Meu Lugar Ao Sol - Leah Johnson
Meu Lugar Ao Sol - Leah Johnson
Meu Lugar Ao Sol - Leah Johnson
Sobre a obra:
Sobre nós:
eLivros .love
Converted by ePubtoPDF
Tradução
Thaís Britto
Foto © 2020 de Reece T. Williams
Pular sumário [ »» ]
Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Toni
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Toni
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Toni
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Toni
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Toni
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Olivia
Toni
Olivia
Toni
Olivia
Agradecimentos
Créditos
Para as garotas negras que foram chamadas de
exageradas e para aquelas que não acreditam ser o
suficiente: vocês são a música mais linda do mundo.
MEU LUGAR AO SOL é um romance que celebra a
alegria compartilhada dos shows e o entusiasmo feroz do
primeiro amor. Para aproveitar por completo a experiência
de leitura, que espero ser inspiradora e reconfortante,
alguns leitores podem preferir saber de antemão que este
livro inclui referências a perda dos pais, ataques de pânico,
violência à mão armada e compartilhamento de imagens
sem consentimento.
Com amor,
LEAH
Olivia
SEXTA-FEIRA DE MANHÃ
SEXTA-FEIRA DE MANHÃ
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
— Não.
Pego novamente a barraca para terminar de ajudar essa
menina e voltar para o que sobrou do meu fim de semana.
Agora que não posso competir no Golden Apple, isso tudo
não passa de uma última farra antes de mais uma futura
universitária se mudar para o campus. Parece clichê, parece
vazio, parece todas as coisas que eu não queria que fossem.
— E por que não? — Olivia dá a volta para ficar bem no
meu campo de visão e coloca as mãos nos quadris. Ela
tomba a cabeça para o lado, como se tivesse a audácia de
estar indignada. — Você precisa de mim e eu acabei de me
oferecer com toda a bondade do meu coração. E sou uma
cantora bem ok. Você deveria me agradecer.
Abaixo os óculos escuros para conseguir vê-la sem
nenhuma lente colorida no caminho. Ela é baixinha, mas o
coque formado pelas tranças lhe dá quase trinta
centímetros a mais de altura. A maquiagem está perfeita,
mesmo com todo o ataque de asma/barraca, e suas
bochechas brilham. Ela tem a pele clara o suficiente a ponto
de eu conseguir ver o vermelho da queimadura de sol
inevitável já aparecendo em seus ombros descobertos. E
embora esteja agora com uma expressão carrancuda, ela
é... bonitinha. Esse é o primeiro sinal.
— Porque não trabalho em equipe — respondo,
finalmente. — E não aceito favores.
Coloco os óculos de volta e passo uma das hastes de
alumínio pelo tecido da barraca. Essa interação está me
deixando mais lenta. Esse é o segundo sinal.
Talvez fosse para ser assim. Que tipo de iluminação eu
estava buscando ao me apresentar numa performance
fracassada? Não consigo tocar uma música inteira há oito
meses. Mal consegui pensar na ideia de tocar desde o
funeral do meu pai. Por que achei que vir aqui e me
inscrever nessa cópia barata do The X Factor me faria
decidir o que fazer da vida? Era um tiro no escuro de
qualquer forma.
— Mas! — Ela bufa. — Lembra aquela vez em que você
salvou a minha vida? Bons tempos, não é? Criamos umas
belas memórias, eu diria.
— Por que você está insistindo tanto nisso? — pergunto,
olhando para ela.
Eu me dou conta de que essa é a conversa mais longa
que tive com alguém sem ser minha mãe ou Peter em muito
tempo. Conheço essa garota há apenas meia hora e ela já
conseguiu transpassar meus anos e anos de prática para
falar o mínimo e apenas quando necessário. Esse é o
terceiro sinal.
— Na verdade, não responda. Não preciso saber. —
Limpo as mãos no short e aponto a barraca com a cabeça.
Já está na hora de acabar com essa interação. — Bom fim
de semana.
Começo a andar na direção do Core e mando uma
mensagem para Peter avisando que vou encontrá-lo. Minha
cabeça está rodando tentando entender o que significa não
competir no Golden Apple. A vida adulta é apenas uma lista
de concessões. Sem qualquer rumo para o futuro, passo
quatro anos numa faculdade que não quero cursar. Eu me
formo com um título para o qual não dou a mínima, caio
numa carreira qualquer e fico ali por quarenta anos. Minha
mãe fica orgulhosa porque fiz a coisa certa, a coisa estável,
mas, antes que eu perceba, já esqueci o que é ter dezessete
anos e ter opções. Mesmo que eu não tenha a menor ideia
de quais opções são essas, ou como alcançá-las.
Estou vendo um filme do resto da minha vida e não gosto
de para onde vai esse enredo.
Começo a andar mais rápido por instinto, tentando
chegar a algum lugar, qualquer lugar onde eu possa fugir do
meu destino.
— Espera!
Viro para trás e Olivia está correndo em minha direção.
Ou, bem, correndo do jeito que dá, com suas sandálias
enormes batendo no caminho de cascalho que leva ao Core.
Quando ela me alcança, imediatamente usa o inalador e
suspira.
— E se fosse uma troca?
Pisco os olhos.
— Como assim?
— Uma mão lava a outra. Uma via de mão dupla. Eu já
namorei umas quatro pessoas que faziam discursos e
participavam de debates, então sei mais um milhão desses
ditados.
Ela sorri, e é um sorriso brilhante e aberto. Se eu fosse
outro tipo de pessoa, com outro tipo de bagagem, eu
provavelmente ficaria encantada. Mas não estou. Na
verdade, só estou ficando mais frustrada.
— Não faz sentido.
Continuo a andar, mas ela vem caminhando ao meu
lado. Nunca vi alguém tão difícil de despachar,
especialmente por mim, a não ser o Peter, talvez.
Normalmente basta um olhar para impedir as pessoas de se
sentarem à minha mesa no refeitório, tentarem ser minha
dupla na aula de química ou me venderem algo na rua.
Existe um motivo para eu ser chamada de Sra. Noel pelos
meus colegas de turma, e não é porque asso biscoitos ou
tenho as bochechas rosadas.
É porque sou uma rainha de gelo. E em geral sou muito
boa nisso.
— Faz sentido sim, Dona Rabugenta, você só não está
prestando atenção direito — insiste ela. — Estou dizendo
para fazermos uma troca. Então não é como se eu estivesse
te fazendo um favor, vamos ficar quites. Um acordo de
damas!
Paro de andar. Não respondo, e ela encara isso como
uma oportunidade para continuar falando.
— Já ouviu falar do #EncontradoNoFarmland?
É claro. É claro que essa garota quer que eu a ajude a
encontrar aquelas maçãs idiotas para aquela caça ao
tesouro idiota. Eu devia ter imaginado. Todos os novatos no
Farmland caem na cilada de tentar ganhar essas
pegadinhas comerciais. Em um ano foi uma campanha nas
redes sociais da Live Nation para ver quem conseguia
postar mais com a hashtag deles em troca de ingressos
para shows por um ano. No ano seguinte era algo ainda
mais irritante. Nunca tem nada a ver com música.
Além de ser ridículo e, sinceramente, vergonhoso (meu
pai se reviraria no túmulo se soubesse que estou
participando de alguma campanha de marketing capitalista
que usa a música como pretexto para fazer as pessoas
comprarem e consumirem mais), é impossível. E digo isso a
ela.
— Esse festival fica numa área de trezentos hectares.
Não existe nenhuma chance de você encontrar todas.
— Não é impossível para alguém como você. Alguém que
conhece o lugar tão bem depois de anos vindo aqui. — Ela
dá de ombros. — Se você precisa de mim tanto quanto
preciso de você, sabe que não vou te decepcionar.
Combinado?
Ela levanta os óculos em formato de coração até o
cabelo e estende a mão como se estivesse tudo certo.
Como se seu argumento tivesse sido tão certeiro que eu não
pudesse recusar.
