Aula 01 - Do Medieval Ao Moderno tx1
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Como veremos adiante, a origem desta periodização se encontra no século XVI. Foram
os sábios do Renascimento italiano que qualificaram o seu próprio tempo como moderno. Mas,
paradoxalmente, a “modernidade”, para eles, não era somente um avanço, mas uma retomada da
Antiguidade clássica, sobretudo no campo da estética, da arte e da filosofia desenvolvidas na
civilização greco-romana. Quanto mais antigo, mais moderno, eis o paradoxo. Vem daí a
classificação do intervalo entre a Antiguidade e o Renascimento como período medieval, isto é,
médio, outrora qualificado como Idade das trevas, pelo amplo domínio da religião na sociedade
europeia.
A historiografia do século XIX herdou este vocabulário cronológico, acrescentando,
porém, a idade contemporânea, cujo marco seria a Revolução Francesa irrompida em 1789. Ela
foi considerada, com certa razão, o ponto de partida para a construção de uma sociedade liberal e
burguesa. Para os historiadores do século XIX, contemporâneos da chamada Segunda Revolução
Industrial e, portanto, da urbanização, dos avanços científicos e do capitalismo liberal, a
Revolução Francesa era vista como um divisor de águas.
É sabido, hoje, que tal cronologia está ultrapassada, pelas seguintes razões:
1 - Texto inédito
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a) ela se ancora em uma perspectiva exclusivamente europeia-ocidental, que não exprime as maneiras de definir o
tempo histórico do conjunto do planeta, sem falar nas sociedades ágrafas que não concebiam a dimensão histórica
do tempo;
b) ela contém o paradoxo, já mencionado, de qualificar o moderno, ao mesmo tempo, como avanço e recuo, além
de basear-se no estereótipo de qualificar de média a etapa entre a Antiguidade e o Renascimento;
c) ela não dá conta de qualificar a contemporaneidade, consideradas as grandes transformações da história nos
séculos XX e XXI.
Neste esquema, o fim da Idade Antiga seria marcado pela queda de Roma, no ano de 476,
tomada pelos hérulos, povo germânico. O historiador inglês Edward Gibbon, foi um dos maiores
divulgadores deste marco temporal em seu clássico Declínio e Queda do Império Romano, cujo
primeiro volume saiu em 1776. No século V, portanto, teria início a Alta Idade Média, “alta”
porque mais remota, sucedida pela Baixa Idade Média, mais recente, deflagrada no século XI.
Esta última seria caracterizada pela expansão europeia no Mediterrâneo a partir das Cruzadas -
uma série de expedições de cavaleiros rumo ao Oriente Próximo, empenhados em expandir
territorial e comercialmente a cristandade europeia. A Idade Moderna teria início no ano de
1453, quando os turcos otomanos, ao conquistarem Constantinopla, interromperam o comércio
europeu de especiarias orientais pelo Mar Negro, estimulando as navegações oceânicas,
sobretudo as portuguesas, em busca do “caminho marítimo para as Índias”.
Também esta cronologia particular contém simplificações que a historiografia, desde o
século XX, vem apontando:
a) ela prioriza critérios político-institucionais (queda de Roma, em 476 ou de Constantinopla, em 1453), embora
valorize, implicitamente, transformações mais profundas, em especial o domínio europeu no Mediterrâneo (retração
no século V; expansão no XI; contenção no XV);
b) adota um conceito de moderno que nada tem a ver com o critério de “modernidade” do século XVI, pois este
derivou da “revolução estética” do Renascimento italiano, não das mudanças políticas ou econômicas ligadas ao
comércio marítimo;
c) não dá conta das ambivalências do período qualificado como moderno, pois, como veremos ao longo do curso, a
história europeia entre os séculos XV e XVIII foi marcada por continuidades e rupturas em relação à história dita
medieval.
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Karl Marx (1818-1883), a partir da sua teoria baseada no determinismo econômico das
mudanças históricas, identificou a era moderna como marco inaugural do capitalismo: “o
comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital”2. A
posição de Marx, contudo, apresenta ambiguidades consideráveis. Embora no trecho acima ele
tenha valorizado o comércio mundial com marco na formação do capitalismo, no seu capítulo
clássico sobre a acumulação primitiva de capital na Europa, sublinhou as transformações agrárias
na Inglaterra como núcleo do problema: transformação agrária para a criação de ovelhas
(enclosures); expulsão de camponeses e sua consequente proletarização; produção artesanal ou
manufatureira de tecidos de lã sob controle do capital3. A cronologia de Marx para a formação
do capitalismo coincide, porém, com a cronologia convencional, embora por razões diferentes.
Inicia-se no século XVI, com os enclosures ingleses, sobretudo no reinado de Henrique VIII, e
culmina com a Revolução Industrial do século XVIII. Assunto polêmico.
Alguns historiadores europeus propuseram, nas primeiras décadas do século XX uma
cronologia diferente para explicar a passagem do medievo ao moderno, embora também
priorizassem o critério econômico. Sugeriram que o capitalismo, como sistema econômico
baseado no comércio, teria surgido na Baixa Idade Média. Eis outra polêmica: capital comercial
ou capitalismo comercial? O sociólogo, também alemão, Max Weber (1864-1920), como
veremos, não teve dúvidas em qualificar o período que nos interessa como capitalismo
comercial4.
