percebo o que está acontecendo.
— Então, Peter — começo, colocando gentilmente a mão
no braço dele, que está apoiado em seu colo. O tom da
minha voz é um pouco mais agudo, bem de leve, só o
suficiente. — Me lembra aqui, qual você disse que foi o
problema no show do Odd Ones ontem?
Ele se ilumina imediatamente. Seus olhos brilham e se
fixam nos meus. Está entusiasmado e, onde há entusiasmo,
há possibilidade.
Não sei por quanto tempo ficamos ali um ao lado do
outro, falando sobre assuntos sobre os quais eu não me
importo, mas nos quais me permito mergulhar. Eu me
permito ser invadida por eles. Todas as vezes que ele não
desfaz o contato visual comigo enquanto estou falando ou ri
de algo que digo, sinto a mesma energia que costumava
aparecer quando encontrava um novo alvo. O nó no meu
peito começa a afrouxar.
Estamos apoiados na caminhonete, o braço de Peter
encostado no meu, e consigo sentir como o sol aquece sua
pele. Ele cai na risada com alguma piada que mal percebi
que fiz, e bate com o ombro no meu de propósito. Eu me
lembro dele dizendo que pop punk era seu gênero musical
favorito, então desencavo tudo que sei a respeito.
Cito shows underground a que assisti de artistas novatos
de pop punk do Meio-Oeste. Falo de algo que tirei de um
artigo sobre o Fall Out Boy, sobre como eles se venderam
depois do terceiro álbum, mas digo com tanta autoridade
que faz parecer que realmente me importo. Como se eu
tivesse ouvido a banda religiosamente por anos, embora
nem consiga citar uma música deles a não ser “Dance,
dance”, e isso só porque as pessoas usaram num desafio de
dança no Confidential ano passado.
Sentar ao lado de Peter — e construir para ele essa
narrativa de que Olivia Brooks é uma princesa do pop punk
— é como pegar um instrumento depois de um tempo
longe. Só preciso de alguns minutos de prática e logo estou
tocando como uma profissional de novo.
Isso é bom, digo a mim mesma. É agradável. Peter é um
cara legal. Não sei por que Imani não agarrou sua chance
com ele neste fim de semana. Peter é engraçado e
inteligente e bonito e inofensivo. Ele é ótimo.
Ele é o tipo de pessoa com quem eu deveria estar. Passei
o fim de semana inteiro com Toni quando talvez fosse isto
aqui que eu devia ter feito. Peter não me dispensaria logo
depois de eu ter confessado todo o meu passado triste para
ele, ainda que tivesse me dito que eu merecia mais. Peter
não me afastaria porque daria muito trabalho me conhecer
melhor depois do festival.
Achei um lugar seguro para aterrissar.
TONI

DOMINGO DE MANHÃ

Se eu ficar pensando na expressão de Olivia quando eu


disse a ela que não podia mais fazer isso, tenho certeza de
que vou desmoronar. Tento bloquear esse sentimento. Faço
o que sempre fiz: abraço a sensação de entorpecimento que
vem quando estou sozinha em momentos em que não
gostaria de estar.
Resolvo dar uma volta. Não sei para onde estou indo ou
quanto tempo vou ter que ficar andando até alguém enfim
nos dar notícias sobre o que vai acontecer hoje — se o
festival vai ser completamente cancelado ou se vão tentar
salvar o que restou —, então decido apenas ir. Enquanto
caminho pela área de camping, sou atingida pela onda de
nostalgia mais forte que já senti.
Não importa o que aconteça, esse lugar nunca mais vai
ser o mesmo. Os totens iluminados com fotos das cabeças
de alguns personagens de TV favoritos, os acampamentos
decorados como se fossem resorts cinco estrelas, o espaço
na frente do palco onde me sentei nos ombros do meu pai
pela primeira vez para ver um show — não tem volta. É bem
provável que haja uma edição do Farmland ano que vem,
claro, mas esse lugar nunca mais vai ser exatamente o
mesmo. O Farmland é o lugar onde achei que poderia
perder a vida, e onde acabei perdendo Olivia.
Já não é mais o meu lugar seguro e confortável afastado
do resto do mundo. Na verdade, provavelmente nunca foi.
Mas agora é impossível de ignorar.
Quando chego perto do Core, o celular que estava
completamente morto desde ontem — todo mundo
tentando ligar e mandar mensagem ao mesmo tempo
acabou fazendo a conexão cair — começa a apitar com
muitas notificações. Preciso me forçar a não procurar para
ver se alguma dessas mensagens é de Olivia. Acho que só
de ver o nome dela agora eu já desabaria. A primeira que
abro é do aplicativo oficial do Farmland: o festival não
terminou. O segurança pessoal de um dos artistas
acidentalmente deixou a arma destravada e ela disparou no
chão. Ninguém ficou gravemente ferido, embora tenha
havido alguns ferimentos mais leves por causa do tumulto.
Solto um longo suspiro. A mensagem diz que o último dia
não está cancelado, mas as medidas de segurança serão
intensificadas. As filas na entrada serão mais longas, então
precisamos chegar mais cedo para conseguir ver os shows.
Tem mais uma mensagem, coisas sobre os Farmers
serem mais fortes juntos, sobre termos a capacidade de
superar tudo, mas não leio. Eu me sento onde estou, num
trecho de grama perto da entrada do Core. Há vários
Farmers andando por ali; alguns parecem estar
desmontando o acampamento para ir embora mais tarde e
outros já estão indo agora — entendo perfeitamente as duas
decisões.
Mas, de onde estou, vejo também muita gente arrumada
e pronta para o dia. Não estão arrumando as malas, não
estão indo embora, estão apenas sentados em seus
acampamentos tomando café como se nada tivesse
acontecido. Aquela normalidade me faz ser tomada por um
sentimento de tristeza. Eles estão agindo normalmente
porque sustos como esses são normais. Nós tivemos sorte.
Na maioria das vezes não é assim.
Quando percebo que o celular tem sinal, ligo para minha
mãe sem olhar as outras mensagens.
— Oi, mãe. — Minha voz está meio trêmula quando falo,
então tento de novo. — Bom dia.
— Antonia, quero que você venha pra casa agora — diz
ela, sem nem me cumprimentar. Consigo ouvi-la se
mexendo do outro lado da linha, sem dúvida na cozinha
limpando a bancada até conseguir ver o próprio reflexo. É o
que ela faz quando está estressada. — Não consegui falar
com você a noite inteira e hoje acordei com notificações da
CNN, Billboard e Rolling Stone dizendo que alguém levou
uma arma para o festival?
Claro que as notificações chegaram para ela antes que
eu conseguisse ligar. Ela deve estar lendo notícias
incompletas e morrendo de preocupação desde ontem à
noite. Fecho os olhos e penso como deve ter sido isso para
ela. Sem querer, causei à minha mãe o mesmo tipo de
estresse que meu pai causava, e isso era a última coisa que
eu queria.
— Toni, você está aí? Está me ouvindo? Quero que você
venha pra casa, está bem, amor?
É o som daquele amor que me faz querer chorar. Então
eu choro. Pela primeira vez desde que meu pai morreu,
choro daquele jeito que seria vergonhoso se eu não
estivesse tão esgotada.
Nada está sendo como deveria. Nem este ano, nem este
festival, nem o que vai acontecer nos próximos meses. Não
tenho a menor ideia do que fazer. Não quero investir na
minha paixão e magoar minha mãe, mas também não levo
jeito para a faculdade. Não queria magoar Olivia a longo
prazo, mas acabei magoando — e a mim mesma no
processo — hoje de manhã ao terminar com ela. Não queria
deixar ninguém se aproximar muito de mim, mas acabei
reabrindo as feridas causadas por todas as vezes que meu
pai saía de casa para mais uma turnê.
Parece que tudo o que eu faço para reduzir os danos
acaba deixando as coisas ainda piores. Mas fico surpresa ao
sentir o peso nos meus ombros diminuir um pouquinho
enquanto soluço no telefone.
É tão libertador parar de tentar segurar tudo, parar de
tentar manter a fachada da Toni Foster estoica, forte e
calada que tenho fingido ser por todos esses anos.
— Toni. — A voz da minha mãe é mais suave do que o
normal. É a voz que ela usa para me consolar. — Vou buscar
você. Quer que eu vá até aí? Vou pegar o carro e vou aí,
está bem? É só...
Eu fungo e rio um pouquinho. Porque amo minha mãe e
sua postura de advogada de tentar consertar tudo entrando
em ação. Mas acho que não preciso disso agora.
Eu preciso de uma resposta, uma resposta que não
consegui descobrir, mesmo com todo o tempo, todos os
shows e todas as noites solitárias que já tive. Uma ao redor
da qual estive dançando a vida inteira.
— Não, por favor. Fica aí. Eu só... Por que o meu pai não
foi pra faculdade? — Levanto os joelhos até o peito e apoio
a cabeça sobre eles. — Por que você nunca disse pra ele
arranjar um trabalho diferente? Uma carreira chata e
normal?
A princípio, fica um silêncio do outro lado da linha, mas
sei que ela está ouvindo tudo o que não estou dizendo: o
que a faculdade reserva, o fato de que até esse fim de
semana eu não conseguia tocar há meses, por que não
consigo achar meu lugar no mundo. Mas ela não faz as
perguntas certas.
— Está em dúvida sobre a faculdade? Isso é pânico de
calouro? Porque podemos conversar com seu conselheiro
acadêmico para encontrar um curso que combine com você.
— Não, mãe, não tem a ver com a faculdade. Tem a ver
com o meu pai. Tem a ver comigo. — Respiro devagar. Não
quero que ela fique preocupada. Nunca quis que ela
precisasse se preocupar comigo. Mas preciso que seja
sincera agora. — Tem a ver com... Como ele tinha tanta
certeza de que precisava estar o tempo inteiro na estrada?
De que não era para estar em casa, com a gente?
Limpo o nariz com a barra da camiseta. Ela não fala por
um bom tempo.
— Não tinha nada a ver com você — começa. — Tinha a
ver com... uma inquietação. — Ela respira fundo. — Seu pai
nunca estava satisfeito. Estava sempre querendo algo
melhor. Ele amava muito você, Toni. Mas ele tinha um vazio
dentro de si que tentava sempre preencher com o que quer
que houvesse na estrada. — Ela parece ter pensado muito
nisso. Como se fosse difícil dizer em voz alta. Mas nós
temos que fazer isso. Passamos muito tempo sem falar
sobre esse assunto. — Não existe amor capaz de preencher
um vazio como esse.
Penso em todas aquelas noites esperando que ele ligasse
depois de um show e a decepção, de novo e de novo, até
enfim aprender a não esperar mais. Até aprender a não
esperar mais nada de ninguém para não me decepcionar.
Eu me lembro do sentimento doído de saudade que ainda
estava aqui dentro até eu me abrir para Olivia. Eu me
lembro de como estar com ela me fazia sentir do mesmo
jeito que as melhores músicas; como se estivesse voltando
para casa.
— Você é muito mais do que nossos piores erros, meus e
do seu pai, Antonia. E Deus sabe que nós cometemos
muitos. — Nem respiro enquanto espero o que minha mãe
vai dizer a seguir. — Você pode construir uma vida que te
traga orgulho e felicidade e não se tornar o seu pai. Uma
coisa não equivale à outra.
E não sei se ela está me dando permissão, ou mesmo
para o que ela está me dando permissão, mas sei que é o
que eu precisava ouvir.
Eu me levanto. Estava errada antes. Talvez faça sentido
— minha tentativa de me afastar —, não sei. O que sei é
que não importa onde eu esteja no ano que vem, quero me
sentir para sempre do jeito como me senti com Olivia neste
fim de semana. Talvez o amor não tenha sido o suficiente
para fazer meu pai ficar, não tenha sido o suficiente para
fazê-lo parar de fugir, mas pode ser o suficiente para mim.
— Como você soube que queria ser advogada? —
pergunto, rapidamente.
— Além de ser sua mãe, era a única coisa que me
imaginava fazendo pelo resto da vida. A única coisa que eu
queria fazer todo dia — diz ela, sem pestanejar. — Escuta,
você vai ficar bem? Eu estava falando sério quando disse
que posso ir aí te buscar. Você não está parecendo você
mesma.
Concordo com a cabeça, embora ela não possa me ver.
Estou mais perto de ficar bem do que estive em quase um
ano.
— Vou, mãe — respondo. Penso em Olivia, em como nós
podemos dar certo se eu me permitir. Sorrio. — Acho que
finalmente entendi tudo.
OLIVIA

