Anais II SEMINAR

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Universidade Federal de Goiás

Reitora
Angelita Pereira de Lima
Vice-Reitor
Jesiel Freitas Carvalho

Diretora do Cegraf UFG


Maria Lucia Kons

Comissão Científica deste livro

Alexandre Silva Nunes - Universidade Federal de Goiás


Ana Sofia Palula Fonseca de Mira - Instituto Politécnico de Lisboa
Evani Tavares de Lima - Universidade Federal do Sul da Bahia
Fernanda Pereira da Cunha - Universidade Federal de Goiás
Luiz Fernando Ramos - Universidade de São Paulo
Marcelo Andrés Comandú - Universidad Nacional de Córdoba
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira - Universidade Federal de Goiás
Rafael Guarato dos Santos - Universidade Federal de Goiás
Renata de Lima Silva - Universidade Federal de Goiás
Samuel José Gilbert de Jesus - Universidade Federal de Goiás
Saulo Germano Sales Dallago - Universidade Federal de Goiás
Valéria Maria Chaves de Figueiredo - Universidade Federal de Goiás
Cegraf UFG
2022
© Saulo Germano Sales Dallago; Valéria Maria Chaves de Figueiredo (org.), 2022
© Cegraf UFG, 2022

Revisão:
Vanda Ambrósia Pimenta

Diagramação e Capa:
Julyana Aleixo Fragoso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

S471 Seminário internacional de pesquisa e Pós-graduação em Artes da Cena (2. : 2019 : Goiânia,
GO)

Anais do II Seminário internacional de pesquisa e Pós-graduação em Arte da Cena.


Resistência e transversão: as artes e a pesquisa em artes da cena num mundo em transição.
[recurso eletrônico]. / Organizadores, Saulo Germano Sales Dallago, Valéria Maria Chaves de
Figueiredo. – Dados eletrônicos. – Goiânia: Cegraf UFG, 2022.
554 p.; il.

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.


Modo de acesso: World Wide Web
ISSN: 978-85-495-0625-2
Tema do evento: Resistência e transversão: as artes e a pesquisa em artes da cena num
mundo em transição.

1. Arte em cena - resistência. 2. Dramaturgia - dança . 3. Experiência educacional - artes.


4. Arte cultural. I. Universidade Federal de Goiás (UFG). II. Escola de Música e Artes
Cênicas (EMAC).III.Dallago, Saulo Germano Sales. IV. Figueiredo, Valéria Chaves de.

CDU:792

Bibliotecária responsável: Joseane Pereira / CRB1: 2749


Sumário

RESISTÊNCIA E TRANSVERSÃO: AS ARTES


E A PESQUISA EM ARTES DA CENA NUM MUNDO
EM TRANSIÇÃO........................................................................................9
Saulo Germano Sales Dallago
Valéria Maria Chaves de Figueiredo

AS TRANS.MUTAÇÕES DO CONCEITO DE
PERFORMATIVIDADE......................................................................... 11
Ana Carolina Silva
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

NAS TEIAS DA MEMÓRIA: O PROCESSO CRIATIVO


DO ATOR..................................................................................................... 30
Andreane Lima e Silva

“NESTES VERSOS TÃO SINGELOS”:


A REPRESENTAÇÃO DO JECA-TATU EM CONTRASTE
COM A IDENTIDADE CAIPIRA E SERTANEJA.......................57
Diogo Ramon da Silva Costa
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

ESTUDOS GENÉTICOS NAS ARTES DA CENA:


METODOLOGIA DE CRIAÇÃO NO RASTRO DA
MEMÓRIA.................................................................................................. 88
Eduardo Oliveira Babugem
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

KUNDZOB: UM PROCESSO DE CRIAÇÃO


E MEDITAÇÃO EM ECOPERFORMANCE..............................108
Elcivan Luciano Lima
A DRAMATURGIA DA DANÇA EM UMA CENA
BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DO FAZER ARTÍSTICO......128
Joisy Palmira de Amorim
Valéria Maria Chaves de Figueiredo

CIRCO: TRADICIONAL VERSUS CONTEMPORÂNEO?.150


Jonathan Brites Sena
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira

A LUZ ATIVA NO TRABALHO DE ADOLPHE APPIA....... 164


José de Oliveira Júnior

EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS E PRÁTICAS


EDUCATIVAS OLHADAS COM BASE NA METÁFORA
DO PARTO, NASCIMENTO E RENASCIMENTO................. 187
Kayara Castilho Pimenta
Marlini Dorneles de Lima

PEGADAS DO SAMBA-CHULA NO CHÃO DO TEATRO:


PISTAS PARA UM PROCESSO DE CRIAÇÃO..........................212
Lorena Fonte de Oliveira
Renata de Lima Silva

PEDAGOGIA DO TEATRO: DISCUSSÃO INICIAL


SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DO GRUPO TEATRO LUDOS
NA FORMAÇÃO DO ARTISTA-EDUCADOR
DE TEATRO..............................................................................................231
Marcos Antônio dos Santos
Saulo Germano Sales Dallago

SUSPEITA DE DOUTRINAÇÃO MARXISTA NA


MONTAGEM DO ESPETÁCULO INFANTIL A TRAIÇÃO NAS
TERRINHAS DO COELHO (GOIÂNIA, 1976)...............................253
Marcus Vinícius Pantaleão Gomes
Saulo Germano Sales Dallago
PRÁTICA COMO PESQUISA: CONTEXTO E
PERSPECTIVA.........................................................................................273
Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro Machado

ENCRUZILHADA: CORPOS INSURGENTES E


ESTADOS DE ALTERIDADE............................................................ 295
Maria Antônia de Oliveira Souza
Marlini Dorneles Lima

A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS NO FOCO DA CENA:


UMA PROPOSIÇÃO E-ARTE/EDUCATIVA PARA O
DESENVOLVIMENTO DA COGNIÇÃO PERCEPTIVA
DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL I.......................315
Maria Cecilia Silva de Amorim
Valéria Maria Chaves de Figueiredo

TRAÇOS, RELAÇÕES E ENTRECRUZAMENTOS NAS


OBRAS DO MULTIARTISTA JOHN LOUIS GRAZ.............. 346
Paulo Damasceno

METODOLOGIA DE PESQUISA EM ARTES


DA CENA: TEATRALIDADE E JOGOS
TRADICIONAIS EM GOIÁS............................................................ 367
Pedro Paulo Galdino Vitorino Dias
Alexandre Silva Nunes

A DIREÇÃO DE ARTE:
O CORPO SHÍVICO DAS ARTES................................................... 388
Ravana da Silva Lobo
Samuel José Gilbert de Jesus

ANTÍGONA, UMA POÉTICA POLÍTICA:


AÇÃO TRÁGICA E SENTIDO DIONISÍACO......................... 406
Renata Cesar Torres
PRÁTICAS SOMÁTICAS COMO MEIO INTEGRADOR
DA DRAMATURGIA DO MOVIMENTO.................................. 425
Sarah Auxiliadora Paiva Duarte
Valéria Maria Chaves de Figueiredo

DAS TRANSFORMAÇÕES DA ARTE E CIÊNCIA


E SUAS ELUCIDAÇÕES NA HISTORIOGRAFIA DO
GESTO DANÇADO...............................................................................443
Tainara Carareto

O RITUAL DA QUEIMA DOS TAMBORES:


SÍMBOLOS DE UM RITO................................................................. 462
Taiom Nunes Faleiro
Alexandre Silva Nunes

O PALCO COMO TERRITÓRIO.................................................... 485


Thiago Moura Carneiro

COR, ORIXÁ E OS INTENCIONAIS ACORDES


CROMÁTICOS.........................................................................................512
Tiago Barreto de Barros
Saulo Germano Sales Dallago

CIBERCENA/EDUCAÇÃO: ESTEREÓTIPOS DE
GÊNERO NA EXPRESSÃO METACÊNICA CRÍTICA
NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL
(DEI) DO CEPAE-UFG......................................................................... 534
Yasmin Gonçalves e Lyra
Resistência e transversão: as artes e a pesquisa
em artes da cena num mundo em transição

Com a criação do mestrado em Artes da Cena em 2018 na


Universidade Federal de Goiás, unindo o curso de Licencia-
tura em Dança, o curso de Licenciatura em Teatro e o curso
de Bacharelado em Direção de Arte, fez-se necessário criar
nosso Seminário Internacional de Pesquisa em Artes da Cena,
marcado pela ousadia do grupo de docentes que tomou para
si a responsabilidade de organizar um evento que trouxesse a
pluralidade das pesquisas, das temáticas e da qualidade.
O I Seminar, realizado em 2016, ainda durante o processo
de elaboração do projeto de Aprovação de Proposta de Cur-
sos Novos Stricto Sensu (APCN) do Mestrado em Artes da
Cena, contou com a participação dos docentes que então se
propunham à criação do curso e, também, com o convidado
externo Prof. Dr. Fernando Mencarelli (UFMG). Com sua
expertise como professor e avaliador Capes, o professor con-
tribuiu sobremaneira para o amadurecimento da proposta do
novo mestrado.
O II Seminar foi realizado a partir do ingresso da primei-
ra turma de estudantes do curso de pós-graduação, no ano
de 2019, contando com trabalhos ligados ao corpo discente e
ao corpo docente, além de mesas e palestras com convidados
nacionais e internacionais. A organização deste volume arti-
cula 25 textos, cujos eixos norteadores são a dança, o teatro,
a direção de arte, o circo e a performance. Os trabalhos aqui
reunidos contribuem para aperfeiçoar o entendimento teó-
rico e prático de estudantes e professores empenhados em
criar trajetos de debates para a área e em respeitar e ampliar a
diversidade artística, social e cultural.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Acreditamos oferecer um material que tenha conexões for-


mativas significativas para o campo e que possa concorrer para
os processos investigativos que são mediados pelo programa
de pós-graduação. São reflexões, análises, prospecções, pro-
jeções, leituras, diários e outras perspectivas que se juntam
com o intuito de ampliar e ultrapassar barreiras, preconceitos
e rótulos; de promover os princípios da cidadania, da demo-
cracia e da liberdade; de auxiliar na compreensão da atualida-
de, dos conflitos e dos inúmeros preconceitos atuais presentes;
de criar momentos capazes de gerar uma pedagogia da indig-
nação (lembrando aqui de Paulo Freire) através da transver-
são e da resistência. Os textos buscam, enfim, colaborar para a
compreensão do momento histórico e dos lugares de conflitos
e contradições, e falar das oportunidades de lutar pelas coisas
em que se acredita – destacadamente, a Arte.

Saulo Germano Sales Dallago


Valéria Maria Chaves de Figueiredo
Organizadores

10
As trans.mutações do conceito de
performatividade

Ana Carolina Silva1


Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira2

Resumo: O presente texto investiga o conceito de perfor-


matividade, sua transdisciplinaridade e decorrentes trans.
mutações de definição, debruçando-se sobre o mapeamento
e o estudo analítico das múltiplas noções de performativi-
dade e de seus correlatos performance, performático e perfor-
mativo. Analisa o fluxo transdisciplinar e a transversalidade
teórico-prática e experimental da performatividade dentro
do campo das artes da cena, revelando seu caráter de con-
ceito híbrido e multidimensional marcado pela ação, pela
experimentação e pelo fazer. A noção de performance é mul-
tifacetada e transdisciplinar, e habita as fronteiras e os limi-
tes de entendimento do cenário artístico contemporâneo. O
termo performatividade surge incorporado ao mapa teórico
de vias de acesso às diversas estéticas, linguagens artísticas e
disciplinas do conhecimento e aponta para a convergência,
a conexão e o estranhamento entre elas. O objetivo deste

1 Atriz, performer e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da


Cena da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de
Goiás.
2 Orientadora da pesquisa em questão, diretora teatral, atriz e professora
da Universidade Federal de Goiás (UFG), na Escola de Música e Artes
Cênicas (Emac). É doutora em Educação pela UFG, mestra em Artes
pela Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Artes Cênicas:
Interpretação Teatral, também pela UnB. Coordena o Laboratório de
Montagens Cênicas e Teatro Educação (LabMonTe) e o Laboratório
de Criação de Figurinos, Acervo de Indumentárias e Ateliê de Costura
(LabCriaa).
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

texto é compor uma cartografia conceitual observando as


variações e mutabilidades do processo de concepção do ter-
mo performatividade afetado pela subjetividade, pela ma-
neira como o sujeito/corpo da ação se apodera e se ocupa
da criação. Como metodologia, foi feito um levantamento
bibliográfico de obras que elencam especialmente o con-
ceito de performatividade e as categorias que integram esse
conceito (tempo, espaço, ação, meio e performer). Pretende-
-se, por meio deste estudo, tensionar conceitos, princípios e
definições acerca do assunto, de maneira a contribuir tam-
bém esteticamente para os processos de criação.
Palavras-chave: artes da cena; performatividade; perfor-
mance; corpo.

Trans.Mutaciones del concepto de performatividad

Resumen: El presente artículo investiga el concepto de


performatividad, su transdisciplinaridad y sus consiguientes
trans.mutaciones de definición. Este trabajo se enfoca en el
mapeo y el estudio analítico de las múltiples nociones de
performatividad y sus correlatos performance, performativo
y performático; además de pensar en su flujo transdiscipli-
nario y su transversalidad teórico-práctico y experimental
dentro del campo del artes de la escena, constituyéndose
como un concepto híbrido y multidimensional marcado
por la acción, la experimentación y el hacer. El concepto
de performance es multifacético, transdisciplinario y habita
las fronteras y límites de la comprensión y la concepción
de la escena artística contemporánea. El término performa-
tividad se incorpora en el mapa teórico de rutas de acceso
a las diferentes estéticas, lenguajes artísticos y disciplinas
del conocimiento y apunta para la convergencia, conexión y
alejamiento entre ellas. El objetivo de este trabajo es compo-
ner una cartografía conceptual que observe las variaciones y

12
As trans.mutações do conceito de performatividade

mutabilidades del proceso de concepción del término per-


formatividad afectado por la subjetividad de cómo el sujeto/
cuerpo de la acción se hace cargo y se ocupa de la creación.
Como metodología, se realizó un levantamiento bibliográ-
fico de obras que enumera especialmente el concepto de
performatividad y las categorías que integran este concepto
(tiempo, espacio, acción, medio y performer). Pretendese, a
través de este estudio, tensar conceptos, principios y defini-
ciones sobre el tema para contribuir también estéticamente
a los procesos creativos.
Palabras clave: artes de la escena; performatividad; per-
formance; cuerpo.

Introdução

Para existir basta deixar-se ser, mas para viver é preciso


ser alguém e para ser alguém é preciso ter um osso, não
ter medo de mostrar o osso e de perder a carne pelo
caminho. O homem sempre preferiu a carne à terra dos
ossos.3 (ARTAUD, 2003, p. 27, tradução nossa).

O presente texto é parte de uma investigação acerca das


trans.mutações do conceito de performatividade e sua trans-
disciplinaridade (NICOLESCU, 1999b), e, como tal, debruça-
-se sobre o mapeamento e o estudo analítico das múltiplas
noções de performatividade e de seus correlatos performance,
performático e performativo. O trabalho analisa criticamente

3 Poema radiofônico registrado em Paris entre 22 e 29 de setembro de


1947, difundido na época pela rádio francesa. “Pour exister il suffit
de se laisser aller à être, mais pour vivre, il faut être quelqu’un, pour
être quelqu’un, il faut avoir un os, ne pas avoir peur de montrer l’os,
et de perdre la viande en passant. L’homme a toujours mieux aimé la
viande que la terre des os”. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?time_continue=1907&v=EXy7lsGNZ5A&feature=emb_logo.
Acesso em: 9 dez. 2019.

13
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

o fluxo transdisciplinar da performatividade e sua transversa-


lidade teórico-prática e experimental, que faz dela um con-
ceito híbrido e multidimensional, marcado pela ação, pela ex-
perimentação e pelo fazer-dizer do corpo (SETENTA, 2008).
Pensar a transdisciplinaridade se faz inerente à discussão
do termo performatividade, pois “a transdisciplinaridade é
uma teoria do conhecimento, é uma compreensão de proces-
sos, é um diálogo entre as diferentes áreas do saber e uma
aventura do espírito”.4 Nessa aventura, cruzar livremente as
fronteiras das disciplinas não implicaria significativo engano,
mas sim experimentação.
Basarab Nicolescu (1999b, p. 22), físico quântico da Uni-
versidade de Paris e presidente do Centre Internationale de
Recherches et Études Transdisciplinaires (Ciret), associação
parisiense regida pela Lei 1901, explica que a transdiscipli-
naridade, “como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo
que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das di-
ferentes disciplinas e além de qualquer disciplina”. Ou seja,
para o pensamento clássico, esse espaço entre, através e além
seria vazio, não se configuraria como campo de pensamen-
to e reflexão, porém, para a transdisciplinaridade, ele é como
o vazio quântico e “está cheio de todas as potencialidades”
(NICOLESCU, 1999b, p. 22).
Por isso, a transdisciplinaridade é compreendida como
“uma nova atitude, [...] é uma arte, no sentido da capacidade
de articular a multirreferencialidade e a multidimensionali-
dade do ser humano e do mundo”.5 A transdisciplinaridade do
conceito de performatividade, bem como da própria ação per-

4 Disponível em: http://cetrans.com.br/site/formacao/o-que-e-transd/.


Acesso em: 10 dez. 2019.
5 Disponível em: http://cetrans.com.br/site/formacao/o-que-e-transd/.
Acesso em: 10 dez. 2019.

14
As trans.mutações do conceito de performatividade

formativa, rompe as fronteiras lógicas de investigação. Dessa


forma, com este estudo crítico e analítico do termo performa-
tividade e seus correlatos, pretende-se compor uma possível
cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 1995) conceitual, obser-
vando o processo transdisciplinar de concepção e utilização
do termo performatividade na contemporaneidade.
A performatividade aponta para o múltiplo, heterogêneo,
aberto e processual, algo em constante transformação e movi-
mento. Essa particularidade flerta com o método da cartogra-
fia, proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995, p. 22).
O mapa é aberto, é conectável em todas
as suas dimensões, desmontável, rever-
sível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado,
revertido, adaptar-se a montagens de
qualquer natureza, ser preparado por
um indivíduo, um grupo, uma formação
social. Pode-se desenhá-lo numa pare-
de, concebê-lo como obra de arte, cons-
truí-lo como uma ação política ou como
uma meditação.
Sob essa ótica, o método cartográfico, proposto por Gilles
Deleuze e Félix Guattari, pressupõe uma aproximação com a
transdisciplinaridade do termo performatividade. Cartogra-
far, segundo os filósofos franceses, significa desenhar e pro-
jetar um mapa aberto, conectável, desmontável, heterogêneo,
que não se define pelos seus limites nem pela sua forma, mas
sim por suas linhas, vetores, conexões, rupturas e atravessa-
mentos próprios.
O termo performatividade extrapola as barreiras discipli-
nares. Ou seja, é um conceito que se organiza conceitualmen-
te de maneira autônoma e que transita como aporte teórico
e prático em várias disciplinas do conhecimento e das artes.

15
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Embora a cartografia seja apontada como método de escri-


ta e construção de pensamento para o mapeamento teórico
proposto, este estudo não pretende localizar o sentido ori-
ginal do conceito de performatividade e de seus correlatos,
mas sim dedicar-se a pensar a performatividade para além
de sua adjacência teórica, reconhecendo-a como expressão,
processo, ação e fazer.
O esforço de escrita deste texto se inebria da qualidade
híbrida e atravessada pelo conteúdo investigado, assim como
da transversalidade do procedimento metodológico escolhi-
do. Não se almeja um começo e um fim, e nem mesmo um
eixo conceitual estruturante, pois não se trata de uma repre-
sentação, mas sim de uma relação de afetação, performação e
subjetivação.

Performatividade

O vocábulo performativo se apresenta no trabalho de


John Austin (1962) por meio do estudo da linguagem, e a
Teoria dos Atos de Fala aparece na obra How to do things with
words, também publicada pelo autor em 1962 e traduzida para
o português sob o título Quando dizer é fazer6 (Austin, 1990).
Essa teoria questiona postulados fundamentais da linguísti-
ca e entende a linguagem como uma forma de ação, ou seja,
todo dizer é fazer. De acordo com Austin, dizer não é apenas
um ato de transmitir informação e/ou ato descritivo, mas, so-
bretudo, uma forma de agir, uma ação em si. No entendimen-
to do autor, as sentenças, quando ditas, não serviam somente
para descrever algo, descrever uma ação ou declarar uma prá-
tica, mas também para realizar uma ação.

6 Preferimos a tradução Como fazer coisas com as palavras.

16
As trans.mutações do conceito de performatividade

Que nome daríamos a uma sentença


ou a um proferimento deste tipo? Pro-
ponho denominá-la sentença performa-
tiva ou proferimento performativo, ou, de
forma abreviada, “um performativo”.
O termo “performativo” será usado em
uma variedade de formas e construções
cognatas, assim como se dá com o termo
“imperativo”. Evidentemente que esse
termo é derivado do verbo em inglês to
perform, verbo correlato do substantivo
“ação”, e indica que ao se emitir o pro-
ferimento está se realizando uma ação,
não sendo, consequentemente, conside-
rado um mero equivalente a dizer algo.
(AUSTIN, 1990, p. 25, grifo do autor).
São enunciados performativos os que, quando proferidos
na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na
forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação, tais como:
“Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth”, “Aposto
cem cruzados como vai chover amanhã”, “Aceito essa mulher
como minha legítima esposa” (Austin, 1990, p. 24). Nesse
sentido, dizer algo é fazer algo.
Esse filósofo da linguagem aponta em seu estudo que
existem certas especificidades e condições para que o enun-
ciado, ao ser emitido, possa constituir um ato performativo.
O autor enfatiza que o simples fato de dizer um enunciado
performativo não garante a sua realização. Para que a ação
enunciada pelo ato de fala perfomativo seja de fato realizada,
é preciso, ainda, que o contexto seja adequado e próprio. Um
enunciado performativo é nulo se pronunciado em situações
inadequadas. Quando isso acontece, seu potencial de trans-
formação da realidade material se perde, isto é, a autoridade

17
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

de quem fala pode ou não gerar uma ação: depende dessa


autoridade, se ela é reconhecida ou não no contexto.
Jacques Derrida (1991) contribui também para a discussão
do conceito de performatividade. O filósofo
realça na teoria dos atos performati-
vos de Austin o fato de que ela mesma
evidencia a possibilidade implícita de
uma mobilidade e de uma iterabilidade
geral das expressões humanas, faladas
ou escritas, linguísticas ou não linguísti-
cas. (BAUMGÄRTEL, 2018, p. 140).
Nos seus estudos acerca da teoria dos atos de fala, o filósofo
francês Jaques Derrida parte de uma leitura desconstrutora
de aproximação e afastamento do conceito de performativi-
dade dado por Austin.
O recorte aqui proposto do intenso estudo crítico que Der-
rida (1991) lança sobre a obra How do to things with words, em
seu ensaio “Assinatura acontecimento contexto”, diz respeito
ao contexto, às circunstâncias e ao signo. O pensador francês
lança mão de dois conceitos: a iterabilidade e a citacionali-
dade. A iterabilidade é a propriedade do signo de ser sempre
outro em si mesmo, por meio da repetição; já a citacionalida-
de é a sua particularidade de transitar entre contextos, deslo-
car-se e assim produzir significado.
Derrida conclui disso que os atos de
fala performativos dependem, sim, de
contextos tais como um regulamento
social e uma consciência intencional,
mesmo que esses contextos aparente-
mente não [existam antes do ato. Eles
são coexistentes com o ato] e afirmados
por ele. E mais importante que isso,

18
As trans.mutações do conceito de performatividade

são contextos marcados por uma pre-


cariedade ou instabilidade pragmática.
(BAUMGÄRTEL, 2018, p. 139).
O ato performativo gera a ação que enuncia e se constitui
por convenções sociais, deslocando o signo e elaborando no-
vos significados, e, muitas vezes, criando sentidos que subver-
tem as próprias convenções.
Em conexão com os pensamentos e os estudos citados, e
no bojo da discussão sobre performatividade, Judith Butler
(1988) também se debruça sobre o uso do termo performati-
vo para debater a questão de gênero. Em seu ensaio Performa-
tive acts and gender constitution: an essay in phenomenology and fe-
minist theory, Butler discute uma teoria da ação, de influência
fenomenológica, e se lança à análise dos processos de consti-
tuição das identidades de gênero, estabelecendo que gênero
é uma realização performativa em que o sujeito é o objeto de
seu próprio fazer.
A filósofa estadunidense se aproxima das discussões sobre
performatividade levantadas por Austin e Derrida e propõe
entender o gênero e o sexo como construções performáticas.
Ainda sob essa ótica, a autora afirma que gênero é consti-
tuído por uma série de atos repetitivos ao longo do tempo e
que a construção de gênero e sexualidade se dá pela repetição
de discursos e contextos. Portanto, a identidade de gênero
é instituída por meio da repetição de atos performativos e,
na concepção de Butler (2010, p. 48), “essa identidade é per-
formativamente constituída pelas próprias expressões tidas
como seus resultados”. Explicando sua concepção de gênero
como ato, a autora questiona e, ao mesmo tempo, responde:
Assim, em que sentidos o gênero é um
ato? Como em outros dramas sociais
rituais, a ação do gênero requer uma
performance repetida. Essa repetição é a

19
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

um só tempo reencenação e nova expe-


riência de um conjunto de significados
já estabelecidos socialmente; e também
é a forma mundana e ritualizada de sua
legitimação. (p. 200).
Até o momento, as linhas e os vetores que conduzem essa
escrita cartográfica partem de autores que flutuam entre e
além de seus aportes teóricos e conceituações sobre perfor-
matividade e seus correlatos, de modo não consensual, porém
dialogando entre si. O termo performatividade na contem-
poraneidade é atravessado pelo conhecimento de diversas
formas e, a essa altura, já é possível perceber a sua transdisci-
plinaridade graças aos estudos nos campos da linguagem, da
filosofia e do estudo de gênero.

A performatividade nas artes da cena

As imagens de ritual e encenação que agora atravessam


esse mapeamento, por meio da colocação da filósofa Judith
Butler, redirecionam a transversalidade do termo performa-
tividade para as artes da cena. As inscrições do termo nesse
campo serão aqui recortadas pelos estudos das autoras Josette
Féral (2008, 2009) e Erika Fischer-Lichte (2008), que se dedi-
caram à observação das Artes Cênicas à luz do performativo.
Os estudos de Josette Féral contribuem para o entendi-
mento de que teatralidade e performatividade não se con-
testam nem se contradizem no processo de criação artística.
Em contrapartida ao que Hans-Thies Lehmann (2007) no-
meia como teatro pós-dramático, Féral (2009, p. 197) lança
o conceito de teatro performativo e explica: “seria mais justo
chamar este teatro de ‘performativo’, pois a noção de perfor-
matividade está no centro de seu funcionamento”. A autora

20
As trans.mutações do conceito de performatividade

aposta em análises profundas de peças, performances, espe-


táculos e experimentos teatrais para discorrer sobre a inter-
venção e a ação da performatividade no cerne de suas com-
posições artísticas, considerando o que ela define como um
ato de transgressão do cotidiano através da criação.
No teatro performativo, o ator é chama-
do a “fazer” (doing), a “estar presente”,
a assumir os riscos e a mostrar o fazer
(showing the doing), em outras palavras,
a afirmar a performatividade do processo.
A atenção do espectador se coloca na
execução do gesto, na criação da for-
ma, na dissolução dos signos e em sua
reconstrução permanente. Uma estética
da presença se instaura (se met em place).
(FÉRAL, 2009, p. 209, grifo da autora).
Fazendo claramente uma referência às reflexões de
Richard Schechner (2003) sobre a performance e suas ope-
rações de ação, pesquisas fortemente decisivas para as análi-
ses teóricas da performance concebida como forma artística e
ferramenta teórica de conceituação, Féral (2009, p. 201) deixa
claro que a performatividade “valoriza em si a ação, mais que
seu valor de representação, no sentido mimético do termo”.
Erika Fischer-Lichte, por sua vez, propõe o entendimento
de uma performative turn (virada performativa), que teria mar-
cado o início do século XX.
A dissolução de fronteiras nas artes, re-
petidamente proclamada e observada
por artistas, críticos de arte, estudiosos
de arte e filósofos, pode ser definida
como uma virada performativa. Seja
arte, música, literatura ou teatro, o pro-
cesso criativo tende a ser realizado na
e como performance. Em vez de criar

21
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

obras de arte, os artistas produzem cada


vez mais eventos que envolvem não
apenas a si mesmos, mas também os
observadores, ouvintes e espectadores.
(FISCHER-LICHTE, 2008, p. 22, tra-
dução nossa).
A autora alemã observa que essa redefinição do e no pro-
cesso de criação artística, por meio da ação performativa, atua
diretamente na abordagem estética. A estética performativa
arrisca uma redefinição da relação entre ator/performer7 e es-
pectador/observador. Para Fischer-Lichte, os estudos sobre o
ritual e o teatro nos campos da Antropologia e das Artes, res-
pectivamente, teriam subvertido paradigmas que já se faziam
convencionais, deslocando o foco de suas atenções: do mito
para o ritual e do texto para a atuação.
Em outras palavras, tanto os estudos
sobre rituais quanto os estudos sobre
teatro repudiaram o status privilegiado
dos textos escritos em favor das perfor-
mances. Pode-se dizer, portanto, que a
primeira virada performativa na cultu-
ra do século XX europeu não teve lu-
gar na performance cultural dos anos de
1960 e 1970, mas ocorreu muito antes,
com a instituição dos estudos de ritual
e de teatro na virada do último século.
(FISCHER-LICHTE, 2008, p. 31, tra-
dução nossa).