Nem Marx nem Weber, porém, eram historiadores de ofício, embora tivessem ampla
erudição histórica. Entre os historiadores do século XX que propuseram cronologias baseadas na
história econômica concreta, um dos principais foi o belga Henri Pirenne (1862-1935). Em várias
obras, ele rejeitou totalmente os marcos político-institucionais em favor de critérios econômicos,
sobretudo os ligados ao comércio. Assim, considerou que a queda do império romano ocidental
não teve grande importância para a economia europeia, que continuou atada ao Mediterrâneo. A
inflexão ocorreu, para ele, a partir do século VIII, com a expansão muçulmana para o ocidente,
2 - Karl Marx. Uma contribuição à crítica da economia política. Original de 1859. Livro de domínio público.
Disponível na íntegra em: The marxist Internet Archive.
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/tme_15.pdf
3 - Idem. A origem do capital: a acumulação primitiva. São Paulo: Fulgor, 1964 (Originalmente o capítulo XXIV do
que resultaria no controle árabe do norte africano e da maior parte da península ibérica: Europa
encurralada, ruralização da economia. Europa feudal? É o que afirma Pirenne, para quem o
feudalismo europeu só surgiu no século VIII.
Nesta perspectiva, a viragem da economia europeia, na chamada Idade Média, teria
ocorrido a partir do século XI, tempo das Cruzadas e de expansão europeia no Mediterrâneo,
sobretudo de cidades italianas como Veneza e Gênova. Este modelo de periodização pode ser
resumido no esquema abaixo:
Expansão marítima
Ruralização da Renascimento urbano e
economia comercial Revolução
Comercial
(VIII-XI) (XI-XV)
(XV-XVI)
Mas vale perguntar: por qual razão o século XV marcaria o início da Idade Moderna do
ponto de vista econômico? Não por causa da conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453,
senão pela expansão marítima portuguesa, que começou bem antes, com a tomada de Ceuta, no
Marrocos, em 1415. Isto no varejo. No atacado, foi a expansão oceânica europeia que deflagrou
a Revolução Comercial e a construção de uma economia mundial. As transformações
econômicas não explicam tudo, mas explicam muito.
5- Gótico deriva do povo germânico godo (visigodos, ostrogodos), um dos principais no processo de derrubada do
Império Romano do Ocidente, no século V.
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Interessante observar como Vasari não estabeleceu qualquer simetria entre, de um lado,
renascimento/gótico, no campo das artes, e de outro, moderno/antigo, no campo do pensamento e
da cronologia. O moderno não se opunha ao antigo, pelo contrário, fazia-o renascer, daí
Renascimento. “Quanto mais antigo mais moderno” – eis o paradoxo já mencionado.
Mas vale indagar: quando o período entre a Antiguidade Clássica e a Idade Moderna
ficou conhecida como período medieval? Quando surgiu a periodização tripartite do tempo
histórico (europeu-ocidental), dividido em Antiga, Medieval e Moderna?
O termo medieval apareceu em 1469, segundo Massimo Miglio6, grafado como media
tempestas, em latim, ou “tempo médio”. A divisão tripartite foi consagrada em 1683, a partir do
livro História Universal Dividida nos Períodos Antigo, Medieval e Novo, obra do alemão
Christoph Cellarius. O novo equivalia ao moderno e abarcava outros domínios além da arte,
como a revolução científica dos séculos XV ao XVII. Com o tempo, incorporou o fortalecimento
das monarquias, a ruptura da cristandade provocada pelas reformas religiosas, a urbanização e a
formação de um mercado mundial. Tais temas integram, por assim dizer, a pauta de estudos em
História Moderna.
No século XIX esta periodização se viu acrescida de uma quarta era, a Idade
Contemporânea, cujo marco, como vimos, é a Revolução Francesa de 1789. Um marco não
apenas político, senão geral, abrangendo a crise do Absolutismo e da sociedade de Antigo
Regime, outros dois temas essenciais do presente curso. Trata-se de uma periodização
obviamente eurocêntrica, hoje muito criticada e modificada, bastando lembrar o surgimento de
uma quinta era, a do Tempo presente, cujo marco inicial é controverso (pós Segunda Guerra
Mundial, em 1945, para uns; queda do Muro de Berlim, em 1989, para outros).
6 - Massimo Miglio. Curial Humanism seen through the Prism of the Papal Library. In: Angelo Mazzocco (org).
Interpretations of Renaissance Humanism. Leiden: Brill, 2006 pp. 97–112
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7 - António Souza Ribeiro. Walter Benjamin, pensador da modernidade. Conferência proferida na Universidade de
coimbra em 1994. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/41.pdf
8 - Alexandra Walsham. Church Papists: catholicism, conformity and confessional polemic in Ealy Modern
età moderna (1450-1660). Torino: UTET Università, 2015. Exemplo da bibliografia em francês: Les milices dans la
Première Modernité. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2006.
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Conclusão
Em todo caso, o texto citado de Florenzano resume, em duas palavras, o conteúdo de
nosso curso. São elas: tradição e ruptura. Esta é a chave de interpretação geral para o estudo da
expansão marítima europeia, do Renascimento, das Reformas religiosas, do fortalecimento das
monarquias ocidentais, da formação do capitalismo. A simples indicação desses grandes
processos parece destacar, à primeira vista, as mudanças ocorridas na época e os processos de
ruptura. No entanto, veremos que o moderno do nosso período não reside apenas nas rupturas,
mas também nas continuidades, na resistência tenaz de diversas tradições antigas e feudais.
10 - Leçon inaugurale de Sanjay Subrahmanyam (28 novembre 2013), Professeur au Collège de France et titulaire de
la chaire Histoire globale de la première modernité. Disponível em http://www.college-de-france.fr
11 - Modesto Florenzano. Notas sobre tradição e ruptura na Primeira modernidade. Revista de História (USP), n.