E talvez ela esteja certa. Que escolha tenho? Sem
qualquer outro plano, vou para Bloomington na semana que
vem sem nem poder argumentar. Vou ser a filha que minha
mãe me criou para ser, a que toma decisões sólidas e se
mantém firme nelas. Então, a não ser que eu suba no palco
e, como meu pai sempre dizia, ele me revele outra opção,
vai ser faculdade mesmo. É assim que funciona.
— Eu queria muito ganhar aquele carro. — Olivia estende
a mão para mais perto de mim e abre um sorriso ainda mais
largo. — E gostaria de ajudar você a ganhar o concurso. E
então, o que vai ser?
Não posso contabilizar um quarto sinal, então decido
apagar tudo. Começar do zero.
Tento apaziguar a confusão no fundo do meu cérebro
dizendo que essa é uma má ideia, que Toni Foster não faz
esse tipo de coisa, que não posso e não devo fazer isso. Que
quanto mais você confia em outras pessoas, mais fácil é
você se ferrar. Seguro a mão dela e faço o possível para
ignorar o fato de a palma de sua mão encaixar
perfeitamente na minha.
— Beleza. — Aperto a mão dela. — Tô dentro.
OLIVIA
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
Não sei como foi que essa garota pôs as mãos na minha
maçã, só sei que ela é minha nêmesis e tudo que quero é
derrotá-la. Ela é o que me separa do meu carro, e isso não é
uma opção.
“Sem contar que se você perder essa caça ao tesouro,
Toni não tem mais qualquer motivo para ficar perto de você.
O acordo se anula”, meu cérebro faz questão de me
lembrar. “Se você não serve pra ser divertida, então serve
pra quê?”.
Travo o maxilar, rangendo os dentes, como fazia quando
era mais nova, antes de me dar conta de que podia usar
meu corpo para convencer as pessoas a fazerem minhas
vontades, a me verem, ainda que só vissem o que eu queria
mostrar naquele momento. É um tique nervoso que
reaparece em momentos de estresse.
— Como, pelo amor de Deus, essa garota conseguiu
achar a maçã se ainda nem existe pista? — As mãos de
Imani estão no quadris e ela aponta para o telefone na mão
de Toni, como se a garota tivesse, de alguma forma,
planejado isso. — Não era para você ser a grande sabichona
aqui?
Toni olha para mim e para ela, tentando entender alguma
coisa, e eu desvio o olhar. Por algum motivo, é ainda mais
difícil de processar o olhar dela para mim do que quando ela
parece meio distante. Eu realmente não sei lidar com isso.
— Bom, eles nunca disseram que espalhariam as maçãs
a medida que fôssemos procurando. Só disseram que iam
deixar pistas — diz ela, a voz baixa e pensativa. — Então,
tecnicamente, elas estão por aí desde sempre.
— Então, o que fazemos? — pergunto.
Ela me olha por um segundo antes de soltar um suspiro.
— Vamos ter que pegar a maçã dessa garota.
Peter se anima com isso, embora ele provavelmente
soubesse que a solução era essa. Pega o telefone e abre o
perfil da garota no Instagram. @FestyFrankie tem vinte e
cinco mil seguidores e está postando fotos de si mesma
pelo festival nas mais diferentes poses a cada duas horas,
mais ou menos. Toda alongada e fazendo o sinal da paz com
as duas mãos diante da roda-gigante. Mandando um
beijinho para a câmera perto da entrada, com uma coroa de
flores na cabeça.
É fácil saber onde ela está. Há cinco minutos, ela postou
um story com a foto de um bolinho e a legenda em fonte de
máquina de escrever, toda em caixa alta: “QUE DELÍCIA”.
Toni revira os olhos, como se o bolinho a tivesse ofendido
pessoalmente. Eu solto uma risada. Quando faço isso, ela
vira de repente a cabeça para mim, meio surpresa. Mas
seus lábios fazem uma curva de leve para cima num sorriso,
e me sinto vitoriosa. Uma vitória merecida contra a frieza
dela.
— Tem, tipo, o quê? No máximo umas três barraquinhas
que vendem esse tipo de bolinho, segundo esse mapa.
Imani pegou o mapa que nos deram na entrada e já está
elaborando um plano alternativo. Ela sempre foi o tipo de
pessoa que se coloca no comando, a voz da razão, mas
parte de mim queria ser a pessoa que tem as respostas
desta vez. Queria ser a pessoa dizendo como todo mundo
devia se comportar.
Peter está radiante, e Toni concorda com a cabeça. Eu
dou uma sugestão:
— Verdade, você está certa. Vamos nos separar. Peter e...
Imani interrompe.
— Peter pode ir olhar a barraquinha perto da entrada.
Toni pode ir naquela perto do Pavilhão de Comédia. Eu e Liv
vamos na que fica lá atrás.
Normalmente fico agradecida pelas interferências dela,
por sua habilidade em perceber antes de mim mesma
quando estou prestes a cometer um erro, mas agora estou...
frustrada. Talvez eu não tivesse escolhido formar uma dupla
com Toni. Mas acho que nunca saberemos. É como se ela
estivesse tirando a escolha das minhas mãos, sem me dar
nem a chance de provar que posso fazer o que disse que
faria. Que não vou me jogar na primeira garota que piscar
para mim ou algo assim.
— Beleza. Tá bem, beleza. — Toni olha para nós duas de
novo, mas dessa vez sua expressão é um pouco vaga, um
pouco dura. — Vamos nos separar e, quando um de nós a
encontrar, mandamos mensagem para o grupo. Aí
decidimos o que fazer depois.
— Pop Top vai tocar em meia hora — diz Peter, olhando
para Toni, suplicante. Ele junta as mãos, como se estivesse
rezando. — Ela literalmente reinventou o pop punk. Você
sabe que não posso perder minha Pop Top.
Toni dá um tapinha de leve com as costas da mão no
braço de Peter e revira os olhos.
— Melhor se apressar então, Menon.
É um momento breve, mas, vendo o jeito como eles se
olham, consigo entender por que duas pessoas tão
diferentes são amigas. Eles se equilibram e se amam do
mesmo jeito.
Imani bufa ao meu lado e começa a andar na direção
oposta. Parece que ela está sempre tentando se afastar das
pessoas enquanto eu estou tentando me aproximar, mas
nós duas estamos sempre nos movimentando. Ao me virar
para ir atrás dela, fico pensando por quanto tempo essa
dinâmica de movimentos opostos pode se sustentar.
Reconheço Festy Frankie no minuto em que coloco os olhos
nela. Principalmente porque, bem, eu reparo nos dreads.
Festy — ou Frankie? FF, talvez? — ainda está sentada na
grama entre a barraca do bolinho e o palco Granny Smith
quando a vejo. Ela ri de alguma coisa que um dos amigos
disse, depois faz um beicinho e encosta a cabeça na pessoa
ao lado dela para tirar uma selfie. Não quero parecer velha
nem nada, mas isso me irrita um pouco. Você roubou minha
maçã e ainda por cima não está nem prestando atenção na
banda que está tocando no palco? Como se atreve?
Imani resmunga a meu lado como se estivesse lendo
minha mente.
— Você cuida dessa ou eu vou? — pergunta.
Fico pensando em quantas garotas brancas Imani já
esculhambou no Confidential ao longo da nossa amizade,
pelos mais diversos motivos, de apropriação cultural a
feminismo branco, e nego com a cabeça. É melhor eu
mesma resolver isso para termos alguma chance de
recuperar essa maçã. É mais fácil capturar garotas brancas
com mel do que com vinagre, ou seja lá o que diz esse
ditado.
— Vou cuidar disso — respondo. — Espere aqui.
Caminho até a garota.
— Com licença. — Tento deixar minha voz num tom um
pouquinho mais agudo que o normal para ficar mais
parecido com o de Festy. Eu não a conheço, mas estudo
com várias meninas desse tipo. A mudança de registro é
natural para mim. — Você é a @FestyFrankie?
Frankie olha para cima, radiante, os olhos escondidos
atrás dos óculos de sol redondos estilo John Lennon. Depois
de vasculhar um pouquinho seu perfil, sei que ela usou os
mesmos óculos no Electric Forest, em junho, e no
Stagecoach, na última primavera.
Mesmo com eles, ela põe a palma da mão sobre a linha
da sobrancelha, para evitar olhar diretamente para o sol ao
se virar para mim.