7 “A questão é que compreendo o ator como um artista performático!


Em inglês [denominam-se] performer tanto bailarinos quanto atores,
a expressão performer é utilizada para designar o artista cênico, ou seja,
aquele que realiza uma apresentação, uma performance. No Brasil, a
expressão performer ainda está bastante relacionada com alguém que
realiza uma improvisação, tornando o conceito de performer estrito”
(COHEN, 1989 apud OLIVEIRA, 2009, p. 27).

22
As trans.mutações do conceito de performatividade

O estudo sobre performatividade, no campo das artes da


cena, é transdisciplinar: está presente no campo das investi-
gações acerca do conhecimento das Artes Cênicas antes mes-
mo da nomeação e concepção explícita do termo. O cerne
teórico, prático e poético da performatividade já se fazia pre-
sente nas transformações conceituais e novas propostas de se
pensar a cena, a encenação, a atuação, a estética, entre outros
elementos das Artes Cênicas, como o ritual e o teatro, citados
por Fischer-Lichte.

Considerações finais

A ideia de performatividade nas artes da cena brinca com


uma aproximação e um distanciamento do real (FÉRAL,
2012) – um flerte com o escape da representação, com o limi-
te da ficção e com a ausência de mediação cênica e de jogo de
fantasia. Por consequência disso, amplia-se a dimensão dos
conceitos tradicionais das Artes Cênicas.
Esse recurso ao real, como esclarece Josette Féral (2012,
p. 83), “aparece como um meio de romper-se a ilusão cênica e
a representação para favorecer uma presença e esvaziar a me-
diação de uma narrativa trazida pelo ator”. A suspensão da re-
presentação provoca uma quebra no espaço, no acontecimento
e na temporalidade ficcional, mas não o seu desaparecimento.
A dança entre o real e o ficcional é que compõe o jogo cênico
performativo e dá teatralidade à sua dimensão estética.
Toda ação performativa lança mão da
teatralidade. É ela que dá sua dimensão
estética. A obra pode evidentemente
trabalhar pelo rompimento dessa tea-
tralidade tentando aboli-la. Pode ex-
plorar seus limites, mas a teatralidade

23
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

permanece. [...]. Eu diria que é essa tea-


tralidade que torna a performatividade
identificável em termos artísticos e esté-
ticos. (FÉRAL, 2012, p. 85).
Quando se leva essa realidade híbrida, múltipla, desconti-
nuada e transversal para o jogo de ação e experimentação que
rege a performance, essa se afigura como um acontecimento
artístico em que os traços subjetivos e poéticos do corpo do
artista/performer ficam mais perceptíveis e suscetíveis.
Como se sabe, Féral cunhou o termo
“teatro performativo” para dar conta da
aproximação, cada vez maior, da cena
contemporânea com o acontecimento
único e os gestos de autorrepresen-
tação do artista performático. Por recu-
sar a adoção de códigos rígidos, como
a definição precisa de personagens e a
interpretação de textos, a performance
apresenta ao espectador sujeitos dese-
jantes, que em geral se expressam em
movimentos autobiográficos e tentam
escapar à lógica da representação, lu-
tando por definir suas condições de
expressão a partir de redes de impulso.
(FERNANDES, 2013, p. 8).
A performatividade pode operar esteticamente nas experi-
mentações como um agente de rompimento no acordo ficcio-
nal estabelecido entre as partes constituintes da obra/aconte-
cimento: performer e espectador. O componente do real e da
ação, ao qual este estudo se refere como performativo, indica
quebra entre a ilusão cênica mediada pela ficção e o imediato
da realidade expressa pelos sujeitos desejantes/performers.

24
As trans.mutações do conceito de performatividade

A experiência performativa é diversa, aberta e desprotegi-


da, levando em conta que pressupõe vulnerabilidade, desejo e
exposição, tanto no terreno estético, como no político e social.
Em termos sociais, há o significado me-
tafórico da abertura à diversidade, às di-
ferentes abordagens, ao convívio entre
alteridades. E não haverá problemas em
atribuir soberania a uma ou outra au-
tonomia, em circunstâncias específicas,
desde que isso não implique na noção de
uma soberania constituinte. Na atuali-
dade, cresce a urgência de pressupostos
inclusivos, que comportem a diversida-
de. Não resta mais espaço para auto-
ridades tradicionais ou pretensões de
redenção vanguardista. Minha ideia é a
de que as discussões atuais não devem
implicar na negação das formas que no
passado se constituíram hegemônicas,
senão no reconhecimento de que estas
formas não podem mais ser compreen-
didas como axioma. E a percepção de
uma realidade policêntrica, segundo a
qual as diversas autonomias criativas
podem estabelecer modos diversifica-
dos de criação, demarca um novo prin-
cípio. Abrangente e inclusivo. (NUNES,
2019, p. 137).
Esse novo princípio abrangente e inclusivo que Alexan-
dre Nunes cita ao observar uma realidade policêntrica para
as autonomias criativas instiga o presente texto à tentativa de
compreender e de considerar a imensidão, pluralidade e mul-
tiplicidade dessa teia complexa e multiforme da arte contem-
porânea inebriada pela performatividade. Os modos diversi-
ficados de criação, intersecções, cruzamentos, autonomias e

25
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

encontros se convergem numa cartografia de fluxos, linhas


e vetores de ideias, obras, conceitos, subjetividades, estéticas,
entre outras potências materiais artísticas.
Esse jogo de mediações simbólicas é comumente anali-
sado como uma ruptura e distanciamento do jogo cênico, e
por isso o conceito de performatividade (e de seus correla-
tos) flutua entre definições e concepções diversas nos estudos
analíticos das artes da cena. E mais: atua de maneira transdis-
ciplinar, indo além desse campo artístico.
A transdisciplinaridade, segundo Basarab Nicolescu
(1999a), é uma necessidade contemporânea, isto é, uma abor-
dagem científica, um método indispensável para se compreen-
der a contemporaneidade. Ela não significa apenas que as dis-
ciplinas operam e cooperam entre si, mas significa também a
existência de um pensamento dinâmico, integral e complexo
que ultrapassa as próprias disciplinas, constituindo-se como
experiências sistêmicas, transversais e performativas.
Pode-se considerar este estudo relevante para a área de co-
nhecimento das Artes Cênicas, tomando-o como aporte teóri-
co e crítico para a pesquisa acadêmica que vise tensionar con-
ceitos, princípios e definições acerca da performatividade. As
dimensões transdisciplinares desta escrita podem também
contribuir esteticamente para os processos de criação do per-
former e ainda estabelecer diálogos com o hibridismo contem-
porâneo das Artes, manifestando alternativas teóricas e práti-
cas para a ação performativa e a transformação do performer.
Abismos teóricos são levantados na tentativa de determi-
nar conceitos e classificar as linguagens estéticas que com-
põem o fazer artístico da cena. No entanto, essa divisão ca-
tegórica não contribui para a investigação do processo de
criação, além de gerar expectativas estéreis de resultados no
que diz respeito à escolha estética.

26
As trans.mutações do conceito de performatividade

Num contexto acadêmico, a performatividade permite


transitar, agir e pensar um encontro, uma conexão transdisci-
plinar que ultrapasse as tradicionais articulações clássicas do
conhecimento. Desse modo, possibilita que o rigor científico
se contagie com o processo criativo do pesquisador-artista e
com suas performações, narrativas e experiências, viabilizan-
do assim uma troca de potências – estética e poética – entre
ciência e fazer artístico, regida pela noção do outro, do fora,
do entre, do além, que também se constitui, diferencia-se e,
justamente por isso, se conecta.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro
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28
As trans.mutações do conceito de performatividade

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de Lucia Pereira de Souza. São Paulo: Escola do Futuro: Edusp,
1999a.
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SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e perfor-
matividade. Salvador: Edufba, 2008.

29
Nas teias da memória:
o processo criativo do ator

Andreane Lima e Silva1

Resumo: Este trabalho traz, em forma de texto-


-memorial, uma apresentação teórica e poética acerca do
conceito de memória no procedimento de criação artística.
Busca-se compreender os processos mentais que caracte-
rizam o universo psíquico do ator – considerado aqui não
como uma identidade fixa, mas como uma unidade fluida –,
que se refaz constantemente através de suas múltiplas tro-
cas e experiências. Trata-se, portanto, de um processo de
autopesquisa que visa contribuir para o desenvolvimento
de teorias sobre a memória transformada em matriz criativa
do ator por meio de atravessamentos e afetividades estabe-
lecidas no próprio artista pesquisador, tendo como base os
princípios de alteridade.
Palavras-chave: ator; memória; teatro; contemporanei-
dade.

In the webs of memory: the actor’s creative process

Abstract: This work presents, in the form of a memo-


rial article, a theoretical and poetic presentation about the
concept of memory in the procedure of artistic creation, ai-
ming to understand the mental processes that characterize
the psychic universe of theactor – considered here not as a

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da


Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor, ator, performer e
dramaturgo.
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

fixed identity, but as a fluid unit – which is constantly re-


made through its multiple exchanges and experiences. This
essay study, therefore, points to a process of self-research
that aims to contribute to the development of theories
about memory transformed into theactor’s creative matrix
based on the crossings and affections established by there
searcher himself, based on the principles of otherness.
Keywords: actor; memory; theater; contemporaneity.

Introdução: olhar sobre si mesmo: um exercício de


anamnese

Para que a abordagem aqui realizada seja melhor com-


preendida, faz-se necessário um breve prólogo: sou de Goiás.
Nasci e vivi grande parte da minha infância e adolescência
numa cidade muito pequena, localizada entre as serras do
planalto goiano e que leva o nome de Serranópolis. Entretan-
to, quando criança, costumava passar as férias e os finais de
semana no sítio dos meus pais, onde muito antigamente era
a fazenda do meu avô (antiga fazenda Babaçu), que depois foi
dividida entre seus catorze filhos, ficando uma pequena ex-
tensão de terra para minha mãe. Apesar de não ter conhecido
o meu avó e ter convivido muito pouco com a minha avó,
sinto que há muita herança deles em mim.
Quando minha avó e meu avô se casaram, a vida era muito
dura, “de rasgar uma cana verde por dia”. Roçando a vida, eles
criaram todos os seus filhos no punho da mão, berganhan-
do alegria em troca de trabalho. Minha avó era uma mulher
muito séria e nunca teve medo de enfrentar a lida e os demais
perigos da vida, sempre com a força e o rigor característicos
da sua personalidade. Ela era tecedeira de mão cheia e, en-

31
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

quanto tecia, colocava ao seu lado os filhos para ensiná-los a


ler. Apesar de ter pouca escolaridade, vovó sabia de cor tudo o
que aprendia naqueles seus livros, com as páginas queimadas
pela luz das lamparinas.
Agora, enquanto escrevo este texto, percebo-me como
um tecelão, à semelhança de minha vovó, colhendo, depois
cardando e fiando o algodão, formando assim os novelos de
linha, que eram tingidos e colocados nos pentes do tear e em
seguida transformados em roupas, tapetes e cobertores. Po-
rém, neste exercício de escrita, a minha matéria-prima de tra-
balho é outra: os meus fios são as linhas da memória, selecio-
nadas, combinadas e entrelaçadas com afetos e percepções,
para depois, ao final deste texto, arrematar minhas reflexões,
entrelaçando-as com as referências de outros autores especia-
listas no assunto, a fim de compor uma rede de ideias.
Quanto ao meu avô, mesmo não tendo convivido com ele,
sei, através da minha mãe, que era um homem muito calmo e
despreocupado. Ao contrário da minha avó, não era afeito ao
serviço da roça: a vovó geralmente era quem gerenciava os as-
suntos da fazenda. A distração predileta do vovô era sair para
pescar, estendendo uma rede entre os galhos das árvores. Ti-
nha também um interesse muito grande pela história das ci-
vilizações antigas e gostava de escrever poemas. Transcrevo,
aliás, um pequeno fragmento de um dos poemas escritos por
ele: “Meus colegas já se foram, / Estou ficando quase sozinho.
/ A velhice a gente não percebe, / Vem chegando devagari-
nho” (Onofre Claro de Lima).
Dessa forma o tempo foi chegando “devagarinho”, como
meu avô poetizou nos seus versos. A cuia cada vez mais cheia
de farinha, a família crescendo e acudindo a roça no talho da
enxada, sempre em contato com a terra e a natureza. Foi pi-
sando nesta terra que minha mãe nasceu e se criou, e é onde

32
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

um dia ela há de morrer também. Nessa terra, ela e meu pai


construíram uma casinha branca no alto da serra e ali tiveram
cinco filhos: cinco lamparinas iluminando a sala da casa, cin-
co pratos sobre a mesa, cinco cadeiras recostadas na parede,
cinco toadas de saudade.
O símbolo da terra desempenha um papel muito essencial
para os devaneios do homem do campo, acostumado com a
força, os cheiros e os sabores deste elemento. Sua presença se
faz sentir em toda a extensa planície do cerrado goiano, na
mentalidade e nos costumes do lavrador, tal como um manto
que infiltra dentro de sua casa e recobre com uma fina cama-
da de poeira os objetos e as pessoas ao seu redor, dando-lhes
um aspecto avermelhado. E são estes caminhos que agora eu
refaço em meus pensamentos: caminhos feitos de cascalho e
terra vermelha e que me deixaram marcas profundas crava-
das na sola dos pés.
Outrossim, foi nesse ambiente, sob a imensidão do céu
estrelado, que a vida começou a se desnudar, acenando pra
mim. Naquela época eu não conseguia separar o que era eu e
o que era natureza. Tinha a impressão de que meu corpo, as
estrelas, as pedras, as formigas e tudo mais eram um corpo só.
Integrado a todos estes elementos, eu sentia ao mesmo tem-
po o nada e o infinito, numa sensação de plenitude que tenho
buscado repetir ao longo de toda minha vida.
No caminho para chegar ao sítio dos meus pais, havia uma
longa estrada coberta por eucaliptos. Lembro-me com sau-
dade do antigo curral, da casa de chão batido, do balanço à
sombra das árvores, da cerca de arame que circundava o ter-
reno e de ver, ao longe, nos pastos incrustados no meio das
serras, o gado pastando tranquilamente. Ao recorrer a estas
lembranças, descortino diante de mim, quase que como uma
fotografia, aqueles lugares e objetos de outros tempos. Sou

33
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

capaz de me aproximar de cada acontecimento e de reviver


cada emoção, como se estes fragmentos de memórias pudes-
sem ser presentificados no meu corpo por meio dos sentidos.
Lembrar é como sentir novamente aquele gosto da água
na moringa de barro, o cheiro do esterco molhado e da terra
vermelha, o sol quente abrasando as minhas faces enquanto
eu corria para apartar o gado, o som do rádio do meu pai to-
cando baixinho; ou, ainda, ouvir, à noite, os ruídos da mata
e seus mistérios repletos de sapos e pequenos grilos. Falar de
mim se torna muito mais complexo e necessário do que sim-
plesmente me debruçar sobre um objeto de pesquisa estra-
nho, ou sobre uma teoria qualquer.
Lembro-me também das noites na fazenda, dos serões na
casa dos meus tios (Tito e Rosa), das festas do São João e das
quadrilhas no terreiro, ouvindo as conversas, os causos e as
melodias que os mais velhos derramavam dentro dos nossos
ouvidos, naquelas noites lindas e estreladas. Antigamente, a
vida na roça era muito pesada e, à noite, havia muito pouco
a fazer, senão conversar. Então íamos para a casa dos meus
tios e ali ficávamos recordando as histórias antigas e rindo à
vera em meio ao silêncio absoluto das madrugadas infinitas,
quando não se ouve nenhum barulho: a não ser o cantar do
galo nos pés de manga.
Acho que foi mais ou menos nessa época que eu desen-
volvi meu gosto pelo teatro. Eu-criança escutava meus tios
contando essas histórias fantásticas, de um mundo imaginá-
rio onde tudo podia acontecer (estrela de seis pontas, cava-
lo voador, criança enterrada viva), e me pegava a pensar em
como devia ser bom conhecer tudo isso. Então eu saía para
brincar de faz de conta, correndo e gritando pelos quintais
claríssimos de azul:

34
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

Acho que o quintal onde a gente brin-


cou é maior do que a cidade. A gente só
descobre isso depois de grande. A gente
descobre que o tamanho das coisas há
que ser medido pela intimidade que
temos com as coisas. Há de ser como
acontece com o amor. Assim, as pedri-
nhas do nosso quintal são sempre maio-
res do que as outras pedras do mun-
do. Justo pelo motivo da intimidade.
(BARROS, 2015, p. 124).
Eu me entretinha despreocupado inventando criaturas de
barro debaixo dos pés de jabuticaba enquanto despercebida-
mente crescia, sem mais qualquer preocupação. Entretanto o
menino queria ser grande, ele queria voar, só que as nuvens
passavam bem distantes dali. Os meus dilúvios imaginários
não cabiam mais nos fundos do pequeno casebre no alto da
serra; morava em mim a vontade de romper as represas, ras-
gando diques. Era aquela velha história: o menino crescera e
criara barba, já era hora de bater asas e sair pisando forte na
estrada, assim como o rio segue seu curso d’água.
Assim, num piscar de olhos, o menino se fez homem e foi
o homem pelo mundo, na direção da cidade cheia de letrei-
ros luminosos. Primeira parada: cidade de Jataí, localizada a
60 km de Serranópolis – ambas no estado de Goiás. Nesse tem-
po eu já era aluno do curso de Letras da Universidade Federal
de Goiás- Campus Jataí, o qual concluí em 2006. A graduação
em Letras me permitiu, entre outras coisas, descobrir, por meio
da licenciatura, um universo de saberes e práticas que muda-
ram a minha percepção e compreensão acerca do mundo.
Além do mais, foi na Faculdade de Letras que eu tive meu
primeiro encontro com as artes da cena, em uma oficina de
teatro feita ao acaso, da qual eu participei levado inicialmen-

35
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

te pela curiosidade. Quando pisei o pé na sala de ensaio, senti


nascer em mim um desejo tão insaciável de compreender a
arte de representar, como se eu mergulhasse de cabeça num
precipício escuro e profundo. E agora, ao relembrar esse mo-
mento, acredito que o meu maior desafio como ator é tentar
manter acesa esta chama que os atores iniciantes possuem.
A experiência que eu tive nesta oficina de teatro foi seme-
lhante à sensação que experimentei na adolescência quando
da descoberta da paixão. Era como se um fogo ardente e in-
tenso acendesse alguma coisa dentro de mim. Essa percepção
física do fogo, penso que é, na verdade, o combustível para
a criação do ator. De lá pra cá, nunca mais me distanciei do
teatro; e tenho estudado, trabalhado e pesquisado o universo
teatral há precisamente treze anos. Porém, ainda hoje, lem-
bro-me perfeitamente daquele primeiro contato; posso des-
crever o impacto causado naquele dia e o deslumbramento
inicial que marcou para sempre a minha vida.
Neste ponto, encontro ressonância reflexiva numa carta
de Eugenio Barba a um dos seus atores, em que ele questiona
o real sentido do teatro como ofício para aqueles que querem
se aventurar nesta profissão:
Sejam quais forem as motivações pes-
soais que o trouxeram ao teatro, agora
que você exerce esta profissão, você deve
encontrar um sentido que vá além de
sua pessoa, que o confronte socialmente
com os outros. Somente nas catacum-
bas pode-se preparar uma vida nova.
Esse é o lugar de quem, em nossa épo-
ca, procura um compromisso espiritual
se arriscando com as eternas perguntas
sem respostas. Isto pressupõe coragem:
a maioria das pessoas não tem necessi-
dade de nós. Seu trabalho é uma forma

36
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

de meditação sobre si mesmo, sobre sua


condição humana numa sociedade e so-
bre os acontecimentos de nosso tempo
que tocam o mais profundo de si mes-
mo. [...] Se o fato de ser ator significa
tudo isto para você, então surgirá um
outro teatro; uma outra tradição, uma
outra técnica. Uma nova relação se es-
tabelecerá entre você e os espectadores
que à noite vêm vê-lo, porque necessi-
tam de você. (BARBA, 1991, p. 30).
Permaneci um bom tempo na cidade de Jataí, até o final
de 2007, quando então me mudei para Goiânia à procura de
outras paisagens, outros rios. Em meu peito batia o desejo
de continuar meus estudos e procurar campo de trabalho na
capital como professor de Português. Mas quis o destino que
eu acabasse me matriculando em uma escola de iniciação ao
teatro no Centro de Educação Profissional em Artes Basileu
França (Cepabaf), antiga Escola de Arte Veiga Valle. Curioso
como este encontro com o palco mexeu com a minha cabeça,
mudando por completo os rumos da minha vida. Foi che-
gando assim com passos lentos. Sorrindo e me acenando. E
de repente, quando vi, já estava completamente absorvido, a
ponto de não querer mais fazer outra coisa na vida.
Lembro-me da minha primeira aula de teatro no Basileu
França e de como no outro dia o meu corpo todo doía. Mes-
mo sem entender direito, percebi que aquilo era uma expe-
riência de purificação desagradável, mas indispensável. Hoje
sei que a dor é fundamental para a criação do ator, pois criar
é um processo que envolve transformação e dor. Sabemos que
a vida contém prazer e alegria, mas contém também uma boa
dose de sofrimento. Não há nenhuma novidade nesta relação
entre dor e criação, sofrimento e arte.

37
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Em 2008, aos 23 anos, estreei como ator profissional e as-


sistente de dramaturgia no espetáculo A farpa (Fotografia 1),
fruto de uma pesquisa colaborativa da Companhia Mínima de
Teatro. Eu ainda não sabia, mas este espetáculo se tornaria um
divisor de águas em minha vida, sobretudo, por se consolidar
como um período inesquecível de vivências e fazeres teatrais
que até hoje orientam a minha pesquisa. Este trajeto inicial é
marcado por minhas primeiras descobertas sobre a arte da re-
presentação e, ao mesmo tempo, é a consolidação de um modus
operandi que se tornou a base para o meu trabalho de ator.
Fotografia 1 - Cena de A farpa, com os atores Dulce Roza, Andreane
Lima e Jenyffer Karla Crispim. Teatro Goiânia, Goiânia-GO, 2012

Foto: François Calil.

Naquela época, eu acreditava, como muitos atores inician-


tes, que o oficio do ator consistia em encarnar a personagem,
partindo do dado concreto do texto. Porém, no decurso da
montagem do espetáculo, a ideia de dramaturgia do ator co-
meçou a me interessar. Para abraçá-la, porém, precisava des-
construir certos preconceitos sobre o teatro e sobre os proces-
sos de composição cênica. Esse exercício de desconstrução

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

daquilo que conhecemos como base para a preparação do ator


implica, muitas vezes, dor, desconforto, insegurança, medo.
Hoje, com 35 anos, sou aluno regular do Programa de Pós-
-Graduação em Artes da Cena, na Escola de Música e Ar-
tes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac-UFG).
Como ator, eu já atuei em mais de dezesseis espetáculos ao
longo da minha carreira, num total de oito grupos de teatro
da cidade. Durante esse período, pude conviver com diversos
diretores e encenadores, e, a cada novo trabalho, entrava em
contato com uma infinidade de procedimentos de criação
muito diferentes uns dos outros. Agora, analisando a minha
trajetória profissional e as características dos grupos pelos
quais passei, concluo que foi graças a esse período de inten-
sa atividade como ator que se edificou meu aprendizado ar-
tístico. Como se o meu fazer teatral fosse sendo construído
sempre no calor das salas de ensaio ou sob os refletores do
palco. Assim como acontece no Abapuru (1928) de Tarsila
do Amaral, em que uma figura humana remete a um corpo
antropofágico, acredito que a minha identidade como ator é
resultado de uma mistura de pessoas, grupos, métodos, cami-
nhos e processos criativos que encontrei durante a vida.
Ao fazer este retrospecto e refletir sobre os meus proces-
sos de ator numa perspectiva subjetiva, espero ampliar a dis-
cussão sobre o campo da memória no teatro. Os momentos
descritos acima fazem parte da minha experiência pessoal e
foram registrados em meus escritos de trabalho e diários de
bordo,2 na tentativa de reunir determinados conhecimentos e

2 A expressão “diário de bordo” refere-se a um tipo de instrumento para


pesquisa utilizado pelos atores durante o desenvolvimento, a montagem
e a criação de um espetáculo. Este recurso consiste no registro escrito,
em cadernos de anotações, das dúvidas, inquietações, ideias e reflexões
que de algum modo afetaram o ator ao longo das atividades criativas
processuais.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

experiências para torná-los acessíveis a outros artistas, geran-


do assim a possibilidade de um novo olhar sobre os processos
de criação e autocriação na arte de ator. Dessa forma, creio
que esta reflexão propicia um novo fluxo de conhecimentos
extremamente importante para o estudo das artes da cena.
Ao lançar um novo olhar para algo que julgo conhecido, a
memória, será possível, afinal, ampliar a visão acerca desse
objeto, encontrar outros caminhos e construir novos conhe-
cimentos para o trabalho de criação artística.
É exatamente este o objetivo da presente investigação:
proporcionar uma revisão do conceito de memória como
matéria viva do ator. Com simplicidade, quero apresentar um
breve devaneio a respeito da memória do artista de teatro no
exercício de criação, deixando elementos para compreender
o trabalho do ator numa relação dialógica entre arte e vida. E
o nosso papel não é justamente este, o de fazer lembrar histó-
rias que vivemos ou não pessoalmente?

Teatro e memória: o uso da memória no processo


criativo do ator

O garoto que aparece na fotografia abaixo sou eu aos dez


anos de idade, ao lado de minha avó e minha mãe (Foto-
grafia 2). Esta foto foi tirada em março de 1996 e tem um signi-
ficado muito especial para mim, pois é um dos poucos re-
gistros dos momentos que vivi junto à minha avó. Dois anos
depois desse dia, ela faleceu, aos 95 anos, de Alzheimer, por
isso a maior parte das lembranças que eu trago dela são as
histórias que minha mãe me contava. Quando essa foto foi
tirada, sua doença já estava bem avançada e, em função disso,
ela se encontrava muito debilitada, não reconhecia mais seus

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

filhos ou netos. Além disso, não conseguia mais enxergar,


tampouco se locomover.
Fotografia 2 - Minha mãe, minha avó e eu

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador.

Ao olhar para esta fotografia, sinto aquele momento se


repetindo em minha mente. Por isso eu sempre retorno a
ela, porque, em certa medida, todo retorno é um recomeço,
o que me leva a crer que, conforme Guimarães Rosa nos diz,
“as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram termi-
nadas – [elas] vão sempre mudando” (Rosa, 1965, p. 24). Por-
tanto nós somos seres incompletos e, como tais, precisamos
da relação com o outro para existir e nos completar.
A menção que faço aqui à minha infância e ao lugar de
onde eu vim é para mostrar o quanto os lugares que nos ha-
bitam e os períodos que são ligados a esses espaços marcam
profundamente a nossa história. Não há dúvida de que as ex-
periências adquiridas no contato direto com a natureza, na
fazenda do meu avô, nos primeiros anos da minha vida, di-
zem muito de quem eu sou. Da mesma forma, as referências a
terra e aos meus antepassados deixaram em minha produção
artística um vestígio imprescindível. As descrições da minha

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

cidade natal e de outros cenários percorridos durante a mi-


nha existência materializam-se em meus devaneios de ator,
de forma a me reconstituir, alimentando os meus sonhos.
Konstantin Stanislavski,3 pioneiro na arte de atuação,
dedicou grande parte de sua obra a estudar as memórias do
ator através de uma perspectiva que ele chamou de “memória
emotiva”. Segundo esse conceito, o ator cria as emoções da
cena com base em memórias pessoais, acessadas por meio de
treinamento e em conexão com o estudo do texto. Porém,
quase no final de sua carreira, o próprio Stanislavski descons-
trói esta concepção ao propor um trabalho com as emoções
não apenas pelo aspecto psicológico, mas baseado também
nas denominadas ações físicas, de caráter psicofísico.
Com esta ideia, Stanislavski (2018) abriu a porta da psico-
logia do intérprete, direcionando o olhar para os estudos do
inconsciente na arte do ator. Digamos que, na contramão do
pensamento de outros diretores teatrais da época, que critica-
vam o fato de um ator sentir demais e não ter domínio técni-
co, Stanislavski pede que os atores ouçam a intuição, estejam
atentos aos aspectos mais internos de sua psicologia para
sentir identificação com aquilo que fazem no palco. Nesse
entendimento, o ator é impulsionado a olhar para dentro e
perguntar o que está sentindo fisicamente, psicologicamente
e espiritualmente quando traz uma memória.

3 Constantin Stanislavski (1865-1938) nasceu na Rússia e viveu entre os


séculos XIX e XX. Foi ator, diretor e escritor de grande importância para
os estudos teatrais no Ocidente. Ficou muito conhecido pelo seu sistema
de atuação, em que reflete sobre as técnicas de treinamento e preparação e
sobre os procedimentos práticos que podem servir de base para o trabalho
de criação do ator.