DOMINGO À TARDE

O sol já está alto no céu e, à nossa volta, as pessoas


estão agitadas, ou voltando para casa ou curtindo o que
restou do Farmland. Mas não estou prestando atenção em
nada disso; estou focada no formigamento que sinto na
minha pele diante da excitação de ser o foco único da
atenção de alguém. Prender a atenção de outra pessoa, ter
o potencial de ser desejada, nem que seja por um segundo,
acalma minha inquietação.
Eu me viro para Peter com um sorrisinho tímido. Parece
completamente errado para o meu rosto neste momento.
Estou usando um disfarce. Odeio isso. Preciso disso.
— Tá bem, mas e o Infinity on High? Não é possível que
você vá me dizer que Infinity on High não está na sua lista
de três melhores discos deles! — exclama Peter.
— Você fica bonitinho quando está todo alterado assim.
— Minha voz nem parece minha mesmo. Sou outra pessoa.
Ele franze as sobrancelhas.
— Hã?
— Eu disse — levo a mão ao queixo dele e viro seu rosto
na minha direção — que você fica bonitinho quando está
todo alterado assim.
Peter engole em seco e suas pupilas se dilatam. Ele
começa a se inclinar na minha direção, e é aí que sei que
consegui. Consegui fazer com que ele queira me beijar. Mas
a animação que normalmente aparece nesse momento não
vem. As endorfinas permanecem inativas. Se eu forçar um
pouquinho mais, talvez possa reverter isso.
Chego meu rosto mais perto do dele e me movo devagar,
de um jeito sedutor. Viro o queixo dele só um pouquinho até
que quase...
— Espera aí, para... — A cabeça de Peter se afasta antes
que nossos lábios se toquem, como se ele estivesse saindo
de um transe, mas não foi rápido o suficiente.
— Olivia? — diz uma voz à minha direita.
Sinto um soco no estômago.
— Ah, meu Deus — diz uma voz à esquerda de Peter.
Ele olha para trás e imediatamente se levanta. Eu trinco
os dentes.
Não preciso olhar para saber de quem são as vozes. Na
verdade, tudo o que menos quero fazer agora é olhar. Mas
Peter corre na direção dela e sei que isso vai ter que
acontecer.
— Toni, isso não é... Espere um minuto! — grita ele.
Eu me levanto e vejo as costas de Toni enquanto ela se
afasta e Imani corre na direção oposta. O zumbido no meu
ouvido se intensifica até eu não ouvir mais nada. Minha mãe
em lágrimas, “Por que você não pode ser mais como a sua
irmã, Olivia?”. A voz de Troy sussurrando no meu ouvido
naquela primeira festa, “Se gostasse mesmo de mim, você
faria”. O monólogo constante na minha cabeça que diz
“Você não é suficiente. Nunca vai ser suficiente”.
Mas um pensamento se mantém firme depois que todos
os outros passam: “Eu estrago tudo que toco”.
Nem é realmente uma escolha ir atrás de Imani ou Toni.
Toni já decidiu que não vale a pena ficar comigo, mas Imani
é minha melhor amiga. Imani tem que me perdoar.
— Imani, por favor. Espera!
Corro para tentar alcançá-la. Ela já conseguiu andar
quase metade do caminho até o Core desde que saiu
correndo.
Eu sei que não devia ter dado em cima de Peter,
principalmente porque disse a ela que não ia nem piscar
para ninguém neste fim de semana. Prometi a ela um fim de
semana de melhores amigas e não cumpri. Ela tem toda
razão de estar um pouco irritada comigo por isso. Eu
mereço.
Mas não é como se ela quisesse ficar com o Peter — ela
mesma disse isso a ele. Então não pode ficar irritada por eu
ter beijado ele. Ou quase beijado. Enfim.
Pelo menos com Imani existe a possibilidade de pedir
desculpas, de conversar sobre o assunto. Afinal, não é como
se nós duas nunca tivéssemos brigado antes. Com Toni, por
outro lado, está claro que já era. Não há mais esperanças
ali. Já estava difícil antes desse lance com Peter, mas
algumas coisas são demais para ignorar.
Beijar o melhor amigo de alguém, mesmo que tenha
ficado só no quase, é o tipo de coisa que não tem volta.
E talvez eu tenha feito exatamente por isso. Assim como
é melhor não trocar o certo pelo duvidoso, talvez seja
melhor não trocar a solidão que você mesma escolhe para si
por uma imposta pelos outros.
— Peter disse que você dispensou ele. — Paro na frente
dela e levanto as mãos para que pare também. Só essa
corridinha já me deixou meio sem fôlego, então uso um jato
do inalador antes de continuar. — Eu nunca tentaria e, na
verdade, nem conseguiria roubar um cara de você. Sei que
isso não melhora muito as coisas, mas...
— Você acha que isso tem a ver com um cara que mal
conheço? — A voz de Imani é dura como aço, uma voz que
ela usa para xingar os meus ex-casos no corredor ou
quando quer que algum gerente de restaurante leve a sério
seu pedido de reembolso por causa de um frango que não
cozinharam direito. Ela nunca usa essa voz comigo. — Claro
que você acha. Porque é assim que funciona sua mente,
sempre correndo atrás de um novo objeto de paixão. Você
não se importa com o gênero, não se importa se vocês têm
algo em comum, nem com seu próprio bem-estar. Você não
se importa com nada, não é?
— Uau. Hum.
Ouvir isso tão abertamente é como levar um soco no
estômago.
Eu sempre soube que Imani não concordava com muitas
das minhas decisões — ela efetivamente me avisou que a
maioria delas não era uma boa ideia —, mas não achava
que ela tinha uma opinião tão ruim sobre mim. Como se eu
fosse uma caricatura da bissexual confusa, que pula de
pessoa para pessoa simplesmente porque não consegue se
decidir. É algo que minha mãe diria, ou Nia, mas nunca
minha melhor amiga.
— Isso é meio maldoso, Mani.
Contraio os dedos e tento fugir da confusão dentro da
minha cabeça.
Quando viemos para o Farmland, eu prometi a Imani que
não ia repetir algo que já fiz com ela — não ia largá-la
sozinha. E não fiz isso. Enquanto eu estava com Toni, ela
estava se divertindo com Peter! Ela estava feliz... Eu achei.
Eu me lembro da primeira noite, quando ele apagou no
meu saco de dormir. Parecia que eles estavam curtindo
juntos. Eles gostam do mesmo tipo de música e, numa
mesma conversa, podem facilmente ir da história da Pop
Top até a ciência da fotoluminescência ou o guaxinim de
estimação do Calvin Coolidge. Como eu poderia adivinhar
que, além de não estar interessada nele, ela ainda sentiu
como se eu a tivesse leiloado para poder correr em direção
ao pôr do sol com Toni?
Ela faz um movimento para trás como se eu tivesse dado
um tapa nela.
— Maldoso?
— Sim, maldoso. — Cruzo os braços e ajeito a postura.
Se eu fingir que estou confiante, talvez me sinta assim por
dentro também. — E você está sendo meio bifóbica
também. Não é porque minha sexualidade é mais fluida do
que a de outras pessoas que...
— Nesse momento você não tem nenhum direito de me
dar sermão — diz ela, irritada.
— Olha, podemos só fazer as pazes, por favor? Estou
tendo um dia horrível e só quero chorar e comer um taco
daquela barraquinha do Core.
O rosto de Imani muda tão depressa para uma expressão
de indignação que até dou um passo para trás por instinto.
Sinto um aperto no estômago.
— Como assim isso é sobre você mais uma vez?
— O que... O que você quer dizer? — Já sinto as lágrimas
se formando e prontas para cair no rosto.
— Exatamente o que eu disse, Olivia. Cada pessoa na
sua vida funciona apenas como mais um espelho num
parque de diversões, que por um tempinho mostra para
você uma versão sua diferente e mais divertida. — Ela deixa
os braços caírem ao lado do corpo. — Tudo é sempre sobre
você. Seus sentimentos. Sua dor de cotovelo. Como posso
usar essa pessoa para me sentir melhor comigo mesma por
quinze minutos até ficar entediada, ser largada e seguir em
frente? Lava, enxágua e repete.
Quero discutir, dizer que não é bem assim, que nunca
pensei nela como um instrumento com uma finalidade
específica. Mas talvez ela esteja certa. Talvez algo nesse
discurso seja verdade. Talvez eu seja o problema, mas não
da maneira que pensava. Minha mente na mesma hora se
lembra de Troy, e sinto que estou respirando por um
canudinho.
— A história do Troy é diferente — diz ela, sempre ligada
no que estou pensando, até nesse momento. — Você não
merecia aquilo. Ninguém merece.
Fica um silêncio por um momento. Pelo menos o silêncio
possível dentro de um festival de música.
— É que... Você não é uma personagem de filme, sabe?
Você é uma garota de verdade. Não acontece uma
montagem musical quando você compra roupas novas e de
repente tudo muda. Essa é a sua vida. Você é quem você é.
— Ela põe os óculos escuros na cabeça e aperta os olhos
com as mãos. Então completa, sem olhar para mim: — Seu
problema não é ser exagerada demais ou seja lá o que você
acha que afasta as pessoas. As pessoas com quem você sai
é que são umas idiotas. Seu problema é que você é egoísta.
— Imani, me des...
Ela olha para mim rapidamente, seus olhos um pouco
mais do que marejados.
— Desculpa? Você devia ter dito isso no dia em que eu
tinha ingressos para assistir a minha banda favorita e, em
vez de ver o show, tive que ir te consolar em mais uma crise
porque você realmente achava que Aaron era a pessoa
certa e agora ia ficar sozinha pra sempre.
— Mas você disse...
Ela revira os olhos.
— Você realmente acreditou que eu, de todas as
pessoas, ia cometer o erro de comprar ingressos falsos? Eu
disse aquilo porque me fazia parecer menos patética do que
a verdade.
Ela fecha os punhos, e por um segundo eu desejo que
simplesmente me dê um soco, ou algo assim. Vamos
resolver essa situação logo, tirar esse negócio do caminho,
porque qualquer coisa seria melhor do que isso aqui. Isso
machuca mais do que corte de papel, e ela obviamente
ainda não terminou. Agora que está falando, consigo ver
tudo nitidamente. Fiz isso tantas vezes ao longo da nossa
amizade, que ela provavelmente poderia continuar falando
para sempre.
— E que tal aquela vez em que você me fez ir a Chicago
para te ajudar a superar um término e me largou sozinha
num porão sujo, depois de ver o show de uma banda
horrível, com um monte de caras sinistros tentando passar a
mão em mim, durante quatro horas sem me dizer onde
estava? Enquanto isso você estava pegando o guitarrista! —
O corpo dela está todo tensionado. — Eu morri de medo,
Olivia. E você não conseguiu nem guardar o anel que
compramos na viagem, a única parte boa do fim de semana
inteiro.
Ela roda o anel prateado no dedo mindinho até sair. Não
achei que ela tinha percebido que o meu havia sumido. Mas
subestimei muitas coisas em relação a Imani. Ela fecha a
mão com o anel dentro e continua:
— Ou a vez em que você escolheu ir atrás da maçã idiota
de uma competição que provavelmente agora está
cancelada em vez de ir na roda-gigante comigo? A única
coisa que eu queria fazer nessa merda aqui. Então, não. É
muito tarde pra pedir desculpas. Eu não perdoo você por
isso.
Ela começa a andar sem rumo definido, apenas se
afastando de mim, o que deve ser o suficiente para ela. Mas
para de repente, vira e volta dois passos, apontando na
minha direção.
— E sabe do que mais? Nem posso colocar a culpa em
você. Isso não é sua culpa. A culpa é minha.
— Imani, não. É minha culpa, eu...
Ela continua andando, quase como se não estivesse mais
falando comigo.
— Eu fiquei segurando sua mão a cada término, só
pensando: “Em algum momento ela vai sacar. Vai entender
o que ela significa pra mim. Da próxima vez, ela vai me
escolher”. — Imani ri. — Mas você nunca ia perceber, não é?
Eu... O quê? Minha boca fica seca.
— Acho que sou apaixonada por você desde o dia em
que nos conhecemos.
Sua voz fica trêmula, e é demais para mim. Imani não
chora, nunca. E é tão horrível, tudo isso, essa confusão
péssima. Porque eu também a amei desde aquele primeiro
dia na aula de Geometria, quando ela levantou o braço e
respondeu à primeira pergunta com uma certeza tão grande
que eu soube que ela era o tipo de pessoa certa para me
aproximar. Era tão esperta, tão consistente, e tem sido
assim desde então.
Eu só não a amo do mesmo jeito que ela me ama. Ou
amava, no pretérito agora, com certeza.
Estamos paradas no meio da pista de cascalho, e um
sedã azul passa fazendo barulho atrás de nós, tentando sair.
Chegamos para o lado e vamos para a grama, e Imani não
desconta mais nada em mim. Ela fica quieta por mais um
tempo. E eu não sei o que dizer. Então ficamos as duas
olhando uma para outra até que sua voz calma aparece.
— Eu vim dizer pra você que decidi ficar para assistir ao
Kittredge. — Eu me aproximo para tentar segurá-la de
alguma forma. Como se Imani talvez não fosse me deixar se
eu pudesse me apoiar nela por mais um segundo. Ela afasta
o braço quando chego mais perto. — Não — começa como
uma bronca. — Não toque em mim, ok?
Ela fecha os olhos e vira o rosto para o céu. Está ficando
nublado, o clima captando o momento, como nos maiores
clichês de todos os clichês de filmes. Mais uma cena de
término na minha vida, com direito a desastre. Meu Deus,
sou um dramalhão ambulante.
— Assim que acabar o show do Kittredge, eu vou
embora. — Imani seca as bochechas. — Não vou perder o
show da minha banda favorita de novo por sua causa.
Ela não espera minha resposta. Simplesmente sai
andando, abre a mão e deixa o anel cair na terra. E é nesse
momento, com o anel barato que significava tanto para ela
a ponto de usá-lo todos os dias por um ano sendo jogado
fora como lixo, que eu desmorono.
Soluço em meio ao choro conforme ela se afasta sem um
rumo específico, me deixando para trás com todas as coisas
que não consegui dizer. Todas as minhas desculpas e
explicações são um amontoado confuso que não sei nem
como colocar em palavras.
Não volto para o acampamento e nem vou atrás dela no
Core. Sento exatamente onde estou, na grama, e fico
olhando os Farmers voltando para os acampamentos, e as
pessoas que já arrumaram as malas se preparando para ir
embora. Pego o anel no chão, tento limpá-lo na barra do
vestido e ponho no meu próprio dedo.
Imani me conhece melhor do que ninguém, e eu deveria
conhecê-la tão bem quanto. Então como foi que eu consegui
não ver todos os sinais luminosos e gritantes bem na minha
cara de que ela sentia algo por mim nos últimos três anos?
Enquanto estava absorta na ideia de encontrar A Pessoa
Certa — ou só A Pessoa, dependendo do dia —, eu enfiava
uma faca cada vez mais fundo no coração da minha melhor
amiga. Fiz com que tudo fosse sobre mim, suguei todo o ar
de cada cômodo que compartilhamos.
Ela tinha razão em estar irritada comigo. Furiosa, na
verdade. Eu saí no lucro, até, depois de tudo o que fiz nos
últimos anos. Imani foi a melhor amiga que eu podia ter,
esteve presente em todos os momentos em que precisei.
Mas eu nunca fiz o mesmo por ela, do jeito que deveria.
Eu estava errada. Quando Toni disse todas aquelas coisas
sobre o que eu merecia e o que deveria aceitar, era porque
ela não estava vendo a minha versão que as pessoas que
me conhecem melhor veem. A versão que Imani vê, a
versão que minha mãe e Nia veem. Ela não poderia.
Eu devia ser uma mestra no amor; devia saber mais do
que todo mundo sobre isso. Mas se amar realmente significa
estar presente, eu não consegui fazer nem isso.
Olho para a tela do celular sem nenhuma mensagem.
Ninguém está pensando em mim o suficiente para me
escrever, nem mesmo os trolls do Confidential.
Estou verdadeiramente sozinha.
Exatamente como mereço.
TONI