— Isso! Você é uma das minhas queridas Festiloucas?
Festiloucas. Loucas por festivais. O apelido dos
seguidores que frequentam festivais com o mesmo
entusiasmo que ela. Preciso lhe dar o crédito — ela sabe
construir uma marca. Mas não é por isso que estamos aqui!
— Não. Bem, não exatamente. Mas vi seu post sobre a
maçã dourada? Aquela do desafio #EncontradoNoFarmland?
— Não é incrível? — Ela se levanta e, num passe de
mágica, mostra a maçã. Está em sua mão esquerda e, com
a direita, ela faz carinho distraidamente, como se a fruta
fosse um cachorrinho. — Foi uma coincidência muito louca!
Eu estava tentando tirar uma foto perto da fonte e lá estava
ela, esperando por mim!
Reviro os olhos por dentro. Dá um tempo, Festy! Não
tenho tempo para falar sobre isso. Tenho um festival para
curtir e uma caça ao tesouro para concluir, e nem comecei
ainda a pensar em como vou ajudar Toni a vencer o Golden
Apple amanhã. Diplomacia é essencial aqui.
— Você está procurando as outras? — pergunto.
— Não!
Ela está radiante, como se não tivesse nenhuma
preocupação na vida. E, bom, talvez eu esteja julgando,
mas, pela aparência dela, não deve ter mesmo. Vai a vários
festivais o ano inteiro e ganha dinheiro sendo influenciadora
no Instagram, vendendo sabe Deus o quê. Vi pelo menos
um anúncio de chá para perder barriga no perfil dela. Seja
lá qual for sua história, tudo que sei é que com certeza
preciso mais dessa maçã do que ela.
— Será que você me emprestaria essa? — Eu me apresso
a explicar a situação: — Preciso muito dela para ganhar a
caça ao tesouro que está rolando. Tenho grandes chances
de encontrar as outras, mas preciso dessa que você tem
para completar as cinco. Posso até te devolver quando
acabar o fim de semana, se...
— Desculpa, amor. Eu coleciono Memórias. — Ela diz
memórias com um M maiúsculo, como se fosse um nome
próprio e tudo.
— Espera, quê? Você não pode me emprestar, ainda que
não precise dela, porque vai guardar numa caixinha de
lembranças quando chegar em casa?
Ela concorda com a cabeça, séria, feliz por eu ser tão
compreensiva.
— Isso, exatamente.
— Mas eu vou te devolver. Se é importante pra você,
levo a maçã quando acabar a gincana.
— Desculpe, amiga. Mas não consigo me separar dela.
Ela toca meu ombro com gentileza. Se eu não estivesse
tão irritada, acho que ficaria tudo bem. Provavelmente ia
sorrir, morder a língua e passar o resto do fim de semana
me recuperando — essa parte da aventura teria terminado.
Mas isso também significaria desistir do Golden Apple e de
Toni. Significaria me despedir dela e nunca a ver
novamente, e eu acabei de conhecê-la.
Uma parte de mim que não consigo explicar ainda não
está pronta para isso.
Então faço o que qualquer pessoa racional faria: roubo a
maçã. Mas não como aquelas Sininhos que tentaram roubar
de mim mais cedo, é claro. Eu pelo menos tentei fazer um
acordo antes. Fui praticamente uma diplomata!
Pego a maçã da mão da garota tão rápido que se não
fosse eu mesma roubando, nem teria percebido. Em um
piscar de olhos, a maçã foi da mão dela para minha
pochete. Jogo a câmera para as costas e ela bate nas
minhas escápulas enquanto corro. Embora duas fugas
dramáticas num mesmo dia nem chegue perto do meu
recorde — o verão depois do primeiro ano foi meio louco,
nem pergunte —, isso está acabando com meus pulmões!
Depois preciso agradecer a Justin pelas três semanas que
passei ajudando-o a treinar para as eliminatórias do time de
cross-country da escola (durante as quais, depois dos
treinos, antes de Justin me levar para casa, a gente se
pegava no Ford Fusion do irmão dele).
— Imani, vamos! — grito quando passo por ela, que sai
correndo comigo.
Vou desviando dos corpos reunidos no Core, tentando
fazer minha fuga parecer o mais inocente possível, apesar
de @FestyFrankie estar gritando atrás de mim, sua voz mais
fraca à medida que avanço para o outro lado do núcleo do
festival. Mas, se pensarmos na quantidade de drogas que
essas pessoas certamente vão usar neste fim de semana,
meu comportamento com certeza não é nem de longe o
mais estranho que alguém vai ver.
Meus pulmões estão queimando quando dobro a esquina
perto do palco Red Delicious, bem longe de onde
encontramos a Festy. É só quando paro que me dou conta
do quão ridículo é o que acabei de fazer — a completa
loucura que é roubar uma maçã dourada de alguém. Meu
coração bate um pouco mais rápido ao perceber que
realmente perdi a cabeça. Estou completamente louca.
Uso o inalador e minha mente começa a rodar de
repente, e é tão rápido que parece que meu corpo está
vibrando. Espere aí.
Eu estou literalmente vibrando.
Pego o celular no bolso de trás e faço o melhor para me
recompor antes de atender.
— Nada por aqui. O que está rolando por aí, O-Town?
A voz de Peter na linha é sua habitual mistura entre
rouca e animada.
Olho para Imani, curvada ao meu lado, olhando para
mim, depois para o chão, depois para mim de novo, como
se estivesse tentando decidir com quem ficar irritada. Passo
a mão na pochete, estufada com meu pertences
conquistados. Eu fiz isso. Eu fiz isso mesmo. Não foi Imani,
não foi Toni — eu consegui essa, e fiz tudo sozinha.
Não consigo lembrar quando foi a última vez que isso
aconteceu. Eu não ter precisado depender de alguém para
conseguir algo. A vitória é minha e só minha. É uma coisa
pequena, mas parece enorme nesse momento.
Um sorriso surge no meu rosto.
— Peguei a maçã.
TONI
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À TARDE
— Quero ir na roda-gigante.
Odd Ones, a banda que veio depois da Pop Top, terminou
o show, e agora Imani está na minha frente com os braços
cruzados e uma expressão que diz que aquilo não é um
pedido, mas uma ordem. Eu deveria saber que ficar sentada
durante dois shows não ia cair bem com ela. Olho para Toni
— não para pedir permissão, apenas para, tipo, me
despedir.
— Vou dar uma olhada no Peter — diz ela. — Ele é tipo
uma suculenta, pode sobreviver sozinho por um tempo, mas
fica melhor quando tem alguém cuidando.
Eu me ajeito e vou atrás de Imani.
Ela anda meio rápido por um tempo, até estarmos fora
do alcance de Toni, Peter e do último show que vimos. Ela
está surpreendentemente em forma para alguém que
passou a maior parte do ano escolar almoçando na
biblioteca para poder estudar por mais tempo. Tenho que
desviar de pessoas deitadas na grama e pular as pontas dos
cobertores para acompanhar o passo dela. A roda-gigante
está iluminada ao longe, enorme, brilhante e colorida, e na
hora penso em tirar uma foto. Mas decido esperar o sol se
pôr.
Dou um aceno de “Ei, Farmer” para um casal que passa
por mim e eles acenam de volta, e isso é tão legal. Tão
tranquilo.
Eu me dou conta de que embora esteja coberta por uma
fina camada de suor, já sinta algumas marcas de sol
horrendas aparecendo e tenha bebido mais água nas
últimas horas do que em toda a minha vida, estou feliz.
Pela primeira vez em meses, passei quase uma hora sem
pensar na audiência. Não estou pensando na minha próxima
conquista — para falar a verdade, nem estou pensando em
encontrar a próxima maçã. Estou confortável comigo
mesma. Isso é tão estranho para mim que quase não
reconheço a sensação. Mas eu sou eu, então é claro que
não dura muito tempo.
— Você precisa tomar cuidado — diz Imani, pulando as
pernas de um cara com uma camiseta do Kittredge. Ele
acena quando passamos, mas acho que ela não percebe.