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

Para Stanislavski, não existem ator e personagem separa-


dos,4 quando estamos em cena atuando não deixamos de ser
nós mesmos; ao contrário, nesses momentos, somos um ser to-
tal, inteiro, completo, com todos os nossos problemas, sonhos,
frustrações e nosso repertório pessoal. Por repertório podemos
entender todas as experiências vividas pelo ator, aquilo que
foi aprendido e o que foi esquecido também. Passamos a vida
perseguindo uma forma de acessar esse repertório que traze-
mos dentro de nós, mesmo em circunstâncias de atuação, para
revivê-lo repetidamente a cada nova apresentação.
Assim, o ator precisa estar aberto às intuições, ideias,
emoções e imagens, aos sentimentos e insights que surgem
durante o exercício criativo. Quantas vezes, em minha profis-
são de ator, ao entrar em uma sala de ensaio, eu não me depa-
rei com as minhas limitações e fiquei sem saber o que fazer ou
como começar. Então, nesses momentos, eu buscava fazer um
mergulho dentro de mim mesmo e ouvir a voz da intuição, de
modo a deixar que o corpo se expressasse de alguma forma,
em vez de querer forçar racionalmente algum movimento.
Ou seja, somos convidados a considerar aquilo que não
podemos controlar. Que reverberações podemos obter quan-
do aceitamos nossas sombras e permitimos que se expressem
livremente? Não basta para o ator ter domínio físico do cor-
po; ao mesmo tempo, ele precisa fazer constantemente esse
exercício de autoconhecimento, ter uma bagagem para uti-
lizar no palco, composta por suas experiências e memórias
(conteúdo experimental).
No conhecido poema “Confidência do itabirano”, do poeta
Carlos Drummond de Andrade, o eu lírico desabafa: “Tive
4 Para a perspectiva pós-moderna, esta ideia é questionável, pois, para o
espectador, haveria personagem. Deste ponto de vista, o mais importante
no teatro são as poéticas cênicas que o ator põe no palco, ou seja, os
vetores de ações coordenados.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário públi-


co./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como
dói!” (ANDRADE, 1973, p. 101). Nesse poema, o autor abor-
da o tema da memória como uma evocação do passado atra-
vés de uma associação simbólica entre suas lembranças e a
“fotografia na parede”. Seguindo esta linha de raciocínio, a
memória pode ser entendida como a capacidade do homem
de reter acontecimentos anteriores, salvando-os da inevitável
passagem do tempo. É através desta experiência fundamen-
tal com a memória que o ser humano é capaz de se reconhe-
cer como indivíduo. Ou seja, o que nós chamamos de eu é
na verdade a reunião de traços e memórias do que fomos no
passado e do que fazemos no presente.
A palavra memória remonta ao pensamento mitológi-
co dos antigos gregos, através da representação da deusa
Mnemosyne, irmã de Cronus e tia de Zeus, com quem ela
teve nove filhas. Cada uma delas representa uma musa pro-
tetora das artes – as poesias épica, romântica e lírica, a dança,
a música, a tragédia e a comédia – e também o pensamento
científico, em especial a História e a Astronomia. Os gregos
acreditavam que, por meio de sua arte, isto é, da palavra e
do gesto, os historiadores e poetas conseguiriam se perpetuar
no tempo, alcançando a imortalidade. Para tanto, deveriam,
primeiramente, dedicar suas obras às musas, que assim lhes
concederiam o dom da inspiração e não deixariam que essas
obras fossem esquecidas pelas gerações futuras.
Em seu livro Convite à filosofia, Marilena Chaui traz algu-
mas ideias acerca deste assunto: “A deusa Memória dava aos
poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrá-
-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir imortalidade
aos mortais” (CHAUI, 2005, p. 159). Através do pensamento
mítico, podemos então perceber o quanto para os gregos era

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

clara esta relação entre a arte e a memória. Da mesma forma,


os atores no teatro utilizam-se, o tempo todo, desta relação,
porque estão, de alguma forma, colocando em cena e atuali-
zando por intermédio do corpo as memórias de outros auto-
res ou suas próprias memórias.
Avançando um pouco mais na linha do tempo, durante o
Império Romano, a memória era um elemento indispensá-
vel para o bom orador. Destinava-se a persuadir os ouvintes
e a despertar-lhes emoções, inaugurando assim a chamada
arte da retórica ou oratória. Nesse contexto, o bom orador era
aquele que tinha uma boa memória e conseguia se lembrar
de todos os seus argumentos sem precisar recorrer a nenhu-
ma anotação. Além disso também deveria saber e dominar
de cor todas as técnicas de memorização. Infelizmente essa
concepção, ainda hoje, está muito presente em algumas práti-
cas sociais como uma forte herança cultural, principalmente
na educação, como denotam os métodos de memorização no
estudo de fórmulas e conceitos, o chamado decoreba.
No decorrer da história em nossa sociedade, a memória
passou por um complexo processo de valorização e desvalo-
rização. Desde o pensamento mítico, por exemplo, no qual
ela era um mistério a ser desvendado, e ainda hoje, quando a
psicologia descobre que a memória é um elemento fundan-
te do nosso ser, este tema sempre despertou o interesse e a
curiosidade do homem. Não obstante, a mesma sociedade
que reconhece a importância da memória na formação de
nossa identidade também produziu um esvaziamento da
consciência histórica através dos mecanismos de massifi-
cação cultural, tais como a publicidade e a propaganda.
Atualmente é possível observar certa predisposição para
a novidade que surge por meio da internet e das redes so-
ciais em detrimento das formas de conhecimento anteriores

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

– uma espécie de culto ao novo, seja por via do preconceito


pelas pessoas de mais idade, ou até pelo descrédito às insti-
tuições de preservação do patrimônio histórico-cultural das
cidades. Neste cenário, as máquinas e o computador passam
a substituir este aspecto importante da memória. É o caso
do celular, que hoje é praticamente uma memória portátil.
Nem precisamos mais nos preocupar em lembrar certas infor-
mações, porque este aparelho eletrônico faz este papel por nós.
Isso tudo mostra o quanto o tema da memória é impor-
tante em nossa sociedade, apresentando-se como um concei-
to carregado de significados e que pode ser olhado por vários
ângulos com o auxílio de diferentes campos da ciência. Estu-
dada em várias áreas do saber, como a Filosofia, a Psicologia,
a Psicanálise, a Antropologia, a Biologia, a Literatura e, no
nosso caso, as Artes, a memória, como eu já disse, é um con-
teúdo extenso e muito discutido e, logicamente, não é meu
objetivo aqui esgotar este tema. Porém me proponho a apre-
sentar a seguir o pensamento de alguns autores de referência
sobre o assunto, aqueles mais afinados com a linha de pesqui-
sa por meio da qual tenho buscado ultimamente uma funda-
mentação mais sólida para minha dissertação de mestrado.
Ao tentar entender o conceito de memória, acabamos es-
barrando em uma dicotomia que tem sido bastante comen-
tada atualmente no meio científico: a que separa a memória
em dois fatores, o fisiológico e o psicológico. Para alguns
estudiosos, por exemplo, a memória é um fator puramente
biológico e especificamente localizado no cérebro, respon-
sável por registrar e localizar os acontecimentos. De acordo
com esta linha de pensamento, o cérebro funciona como um
arquivo, ou um chip de computador, onde vamos armazenan-
do nossas memórias e registrando-as. Se isto fosse verdade,
assim como querem acreditar os neurocientistas, então todas

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

as informações teriam de ser lembradas da mesma forma e


com a mesma eficiência, numa relação quase automática. En-
tretanto, determinados pesquisadores têm mostrado atual-
mente uma maior abertura para entender a memória como
uma estrutura subjetiva.
Para este outro segmento da ciência, dentro do qual está a
Psicanálise, a memória pode ser entendida como um conjun-
to de funções psíquicas cuja ocorrência não se circunscreve
unicamente ao aspecto fisiológico, ou seja, ela não é localizá-
vel exclusivamente na estrutura cerebral. Este dinâmico con-
ceito é fundamental dentro do teatro. Os pesquisadores que o
defendem não estão negando o lado fisiológico da memória,
mas sim apontando que este aspecto físico não dá conta de
explicá-la sozinho, pois as nossas relações também passam
pelos afetos e emoções. Por exemplo: podemos nos lembrar
de um detalhe ao recordar algo que vivemos e esquecer outro.
Isto acontece porque nossa capacidade de lembrar passa por
um filtro subjetivo. Recordar um fato depende muito da nos-
sa relação com ele, de como ele nos afetou, de sua importân-
cia para nós, entre outros fatores. Em resumo, não podemos
negar o papel dos componentes objetivos em nosso processo
de memorização, mas existem outros elementos que se rela-
cionam mutuamente para formar nossas lembranças.
A faculdade da memória e suas diferentes manifestações
no psiquismo humano sempre fizeram parte das inquietações
teóricas de Sigmund Freud (2011) em seus estudos da psica-
nálise. No entendimento freudiano, o mecanismo da memó-
ria é marcado pelo mistério do esquecimento, ou seja, por
aquilo que esquecemos, mas que está guardado em nosso
consciente, podendo ser acessado por ele – atividade do pen-
samento. Para que o sujeito possa incorporar uma memória
nova, esta precisa ser sobreposta a suas memórias mais anti-

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

gas, que se encontram nas camadas mais profundas. Assim, as


memórias antigas vão aos poucos sendo esquecidas. Mas, na
verdade, elas não desaparecem por completo; continuam pre-
sentes, registradas em algum lugar do inconsciente, e, através
de um trabalho de resgate, é possível reencontrá-las e trazê-
-las à tona. Dessa forma, falar de memória é falar também do
inconsciente que nos constitui – tudo aquilo que foi gravado,
registrado e que está escondido, mas que pode ser acessado:
Essas representações verbais são re-
síduos de memória; foram uma vez
percepções e, como todos os resíduos
mnemônicos, podem voltar a ser cons-
cientes. Antes de seguirmos tratando
de sua natureza, ocorre-nos, como uma
nova descoberta, que apenas pode tor-
nar-se consciente aquilo que uma vez
já foi percepção, e que, excluindo os
sentimentos, o que a partir de dentro
quer tornar-se consciente deve tentar
converter-se em percepções externas. O
que se torna possível mediante os traços
mnemônicos. (FREUD, 2011, p. 17).
Da mesma forma, Carl Gustav Jung (1964), com quem
Freud manteve uma estreita relação de amizade, compreen-
de haver uma relação entre memória e inconsciente, porém
ultrapassa este entendimento, pois, para ele, além destes
conteúdos inconscientes, há outra qualidade de memórias
e imagens que compõem a base do pensamento humano.
Neste caso, as lembranças não se restringem unicamente a
uma vivência pessoal de determinado indivíduo, mas podem
ser também compartilhadas por pessoas de todas as épocas e
culturas. É o que ele chama de inconsciente coletivo, ou seja,
uma espécie de herança transpessoal de imagens organizadas

48
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

através de “arquétipos”.5 Em O homem e seus símbolos, Jung ex-


plica como chegou a estes termos:
Constatei que associações e imagens
deste tipo são parte integrante do in-
consciente e podem ser observadas por
toda parte – seja o sonhador instruído
ou analfabeto, inteligente ou obtuso.
Não são, de modo algum, resíduos sem
vida ou significação. Têm, ao contrário,
uma função e são, sobretudo, valiosos
[...]. Constituem uma ponte entre a ma-
neira por que transmitimos conscien-
temente os nossos pensamentos e uma
forma de expressão mais primitiva, mais
colorida e pictórica. E é esta forma que
apela diretamente à nossa sensibilidade
e à nossa emoção. Essas associações his-
tóricas são o elo entre o mundo racional
da consciência e o mundo do instinto.
(JUNG, 1964, p. 47).
Outro autor que também faz uma apropriação interessante
acerca do tema da memória é Gaston Bachelard,6 no seu livro

5 Os arquétipos são associações da nossa mente mais primitiva que se


manifestam através dos mitos, dos símbolos e das sombras. É como se,
em determinada época ou grupo social, certas imagens fossem sendo
condensadas em nosso inconsciente coletivo e posteriormente fossem
transmitidas como uma espécie de herança cultural. Este conhecimento,
no entanto, é inato, ou seja, não é adquirido, mas já está em nós e é possível
acessá-lo através das manifestações arquetípicas.
6 Gaston Bachelard (1884-1962) nasceu na França, mais precisamente na
pequena província de Bar-sur-Aube, onde estabeleceu íntimo contato
com a natureza – o que parece ter bastante relação com suas concepções
filosófico-poéticas. De origem humilde, Bachelard percorreu um longo
caminho até se formar. Aos 35 anos, inicia seus estudos de filosofia,
tornando-se também professor na Academia das Ciências Morais e
Políticas da França (PESSANHA, 1978, p. 6-13).

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A poética do devaneio. Em um dos capítulos do livro, em que tra-


ta especificamente sobre os devaneios da infância, ele diz:
A memória é um campo de ruínas psico-
lógicas, um amontoado de recordações.
Toda a nossa infância está por ser reima-
ginada. Ao reimaginá-la, temos a possi-
bilidade de reencontrá-la na própria vida
dos nossos devaneios de criança solitária.
(BACHELARD, 1988, p. 94).
Conforme demonstra Bachelard, lembrar não é tão so-
mente atualizar no corpo o passado, pois, neste processo, nós
temos a capacidade de fantasiar a realidade e ir além dela.
Sendo assim,
num devaneio, uma vez que nos lembra-
mos, o passado é designado como valor
de imagem. [...] Para reviver os valores
do passado, é preciso sonhar, aceitar
essa grande dilatação psíquica que é o
devaneio, na paz de um grande repouso.
(BACHELARD, 1988, p. 99).
Ou seja, para ele, a memória é também uma forma de imagem,
estando ambas estreitamente ligadas, pois, quando nos recor-
damos de algo, vem à nossa mente a imagem do objeto ou da
pessoa lembrada. Logo, memória e imaginação estão interliga-
das, de forma que não dá para separar uma da outra – comple-
xo indissolúvel.
Até que ponto a memória também não é afetada por nos-
sas interpretações, nossa criatividade ou imaginação? Segun-
do o filósofo, o estado de devaneio é semelhante ao sonho,
com uma diferença fundamental: o sonho comporta uma
imagem poética inconsciente, que escapa ao controle do so-
nhador: não podemos, por exemplo, saber o momento exato
em que vamos sonhar, assim como não é possível parar o so-

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

nho e continuar depois, conforme a nossa vontade. No caso


da memória e do devaneio, subjaz uma maior consciência das
poéticas evocadas: o sujeito tem domínio destas imagens, po-
dendo dispará-las ou não.
Noutras palavras, o devaneio é uma
atividade onírica na qual subsiste uma
clareza de consciência. O sonhador de
devaneio está sempre presente ao de-
vaneio. Mesmo quando o devaneio dá
a impressão de uma fuga para fora do
real, para fora do tempo e do lugar, o so-
nhador do devaneio sabe que é ele que
se ausenta – é ele, em carne e osso, que
se torna um “espírito”, um fantasma do
passado ou da viagem. (BACHELARD,
1988, p 144).
Dessa forma, o devaneio é um modo de imaginação em
que o sujeito conduz a experiência e tem domínio sobre ela,
não significando este, portanto, uma ausência de autocons-
ciência. Neste ponto, eu vejo muita ligação entre o devaneio
e o ato criativo, no qual a memória e a imaginação participam
ativamente do processo de invenção imaginativa – noção
poética da memória. Assim, o ator pode, conscientemente,
recorrer a estes materiais, manipulando o que foi vivido ou
imaginado para transformá-lo em matrizes de criação artísti-
ca na construção do espetáculo.
Um aspecto que julgo fundamental para o ator é a imagi-
nação, que está diretamente ligada à memória. O que aconte-
ce é que, quando somos crianças, nós temos uma imaginação
extremamente fértil e um campo de possibilidade estésico de
memória corporal vibrante e intenso. Com o passar do tem-
po, essa criatividade potente vai sendo controlada, enquadra-
da, podada pela mediação da televisão e da internet e pelo

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

excesso de consumo, e, por conseguinte, as possibilidades de


envolvimento com o espaço se tornam igualmente menores.
É interessante perceber como determinados mecanis-
mos de poder da sociedade moderna atuam no processo de
formação do indivíduo a fim de colonizá-lo, domesticá-lo e
posteriormente torná-lo útil ao propósito dominante. E aos
poucos este vai se acomodando e se distanciando de seu sa-
ber sensível, de sua potência criativa, de sua capacidade de se
comandar a si próprio. Diante disso, eu me pergunto: o que
fazer para libertar nosso potencial criativo, que se encontra li-
mitado pelas tradições, pelos condicionamentos e bloqueios
sociais, uma vez que estamos inteiramente imersos nestas re-
lações de poder?
Pensando no teatro, por exemplo, se nós, atores, não ex-
pandirmos nossa imaginação, se não a despertarmos desse
estado de adormecimento, nossas possibilidades criativas
estarão restritas àquilo que já conhecemos e estabelecemos
como hábito. Desse modo, é fundamental exercitar cada vez
mais a imaginação criativa e ativa, dando a devida atenção a
este corpo-memória, que é, ao mesmo tempo, espírito, mente,
sujeito e existência.
Evoco aqui novamente as palavras do filósofo-poeta
Bachelard para falar sobre os “devaneios voltados para a
infância”:
Na nossa infância, o devaneio nos dava
a liberdade. E é notável que o domí-
nio mais favorável para receber a cons-
ciência da liberdade seja precisamente
o devaneio. Apreender essa liberdade
quando ela intervém num devaneio de
criança só é um paradoxo quando nos
esquecemos de que ainda pensamos na
liberdade como sonhávamos quando

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Nas teias da memória: o processo criativo do ator

éramos crianças. Que outra liberdade


psicológica possuímos, afora a liber-
dade de sonhar? Psicologicamente fa-
lando, é no devaneio que somos seres
livres. (BACHELARD, 1988, p. 95).
Segundo o autor, é no período infantil que a relação entre
a memória e a imaginação se intensifica ainda mais. O filó-
sofo enfatiza que a imaginação é um fenômeno essencial da
infância, em que a criança tem a oportunidade de viver a pró-
pria liberdade. Como vemos, a perspectiva de Bachelard não
se funda numa análise fria dos registros da percepção, mas
numa noção de poética da memória, da qual participa tam-
bém a invenção imaginativa. Recordar seria, sob este ponto
de vista, também um ato criativo.
Destarte, temos que a memória está em constante proces-
so de atualização, sendo um movimento do presente, e não
do passado. Assim, não é possível entendê-la apenas como
um registro. Além do mais, não podemos nos esquecer de que
tudo é mutável: as folhas das árvores caem, as pedras e terras
mudam de lugar, as árvores criam novas cascas, numa dinâ-
mica sem fim. Portanto, ao recordar, tornamo-nos reinvento-
res do vivido: qualquer fragmento de tempo se transforma a
cada olhar, nenhum ponto de vista é o mesmo, nenhuma me-
mória é exata. Isso acontece porque, ao acessar nossas memó-
rias, colocamo-nos em um estado de devaneio, uma espécie
de sonho que sonhamos acordados.
Talvez este texto seja uma tentativa de reencontrar todas
estas pessoas e objetos do passado, uma escrita como forma
de autorreconhecimento. Em meio ao caos que estamos vi-
vendo no atual momento, pego-me questionando várias coi-
sas: de quantas vidas é feito um ser humano? Em que ponto
o meu corpo se conecta com outros corpos e outras histórias

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

para existir? De onde vem a minha arte e o que me motiva a


criar? Onde está a minha arte essencial, perdida entre tantos
trabalhos, espetáculos, personagens e projetos? Qual é a ma-
téria-prima do meu trabalho?
Tomando como inspiração um prisma poético-filosófico,
decidi inscrever o presente texto no campo poético da me-
mória, atribuindo-lhe o aspecto de um texto-memorial. Esta
decisão me demandou fazer o caminho de volta, revisitando
lembranças do passado para tentar reencontrar as memórias
e experiências pessoais que vivi, na condição de pesquisador.
Portanto, podemos pensar o teatro como um espaço de me-
mórias que se desdobram na imaginação e no imaginário, re-
velando-se, escondendo-se e multiplicando-se no momento
de sua realização.
Para concluir, posso afirmar que o teatro é extremamente
vivo e, como tal, complexo e dinâmico, porque, em cada cena,
o aspecto humano se projeta e se multiplica. Em outras pa-
lavras, a cena é o lugar em que a arte se expressa em toda a
sua intensidade. Sou um artista da cena, e é desse lugar que
vejo e percebo o mundo, buscando nas minhas reflexões uma
porosidade através da qual minha vida se conecta com outras
tantas vidas. Sou muitos, sou múltiplo.

Considerações finais

A escolha por partir das minhas recordações e vivências


neste relato biográfico-literário surgiu não apenas do desejo
de tentar reafirmar a minha origem sertaneja, mas também
da necessidade de demonstrar que somos o resultado daquilo
que vivemos, ou seja, da nossa experiência. Busco aqui, prin-
cipalmente, tentar entender o que é pertencer à memória de

54
Nas teias da memória: o processo criativo do ator

um lugar. Para mim, o contexto deste trabalho tem por base


o conceito de pertencimento e o fato de que o espaço social
está entranhado no corpo humano em sua totalidade.
As relações que vamos construindo ao longo da vida nas
interações sociais formam conceitos e imagens que, por sua
vez, constituem gradativamente a nossa identidade, e isso está
ligado também, imediatamente, à arte do ator. Assim é que,
através da arte teatral, podemos reconhecer a nós mesmos,
criando um espaço de encontro, de descoberta e de fruição,
tanto para os artistas quanto para os espectadores que com
eles interagem de infinitas formas.
Sou, então, resultado daquilo que vivi, de um conjunto de
lugares e de pessoas que atravessaram por minha vida durante
a minha construção histórica. O lugar onde eu vivo faz parte
de mim, integra-me e institui(u)-me como indivíduo. E de que
forma é possível trazer essa integração para o meu trabalho
de ator? Isso não tem nada a ver com racionalidade e técnica.
Reconheço, então, em mim aquele menino do interior que se
deixava ficar como que assuntando o mundo de longe.
Uma parte de mim é feita de mato, folha, bicho, som, pen-
samento, cerrado e existência. A outra parte é feita de concre-
to, cidade, carros, buzinas, poluição, urbanidade, civilização.
Sou primitivo e urbano ao mesmo tempo, na essência, ainda
que isso me torne incoerente ou contraditório (Mas existe al-
gum ser humano que não seja contraditório? É a contradição,
inclusive, que nos faz crescer.).
A cidade grande me assusta às vezes. É escura demais. Pe-
sada demais. Vivemos isolados, pequenos, mas somos extra-
ordinariamente grandes. Este exercício de escrita é, em certa
medida, uma violência, porque é um movimento de trans-
bordamento, de se arrancar de dentro para fora e, ao mesmo
tempo, de jogar fora uma parte de mim: perder um pedaço.

55
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Referências

AMARAL, Tarsila do. Abapuru. 1928. Óleo sobre tela, 85 cm x


72 cm.
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Janeiro: José Aguilar, 1973.
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de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
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Janeiro: Objetiva, 2015.
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da
filosofia da imagem. Tradução de Renée Eve Levié. Rio de Janeiro:
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fia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Traduções de
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de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1970.
STANISLAVSKI, Konstantin. A preparação do ator. Tradução de
Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

56
“Nestes versos tão singelos”:
a representação do Jeca-Tatu em contraste
com a identidade caipira e sertaneja

Diogo Ramon da Silva Costa1


Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira2

Resumo: O presente trabalho, parte do estudo que in-


tegra a pesquisa SerTãoVida em cena: a busca por um solo poéti-
co caipira e sertanejo, propõe uma síntese histórica acerca da
identidade caipira e sertaneja. O intuito é desmistificar o
senso comum que envolve estas comunidades, bem como
dimensionar esta análise para o campo das artes cênicas,
promovendo uma reflexão sobre a perspectiva da pesquisa
em arte, suas possíveis implicações e constantes problemáti-
cas enfrentadas. A figura do caipira foi construída na cultura
brasileira desde o século XVII, sendo moldada com base em
acontecimentos específicos que mudaram a realidade eco-
nômica e política do país, e a dos próprios moradores do
campo. Suas vivências e andanças por diversas regiões brasi-

1 Ator e professor de Artes Cênicas. Mestrando em Artes da Cena pela


Universidade Federal de Goiás (UFG) e licenciado em Teatro pela
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). É integrante do Laboratório
de Montagens Cênicas e Teatro Educação (LabMonTe) e do Laboratório
de Criação de Figurinos, Acervo de Indumentárias e Ateliê de Costura
(LabCriaa), ambos da Escola de Música e Artes Cênicas (Emac-UFG), e
também do Laboratório de Pesquisa Interdisciplinar em Artes da Cena
(Lapiac) da Faculdade de Educação Física e Dança (FEFD-UFG).
2 Orientadora da pesquisa em questão, diretora teatral, atriz e professora
na Emac-UFG. É doutora em Educação pela UFG, mestra em Artes
pela Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Artes Cênicas:
Interpretação Teatral, também pela UnB. Coordena o LabMonTe-UFG
e o LabCriaa-UFG.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

leiras possibilitaram a recriação de sua imagem, ampliando


termos relativos a eles, como o termo sertanejo. Em constan-
te dinâmica com o tempo, essas comunidades construíram e
reconstruíram características e adquiriram uma identidade
marcada pela pluralidade cultural. No entanto, o sistema ca-
pitalista acabou heterogeneizando suas práticas e estereoti-
pando suas vivências e culturas, manipulando a ideia do cai-
pira e sertanejo para transformá-lo em um sujeito exótico
e imutável. Como exemplo desta imposição, apresentamos
o personagem Jeca-Tatu, criado na literatura por Monteiro
Lobato (1882-1948) e que revela o estímulo à propagação
dos estereótipos forjados para esses sujeitos. Para concreti-
zar nossa proposta, trabalhamos com a exposição histórica
e teórica e com a análise crítico-reflexiva de alguns autores
que refletem sobre as identidades em apreço e investigamos
as obras Urupês (1918) e Zé Brasil (1947), as quais iniciam e
encerram o personagem Jeca-Tatu na literatura de Lobato.
Trabalhamos ainda com as representações dessas identida-
des na cena, seja no cinema ou no teatro, sendo que, neste
último, tais representações são analisadas através dos re-
cursos de filmes, imagens fotográficas, recortes de jornais e
textos acadêmicos. Também buscamos auxílio em trabalhos
históricos, antropológicos e culturais referentes à identida-
de caipira e sertaneja, e nas investigações apresentadas por
autores das artes cênicas que pensam as relações entre arte
e ciência. Com esses instrumentos, esperamos provocar uma
reflexão em que a cultura caipira e sertaneja seja objeto de
investigação sensível, em diálogo com a contemporaneida-
de do fazer e do pesquisar em artes cênicas.
Palavras-chave: caipira; sertanejo; pesquisa; artes cênicas.

58
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

“In these simple verses”, searching for a reflective


singing: the representation of the Jeca-Tatu in
contrast with the caipira and sertaneja identity

Abstract: The present work, part of the study that in-


tegrates the research SerTãoVida em cena: a busca por um solo
poético caipira e sertanejo, it is proposes a historical synthesis
about caipira (redneck) and sertaneja (country) identity.
The aim is to demystify common sense that involves these
communities, as well as and also to dimension this analy-
sis for the field of performing arts, promoting a reflection
about the perspective of art research, its possible implica-
tions and constant problems faced. The figure of the caipira
(redneck) was built in Brazilian culture since the seventeenth
century, being shaped from specific events that changed the
economic and political reality of the country, as well as the
rural residents themselves. Their experiences and wande-
rings in various Brazilian regions, enabled the recreation of
their image, broadening terms such as the sertanejo (coun-
tryman). In a constant dynamic over time, these communi-
ties built rebuilt features and provided a cultural plurality
in their identity. However, the capitalist system ended up
heterogenizing its practices turned up its practices hetero-
geneous and stereotyping their experiences and cultures,
manipulating the idea of the caipira (redneck) and sertanejo
(countryman) toward an exotic and immutable subject. As
an example of this thought, we present deal with, from in
the literature field, the character of Jeca-Tatu, created by
Monteiro Lobato (1882-1948), who stimulated and recor-
ded the spread of stereotypes created about these subjects.
Therefore, in view of this from this point of view, we are
working with the historical exhibition, theoretical and
reflexive-critical analysis exposition of some authors that
reflect on these identities in contrast to the works Urupês

59
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

(1918) and Zé Brasil (1947), which start and end with the
character of Jeca-Tatu in Lobato’s literature, as well as its
representations in the scene – whether in the cinema or the
theater, the latter being analyzed through the resources of
films, photographic images, newspaper clippings and aca-
demic texts. With the help of historical, anthropological
and cultural works concerning the caipira (redneck) and
sertaneja (country) identity; and with creative stimuli of re-
search possibilities presented by performing arts authors
when thinking about the relations between art and science,
we seek to provoke through the exhibitions a reflection in
which caipira (redneck) and sertaneja (country) culture is the
object of sensible investigation, in dialogue with the con-
temporaneity of doing and performing arts research.
Keywords: redneck; countryman; search; performing
arts.

Apresentando a prosa, reunidos em roda

Nestes versos tão singelos, minha bela, meu amor,


Pra você quero contar o meu sofrer e a minha dor [...]
Pois o jeca quando canta, dá vontade de chorar.
(OLIVEIRA, 1918).

Este texto compõe um grupo de registros reflexivos e


artísticos que vêm sendo produzidos por meio da pesquisa
SerTãoVida em cena: a busca por um solo poético caipira e sertane-
jo. A investigação referida visa trabalhar com o sertão e seus
sujeitos (caipiras e sertanejos) como inspiração poética, es-
tética, ética e metodológica na criação cênica. Ela se encon-
tra em andamento por meio do Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena (PPGAC) e do Laboratório de Montagens

60
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

Cênicas e Teatro Educação (LabMonTe), ambos vinculados à


Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de
Goiás (Emac-UFG).
Neste texto, em específico, trabalhando com exposições
históricas e teóricas, e com análises reflexivo-críticas de al-
guns autores que pensam sobre as identidades em foco e
suas respectivas representações, analisamos como se deram
e se dão as representações dos caipiras e sertanejos na cena.
Como ponto de análise, escolhemos o personagem Jeca-Tatu,
da literatura de Monteiro Lobato (1882-1948),3 explicitando
sua aparição nas obras Urupês (1918) e Zé Brasil (1947) e suas
futuras transformações quando ele chega ao teatro com a in-
terpretação de diversos atores e atrizes populares, e ao cine-
ma com Amácio Mazzaropi (1912-1981). Como colaboração
expositiva, usamos sinopses de filmes, imagens fotográficas,
recortes de jornais e textos acadêmicos, no intuito de melhor
contextualizar as questões compartilhadas.