DOMINGO À TARDE

Quando vejo Peter e Olivia tão próximos, praticamente


se beijando, só sinto o impacto dos destroços.
Está tudo terminado entre mim e Olivia. Meu melhor
amigo me traiu. O Farmland acabou.
Saio correndo do acampamento, o mais rápido que já
corri na vida. Eu me escondo atrás de um motorhome para
despistar Peter, que vem atrás de mim gritando, e depois
continuo sem me preocupar em tê-lo no meu encalço. Não
quero ouvir nada do que ele vá me dizer agora. Nada que
ele diga pode afastar o que estou sentindo.
Começa como um buraco, um vazio barulhento
mostrando que talvez nunca tenha havido nada mesmo ali.
Talvez eu não estivesse fingindo ser uma rainha de gelo,
talvez o fingimento tenha sido apenas quando achei que
poderia ser capaz de amar alguém. Capaz de deixar alguém
se aproximar. Mas continuo andando. E continuo andando.
E, a cada passo, esse vazio evolui, muda, e vai enchendo e
enchendo até que estou transbordando com alguma outra
coisa, algo que não vou conseguir controlar.
Estou com raiva. De repente, estou com uma raiva tão
louca e avassaladora que minha visão fica turva. Minhas
mãos suam. Paro onde estou, sem nem pensar nos Farmers
que vêm andando atrás de mim a caminho do Core, e tento
me recompor. Mas não consigo.
Como essa garota ousa sorrir para mim, ficar por perto
mesmo depois de eu tentar enxotá-la, e falar, falar, falar e
falar até conseguir quebrar todas as minhas barreiras?
Como ela ousa ser engraçada e aberta e rir como se eu
fosse mais do que um projeto de pessoa, como se
realmente se importasse comigo? Como ousa ser tudo que
eu não sabia que queria, mudar a forma como vejo a mim
mesma, me fazer querer ser mais honesta, mais aberta,
mais ousada, mais, mais, mais?
Como posso ter me apaixonado por ela, sabendo o que
sei sobre o que o amor faz com a gente?
Como posso ser tão idiota?
Ando na direção dos portões de segurança que dão
acesso ao Core e, enquanto caminho, os momentos que
culminaram nisso passam em sequência pela minha cabeça
como se fossem as polaroides de Olivia. Flashes de
memórias, congelados no tempo. Olivia dançando na grama
no show do Odd Ones. Peter com a língua de fora perto do
galpão de apresentações Goldspur. Imani e Olivia abraçadas
na fila para pegar água ontem. Tudo nessas memórias agora
tem um ar de quietude. De ingenuidade.
Quando chego à fila da segurança do lado de fora do
Core, o festival está ganhando vida novamente. Tem gente
indo e voltando dos chuveiros, outros dedilhando os violões
do lado de fora das barracas. As pessoas não estão tão à
vontade quanto antes. Não se cumprimentam, não sorriem
uns para os outros tão abertamente. Todo mundo na fila
está nervoso e calado. Um cara com blusa florida põe a mão
no bolso para pegar o telefone e a mulher ao lado dele se
assusta, e depois fica com vergonha pela reação.
Levo cerca de meia hora para passar pela segurança,
mas não ligo. A monotonia do processo é uma distração
bem-vinda.
Não sei para onde estou indo até que chego lá e fico
parada diante dele. O palco Granny Smith se agiganta à
minha frente, silencioso. Mais tarde, o Kittredge vai tocar
aqui na frente de dezenas de milhares de Farmers e fãs
barulhentos. Há vinte anos, meu pai tocou aqui com o Red
Hot Chili Peppers depois de ganhar o Golden Apple.
Uso a barra da camiseta para secar os olhos. Não estou
chorando copiosamente, só algumas lágrimas, mas já é
demais.
Fico imaginando quem será que ganhou o Golden Apple,
ou se ainda vão manter o concurso. Talvez isso também
tenha sido apagado pelos eventos de ontem. Não quero
pensar em ir embora nem em ficar presa por oito horas num
carro com Peter, a última pessoa que jamais imaginei que
me trairia desse jeito, mas também não aguento ficar aqui
por muito mais tempo. Quando formos embora desse lugar,
vou deixar todas as memórias que ele me traz. Não quero
mais nada com elas.
Meu telefone toca no bolso, e não consigo evitar uma
esperança de que seja Olivia. Eu me odeio por pensar nisso.
É um número desconhecido, então atendo por curiosidade.
— Alô?
— Toni Jackson. Como você está? — é a voz rouca de
tenor de Davey Mack do outro lado da linha. Meu coração
acelera ao ouvi-la.
Nunca falei com ele antes — nunca tive motivo para isso
—, mas conheço muito bem a voz de várias entrevistas e
das músicas do Kittredge no rádio. Faz anos desde que o vi
pessoalmente. Talvez desde que a banda tocou no
Lollapalooza, três anos atrás, quando minha mãe me levou
até Chicago para encontrar meu pai e vi o show dos
bastidores.
— Davey Mack. — Solto um suspiro. Tento parecer o mais
tranquila possível. Embora ele tenha sido parte do meu
universo por anos, de certa forma, por causa do meu pai, a
gente não se conhece. E ele ainda é um dos maiores astros
do mundo. — Tudo... tudo bem?
— Bom, queria dizer pessoalmente que você foi ótima no
Golden Apple ontem — diz ele. — Você e Olivia foram
especiais. Uma dupla incrível. Ela está aí? Tenho boas
notícias pra vocês.
Eu me encolho.
— Não, hum, não. É, não, ela não está.
— Ah, que droga! Queria pegar vocês duas no mesmo
lugar. Bom, então você conta pra ela, está bem? Adoraria
que vocês tocassem com a gente hoje, se quiserem.
Tenho quase certeza de que parei de falar e até de
respirar. Ele diz mais algumas gentilezas, coisas legais sobre
meu talento e aonde devemos ir mais tarde, mas a ligação
logo termina. Ele fala comigo de um jeito amigável, mas não
há qualquer indício de que saiba quem eu sou ou, melhor,
de quem eu sou filha. É isso. Eu consegui. Ganhei o Golden
Apple. E me sinto ainda melhor em saber que fiz isso sem
recorrer de nenhuma forma à relação do meu pai com a
banda.
Depois de desligar, embora eu vá negar se alguém me
perguntar se aconteceu, eu grito. Grito muito alto, um grito
agudo que chega a ser vergonhoso. Não consigo nem
conceber o que isso significa. Eu vou tocar, no palco,
durante o show principal do Kittredge hoje à noite. Meu
nome vai estar naquela placa ridiculamente enorme na
entrada, a mesma na qual o nome do meu pai foi escrito há
vinte anos. Isso é inacreditável. Tenho que ligar para Oli...
Meu coração para. Quero ligar para Olivia, comemorar
com ela — agradecê-la por ter me ajudado a conseguir. Mas
é claro que não posso. Não tenho coragem de comemorar
essa vitória com ela, e com certeza não consigo tocar com
ela hoje. Não estamos nem nos falando. E agora que ela e
Peter são seja lá o que forem, não sei se ela vai querer,
mesmo se eu considerasse.
Qual é o lado bom da música se você não pode
compartilhá-la justamente com a pessoa que te faz ter
vontade de cantar?
OLIVIA

DOMINGO À TARDE

Caminho de volta e me jogo no lugar onde antes ficava


nosso acampamento.
A única coisa que Imani ainda não guardou no carro é a
minha mala. É tão agressivo, sua mensagem tão clara, que
não aguento; começo a chorar de novo.
Eu achava que as minhas dores e o modo como eu
amava e desejava ser amada de volta eram tão singulares
que mereciam ocupar espaço não apenas na minha vida,
mas na dela também. E isso não é amar alguém. Eu arruinei
tudo com a minha melhor amiga e destrocei qualquer
chance de fazer as pazes com Toni — destruí dois
relacionamentos em uma tacada só. É um recorde pessoal.
A angústia no meu peito é diferente de tudo o que já
senti depois de um término. É mais profundo, algo que
parece ir até meus ossos, o tipo de mágoa que não pode ser
resolvida com sorvete e maratona de filmes. Isso eram
Band-Aids para curar minhas mágoas superficiais. Mas não
sei o que fazer com algo assim, tão entranhado. Não sei
como me recuperar de algo assim.
Abro a pochete para pegar o inalador, porque chorar
sempre ataca a minha asma. Minha mão toca nas pontinhas
das polaroides ali dentro. Pego as fotos e as espalho diante
de mim, na grama.
Enquanto vou olhando todas elas, me ocorre que a
quinta maçã ainda está em algum lugar por aí. Se parar
para pensar que passei o fim de semana correndo atrás
disso, ganhar o carro acabou virando uma coisa tão
insignificante diante de tudo o que aconteceu que quase
tinha esquecido de sua existência. Assim, é claro que
ganhar seria legal, mas não há mais qualquer urgência.
Ainda assim, por curiosidade, dou uma olhada no perfil e
na hashtag para ver se alguém achou a última maçã. Tem
um tempinho desde que olhei a página do
@EncontradoNoFarmland e, quando a abro, depois da última
pista, vejo que há vários quadrados pretos com o texto “Não
Há Lugar para o Medo no Farmland”.
O clima alegre e despreocupado do perfil — com fotos de
Farmers sorridentes na cabine da Fiat no Core entre uma
pista e outra — não existe mais. Parece que enquanto eu
estava ocupada estragando tudo de bom que ainda existia
na minha vida, alguém estava fazendo a mesma coisa com
esse espaço de alegria e comunidade.
Quando saio do Instagram, decido fazer uma varredura
geral nas redes sociais. Não sei o que me compele a checar
o Confidential. A parte racional do meu cérebro diz para
evitar o site com todas as forças. Mas, neste momento, não
consigo evitar. É quase uma compulsão, um velho hábito
que achei que já tinha perdido, fazer login e olhar minha
conta.
Acho que vou encontrar mensagens dos trolls de sempre,
mas, em vez disso, há apenas uma notificação: mensagens
diretas de @KMitch03. Mexo de forma nervosa o anel de
Imani no meu mindinho, como se a mania ansiosa dela
tivesse passado para mim.
Fez sentido quando vi que Troy tinha começado a ficar
com Kayla apenas duas semanas depois que terminamos. O
rosto dela poderia estar estampado na capa da Bíblia da
Boa Moça, com qualidades que iam de rainha do baile ao
campeonato de tênis que a Park Meade ganhou graças a
ela. Kayla fazia boas escolhas, sempre a coisa certa. Nunca
faria algo idiota como eu fiz. E, se fizesse, Troy nunca a
trairia dessa maneira.
Esse tipo de coisa não acontece com Boas Moças. Fecho
os olhos por um momento antes de abrir a mensagem,
tentando me preparar. O que quer que ela tenha a dizer
para mim, sobre mim, eu posso aguentar. Não vou usar isso
como combustível para minha próxima decisão ruim. Desta
vez, não vou tacar fogo na minha vida só para ressurgir das
cinzas como algo diferente, do jeito que Imani disse. Não
vale a pena. Não quando o preço disso é perder as pessoas
sem as quais eu não imagino minha vida.
De @KMitch03 para @OliviaTwist

Ei, sei que a gente não é amiga nem nada, mas vc é a


única pessoa que acho que vai entender e eu n sabia
mais o que fazer

Minha respiração acelera ao ler a primeira mensagem,


desta vez por um motivo bem diferente do anterior. Além de
Troy, Kayla e eu não temos mais nada em comum, nem
nunca tivemos.

Sabe aquilo que vc disse que ele fez? Eu sei q ele fez

Aperto o celular com tanta força que é capaz de o


plástico da capinha quebrar entre os meus dedos. Posso
sentir o suor começando a escorrer na parte de trás do
cabelo.

Ele me pediu pra mandar umas fotos umas semanas atrás, e eu não
queria pq sei o q pode rolar nesses casos, e você obviamente tb
sabe. Mas estamos juntos há seis meses, então mandei. Cortei meu
rosto, mas ainda assim, sabe?
Descobri que ele dormiu com Amelia Myers no luau
dos formandos semana passada e tentei terminar com
ele. E quando disse que pra mim estava tudo acabado,
ele disse que eu não podia terminar com ele porque
senão “todo mundo ia saber o que eu fiz”

Não quero ferrar com minhas chances em Stanford,


então não quero fazer nada mais para irritar ele

Não é possível. Não tenho nenhuma razão para achar


que Kayla inventaria isso tudo — assim, que motivo ela teria
para se colocar no mesmo lugar que eu, a não ser que fosse
verdade? Mas, de qualquer maneira, estou tendo
dificuldades para compreender. Como é possível que algo
assim aconteça a alguém como ela? Uma pessoa perfeita,
inteligente, o par ideal para Troy e o estilo de vida dele?
Assim que saíram as notícias, minha mãe deixou
bastante claro que ela preferia varrer o que aconteceu para
baixo do tapete a arriscar perder o emprego. Nia não
escondeu de ninguém sua opinião de que se eu não tivesse
feito algo tão irresponsável, não teria envergonhado a
família daquela maneira.
Então eu cedi, fiz algo no meio do caminho entre deixar
para lá completamente e tomar medidas legais. Achei que
isso abafaria as coisas, talvez ficasse tudo menos confuso.
Deixei nas mãos da escola. Deixei que eles marcassem a
data para uma audiência judicial e assisti a eles adiarem
para outra data, várias e várias vezes, durante meses. Até
que chegamos ao fim do segundo ano, Troy já estava sendo
disputado pela Duke, pela Universidade da Carolina do
Norte e pela Universidade Estadual de Ohio, e minha mãe
mal falava comigo desde o dia em que Troy postou as fotos.
Não havia uma resolução, nem nunca haveria. Porque
ninguém se importava com garotas como eu.
Mesmo que eles não dissessem com todas as letras, eu
sabia a verdade: não há nada a ser feito com garotas
negras que não “se dão ao respeito”, não são fáceis de
entender e nem são as melhores em tudo. Nós somos
descartáveis.
Todo esse tempo, as pessoas me disseram que eu
merecia o que tinha acontecido comigo. Que eu era
exagerada, eu mesma demais para merecer o mesmo tipo
de amor e respeito destinado a garotas como Kayla. Mas, já
que o que ela está dizendo é verdade, então aquilo não
tinha nada a ver comigo.
As palavras de Toni ontem à noite voltam de repente à
minha mente, com tanta força que me pegam
desprevenida. “Todo esse amor que você dá aos outros,
você merece guardar um pouco para si mesma. Você vale
muito.”
Você vale muito.
Kayla vale muito. Eu valho muito. Toda mulher vale
muito.
E enquanto garotos como Troy, que crescem e viram
homens com poder demais e ego demais, não responderem
por suas ações, isso vai continuar acontecendo. Não sei o
que vou dizer na audiência judicial na sexta-feira, mas sei
de uma coisa: eu valho mais do que a habilidade de Troy de
ganhar mais um campeonato estadual para a Park Meade.
Já estou digitando a mensagem de resposta quando duas
outras aparecem.