— Já disse que estou usando fator 30 — digo, tentando
fazer uma piada para fugir do tom que ela está usando. —
Eu li em algum lugar que se usar um número muito mais
alto nem funciona.
— Você sabe que não estou falando disso. — Paramos na
frente da roda-gigante e ela olha para meus ombros
vermelhos. — Você precisa mesmo passar o protetor solar
de novo, mas estou falando disso. — Ela mexe a mão,
indicando tudo ao nosso redor.
Digo para mim mesma que Imani só quer o melhor para
mim, quer um futuro em que as pessoas que partiram meu
coração sejam punidas de alguma forma para compensar.
Mas isso é porque ela não me vê do jeito que eu sou, por
quem eu sou. A parte de mim que provavelmente merece o
coração partido. Sou um time inteiro de destruição de uma
mulher só, e às vezes destruo as pessoas mais próximas de
mim, principalmente as que decido amar.
Em determinado momento, eu fiquei muito boa na
conquista. Fiquei tão boa que na maioria dos dias, ou das
noites, eu mal precisava tentar. Aquilo se tornou instintivo,
colocar uma fantasia e me transformar em quem eu
precisava ser para ganhar a atenção de alguém mais
inteligente, mais engraçado e mais talentoso que eu. E eu
conseguia prender a atenção deles por um tempo. Mas
pedaços de mim inevitavelmente começavam a escapar. Eu
falava muito sobre as coisas erradas, exagerava nas
demonstrações de afeto, ou coisa pior.
Cal, o capitão do time de debate, disse que o distraí de
sua chance no campeonato estadual quando apareci com
um macacão laranja que tinha comprado numa venda de
garagem. Moira, a estrela em ascensão do time de futebol
feminino, torceu o tornozelo na noite anterior ao
campeonato porque insisti em ir à pista de skate no nosso
aniversário de dois meses de namoro. Usei um belo par de
sandálias plataforma de veludo Saint Laurent comprado no
brechó no dia da apresentação de Kai na Batalha das
Bandas, mas acabei tropeçando e caí em cima da bateria,
destruindo seu prato da sorte cinco minutos antes de as
cortinas se abrirem. E aí teve o Troy.
Todos terminaram do mesmo jeito. Em chamas.
O único relacionamento que não destruí foi esse aqui, a
nossa amizade.
— Sei que veio aqui para se afastar um pouco de tudo,
mas você teve meses para pensar no que vai dizer na
audiência e ainda não me contou o que vai ser — diz ela.
Sua voz fica um pouco mais baixa. — Desde quando temos
segredos uma com a outra?
Eu meio que quero bater o pé no chão como uma criança
fazendo pirraça, porque meu Deus do céu. Não quero fazer
isso hoje. Não quero fazer isso nunca.
É incrível o quão rápido aquele acolhimento que acabei
de sentir, há dez minutos, deitada na grama com Toni,
desapareceu. Esse pequeno lembrete do meu último e mais
retumbante fracasso, o último relacionamento que se
autodestruiu por causa das minhas péssimas escolhas,
parece um balde de água fria na cara. E só fica pior, porque
estou me afogando na minha própria vergonha.
— Imani, por favor. — Posso ouvir o tom choroso da
minha voz e preciso apelar para meu último recurso. Lanço
meu olhar mais inocente. E, porque não sei o que mais
posso fazer, eu minto. — Não estou escondendo nada de
você. A gente pode focar no fim de semana?
Não sei quando foi que as coisas mudaram, quando foi
que nossa relação se tornou esse peso no qual eu sinto que
sou um fardo para ela também. É a mesma forma como me
sinto com minha mãe ou Nia — como se eu fosse algo
defeituoso e sem conserto —, mas não gosto disso. Não
entendo. Se tem alguém que eu sempre soube que iria me
amar apesar de todos os meus defeitos, é ela.
— Você não está... — Ela para de andar e se vira para
mim assim que chegamos à bilheteria. — Não está tentando
ficar com a Toni, certo? — Ela mexe no anel de prata no
dedo mindinho. Compramos no Navy Pier durante um fim de
semana do ano passado, quando viajamos para Chicago
para superar meu término com Brianna, maestrina da banda
marcial. Tínhamos dois iguais até eu perder o meu enquanto
nadava à noite na piscina do Theodore, da aula de teatro. —
Porque você prometeu que seríamos só nós duas.
Sinto uma pontada forte e repentina no peito.
— E é verdade. — Balanço a cabeça, grata por ela não
me odiar. Por ela não estar sendo tão inflexível nos últimos
dias, porque já está prestes a me jogar na sarjeta. —
Fizemos uma promessa de dedinho — completo.
Passo os braços ao redor dela e a abraço forte. Enfio o
rosto no espaço entre seu pescoço e seu ombro, e ela
levanta os braços para me envolver também. Ela parece
muito firme, como sempre. Minha melhor amiga, o farol nas
piores tempestades.
— Amo você, Mani. — Minha voz é abafada pela camiseta
dela. — Você sempre cuida de mim.
— Amo você também — diz ela, em voz baixa.
Quando nos separamos, ela solta um suspiro e parece
exausta, sem dúvida por causa do sol absurdo e da umidade
da Geórgia.
Seus olhos passeiam pelo meu rosto rapidamente e ela
balança a cabeça. Espera alguns segundos antes de dizer:
— Wash odiava altura quando éramos crianças. Íamos
para a feira estadual todo ano e meus pais nunca me
deixavam ir na roda-gigante porque ele não podia ir. Não
queriam que ele “se sentisse mal”. — Ela faz aspas com os
dedos no ar e me lança um meio sorriso (porque talvez ela
distendesse um músculo se abrisse um sorriso completo).
Sorrio de volta, um sorriso bem mais largo. — Estou
esperando por isso a vida inteira. Você devia escrever para
a posteridade.
Olho para cima, para a roda-gigante, com luzes cor-de-
rosa e roxas serpenteando no céu de fim de tarde. Enorme,
imponente, sua presença incontornável. Levanto o dedinho
para Imani.
— Considere isso uma promessa solene. — Ela enrosca o
mindinho no meu e beijamos os dedões. — Nunca vou
deixar minha leve acrofobia atrapalhar seu caminho para a
grandeza.
Ela solta uma risada e ficamos de mãos dadas
balançando. Imani está um pouco mais radiante depois
disso e, enquanto estamos na fila, ela fala mais do que
durante todo o tempo desde que chegamos ao Farmland. E,
porque sou uma cientista do amor, é sobre o Peter!
— Eu só acho que ele é engraçado. Os caras
normalmente pensam que você tem a obrigação de rir de
tudo que eles dizem, porque o patriarcado opera até nesses
microníveis. — Um canto de sua boca se curva para cima, e
ali vejo que consegui. Minha obra-prima foi achar um
gatinho para Imani no Farmland. Meu Deus, eu mereço um
Pulitzer. Ou um Nobel. Não lembro direito a diferença, mas
qualquer um deles serve. — Mas ele se esforça para isso,
sabe? Ele tenta realmente ganhar cada sorriso. É... legal.
Nós somos as próximas na fila dos ingressos e já estou
planejando o casamento e decidindo como os filhos deles
vão me chamar: Tia Liv? Titi Livi?
Ela revira os olhos com seu próprio discurso.
— Mas quem se importa com tudo isso quando estamos
prestes a finalmente andar nesse negócio? Você não foi a
única a ler as mensagens dos fóruns, sabe? Esse é, tipo, um
gigante dos festivais.
— O que é maior que gigante? Colossal? Porque, se for, é
isso mesmo — digo.
Ela ri, sua risada baixa e encorpada que só me traz as
melhores lembranças.
A funcionária da bilheteria está com a mão estendida
para pegar o dinheiro quando nossos celulares vibram. A
próxima pista da caça ao tesouro está ali — as únicas coisas
visíveis na imagem são um fundo quadriculado e a maçã
diante dele — e como não posso me arriscar a perder a
próxima maçã para outra pessoa, começo a correr na
direção de onde deixamos Toni e Peter.