Iniciando o diálogo, buscando a canção: entre o


estereótipo e a desconstrução

Os termos caipira e sertanejo fazem parte do cotidiano


de muitos lugares da sociedade brasileira, seja por meio de
uma alimentação que se classifica como caipira ou de uma
música que se intitula sertaneja. O Dicionário Aurélio propõe
que caipira é o “habitante do campo ou da roça”, chamado
também de caboclo, capiau, jeca, matuto, roceiro, sertanejo

3 Além do Jeca-Tatu, falamos também de todas as representações do


caipira e sertanejo que, por vezes, surgem em cena sob as influências dos
estereótipos criados na literatura lobatiana.

61
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

(FERREIRA, 2004, p. 198).4 Daí podemos perceber que


esse sujeito do campo está presente de diferentes formas no
Brasil, inicialmente nas regiões rurais e depois, nas grandes
cidades. A chegada do caipira à cidade provocou o com-
partilhamento da cultura do campo com os centros urbanos,
bem como a apropriação dos modos das cidades pelos caipi-
ras e sertanejos. Esses contatos influenciadores são os fatores
que organizam as múltiplas variações de formas pelas quais
são chamados estes homens e mulheres: caboclo no Norte,
sertanejo no Nordeste, caipira no Sudeste, gaúcho no Sul, e
caipira e sertanejo no Centro-Oeste, podendo haver muitas
outras diferenças. As muitas formas explicitam a diversidade
desses sujeitos, desmentindo a ideia de um caipira genérico
ou um sertanejo cristalizado. Isso nos faz pensar, sobretudo
na atualidade, que a identidade caipira e sertaneja brasileira
encontra-se dentro de um contexto histórico mais complexo
e não tão didático quanto o que podemos a priori apresentar
neste trabalho.5
A realidade que cerca o uso dos termos empregados para
os caipiras e sertanejos é marcada por um alto grau de pre-
conceito e de construção de estereótipos. Essas percepções
negativas acerca dos moradores do campo e de seus respec-

4 Os termos caipira e sertanejo se intercruzam historicamente, em alguns


momentos, disputando o lugar de primeiro em gênese, ou seja, de termo
mais antigo. O que se sabe é que “sertanejo” foi registrado pela primeira
vez em 1663 e “caipira”, em 1872 (HOUAISS, 2001). A perspectiva
do intercruzamenato dos dois termos assume uma dicotomia na
contemporaneidade, haja vista que, para muitos, o termo caipira é o mais
indicado ou original para designar o homem do campo, ganhando, desta
forma, um lugar de mais importância em relação a sertanejo.
5 Buscamos não nos alargar no tema da construção histórica dessa
identidade, todavia essas discussões se apresentarão com mais detalhes
em outros trabalhos acadêmicos que dialogarão com este e com a própria
pesquisa que está sendo realizada (dissertação e espetáculo).

62
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

tivos descendentes são construídas por meio da ideia da


criação de uma identidade brasileira. Na estruturação dessa
identidade, suas matrizes constitutivas, a indígena, a africa-
na e a europeia, deviam ser organizadas de forma a exaltar
a europeia e atenuar a indígena e a africana. Nessa pers-
pectiva, o homem e a mulher do Brasil deviam ser urbanos,
cumprir o sistema mercadológico e laboral capitalista e se
enquadrar nos padrões morais e estéticos da civilização que
o governo das décadas de 1910 a 1950 almejava construir.
Desse prisma, o caipira e o sertanejo não faziam parte da ci-
vilização; na maioria dos casos, encaixá-los como subalternos
ou como atrasados da sociedade era a ação mais frequente
(HOLANDA, 1995).
Na literatura e na arte, isso ficou expresso nas primeiras
décadas do século XX, na forma como eram constituídas as
imagens desses sujeitos, sempre evidenciando características
grotescas e realidades sub-humanas. Por conseguinte, a cons-
trução do estereótipo marca a representação desses brasilei-
ros e estimula o preconceito contra sua cultura e raízes.
Para propor ações de desconstrução dos estereótipos, tor-
na-se necessária a atitude honesta de aprofundamento sobre
o tema. Compreender melhor quem são os caipiras e sertane-
jos exige a convivência com estas comunidades, em diálogo
com estudos históricos sobre a constituição da sociedade bra-
sileira. Neste aspecto, citamos o auxílio da antropologia, da
sociologia e da história como áreas de conhecimento colabo-
radoras nos estudos culturais, na reavaliação de clichês prees-
tabelecidos e na elaboração de análises reflexivo-críticas.
Para este trabalho de aprofundamento, contribuíram os his-
toriadores Antonio Candido (2010) e Darcy Ribeiro (1995),
com suas análises e vivências histórico-antropológicas, e os
sociólogos Sérgio Buarque de Holanda (1995) e Maria Alice

63
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Setubal (2005), com seus compartilhamentos contextuais e


reflexivos. Atentos às colaborações destas áreas do saber para
o campo cênico das artes, explicitamos o apoio de Eugenio
Barba (2010), que apresenta o teatro intitulado “antropoló-
gico”. Nesta vertente teatral, ocorre um diálogo com as áreas
de conhecimento já mencionadas e, ao mesmo tempo, uma
relação sensível com a contemporaneidade, o que concorre
para um aspecto estético, semiótico e social da cena e do fazer
cênico. No desenvolvimento da pesquisa que deu origem a
este texto, embasados por essas contribuições, conversamos
metodologicamente com a autoetnografia como possibilida-
de para o andamento da investigação.
Sob o apoio das proposições do encenador russo Constan-
tin Stanislavski (1998, 2007), apropriamo-nos dos conceitos
de “primeira visão” e “primeira impressão”, expostos por Nair
Dagostini (2007) e utilizados para a atmosfera de processo
criativo cênico. Tentamos percebê-los em relação ao histó-
rico das representações dos caipiras e sertanejos nas diversas
expressões de conteúdo estético no Brasil. A primeira visão
está alicerçada sobre o “primeiro impacto representativo”
(DAGOSTINI, 2007, p. 35 apud TOVSTONÓGOV, 1980,
p. 180), localizando-se, deste modo, “na superfície”. É a cha-
mada perspectiva de estampa-clichê. Já a primeira impres-
são está dentro do que realmente é colaborativo e faz jus ao
tema6 do processo criativo, manifestando-se em diferentes
momentos no decorrer do processo. Ela pode ser “igualada a
um termômetro”, uma vez que, se essa “impressão se confirma
no espetáculo, o diretor pode ter um parâmetro do acerto do
mesmo” (DAGOSTINI, 2007, p. 36). De posse desses concei-

6 O termo “tema” está dentro do método da “análise ativa” como um dos


elementos colaboradores no entendimento de um texto teatral. O tema é
o foco de um texto, isento dos estereótipos e clichês.

64
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

tos, buscamos averiguar que elementos utilizados no decorrer


das representações dos caipiras e dos sertanejos são compos-
tos numa perspectiva de primeira visão e que elementos se
apresentam contínuos nos diversos aspectos composicionais
das obras (primeira impressão), promovendo quase que uma
conexão expressiva com a realidade e a dramaturgia.
Uma vez entendido de forma equivocada, tal sujeito da so-
ciedade brasileira pode, toda vez que citado, ser apresentado
por meio do estereótipo que o cerca, e não segundo a realida-
de de sua vida e cultura. Pensando na cena, esse paradigma
pode se estruturar em razão de duas questões distintas que
apontaremos a seguir. A primeira diz respeito aos cânones
teatrais antigos de uma dramaturgia pensada com base em
um texto escrito, sendo este o comandante de todo o processo
teatral. Se o texto apresentar um roteiro baseado nos estereó-
tipos, todos os outros elementos dramatúrgicos e dramáticos
se influenciarão pelos mesmos moldes equivocados. A segun-
da questão é o comodismo dos intérpretes e da equipe criado-
ra da obra, o qual se resume na pressa em se montar determi-
nado espetáculo cênico. Qualquer justificativa que legitime o
andamento acelerado – a falta de embasamento da temática
do espetáculo a ser criado, do personagem a ser interpretado e
do texto a ser composto/dirigido – proporciona um conforto
e rapidez de resultado para os integrantes do processo inventi-
vo, mas prejudica a materialidade da proposta criativa.
Refletiremos historicamente, em síntese, sobre essas ques-
tões no que tange à cena, analisando especificamente algu-
mas obras,7 artistas e épocas que trazem o caipira e o sertanejo
como protagonista, seja dando lugar à interpretação destes
7 Serão analisadas obras literárias sob a perspectiva de sua influência na
construção da identidade estereotipada do caipira e do sertanejo. Mais
tarde, essas obras influenciaram as concepções também no teatro e no
cinema.

65
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

sujeitos ou mesmo integrando-os aos espetáculos cênicos.


Para tanto, pensaremos sobre as origens dos estereótipos
dessas comunidades: a literatura de Monteiro Lobato (1959,
1948, 1961); as aparições teatrais dos estereótipos nas peças
regionais paulistas para as quais nos atentaremos neste tra-
balho específico; a chegada da representação desses sujeitos
no cinema, sendo o auge a interpretação cômica de Amácio
Mazzaropi (1912-1981), com produções realizadas de 1952 a
1980. Também cogitaremos sobre a atualidade dessas ence-
nações, ora influenciadas pelas representações tradicionais,
ora em diálogo com a contemporaneidade, ora com as tra-
dições que são também contemporâneas.
Pensar em quais obras se estabelece o estereótipo como
estética e em quais ele aparece como alternativa de crítica
é a forma escolhida para organizar uma das questões analí-
ticas históricas deste trabalho. Por isso, analisaremos aqui,
também, quando possível for, por meio de registros com-
probatórios (filmes, imagens fotográficas, recortes de jornais
etc.), como se deram os processos criativos das respectivas
obras citadas inicialmente. E, ainda, quais são as relações de
seus criadores com os sujeitos inspiradores, os caipiras e ser-
tanejos. Essas alternativas ajudarão a defrontar essas reali-
dades com o que vem sendo e ainda será produzido ceni-
camente tendo como inspiração o universo do homem e da
mulher do campo.

O Jeca-Tatu: apresentações e transformações

O personagem Jeca-Tatu, criado por Monteiro Lobato em


1914, tornou-se uma das grandes representações dos caipiras,
e os objetivos iniciais de sua criação, assim como suas caracte-

66
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

rísticas e seus lugares de presença, foram além da literatura.


Sua consagração se deve aos estereótipos que configuraram
sua imagem e as ideias de seu autor. Suas publicações apre-
sentam o Jeca de maneira distinta, notando-se diferenças de
obra para obra e de aparição para aparição. Também se perce-
bem contrastes nas justificativas expostas sobre os atributos
e contextos do Jeca-Tatu, argumentos que conversam com a
realidade dos olhares de Lobato.
Pode-se afirmar que a personagem lobatiana é a personifi-
cação dos preconceitos empregados para os caipiras paulistas,
brasileiros que se organizavam de modo semelhante ao dos
sertanejos nordestinos, sendo referidos de maneiras diversas,
como apresentaremos mais à frente. Jeca-Tatu é o reflexo
da perspectiva de vida e de mundo de Lobato acerca desses
sujeitos, fruto de um olhar diagonal de um dono de terras,
fazendas e posses para um grupo de trabalhadores e empre-
gados seus. É um olhar distanciado e, ao mesmo tempo, pró-
ximo, porque reflete uma dicotomia espacial e afetiva. É o
intelectual escritor que volta às raízes da primeira infância,
do convívio com o rural,8 e que estabelece uma proximidade
com os sujeitos do campo, sem, no entanto, construir com
eles vínculos de intimidade, muito menos de cordialidade
(BALISTA, 2018).
Lobato (1959) expressou publicamente pela primeira vez
seu posicionamento sobre os moradores do campo por meio
de sua carta ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1914, intitu-

8 Referimo-nos ao momento da vida de Monteiro Lobato (1911) em que ele


recebeu como herança, de seu avô, o visconde de Tremembé, a fazenda
São José do Buquira, na Serra da Mantiqueira, perto de Taubaté (SP). O
escritor foi morar na fazenda, administrar os bens deixados pelo avô e
comandar os serviços realizados pelos empregados, no caso, os sujeitos
do campo, os chamados caipiras popularmente e denominados jecas por
Lobato (BALISTA, 2018).

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

lada “Velha praga”. O texto falava de um caipira preguiçoso,


sujo e ignorante, que, segundo o autor, não queria adaptar-se
aos requisitos básicos da então sociedade brasileira recém-
-urbanizada e, em sua maioria, em processo de urbanização.
Essa carta foca na denúncia das queimadas realizadas pelos
sujeitos do campo e, com base nessas queimadas, o autor enu-
mera todos os defeitos que, de acordo com seu olhar, acom-
panhavam o modo de vida dessas comunidades, tornando-se
uma praga para o avanço do Brasil. Lígia Balista (2018) res-
salta que havia outros registros não publicados, escritos antes
da “Velha praga”, nos quais já sobressaía o olhar de repulsa
do autor pela forma de vida caipira. As críticas ao homem e
à mulher do campo emergem, por exemplo, nas cartas ende-
reçadas pelo autor a Godofredo Rangel (1884-1951),9 como
esta de 20/10/1914:
Começo a acompanhar o piolho desde
o estado de lêndea, no útero duma ca-
bocla suja por fora e inçada por dentro.
Nasce por mãos de uma negra parteira,
senhora de rezas mágicas de macumba.
Cresce no chão batido das choças e do
terreiro, entre galinhas, leitões e ca-
chorrinhos, com uma eterna lombriga
de rancho pendurada pelo nariz. Vê-lo
virar menino, tomar o pito e a faca de
ponta, impregnar-se do vocabulário e
da “sabedoria” paterna, provar a primei-
ra pinga, queimar o primeiro mato, ma-
tar com a pica-pau a primeira rolinha,
casar e passar a piolhar a serra nas re-

9 Godofredo Rangel foi um escritor e tradutor, mineiro de Carmo de Minas


(MG). Morou numa república quando jovem, onde conheceu Monteiro
Lobato. Tornou-se amigo do escritor, com quem mantinha o hábito de
trocar correspondências (BALISTA, 2018).

68
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

dondezas do sítio onde nasceu até que


a morte o recolha. (LOBATO, 1914 apud
BALISTA, 2018, p. 33).
Partindo desses olhares de fazendeiro e com saudade da
urbanidade e do seu confortável consultório de escritor, Lo-
bato revela em uma das cartas seu pressentimento de que,
daquele contexto, sairia inspiração para uma nova obra. Era
como se de suas descrições da vida dessas comunidades a
Rangel pudesse sair uma “teoria do caboclo” que, uma vez
escrita, tornar-se-ia um livro “profundamente nacional, sem
laivos nem sequer remotos de qualquer influência europeia”
(LOBATO, 1959 apud BALISTA, 2018, p. 32). Essa afirmação,
em diálogo com outras declarações de Lobato eivadas de ter-
mos como “piolho”, “macumba” e “duma cabocla” ou “duma
negra”, aponta o seu entendimento de que essas comunida-
des rurais são o lugar da ausência da cultura europeia. Por
um lado, para Lobato, essa realidade era ruim, pois impedia
o processo de sofisticação e de avanço da sociedade brasilei-
ra. Por outro lado, numa perspectiva individual de melhorias,
a atmosfera do campo originaria novidades de enredos para
seus textos, beneficiando seus leitores. O modus de vida do
homem e da mulher do campo possibilitaria que Lobato or-
ganizasse uma suposta obra “profundamente” brasileira.
Partindo desse olhar, o autor consegue expor sua per-
cepção sobre o caipira, enfatizando os resquícios da mestiça-
gem entre os negros escravizados e os indígenas. Neste cená-
rio, ele cita a Lei Áurea num tom de mofa contra os negros:
mal esvoaça o florido decreto da Prin-
cesa e o negro exausto larga num uf! o
cabo da enxada, o caboclo olha, coça a
cabeça, “magina” e deixa que do velho
mundo venha quem nele pegue de
novo. (LOBATO, 1959, p. 58-59).

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

De quebra, refere-se a um processo que ele chama de mu-


dança do indianismo para o caboclismo: “O cocar de penas de
arara passou a chapéu de palha rebatido à testa” (p. 58), e “a
tanga ascendeu a camisa aberta ao peito” (p. 59).
Entendendo isso como algo novo para os brasileiros das
grandes cidades, Lobato vê na abordagem da vida do caipi-
ra uma inovação literária e uma colaboração à sociedade por
meio das denúncias contra as queimadas e outras ações dos
homens e das mulheres do campo. Referindo-se às obras que
apresentavam as comunidades sertanejas de forma romântica
e favorável aos seus moradores, ele desabafa numa das car-
tas a Rangel: “entre as coisas da terra há um maldito prisma
que desnatura as realidades” (LOBATO, 1914 apud BALISTA,
2018, p. 32). Aqui Lobato fala indiretamente do folclorista e
artista Cornélio Pires (1884-1958), que escrevera o primeiro
texto relacionado ao tema em 1910, o Musa caipira, e, mais
tarde, em 1921, o famoso Conversas ao pé do fogo, apresentando
um olhar de orgulho nacional pelos caipiras, os chamados por
ele de caboclos. Lobato fala também, diretamente, do cearen-
se José de Alencar (1829-1877), autor de O sertanejo (1875),
dizendo ser “preciso matar o caboclo que evoluiu dos índios
de Alencar” (p. 36). A esse respeito, escreveu ainda: “Pobre
Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!”
(LOBATO, 1959, p. 281).
Organizando a legitimidade de estereótipos dos caipiras,
Lobato lança Urupês em 1918, composto por sua “Velha pra-
ga”, de 1914, e por alguns contos que apresentam o caipira sob
a representação do Jeca-Tatu. Semelhantemente ao ocorrido
em seus desabafos nas cartas particulares e na carta ao jornal,
ele fala do caipira como um tipo inadequado ao país. Em suas
palavras, este é inferior em raízes ancestrais e na vida cotidia-
na, e vive doente, sujo e com necessidades acumuladas por

70
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

conta própria. “O caboclo é o sombrio urupê de pau podre a


modorrar silencioso no recesso das grotas” (LOBATO, 1959,
p. 155). Levado por um olhar urbano, moderno e totalmente
dominado pelos padrões eurocêntricos e estadunidenses, o
escritor acentua que o caipira “não fala, não canta, não ri, não
ama.” E que, “no meio da tanta vida, não vive…” (p. 291).
Somente mais tarde, depois de ter apresentado o caipira
como o anti-herói da sociedade brasileira e promovido a ideia
de que ele deveria ser combatido para possibilitar o avanço da
nação, é que Lobato voltou atrás em pequenos quesitos do
que afirmara inicialmente. Esse movimento de rever o que
fora proferido se dá no contexto da reutilização da imagem
do Jeca-Tatu para a campanha sanitarista que tomava conta
da sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX.
O escritor Monteiro Lobato criou um
personagem chamado Jeca-Tatu. Era
um caipira que não fazia nada na vida
devido à doença e à preguiça. Mas Lo-
bato aderiu à campanha em prol do sa-
neamento rural e deu a seu personagem
educação sanitária. A partir de então,
Jeca-Tatu prosperou a olhos vistos, su-
perou em produtividade o trabalhador
imigrante e tornou-se, ele também, um
educador sanitário. (MOVIMENTO
SANITARISTA, 2019).
Desse modo, o personagem começou a revelar-se de for-
ma diferente em outras obras do autor. Jeca Tatu: a ressurreição
(1918), publicada em 1961, constrói-se na aparição do caipira
como doente, porém, desta vez, sob a justificativa dos atra-
sos referentes à saúde pública sanitária. E em Jeca Tatuzinho
(1924), um álbum ilustrado para crianças, aparecem dicas
de higiene e saneamento básico, e o personagem expõe suas

71
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mudanças de hábito e suas melhoras de saúde. Em ambos os


textos, o Jeca se diferenciava do caipira apresentado em Uru-
pês, que era assim doente porque queria ser. Agora a preguiça,
que antes era característica da moral caipira, transforma-se
em efeito da doença provocada pela falta de higiene: “Tudo
o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses de-
pois ninguém mais conhecia o Jeca. A preguiça desapareceu”
(LOBATO, 1961, p. 331-334).
O personagem de representação do ridículo do campo
tornou-se o símbolo da luta contra verminoses – doenças
próprias da década de 1930, como o amarelão – e o incenti-
vo ao saneamento básico, ambos registrados nos almanaques
de farmácia tradicionais da época. Como Lobato era amigo
de Cândido Fontoura (1885-1975), importante farmacêutico,
suas obras fizeram parte do Almanach do biotonico, com o obje-
tivo de estimular o cuidado com a saúde e a obtenção dos
remédios apresentados no almanaque. Mas o sucesso do li-
vro farmacêutico só se deu em 1973, na trigésima edição, que
“alcançou um total de 84 milhões de exemplares, transfor-
mando o ‘Jeca’ na obra de maior divulgação em todo o Brasil”
(GOMES, 2006, p. 1013). Também citamos os cinco artigos
publicados sob o título Problema vital (1918), que denunciam
a problemática da crise sanitária no país.
A última aparição do Jeca-Tatu na literatura de Lobato
se dá na obra Zé Brasil, de 1947. Nela o personagem caipira
surge politizado, inteligente e comprometido com o futuro
da nação, características totalmente diferentes das construí-
das inicialmente. Após consultas médicas, ele segue as pres-
crições de tratamento para as doenças, fica curado e aumenta
o horário de trabalho durante o dia, o que indica ter vencido
a preguiça, causada pelos achaques de vermes e pelo amare-
lão. Envolvido com os problemas sociais, Zé Brasil luta pelo

72
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

cuidado com a terra nas questões latifundiárias e consegue


enriquecer economicamente, vindo a tornar-se um fazendei-
ro. No entanto, para a quase “totalidade do público leigo, o Zé
Brasil de Lobato nem existe, mesmo porque não teve atenção
editorial posterior” (GOUVEA apud BALISTA, 2018, p. 39),
o que reafirma a hipótese de que o Jeca-Tatu de Lobato ficara
cristalizado sob sua imagem apresentada em Urupês.
Essas perspectivas literárias tiveram forte influência nas
construções dramatúrgicas da época, que interferiram forte-
mente no caráter cênico, subalterno ao texto, naquele contex-
to histórico. Daí surgiram dramaturgos, diretores e atores que
dedicaram parte da trajetória de suas carreiras, quando não a
trajetória toda, a apresentar o sujeito do campo cenicamente
em suas obras. No teatro popular, o regionalismo passou a
tomar parte no cenário e a promover uma abertura para mo-
mentos representados pelos sujeitos do campo e por outros
convidados ao palco, como em alguns trabalhos realizados
por Cornélio Pires. Neste cenário, surgiu na cinematografia
brasileira o ator Amácio Mazzaropi como imagem-símbolo
da atuação cênica do caipira paulista – mais tarde presente
também no Centro-Oeste. É importante avaliar as obras ine-
rentes a esse contexto e repensar seus processos de criação.

A representação do caipira em cena

Os teatros de São Paulo, no final do século XIX e início do


XX, apresentaram uma forte inclinação para encenar obras
com temas regionais. Nestes espetáculos o caipira tornou-se
necessidade no enredo e na cênica, aparecendo algumas ve-
zes como tema principal e outras como personagem coadju-
vante na trama encenada.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A fala conhecida como “caipirês” é algo muito próprio des-


sas peças, que tratavam o regionalismo como dramaturgia.
Alguns termos começavam, inclusive, a perder originalidade e
cair no exagero teatral (MELO, 2007). Cenicamente o sotaque
do homem e da mulher do campo ganhava o papel de detalhe
promotor de humor, mas socialmente isso colaborava para um
sentido pejorativo do modo de falar desses sujeitos, o que não
é muito diferente na atualidade. Os atores que encenavam os
caipiras e sertanejos nos palcos, no Sudeste, tornavam-se, na
maioria das vezes, intérpretes oficiais dessas figuras, ganhando
esse título graças à sua popularidade entre a plateia em decor-
rência de suas representações. Destacaram-se entre eles o pau-
lista Sebastião Arruda (data não identificada), participante da
Cia. Arruda (SP), o maranhense João Carlos Colás (1856-1920),
o português radicado no Brasil João Augusto Soares Brandão,
o Popularíssimo (1844-1921) (Imagem 1), e o paulista Genésio
Arruda (1889-1967) (Imagem 2), que se apresentavam em São
Paulo e no Rio de Janeiro (FERREIRA, 2010).
Imagem 1 - Matéria sobre a carreira de João Augusto Soares Brandão, o
Popularíssimo

Fonte: Biblioteca Nacional, 1949.

74
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

Imagem 2 - Genésio Arruda interpretando sua personagem caipira

Fonte: Site Recanto Caipira10

Os espetáculos apresentados eram construídos com base


em um texto dramatúrgico que refletia as perspectivas de de-
terminado local peculiar aos interioranos. Em sua maioria, os
textos paulistas concentravam o universo cênico no próprio
estado de São Paulo, enquanto o Rio de Janeiro brincava com
os costumes dos caipiras mineiro e paulista. Em distintos casos,
sobressaíam os costumes do nordestino, que chegava à capi-
tal do país e se impressionava com o espaço urbano. Isso fica
visível, por exemplo, no espetáculo A capital federal, de Arthur
Azevedo (1855-1908), de 1873, peça que retrata a chegada de
uma família do interior à cidade grande. No entanto, entre cô-
mico e dramático, o humor é o que mais chama a atenção na
cena teatral com o caipira. Citamos, nesse contexto, duas obras
de Martins Pena (1815-1848): O juiz de paz na roça (1837), sua
primeira peça encenada, estreada em 1842, e A família e a festa
na roça (1837), apresentada em 1840 (ALMEIDA, 2018). Con-
forme mostram as duas obras, que são exemplos dessas peças
humorísticas, Pena faz parte do grupo de dramaturgos preocu-
pados com a abordagem dessa temática.
Muitos dos atores populares de peças teatrais citados aci-
ma, com o passar do tempo, chegaram às rádios e ao cinema,
ampliando suas produções e sua visibilidade de trabalho. No
10 Disponível em: https://www.recantocaipira.com/duplas/genesioarruda/
genesioarruda.html. Acesso em: 24 out. 2019.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

contexto cinematográfico, o ator Amácio Mazzaropi foi o ar-


tista que mais se consagrou no ofício de encenar o caipira
paulista e também o sertanejo brasileiro andante. Isso se tor-
na visível em filmes como A carrocinha (1955), O Grande Xerife
(1972) e Portugal... minha saudade (1973), que apresentam cai-
piras e sertanejos vindos de outros estados. Mazzaropi encar-
nou o caipira desde 1952 com a obra Sai da frente, na qual in-
terpretou o personagem Izidoro, inspirado no Jeca-Tatu, mas
foi somente em 1959 que o Jeca-Tatu chegou ao cinema com
uma obra homônima. Ao todo, Mazzaropi encenou 32 filmes,
personificando o caipira com vários nomes: Candinho, Pe-
dro Malasartes, Jacinto, entre outros (PAULA, 2014, p. 77).
Sua última aparição foi em O Jeca e a égua milagrosa, de 1980,
quando encerrou as apresentações do Jeca nos cinemas.
Filiado a uma tradição de representação
da personagem caipira na cultura po-
pular, Mazzaropi aliava-se ao tipo cons-
truído por Genésio Arruda nos teatros
nos anos 1930 e, retornando ainda mais,
remete ao filme Nhô Anastácio chegou de
viagem (1908), que contava as agruras
de um caipira recém-chegado ao Rio de
Janeiro, colocando de forma cômica, na
primeira década do século XX, as dife-
renças esboçadas entre o universo rural
e o urbano. (BRAGANÇA, 2009, p. 111).
A estética trabalhada por Mazzaropi acerca do caipira e
sertanejo deu-se mediante as características e os estereótipos
criados no decorrer das últimas décadas do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX. A constituição dessa estética
foi favorecida pelos trabalhos técnicos do ator, em que ele
evitava a utilização do exagero interpretativo. Esse talento era
demonstrado tanto nos procedimentos próprios de atuação
para o cinema, quanto no amadurecimento e maior aprofun-

76
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

damento do ator nas questões inerentes aos sujeitos do cam-


po (Imagens 3 e 4).
Imagem 3 - Cartaz de divulgação do filme Jeca Tatu (1959). Desenho e
fotografia de Jayme Cortez. Cinemateca Brasileira

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2019.