Não sei se você ainda vai voltar pra Park Meade, sei lá,
alguém disse que você ia mudar pra Ardsley? O que,
aliás, eca

Enfim. Seja lá o que vc for fazer, só por favor ferra


ele. Pra sempre
Saio do Confidential e abro o aplicativo da câmera. Talvez
eu não consiga consertar o que aconteceu entre mim e
Imani, talvez não fosse mesmo para dar certo com a Toni,
mas posso evitar que isso aconteça com outra garota. Posso
garantir que todo mundo saiba exatamente que tipo de
pessoa podre Troy é — como ele caça as garotas e usa
nossos corpos como instrumento de chantagem em seu
jogo de poder. Esperar que a escola fizesse a coisa certa
não funcionou, e ignorar tudo também não ajudou em nada.
Não posso deixar minha vida e minha felicidade nas mãos
de outras pessoas. Isso é algo que preciso fazer por conta
própria.
Se as pessoas quiserem espalhar uma história, a minha
história, então é melhor que espalhem a que eu contar. A
versão que eu controlo.
Ponho os ombros para trás, ajeito o rímel e aperto gravar.
“No início do segundo ano, comecei a sair com Troy
Murphy, pivô do time principal de basquete da Escola Park
Meade”, começo, tentando fazer minha voz parecer mais
confiante do que me sinto. “Naquele outono, ele violou
minha privacidade da pior maneira possível.”
Conto a história inteira. Mantenho contato visual com a
lente da câmera e imagino estar olhando diretamente para
ele. Quero que ele me veja e entenda a gravidade do que
fez. Quero que sinta medo. Eu me recuso a sentir vergonha.
Quando eu subir isso no site, vai ser o fim dos segredos.
Minha mãe vai saber que não estive no retiro da igreja o fim
de semana inteiro. Todo mundo na Park Meade vai saber o
que Troy fez comigo, e aí cabe a eles decidirem se vão
ignorar ou não. Decidirem se vão continuar apoiando
alguém como ele. Esse fardo eles é que vão ter que
carregar, não eu. Não posso deixar o emprego da minha
mãe, a afronta dos meus colegas ou o orgulho da minha
irmã me impedirem de viver a vida que mereço. Mesmo que
as pessoas que deviam ter feito isso não tenham me
defendido quando mais precisei, eu mesma posso me
defender.
Abro o Confidential.
E, antes que eu mude de ideia, aperto enviar.
Toni

DOMINGO À TARDE

Meu celular começa a vibrar no bolso de trás e penso em


ignorá-lo. Quando olho a tela, destravo o telefone e atendo.
— Oi. — Minha voz sai meio rouca depois dos gritos de
comemoração.
— Toni, meu Deus, que bom que você atendeu! — É a
voz alta e preocupada de Mack. — Você está bem, certo?
Como está Olivia? Onde vocês estão? Tentei ver se estava
tudo bem depois de tudo o que aconteceu ontem, mas
ninguém tinha sinal à noite e foi uma confusão. Pode vir
aqui pro ônibus ficar com a gente até a hora do show, se
quiser. Está meio solitário aqui porque a equipe inteira
saiu...
— Está tudo bem — interrompo.
Meu estômago revira com a mentira, mas só quero que
ela pare com o trem desgovernado das preocupações. Não
nos vemos ou nos falamos há anos, então toda essa aflição
me choca um pouco. Por que ela está tão apreensiva por
uma garota que mal conheceu quando era criança?
Não entendo, mas avalio a oferta. Acho que talvez seja
uma boa ideia passar um tempo com outra pessoa em vez
de me afundar ainda mais em mim mesma.
— Onde você está?
Ela passa as instruções para chegar ao local onde o
ônibus da turnê está e diz que vai me encontrar no portão
para me colocar para dentro sem a pulseira necessária. E aí
desligamos.
Não levo mais de dez minutos para chegar ao
estacionamento dos fundos, onde ficam os ônibus de turnê.
— Toni! — Mack passa pelos seguranças que guardam a
entrada e me dá um abraço. Acho que tudo é meio diferente
quando o mundo parece estar desmoronando. — Que bom
que você está aqui! Deve ter ouvido que a banda vai tocar
hoje, né? Está tudo supercaótico, mas, sabe, um caótico
bom, não ruim. — Ela se apressa enquanto andamos em
direção a mais um grupo de seguranças. Estão em menor
número porque vamos entrar numa área mais exclusiva,
mas ainda assim. — A banda está fazendo vários planos
para o show de hoje. Vai ser demais.
Um dos seguranças insiste em me revistar, e concordo,
com os dentes trincados. Entendo que é necessário, mas
aqueles toques todos me deixam irritada. A proximidade
física não é muito natural para mim, mesmo que neste caso
seja totalmente profissional e mecânica. Até poucos dias
atrás, eu nem conseguia abraçar as pessoas
completamente. Até que...
Tento não pensar em Olivia, mas todos os pensamentos
voltam para ela. Não consigo evitar. Em menos de 72h, ela
se tornou uma grandiosa cacofonia e, sem sua presença, o
silêncio é sufocante. De fato, como pensei, me abrir para
mais alguém além de Peter e da minha mãe dói. E dói mais
do que eu imaginava.
Quando chegamos à porta do ônibus, Mack coloca a mão
no meu ombro, e é só então que percebo que estou
chorando. Agora sou o tipo de pessoa que chora na frente
dos outros sem nem perceber. Que ótimo.
— Você está bem?
Viro o rosto para o lado e fecho os olhos para evitar as
lágrimas que estão vindo.
Consigo sentir os braços finos de Mack me abraçando por
trás, e ela me envolve por todo o tempo que preciso.
Quando enfim acaba, eu entendo. O que as Verdades do
meu pai queriam dizer. Por que nos voltamos para a música
buscando respostas que não conseguimos encontrar
sozinhos. Nesse momento, só consigo fazer uma coisa.
— Pode pegar um violão emprestado um minutinho? —
Seco os olhos. Mack imediatamente passa por mim e pega o
violão que está em cima da mesa. — Tem uma música que
preciso escrever.

Terminar uma música pela primeira vez em oito meses faz


com que eu me sinta como se alguém tivesse tirado uma
pedra de cima do meu peito. Sabia que minha respiração
andava mais curta, mas, até então, não me lembrava mais
como era expirar sem esse peso.
Leva mais ou menos uma hora, ao todo, para encontrar
as palavras que capturem o modo como me sinto. Mas as
notas surgem facilmente. Essa parte sempre foi a mais
natural para mim — encontrar os acordes que combinem
com o que estou querendo dizer. Isso me lembra de Olivia
combinando suas fotos com aquelas frases que eram quase
letras de música. Mas agora pensar nela não é um peso, é
mais como uma luz. Como se eu pudesse ver com mais
clareza o que não conseguia antes desta tarde, antes desse
fim de semana inteiro, na verdade.
O ônibus está vazio e me sinto como uma penetra, uma
intrusa, sentada aqui com o violão de sei lá quem nas mãos,
mas Mack me garante que está tudo bem.
A maior parte do pessoal da banda está por aí, junto com
os voluntários, limpando todo o estrago causado pelo caos
que se estabeleceu depois do disparo acidental, enquanto
Teela e Davey estão no escritório do Farmland em ligações
com empresários, agentes e os organizadores do festival
para decidir o que fazer. Mack passou a maior parte do
tempo no FaceTime com a namorada, encolhida num dos
beliches nos fundos, tentando fazê-la acreditar que está
tudo bem e seguro.
Ela se joga na cadeira ao meu lado enquanto
experimento algumas notas, tentando entender se a ponte
está certa ou se tem algo levemente fora do tom.
— Você devia tentar um Lá menor aí em vez do Fá —
sugere.
Tento, e ela está certa. A diferença é mínima, mas é o
suficiente. Finalmente parece certo.
— Teela quer que os outros artistas principais do festival
se apresentem com eles hoje. Sonny Blue, Pop Top, Odd
Ones, todo mundo que ainda estiver aqui, para fazer um
show gigantesco, a noite toda.
Parece o tipo de coisa que meu pai com certeza apoiaria.
Se shows ao vivo eram o altar diante do qual meu pai se
ajoelhava, de jeito nenhum ele deixaria o medo do que
poderia acontecer profanar seu objeto de adoração. A
maneira como Teela e Davey estão agindo para recuperar o
festival parece uma homenagem ainda maior a ele do que a
que aconteceu no funeral.
— Acha que as pessoas vão ficar até o fim da noite? —
pergunto.
— Sim, acho de verdade. — Mack concorda tão
veementemente com a cabeça que as baquetas que
prendiam seu coque caem no chão. Ela as pega e começa a
girá-las nos dedos com tanta rapidez que fica nítido que é
quase instintivo. — Ouvi dizer que...
Alguém bate forte na porta e nós duas damos um pulo.
Mack segura a baqueta como se fosse um taco de beisebol
e chega perto da porta devagar. Olha pelo vidro da janela
antes de decidir abrir. Deixo o violão de lado e me levanto,
só para o caso de ser alguém que eu precise afugentar com
meu olhar agressivo ou meu gancho de esquerda
surpreendentemente forte.
Mas a pessoa que entra atrás de Mack não é de jeito
nenhum alguém em quem eu queira dar um soco.
Talvez eu quisesse umas duas horas atrás, mas ver Peter
agora só me deixa triste.
— Toni, pelo amor de Deus, procurei você em todos os
lugares. Você não atende o telefone!
— Como você conseguiu entrar aqui, Peter? — Cruzo os
braços e me apoio na mesa do jeito mais casual possível.
— Era de se imaginar que os seguranças seriam um
pouquinho mais cuidadosos em checar as lixeiras que
entram e saem da área VIP. — Ele balança o cabelo para tirá-
lo do rosto e cai um pedaço de alface. Põe o boné de volta.
— Precisava te encontrar, cara. Você precisa saber que eu
nunca...
— Como exatamente você me encontrou? — interrompo.
Ele levanta o celular.
— Tenho as suas informações do Encontre meu iPhone,
lembra? — Ele ao menos tem a decência de parecer meio
envergonhado por isso e acrescenta: — Não faria isso se
não fosse uma emergência, está bem? E assim, eu também
preciso saber como você veio parar no ônibus de turnê do
Kittredge, mas beleza, isso é história pra outra hora.
Olho por cima do ombro dele para Mack. Foi legal da
parte dela me chamar para ficar aqui e me deixar chorar
sem fazer nenhuma pergunta, mas essa é uma conversa
que eu deveria ter em particular. Ela aperta meu ombro
demonstrando seu apoio e vai para a área das camas com o
fone de ouvido.
— Não quero saber, está bem? — digo, me sentando na
ponta do sofá. — Eu só... não quero ouvir nada disso.
— Não, mas, T, por favor. Você precisa ouvir. Você é
minha melhor amiga, sabe disso. Eu... — Ele para. Tira o
boné e mexe nele com as mãos. — Estava tudo uma
confusão enorme. Eu ainda estava com raiva e com medo,
então Imani me mandou uma mensagem e eu
simplesmente... Não devia ter chegado tão perto de beijar a
Olivia. Sei disso. — Ele se senta ao meu lado e seu rosto
está mais sério do que nunca. — Nunca vou deixar de me
sentir o pior dos lixos por ter deixado chegar tão longe. Me
desculpa, T.
Não quero perdoá-lo. Ainda sinto a pontada da traição e
não sei se estou pronta para deixar para lá.
— Eu nunca menti pra você, certo? Tipo, você me
conhece bem. Não estou mentindo agora. Está bem?
Paro por um segundo para analisá-lo de verdade, esse
cara que eu achava ser meu melhor amigo. Peter sempre foi
brutalmente sincero, quase a ponto de causar vergonha
alheia. Ele chora sem rodeios em filmes românticos quando
fazemos sessões de Netflix pelo FaceTime. Ele faz carinho
em todo cachorro que encontra na rua. Não pensou duas
vezes quando o chamei para vir ao festival comigo
simplesmente porque eu sabia que mudaria a minha vida.
Peter Menon, eu me dou conta, é a coisa mais
consistente da minha vida.
Penso na minha nova música, nas Verdades que juntei
neste fim de semana entre shows e momentos fortuitos
atrás de galpões. Penso no que quero para minha vida e nas
pessoas que quero que estejam nela.
— Tudo bem — digo. Engulo o nó na minha garganta e
digo de novo, com mais firmeza. — Tudo bem, Menon. Mas
apronta uma merda dessas de novo, ou quase apronta uma
merda dessas de novo, e vou dar uma de Van Halen em
2004 e tacar meu violão na sua cara. Combinado?
— Sim! Ai, meu Deus, obrigado! Nunca fiquei tão feliz
com uma ameaça à minha integridade corporal. — Peter se
inclina e faz uma reverência dramática em vez de me
abraçar, como sei que quer fazer. Ele ainda me dá o espaço
de que preciso sem eu nem precisar pedir. — Estava tão
preocupado achando que teria que devolver as jaquetas
jeans combinando com nossos rostos pintados que mandei
fazer pro seu aniversário de dezoito anos. Custam, tipo, um
semestre de salário mínimo do Java Hut.
Eu rio porque não consigo evitar. Mas um segundo depois
já lembro por que estava no fundo do poço antes. Então,
mesmo que Peter não tenha beijado Olivia, com certeza
absoluta parecia que ela queria beijá-lo, e isso é outra
questão totalmente diferente.
— Posso dizer uma coisa? — Ele se senta ao meu lado no
sofá.
— O fato de eu não dar permissão alguma vez te
impediu?
— Bem observado. — Ele me olha com a expressão séria
por um momento. Do lado de fora do ônibus, ouço o barulho
suave das gotinhas de chuva batendo na lataria. — Sabe
por que gosto de decorar fatos sobre os presidentes
mortos?
— Porque você é esquisito — digo e dou de ombros.
Nunca pensei por que Peter faz as coisas que faz.
Aprendi a aceitar as estranhezas dele assim como ele
aprendeu a aceitar as minhas, sem questionar.
— Ah, claro, isso não está totalmente errado. — Ele
revira os olhos e dá um sorrisinho. — Mas, mais do que isso,
é uma maneira de dar sentido às coisas. Os Estados Unidos
foram fundados por caras esquisitos, babacas que não eram
os mais espertos da turma. — Fico lembrando alguns dos
fatos que Peter já me contou sobre esses caras brancos ao
longo da nossa amizade e percebo que ele está certíssimo.
— E, ainda assim, eles conseguiram convencer o mundo de
que este país é algum tipo de potência global.
— Acho que isso também é culpa do racismo — comento.
— Ah, com certeza — responde ele, rindo. — Acho que o
que quero dizer é que gosto de saber que esses caras eram
um desastre completo. Se alguém confiou a eles isso tudo
aqui — ele faz um círculo com o indicador no ar —, por que
não deveríamos confiar em nós mesmos com todo o resto?
Fecho os olhos e balanço a cabeça. Eu devia saber que
ele ia arranjar um jeito de bancar o terapeuta para cima de
mim antes que o fim de semana terminasse. Seu rosto está
sério quando o olho novamente.
— Está dizendo que devo confiar a mim mesma o
coração de alguém, Menon?
— Não, estou dizendo que devia confiar a ela o seu
coração. — Ele bate o ombro no meu. — Você gosta mesmo
da Olivia, não é? Assim, apesar do que aconteceu mais cedo
e tudo mais. Quer ter ela por perto?
Não adianta mentir para Peter. Ele sabe a resposta de
qualquer forma — e tenho certeza de que está escrito em
cada centímetro do meu corpo como me sinto até mais
alerta ao ouvir o nome dela.
— E daí? Você faz umas merdas às vezes. Todos nós
fazemos. Isso significa que não vale dar uma chance?
Peter é um otimista incorrigível, então normalmente
aceito os conselhos dele com ressalvas. Mas, a essa altura
do campeonato, preciso ceder. O fato é que não importa o
quanto tente convencer a mim mesma do contrário, não
consigo ficar com raiva dela.
Estou com raiva principalmente de mim mesma por
pensar que terminar com ela hoje de manhã seria o
suficiente para desligar magicamente a parte do meu
cérebro que se apaixonou por ela. Estou com raiva porque
esperei tantos anos para me permitir sentir o que sinto
quando estou com ela, porque eu achava que solidão era o
antídoto para coração partido.
Mas eu sei agora mais do que nunca: solidão só gera
mais solidão, não te impede de se machucar. Talvez seja aí
que entra o amor. O risco de se machucar é compensado
pelo resto. Pelas noites que você passa dançando dentro de
celeiros, pelas tardes que você passa cantando aos berros a
música de sua banda favorita ao lado de dez mil fãs tão
apaixonadas por eles quanto você, ou pelas manhãs em que
você acorda aninhada com a outra pessoa numa barraca
quente demais.
Quando meu pai disse que eu ia ser grande um dia,
talvez ele estivesse falando sobre música. Mas talvez não.
Talvez estivesse dizendo que eu estava destinada a viver
um grande amor, a gostar de alguém e aquele sentimento
ser recíproco. Só de pensar nisso ainda fico com medo.
— E se a pessoa tiver um limite do quanto ela pode
perder antes de desmoronar completamente? — pergunto.
— Não sei, cara — diz ele. — Mas preciso acreditar que
as pessoas que sobrarem vão me amar o suficiente para me
ajudar a colar meus caquinhos de volta.
Eu assinto. Acho que é assim que a música nos dá as
respostas. Olivia é um tipo de melodia que transformou meu
universo em canção, e me dou conta de que quero passar
quanto tempo eu puder tentando descobrir todas as suas
notas. Não quero mudá-las, mas não consigo pensar em
nada melhor do que apreciar sua beleza.
— Então. — Ele aponta com a cabeça para o violão na
mesa e a letra rabiscada com pressa. — Vai resolver esse
negócio aí agora ou o quê?
— Peter — digo. — Vou precisar da sua ajuda para
montar um plano.
Vou pedir todos os favores que puder. Vou botar em
prática a primeira lição que meu pai me ensinou: qualquer
coisa pode ser resolvida com um show ao vivo. Vou fazer
aquilo de que tenho mais medo.
Vou reconquistar Olivia.
Olivia