— Olivia, espera! — Imani grita atrás de mim. Não sei por
que ela ainda está na fila depois de receber a mesma
notificação que eu, mas seus pés estão plantados quando
me viro para olhar. Sei que ela está animada para andar
nesse negócio, mas ainda temos mais dois dias e
precisamos pegar essa maçã agora. Ela mexe
distraidamente no anel. — Não podemos só fazer isso aqui
rapidinho?
— Vamos andar depois, eu juro! Mas estamos perdendo
um tempo precioso, Mani. Isso é uma emergência.
Sinto meu corpo inteiro começar a vibrar. É isso. É para
isso que vim aqui: uma aventura. Um grande fim de
semana. Tudo pode ser bom se a gente se permitir.
Dou um sorriso largo e começo a caminhar rapidamente.
Leva alguns segundos, mas finalmente ouço os passos de
Imani atrás de mim e me entrego à emoção deste novo tipo
de conquista.
TONI
SEXTA-FEIRA À TARDE
SEXTA-FEIRA À NOITE
SEXTA-FEIRA À NOITE
SEXTA-FEIRA À NOITE
SEXTA-FEIRA À NOITE
SÁBADO DE MANHÃ
SÁBADO DE MANHÃ
Meu pai morreu com um tiro num assalto que deu errado a
um posto de gasolina.
Estávamos a caminho da Indy Classics, uma loja de
música que fica perto de casa. Ele tinha chegado de turnê
fazia só uma hora, mas mesmo assim bocejou, calçou as
botas, pegou o casaco e lutou comigo pelas chaves da
caminhonete antes de subirmos no carro. A caminhonete é
velha e não tem entrada de som, então ele ficou batendo as
mãos no volante enquanto dirigia, tentando me fazer
acertar a harmonia de uma música antiga da Loretta Lynn
que estava cantando.
Eu precisava de papéis de pauta musical. Na verdade, eu
queria mais do que precisava. Ou, no fundo, nem isso, só
queria mesmo passar um tempo com meu pai e sabia que,
se dissesse a ele que precisava daquilo, ele me levaria até a
loja e deixaria para depois a soneca que estava planejando
tirar antes da chegada da minha mãe. Queria passar um
tempo com ele, mas não tinha como saber que faríamos
uma parada e que aquela seria a última parada que ele faria
e... porra.
Vamos começar de novo.
Meu pai estava no lugar errado na hora errada — num
país em que qualquer lugar e qualquer hora podem ser
errados.
A Classics fica a exatamente quatro quilômetros e meio
da minha casa. Sei disso agora, embora não soubesse
naquela época. A exatamente dois quilômetros e meio da
minha casa há um posto de gasolina Shell que fica meio
afastado da rua principal. É um pouco sombrio. A iluminação
é ruim — o estacionamento é apenas parcialmente
iluminado por um único poste de luz piscando e uma
lâmpada em cima das duas bombas de gasolina. Não é o
tipo de lugar aonde se deve ir sozinho à noite.
Sei disso agora também, embora não soubesse naquela
época.
— Ah, cara, deixa eu parar aqui rapidinho! Estou com
desejo de comer uns Hot Chips. Sabe como é difícil achar
esse negócio na estrada? — Ele entrou no estacionamento
com um sorriso enorme no rosto. Deu uma puxadinha em
um dos meus dreads antes de desligar o aquecimento. —
Não morra de frio até eu voltar, está bem?
Sorri e passei a mão na careca dele — era assim que
sempre fazíamos. Ele tinha dreads como os meus
antigamente. Eu era muito pequena para me lembrar, mas
posso vê-los numa foto dele no Farmland, o cabelo longo
preso num rabo de cavalo baixo, e ele sorrindo ao lado de
Anthony Kiedis. Seu rosto não tinha nenhuma linha de
expressão na foto, apenas uma leve ruga ao redor dos olhos
quando sorria. Seu sorriso nunca mudou, mas o rosto, sim,
em algum momento.
Quando olhei para ele sob a luz baixa daquele
estacionamento, parecia cansado. Como se a vida na
estrada estivesse cobrando seu preço para ele também, do
mesmo jeito que fazia comigo e com minha mãe.
— Eu podia ter mandado Hot Chips pra você, pai — disse,
enquanto ele abria a porta.
Uma corrente de ar gelado entrou na cabine e senti um
calafrio. Ele olhou para mim e deu uma piscadinha.
— Não, filha. Encontrar as coisas das quais sinto falta
enquanto estou fora faz a volta para casa ficar ainda
melhor. Vai ser rapidinho, prometo! — respondeu ele, dando
uma corridinha até a loja de conveniências.
Não pensei em impedi-lo quando ele saiu da
caminhonete e bateu a porta. Não pensei que o desejo dele
por seu salgadinho favorito e o meu desejo de passar mais
tempo com ele podiam dar errado. Não pensei em nada a
não ser no quanto estava feliz por ter meu pai em casa e no
que poderia fazer para mantê-lo ali.
Não prestei atenção quando o cara encapuzado entrou.
Não vi quando ele puxou a arma, apontou para o
funcionário e exigiu o dinheiro da caixa registradora.
Não olhei quando meu pai tentou intervir.
Mas ouvi o tiro.
Pela vitrine encardida, vi meu pai cair no chão de linóleo,
e então o cara encapuzado fugindo, certamente com o
dinheiro roubado nos bolsos.
Eu não me lembro de entrar cambaleando pela porta,
nem de cair de joelhos ao lado do corpo do meu pai, o
sangue ensopando minha calça jeans desbotada, nem de
gritar enquanto o funcionário se enrolava com o telefone e
finalmente conseguia chamar a polícia. Não me lembro de
correr para o estacionamento depois que a ambulância
levou o corpo. Eu só sei dessas coisas porque me contaram.
O resto da noite me vem à memória em flashes.
Mas vejo tudo com nitidez agora — as imagens passam
na minha frente como um resumo de melhores momentos
da pior noite da minha vida. Meus ouvidos estão zumbindo,
não consigo respirar, e as pontas dos meus dedos estão
formigando, como se até meu sangue tivesse se esquecido
de como circular normalmente. Sinto gosto de cobre.
Alguém põe a mão no meu rosto e sussurra no meu ouvido:
“Volte pra mim. Você está bem. Está tudo bem. Volte pra
mim. Você está segura. Eu prometo”.
OLIVIA
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À TARDE
Toni beija bem. Não, espera aí. Vou ser um pouco mais
específica.
Toni beija incrivelmente bem. O tipo de beijo que garante
uma vaga nas Olimpíadas, que poderia ganhar uma bolsa
de estudos em qualquer faculdade, uma indicação ao Oscar,
um beijo digno de filme. Quando ela me beijou e se afastou
nos bastidores, foi tão rápido que achei que talvez tivesse
sido um acidente, e tive certeza de que ela não faria de
novo. Tinha sido tão depressa, e ela pareceu tão chocada
logo depois, que eu sabia que nunca mais teria a
oportunidade de fazer aquilo de novo. Mas eu tive. Estou
tendo.
Estamos do lado de fora do galpão, imprensadas contra a
parede e sem fazer qualquer menção a ir lá dentro para
procurar Imani e Peter. Tínhamos combinado de encontrá-
los depois da nossa apresentação, quinze minutos atrás,
mas... Bem. Aqui estamos.
Não conseguimos parar. Não consigo parar. Eu me sinto
febril, animada e fora de controle no melhor sentido
possível. As mãos dela passeiam pela lateral do meu corpo,
e não consigo pensar em nada. Nada mais importa para
mim nesse momento. É mais do que o simples alívio
temporário para as inquietações que eu costumava sentir
em outras relações. Isso aqui é mais profundo.
É como correr uma maratona e, enfim, cruzar a linha de
chegada. É como pular de um precipício e alguém te
segurar antes de atingir o chão.
Não sei qual é o meu propósito na vida nem nada disso,
mas sei que quero me sentir desse jeito pelo maior número
possível de dias até não poder mais. Esse calor que começa
na boca do estômago e irradia para fora, que me diz que fiz
algo de bom para alguém, que consegui deixar alguém de
quem gosto feliz, ou realizado, ou seja lá qual for o nome
que se queira dar — não quero largar esse sentimento
nunca mais.
Isso não pode ser um erro, penso comigo mesma. Nada
que me faça sentir assim pode estar errado.