Imagem 4 - Mazzaropi interpretando o caipira na comédia Jeca Tatu


(1959)

Fonte: O Tempo, 2019.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Diferente do que se podia supor com as obras de Lobato,


em vez de a população se distanciar dos aspectos caipiras de
vida em razão da crítica desses costumes e rotina, ela buscou
alternativas de reencontro destas origens. A aversão ao modus
caipira e sertanejo promovida na obra lobatiana não vigorou
na maioria da população: o povo não só continuou com algu-
mas tradições rurais, como também procurou, através de suas
criações artísticas e gostos, encontrar relações cotidianas des-
sa forma de viver. Isso ficou evidente com o sucesso de peças
teatrais regionais levadas ao público desde o final do sécu-
lo XIX até meados da década de 1930; com a expansão que,
no final dos anos trinta, o mercado fonográfico deu à música
caipira, transformada mais tarde, quase em 1970, na música
sertaneja; e com a febre gerada pelos filmes de Mazzaropi e
seus inúmeros caipiras. Nesse cenário de valorização do cai-
pira e do sertanejo, pode-se destacar o primeiro filme brasi-
leiro sonorizado, ou não mudo (Acabaram-se os otários, 1929),
que conta com Genésio Arruda no elenco. Mais do que falar
sobre o caipira, o filme faz desse sujeito o seu tema principal.
O público, porém, mostrou preferência
pela comédia regional, a comédia popu-
lar com os ridículos da nossa vida serta-
neja, caipiras e violeiros, e este gênero
acabou, de novo, por dominar os de-
mais. É assim que neste momento é essa
a produção que mais abunda em nosso
teatro, e que mais interesse dá às empre-
sas. (SOUSA apud MELO, 2007, p. 64).
Essa busca pela raiz caipira e sertaneja acompanha a so-
ciedade brasileira até a atualidade, conforme se vê pela conti-
nuidade de criações e apresentações de obras com essa atmos-
fera do sertão (Imagens 5, 6 e 7). Os personagens e os enredos,
às vezes, são novos; no entanto, suas composições, ainda que

78
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

diferenciadas das realizadas nas antigas produções, em sua


maioria, apresentam resultados semelhantes. E, com frequên-
cia, na contemporaneidade, essas obras são remontagens de
clássicos. Nessas novas produções (ou antigas com novos de-
talhes), representadas por obras de resistência popular e por
aquelas apoiadas pela indústria cultural, podemos notar e
analisar a permanência de estereótipos e a ação de descons-
trução. Nelas encontramos os elementos da primeira visão
(DAGOSTINI, 2007), propiciados pelas leis construídas his-
toricamente para as encenações dessa atmosfera e para sua
respectiva manutenção, bem como os elementos da primeira
impressão, verificados no aprofundamento e na vivência da
realidade que se objetiva encenar.
Imagem 5 - O ator Sérgio Guizé interpretando o personagem Candinho
na telenovela Eta mundo bom! (2016)

Fonte: Acontece.com, 201911

11 Disponível em: https://acontece.com/5t/1083-eta-mundo-bom-traz-


mensagem-otimista-com-muito-humor-e-romance. Acesso em: 24 out.
2019.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Imagem 6 - Atores encenando o musical Bem sertanejo (2017), do cantor


sertanejo Michel Teló

Fonte: Darezzo, 2015.

Imagem 7 - O ator Jesuíta Barbosa interpretando Pedro Malasartes no


remake Malasartes e o duelo com a morte (2017)

Fonte: Padiglione, 2019.

Na contemporaneidade, trabalhos que conversam com a


proposta de fortalecimento das comunidades caipiras e serta-
nejas, num viés antropológico alcançado geralmente por meio
da vivência em laboratórios com esses sujeitos e ambientes,
vêm aumentando e solidificando as obras construídas nesse
campo. Isso pode ser observado nos exemplos e esclarecimen-
tos colhidos no artigo “Inventários do sertão nas cenas moder-
na e contemporânea”, de Ramon e Oliveira (2019).

80
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

Finalizando a moda, propondo outras rodas

Vou parar com minha viola


Já não posso mais cantar
Pois o Jeca quando canta, dá vontade de chorar.
(OLIVEIRA, 1918).

A reflexão apresentada neste trabalho, além de tentar ex-


plicitar e desmistificar os estereótipos que rondam as figuras
dos caipiras e sertanejos, também visa repensar as represen-
tações desses sujeitos nos produtos estéticos e nos processos
de criação no campo das artes cênicas. Nesse intuito, faz-se
necessário traçar um panorama do que já foi feito e do que
vem sendo produzido na atualidade por meio de novas pers-
pectivas de trabalhos artísticos. Assim se poderá atingir um
trabalho com composições sensíveis cênicas referentes a essas
identidades da cultura brasileira.
O objetivo desta análise reflexivo-crítica é sanar equívo-
cos advindos dos preconceitos estabelecidos na sociedade
e do “textocentrismo” teatral influenciado pela literatura, a
qual reflete os mesmos preconceitos dessa sociedade. Com
essa perspectiva, pretendemos propiciar reflexões sensíveis e
construir caminhos mais sólidos para futuros trabalhos em
que as artes cênicas venham a dialogar com as culturas ser-
taneja e caipira, tal como objetivado em nosso projeto em
desenvolvimento. Para promover esse diálogo e futuras re-
flexões, utilizamos os elementos filosóficos e principalmente
sociais, históricos e antropológicos que rondam o campo em
estudo e são muito importantes para ele.
Propomos a integração da vivência, experiência e contex-
tualização nos trabalhos que retratam as figuras caipira e ser-
taneja, não obstante as produções já realizadas com esse tema
por meio das dramaturgias textuais e dos atores nos séculos

81
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

XIX e XX. Nossa aspiração é possibilitar novos horizontes


para o trabalho cênico, colaborando para os aspectos poético,
estético, técnico, metodológico e ético do processo criativo
e da produção de conhecimento neste ramo. Também de-
dicamos atenção aos aspectos social, ético e antropológico,
que podem auxiliar na democratização da cultura e na mul-
tiplicidade cultural. Buscamos, desta forma, alternativas que
conversem com a práxis artística numa contemporaneidade
complexa tanto na esfera da construção de conhecimentos,
quanto no pensar e fazer cênico.
O Jeca-Tatu marginalizado e estereotipado pode muito
bem configurar uma analogia com a necessidade da arte en-
tendida como área de conhecimento – não uma arte dentro
dos moldes preestabelecidos, muito menos alienada por cri-
térios que não apresentam justificativas plausíveis de existên-
cia. Assim, trabalhar com essa temática supõe possibilitar um
diálogo entre academia e comunidades, artistas-pesquisado-
res e artistas populares, caipiras e sertanejos universitários e
caipiras e sertanejos do mundo inteiro. Buscamos, para tanto,
empenhar-nos por uma dinâmica de teoria e prática, na qual
a contextualização histórica colabore para a prática, e a práti-
ca reinvente e atualize a história, viabilizando histórias mais
humanizadas, diálogos mais sensíveis e vivências mais poéti-
cas (RAMON; OLIVEIRA; FIGUEIREDO, 2020).
Ainda que a sociedade se encontre envolta nos padrões
estabelecidos e nas normas estéticas de consumo, pautadas
por um olhar eurocêntrico e mesmo estadunidense, o que se
pode perceber após estas reflexões é que esta sociedade tenta
retornar às suas origens como forma de se perceber e de se
encontrar. Ao procurar pelos aspectos caipira e sertanejo nas
representações estereotipadas, a população espera encontrar
resquícios de suas origens e de seus afetos familiares: uma

82
“Nestes versos tão singelos”: a representação do Jeca-Tatu em contraste com a identidade
caipira e sertaneja

canção sertaneja, uma peça caipira ou um filme cômico de


Mazzaropi. O processo de desconstrução da ideia do Jeca
atrasado e malfalado pode iniciar encontros com um novo
Jeca, que ainda está presente em nosso meio, mas que, dife-
rente do que foi afirmado antigamente, canta e vive. Canta
contando sua própria história, com sua própria voz e com seu
próprio modus de vida. Chora, como lembra Angelino de Oli-
veira (1888-1964), mas chora porque vive intensamente e faz
de sua vida sua arte.

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87
Estudos genéticos nas artes da cena:
metodologia de criação no rastro da memória

Eduardo Oliveira Babugem1


Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira2

Resumo: O presente trabalho tem como objeto os estu-


dos genéticos e suas possíveis contribuições nos processos
criativos em arte, mais especificamente nas artes da cena. A
discussão acerca dos estudos genéticos vem se ampliando
para as diversas áreas artísticas, além da literatura. Assim,
o objetivo da investigação para este texto é apresentar e
compreender as memórias do corpo como arquivo em pro-
cessos de criação artística e como fontes. No caso do ator,
reconhecemos, por meio de sua práxis, um desenvolvimento
de rastros específicos que complementam os registros do-
cumentais, a saber, os diários de bordo, as fotografias, os ví-
deos experimentais, por exemplo. O artista cênico produz
em seu corpo memórias essenciais para se discutir o invó-
lucro da criação e é composto por memórias, pois, a todo o
1 Atualmente é ator, professor e pesquisador, com experiência na área de arte-
-educação, ênfase em interpretação teatral. Professor de teatro na Escola
do Futuro de Goiás em Artes Basileu França nos cursos de qualificação
profissional em Teatro e curso técnico em Arte Dramática. Mestrando
em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás, vinculado à linha
de pesquisa denominada estéticas e poéticas da cena. Licenciado em
Artes Cênicas pela mesma universidade. Membro integrante do grupo de
pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas da Infância e Sua Educação em
Diferentes Contextos (Nepiec), FE-UFG, e do Laboratório de Pesquisa
Interdisciplinar em Artes da Cena (Lapiac) (UFG).
2 Orientadora da pesquisa em questão, diretora teatral, atriz e professora na
Emac-UFG. Doutora em Educação pela UFG, mestra em Artes pela UnB
e bacharel em Artes Cênicas: Interpretação Teatral, também pela UnB.
Coordena o LabMonTe-UFG e o LabCriaa-UFG.
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

momento, o corpo é colocado como imagem em constante


processo. Em nossos estudos acerca do tema, entendemos
que o crítico genético busca nos arquivos de processo meios
de armazenamento através desses registros documentais,
mas acrescentamos que o corpo também possui a habilida-
de de registro de sua poética de criação por meio da me-
mória. Nesta investigação, observamos que a morfologia dos
processos de composição também possui caráter estético
devido à sua natureza e subjetividade. E, nesse sentido, tais
processos podem também ser utilizados para a absorção dos
principais elementos que os compõem desde a sua gênese
até a sua pulsação final, na maioria das vezes, em formato de
um produto artístico que passa pela apreciação de um pú-
blico externo. A apresentação da obra ao público nem sem-
pre é entendida como resultado, mas como parte integrante
desses processos, visto que a relação do espectador com a
obra artística gera outros processos e integra a criação como
um todo. Concluímos, por ora, que o ator, esse arqueólogo
da cena, escavador da união entre os registros documentais
e corporais, é, ele mesmo, parte documental dos arquivos de
memórias. Essas memórias, potências de criação, podem ser
gatilhos para dar conta da conexão entre o artista e a obra,
e para outorgar legibilidade às múltiplas metodologias pos-
síveis no campo da arte. Entre essas metodologias, damos
destaque à análise das ações físicas como um possível subsí-
dio aos estudos do corpo para a compreensão dos rastros da
memória.
Palavras-chave: estudos genéticos; memória; ator cria-
dor; ações físicas; arqueologia de criação.

89
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Genetic studies in the arts of the scene: creation


methodology in the memory track

Abstract: The present work has as object the genetic


studies and their possible contributions in the creative pro-
cesses in art, more specifically in the arts of the scene. The
discussion about genetic studies has been expanding to se-
veral artistic areas, in addition to literature. Therefore, the
objective of the investigation for this article, is to present
and understand the memories of the body as: archives in
artistic creation processes and as sources. In the case of the
actor, were cognize from praxis that there is a development
of specific tracks that complement the documentary re-
cords, namely, logbooks, photographs, experimental videos,
for example. The scenic artist produces in his body essen-
tial memories to discuss the wrapping of creation, as well as
being composed of memories, because, at all times, the body
is placed as animage in constant process. According to our
studies on the theme, we understand that the genetic critic
looks in the process files for storage means through these
documentary records, but we add that the body also has
the ability to record its creation poetics through memory.
In this investigation, we observed that the morphology of
the composition processes also has an aesthetic character
dueto its nature and subjectivity. And, in this sense, they
can also be used to absorb the main elements that make up
a process from its genesis to its final pulse, most of the time,
in the form of an artistic product which passes through the
appreciation of an external audience. The presentation of
the work to the public is not always understood as a result,
but as an integral part of this process since the viewer’s re-
lationship with the artistic work, generates other processes
and integrates the creation as a whole. We conclude, for the
time being, that the actor, that archeologist of the scene,

90
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

digger of the union between the documentary and corporal


records, as well as himself is a documentary part of the ar-
chives of memories. These, creative powers, can be triggers
to account for the connection between the artist and the
work, and to give legibility to the multiple possible metho-
dologies in the field of art. Among them, we also highlight
the analysis of physical actions as a possible contribution at
the studies of the body to understand memory tracks.
Keywords: genetic studies; memory; creative actor;
physical actions; creation archeology.

Ciência da arte: uma possibilidade nos estudos genéticos

No texto Arte, ciência, pesquisa: relações, o autor Julio Pla-


za (1997) aborda questões da receptividade e transmissão da
arte que foram sendo modificadas ao passar dos anos em de-
trimento da própria maneira de se pensar o fazer artístico.
Aponta também que no período medieval era estabelecida
uma forte relação entre mestre e discípulo, e, com o advento
do Iluminismo e dos movimentos de vanguarda, certos pa-
drões estéticos ganharam mais autonomia e liberdade rom-
pendo com determinadas regras e alguns pragmatismos. Essa
suposta democratização da arte permitiu que as produções
artísticas se relacionassem com diversos outros códigos e, as-
sim, ganhassem novas significações e correlações.
A natureza do conhecimento artístico se faz como objeto,
e a sensibilidade de sua construção emerge para a singulari-
dade das expressões artísticas, ao passo que o conhecimento
científico busca no objeto possíveis representações. Mas há
ciência na arte? É possível pesquisar como um artista man-
tendo um rigor científico? A arte e a ciência se distanciam,
aproximam-se e em alguns casos se imbricam, tendo em vista

91
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

que suas formulações se baseiam em processos de experiên-


cias e que perpassam por imagens criadoras que constituem a
estÉtica da pesquisa. Portanto, do mesmo modo que o cien-
tista passa pela elaboração do complexo, o artista também
precisa do pensamento científico para traçar esquemas rela-
cionados aos seus objetivos de pesquisa. Como colocado por
Plaza (1997, p. 26),
a apropriação pelo artista de esquemas
representacionais de cunho científico
constitui-se num recurso lícito e neces-
sário, de caráter intertextual, que, trans-
posto para uma nova ordem (mesmo
que seja desordem), servirá ao artista
para pensar e elaborar as suas ideias e/
ou modelos mentais.
Com base nessa colocação, entendemos que a ciência não
pretende enquadrar ou estabelecer regras para a criação artís-
tica. Ao contrário, a própria criação possui em si uma estru-
tura e metodologia, mesmo que ela se construa por meio do
universo da desordem. A criação se apropria desses esquemas
pelo pensamento reflexivo, que, por sua vez, instaura a ciên-
cia: o objeto criado é visto além de sua existência, na obser-
vância de sua formação complexa.
Discutir acerca da criação artística não consiste em esta-
belecer caminhos obrigatórios e/ou rígidos para se chegar a
resultados específicos em formato de obra de arte fechado.
Afinal, não podemos prever aspectos subjetivos de uma etapa
a outra da/na criação e, muito menos, definir padrões absolu-
tos de técnicas ou procedimentos. Existem diversos caminhos
e potencialidades de criação que se demonstraram efetivos,
mesmo que, pela particularidade de cada artista e/ou processo,
tais caminhos sejam discordantes em determinados aspectos.

92
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

Para conhecê-los, faz-se necessária a investigação, caso a


caso, dos andamentos criativos de cada artista e de cada obra,
sem a pretensão de criar uma metodologia única a ser se-
guida como uma receita. Contudo, isso não significa que os
registros das metodologias sejam irrelevantes; ao contrário,
eles criam possibilidades de diálogos e de geração de conhe-
cimento no campo das artes da cena. Desta forma, torna-se
possível refletir sobre causas e efeitos, inquietações e desdo-
bramentos inerentes à bricolagem3 que cada performer pode
realizar utilizando procedimentos que conhece.
Logo, é possível absorver e analisar os elementos poten-
tes do processo de criação do performer através dos estudos
genéticos. Essa análise permite que apuremos a composição
do artista e adentremos no universo das memórias e imagens
instauradoras das artes da cena, independente da natureza
dessas memórias. Entender as especificidades delas requer a
observação de sua gênese e de possíveis desdobramentos, e
pode proporcionar novas aberturas de fruição da obra.

Notas preliminares sobre os estudos genéticos

A crítica genética parece surgir no campo da literatura


com os pesquisadores franceses interessados em organizar
os escritos de Heinrich Heine, que chegaram à Bibliothéque
Nationale de France (1982). Para alguns dos estudiosos bra-
sileiros dessa vertente, como Roberto Zular (2002) e Sergio
Romanelli et al. (2014), os estudos do professor Philippe Wil-
lemart no I Colóquio de Crítica Textual da Universidade de
3 O termo “bricolagem” se relaciona, nessa perspectiva, à sua relação
antropológica. É a união de diversos elementos em um único propósito
(LÉVI-STRAUSS, 1976). No presente texto, comparo essa junção de
elementos ao trabalho do artista da cena.

93
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

São Paulo (1985) foram responsáveis pela disseminação dessa


nova perspectiva de investigação. Os mesmos teóricos desta-
cam a crítica genética na literatura e, posteriormente, nas de-
mais áreas artísticas, como a música, as artes visuais e as artes
cênicas. Ela é ressaltada especialmente pela professora Dra.
Cecília Almeida Salles, da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Segundo a pesquisadora,
a crítica genética é uma investigação
que vê a obra de arte a partir de sua
construção. Acompanhando seu plane-
jamento, execução e crescimento, o crí-
tico genético preocupa-se com a melhor
compreensão do processo de criação. É
um pesquisador que comenta a história
da produção de obras de natureza artís-
tica, seguindo as pegadas deixadas pelos
criadores. Narrando a gênese da obra,
ele pretende tornar o movimento legí-
vel e revelar alguns dos sistemas respon-
sáveis pela geração da obra. Essa crítica
refaz, com o material que possui, a gê-
nese da obra e descreve os mecanismos
que sustentam essa produção. (SALLES,
2009, p. 16-17).
Para a autora, na investigação de uma obra, a crítica ge-
nética analisa seu percurso e nos faz adentrar no universo de
sua criação entendendo e justificando os seus movimentos.
No caso do ator como ser atuante na cena, há um desenvol-
vimento de rastros específicos que vão além de registros do-
cumentais. O artista cênico produz em seu corpo memórias
que permitem discutir o invólucro da criação, pois, a todo o
momento, o corpo é colocado como instrumento em cons-
tante processo. Como exposto por Cecília Salles (2009, p. 21),

94
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

as fronteiras materiais desses registros,


no entanto, não implicam delimitações
do processo. O crítico genético trabalha
com a dialética entre os limites mate-
riais dos documentos e a ausência de li-
mites do processo; conexões entre aqui-
lo que é registrado e tudo o que aconte-
ce, porém não é documentado.
Isso significa que não é possível demarcar de forma preci-
sa todos os aspectos geradores da obra devido à sua imateria-
lidade. E esse “limite” citado acima pode ser entendido sob
diversas críticas, definindo-se de acordo com quem analisa a
obra e com as circunstâncias em que ela é analisada. Quan-
do a criação acontece, muitos são os limites e meandros que
envolvem seu descobrimento e sua permanência. Nesse caso,
cabe ao artista, como observador de si mesmo, a sensibilidade
para absorver seu percurso indo além da interpretação de re-
gistros escritos e proporcionando à obra subjetiva o direito de
sobreviver em meio às diferentes interpretações. Afinal, o ato
criador não está somente nos registros, mas também na ação.
Para que a obra sobreviva, é necessário que a criação se
torne movimento estético, como colocado nos escritos sobre
o “gesto inacabado” (SALLES, 2009), entendendo a morfolo-
gia dos processos criativos como expressividade e diálogo de
ações. Nesta perspectiva, a criação parte de uma tendência do
artista em relação ao seu próprio fazer e se liga ao processo
graças a uma motivação inicial que o impulsionou a agir. O
ponto de partida não reflete somente os resultados obtidos,
visto que a criação está imbuída de várias outras forças mo-
trizes que surgem além da inicial, mas o princípio desta mo-
tivação age como sinalizador de caminhos que o intérprete
pode vir a trilhar na composição. A obra em sua totalidade
pode, portanto, não refletir sua matriz inicial, mas evidenciar

95
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

seus caminhos, que são trilhados mediante as inquietações


do artista ou do coletivo de criadores. E mais: ela se trans-
forma com as relações, encontros e desencontros dialéticos e
dialógicos da experimentação.
O artista é atraído pelo propósito de na-
tureza geral e move-se inevitavelmente
em sua direção. A tendência é indefini-
da, mas o artista é fiel a essa vagueza. O
trabalho caminha para um maior discer-
nimento daquilo que se quer elaborar.
A tendência não apresenta já em si a
solução concreta para o problema, mas
indica o rumo. O processo é a explicação
dessa tendência. (SALLES, 2009, p. 33).
A criação não surge do acaso, mas também não existe a
obrigatoriedade de se estabelecer logo no princípio o que ela
há de ser, porque a mudança do ponto de partida é inevitável:
sem ela, não haverá deslocamentos de olhar para a criação e
para a motivação em criar. Se o objetivo é criar, faz-se neces-
sário sair do conforto, abrindo mão daquilo que já é conheci-
do, que já está posto no plano ideológico do artista, e escavar
espaços para as possíveis novas descobertas:
O processo de criação é o lento clarear
da tendência, que, por sua vagueza, está
aberta a alterações. O final pode ser
que nada tenha a ver com a “maquete
inicial”, pois o plano não tem nada da
experiência que se adquire à medida
que vai se escrevendo a história. (CA-
SARES, 1988, p. 28).
Como apresentado acima, o processo jamais será idênti-
co à tendência inicial do artista, pois a experiência da traje-
tória de composição influencia a transformação deste como
ser que cria. Portanto, se a experiência é fator constitutivo

96
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

da realização de qualquer obra artística, o acaso também se


torna objeto de estudo dessas relações subjetivas que a arte,
e especificamente o teatro, promove. Isso é comum em qual-
quer processo de comunicação que o intérprete desenvolve
na esfera pessoal e que varia conforme aquilo com que ele
se relaciona. Entretanto, o acaso é constituído de busca por
conhecimento, e não de improvisos.

Pistas dos estudos genéticos acerca da memória nas


artes da cena

No trabalho de criação realizado pelo ator, muitos são os


procedimentos e técnicas que podem dar vazão à ação dra-
mática. Entretanto, de uma forma ou de outra, é preciso elen-
car materiais para a composição da cena, e existem muitas
fontes para o surgimento desses materiais, tais como: estímu-
los sonoros, materiais escritos ou até mesmo a própria dra-
maturgia, imagens, figurinos, objetos de cena, entre outros.
Desta forma, a composição acontece unindo cada um desses
elementos, desde seu início até seus desdobramentos atuais,
juntando-os um a um como em uma colcha de retalhos para
a construção de materiais de cena.
O campo das artes cênicas possui uma especificidade:
mesmo passível de diferentes leituras, a obra não se faz total-
mente concreta. Nas artes cênicas, o trabalho é afirmado pela
presença do performer, que é incapaz de fazer exatamente o
mesmo trabalho todos os dias como se fosse uma máquina.
Seu corpo é imbuído de memórias diárias, sua relação com o
público se modifica, podem existir outros atores, circunstân-
cias atípicas podem surgir e assim por diante. O corpo desem-
penha importante papel na transmissão das imagens, como
coloca Henri Bergson (1990, p. 12):

97
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Vou formular pura e simplesmente o


que sinto e o que vejo: Tudo se passa
como se, nesse conjunto de imagens
que chamo universo, nada se pudesse
produzir de realmente novo a não ser
por intermédio de certas imagens parti-
culares, cujo modelo me é fornecido por
meu corpo.
Bergson, em seu livro intitulado Matéria e memória, localiza
o corpo como lugar desse registro da memória, que se atuali-
za constantemente de forma dinâmica, e o ambienta como
eixo de coexistência entre o passado e o presente. Aquilo que
lembramos, afirma ele, relaciona-se com a seleção de fatores
que, no momento atual, fazem-se existentes. Esses elementos
são acionados pelo corpo. Marcel Proust (1948) também con-
tribui para a construção desse pensamento acrescentado al-
gumas questões: essas memórias são constantemente atuali-
zadas, ou seja, a cada vez que lembramos, as relações são
ressignificadas. Sobre Proust e a memória, Walter Benjamin
(1986, p. 433-434) expressa:
A revolução copernicana na visão histó-
rica é a seguinte: considerava-se como o
ponto fixo “o ocorrido” e conferia-se ao
presente o esforço de se aproximar, tate-
ante, do conhecimento desse ponto fixo.
Agora esta relação deve ser invertida, e
o ocorrido, torna-se a reviravolta dialéti-
ca, o irromper da consciência desperta.
Atribui-se à política o primado sobre
a história. Os fatos tornam-se algo que
acaba de nos tocar, e fixá-los é a tarefa
da recordação. E, de fato, o despertar é
o caso exemplar da recordação: o caso
no qual conseguimos aquilo que é mais
próximo, mais banal, mais ao nosso al-

98
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

cance. O que Proust quer dizer com a


mudança experimental dos móveis no
estado de semidormência matinal, o
que Bloch percebe como a obscuridade
do instante vivido, nada mais é do que
aquilo que se estabelecerá aqui no plano
da história, e coletivamente. Existe um
saber ainda-não-consciente do ocorri-
do, cuja promoção tem a estrutura do
despertar.
Corpo é, portanto, memória, e as imagens, a imaginação,
a recordação são formadas pela memória, bem como a cons-
tituem. Se somos continuamente atravessados e constituídos
por novas imagens, e se a memória está em constante atuali-
zação, é possível registrar a natureza da experiência? Se sim,
de que maneira o performer aciona seus registros de criação?
Entendendo os processos de montagem, a montagem do
espetáculo e o espetáculo como partes-partícipes do fenôme-
no da experiência, acreditamos que a cada repetição dos pro-
cedimentos e da obra, esta será ressignificada. Ainda que uma
obra repetida seja mediada pelas mesmas ações, nas artes da
cena, a natureza da repetição será conectada por processos
novos que atravessam o ator, dando abertura para novos signi-
ficados cênicos, pois o processo nunca se fecha. Mas, mesmo
assim, tal natureza não garante que a repetição não se tor-
nará movimento de alienação ou prática automatizada. Ou
seja, reside na repetição uma ambivalência em que o artista
cênico pode se reinventar ou se repetir nos processos. Toda-
via, se aceitamos a multiplicidade da arte em seu processo de
construção, podemos observar que a organicidade se faz pre-
sente no corpo do ator por meio da repetição, e a técnica flui-
rá como pistas para os estados de experiência cênica que se
desejam na dramaturgia. As diversas técnicas para o trabalho

99
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

do ator trazem a possibilidade de repetição das cenas, cada


cena pautada em seus princípios, mas efetivamente as expe-
riências não serão exatamente as mesmas, e a improvisação
pode se fazer presente na criação justamente pelo insólito do
espetáculo.
No início, quando repito uma improvi-
sação ou uma composição, tenho a sen-
sação de perder a riqueza de detalhes e a
vitalidade. Durante uma improvisação,
as motivações – estímulos materiais,
ações interiores, imagens, impulsos físi-
cos – ditam seus ritmos e eu reajo sem
hesitar. A ação/reação parece ser a única
possível: nenhum julgamento a detém.
Procedo sem interpor ao agir a lem-
brança ou a necessidade de encontrar
aquilo que já fiz. Quando repito para
fixar, sei que devo aceitar perder provi-
soriamente o frescor daquilo que fiz e a
sensação de estar viva: tudo parece me-
cânico. (VARLEY, 2010, p. 107).
Na fala da atriz Júlia Varley, podemos notar, justamente,
a ambivalência e a confluência entre a ação viva e orgânica e
a mecanicidade da repetição da ação. É necessário perceber,
portanto, o paradoxo da repetição e a importância da pre-
paração corpórea e da criação poética para o artista cênico,
porque ao mesmo tempo que ele deve ser criativo, fugindo
de ações e gestos mecânicos para a elaboração do espetáculo,
também deve saber compor seu repertório e encontrar nele a
segurança e a fluidez para sua atuação. O processo de criação
do ator é um constante movimento de (auto)conhecimento
psicofísico para que seu corpo seja capaz de evocar imagens
carregadas de sentido, podendo criar diferentes significados
e subvertendo-os, inclusive. Nesta esteira, a obra de arte é re-

100
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

conhecida e ressignificada através de imagens que emergem


da materialidade da cena, mas que vão além daquilo que é
materialmente dado. Nos elementos da plasticidade cênica,
inclusive na plástica do corpo, encontram-se interfaces com
simbologias, códigos, convenções, representações etc., e essas
interfaces não são reconhecidas em palavras, entretanto, tes-
tificam-se corp(oral)mente.
Como o pianista cujos dedos se movem
automaticamente, sou livre para inter-
pretar e ‘‘improvisar’’, quando não estou
sujeita a técnica, quando incorporei e es-
queci a partitura, que agora é parte inte-
grante de mim. (VARLEY, 2010, p. 107).
Também nos escritos sobre improvisação, conforme ex-
posto acima, Varley a coloca como processo orgânico e que,
incorporado à técnica, flui no desenvolvimento da criação,
pois é absorvido pelo ator e pode ser repetido, já que é parte
integrante de seu corpo-memória.
O levantamento de circunstâncias para a improvisação
fornece ao ator possibilidades de vivenciar as imagens, que
atuam mediante dois princípios: o primeiro está ligado às
imagens que operam como forças motrizes para a criação, e
o segundo, às imagens conectadas ao processo de memória
do espectador. Nem sempre as motivações de criação serão
as mesmas da recepção, tendo em vista que a ação é também
a relação de impulsos criativos motivos, muitas vezes, desco-
nhecidos por quem aprecia um espetáculo.
Embora o performer seja mediado por diversos estímulos
que se ressignificam durante a atuação, ele precisa de recursos
para acionar as memórias. Elas não são acionadas somente
pela via racional, mas precisam ser interseccionadas pelo cor-
po e agir de maneira psicofísica. Isso pede que busquemos es-

101
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tratégias físicas para evocar imagens, imaginação, sentimen-


tos e emoções. Por isso, colocamos aqui a importância da in-
vestigação corpórea para os estudos genéticos. Havendo essa
investigação, aquele que, porventura, for analisar o processo,
se possível, poderá levar em consideração a metamorfose ins-
taurada no corpo pelo processo do artista da cena. Dessa for-
ma, sua análise não ficará mecanizada somente pelos escritos
do processo nem conduzida apenas pela observação.
O crítico genético pode ser algum interessado em desven-
dar o percurso da criação em um processo posterior quando ela
se “encerra”, mas nem sempre é algum agente externo envolvi-
do com a obra. Estamos dizendo que poderia ser o próprio ar-
tista em processo. Apontamos aqui a possibilidade de conceber
os estudos genéticos como metodologia, visto que o performer
que analisa seu próprio caminho pode propor e entender os
estados de experiências participantes da composição para que
a memória, além da compreensão, possa ser mediadora da ação
cênica. Sugerimos, ainda, que essa análise não necessariamente
aconteça posteriormente, mas que seja feita em processo, de
modo a potencializar os rastros da memória.
Um exemplo dessa apropriação da memória através das
ações percebidas pelo corpo acontece nos estudos sobre as
ações físicas. Compreender os desdobramentos desse modo
de apropriação talvez possa ser uma maneira de localizar e
focalizar eixos existentes para a então proposta arqueologia
do corpo.