DOMINGO À NOITE

— O que você está fazendo aqui? — Imani se levanta do


cooler onde estava sentada quando chego.
Fico paralisada. Ela não parece mais tão irada quanto
antes, mas com certeza não está feliz em me ver. Fico
imediatamente intimidada, embora não esteja aqui por
causa dela. Eu vim porque fui chamada.
— Peter disse que precisava me encontrar aqui.
Olho para a mensagem de Peter pedindo que eu e Imani
voltássemos ao acampamento em meia hora. Parecia
urgente, sem seus habituais emojis e memes, então
respondi logo de cara.
“Desculpa”, mandei uma mensagem de áudio para ele
entender que eu queria conversar melhor sobre aquilo. “Eu
passei dos limites mais cedo. Não foi justo com você. Nem
com Imani, embora por motivos bem diferentes e... Bom,
me desculpa. Não vai acontecer de novo.”
“Sei que não vai, amiga. Eu estava meio fora de mim
também”, respondeu ele, rapidamente. “Teria sido bem
esquisito se a gente se beijasse, já que você e minha irmã
de outras vidas vão voltar a ficar juntas, sabe?”
Não disse a ele que não tem a menor chance de isso
acontecer, que Toni e eu terminamos oficialmente antes
mesmo de eu tentar beijá-lo.
Mas, agora, parada aqui diante de Imani, fico desejando
que Peter tivesse me dito logo o que queria. Ou queria ter
pensado melhor e evitado chegar cinco minutos antes do
combinando. Imani sempre chega quinze minutos antes. É
esse sol em capricórnio.
— Mesma coisa comigo. Preferia que ele tivesse me
mandado logo uma mensagem dizendo o que queria em vez
de fazer esse teatrinho todo. O show do Kittredge vai
começar daqui a pouco e quero pegar um bom lugar. — Ela
olha para o celular para checar a hora. E acrescenta,
baixinho: — E então finalmente vou poder ir embora desse
deserto infestado de germes.
Imani se senta de volta no cooler. Bom, ela meio que se
joga, na verdade, como se o corpo estivesse pesado demais
para conseguir ficar em pé. Nem parece mais estar com
raiva, parece só... esgotada. Essa imagem parte meu
coração. E embora eu saiba que não é nem perto de ser o
suficiente, preciso dizer a verdade a ela.
— Desculpa — solto impulsivamente.
Bom. Lá se vai meu discurso emocionado.
Ela esfrega as têmporas.
— Sério mesmo, Olivia. Não precisamos fazer isso. Eu
entendo.
— Como você entende se nem eu mesma entendia até,
sei lá, uma hora atrás? — Eu me sento no espacinho ao lado
dela. Penso um pouco tarde demais que talvez esteja muito
perto e Imani fique desconfortável, mas ela não me empurra
para o chão, então acho que é um bom sinal. — Eu fui um
pesadelo de pessoa desde que nos conhecemos.
Ela olha para mim e põe as mãos no colo. Continuo.
— Você é a melhor pessoa que eu conheço. E sei que isso
talvez seja algo gigantesco para se dizer a alguém, mas é o
que acho mesmo. Você é a primeira pessoa pra quem penso
em ligar quando tenho novidades. A última para quem
mando mensagem toda noite antes de dormir. — Não é
muito difícil listar as coisas que amo em Imani, ou os
motivos pelos quais quero recuperar essa amizade. — Você
é uma gênia, literalmente. Já foi provado. Tem a segunda
maior média da história da Park Meade, eu pesquisei. A
primeira é da minha irmã, aliás, e vou tratar isso na terapia
quando voltar pra casa. Mas você não faz as outras pessoas
se sentirem burras ou menores em comparação. É só, sabe,
mais uma coisa que faz você ser você. — Olho para o rosto
dela buscando algum tipo de compreensão. — Mas...
— Mas você não me ama do mesmo jeito que eu te amo
— completa ela.
Balanço a cabeça, triste. No fim das contas, esse é o
ponto central. Não posso ser essa pessoa para Imani porque
simplesmente não sinto a mesma coisa.
Mas posso ser a melhor amiga na história das amizades,
o que pretendo fazer até que nós duas estejamos velhas,
grisalhas e andando na Parada do Orgulho LGBTQIA+ lado a
lado, como aquelas senhoras icônicas que sempre carregam
os melhores cartazes e usam roupas cafonas de arco-íris.
Precisamos conversar muito para entender como vai
funcionar essa nova dinâmica entre nós, as duas seguindo
em frente e sendo totalmente sinceras pela primeira vez na
vida, mas acho que vamos conseguir.
Ela balança a cabeça e olha para o céu antes de soltar
um suspiro típico de Imani.
— Tenho pensado sobre como você deixa suas meias
sujas no meu quarto, às vezes, quando dorme lá em casa,
ou como acha que abacaxi na pizza é uma coisa aceitável.
— É criminosa a forma como o abacaxi é subestimado,
Imani, e você sabe — digo.
— Não, é só criminoso mesmo, mas não é essa a
questão. — Ela passa a mão no cabelo e o coloca todo sobre
um dos ombros. — A questão é: acho que talvez eu tenha
sido injusta com você também. Eu te coloquei num
pedestal, encarei você como uma coisa que eu merecia
ganhar algum dia. Como se eu tivesse o direito porque
esperei ou fui uma boa amiga. E sinto muito pela forma
como lidei com tudo hoje — diz ela. — Só acho que —
recomeça, chegando um pouco para trás para me olhar nos
olhos — nenhuma de nós está olhando para a outra e vendo
quem nós somos de verdade. E isso não é justo.
Ela está certa. Talvez nenhuma de nós enxergue a outra
direito há muito tempo, e eu espero que isso seja o começo
de algo novo. Algo melhor. Ela não me perdoou ainda, mas
tenho esperança de que ainda vai. De que podemos
consertar isso. De que esse é um relacionamento pelo qual
vale a pena lutar.
— Ei. — Ela olha para minhas mãos no colo e passa o
dedo no anel. — Você pegou.
Quando ela levanta a cabeça, observo seu rosto: olhos
suaves, lábios levemente curvados num pequeno sorriso.
Faço que sim, mas não digo nada. Quero dar espaço para
ela dizer o que precisa agora.
— Aliás, vi o que você postou no Confidential — diz. Ela
tira uma folhinha de grama do meu ombro. — Foi muito
corajoso. Estou orgulhosa de você.
Não sei o que vai acontecer com o vídeo ou com Troy.
Mas agora está aí, no mundo. Pelo menos fui honesta. Uma
vez, li uma frase da Zora Neale Hurston que dizia: “Se você
se cala a respeito da sua dor, vão te matar e dizer que você
gostou”.
Bem, eu me recuso a ficar calada. Eu me recuso a deixar
alguém fazer eu me sentir culpada por querer ser tratada
com respeito.
Não postei o vídeo por Imani, é claro, mas ouvi-la dizer
isso é bom. É ótimo.
Levanto o mindinho e sugiro a promessa mais sagrada
que existe.
— Amigas para sempre?
Ela olha para minha mão parada entre nossos rostos por
um momento, e tenho medo de que não acredite na minha
promessa depois das tantas que quebrei ultimamente.
Quando ela sorri e entrelaça o mindinho com o meu, é como
se algo tivesse acendido dentro de mim.
— Combinado — diz.
Beijo o dedão dela, e ela beija o meu, e sei que, não
importa o que aconteça, esse é um relacionamento pelo
qual nunca vou parar de lutar.
— Meninas! — Peter vem correndo e para com as mãos
nos joelhos, quebrando nosso momento emocionante. Ele
está sem fôlego, como se tivesse vindo correndo do Core. —
Que bom que estão aqui.
— Você pediu para virmos, Peter — responde Imani, sem
paciência como sempre.
— É verdade.
Ele ajeita a postura e aperta os lábios. Peter se move de
forma solene à nossa frente. Está com seu habitual boné do
Oakland A’s nas mãos, e mexe nele de forma nervosa. Está
se comportando de um jeito tão diferente do normal que
estou com um pouco de medo do que vai falar.
— Imani, preciso te pedir desculpas — diz, sério. É a
primeira vez que vejo esse tipo de expressão em seu rosto,
e fico meio perturbada.
Imani põe a palma da mão no rosto e solta um gemido.
— Peter, nós. Não. Estávamos. Juntos. Você não me deve
nada. Pode beijar quem você quiser.
— Não, não, não estou falando disso. — Ele balança a
cabeça. — E a gente não se beijou! Mas, tá bem, não é essa
a questão. A questão é que fui grosso com você ontem à
noite, e não devia ter sido. Eu queria que você estivesse a
fim de mim do mesmo jeito que eu estava de você, porque
você foi muito legal comigo. E aí perdi o controle quando vi
que não estava. Foi bem babaca da minha parte.
Por um segundo, Imani abre a boca, mas não sai
nenhuma palavra. Acho que talvez ela precise de uma
reinicialização do sistema.
— Imani? — cutuco devagar.
— É. — Ela balança a cabeça. — Desculpa, é. Obrigada.
Por, hum, dizer isso. Não estou acostumada com... Foram
muitos pedidos de desculpa hoje. Então. Obrigada. Tudo
bem.
Peter se ilumina e imediatamente abre os braços para
um abraço.
— Permissão para me aproximar, Vossa Excelência?
Imani revira os olhos, mas abre um sorrisinho discreto.
— Permissão concedida, sua criança grande.
Peter a envolve num abraço enorme e a levanta do chão.
O rosto de Imani fica um pouco vermelho diante de todo o
afeto, mas ela dá um tapinha nas costas dele antes de ser
colocada de volta no chão.
— Agora, olha só. Preciso que vocês duas venham
comigo imediatamente. Tem um negócio muito sério rolando
onde precisamos estar, e a presença de vocês duas é
obrigatória.
Ele coloca o boné virado para trás e aponta com dois
dedos para nós. Imani se arrasta atrás dele, como se
alguém a estivesse puxando pelos dentes. Eu rio, e ela me
lança um olhar severo que logo se transforma num sorriso
típico. Não é me receber de braços abertos, mas é alguma
coisa. Vou aceitar por enquanto.
Percebo que, embora eu goste de Toni, por mais que
quisesse que as coisas entre nós tivessem dado certo, eu
não preciso ficar com ela. Não preciso da atenção dela para
me sentir completa. Não mais. De agora em diante, vou
lutar para ser Olivia Brooks, em toda a sua glória imperfeita,
e isso vai ser o suficiente. Tenho um longo caminho para
trilhar e muitas coisas para corrigir, mas acho que esse é
um bom lugar para começar.
TONI

DOMINGO À NOITE

Admito que teria usado qualquer desculpa para mandar


uma mensagem para Olivia, mas dizer a ela que ganhamos
o Golden Apple é uma ótima opção. Ela demora duas horas
para responder e, quando faz isso, sinto uma pontada no
coração. É uma mensagem tão curta e formal que parece
um adeus.