Toni encosta a testa na minha, o peito arfando. Suas
mãos estão nas laterais do meu pescoço, tão gentis que
sinto um arrepio. Parece que este nem é meu corpo.
Ninguém nunca fez com que eu me sentisse prestes a sair
da minha pele a não ser que continuasse em seu abraço,
como é o caso com ela agora. É assustador e emocionante e
me faz jogar no lixo tudo que eu achava que sabia sobre
desejo.
Tudo que senti com cada um dos meus ex não é nada
comparado a isso aqui. Aquilo era brincadeira de criança.
Isso aqui é para valer. Isso aqui é o Super Bowl do amo...
— Eu me sinto meio louca — diz Toni, parando para
respirar. Ela ri de um jeito meio histérico, mas com o qual
me identifico totalmente. — Você está se sentindo meio
louca? É normal sentir isso? Eu nunca...
— Eu também.
Balanço a cabeça. É uma frase completa, ainda que seja
um pensamento indefinido, mas tudo em mim parece meio
indefinido no momento. Toni Foster me desestruturou.
— Mas, mas... Eu nunca mesmo. — A voz dela é baixa,
quase uma confissão.
— Você nunca...
— Nunca tinha beijado ninguém até hoje — diz ela,
olhando para baixo. — Aquele, nos bastidores, foi meu
primeiro beijo.
Se fosse fisicamente possível, eu poderia jurar que ela
tinha acabado de roubar o ar diretamente dos meus
pulmões. Sério. Sinto um nó na garganta, e não é o
prenúncio de um ataque de asma, mas algo totalmente
diferente. Algo maior e mais assustador.
Não sei como contar a ela que já beijei centenas de
vezes, dezenas de pessoas, na primeira fila de shows, no
armário do zelador da escola ao lado de uma vassoura velha
e no banco de trás de carros minúsculos. Mas nenhum deles
se comparou a isso.
E que não importa o quanto ela saiba ou não, ou quanta
experiência tenha com quantas namoradas, porque é isso
aqui que importa. É assim que a gente deve se sentir.
E que passei muito tempo procurando, mas aqui, com
ela, foi a primeira vez que senti ter encontrado algo.
— Tudo bem. — É só o que digo. As palavras ficam presas
na minha garganta.
Envolvo a cintura dela com meus braços e encosto a
bochecha em seu peito. Mexo a cabeça e espero que ela
entenda o que estou dizendo.
Está tudo contido nessas duas palavras, e confio que ela
vai conseguir ouvir.
Tudo bem como uma confissão: Quero você como nunca
quis ninguém na vida.
Tudo bem como uma promessa: Não vou te magoar. Vou
te proteger.
Tudo bem como um apelo: Não quero te soltar. Por favor,
não me solte.
E quando ela me puxa para mais perto e pressiona o
nariz contra minha cabeça, sei que entendeu. Esse tempo
inteiro, achei que Toni não era uma pessoa falante, que
tinha dificuldades para se comunicar. Mas talvez ela
estivesse falando comigo. Talvez eu só não soubesse como
ouvir até agora.
— Isso — sussurro. — Isso, tudo bem.
Ficamos ali juntas, meio que só respirando o mesmo ar
por um minuto. Até que uma voz familiar demais aparece
para quebrar o momento.
— Ei! Ei, você!
Os olhos de Toni se arregalam como se fosse um desenho
animado ao ouvir Festy Frankie atrás de nós. Ela me puxa
pela mão e saímos correndo.
— Para aí! Tipo, Raposo, não pegue!
Corremos desembestadas pelo Core como se tivéssemos
roubado alguma coisa, o que, tudo bem, tecnicamente nós
fizemos. Mas as pessoas mal notam as expressões idênticas
em nossos rostos, ou que Frankie está bem no nosso
encalço. Imagino que toda essa situação pareça uma
brincadeira divertida, que por isso todo mundo
simplesmente sorri para nós enquanto serpenteamos pelas
barraquinhas tentando despistá-la no meio da multidão que
se reúne para assistir ao show da Kacey Musgraves, prestes
a começar.
Para alguém que em teoria passa a maior parte dos
verões pulando de festival em festival, pegando sol e
tirando selfies estrategicamente perfeitas, até que Festy
Frankie é bem rápida. Sua calça boca de sino, de crochê, é o
que parece a estar atrasando, as barras prendendo toda
hora em volta do tornozelo, e é só por isso que eu e Toni
temos uma chance de escapar.
Toni tira o chapéu para tentar chamar menos atenção
enquanto nos misturamos à plateia. Agradeço aos céus por
ser baixa o suficiente para poder pedir a refeição infantil no
Applebee’s.
Pego meu inalador e solto um jato. Mas quando olho para
baixo e percebo que Toni ainda está de mãos dadas comigo,
sinto meu rosto corar. Eu juro que sinto um rubor por causa
de algo tão simples quanto andar de mãos dadas com uma
garota.
Dá para contar nos dedos quantas vezes fiz isso com
alguém. No meu caso, a maioria das pessoas com quem eu
saio sempre quer pular essas partes mais inocentes — as
mãos dadas, as noites de jogos de tabuleiro, ficar até três
da manhã rindo com o outro no telefone e se recusando a
ser o primeiro a desligar.
— Acha que nos livramos dela? — Toni olha por cima do
ombro e depois ao meu redor, como se Festy Frankie
pudesse se esconder atrás da minha imponente silhueta de
um metro e sessenta e dois. Eu rio e Toni olha para mim
com um sorriso ao perceber o quão ridículo foi o
movimento. — Caramba, ela corre. Eu imaginei que ir a
tantos festivais significaria um alto consumo de maconha e,
consequentemente, uma inabilidade em correr longas
distâncias.
— Subestimar as pessoas pode ser fatal, senhorita
Foster.
Ela bate de leve seu ombro no meu e olha para baixo,
para nossas mãos ainda juntas, então solta a dela para
ajeitar o chapéu. Mas não parecia que ela queria soltar, o
que me dá um quentinho de satisfação.
Somos empurradas e imprensadas pela multidão, e ela
solta um suspiro.
— Às vezes eu romantizo tanto a experiência de estar
aqui que esqueço como é insuportável em alguns
momentos. — Ela desvia de alguém com o braço levantado
que quase enfia o sovaco peludo na cara dela. — Quer sair
daqui e organizar as coisas?
Organizar as coisas, na concepção de Toni, é comprar um
algodão-doce para dividir, encher as garrafinhas de água e
encontrar um lugar embaixo de uma árvore para pegar uma
sombra.
— Quero te dizer uma coisa — começa.
Ela tira o chapéu, o coloca sobre a barriga e deita com a
cabeça em minhas pernas.
Pego um pedaço maior do algodão-doce só para não
dizer nada constrangedor. Metade de todas as péssimas
conversas que tive na vida começou com “Posso te
perguntar uma coisa?” e a outra metade com “Precisamos
conversar”. Concordo com a cabeça, esperando o baque.
Olhamos uma para a outra e ela levanta a mão para tirar
um fio de algodão-doce da minha bochecha. Seu toque é
tão gentil que mal sinto.
Ela sorri.
— Gosto muito dessa versão sua.
TONI
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À TARDE
SÁBADO À NOITE
SÁBADO À NOITE
SÁBADO À NOITE
DOMINGO DE MANHÃ
DOMINGO DE MANHÃ
DOMINGO DE MANHÃ
DOMINGO DE MANHÃ
DOMINGO À TARDE
DOMINGO À TARDE
DOMINGO À TARDE
Sabe aquilo que vc disse que ele fez? Eu sei q ele fez
Ele me pediu pra mandar umas fotos umas semanas atrás, e eu não
queria pq sei o q pode rolar nesses casos, e você obviamente tb
sabe. Mas estamos juntos há seis meses, então mandei. Cortei meu
rosto, mas ainda assim, sabe?