As ações físicas como mediadoras dos arquivos do corpo

As ações físicas começam a ser discutidas no legado de


Constantin Stanislavski, levando o ator a perceber que seu

102
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

trabalho com as emoções do personagem não é absoluta-


mente suprido pelas circunstâncias dadas ou pela memória
emotiva. Afinal, os sentimentos não podem ser repetidos pu-
ramente de maneira orgânica, e as emoções não são controlá-
veis, mudando à medida que adquirimos novas experiências.
O primeiro e mais importante dos mes-
tres é o sentimento, que infelizmente
não é manipulável. Como vocês não
podem iniciar o seu trabalho antes
que os seus sentimentos sejam espon-
taneamente motivados, é preciso que
recorram a outro mestre. Quem é esse
segundo mestre? É a mente. Sua mente
pode ser uma força motiva em seu pro-
cesso de criação. Haverá um terceiro?
Se o aparato criador de vocês pudesse
ser estimulado e espiritualmente di-
rigido pelos anseios, teríamos encon-
trado um terceiro mestre – a vontade.
(STANISLAVSKI, 2013, p. 75).
Desta forma, Stanislavski encontra nas ações físicas a
possibilidade de fixação dos elementos interiores do per-
sonagem, visto que nosso corpo é carregado de memórias,
e repetir as ações evoca as emoções geradoras do processo
da cena dramática, como se isso fosse uma espécie de pista
para retomar a essência das matrizes geradoras da criação.
No trabalho de Stanislavski (2013), as ações físicas são ge-
radas em detrimento do texto escrito, ou seja, o ator se co-
loca no lugar do personagem e compõe ancorado em dois
elementos: as circunstâncias dadas pela sua estruturação
dramática e os recursos de seu repertório extrapessoal, po-
rém representando como se aquela situação cênica fosse a
mesma exposta na dramaturgia.

103
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Com o passar dos anos, as ações físicas vão ganhando no-


vas significações e diferentes formas de condução. Suas ma-
trizes geradoras também deixam de se apegar ao texto escrito
para ser conduzidas sob diferentes perspectivas. Vsevolod
Meierhold (1874-1940),4 por exemplo, além do texto escri-
to, utiliza outras formas de manifestações artísticas, como a
música e as artes visuais, para a geração dessas ações. Bertold
Brecht (1898-1956)5 analisa o texto dramático, porém sob o
ponto de vista da contradição, e explica o comportamento do
gesto com base nas distintas classes sociais.
Étienne Decroux (1898-1991), ator e mímico francês,
utiliza o tronco corporal como estímulo à geração de movi-
mento e como potencializador das ações físicas, e Michael
Tchékhov (1891-1955)6 acredita nas qualidades de movi-
mento representadas em verbos de ação para a mesma finali-
dade. Jerzy Grotowski (1933-1999)7 descobre nos impulsos e
no equilíbrio de tensões a possibilidade de criação das ações

4 Vsevolod Emilevich Meyerhold, mais conhecido por Meyerhold ou


Meierhold, foi um grande ator e um dos mais importantes diretores e
teóricos de teatro da primeira metade do século XX. Fez parte do Teatro
de Arte de Moscou.
5 Eugen Bertholt Friedrich Brecht, dramaturgo, poeta e encenador alemão
do século XX, influenciou profundamente o teatro contemporâneo com
seus trabalhos artísticos e teóricos. Tornou-se mundialmente conhecido
com as apresentações de sua companhia, o Berliner Ensemble, realizadas
em Paris durante os anos 1954 e 1955.
6 Mikhail Aleksandrovich, ou Michael Chekhov, foi um ator russo-
-americano, diretor, autor e criador de arte do teatro. Sua técnica de
atuação foi usada por atores como Clint Eastwood, Marilyn Monroe, Yul
Brynner e Robert Stack. Era sobrinho do dramaturgo Anton Chekhov.
Constantin Stanislavski se refere a ele como seu aluno mais brilhante.
7 Jerzy Grotowski, um diretor de teatro polaco, foi uma figura central
no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de
vanguarda.

104
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

físicas, paralelamente a Antonin Artaud (1896-1948),8 que se


concentra no trabalho da respiração. De acordo com Artaud,
se controlada, esta age diretamente na simbologia semiótica
da cena. Entretanto, para Eugenio Barba (2010),9 as ações
físicas podem ser geradas (e inclusive advindas) de bases do
teatro oriental e de diversas possibilidades antropológicas
dramáticas ou não dramáticas.
Em uma análise sobre as variedades de caminhos para se
chegar às ações físicas e ao processo de criação, em sua to-
talidade, é interessante perceber que os teóricos do teatro
supracitados não entendem seu percurso como sendo abso-
luto e, em suas próprias sistematizações de técnicas, fazem
alterações daquilo que foi colocado anteriormente por eles
mesmos, como acontece pontualmente no caso de Constan-
tin Stanislavski. Em sua segunda fase, em que se dedicou ao
estudo das ações físicas, ele mesmo entra em confronto com
suas ideias iniciais da primeira fase, não como negação da-
quilo que foi descoberto anteriormente, mas no entendimen-
to de que o trabalho do ator está em constante processo.
Repensar o legado das ações físicas na composição do ator
significa entrar em confronto com o método em constante
processo e descobrir estratégias para se alcançar a essência do
lugar a que se quer chegar. Essa percepção é individual, mas
se amplia em razão dos pontos de encontro entre cada meto-

8 Antoine Marie Joseph Artaud, conhecido como Antonin Artaud, foi


um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês
de aspirações anarquistas. Ligado fortemente ao surrealismo, acabou
expulso do movimento por ser contrário à filiação ao partido comunista.
Sua obra O teatro e seu duplo é um dos principais escritos sobre a arte do
teatro no século XX, servindo de referência para grandes diretores, como
Peter Brook, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba.
9 Eugenio Barba é pesquisador e diretor de teatro. Foi o fundador do Odin
Teatret, do Theatrum Mundi Ensemble e da International School of
Theatre Anthropology (Ista). Criou o conceito de “antropologia teatral”.

105
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

dologia anteriormente alcançada, localizada no corpo. É um


ponto de interrogação que ressoará em diferentes respostas
de acordo com o processo pessoal do ator-criador.

Referências

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106
Estudos genéticos nas artes da cena: metodologia de criação no rastro da memória

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107
Kundzob: um processo de criação
e meditação em ecoperformance

Elcivan Luciano Lima1

Resumo: O presente texto busca abordar a compreen-


são do ensinamento budista tibetano e as possibilidades de
inserção desse ensinamento no processo de criação de uma
ecoperformance. Desse modo, temos como objetivo propor-
cionar ao performer o desenvolvimento da percepção de si
durante o ato de performar. O conceito de ecoperformance
aqui utilizado parte das experiências artísticas formuladas
por Maura Baiocchi (2013), na Taanteatro Cia. Seguindo
este contexto, o texto insere o uso da mandala energética
da Taanteatro e explora a meditação budista tibetana no
processo de preparação do ator/performer. Assim, propõe-se
desenvolver uma junção da presença contemplativa com as
boditchitas de aspiração e ação baseados nos preceitos tibe-
tanos. Esta prática vem sendo aplicada em estudos particu-
lares de performance, no processo de criação da ecoperforman-
ce Kundzob. De modo mais amplo, parte-se da perspectiva
metodológica baseada na ecosofia de Guattari e na filosofia
budista visando compreender, no processo do trabalho, as
correlações mencionadas entre meditação e performance.
Palavras-chave: performer; processo de criação; medi-
tação; budismo tibetano; ecoperformer.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da


Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor de teatro, ator, diretor,
performer e ecoperfomer.
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

Kundzob: un proceso de creación y meditación en


ecoperformance

Resumen: Este artículo busca abordar las posibilidades


de insertar y compilar referencias a la educación budista
tibetana para processar el cumplimiento ecológico, com el
objetivo de proporcionar un rendimiento o un desempeño
de las percepciones, ya sea durante la formacion. O ecoper-
formance concibe parte de las experiencias artísticas formu-
ladas por Maura Baiocchi (2013) en el Taanteatro Cia. En
este contexto, estudia se el uso del mandala energético de
Taanteatro, así como la meditación tibetana como proceso
de preparación del actor/performer, capaz de reunir en la
presencia contemplativa de la respiración y la acción intro-
dujo preceptos tibetanos. Esta práctica se ha aplicado en
estudios de rendimiento particulares, en el proceso de crea-
ción de Kundzob ecoperformance. En términos más generales,
parte de la perspectiva metodológica a través de la ecosofia
de Guattari y la filosofía budista para comprender, en el pro-
ceso de trabajo, las correlaciones mencionadas entre medi-
tación y performance.
Palabras clave: performer; proceso de creación; meditación;
budismo tibetano; ecoperformer.

O presente texto pretende demonstrar os aspectos iniciais


da pesquisa intitulada Kundzob: um processo de criação em eco-
performance.2 Procura ainda apresentar, em parte, os métodos
e teorias utilizadas para a construção do meu projeto de mes-
trado em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás.
O objetivo do texto (e da referida pesquisa de mestrado)
2 Kundzob é o termo tibetano para verdade relativa. É composto dos
radicais kun, que significa “tudo” ou “muitos”, e dzob, “aquilo que não é
verdadeiro”.

109
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

consiste em abordar as possibilidades de inserção e compreen-


são de referências do ensinamento budista tibetano no pro-
cesso de criação performática, com a finalidade de proporcio-
nar ao performer o desenvolvimento da percepção de si duran-
te o ato de performar.
O conceito de ecoperformance parte das experiências artís-
ticas formuladas por Maura Baiocchi (2013) e registradas no
livro MAE: Mandala da energia corporal na Taanteatro Com-
panhia.3 Além de trabalhar o processo criativo, esse livro
instiga uma abordagem reflexiva para o corpo potente que
anseia pela comunicação. Para Baiocchi, a prática criativa
possibilita a compreensão, o desenvolvimento e o manejo do
corpo como fenômeno energético capaz de concretizar sua
potência criativa. Da prática criativa centrada nessas possi-
bilidades, surge, entre 2009 e 2010, o termo ecoperformance,
no contexto da inauguração de um novo
ciclo de criações da Taanteatro destina-
do à investigação das tensões entre cor-
po, meio ambiente e ancestralidade. A
presença ecopoética e ecoética do perfor-
mer, compreendida enquanto interação e
composição de forças e formas no tem-
po-espaço, desencadeia uma atmosfera
de tensões que configura, por sua vez,
um processo ambiental com as mesmas
características da sua presença. Uma
ecoperformance se efetua em paisagens
naturais ou urbanas e pode, entre outras
possibilidades, homenagear ou reafirmar
a interconexão do ser humano-meio am-
biente, alertar para a conscientização do

3 A Taanteatro Companhia, fundada em 1991, em São Paulo, colabora


para a evolução das artes cênicas contemporâneas por meio de processos
criativos, reflexivos e didáticos.

110
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

impacto de certas ações humanas noci-


vas a esse meio e, consequentemente, ser
um veículo de denúncia. (BAIOCCHI;
PANNEK, 2018, p. 90).
O uso da prática MAE: mandala de energia corporal da
Taanteatro, como se vê, incentiva o performer a reconhecer a
interação entre a energia do ambiente e a presença do corpo,
a interconexão desse corpo com o meio ambiente e a ances-
tralidade. A prática ainda desenvolve um guia denominado
“pentamuscular”, o Taanteatro: MAE: Mandala de energia corpo-
ral, que visa a construção de uma anatomia afetiva do per-
former na criação de presenças cênicas e performances. O guia
oferece técnicas através das quais o performer consegue inte-
grar todos os aspectos da cena e da vida ao seu corpo. Essas
técnicas despertam a atenção dele para uma visão estendi-
da de seu próprio corpo, podendo ser compreendidas como
“ecorporalidade”. Com base nesse guia, entende-se que
o termo musculatura transfere tudo –
inclusive o espiritual e ideal – para a
esfera da ação, alertando para a possi-
bilidade de tonificação de nossas facul-
dades mentais, da mesma maneira que
fazemos com as estruturas mais densas
do corpo, por meio de alongamentos,
flexibilizações, respirações etc. Como
musculaturas, classificam-se elementos
bastante heterogêneos – de um objeto
de cena ao mistério Absoluto – [que
têm] em comum a relação com a cena
e o mundo do performer. Qualquer obje-
to ou sujeito de cena pertence, simul-
taneamente, a musculatura distinta e é
sujeito à transformação de significado.
Ao conceber o corpo do performer como
um meio ambiente, incorporam-se a ele

111
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

outras formas de vida que, por sua vez,


o incorporam. (BAIOCCHI; PANNEK,
2018, p. 28).
A prática da ecorporalidade busca chamar a atenção para a
tonificação dos músculos, ossos, ligamentos, tendões, órgãos,
veias, artérias, células etc. e para o processo de sensibilização,
dando ênfase aos sentimentos, emoção, pensamento, razão,
memória, intuição, imaginação e sonhos. Para isso, a criação
artística se pauta na inserção da meditação budista tibetana
objetivando acalmar a mente e desenvolver a inteligência de
reconhecer o mundo interno. O sentido da prática referida
consiste em liberar processos automáticos e incentivar os
significados que produzem energia interna na preparação do
ator/performer.
A junção com a filosofia budista denominada boditchita é
clara, pois esta tem a mesma intenção de encorajamento me-
diante a busca da cura e da transformação de nossas próprias
ações. A filosofia parte de preceitos budistas tibetanos e pos-
sui duas vertentes, uma ligada ao bem-estar dos outros seres
ou à compaixão e a outra ligada à sabedoria. Pema Chodrön
(2019) descreve o termo boditchita da seguinte forma:
Chitta significa “mente” e também “co-
ração” ou “atitude”. Bodhi significa “des-
perto”, “iluminado” ou “completamente
aberto”. Em alguns momentos, a mente
e o coração completamente abertos de
Bodhicita são chamados de ponto fraco,
um lugar tão vulnerável e terno como
uma ferida aberta. Ele está relacionado,
em parte, à nossa habilidade de amar.
Nessa perspectiva, o pressuposto deste trabalho é o de que
a performance, bem como a prática meditativa, precisa se in-
serir como experiência de vida. Ela deve estar associada com

112
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

nossas habilidades corporais, que se libertam através da dis-


ciplina, do bem-estar e da capacidade inata de despertar a
consciência. Chodrön (2019) afirma que
mesmo pessoas comuns como nós, com
nossas neuroses e confusões, possuem
essa mente da iluminação chamada Bo-
dhicita. A abertura e o calor de Bodhici-
ta é, de fato, a nossa verdadeira natureza
e condição.
Como observa Lama Santem (2010), a experiência do que
vemos é inseparável de nossas estruturas internas. Sempre que
temos uma experiência com objetos, nosso papel de obser-
vadores está presente. Nossa mente vê os objetos conforme
suas noções internas, e a partir daí nos relacionamos com o
mundo atribuindo significados e funções a tudo, inclusive
tendo sensações de gostar, não gostar ou ser indiferente. Con-
tudo, são as mudanças na estrutura interna que provocam
modificações nos objetos que vemos e nas sensações, sejam
elas agradáveis ou desagradáveis ou mesmo de indiferença.
Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002), ao descrever
as etapas para o treinamento da meditação, afirma que a
boditchita é uma prática meditativa que busca reduzir e puri-
ficar a negatividade dos pensamentos e ações, estimulando
qualidades positivas em todos os aspectos por meio da prá-
tica das “seis perfeições”: a generosidade, a disciplina moral,
a paciência, a diligência, a concentração e o conhecimento
transcendente (RINPOCHE, 2010).
Esta prática vem sendo aplicada em meus estudos sobre
performance e tem influenciado no processo de criação da
ecoperformance Kundzob e no engajamento de forma ativa, ou
seja, nas experiências que se situam além da cultura do entre-
tenimento e do consumo. A capacidade de atribuir diferentes

113
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

significados às coisas pode ser observada no desenvolvimen-


to artístico atual, representado, por exemplo, pelo ator/perfor-
mer, e busca referências em companhias como a Taanteatro.
Tais experiências têm como base a contemplação na
arte da performance e na sua relação com os elementos das
práticas teatrais dos atores, atrizes e artistas performativos
contemporâneos, que buscam permanentemente por proje-
tos de intersecção entre arte, tecnologia, meio ambiente e
meditação, visando novos experimentos que favoreçam seus
processos criativos.
O processo de criação da ecoperformance Kundzob tem a in-
tenção de buscar elementos da arte sob a perspectiva da cone-
xão profunda de pertencimento a um planeta, uma natureza
e uma família de forma universal. Essa prática procura expe-
rimentar vivências livres de conceitos, de opiniões e de nosso
usual apego, como pode ser observado nas Figuras 1, 2, 3 e 4.
Figura 1 - Luciano Luc desenvolvendo seu estudo MAE: Mandala
da energia corporal: meditação em prática criativa de conscientização,
energização e tonificação

Fotografia: Flávia Honorato (Canto Guardian/Pirenópolis-Goiás, 2020).

114
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

Figura 2 - Luciano Luc desenvolvendo sua pesquisa MAE: Mandala da


energia corporal, processo e desenvolvimento da musculatura interna, da
musculatura transparente e da meditação para a composição cênica

Fotografia: Luciano Luc (Canto Guardian/Pirenópolis-Goiás, 2019).

Na arte, sob o prisma da conexão com o planeta, as re-


flexões para a composição do corpo cênico aproximam os
aspectos que vão desde os elementos propiciatórios de um
bom desempenho na ação cênica até os procedimentos inves-
tigados pelas percepções humanas e integrais do artista como
integrante da natureza e como humanidade. Entre esses pro-
cedimentos, Oida (2007, p. 65) ressalta a “calma interior”:
O que se quer dizer exatamente com
“calma interior”? Que não se está prisio-
neiro de emoções turbulentas. Dentro
está vazio; nada nos incomoda. Entre-
tanto, essa “calma” não é morte do sen-
timento ou um estado rígido de “tran-
quilidade” imutável, mas uma pronti-
dão fluida que nos permite responder
às mudanças do mundo à nossa volta.

115
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Se já estivermos tomados por uma forte


emoção, é como se isso nos ocupasse to-
talmente. Não há espaço para nenhuma
outra sensação ou sentimento. Estamos
prisioneiros daquele sentimento. Por
exemplo, se estivermos dominados pela
raiva, é impossível que surja espontanea-
mente qualquer outra emoção; nada
poderá mudar. Então precisamos jogar
a raiva fora para poder criar um espaço
vazio em nossa mente. E, uma vez que
tenhamos aberto este espaço, teremos
a liberdade de reagir e de responder ao
que vier no aqui-e-agora.4
Com base nessas questões, podemos acreditar que a expe-
riência individual do corpo do performer possui a consciência
criativa que interage com a sua própria natureza. Assim, cria-
-se um processo-presença e de vivência para a exploração e
a produção subjetivas, que podem ser trabalhadas em suas
percepções corporais. Essa análise estimula a pesquisa do
trabalho performativo que estou desenvolvendo numa expe-
riência ecológica. Na pesquisa referida, busco associar o cor-
po a um lugar mais amplo, sob a percepção de que somos se-
res em rede. Essa relação de interdependência com o planeta
nos oferece a possibilidade de tomar decisões sobre a forma
como conduzimos nossas atitudes e nossas vidas, reconhe-
cendo os impulsos e o cotidiano consumista que degradam o
meio ambiente. Como afirma Guattari (2012, p. 9),

4 Esse trabalho interior de autopercepção, inspirado nas práticas


meditativas do Oriente, não é exclusivo no território das performances ou
da ecoperformance. A dança butô e outras experiências entre fronteiras da
cena também têm sido absorvidas pelo teatro contemporâneo. É assim
que identificamos as observações de um diretor de teatro como Yoshi
Oida, que exerceu e exerce a função de preparador corporal na companhia
do inglês Peter Brook.

116
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

não haverá verdadeira resposta à crise


ecológica a não ser em escala planetá-
ria e com a condição de que se opere
uma autêntica revolução política, social
e cultural reorientando os objetivos de
produção de bens materiais e imateriais.
Essa revolução deverá concernir, por-
tanto, não só à relação de forças visíveis
em grande escala, mas também aos do-
mínios moleculares de sensibilidade, de
inteligência e de desejo. Uma finalidade
do trabalho social regulada de maneira
unívoca por uma economia de lucro e
por relações de poder só pode, no mo-
mento, levar a dramáticos impasses.
Figura 3 - Luciano Luc desenvolvendo sua pesquisa MAE: Mandala
da energia corporal, laboratório de meditação ativa e de produção de
acontecimentos estético-comunicativos para a ecoperformance Kundzob

Fotografia: Luciano Luc (Canto Guardian/Pirenópolis-Goiás, 2019).

117
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 4 - Luciano Luc desenvolvendo sua pesquisa em laboratório


PEM: Pentamusculatura como um guia para uma anatomia afetiva e
ampliada para a ecoperformance Kundzob

Fotografia: Júlia Pascali (Canto Guardian/Pirenópolis-Goiás, 2019).

O conceito de ecosofia, criado pelo filósofo francês Félix


Guattari, engloba as formas como os sujeitos compartilham
entre si e com o meio ambiente. Acredita-se que com a eco-
sofia é possível abranger as relações entre a natureza e os seres
humanos que pertencem ao mesmo ecossistema em comuni-
cabilidade, o que mostra a ligação entre a filosofia e o meio
ambiente.
Guattari (2012) afirma que as condutas individuais e cole-
tivas da vida humana têm desenvolvido um ciclo de intensos
agravamentos em nosso planeta terra. As questões ambien-
tais da atualidade são consequências de comportamentos
humanos decorrentes de uma consciência que desequilibra
o futuro ecológico. Assim, recorre-se aqui à expressão argu-
mentativa ecosófica indagada pelo pensador francês Félix
Guattari, que buscou estabelecer de forma coerente a impor-

118
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

tância de conceituar os aspectos cultural e natural, como a


natureza, o meio ambiente e o ser humano.
De acordo com Guattari (2012), a ecosofia manifesta um
entendimento do meio em que existimos e da forma como o
compreendemos e como comportamos em relação ao conjun-
to de problemas ambientais. O autor se refere a esse conjunto
por meio de três registros ecológicos: o do meio ambiente,
o das relações sociais e o da subjetividade humana (mental).
A ecosofia social consistirá, portanto,
em desenvolver práticas específicas que
tendam a modificar e a reinventar ma-
neiras de ser. Elas influenciarão a vida
de um casal, da família e no contexto
urbano, como o trabalho, o consumo etc.
A questão será literalmente reconstruir
o conjunto de modalidades do ser-em-
-grupo. E não somente por intervenções
“comunicacionais”, mas também por
mutações existenciais que dizem respei-
to à essência da subjetividade. (p. 15-16).
O conceito ecosófico fundamenta-se em alertar para a si-
tuação em que se encontra o ser humano no meio ambiente
como resultado da dispersão do ser consciente. Essa conduta
dispersa, que vem se desenrolando no decurso das gerações,
promove relevantes desequilíbrios ecológicos cujas repercus-
sões são o caos contemporâneo e a preocupação em eviden-
ciar tais condutas do ser humano na atualidade.
A ecosofia mental, por sua vez, nos instiga a reinventar a
relação do sujeito com o corpo, com o fantasma, com o tempo
que passa, com os mistérios da vida e da morte. Ela nos leva a
procurar antídotos para combater a uniformização midiática
e telemática, o conformismo das modas e as manipulações da
opinião pela publicidade, pelas sondagens etc.

119
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O desrespeito às leis ambientais tem como consequência o


avanço da sociedade materialista, que reduz a subjetividade do
ser humano. Essa subjetividade consiste na percepção de exis-
tência no mundo em que se vive e na relação com nós mesmos.
O que está em questão na ecosofia de Guattari é a consciên-
cia humana, pois, para viver de agora em diante neste planeta,
deveremos atentar-nos às circunstâncias velozes das mutações
tecno-científicas e ao considerável crescimento demográfico.
À semelhança de outros estudiosos, Guattari defende que
as coisas que se apresentam à consciência dependem da me-
mória, imaginação, experiência e desejo. Sua teoria esclarece
que o maior dano à natureza e à humanidade vem da nos-
sa própria mente agressiva. O planeta Terra vive atualmente
um período de intensas transformações diante de um cenário
ambiental em desequilíbrio ecológico: nuvens de fumaça, rios
poluídos, plantações pulverizadas, espécies de flora e fauna
sendo extintas em virtude da destruição de seus ecossistemas.
Tendo em vista a ecologia e as questões
climáticas que estão hoje no centro das
preocupações internacionais, há artis-
tas que têm se envolvido com trabalhos
que exploram uma noção expandida da
ecologia em tempos de emergência. A
expansão no conceito de ecologia vem
dos três tipos de ecologia desenvolvi-
dos na ecosofia de Guattari: o ambien-
te, as relações sociais e a subjetividade.
A ecosofia de Guattari não envolve as
costumeiras divisões entre natureza e
cultura, natureza e homem, espécie hu-
mana e espécies não humanas. Em lugar
disso, o autor lida com diversos aspectos
do pensamento e da ação ecológica – o
ambiental, o mental, o social, o político.
(SANTAELLA, 2012, p. 75).

120
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

Esse cenário nos leva a analisar que, aprendendo a nos re-


lacionar conosco primeiramente, e depois com o mundo sob
a percepção de unidade e humanidade, teremos a capacidade
de despertar em nós a empatia e o amor por tudo que nos
cerca. Para isso, crê-se que “existem métodos formais e in-
formais que nos ajudam a cultivar essa valentia e bondade”
(CHODRÖN, 2019).
Nesse contexto, busco desenvolver, com base no Kundzob,
práticas e vivências artísticas através das quais o ator/perfor-
mer possa cultivar as relações com sua consciência a fim de
despertar o cuidado com as escolhas. Isso porque são as esco-
lhas que permeiam uma experiência ética que só será signifi-
cativa se estiver em conexão com o corpo, o espaço e a visão
integrada entre as partes e o todo. Afinal, a própria arte,
por seu lado, não assina compromis-
sos diretos com o real. Ela nasce e se
realiza por força dos apelos indomá-
veis do imaginário e seu discurso, em
quaisquer dos sistemas de signos com
que trabalhe – verbal, visual, sonoro e
todas as suas misturas –, alimenta-se
do impreciso, do incerto, do incindível.
(SANTAELLA, 2012, p. 73).
A percepção do corpo do ator/performer no mundo coti-
diano interliga-se ao conceito romantizado da própria ideia
de natureza e seu processo de produções de sentido. Assim,
busca-se desenvolver uma prática permeada de significados
que desconstruam formas congeladas de se enxergar o mun-
do. Essas ações performáticas tentam encorajar o performer a
engajar-se como elaborador de mudanças, e suas próprias vi-
sões de mundo podem influenciar o público que ele atinge.
Nessa tarefa, o espaço da natureza é seu objeto, e o corpo,
o seu universo. Neles se inscrevem inúmeras informações e

121
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

expressões de sua realidade. Esse espaço se constrói através


da junção entre arte performática e processo de investigação
como exercício de reflexão. Por meio da experiência prática
do performer no ato de meditar, tem-se a percepção da tota-
lidade de ser humano e artista. Isso ocorre em razão de sua
atuação cênica ser feita individualmente, na natureza ou no
ambiente urbano, sob a perspectiva de uma totalidade.
Nessa prática de processo criativo, a relação entre a “ecoéti-
ca” e a “ecopoética”5 de Guattari (2009) parte de uma experiên-
cia para chegar a uma forma de escuta sensível que ocorre,
primeiramente, com os impulsos do corpo e da mente, e, pos-
teriormente, com o ambiente externo. Esta maneira de tra-
balhar exige do performer uma definição de abordagem capaz
de compreender a profundidade que envolve a sua totalida-
de psicofísica, criando novas possibilidades de percepção do
mundo ao redor e de sua contextualização no espaço/tempo
com o corpo potencializado em ação cênica.
Na prática do Kundzob, o uso da mandala de energia cor-
poral no processo criativo-reflexivo da ecoperformance, bem
como a meditação budista tibetana, faz parte do processo de
preparação para o ecoperformer. O método proposto incentiva a
junção entre a presença contemplativa e a vontade de tensão,
que significa a vontade de existir em contato com as diferenças.
A capacidade de afirmar o potencial transformador resultante
do contato com o ambiente externo e com o corpo durante
o acontecimento performativo vai abrindo inúmeras possibili-
dades de movimento e comunicação com esse ambiente.