A apresentação sempre foi sua mesmo. Você vai se sair bem. Boa
sorte.

Tento não pensar muito nem deixar isso me desanimar. É


sucinto de uma maneira nada típica de Olivia, mas não
significa que devo perder as esperanças de que o plano dê
certo. Não significa que tudo o que aconteceu antes do meu
término equivocado tenha desencadeado o pior desenrolar
possível dos acontecimentos. Agora, tudo o que posso fazer
é torcer para que as coisas saiam como o planejado.
Quando Peter sai para encontrar Olivia e Imani, vou para
o palco principal fazer um breve ensaio e a passagem de
som. Quando chego nos bastidores, algumas horas antes do
show, Teela é a primeira a me cumprimentar.
— Você deve ser a Toni! — Ela sorri, e quase me derreto
toda. De repente, lembro que todos os boatos são reais: ela
é tão linda pessoalmente quanto na televisão. Cortou bem
curtinho o cabelo que costumava ser preto e pintou de loiro,
e está usando um vestido tubinho de couro sintético. Olivia
ia amar. — Estou ansiosa pra tocar com você hoje.
Murmuro um “obrigada”, mas um cara da equipe técnica
nos interrompe, trazendo uma guitarra Epiphone Les Paul
Standard dourada linda. Teela sorri de forma gentil para ele,
os olhos apertados, e explica que ela na verdade precisa da
Epiphone Les Paul Special.
— Estamos com menos um técnico de guitarra no
momento, então as coisas estão meio confusas — explica
ela, quando ele sai correndo se desculpando. — E as
pessoas seguem acreditando nesse boato ridículo de que
estou grávida e a banda vai entrar em hiato, então tem sido
difícil arranjar um substituto. — Teela balança a cabeça e
ajeita o retorno no ouvido. Seus olhos analisam minha case
velha no chão, jogada ao meu lado. Fico quase com
vergonha do quão surrada ela está, até que Teela diz: — Eu
tinha um amigo com uma case exatamente assim. Ele
gostava dessa coisa de se lembrar de cada show em cada
cidade.
Seus olhos ficam suaves e tristes, e explico a conexão
para ela.
— Essa case era do meu pai — digo. Tento manter a voz
firme. — Jackson Foster.
Ela fica de queixo caído, e consigo ver em seu rosto as
peças se juntando.
— Toni... Você é a Toni do Jackson. — Ela põe as mãos nas
duas bochechas e balança a cabeça. — Davey vai adorar
isso.
Minha mãe não vai acreditar na coincidência, como de
alguma forma eu e meu pai acabamos parando nessa
mesma situação incrível e inimaginável com duas décadas
de diferença, ambos nos últimos dias antes do resto das
nossas vidas. Parece um sinal. Minha mãe encontrou o que
ela amava, transformou em carreira e nunca nem por um
segundo me fez duvidar do quanto eu era importante para
ela. Talvez eu possa ser mais do que um prato cheio das
ansiedades dos meus pais. Talvez possa achar um jeito de
amar de maneira completa, e também feroz, sem precisar
escolher um ou outro.
— Se vocês estiverem procurando técnico de guitarra...
— digo, enquanto o som da bateria fica alto no palco logo
atrás de nós. Parece que está batendo junto com meu
coração. — Eu tenho um pouco de experiência. — Dou de
ombros. — Está praticamente no sangue.
Teela aperta os lábios e faz sinal para uma mulher que
está ali perto. Ela vem em nossa direção com um headset
na cabeça, o rosto corado e a pele brilhando pela umidade.
O cabelo está caindo do rabo de cavalo baixo, e sua roupa
preta está com marcas de suor no pescoço e nas axilas. Na
mesma hora, tenho certeza de que essa é a mulher que
comanda as coisas por aqui.
— Toni, essa é a Meredith, nossa gerente de produção. —
Ela aponta para mim. — Mere, Toni é uma gênia com as
guitarras. Filha do Jackson. Acha que temos uma vaga pra
ela na perna europeia da turnê?
A conversa é rápida, mas objetiva. Meredith me orienta a
ligar para ela amanhã e encontrar meu passaporte.
— Teela — chamo, depois que Meredith sai para buscar o
técnico de som. Teela abre um sorriso encorajador e tento
engolir o nervosismo. Isso é uma aposta alta, e
definitivamente um risco, mas preciso perguntar. — Você se
importaria se não tocássemos uma música do Kittredge
juntas hoje? Tem uma coisa muito... importante pra mim
que preciso tentar fazer.
Ela põe a mão nos quadris e balança a cabeça, mas não
perde o sorriso.
— É uma daquelas Verdades, né? — pergunta ela,
repetindo as palavras do meu pai como se fosse a coisa
mais natural do mundo. — Você parece muito com seu pai,
sabia?
E, pela primeira vez, a ideia de ser como meu pai não
soa como algo assustador. Soa como um elogio.
— Eu ficaria honrada — aceita ela.
Ainda tem muita coisa no ar, tantos problemas que
preciso resolver que já perdi a conta. Mas este é um
momento importante. Essa chance pode ser tudo.
Qualquer que fosse o plano que eu estava buscando
neste fim de semana, acho que encontrei.

O ensaio acaba antes mesmo que eu me dê conta. É tudo


muito surreal. Tocamos a música algumas vezes, outra
pessoa da equipe indica minhas deixas e, antes que eu
perceba, já está na hora de começar o show. A multidão
gigantesca que costuma assistir ao último show do festival
é um pouco menor do que o normal, mas ainda assim é
muita gente. Fico olhando as pessoas chegando até a grama
estar toda coberta de Farmers a perder de vista. Quando o
show começa, o volume dos gritos preenche o ambiente
como se houvesse um milhão de pessoas ali, e não apenas
dezenas de milhares.
O substituto do técnico de guitarra que vi mais cedo
esbarra em mim sem querer a caminho do palco para
entregar a Davey sua Strat preta e branca de canhoto. Ele
sussurra um pedido de desculpas enquanto anda. A equipe
está ocupada garantindo que dê tudo certo, e a escala do
trabalho da produção é maior do que todo mundo esperava,
dada a quantidade de artistas e bandas participando. Olho
para a esquerda e vejo Bonnie Harrison apoiada numa
pilastra bebendo uma garrafinha de água e acho que vou
vomitar um pouquinho. Com que frequência ficamos assim
ao lado dos nossos ídolos? Tocamos no mesmo palco que
eles? Só de pensar nisso minha cabeça gira, e fico
imaginando se alguém perceberia se eu me deitasse aqui
rapidinho para me recompor.
Na minha frente, vejo Davey dominando a plateia, como
se tivesse nascido para isso. Seu cabelo longo e ruivo
balança quando ele fala entre as canções. O show começou
há quinze minutos, mas parece que eles estão ali há horas.
O Kittredge mal tinha tocado a primeira música, “More Than
Ruins”, e duas pessoas da área VIP já tinham subido na
grade de metal diante do palco para fazer um crowd surfing
na plateia. Há tantos cartazes e totens feitos pelos fãs que
mal dá para ver quem está lá atrás. Pessoas com cangas
pintadas às pressas com dizeres como “FARMLAND É PARA
SEMPRE” e “AQUI AINDA É A NOSSA CASA” sacodem bem alto suas
mensagens, para que todo mundo veja.
Mas é o conjunto de vozes que não para nunca —
cantando as músicas e também entre uma e outra — que
torna esse show diferente de todos os que já vi no Farmland.
O rugido constante da massa de gente que forma a plateia
faz o chão tremer e os pelos dos meus braços se
arrepiarem. É impetuoso, orgulhoso e destemido. É o som
mais lindo que já ouvi.
— Sabe — diz Davey, pegando o microfone com uma das
mãos e segurando o braço da guitarra com a outra. — Tem
muita gente que acha que não devíamos estar aqui hoje. —
A voz dele ressoa sobre a multidão, ainda mais amplificada
que o habitual, para se sobrepor ao som da chuva que cai
sobre nós agora. — Gente que acha que o Farmland pode
ser destruído pelo medo.
Todo mundo vai à loucura quando ele diz isso. É um som
retumbante, imutável. Essas pessoas se recusam a se
submeter ao medo. Eu entendo os Farmers que foram
embora mais cedo, que acharam estar mais seguros assim,
mas tem alguma coisa nessa plateia que está agora diante
do palco que faz valer a pena ter passado pelo pesadelo
para encontrar esse sonho.
Sonny Blue vai entrar no palco para tocar algumas
músicas daqui a pouco, já que o show deles de ontem à
noite foi cancelado e, depois disso, o vocalista do Odd Ones
vai fazer um cover do Queen junto com Davey. Pop Top vai
cantar um single novo de seu próximo álbum e até o DJ
Louddoc vai participar, dando um toque de house music em
algumas músicas de estilo mais folk do Kittredge. Todos os
principais artistas do fim de semana vão se unir para
celebrar o espírito do Farmland.
— Tem gente que acha que vamos ficar quietos, com
medo — continua Davey, o público reagindo a cada frase. —
Mas essas pessoas não conhecem o Farmland como eu
conheço. Essas pessoas não entendem o Código Farmer.
Ele fica com a voz trêmula, e aquela emoção invade a
todos nós como uma onda. Esse Farmland pode até ter
assustado todo mundo como nunca antes, mas este lugar, o
que ele significa, não pode ser tirado de nós.
— Aqui, nós cuidamos uns dos outros. Isso é uma família.
Esse lugar sempre teve seus problemas, mas, apesar de
tudo, sempre foi um lar para mim. Essas pessoas são o meu
tipo de pessoa. O Farmland sempre mudou minhas
prioridades. Aqui, eu consigo baixar as minhas defesas e me
permitir sentir tudo que fico com medo de sentir em outros
lugares.
Foi isso que abriu espaço para Olivia, e eu nunca deixarei
de ser grata por essa oportunidade.
Davey explica que nos telões ao lado do palco há um
número para o qual as pessoas podem mandar mensagem e
doar dinheiro para o Newtown Action Alliance, uma iniciativa
fundada após o tiroteio no Sandy Hook. Enquanto eu estava
trabalhando na minha música hoje mais cedo no ônibus, era
isso que a banda estava organizando, e ver tudo sendo
colocado em prática é incrível.
Neste momento, há diversos tipos diferentes de
nervosismo no meu corpo. Ainda sinto aquela umidade
grudenta que vem com a chuva e continua no corpo mesmo
depois que você se secou, mas vem um calorzinho ao
pensar no que está por vir. Mesmo que Olivia não me aceite
de volta depois disso ou não queira dar uma chance para
nós, pelo menos eu terei tentado. Posso suportar o coração
partido se ela não quiser tentar de novo. Bom, talvez ela
nem esteja na plateia. Mas preciso fazer isso.
Pela primeira vez na vida, vou colocar meu coração nas
mãos de outra pessoa e confiar que ele será tratado com
cuidado. E se ela estiver disposta, vou fazer o mesmo com o
dela.
— Senhorita Jackson? — Um dos caras da equipe me
cutuca no ombro e abre um sorriso. Está segurando um par
de retornos para o ouvido e aponta para minha cintura. Eu
sorrio e digo para ir em frente.
Ele está um pouco trêmulo, o cabelo loiro-escuro meio
revolto e todo desgrenhado enquanto me ajuda a posicionar
o receptor sem fio atrás da calça jeans, e dá para perceber
que é novo no trabalho. Se meu pai estivesse aqui, sei que
faria o máximo possível para esse garoto sentir que está
sendo visto.
Quando meu retorno está no lugar e já consegui passar a
alça do violão por cima da cabeça sem tirar meu chapéu,
me alongo um pouco. Nada muito dramático — não é como
se eu fosse tocar o show inteiro, pular da plataforma do
baterista ou dar uns saltos mortais como Davey faz às vezes
—, só o suficiente para fazer o sangue circular.
— Você é a próxima, senhorita Jackson — diz o cara da
equipe, chegando mais perto para eu conseguir escutá-lo
apesar do barulho no palco.
Teela está cantando a plenos pulmões o refrão de uma
das músicas mais antigas deles, “If I Ever Leave This Place”,
uma letra que fala de mortalidade, destino e sobre lutar
pelo que se acredita, e a banda está se preparando para os
solos. É barulhento, caótico e, de certa forma,
perfeitamente contido. É uma das músicas mais
emblemáticas do Kittredge. Bate um pouco diferente hoje.
Eu me viro para o cara.
— Qual é seu nome?
— Deacon! — grita ele de volta. — É minha primeira vez
com a banda. Acabei de chegar da turnê da Megan Thee
Stallion. Isso aqui é... diferente.
Dou uma risada. Aposto que é.
— Eu sou a Toni. — Estendo a mão e ele a aperta
rapidamente.
Paro por um segundo para pensar como quero me
apresentar a ele. Hoje, estou no palco com a banda, mas
esse não é o papel que eu esperava ter. Nem tenho certeza
de que é o papel que quero ter depois desta noite.
Estou esperando no backstage do show dessa banda
pela qual passei a vida sentindo rancor por roubarem meu
pai de mim e admiração por serem tão inquestionavelmente
bons. A verdade é que estou esperando nesse backstage há
muito tempo.
Daqui a uma semana, talvez eu esteja trabalhando como
parte da equipe do Kittredge do outro lado do mundo,
fazendo isso, sentindo isso toda noite. Ou posso estar
sentada numa sala de aula em Bloomington, fazendo planos
de estudos para aulas com as quais eu não me importo e
me perguntando por que as meias da minha colega de
quarto deixam o dormitório com cheiro de presunto
estragado. A pergunta nunca foi “Onde eu quero estar?”, e
sim “Como eu quero que minha vida seja?”.
Agora sei que nem precisava me apresentar nesse palco
para alcançar a mesma clareza que meu pai encontrou aqui.
Daqui a seis meses, um ano, cinco anos, o que vai importar
para mim é me sentir tão conectada com outra pessoa, ou
uma multidão de pessoas, quanto me senti neste fim de
semana.
Eu me lembro de quando meu pai me contou de onde
veio o nome Festival de Música Farmland. Esse terreno todo
costumava ser uma fazenda, farm. Olhando para ele agora,
cheio de palcos de metal, motorhomes alugados e luzes
néon gigantescas, ninguém nunca imaginaria que em
determinado momento foi o maior produtor de maçãs
orgânicas ou mel livre de transgênicos do sul do país. Você
pode ser muito bom numa coisa e então, por milagre,
mágica ou capitalismo, se tornar algo totalmente diferente.
Algo que ninguém esperava.
Olivia estava certa: a resposta estava bem aqui ao meu
alcance, me esperando. Querer uma carreira na música não
me torna inconstante como meu pai, assim como ir para a
Universidade de Indiana não me faria ser estável como
minha mãe. Há um meio-termo, um que eu nem tinha
pensado em explorar, e esse meio-termo sou eu.
— Acho que vou estar com vocês na próxima parte da
turnê. — Os olhos dele se arregalam de curiosidade. Eu
acrescento: — Na equipe que cuida dos instrumentos.
Deacon assente, diz que nos vemos em Leeds e
desaparece nos fundos do backstage. Teela canta a última
nota da música e a plateia vai ao delírio. A banda não está
economizando em nada hoje. É difícil reconhecer um
momento histórico quando você está nele, mas posso sentir
isso agora. Esse é um show que vai ficar para a história. Um
show que vai ficar conhecido como uma Verdade sobre o
poder da música ao vivo de nos ajudar a passar por
qualquer coisa que nos desafie.
Quando o barulho enfim diminui, Davey volta para o
microfone, ofegante e suando em bicas. Chegou a hora. Vou
fazer isso. Ai, meu Deus, não acredito que vou fazer isso.
— Temos vários convidados especiais hoje. Espero que
vocês não se importem — diz Davey, causando mais uma
leva de gritos da plateia. Eles nem sabem quem eu sou
ainda, mas isso não importa. É uma noite especial. Está
tudo elétrico. — Agora, quero apresentar a vocês uma
artista novata e muito talentosa. — De repente, quero
chorar. Não de tristeza, mas de alívio. Enfim cheguei ao
lugar onde eu deveria estar. — A incrível Toni Jackson!
Com essa deixa, entro no palco e imediatamente fico
chocada com a intensidade do brilho das luzes. Com como
tudo fica quente do nada. Faço o melhor possível para não
apertar os olhos e também para me lembrar de acenar e
conseguir sorrir, tudo ao mesmo tempo.
É tipo tentar coçar a barriga e bater na cabeça ao
mesmo tempo — pelo menos um deles tem que dar certo.
Meu sorriso provavelmente deve estar um pouco mais
apertado do que eu gostaria, mas consigo chegar ao centro
do palco sem maiores percalços. Não consigo ver quase
nada à minha frente até que meus olhos se acostumem.
Agora que tenho uma visão geral, percebo que há mais
gente do que eu imaginava dos bastidores. Tem dezenas de
milhares de pessoas aqui, e talvez eu esteja jogando esse
número para baixo. Ainda estão gritando, garotas acenando
de cima dos ombros de alguém e amigos de braços dados.
Sei que meu rosto está sendo projetado neste momento em
telões enormes nos dois lados do palco, para que até as
pessoas lá no fundo do gramado consigam me ver. Eu tento,
mas falho miseravelmente em não deixar isso me apavorar.
Seguro o violão para evitar que minhas mãos comecem a
tremer.
A única coisa que me deixa mais calma é saber que, se
Peter conseguiu fazer o que disse que faria, Olivia está aí,
pronta para ouvir o que tenho a dizer. Não consegui fazer
isso hoje de manhã, mas neste palco estou pronta para ser
sincera. Não importa o que aconteça depois, não quero
terminar esse fim de semana sem ter tentado todo o
possível para fazê-la entender como me sinto.
Eu ensaiei com a Teela mais cedo, então, sem mais
delongas, me posiciono no microfone destinado para mim e
inicio os primeiros acordes da música que escrevi. A
multidão começa imediatamente a aplaudir e gritar. Esse
não é um dueto naquele estilo pergunta e resposta, mas é
quase isso. É um toma lá dá cá que diz: “Estamos nisso
juntos. Não existe nada se não nos movemos em conjunto”.
A banda deixa que a gente toque num formato acústico,
porque fazer todo mundo aprender a tocar uma música
nova, nunca ouvida antes, uma hora antes do show não
seria muito factível. Mas, pensando bem, nada disto aqui é
factível.
Começo a cantar a música e Teela se junta a mim numa
harmonia perfeita.
“Nós somos a respiração que dá sentido aos seus
pulmões.”
“Esse movimento é o maior presente do seu corpo.”
São as palavras de Olivia, e espero que ela as ouça e
entenda o que são. Uma homenagem, um pedido de
desculpas e uma súplica, tudo ao mesmo tempo. Depois da
primeira estrofe e do refrão, finalmente tomo coragem para
olhar de novo para a plateia. Já fui parte dessa massa de
gente, muitas vezes, mas vê-la daqui muda tudo. Tem umas
cinquenta mil pessoas ali, com os celulares e lanternas para
cima, mexendo os braços ao som de uma música que eu
escrevi.
Se eu dissesse que é mágico, ainda assim não seria
suficiente.
Dou uma olhada para a primeira fila, o espaço reservado
para os Farmers com pulseiras VIP, e perco o ar. Ainda bem
que apenas Teela canta essa estrofe, porque quando vejo
Olivia ali, olhando para mim, preciso reunir todas as minhas
forças para não pular do palco e ir correndo na direção dela.
Especialmente porque ela está me olhando com uma
expressão fofa de admiração, como se eu tivesse feito algo
inacreditável.
Meu sangue pulsa nas minhas veias, meu coração bate
no ritmo perfeito e tudo é música. A reação do público
depois de uma nota aguda especialmente linda cantada por
Teela, o barulho de algum voluntário derrubando algo no
backstage, o ronco distante de um helicóptero voando
acima de nós — certamente algum canal de TV tentando
cobrir o que aconteceu ontem e o que está acontecendo
hoje —, é tudo acompanhamento. É como uma orquestra —
grande demais para explicar a alguém que não esteja aqui,
neste exato momento.
E quando termina, quando o público aplaude e grita mais
uma vez, uma coisa é certa: só tem uma pessoa que quero
comigo quando tocar o bis.
OLIVIA