Descobri que ele dormiu com Amelia Myers no luau
dos formandos semana passada e tentei terminar com
ele. E quando disse que pra mim estava tudo acabado,
ele disse que eu não podia terminar com ele porque
senão “todo mundo ia saber o que eu fiz”
Não sei se você ainda vai voltar pra Park Meade, sei lá,
alguém disse que você ia mudar pra Ardsley? O que,
aliás, eca
DOMINGO À TARDE
DOMINGO À NOITE
DOMINGO À NOITE
A apresentação sempre foi sua mesmo. Você vai se sair bem. Boa
sorte.
DOMINGO À NOITE
Não acredito que faz SÓ dois dias que vi Toni andando por
aquela estradinha de cascalho, mas, quando a vejo no
palco, sem dúvida consigo acreditar que fui arrebatada por
seu rosto irritantemente lindo a ponto de cair de cara em
cima da minha própria barraca. Porque, lá em cima, com as
luzes coloridas do palco se movendo sobre sua pele, o
violão na mão, os olhos fechados, ela parece ainda mais
magnética do que naquele dia.
Antes, eu só tinha visto a parte estética — suas roupas,
seu cabelo, o piercing no septo —, mas isso aqui é ainda
melhor. Tem muito mais valor agora vê-la assim, porque eu
sei quem ela é para além de todas as bobagens. Ela está
cantando essa música que sei que é para mim, minha
própria letra saindo de sua boca como se eu tivesse escrito
para ela, e é muita coisa para processar. Talvez ela me
queira de volta. Talvez a gente dure mais do que esse fim
de semana. Talvez eu não tenha estragado as chances dela
aqui — e nem estragado ela.
Ela toca a última nota e olha para o público, como se
estivesse procurando alguma coisa. Quando seus olhos
param em mim e ela abre um sorriso largo, eu entendo. Toni
disse antes que eu mereço todas as coisas boas, mas acho
que é mais do que isso. Eu sou todas as coisas boas.
De alguma forma, a chuva caindo sobre nós não me
deixa tão desnorteada quanto aquela apresentação. Olho
para Peter, na esperança de que ele tenha algumas
respostas para o que acabamos de assistir, mas ele sorri e
tira uma pulseira extra do bolso. Uma pulseira verde-limão
onde se lê “EQUIPE” em negrito. Ele a coloca no meu punho e
diz alto o suficiente para ser ouvido apesar da música e do
público gritando:
— É melhor ir logo! Ouvi dizer que tem uma futura
rockstar te esperando nos bastidores.
Meu primeiro instinto é olhar para Imani. Eu não vou.
Juro, se Imani disser que precisa que eu fique aqui com ela
agora, jogo tudo para o alto. Toni pode me mandar um sinal
de fumaça ou algo assim quando voltar para casa. Vou fazer
qualquer coisa que seja necessária para compensar tudo o
que não vi, todos os anos de amor e amizade de Imani que
não valorizei.
Mas, porque Imani é Imani, ela respira fundo, revira os
olhos e belisca a parte de cima do nariz como se fosse uma
velhinha de setenta anos.
— Vá em frente — diz, então. — Depois de tudo isso, de
repente desta vez as coisas possam dar certo pra você.
Dou um beijo enorme e molhado em sua testa.
— Você é uma deusa em meio aos homens, Imani
Garrett. Uma deusa!
E então começo a correr na multidão, desviando de
corpos que pulam entusiasmados enquanto o Kittredge toca
um cover do Bon Jovi ao lado da Pop Top, minha cabeça
rodando com a emoção do que acabou de acontecer. Do
que isso pode significar para a Toni e a Olivia do futuro. Só o
fato de ainda existir um “Toni e Olivia” já é motivo suficiente
para me fazer correr mais rápido. E então começo a chiar
um pouco, porque meus pulmões são uns traidores
desgraçados que não ligam para o amor, e paro para um
jato da bombinha de asma.
Quando finalmente chego à lateral do palco que dá
acesso ao lugar onde Toni deve estar esperando, mostro a
pulseira para o segurança e ele faz um sinal para que eu
levante os braços e abra as pernas para ser revistada.
Não sei exatamente aonde estou indo, mas vejo uma
escadaria que deve dar no backstage para onde Toni saiu, e
considero uma boa aposta. Paro por um segundo no meio da
escada e tento me recompor um pouco.
Minhas roupas estão ensopadas apesar da capa de
plástico com o logotipo do Farmland que foi entregue a todo
mundo antes de o show começar. E vou dizer uma coisa: o
que acontece nos filmes está tudo errado. A cena do
reencontro dramático na chuva não é romântica, é uma bela
zona.
Talvez Rachel McAdams não tenha se importado com o
fato de Ryan Gosling vê-la que nem um cachorro
encharcado em Diário de uma paixão, mas, olha, estou com
dificuldades aqui. Minhas tranças estão caídas pelo meu
peito como se fossem miojo cozido demais, porque
definitivamente Kanekalon não foi feito para pegar chuva.
Esse visual não tem salvação.
E acho que é melhor assim. Esse é um outro momento
que eles não mostram nos filmes. Quando a garota erra,
muitas e muitas vezes, e a pessoa do outro lado da equação
não é um cavaleiro perfeito com armadura brilhante, e sim
uma garota mal-humorada que só sorri quando quer e que
luta para resguardar cada centímetro de um coração que
você nasceu para ceder. Ou a garota que aparece para
cortejar sua amada parecendo uma bota encharcada,
enquanto a amada em questão sua em bicas por causa das
luzes do palco mas reza para ninguém notar.
O amor é uma zona, constrangedor e feio, mas pelo
menos é honesto.
Se for muito perfeitinho, penso, subindo as escadas, eu
não quero.
Vejo o chapéu de Toni quase imediatamente. Ela está de
costas para mim, mas vou andando em sua direção,
sorrindo tanto que minhas bochechas doem. Enfim, depois
de todos os nossos quase acidentes, todos os nossos quase
acertos, esta é a hora. Vamos ficar juntas. Vamos fazer dar
cer...
Eu paro quando um par de braços envolve o pescoço de
Toni e ela joga o violão para trás para dar um abraço
apertado de volta. Vejo a tatuagem com os dizeres “Eu não
tenho medo de nada” no antebraço da garota e, antes
mesmo que elas se soltem, já sei a quem aqueles braços
pertencem. Lembro daquele momento pouco antes da
nossa apresentação no Golden Apple, os risos soltos e a
história entre as duas. Não vou lidar com isso.
Sério, depois do dia, do fim de semana, da porra do ano
que tive? Nenhuma garota vale ser feita de idiota assim. O
que pensei que ela estava tentando dizer usando as minhas
palavras... Eu não podia estar mais errada.
Começo a me virar e vejo Toni se afastando da garota ao
mesmo tempo. Quando me vê do outro lado do backstage
meio escuro, seu rosto se ilumina.
— Olivia!
O sorriso dela vai embora imediatamente quando vê meu
rosto. Acho que ela não esperava ser pega no ato, o que,
obviamente, foi um erro de cálculo grotesco dela, dadas as
circunstâncias. Ela tira o violão por cima da cabeça e o
entrega para algum técnico antes de vir na minha direção.
Por sorte, tive mais chances de praticar minha corrida
neste fim de semana do que em toda a minha vida, então
saio mais rápido do que o normal, desço a escada e estou
de volta na chuva. Maldita chuva. Maldito Farmland. Maldita
Toni.
Sinto uma pressão no peito, mas me contenho antes do
que normalmente vem depois disso — o ódio a mim mesma,
as decisões precipitadas. Isso não é culpa minha. Não, se
Toni quer cantar uma música para mim e depois sair do
palco correndo para os braços de uma roadie ruiva
descolada, é escolha dela. É ela quem está perdendo. Sério
mesmo, quem mais teria a ideia brilhante de combinar um
minivestido de crepe plissado da Rowen Rose comprado no
brechó e com estampa floral com esses tênis Saint Laurent?
Só eu, é claro!
E agora, graças a ela, meus tênis estão cobertos de
lama. Vou mandar a conta da lavanderia para ela, disso eu
tenho certeza e...
— Olivia, espera! — Ouço a voz de Toni por cima do som
da chuva.
Decido fazer a volta em vez de ir na direção da multidão,
porque esse seria o caminho óbvio que ela faria, e viro
rapidamente para a esquerda. Tão rápido, na verdade, que
de repente meus pés não estão mais embaixo de mim e eu
virei a heroína mais deprimente da humanidade.