5 Esses conceitos filosóficos, desenvolvidos por Guatari na década de


1960, ampliam a concepção de ética como a forma de agir do homem
em seu meio social, pois se referem também à sua maneira de agir em
relação à natureza. Eles consideram que a conservação da vida humana
está intrinsecamente ligada à conservação da vida de todos os seres
(GUATARI, 2009).

122
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

Podemos dizer, então, que a reflexão sobre a ecoética apli-


cada à performance busca entender como o comportamento
humano interfere no ambiente natural. A forma como nos
relacionamos com a natureza pode servir para a composição
cênica de alerta, tornando-se o próprio corpo um veículo
para despertar mudanças.
A produção de pesquisa na área de
teatro representa, pois, um esforço no
sentido de redimensionar o fenômeno
do espetáculo em suas mais variadas
manifestações, no contexto da contem-
poraneidade. Isto implica a reinvenção
permanente de seus significados e abre
o campo de pesquisa para novos lugares
do fenômeno teatral, considerado como
elemento fundamental na definição
dos processos de construção cultural.
(CARREIRA; CABRAL, 2006, p. 13).
A criação de um processo de performance em contato com a
natureza pode ocorrer na área urbana ou natural. A intenção
é estabelecer no processo artístico uma forma de advertir
o público da necessidade de atitudes conscientes que per-
meiem nossas práticas cotidianas e nossas visões de mundo.
Assim, minha atitude diante do pro-
cesso de criação, estudo-vivência, é a de
conhecê-lo, não para explicá-lo, neces-
sariamente. Estudo-o e conheço-o para
perceber o que ele me possibilita como
ser humano (estético também). E, des-
se modo, sinto-me potencializada na
sensorialidade (emocionalidade e ato),
na linguagem artística e na convivência
com o outro, já que o teatro me propi-
cia o encontro humano. Também, para
não fugir de certo modo de atividade

123
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

de pesquisa, digo que o conhecimento


pode relatar minha realidade criadora
dizendo das transformações de minha
corporalidade/emocionalidade no per-
curso, enfatizando a importância das
interações com os outros parceiros de
vivência e, também, com o meio. (BRA-
GA, 2006, p. 78).
De acordo com a revista Bodisatava (2019), mestres e pra-
ticantes budistas têm se unido para responder à pergunta:
o que a tradição budista tibetana, calcada na contemplação
da interdependência e na prática da compaixão por todos os
seres conscientes, pode oferecer para um mundo em crise?
De acordo com essa publicação, a emissão de gás carbônico,
a cultura do consumo e a superpopulação se alimentam mu-
tuamente, desequilibrando a biosfera. E a raiz do sofrimento
humano são a ganância, a agressão e a desilusão (apego, raiva
e ignorância).
A ecofilósofa budista Joanna Macy (2019) usa o termo
“a grande virada” para descrever uma mudança de visão su-
ficientemente poderosa para nos fazer passar de uma socie-
dade baseada no crescimento industrial e no consumo a uma
sociedade que sustenta e promove a vida; a uma sociedade
em que haja compaixão e a percepção de que somos seres em
rede, de que temos uma relação de interdependência direta
com o planeta; em que, ao tomar decisões sobre a forma de
conduzir nossa própria vida, reconheçamos honestamente
nossos impulsos consumistas e escolhas cotidianas que de-
gradam o meio ambiente.
A experiência budista em conjunto com o processo criativo
combina pensamentos e ideias que estimulam a transformar
o que já existe numa possibilidade de escolhas daquilo que se
julga útil. A união dessa filosofia com a arte pode nos ajudar

124
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

a descobrir algo que criativamente nos faça avançar em nossa


relação com o meio ambiente e que seja apontado pela pró-
pria ciência como promessa de reversão da crise ecológica. A
investigação do ser criativo surge quando saímos do caminho
de menor resistência para tentar alguma coisa que faça parte
desse aprendizado. Plaza (1997, p. 22) reflete que, se queremos
conhecer o ser da coisa, temos de investigar e não podemos
abandonar as nossas percepções. E mais, temos de começar
pela humilde tarefa de entender o significado da palavra Ser.
Desse modo, o artista precisa cultivar constantemente a
criatividade na elaboração da pesquisa em processo criativo,
comparando a criação científica e a artística para o ato cria-
dor comum e trabalhando de todos os pontos de vista pos-
síveis os elementos necessários de seu objeto. Não importa
quanto tempo é possível sustentar o olhar através do qual se
compreende um objeto: por mais curto que seja tal instante,
quando começa a praticar essa visão, o artista é introduzido à
capacidade de diferenciar um conhecimento teórico e a com-
preensão da realidade criativa de um performer. É impelido a
transformar a solidez das formas.
A mandala da energia corporal como prática de cons-
cientização, energização, tonificação e expansão da presença
cênica e ainda como prática da meditação budista tibetana,
motiva, pacifica, enriquece e provoca inúmeras formas e va-
zios. Nessa perspectiva, a arte performática busca promover
um potencial para atrair e mobilizar, na constituição do ator/
performer, a comunicação estética do processo performati-
vo. Isso se torna viável à medida que os artistas performáti-
cos compreendem na cultura e na realidade as habilidades
técnicas, estéticas e de linguagem e são capazes de agir artis-
ticamente para intervir no mundo e oferecer a ele o que mais
for necessário.

125
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Referências

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Fernando; FARIAS, Sérgio Coelho (org.). Metodologias de pesquisa
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dré; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FARIAS, Sérgio
Coelho (org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janei-
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Trad. Alessandra Granato. Bodsatva, ano 30, 2019. Disponível em:
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GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F.
Bittencourt. 20. ed. Campinas: Papirus, 2009. 56p.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F.
Bittencourt. Revisão da tradução Suely Rolnik. 21. ed. Campinas,
SP: Papirus, 2012.
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v. 6, n. 1, p. 21-32, jul.-dez. 1997.
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Vidal e Cândida Bastos. 5. ed. ampliada e revisada. Três Coroas:
Makara, 2010.

126
Kundzob: um processo de criação e meditação em ecoperformance

SANTAELLA, Lucia. A relevância da arte-ciência na contempora-


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SANTEM, Lama Padma. A roda da vida: como caminho para a luci-
dez. São Paulo: Peirópolis, 2010.
BUDISMO e transformação de mundo: o tempo da grande vira-
da: uma visão budista para reverter o colapso ambiental. Bodisatva,
ano 20, n. 31, outono 2019.

127
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira:
uma análise do fazer artístico

Joisy Palmira de Amorim1


Valéria Maria Chaves de Figueiredo2

Resumo: Esta pesquisa pretende refletir criticamente


sobre a construção dramatúrgica na dança contemporânea,
através das discussões que emergem da relação entre o co-
reógrafo e seu fazer artístico, no universo dos modos de es-
truturação e composição de espetáculo. Nesse âmbito, serão
investigados os conceitos de coreografia e de dramaturgia,
bem como a relação entre eles no processo da composição de
espetáculos. Foram escolhidos dois coreógrafos: Suely Ma-
chado, do Grupo de Dança Primeiro Ato, Belo Horizonte,
MG, e Alejandro Ahmed, do Grupo Cena 11, Florianópolis,
SC, ambos atuantes na cena brasileira há mais de vinte anos.
Tendo em vista a complexidade da temática abordada e dos
aspectos subjetivos presentes em cada história particular,
optou-se por escolher um caminho metodológico dialógico
e dialético, pesquisando os sujeitos em suas singularidades

1 É mestranda em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás


(UFG). Possui graduação em Educação Física e especialização em
Docência Superior pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), e
residência em Dança no Núcleo Coreográfico do Sesi-Goiás, em parceria
com a Universidade Federal de Goiás. É professora de dança da Secretaria
da Educação do Estado de Goiás. Integra o Laboratório de Pesquisa
Interdisciplinar em Artes da Cena (Lapiac) da Faculdade de Educação
Física e Dança (FEFD-UFG).
2 É doutora em Educação pela Faculdade de Educação-Unicamp e
mestra em Artes pelo Instituto de Artes-Unicamp. Possui graduação em
Educação Física pela FEFD-UFG. É professora associada da Emac e da
FEFD-UFG e coordenadora do Grupo de Pesquisa Lapiac.
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

e em diferentes contextos. Ao final, pretende-se identificar


uma possível metodologia que embase e sustente as práticas
dramatúrgica e coreográfica na dança contemporânea como
pesquisa científica em artes da cena.
Palavras-chave: coreografia; dramaturgia; metodologia.

The dramaturgy of dance in a brazilian scene:


an analysis of artistic making

Abstract: This research aims to critically reflect on


the dramaturgical construction in contemporary dance,
through the discussions that emerge from the relationship
between the choreographer and his artistic work, in the uni-
verse of the structuring and composition of the show. In
this context, the concepts of choreography and dramaturgy
will be investigated, as well as their interconnection in the
process of artistic making in contemporary dance. Two cho-
reographers were chosen: Suely Machado, of the First Act
Dance Group, Belo Horizonte, MG, and Alejandro Ahmed,
of the Scene 11 Group, Florianópolis, SC, who have perfor-
med in the Brazilian scene for over twenty years. Given the
complexity of the thematic approached and the subjective
aspects present in each particular story, we chose a dialo-
gical and dialectical methodological way, researching the
subjects in their singularities and in different contexts. In
the end, it is intended to identify a possible methodology
that supports and sustains the dramaturgical and choreo-
graphic practice in contemporary dance as a scientific re-
search in performing arts.
Keywords: choreography; dramaturgy; methodology.

129
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Entre muitas dramaturgias

A palavra dramaturgia é originária do grego e tem como


significado compor um drama. Durante muito tempo, o
conceito de dramaturgia esteve ligado unicamente ao texto
teatral. A partir da década de 1980, houve uma expansão dos
limites do termo para além das já conhecidas demarcações,
tirando-o da esfera exclusiva da prática teatral. Essa expan-
são dos domínios do termo causou várias inquietações e tem
transformado a compreensão do comportamento cênico nas
mais diversas tradições. Da mesma forma, o conceito de dra-
maturgia vem sendo modificado pelos comportamentos e
necessidades cênicas atuais.
Segundo o Dicionário etimológico da língua portuguesa, a pa-
lavra dramaturgia, surgida em 1873, significa, no grego, “com-
posição ou representação de um drama” (CUNHA, 2007,
p. 278), e, em sua gênese, foi vinculada exclusivamente às prá-
ticas do ator na interpretação de textos teatrais. Desse modo,
a dramaturgia de um espetáculo estava pautada pelo texto
selecionado para criação, que se amarrava ao conflito estabe-
lecido em cena e ao modo como ele se desdobrava. No entan-
to, no campo da dança, desde o século XVIII, apontam-se o
nome de Noverre e sua proposta do balé de ação como práti-
cas de implementação do que seria a dramaturgia na dança.
Ao longo dos anos, o conceito de dramaturgia foi toman-
do outras proporções à medida que a dança se apropriava da
palavra em seus processos criativos. Em 1980, com a insti-
tuição da profissão de dramaturgo de dança, na Bélgica, as
dúvidas, as polêmicas e os questionamentos acerca do que
seria dramaturgia na dança se disseminaram. Nitidamente,
este se torna mais um conceito incerto, que, talvez por seu
próprio caráter processual, não tenha como propósito fechar-

130
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

-se em uma definição específica. Estaríamos compreendendo


o corpo como texto e realizando uma transferência do termo
diretamente do texto teatral, verbalizado, para o texto que se
depreende do corpo e do movimento? Essa é uma das possi-
bilidades, no entanto as discussões acerca da dramaturgia na
dança passam por entendimentos diversos e se estabelecem
em uma ordem ainda mais complexa.
Assim, desde o início dos anos 90, vem acontecendo uma
expansão dos limites da dramaturgia para além dos já conhe-
cidos enquadramentos em que este termo se aplica. Atual-
mente, a dramaturgia é um dos mais importantes temas da
arte contemporânea, pois se fala não apenas da dramaturgia
do texto teatral, mas também da dramaturgia do corpo, dra-
maturgia da memória, dramaturgia da dança e dramaturgia
do espetáculo. Do dossiê sobre dança e dramaturgia, publi-
cado em 1997 pela revista belga Nouvelles de Danse, podem-
-se subtrair várias definições para conceituar o que seria uma
dramaturgia no terreno da dança.
A dramaturgia da dança seria a base de
toda criação artística; uma rota para es-
truturação do trabalho do corpo no es-
paço, no tempo e na percepção; o ato de
fazer nascer o espaço poético da ligação,
imperceptível e oscilante, entre a super-
fície do corpo, no espaço real do teatro,
[e] o espaço mental do espectador; aqui-
lo que cria uma arquitetura invisível.
(MUNDIM, 2014, p. 50-51).
Outra concepção que vem sofrendo constantes transfor-
mações atualmente é a de coreografia. Segundo Paulo Paixão
(2003), a “ideia de coreografia reincide o entendimento dela
como um modelo dado, fixo, e principalmente reproduzível”,
no entanto, o autor entende que as novas formas de pensar e

131
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

desenvolver processos coreográficos estão propiciando mu-


danças conceituais. Hoje em dia, a coreografia não é mais
entendida apenas como uma sequência fixa de movimentos
preestabelecidos no tempo/espaço, mas como uma estrutura
multidimensional, que organiza corpos vivos ou não vivos no
território real ou virtual. Contudo, além de resguardar o con-
ceito tradicional, as discussões acerca do termo coreografia
na dança passam por entendimentos diversos e se estabele-
cem numa ordem ainda mais complexa, desembocando num
universo múltiplo, diverso e plural de possibilidades. Segun-
do Juliana Moraes (2019, p. 367-368),
reduzir coreografia a uma definição
única é não compreender o mais crucial
de seus mecanismos: resistir e reformar
concepções anteriores de sua definição.
Entretanto, por mais que seja elusivo e
instável, compreender algumas das mu-
danças do conceito de coreografia pode
auxiliar no entendimento do que vem
sendo produzido atualmente. [...] co-
reografia na contemporaneidade pode
ser entendida como a estrutura de co-
nexões entre diferentes estados corpo-
rais que figuram em uma dança e dela
fazem emergir seus nexos e sentidos.

Inquietações de uma investigação em processo

Buscamos apresentar aqui uma possível metodologia de


pesquisa que permita investigar a construção da dramaturgia
na dança contemporânea através das discussões que emer-
gem da relação entre o coreógrafo e seu fazer artístico, no
extenso universo de modos de estruturação e composição

132
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

do espetáculo (coreografia). Pensar e definir pesquisas em ar-


tes não é uma tarefa fácil; ao contrário, perpassa diferentes
questões, mas sobretudo se baseia em explorações que acon-
tecem no campo das artes. Trata-se da vontade de responder
perguntas e inquietações, com o objetivo de trazer algo novo
ao mundo. Para isso, o artista faz da curiosidade e dos desa-
fios de possíveis descobertas o ponto de partida para iniciar
qualquer processo de pesquisa. Nesse ponto, ele age como um
cientista, embora ambos se diferenciem claramente nas esco-
lhas metodológicas utilizadas para aprofundar suas análises.
Enquanto o cientista aprofunda verticalmente o estudo
em determinado foco, o artista trabalha com uma maior di-
latação e subjetividade em seu processo de investigação. E os
resultados se distanciam trilhando caminhos opostos: o tra-
balho final do cientista é trazer à sociedade uma conclusão
clara, objetiva e exata, definindo a verdade sobre o objeto es-
tudado; em oposição a isso, a obra produzida pelo artista bus-
ca um resultado altamente subjetivo e que traga diferentes
interpretações. Afinal, ele não tem nenhuma obrigação com
a verdade ou com a objetividade, mas sim com uma sensibi-
lidade poética que gere diferentes interpretações e resultados
improváveis. Nas palavras de Julio Plaza (1997, p. 24),
comparando a criação científica e a ar-
tística, observamos que na origem do
ato criador o cientista não se diferencia
do artista, apenas trabalham materiais
diferentes do universo. Ciência e arte
têm uma origem comum, na abdução ou
na capacidade para formular hipóteses,
imagens, ideias, na colocação de proble-
mas e nos métodos infralógicos, mas é
no seu desempenho e performance que se
distanciam enormemente como nos pro-
cessos mentais de análise e síntese.

133
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Consequentemente, tanto o cientista quanto o artista par-


tem da intuição para motivar a escolha do objeto estudado.
No entanto esta intuição, que precisa ser ouvida, é apenas o
começo de qualquer processo, pois, para que o trabalho se
torne coeso e potente, o pesquisador deve aliar intuição e
fundamentação teórica. Para construir uma pesquisa rica e
provocativamente encantadora, ele tem de se enamorar do
objeto estudado como uma criança curiosa que dá seus pri-
meiros passos no mundo das descobertas que é a vida.
Apesar de o artista e o cientista se aproximarem bastante
em sua motivação inicial para descobrir algo novo que modifi-
que a vida das pessoas, o resultado de seus trabalhos é bastan-
te distinto. Os cientistas procuram resultados precisos, racio-
nais, que eles possam provar de forma bem cartesiana. Assim
os métodos utilizados por eles geralmente são rígidos, exatos
e bem-definidos. Talvez por isso, a ciência esteja tão distante
da poesia, pois ela castra o imaginário humano na busca da
realidade com o objetivo de colher as respostas esperadas.
Por seu lado, a arte busca outros fins. Os resultados da pes-
quisa artística procuram estabelecer conexões com diferentes
pessoas e despertar nelas uma pluralidade de verdades. As
interpretações se dão de acordo com suas experiências. Não
há ausência de pensamento poético no desenvolvimento da
investigação, ao mesmo tempo que esta não ocorre sem me-
todologias de pesquisa. Olhando por esta perspectiva, fica
notório o distanciamento entre ciência e arte. Contudo
o importante é o risco. Mas o pesqui-
sador é um pesquisador, etc. E o artis-
ta, seria necessário dizer em alto e bom
som, não é um pesquisador. Mas, di-
zendo com toda humildade, um desco-
bridor, [um] “Trovador”. O descobridor
não é apenas aquele que descobre, mas

134
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

também aquele que emprega figuras de


palavras (maneira, estilo). [...] Basta “en-
contrar” os trovadores para imaginar as
coisas. (PEYRET, 2012, p. 38).
Quando se pensa em desenvolver pesquisas em artes no
campo, primeiro se questiona o modo de abordar criadores,
seus processos e seus produtos. Assim é necessário desenvol-
ver uma organização prévia, estabelecendo um caminho que
conduza e direcione a investigação. Nessa direção, progra-
mam-se etapas a serem cumpridas para facilitar e clarear os
objetivos que se queira alcançar. No entanto, o pesquisador
deve ser aberto a mudanças, tendo em vista que nem sempre
o que se planeja é o que acontece. Geralmente as pesquisas
em artes tendem a tomar novas direções ao longo do percurso,
pois, com o passar do tempo, até os artistas responsáveis por
elas, se for o caso, podem mudar. Assim é necessário, às vezes,
abandonar uma metodologia escolhida previamente, ou cru-
zá-la com outra, ou utilizar outras ferramentas metodológicas.
Esses processos e objetivos comuns tor-
nam clara a necessidade de uma organi-
zação prévia para alcançar o objetivo e
objeto de estudo. Essa organização prévia
que irá se transformar algumas ou inú-
meras vezes – ou mesmo ser abandonada
– no percurso da pesquisa é o método, o
caminho pelo qual se atinge o objetivo.
(VILLAR; COSTA, 2006, p. 132).
Portanto o estudo dos conceitos que fundamentam a
pesquisa torna o caminho mais claro e possível, permitindo
tensionar e questionar qualquer objeto. O contexto em que
a pesquisa está inserida também é outro ponto de extrema
importância, pois ele expande o entendimento do real mo-
mento que o artista vive.

135
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Contextualização e conceitualização
seguem juntas, assim como metodolo-
gia e epistemologia, método e pesqui-
sa. A construção de uma base sólida
para o desenvolvimento de um estudo
sistematizado demanda conceitos que
abram caminhos, são opções que vão
poder fazer fluir um método pensado.
(VILLAR; COSTA, 2006, p. 135).
Tendo em vista a complexidade da temática abordada e
os aspectos subjetivos presentes em cada história particular,
optamos por escolher um caminho metodológico dialógico e
dialético, pesquisando os sujeitos (coreógrafos) em suas sin-
gularidades e em diferentes contextos. Como esses coreógra-
fos se intitulam? Ou seja, como se nomeiam nas fichas técni-
cas dos espetáculos que vão para a cena? Assinam como co-
reógrafos? Como diretores artísticos? Ou ainda como dra-
maturgos e coreógrafos? Como eles entendem dramaturgia?
Ela estaria dentro do conceito de coreografia e vice-versa? Os
coreógrafos se veem como dramaturgos em seus trabalhos?
Ou, na visão deles, esses conceitos são totalmente diferentes?
Através dessas perguntas, buscaremos possíveis respostas ba-
seadas no fazer artístico de cada coreógrafo/companhia par-
ticipante da pesquisa.
Atualmente desenvolvemos um trabalho de pesquisa e
composição coreográfica centrado na produção de espetá-
culos para a Giro8 Cia. de Dança, que atua há oito anos na
cidade de Goiânia buscando fomentar a arte no/do estado de
Goiás. Nesse projeto, estamos procurando aprofundar uma
linguagem corporal que mescle técnica, criatividade, sensibi-
lização e reflexão, pois temos ciência da necessidade de uma
dança que faça sentido para os bailarinos e lhes permita a vi-
vência de experiências significativas. Uma dança que chegue

136
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

ao público como algo menos tecnicista e mais humano, pro-


duzindo novos significados, reflexões e experiências. Atual-
mente, apesar de não possuir patrocinadores fixos, a Giro8
acredita em um trabalho de continuidade e totaliza 30 ho-
ras semanais no cumprimento da manutenção de suas ações.
Empenhando-se por uma proposta de dança que vá além de
uma reprodução técnica, a companhia tem buscado construir
uma movimentação de dança contemporânea com caracte-
rísticas próprias, identitárias.
Com esse direcionamento, tentaremos elaborar uma escri-
ta criativa com possibilidade de presença e revisitando nos-
sas memórias afetivas e artísticas como bailarina, coreógrafa
e pesquisadora. Para isso nos colocaremos também como su-
jeito que viverá ativamente todo o processo de pesquisa, aces-
sando principalmente as memórias dos demais personagens
convidados que serão envolvidos nesta trama. Suas vivências
artísticas, seus processos criativos e seus produtos serão ana-
lisados e relacionados com nosso fazer artístico. Finalmente,
desenvolveremos uma escrita poética para apresentar ao pú-
blico uma pesquisa onde o palco será o papel.
Para levar a cabo esse projeto, iremos a campo realizar uma
pesquisa qualitativa construída em coletividade. Utilizare-
mos uma abordagem teórico-analítica, implementada pela
combinação da análise de espetáculo com um levantamento
documental e com a aplicação de entrevistas semiestrutura-
das que possam trazer questões e respostas sobre o tema. Será
feito também um diário de campo em que se registrarão os
acontecimentos mais relevantes para o estudo. Essa diversi-
dade de técnicas e métodos usados para compor processos
criativos mostra o quanto é desafiador produzir pesquisas em
artes da cena. Tais metodologias, na maioria das vezes, são
criadas pelos próprios artistas com o intuito de atender às

137
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

necessidades específicas de cada trabalho. No Brasil existem


várias companhias de dança contemporânea que realizam
trabalhos autorais, e muitos coreógrafos vêm criando assina-
turas coreográficas próprias. Dessa maneira, deparamo-nos
com um enorme leque de modos de operar artisticamente.
Com o advento da pesquisa em artes dentro das universi-
dades, vão se multiplicando também as metodologias cientí-
ficas, que são geradas para dar suporte a esse tipo de investi-
gação. Busca-se estudar a vida artística de coreógrafos, dra-
maturgos e diretores da cena e registrar, por intermédio da
escrita, as grandes obras que são levadas aos palcos. Segundo
Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro Machado (2006, p. 93),
compreender a questão por esta pers-
pectiva torna possível escarafunchar o
processo de criação artística no teatro
sem o apavorante medo da racionali-
zação em detrimento da rica experiên-
cia emocional sensível do fazer teatral
ou ainda, o medo de perder a aura e o
mistério da criação e da criatividade.
Esses são apenas alguns fantasmas que
rondam e fundamentam alguns precon-
ceitos acerca do fazer e do pensar teatral.
Descrever processos artísticos requer, antes de mais nada,
livrar-se do medo e agarrar-se na intuição, motivado pela
vontade de colaborar com a ciência. Por mais que o objeto da
pesquisa esteja bem definido, se este objeto é o espetáculo, ele
sempre será original, e, assim, quanto mais tentarmos decifrar
o que esse processo quer dizer, mais interpretações possivel-
mente surgirão. Estas são influenciadas pelas experiências
do observador/pesquisador, as quais não é possível deixar de
lado. E fica sempre uma insegurança na hora de colocar no
papel esses registros.

138
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

O que apresenta certo grau de liberda-


de é o fato de a arte estar mergulhada
num fluxo, sempre renovado; o campo
do possível, cujas regras se definem por
si mesmas, cujos métodos se constroem
a partir de si mesmos e cujos resultados,
objeto da arte, se determinam no fazer
e no momento em que o autor diz ter
acabado aquele objeto. (MACHADO,
2006, p. 102).
Para esta pesquisa, estabelecemos uma cena dentro da
vasta produção nacional e convidamos dois coreógrafos bra-
sileiros para nos ajudar a aprofundar os estudos referentes a
este objeto e a ampliar as reflexões sobre a temática aborda-
da. Iremos a campo conhecer e vivenciar o cotidiano desses
coreógrafos em seus lócus de pesquisas, visando destacar par-
ticularidades sem a pretensão de nivelar ou abafar diferenças.
Aliás, as alteridades muito nos interessam.
Como critério para a escolha dos coreógrafos – Suely
Machado, do Grupo de Dança Primeiro Ato, e Alejandro
Ahmed, do Grupo Cena 11 –, foram determinantes sua tra-
jetória artística, sua permanência, seu estilo coreográfico e o
desenvolvimento de trabalhos de continuidade das compa-
nhias em que eles residem. Presentes há mais de vinte anos
na cena nacional, eles aceitaram embarcar nesta aventura e
compartilhar suas vastas experiências dançantes. O convite
foi feito em novembro do ano de 2019, e eles prontamen-
te confirmaram presença em nossa pesquisa. A escolha dos
coreógrafos baseou-se nas diferenças facilmente notadas
nos processos de criação e produção das companhias onde
atuam. Ao longo de suas carreiras, os dois grupos vêm desen-
volvendo variadas linhas de pesquisa corporal e de compo-
sição coreográfica, de forma a produzir espetáculos notoria-

139
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mente particulares e relevantes para a dança brasileira. Cada


integrante trabalha de maneira bastante singular as possibi-
lidades de ação do corpo no que diz respeito aos passos e aos
gestos, o que traz espetáculos ímpares. Assim se pode dizer
que a construção dramatúrgica está atrelada à escolha da téc-
nica e ao modo como cada coreógrafo vê o corpo.
Sucede que, no corpo, a repetição vai
conduzindo um processo de seleção na-
tural da melhor maneira que o corpo en-
contra para lidar com o movimento. No
corpo, tudo aparece com uma forma, e
todas as formas se aprontam de acordo
com os princípios gerais que regulam as
relações corpo-movimento, estejam ou
não apresentados na forma de passos
codificados de dança. O movimento que
não começa copiando um passo existen-
te também tende a ganhar estabilidade,
ao longo do tempo, nesse processo de
seleção via repetição. Certo modo espe-
cífico de se mexer acaba por particulari-
zar-se por meio das ações praticadas pelo
corpo. Princípios gerais são mais estáveis,
mas também estão no eixo do tempo, e
em ritmo mais lento, vão transforman-
do-se, à medida que o corpo vai repetin-
do suas práticas, seus experimentos. A
questão desloca-se: não diz mais respeito
à existência ou não de passos de dança,
mas sim a quando esse “passo” vai passar
a existir, se antes ou depois da repetição.
(KATZ, 2010, p. 29).
O corpo, portanto, concebe, e a dramaturgia do corpo que
dança fundamenta e estrutura a composição coreográfica.
Esta, por sua vez, aproxima-se de outros elementos que dialo-

140
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

gam com este corpo dançante e, dessa forma, expõe uma ideia,
um pensamento, uma concepção que tornam a se reorganizar
nesse corpo atravessado, poroso e em contínuo repensar. Um
corpo e uma coreografia em constante transformação.
Como explica Helena Katz (2010, p. 167),
no caso da dança, em que a ação se dá no
corpo, significaria delimitar qual ação/
movimento pertence exclusivamente à
dança e, ao mesmo tempo, quais os ma-
teriais com [que] esse movimento entra
em acordo.
Diante disso,
fazer Dramaturgia de um espetáculo
significa frequentemente estruturá-lo,
dar um eixo organizador ou uma con-
cepção particular ao que se quer dizer,
ou dar a ver, podendo seguir os mais
variados critérios, desde a narratividade
aristotélica à fragmentação, à sobrepo-
sição de cenas simultâneas etc. Estrutu-
rar entende-se aqui como uma tomada de
consciência de que o modo como se dá a
ver o espetáculo determina os seus feitos
perante o público. Ao escolher ou fazer
opções relativamente às maestrias cênicas
e à sua articulação na cena, o olhar artísti-
co estrutura-as dramaturgicamente, fun-
damentando essas opções e criando uma
lógica e uma coerência própria a cada es-
petáculo. (PAIS, 2004, p. 35).
Nosso interesse pelos coreógrafos entrevistados não se
concentra apenas na necessidade, que consideramos funda-
mental, de investigar e escrever parte da história da dança,
sobretudo, no Brasil. Desejamos, também, entender como a
dramaturgia da dança na composição dos espetáculos das re-

141
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

feridas companhias vem ajudando-as a se manter nos merca-


dos nacional e internacional. Portanto a escolha que fizemos
foi estética, política e cultural. Esses grupos já resistem desde
longas datas e continuam seus trabalhos sem a interrupção
de seus fazeres práticos.
Ao trabalhar com eles, buscamos por
uma dança que possa garantir a sen-
sação de pertencimento, de continuida-
de e permanência no mundo. [...] Uma
dança que expresse e produza ideias e
sentimentos diversos, em busca de um
produto artístico que constitua um
sentido para a vida de quem cria, de
quem interpreta e/ou de quem usufrui.
(ROBATTO, 2012, p. 278).
Suely Machado é graduada em Psicologia, bailarina e co-
reógrafa formada em Dança Moderna, com trabalhos e for-
mação dentro e fora do Brasil. No curso de extensão em Pe-
dagogia do Movimento para o Ensino da Dança, na Escola
de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, fez
especialização em Coreoterapia e Psicomotricidade. Fundou
em 1982 o Grupo de Dança Primeiro Ato, onde desenvolve
trabalhos constantemente (Figura 1). Também tem atuado
como jurada em diversos festivais de dança no Brasil, como
o Festival de Joinville, SC, e no corpo técnico da Dança dos
Famosos, quadro apresentado no programa do Faustão, da
Rede Globo de televisão. Desenvolve uma série de atividades
relacionadas à dança, tanto na educação como na produção
de espetáculos. Além de coreógrafa, trabalha com preparação
cênica para atores e pesquisa frequentemente a dramaturgia
do gesto, buscando as sutilezas, a sofisticação, enfim, o refi-
namento do movimento. Ao dirigir os bailarinos, cocriadores
em seus processos criativos, lança mão de estímulos sensoriais

142
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

e motores para despertar memórias e desejos. Em seus traba-


lhos, prioriza a ação coletiva, produzindo suas construções
artísticas a muitas mãos.
Figura 1 - Grupo de Dança Primeiro Ato: espetáculo 3 Luas (2015)

Fonte: Acervo do Grupo.3

Alehandro Ahmed é diretor artístico, coreógrafo residente


e bailarino do grupo de dança Cena 11, desde 1995. Começou
seu trabalho de coreógrafo como autodidata, respondendo
à sua necessidade de desenvolver uma dança que refletisse
como ele pensava o mundo através das sensações que expe-
rimentava. Junto ao Cena 11, implantou a técnica denomi-
nada “percepção física”, que objetiva produzir uma dança em
função do corpo, com olhares voltados aos limites do corpo
físico. O que pode fazer esse corpo, até onde ele aguenta?
Os trabalhos desenvolvidos no Cena 11 (Figura 2) condu-
zem os artistas a experimentações que testam constantemen-
te os limites físicos do corpo encarnado. No grupo, acredita-se
que, quanto mais treino um corpo tiver, mais possibilidades
ele poderá oferecer.
3 Disponível em: https://www.primeiroato.com.br/espetaculo.php?idEspe
taculo=19. Acesso em: 1º jan. 2020.