DOMINGO À NOITE

Não acredito que faz SÓ dois dias que vi Toni andando por
aquela estradinha de cascalho, mas, quando a vejo no
palco, sem dúvida consigo acreditar que fui arrebatada por
seu rosto irritantemente lindo a ponto de cair de cara em
cima da minha própria barraca. Porque, lá em cima, com as
luzes coloridas do palco se movendo sobre sua pele, o
violão na mão, os olhos fechados, ela parece ainda mais
magnética do que naquele dia.
Antes, eu só tinha visto a parte estética — suas roupas,
seu cabelo, o piercing no septo —, mas isso aqui é ainda
melhor. Tem muito mais valor agora vê-la assim, porque eu
sei quem ela é para além de todas as bobagens. Ela está
cantando essa música que sei que é para mim, minha
própria letra saindo de sua boca como se eu tivesse escrito
para ela, e é muita coisa para processar. Talvez ela me
queira de volta. Talvez a gente dure mais do que esse fim
de semana. Talvez eu não tenha estragado as chances dela
aqui — e nem estragado ela.
Ela toca a última nota e olha para o público, como se
estivesse procurando alguma coisa. Quando seus olhos
param em mim e ela abre um sorriso largo, eu entendo. Toni
disse antes que eu mereço todas as coisas boas, mas acho
que é mais do que isso. Eu sou todas as coisas boas.
De alguma forma, a chuva caindo sobre nós não me
deixa tão desnorteada quanto aquela apresentação. Olho
para Peter, na esperança de que ele tenha algumas
respostas para o que acabamos de assistir, mas ele sorri e
tira uma pulseira extra do bolso. Uma pulseira verde-limão
onde se lê “EQUIPE” em negrito. Ele a coloca no meu punho e
diz alto o suficiente para ser ouvido apesar da música e do
público gritando:
— É melhor ir logo! Ouvi dizer que tem uma futura
rockstar te esperando nos bastidores.
Meu primeiro instinto é olhar para Imani. Eu não vou.
Juro, se Imani disser que precisa que eu fique aqui com ela
agora, jogo tudo para o alto. Toni pode me mandar um sinal
de fumaça ou algo assim quando voltar para casa. Vou fazer
qualquer coisa que seja necessária para compensar tudo o
que não vi, todos os anos de amor e amizade de Imani que
não valorizei.
Mas, porque Imani é Imani, ela respira fundo, revira os
olhos e belisca a parte de cima do nariz como se fosse uma
velhinha de setenta anos.
— Vá em frente — diz, então. — Depois de tudo isso, de
repente desta vez as coisas possam dar certo pra você.
Dou um beijo enorme e molhado em sua testa.
— Você é uma deusa em meio aos homens, Imani
Garrett. Uma deusa!
E então começo a correr na multidão, desviando de
corpos que pulam entusiasmados enquanto o Kittredge toca
um cover do Bon Jovi ao lado da Pop Top, minha cabeça
rodando com a emoção do que acabou de acontecer. Do
que isso pode significar para a Toni e a Olivia do futuro. Só o
fato de ainda existir um “Toni e Olivia” já é motivo suficiente
para me fazer correr mais rápido. E então começo a chiar
um pouco, porque meus pulmões são uns traidores
desgraçados que não ligam para o amor, e paro para um
jato da bombinha de asma.
Quando finalmente chego à lateral do palco que dá
acesso ao lugar onde Toni deve estar esperando, mostro a
pulseira para o segurança e ele faz um sinal para que eu
levante os braços e abra as pernas para ser revistada.
Não sei exatamente aonde estou indo, mas vejo uma
escadaria que deve dar no backstage para onde Toni saiu, e
considero uma boa aposta. Paro por um segundo no meio da
escada e tento me recompor um pouco.
Minhas roupas estão ensopadas apesar da capa de
plástico com o logotipo do Farmland que foi entregue a todo
mundo antes de o show começar. E vou dizer uma coisa: o
que acontece nos filmes está tudo errado. A cena do
reencontro dramático na chuva não é romântica, é uma bela
zona.
Talvez Rachel McAdams não tenha se importado com o
fato de Ryan Gosling vê-la que nem um cachorro
encharcado em Diário de uma paixão, mas, olha, estou com
dificuldades aqui. Minhas tranças estão caídas pelo meu
peito como se fossem miojo cozido demais, porque
definitivamente Kanekalon não foi feito para pegar chuva.
Esse visual não tem salvação.
E acho que é melhor assim. Esse é um outro momento
que eles não mostram nos filmes. Quando a garota erra,
muitas e muitas vezes, e a pessoa do outro lado da equação
não é um cavaleiro perfeito com armadura brilhante, e sim
uma garota mal-humorada que só sorri quando quer e que
luta para resguardar cada centímetro de um coração que
você nasceu para ceder. Ou a garota que aparece para
cortejar sua amada parecendo uma bota encharcada,
enquanto a amada em questão sua em bicas por causa das
luzes do palco mas reza para ninguém notar.
O amor é uma zona, constrangedor e feio, mas pelo
menos é honesto.
Se for muito perfeitinho, penso, subindo as escadas, eu
não quero.
Vejo o chapéu de Toni quase imediatamente. Ela está de
costas para mim, mas vou andando em sua direção,
sorrindo tanto que minhas bochechas doem. Enfim, depois
de todos os nossos quase acidentes, todos os nossos quase
acertos, esta é a hora. Vamos ficar juntas. Vamos fazer dar
cer...
Eu paro quando um par de braços envolve o pescoço de
Toni e ela joga o violão para trás para dar um abraço
apertado de volta. Vejo a tatuagem com os dizeres “Eu não
tenho medo de nada” no antebraço da garota e, antes
mesmo que elas se soltem, já sei a quem aqueles braços
pertencem. Lembro daquele momento pouco antes da
nossa apresentação no Golden Apple, os risos soltos e a
história entre as duas. Não vou lidar com isso.
Sério, depois do dia, do fim de semana, da porra do ano
que tive? Nenhuma garota vale ser feita de idiota assim. O
que pensei que ela estava tentando dizer usando as minhas
palavras... Eu não podia estar mais errada.
Começo a me virar e vejo Toni se afastando da garota ao
mesmo tempo. Quando me vê do outro lado do backstage
meio escuro, seu rosto se ilumina.
— Olivia!
O sorriso dela vai embora imediatamente quando vê meu
rosto. Acho que ela não esperava ser pega no ato, o que,
obviamente, foi um erro de cálculo grotesco dela, dadas as
circunstâncias. Ela tira o violão por cima da cabeça e o
entrega para algum técnico antes de vir na minha direção.
Por sorte, tive mais chances de praticar minha corrida
neste fim de semana do que em toda a minha vida, então
saio mais rápido do que o normal, desço a escada e estou
de volta na chuva. Maldita chuva. Maldito Farmland. Maldita
Toni.
Sinto uma pressão no peito, mas me contenho antes do
que normalmente vem depois disso — o ódio a mim mesma,
as decisões precipitadas. Isso não é culpa minha. Não, se
Toni quer cantar uma música para mim e depois sair do
palco correndo para os braços de uma roadie ruiva
descolada, é escolha dela. É ela quem está perdendo. Sério
mesmo, quem mais teria a ideia brilhante de combinar um
minivestido de crepe plissado da Rowen Rose comprado no
brechó e com estampa floral com esses tênis Saint Laurent?
Só eu, é claro!
E agora, graças a ela, meus tênis estão cobertos de
lama. Vou mandar a conta da lavanderia para ela, disso eu
tenho certeza e...
— Olivia, espera! — Ouço a voz de Toni por cima do som
da chuva.
Decido fazer a volta em vez de ir na direção da multidão,
porque esse seria o caminho óbvio que ela faria, e viro
rapidamente para a esquerda. Tão rápido, na verdade, que
de repente meus pés não estão mais embaixo de mim e eu
virei a heroína mais deprimente da humanidade.
Caio no chão com força, me espatifando com tudo. A
parte de trás do meu vestido fica ensopada de lama, assim
como a parte de dentro dos meus sapatos, e nem me dou o
trabalho de me levantar ou abrir os olhos.
Aqui jaz Olivia Brooks. Digam a todos para não usar a
foto do anuário no meu obituário, porque não havia
corretivo que fosse suficiente para cobrir aquela espinha no
queixo.
— Olivia, você está bem?
Toni se ajoelha ao meu lado, sem se importar que a lama
esteja ensopando sua calça jeans e sujando suas botas. Ela
põe a mão por baixo das minhas costas e me ajuda a sentar.
Meu corpo inteiro vibra com a sensação daquele toque, do
local onde está a mão dela entre minhas escápulas até a
pontinha dos dedos. Não tem nem doze horas, mas sentir as
mãos dela em mim de novo gera uma onda de eletricidade.
Pisco por causa da chuva caindo nos olhos e vejo o
sorrisinho irritante e adorável de Toni, que está olhando
para mim.
— A gente precisa parar de se encontrar nessas
condições — diz ela, por cima da música.
Solto um resmungo. Eu vou sentir essa queda amanhã.
— Acho que essa fala é minha — respondo, com um
suspiro. Toni se levanta e oferece as mãos sujas para me
puxar. Ela continua segurando, mas dou um passo para trás.
Quando consigo me equilibrar, grito por cima do barulho da
chuva: — Eu vi você lá atrás! Com aquela garota de ontem!
Toni franze as sobrancelhas e então faz um não
veemente com a cabeça.
— Aquilo não... Ela estava me dando parabéns! — Toni
estende as mãos e fala mais baixo, como se ela mesma não
pudesse acreditar: — Eles me ofereceram um trabalho na
equipe! Vou viajar com o Kittredge na próxima perna da
turnê.
— Ai, meu Deus, Toni! — Dou um pulo e quase escorrego
de novo, mas ela se apressa e me segura pela cintura. Está
tão perto de mim agora que posso ver os pingos de chuva
em seus cílios. — Estou tão feliz por você.
É verdade. O lugar de Toni é na estrada, com uma banda,
ou na banda. Não importa. O lugar dela é onde está a
música.
— Olivia... — A voz dela é tão baixa que é quase
imperceptível.
Eu não mexo um músculo. Não quero estragar nada.
— Podemos começar de novo? — interrompo. Meu
coração bate acelerado no peito.
— Não, não quero isso. — Ela balança a cabeça, mas,
antes que eu entre em pânico, coloca a mão no meu punho.
— Quero todas as memórias deste fim de semana. Todas as
lembranças ótimas, horríveis — diz, e olha para nossas
roupas destruídas — e nojentas também. — Ela hesita um
pouco. — Tudo bem?
Ouço a voz de Teela por cima do barulho da multidão, e o
público a responde com a mesma energia. É tão grande — a
quantidade de amor, a energia, a alegria de tudo aquilo.
Mas não quero estar lá agora, quero estar bem aqui. Quero