Caio no chão com força, me espatifando com tudo. A
parte de trás do meu vestido fica ensopada de lama, assim
como a parte de dentro dos meus sapatos, e nem me dou o
trabalho de me levantar ou abrir os olhos.
Aqui jaz Olivia Brooks. Digam a todos para não usar a
foto do anuário no meu obituário, porque não havia
corretivo que fosse suficiente para cobrir aquela espinha no
queixo.
— Olivia, você está bem?
Toni se ajoelha ao meu lado, sem se importar que a lama
esteja ensopando sua calça jeans e sujando suas botas. Ela
põe a mão por baixo das minhas costas e me ajuda a sentar.
Meu corpo inteiro vibra com a sensação daquele toque, do
local onde está a mão dela entre minhas escápulas até a
pontinha dos dedos. Não tem nem doze horas, mas sentir as
mãos dela em mim de novo gera uma onda de eletricidade.
Pisco por causa da chuva caindo nos olhos e vejo o
sorrisinho irritante e adorável de Toni, que está olhando
para mim.
— A gente precisa parar de se encontrar nessas
condições — diz ela, por cima da música.
Solto um resmungo. Eu vou sentir essa queda amanhã.
— Acho que essa fala é minha — respondo, com um
suspiro. Toni se levanta e oferece as mãos sujas para me
puxar. Ela continua segurando, mas dou um passo para trás.
Quando consigo me equilibrar, grito por cima do barulho da
chuva: — Eu vi você lá atrás! Com aquela garota de ontem!
Toni franze as sobrancelhas e então faz um não
veemente com a cabeça.
— Aquilo não... Ela estava me dando parabéns! — Toni
estende as mãos e fala mais baixo, como se ela mesma não
pudesse acreditar: — Eles me ofereceram um trabalho na
equipe! Vou viajar com o Kittredge na próxima perna da
turnê.
— Ai, meu Deus, Toni! — Dou um pulo e quase escorrego
de novo, mas ela se apressa e me segura pela cintura. Está
tão perto de mim agora que posso ver os pingos de chuva
em seus cílios. — Estou tão feliz por você.
É verdade. O lugar de Toni é na estrada, com uma banda,
ou na banda. Não importa. O lugar dela é onde está a
música.
— Olivia... — A voz dela é tão baixa que é quase
imperceptível.
Eu não mexo um músculo. Não quero estragar nada.
— Podemos começar de novo? — interrompo. Meu
coração bate acelerado no peito.
— Não, não quero isso. — Ela balança a cabeça, mas,
antes que eu entre em pânico, coloca a mão no meu punho.
— Quero todas as memórias deste fim de semana. Todas as
lembranças ótimas, horríveis — diz, e olha para nossas
roupas destruídas — e nojentas também. — Ela hesita um
pouco. — Tudo bem?
Ouço a voz de Teela por cima do barulho da multidão, e o
público a responde com a mesma energia. É tão grande — a
quantidade de amor, a energia, a alegria de tudo aquilo.
Mas não quero estar lá agora, quero estar bem aqui. Quero
ser eu mesma: a Olivia Brooks amorosa, entusiasmada
demais, às vezes impetuosa, e leal ao extremo.
Completamente eu. E quero compartilhar isso com essa
garota, de verdade dessa vez. Sem segredos. Sem medo.
Não tem nem o que perguntar.
— Tudo bem — respondo. E me inclino na direção dela.
A chuva já diminuiu bem quando nos afastamos, mas a
mãe natureza não pode tirar esse momento de mim. Eu
ganhei meu beijo na chuva, com a heroína imperfeita, mas
fantástica, dos meus sonhos, e estou totalmente risonha e
tonta, como imaginei que estaria. Apesar das manchas de
lama na bunda.
— Nem pensem nisso, vocês duas.
Dou um pulo com Toni quando Festy Frankie aparece do
nada com as mãos nos quadris e uma expressão no rosto
bem diferente dos sorrisos e biquinhos das fotos do seu
perfil. Mesmo que esteja usando uma coroa de flores e um
vestido esvoaçante branco com ombros à mostra, tudo
ainda magicamente intacto.
— Acho que precisamos conversar sobre uma certa
maçã. — Ela cruza os braços e ergue as sobrancelhas.
Toni aperta minha mão e me puxa um pouco para trás
dela, como se eu precisasse de proteção dessa garota
branca desnutrida com dreads ofensivos. Mas eu aceito,
porque Toni fica bem bonitinha quando entra no modo
defensivo.
— Olha, Festy, não vamos nos desculpar por pegar
aquela maçã. Sei que é contra o Código Farmer, mas valeu a
pena pra gente. Então, se quiser, vai ter que vir pegar.
Eu espero que ela responda com alguma gracinha
malcriada, mas, em vez de discutir, Festy... solta uma
risada. Ela gargalha tão alto e por tanto tempo que fico com
a impressão de que Toni a quebrou. Até que ela põe a mão
na pochete e pega outra maçã.
— Você... Você encontrou a última — digo, apontando
para ela. — Onde você achou? Eles nem postaram a última
pista.
Ela joga a maçã para o alto e a pega.
— Eu sou influenciadora da Fiat. — Ela dá de ombros. —
Eu sabia o tempo inteiro onde estavam.
— Então por que você disse no post...
Ela chega perto, abre a palma da mão de Toni e coloca a
maçã ali.
— Ninguém nunca disse a vocês duas para não
confiarem em tudo que leem na internet? — Ela aperta
nossas bochechas com delicadeza. Sua voz volta a soar
como algo etéreo. — Sigam em frente e em paz, meus
amores.
Com essa, ela desaparece tão rápido quanto surgiu,
deixando a mim e a Toni ali, olhando uma para outra, com
os queixos caídos.
— O que acabou de acontecer? — pergunto.
Toni dá uma risada.
— Acho que você acabou de ganhar?
Em vez de responder, ponho os braços ao redor do
pescoço dela, não porque estou com medo de ela fugir se
não a segurar — pelo contrário. Nos meus braços, ela é
forte, firme e presente. Estou em um dos lugares mais
estranhos e mágicos da face da terra, e tudo está uma
zona, mas em algum lugar dessa zona estou eu. E Toni. E
minha melhor amiga. E aquilo que estava buscando e nem
sabia.
Davey Mack e Teela Conrad estão cantando uma música
que não conheço, mas posso senti-la no fundo do peito, e
estou coberta de lama e da umidade grudenta da chuva, e
estou abraçada com a garota que, tenho certeza, é mais do
que uma futura memória ou um sentimento passageiro.
Este momento é melhor do que qualquer filme, qualquer
música.
Colo os lábios nos dela e tento registrar tudo, desde a
maneira como meus pés afundam na lama até o pulsar do
baixo nas caixas de som que faz meus ouvidos zunirem.
Quando me afasto, Toni pisca devagar e abre os olhos,
tentando colocá-los em foco, como se fosse a primeira vez
que nos beijamos.
— Uau. Você devia ganhar um carro todo dia — diz.
Ela sorri devagar. Levo a mão até as minhas costas, onde
ela ainda está segurando a maçã dourada. Pego dela e
coloco dentro da pochete. Ela pousa a mão aberta nas
minhas costas, e sinto o calor se irradiando a partir dali para
o corpo todo.
E, com todo o drama, a cena e a bagunça generalizada,
minha vida aparentemente é um filme: fogos de artifício
aparecem sobre nós, saindo de trás do palco e iluminando
todo o céu. Os olhos de Toni não desviam dos meus, como
se nenhum espetáculo fosse melhor do que esse aqui na
frente dela. Consigo ver as cores no céu refletindo em suas
bochechas.
Ela está certa. Eu ganhei mesmo. Dou outro beijo nela.
Eu ganhei demais.
AGRADECIMENTOS
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J65m
Johnson, Leah, 1993-
Meu lugar ao sol / Leah Johnson; tradução Thaís Britto. - 1. ed. - Rio de
Janeiro: Globo Alt, 2022.
304 p.
22-76095
CDD: 813
CDU: 82-31(73)
1ª edição, 2022