ser eu mesma: a Olivia Brooks amorosa, entusiasmada
demais, às vezes impetuosa, e leal ao extremo.
Completamente eu. E quero compartilhar isso com essa
garota, de verdade dessa vez. Sem segredos. Sem medo.
Não tem nem o que perguntar.
— Tudo bem — respondo. E me inclino na direção dela.
A chuva já diminuiu bem quando nos afastamos, mas a
mãe natureza não pode tirar esse momento de mim. Eu
ganhei meu beijo na chuva, com a heroína imperfeita, mas
fantástica, dos meus sonhos, e estou totalmente risonha e
tonta, como imaginei que estaria. Apesar das manchas de
lama na bunda.
— Nem pensem nisso, vocês duas.
Dou um pulo com Toni quando Festy Frankie aparece do
nada com as mãos nos quadris e uma expressão no rosto
bem diferente dos sorrisos e biquinhos das fotos do seu
perfil. Mesmo que esteja usando uma coroa de flores e um
vestido esvoaçante branco com ombros à mostra, tudo
ainda magicamente intacto.
— Acho que precisamos conversar sobre uma certa
maçã. — Ela cruza os braços e ergue as sobrancelhas.
Toni aperta minha mão e me puxa um pouco para trás
dela, como se eu precisasse de proteção dessa garota
branca desnutrida com dreads ofensivos. Mas eu aceito,
porque Toni fica bem bonitinha quando entra no modo
defensivo.
— Olha, Festy, não vamos nos desculpar por pegar
aquela maçã. Sei que é contra o Código Farmer, mas valeu a
pena pra gente. Então, se quiser, vai ter que vir pegar.
Eu espero que ela responda com alguma gracinha
malcriada, mas, em vez de discutir, Festy... solta uma
risada. Ela gargalha tão alto e por tanto tempo que fico com
a impressão de que Toni a quebrou. Até que ela põe a mão
na pochete e pega outra maçã.
— Você... Você encontrou a última — digo, apontando
para ela. — Onde você achou? Eles nem postaram a última
pista.
Ela joga a maçã para o alto e a pega.
— Eu sou influenciadora da Fiat. — Ela dá de ombros. —
Eu sabia o tempo inteiro onde estavam.
— Então por que você disse no post...
Ela chega perto, abre a palma da mão de Toni e coloca a
maçã ali.
— Ninguém nunca disse a vocês duas para não
confiarem em tudo que leem na internet? — Ela aperta
nossas bochechas com delicadeza. Sua voz volta a soar
como algo etéreo. — Sigam em frente e em paz, meus
amores.
Com essa, ela desaparece tão rápido quanto surgiu,
deixando a mim e a Toni ali, olhando uma para outra, com
os queixos caídos.
— O que acabou de acontecer? — pergunto.
Toni dá uma risada.
— Acho que você acabou de ganhar?
Em vez de responder, ponho os braços ao redor do
pescoço dela, não porque estou com medo de ela fugir se
não a segurar — pelo contrário. Nos meus braços, ela é
forte, firme e presente. Estou em um dos lugares mais
estranhos e mágicos da face da terra, e tudo está uma
zona, mas em algum lugar dessa zona estou eu. E Toni. E
minha melhor amiga. E aquilo que estava buscando e nem
sabia.
Davey Mack e Teela Conrad estão cantando uma música
que não conheço, mas posso senti-la no fundo do peito, e
estou coberta de lama e da umidade grudenta da chuva, e
estou abraçada com a garota que, tenho certeza, é mais do
que uma futura memória ou um sentimento passageiro.
Este momento é melhor do que qualquer filme, qualquer
música.
Colo os lábios nos dela e tento registrar tudo, desde a
maneira como meus pés afundam na lama até o pulsar do
baixo nas caixas de som que faz meus ouvidos zunirem.
Quando me afasto, Toni pisca devagar e abre os olhos,
tentando colocá-los em foco, como se fosse a primeira vez
que nos beijamos.
— Uau. Você devia ganhar um carro todo dia — diz.
Ela sorri devagar. Levo a mão até as minhas costas, onde
ela ainda está segurando a maçã dourada. Pego dela e
coloco dentro da pochete. Ela pousa a mão aberta nas
minhas costas, e sinto o calor se irradiando a partir dali para
o corpo todo.
E, com todo o drama, a cena e a bagunça generalizada,
minha vida aparentemente é um filme: fogos de artifício
aparecem sobre nós, saindo de trás do palco e iluminando
todo o céu. Os olhos de Toni não desviam dos meus, como
se nenhum espetáculo fosse melhor do que esse aqui na
frente dela. Consigo ver as cores no céu refletindo em suas
bochechas.
Ela está certa. Eu ganhei mesmo. Dou outro beijo nela.
Eu ganhei demais.
AGRADECIMENTOS

No início da pandemia que devastou 2020, Dave Grohl


escreveu sobre a importância dos shows ao vivo: “Sem
aquele público — aquele público suando e gritando —
minhas músicas seriam apenas barulho. Mas juntos somos
instrumentos numa catedral sonora, e a construímos juntos
noite após noite”. E fiquei pensando nisso desde então.
Escrevi este livro sobre um mundo que eu amo enquanto
vivia num mundo que jamais poderia conceber nem nos
meus sonhos (ou pesadelos) mais loucos. Então, antes de
qualquer coisa, tenho uma dívida de gratidão com cada
música, cada banda e cada mural do Pinterest que sempre
me lembram do poder da música ao vivo: como ela pode
transformar um estranho num amigo, motivar esperanças
radicais e nos envolver com uma alegria compartilhada —
mesmo em épocas em que isso não parece possível.
Quero agradecer à minha agente, Patrice Caldwell, por,
bem, tudo. Antes mesmo de começarmos a trabalhar juntas,
uma amiga minha disse que você era uma leoa e, desde a
primeira vez que nos falamos, você vem me mostrando, dia
após dia, essa ferocidade que é sua marca registrada.
Obrigada por ser uma defensora incansável e por lutar por
mim e por essas garotas negras queer brilhantes,
imperfeitas e cheias de esperança que povoam minhas
histórias.
Não sei se tenho palavras, tempo ou espaço suficiente
para agradecer à minha editora brilhante, Maya Marlette,
mas vou tentar de qualquer forma. Obrigada por sua
paciência comigo e por seu cuidado sem precedentes com
este livro durante o processo de edição, que eu achei que
seria eterno. Se eu tivesse que fazer tudo de novo — parir
outro romance no meio de uma pandemia —, não gostaria
que fosse com nenhuma outra pessoa.
Obrigada a toda a minha equipe na Scholastic, as lindas
notas que se unem para tornar cada um dos meus livros
uma canção: Taylan Salvati, David Levithan, Mallory Kass,
Emily Heddleson, Lizette Serrano, Zakiya Jamal, Erin Berger,
Ellie Berger, Rachel Feld, Shannon Pender, Stephanie Yang,
Yaffa Jaskoll, Nikki Mutch, Aimee Friedman, Janell Harris,
Jazan Higgins, Erin Slonaker, Starr Baer, Crystal Erickson,
Cindy Durand e Jackie Hornberger.
Para Nicola Yoon, Julian Winters e Ashley Woodfolk:
obrigada por terem lido esse livro antes de todos e por
enviarem palavras tão generosas. O mundo, e o meu
trabalho, são melhores porque podemos ler os seus livros.
Se eu pudesse escrever uma sinfonia para cada um de
vocês, eu faria isso.
Para meus grupos de mensagem cheios de moças queer,
malvadas e malcriadas: obrigada por serem os bastiões de
encorajamento e sabedoria que me mantiveram na linha o
suficiente para terminar esse livro. Sou eternamente grata
por fazer parte das suas vidas e por vocês serem parte da
minha.
Para Khadij: obrigada por ser minha parceira de festivais
de música. Daquele primeiro ano dançando descalças no
Grant Park até o nosso último verão cantando a plenos
pulmões no Farm, este livro não teria sido o mesmo sem as
memórias que construímos juntas sob céus noturnos, nas
grades dos shows e lutando para atravessar multidões.
Para minha família: não achava que era possível, mas, de
alguma forma, ficar trancada em casa com vocês por oito
meses durante uma pandemia e num cenário de caos
político me fez amá-los ainda mais. Obrigada por serem a
luz, o carinho e a graça sem os quais eu não conseguiria
imaginar minha vida.
Para cada blogueiro, leitor, bibliotecário, professor e
amigo do amigo de um amigo que apoiou Espere até me ver
de coroa: não tinha certeza se essa carreira seria viável até
vocês se empolgarem com Liz, Mack, Robbie e Jordan e
afastarem cada partícula de medo que eu tinha dessas
histórias, desses finais felizes, não importarem. Eu não
estaria aqui se não fosse cada um de vocês. Obrigada.
E, finalmente, para todas as garotas negras que cantam
fora do tom, dançam livremente em galpões e ficam
sentadas no canto sonhando que um dia vão mudar o
mundo: suas doidinhas maravilhosas. Suas rebeldes lindas.
Suas anjas impetuosas. Obrigada por todas as vezes que
vocês pegaram na minha mão, me puxaram para a frente —
fosse de uma plateia, de uma sala de aula, de uma fila, de
uma oportunidade — e disseram: “Você não vai perder isso
se depender de mim”. Amo muito vocês. Que nós todos
possamos voltar em breve para aquela catedral sonora para
gritar, construir e celebrar juntos mais uma vez.
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Copyright © 2021 by Leah Johnson
Copyright da tradução © 2022 by Editora Globo S.A.

Publicado mediante acordo com Scholastic Inc., 557 Broadway, New York, NY
10012, USA.

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reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco
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Título original: Rise to the Sun

Editora responsável Paula Drummond


Assistente editorial Agatha Machado
Preparação de texto Helena Mayrink
Diagramação Renata Vidal
Projeto gráfico original Laboratório Secreto
Revisão Sol Coelho
Design de capa original Stephanie Yang
Ilustração de capa Alexis Franklin
Adaptação de capa Renata Vidal
Ilustração adaptada nas pp.8, 132 e 212 Freepik
Editora de livros digitais Cindy Leopoldo
Produção do e-book Ranna Studio

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

J65m
Johnson, Leah, 1993-
Meu lugar ao sol / Leah Johnson; tradução Thaís Britto. - 1. ed. - Rio de
Janeiro: Globo Alt, 2022.
304 p.

Tradução de: Rise to the sun


ISBN 978-65-88131-49-7

1. Romance americana. I. Britto, Thaís. II. Título.

22-76095
CDD: 813
CDU: 82-31(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


16/02/2022 22/02/2022

1ª edição, 2022

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora


Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25
20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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