143
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

De maneira mais geral, o corpo inteiro


atua como instrumento, com a ajuda do
qual o homem introduz a arte da na-
tureza e realiza “Seus pensamentos de
produtor”, segundo a fórmula de Leri-
-Gourhan. Certo, rigorosamente falan-
do, o corpo pode ser instrumentalizado,
mas ele não é instrumento. Todo instru-
mento supõe, efetivamente, um utiliza-
dor exterior a ele e possui uma função
específica e bem delimitada. O corpo se
serve de todos os instrumentos, pois ele
pode se prestar a múltiplas funções sem
se prender a um funcionamento único.
Ele se faz de instrumento por uma boa
causa, mas não passa de uma roupa em-
prestada, o que [lhe] possibilita [trocá-la].
(JAQUET, 2010, p. 28).
Figura 2 - Grupo de Dança Cena 11: espetáculo Protocolo elefante (2015)

Fonte: Acervo do Grupo.4

4 Disponível em: http://11/SItehttps://www.cena11.com.br/protocolo-


elefante. Acesso em: 1º jan. 2020.

144
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

Ao trabalhar com esses grupos, nosso desafio será ampliar


o diálogo acerca do tema, procurando, dentro da especificida-
de de cada coreógrafo, achar ou não pontos comuns na forma
de pensar o corpo e o espetáculo. Buscaremos expandir a visão
sobre questões específicas da área e a conceituação de drama-
turgia em dança, esclarecendo e redimensionando esses pon-
tos. Por isso foram escolhidos os dois coreógrafos citados, com
seus trabalhos artísticos diversos. Por meio de informações es-
pecíficas do trabalho de cada um, tentaremos entender o que
os torna tão fortes e atuantes na cena. Quanto mais diferentes
os coreógrafos, mais rico será o nosso resultado.
Quando se tem como matriz a hierar-
quização de saberes, estamos ancorados
em concepções racionalistas e objetivis-
tas que trazem o mundo de alguém su-
perior ao do outro, bem como resultam
em exclusão e preconceitos. Se um saber
é melhor que outro, sendo um caminho
afirmativo apenas ou conclusivo, não
se tem movimento suficiente para uma
ideia de multiplicidade. Faço este con-
vite por ora, de compartilhar histórias,
dança de gente, múltipla, plural, porém,
resistente e forte. Memórias de danças e
outras histórias a mais. (FIGUEIREDO,
2007, p. 8).
Através do olhar direcionado à obra de cada um desses
artistas, procuraremos compreender os seus ensejos obser-
vando a estruturação, as disposições e as ordenações das fer-
ramentas que utilizam para a cena. Isso nos ajudará a iden-
tificar um pensamento norteador de cada coreógrafo. Quais
as suas motivações e anseios artísticos para a concepção dos
trabalhos das companhias?

145
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Tentaremos, dessa forma, criar um material que realmente


sirva de exemplo para futuros coreógrafos, mostrando a eles
os diferentes estilos que obtiveram êxito na cena da dança e
ressignificando ou mesmo inspirando os seus fazeres coreo-
gráficos. A elaboração desse material se dará através do estu-
do da dramaturgia da dança para a compreensão do modo
como ela está inserida no trabalho dos consagrados coreógra-
fos brasileiros, Suely Machado e Alejandro Ahmed.
Esta experiência será singular sobretudo em nossa trajetó-
ria artística, pois faz parte dos nossos anseios como criadora o
desejo de conhecer melhor os processos criativos dos referidos
coreógrafos e de entender como eles trilharam seus caminhos
e deram suporte aos trabalhos de continuidade dos grupos à
frente dos quais se encontram. Sabemos que ambas as com-
panhias são grupos independentes que vivem resistindo ao
difícil mercado artístico brasileiro. Neste cenário desfavorável,
esses grupos se estabeleceram e se estruturaram, tornando-se
reconhecidos nacional e internacionalmente. O conjunto de
informações acessadas através deles nos permitirá solidificar
nosso trabalho desenvolvido na Giro8 Cia. de Dança. Espera-
mos que este processo nos ajude a projetar mais a companhia
nos cenários brasileiros nacional e internacional.
Tendo ciência das realidades altamente subjetivas e múlti-
plas que observamos em cada processo criativo dos coreógra-
fos/grupos elencados para esta investigação, elegemos como
metodologia a pesquisa de campo qualitativa e etnográfica,
com o objetivo de produzir uma escrita criativa e poética so-
bre o objeto em questão. Entre os diferentes instrumentos me-
todológicos escolhidos, estão os levantamentos bibliográficos
e videográficos dos trabalhos das companhias e as entrevistas
em campo com os coreógrafos, os bailarinos, os colaboradores,
os produtores e o público. O uso dos vários suportes técnicos,

146
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

como vídeos, gravações de áudios e fotografias, facilitará o re-


gistro de informações, dos depoimentos que serão gravados
e das memórias relatadas. Faremos também a apreciação de
espetáculos ao vivo a fim de enriquecer nossas análises com as
impressões trazidas pelo calor da emoção da cena.
Em um diário de bordo manuscrito, registraremos os dias
vividos em campo e, consequentemente, nossa presença em
ensaios e teatros, e as impressões sentidas durante a estadia
em cada universo particular. Enfim, as experiências vivencia-
das no compartilhamento da rotina de trabalho de cada com-
panhia: ensaios, aulas e processos de criação. Com as infor-
mações/impressões colhidas durante esse convívio, será mais
fácil analisar a forma como esses sujeitos veem o processo de
construção dramatúrgica em cada trabalho. Por isso serão re-
gistradas as impressões mais subjetivas advindas de toda essa
vivência: conversas livres e desinteressadas, trajetos dentro do
espaço, encontros casuais com pessoas que convivem entre si
e vivem a dança diariamente nestes locais, tudo isso servirá
para direcionar nosso olhar em busca das sutilezas. Afinal, es-
tamos indo à procura do sutil e do singular de cada processo
de criação, do sofisticado que existe nos entremeios, tentan-
do teorizar de dentro para fora de forma sensível e reflexiva.
A observação da “vivência artística” de cada coreógrafo re-
velará o modo como ele estabeleceu seu fazer artístico no ce-
nário nacional, através de seus processos criativos. Mostrará,
enfim, por meio das ricas alteridades estéticas de cada grupo,
o modo como seus componentes entendem e pensam o cor-
po. Na tentativa de compreender um pouco mais os processos
de criação dos grupos/coreógrafos, será necessário, também,
averiguar como esse corpo que vai para a cena é trabalhado.
As técnicas utilizadas para a preparação corporal dos intér-
pretes serão, certamente, bastante distintas.

147
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Tudo isto mostra que o movimento


dançado se aprende: é necessário
adaptar o corpo ao ritmo e aos imperati-
vos da dança. Os músculos, os tendões,
os órgãos devem tornar-se vias para o
escoamento desimpedido da energia;
o que, em termos de espaço, significa a
imbricação estreita do espaço interno e
do espaço externo, do interior do corpo
que a energia investe, e do exterior onde
se desdobram os gestos da dança. O es-
paço interior é coextensivo ao espaço
exterior. (GIL, 2015, p. 48).

Referências

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tuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon Digital, 2007.
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de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2007. Disponível em: http://file:///C:/Users/vanderley/AppDa-
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TempState/Downloads/Figueiredo_ValeriaMariaChavesde_D%20
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KATZ, Helena. Por uma dramaturgia que não seja uma liturgia de
dança. Sala Preta, São Paulo, v. 10, p. 163-167, 2010.

148
A dramaturgia da dança em uma cena brasileira: uma análise do fazer artístico

MACHADO, Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro. O processo de


criação do ator: uma perspectiva semiótica. In: CARREIRA An-
dré; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FARIAS, Sérgio
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artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 130-159. (Memória
Abrace, 9).

149
Circo: tradicional versus contemporâneo?

Jonathan Brites Sena1


Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira2

Resumo: O presente texto é o desdobramento de uma


práxis de ensino do circo na cidade de Goiânia de 2010 a
2019, período em que um dos autores experimentou a do-
cência em artes circenses em distintos espaços escolares. É
parte de uma investigação teórica que explora as transfor-
mações ocorridas nas artes circenses no século XXI. A pes-
quisa aponta que o circo na contemporaneidade adquire
distintas formas e segue por inúmeros caminhos. O dito cir-
co tradicional – primeiro modelo estruturado desta prática,
abrigando famílias inteiras e se apresentando em grandes
capitais – vem dividindo espaços com outras possibilidades
do fazer circense. Desde o século XX, é crescente o número
de artistas praticantes do circo que não pertencem neces-
sariamente a uma família tradicional do circo. Esse fator se
deve à criação das escolas de circo, que surgem como uma
nova forma de se ensinar e difundir a arte circense. Passam
assim a coexistir distintas maneiras de saberes circenses, al-
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC)
da Escola de Música e Artes Cênicas (Emac) da Universidade Federal de
Goiás (UFG). Especialista em Educação Física Escolar pela Faculdade de
Educação Física (FEF) da Universidade Federal de Catalão (UFCAT).
2 Orientadora da pesquisa que deu origem a este texto. Diretora teatral,
atriz e professora na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás (Emac-UFG). Doutora em Educação pela UFG, mestra
em Artes pela Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Artes
Cênicas: Interpretação Teatral também pela UnB. Coordenadora do
Laboratório de Montagens Cênicas e Teatro Educação (LabMonTe) e do
Laboratório de Criação de Figurinos, Acervo de Indumentárias e Ateliê
de Costura (LabCriaa).
Circo: tradicional versus contemporâneo?

gumas transitando por meio da oralidade em ambiente fa-


miliar, outras ligadas ao ensino técnico/artístico em escolas
específicas de circo. Deste modo, as artes circenses na con-
temporaneidade assumem outros formatos. Suas apresen-
tações não ficam restritas ao picadeiro; ao contrário, ganham
autonomia para atingir diferentes espaços de atuação. As es-
colas de circo integram diversos artistas – bailarinos, atores,
artistas plásticos, performers, entre outros –, portanto o seu
ensino não é exclusivamente dirigido aos integrantes de fa-
mílias tradicionais das artes circenses. O circo se apresenta,
pois, como um importante campo de conhecimento, um es-
paço de aprendizagem que colabora para o desenvolvimen-
to de habilidades psicofísicas, afetivas e lúdicas passíveis de
ser acessadas de forma democrática por todos os praticantes
das atividades circenses, e não apenas pelos artistas circen-
ses e de circo. Nesse cenário, o principal objetivo do texto é
compreender se existem distinções entre o circo tradicional
e o circo contemporâneo. Caso existam, surge a questão: o
que (não) é o circo contemporâneo?
Palavras-chave: circo tradicional; circo contemporâneo;
artes circenses.

Circus: traditional versus contemporary?

Abstract: The present article is an unfolding of a praxis


about the circus teaching in the city of Goiânia, from 2010
to 2019, as one of the authors has experimented a method of
teaching in circus arts in different schooling spaces. It is part
of a theoretical, exploratory investigation about the trans-
formations that took place in circus arts in the beginning
of the 21st century. The research shows that the circus, in
contemporary times, presents itself in many different forms
and follows numerous paths. The so called traditional circus
– the first structured model of this practice, housing whole

151
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

families and performing in large capitals – has been divi-


ding spaces with other possibilities of circus making. Since
the 20th century, there has been an increasing number of
artists practicing circus without necessarily belonging to a
traditional circus family. This factor is due to the creation
of circus schools, which appear as a new way of teaching
and spreading the circus arts. Thus, different ways of cir-
cus knowledge coexist, some of them transiting through
orality in a family environment, others linked to technical/
artistic teachings in specific circus schools. Therefore, con-
temporary circus arts take another formats. Their presen-
tations are not restricted to the arena, they gain autonomy
to reach different spaces for performance. The circus schools
integrate several artists – dancers, actors, visual artists, per-
formers, among others –, therefore, teaching is not exclusi-
ve to members of traditional circus arts families. The circus
presents itself, therefore, as an important field of knowled-
ge, a learning space that contributes to the development of
the psychophysical, affective and playful skills, which both
practitioners of circus activities and circus artists access
democratically. In that scenario, the main objective of this
article is to understand and show whether there are many
distinctions between traditional circus and contemporary
circus. If they exist, the question arises: what is (not) con-
temporary circus?
Keywords: traditional circus; contemporary circus; cir-
cus arts.

152
Circo: tradicional versus contemporâneo?

Vai, vai, vai começar a brincadeira!

Tem charanga tocando a noite inteira


vem, vem, vem ver o circo de verdade,
tem, tem, tem picadeiro e qualidade,
corre, corre, minha gente que é preciso ser esperto,
quem quiser que vá na frente, vê melhor quem vê de perto.
(MILLER, 1967).

Esse trecho da música “O circo”, de Sidney Miller, ressalta


os sentidos do tema principal desta investigação: o circo, visto
de perto, aqui, como expressão da cultura corporal e que, na
contemporaneidade, vem se transformando. O título deste
texto já indica conflito: “tradicional versus contemporâneo?”
As tensões entre tradicional e contemporâneo estão presen-
tes no texto, e as contradições que elas apontam nos levam
a questionar: O circo tradicional que é realizado hoje não é
contemporâneo? O que (não) é o circo contemporâneo? Para
tentarmos chegar a algum lugar, pensemos no circo em sua
trajetória histórica.
O circo é inerente à humanidade, é uma apropriação e
uma criação humana. Não existia circo no paleolítico. Mas
aquilo que é típico do circo, como o palhaço e as acrobacias,
por exemplo, também já estavam presentes em épocas anti-
gas. O fazer circense está historicamente presente na cultura,
e, para compreender sua historicidade, teríamos de realizar
uma genealogia da cultura, seguindo pegadas e registros da
oralidade, da memória, da história das artes e inclusive do
universo imagético social. Erminia Silva (2009) ressalta que
não há como saber ao certo como tudo começou, mas o fato
é que vários registros com alusões às práticas circenses foram
encontrados em diversos pontos do mundo: no Egito, na Ín-

153
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

dia, na Grécia, em Roma, na China e nas Américas. As prá-


ticas imanentes ao circo variam entre manipulações de obje-
tos, malabarismos, acrobacias de solos e aéreas, acrobacias
individuais e em grupos, distintos meios de equilíbrios com
aparelhos ou com o corpo, palhaçarias, entre outras.
O formato circense que conhecemos hoje, ou seja, a forma
circular, com a forte presença do picadeiro, onde geralmente
os espetáculos são realizados em lonas, é chamado de circo
moderno. Esse formato e sua estrutura têm início em 1779
com o oficial da cavalaria britânica Philip Astley, como afir-
ma Mário Fernando Bolognesi (2003, p. 31):
Atribui-se ao suboficial da cavalaria in-
glesa, Philip Astley, a criação do circo
moderno. Ele construiu um edifício per-
manentemente em Londres, em West-
minster Bridge, chamado anfiteatro
Astley. Desde 1758, na Inglaterra, já se
organizavam espetáculos ao ar livre, com
homens em pé sobre o dorso de um ou
mais cavalos. A grande proeza de Astley
foi apropriar-se dessa exibição e inseri-la
em uma arena de 13 metros de circunfe-
rência, em um recinto fechado.
A linguagem circense, continuamente em transformação,
faz parte do imaginário cultural e, segundo Silva (2009), é
uma expressão fundamental na formação da cultura brasilei-
ra. Em sua origem tradicional, o circo moderno era formado
por famílias, as famosas famílias tradicionais de circo. Os sa-
beres eram passados dos pais e/ou das mães para os filhos, e,
desta maneira, o conhecimento ficava restrito aos integrantes
das famílias. O nomadismo vem como uma forte característi-
ca do circo moderno/tradicional, com curtas temporadas de
apresentações em cada cidade.

154
Circo: tradicional versus contemporâneo?

No Brasil o circo moderno/tradicional antecede a criação


do rádio e da televisão. Tornou-se, por muito tempo, o maior
espaço de divulgação artística, gerenciando/dominando a in-
dústria do entretenimento de massa com o lançamento de du-
plas sertanejas, de comediantes, bailarinos ou excentricidades.
Na segunda metade do século XX, a educação nômade dos
filhos dos circenses se tornou um entrave social: em muitos
casos, por estar em constante mudança, as crianças circenses
não conseguiam ter uma continuidade na vida escolar, trans-
formando-se em adultos analfabetos. Com isso, as grandes fa-
mílias tradicionais de circo voltaram sua atenção para a impor-
tância da escola como instituição para o futuro das crianças
circenses. Grande maioria da população circense percebeu,
então, a necessidade de inserir as crianças do circo na educação
formal. Assim, o nomadismo não era uma opção viável, sendo
necessário se instalar de forma fixa em um local específico.
Silva (2009) ressalta que, neste processo, surgiram as es-
colas de circo, cujo intuito, inicialmente, era dar continuida-
de à tradição de se ensinar circo para os filhos dos circenses.
Mas, ao mesmo tempo, esses espaços educacionais ofereciam
oportunidade para que pessoas que não pertenciam a uma
família circense tradicional também pudessem experimentar
as artes do circo, alterando-se assim a forma de se transmitir
as práticas circenses. Esse cenário causou importantes trans-
formações no ensino dessas práticas.
No decorrer da história, as práticas circenses, que não se
restringem apenas ao picadeiro dentro de lonas, fizeram-se
presentes em variados espaços socioculturais. Sua estética co-
meça a aparecer em diversos eventos e projetos sociais e cul-
turais, como cruzeiros, academias e, principalmente, ambien-
tes educacionais e escolares, no currículo escolar ou como
atividade extracurricular. O circo vem se consolidando, por-

155
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tanto, como espaço de ensino e aprendizagem que pode vir a


colaborar para o desenvolvimento de habilidades psicofísicas,
motoras, afetivas e lúdicas de diferentes públicos.
Com a criação dessas escolas, emerge o que alguns estu-
diosos circenses chamam de “circo novo”, considerando a
expansão das possibilidades de se trabalhar com circo, de se
aprender as práticas circenses e de se utilizá-las na compo-
sição cênica dos números de circo.
Os pioneiros do circo novo tiveram
como tema de seus espetáculos as cons-
tantes do universo como um todo ou do
circo tradicional. Eles os teatralizaram,
tentando abolir as rupturas ou quebras
entre os diferentes números, criaram
um ritmo novo e, sobretudo, envol-
veram todos os artistas num senso de
exploração. (JACOB, 1992, p. 106, tra-
dução nossa).
De acordo com Jacob (1992), o ritmo do fazer circense se
modifica, aumenta-se a busca por novidades e inspirações.
Mas até que ponto as escolas de circo trouxeram novidade
para a prática circense? O próprio termo “circo novo” é alvo
de muitas discussões, e por isso usaremos aqui o termo “circo
contemporâneo”.
As escolas de circo possibilitaram inúmeras integrações
das artes, e investigadores de outras áreas artísticas experi-
mentaram o circo, potencializando os trabalhos em artes cê-
nicas na nossa contemporaneidade. Atualmente, tornou-se
mais comum vermos espetáculos com a presença de mais de
uma linguagem artística, e, não sendo possível enquadrá-los
em uma só arte, faz-se necessário categorizá-los como teatro,
circo e dança, simultaneamente. A questão não está em saber
se determinado espetáculo é de circo ou teatro, por exemplo,

156
Circo: tradicional versus contemporâneo?

mesmo que ambos possuam características das duas áreas. O


interessante é identificar o acontecimento circense e o acon-
tecimento teatral, compreendendo essa tendência cada vez
mais evidente das artes integradas.
Edélcio Mostaço (2006) salienta que, na última década,
acontece uma reviravolta nos estudos teóricos sobre as artes
cênicas, pois o modelo estabelecido na Europa na segunda
metade do século XIX já não basta. O autor discute a exis-
tência de um novo paradigma de teatrologia, indicando que
a contemporaneidade exige um novo olhar. Essa nova práti-
ca contemporânea, afirma ele, surge marcada por outros as-
pectos. Uma prática com menos amarras, pautada nos campos
da semiótica, história, sociologia e antropologia. Pensando na
realidade circense, esse processo acontece desde a transição
do circo moderno/tradicional para o circo contemporâneo.
Menos centrada, menos totalizadora,
mais inquieta e aberta aos reclamos do
multiculturalismo, ela se consubstan-
ciou como um corpo cívico dotado de
quatro braços investigativos: a semió-
tica, a história, a sociologia, e a antro-
pologia. Ou seja, quatro vozes para uma
escuta: a recepção. (p. 121).
O modelo estabelecido pelo circo moderno/tradicional
enfrenta dificuldades na atualidade: os circos de interior, ins-
talados debaixo de lonas e com números meramente tradi-
cionais e virtuosos, não têm mais uma boa recepção entre o
público. Neste cenário, o circo contemporâneo surge se reela-
borando/reinventando e buscando outras formas de se con-
solidar na atualidade.
A estética teatral contemporânea, no
mesmo rumo tomado pelas demais ex-
pressões artísticas, persegue e procura a

157
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

interdisciplinaridade e as conexões entre


os saberes, não para pulverizar seus méto-
dos ou paradigmas, mas, sobretudo, para
intentar novos epistemas que cubram
territórios comuns às múltiplas represen-
tações. (MOSTAÇO, 2006, p. 124).
A interdisciplinaridade inerente à natureza do teatro tam-
bém é inerente à natureza do espetáculo circense. O circo
contemporâneo vem justamente sob esta ideia de reintegrar
o sentido da interdisciplinaridade no próprio campo de co-
nhecimento e, ainda, conectando-se com outras artes para
enriquecer e valorizar a complexidade do espetáculo circen-
se. Comumente, presenciamos espetáculos de circo em que
se faz nítida a presença do teatro, da dança, da música, das
novas tecnologias, entre outras coisas. Um dos maiores circos
na atualidade, o Cirque du Soleil, já se utiliza de drones, pro-
jeções e hologramas em suas apresentações.
Marco Antônio Coelho Bortoleto (2008) chama-nos, po-
rém, a atenção para dizer que a interdisciplinaridade não é
uma particularidade exclusiva do circo contemporâneo. O
circo moderno/tradicional já tinha como característica o po-
der de agregar as artes: grandes corpos de bailes participavam
dos espetáculos tradicionais, e músicos aproveitavam o pica-
deiro circense para divulgar sua arte.
O circo sempre se apropriou da tecnologia disponível à
sua época: a própria lona como espaço de representação ar-
tística circense, sustentada por mastros e cordas, demonstrou
essa forte capacidade de se ajustar-se a essa tecnologia. En-
tretanto, no circo contemporâneo, percebemos mecanismos
mais tecnológicos e mais avançados, pois estes se intensifica-
ram com a revolução industrial.
Ao lado dessa mudança, constata-se que não existe mais
a presença de animais no circo contemporâneo, como existia

158
Circo: tradicional versus contemporâneo?

no circo moderno/tradicional. No Brasil, há pouco menos de


dez anos, a utilização de animais em espetáculos circenses foi
proibida, embora não possamos negar o encantamento que
os números dessa natureza causavam no público. Em épocas
passadas, era mágico ver animais selvagens em plena har-
monia com seu domador e observar as destrezas dos bichos
de grande porte, como elefantes e girafas. Entretanto, com
os históricos de maus-tratos absurdos aos animais, tornou-se
necessária a proibição da exploração deles em espetáculo de
circo. E, sem eles, os circos tiveram de usar a criatividade para
poder despertar no público aquele mesmo interesse.
A utilização de novas tecnologias veio como uma solução
para esse problema, tornando-se uma grande aliada nas pro-
duções circenses. Alguns circos americanos, à semelhança do
Cirque du Soleil, já inserem em seus espetáculos hologramas
capazes de despertar as sensações causadas pelos animais,
gerando emoções expandidas. Tais hologramas conseguem
reproduzir animais exóticos com o tamanho cem vezes maior
que o normal, gerando ainda mais expectativa na plateia en-
cantada. Sobre tal encantamento/desencantamento, Jean-
-François Peyret (2012, p. 25) ressalta:
A ideia de um continuum e não de uma
divisão (catástrofe de modernidade). A
ciência é como desencantamento. De-
sencantamento = perda da dimensão
poética. Blake contra Newton. Razão
desencantadora. Blake: “se as portas
da percepção estivessem limpas, cada
coisa apareceria ao homem como ela é,
infinita”.
Ao prestigiar um espetáculo de circo, desfrutamos de um
ambiente mágico, com inúmeros gracejos e capaz de nos ti-
rar da realidade. Corpos que realizam acrobacias em equi-

159
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

pamentos circenses aéreos provocam-nos, ao mesmo tempo,


apreensão e alegria no acerto das evoluções acrobáticas. Se
retirarmos a magia do virtuosismo, os figurinos exuberan-
tes, o brilho dos holofotes, o clima proporcionado pela trilha
sonora e a própria lona de circo, ficaremos sem a dimensão
poética, talvez desencantados. Teremos, por exemplo, ape-
nas as proporções físicas de corpos em suspensões aéreas,
estudos sobre materiais mais adequados para suportar maior
quantidade de peso e impacto, análises arquitetônicas das
possibilidades de se sustentar uma lona sobre dois mastros.
Enfim, teremos ciências sem a aura da arte.
Com toda certeza, os estudos que acabaram de ser cita-
dos é que propiciam a realização de um espetáculo de circo.
O circo como instituição do espetáculo visa a criação de so-
luções para a magia e o encantamento acontecer. Esse encan-
tamento presente no fazer circense é um ponto comum ao cir-
co moderno/tradicional e ao circo contemporâneo. Sem ele,
o público não conseguiria perceber os limites máximos que o
corpo oferece de forma espetacular, seja pelo virtuosismo ou
pelo processo de criação conceitual e corporal circense.

Vai, vai, vai terminar a brincadeira!

Que a charanga tocou a noite inteira,


morre o circo, renasce uma lembrança,
foi-se embora e eu ainda era criança.
(MILLER, 1967).

Voltemos à pergunta inicial: o que (não) é circo contem-


porâneo? Uma pergunta paradoxal e complexa de se respon-
der. Para isso nos atentemos aos fatos já elencados:

160
Circo: tradicional versus contemporâneo?

1. Com a necessidade de se romper com o nomadismo,


escolas específicas de circo foram criadas, e, com isso,
tivemos a democratização do ensino de circo para to-
dos que se interessassem por essa linguagem.
2. A interdisciplinaridade artística nos espetáculos é no-
tória desde o circo moderno/tradicional até o circo
contemporâneo.
3. Percebe-se a utilização de tecnologias mais avançadas
nos treinos, nas aulas e nos espetáculos circenses, pois
os recursos tecnológicos aumentaram em comparação
com os disponíveis ao circo em sua origem.
4. A opção por não usar o termo “circo novo” surge com
estes questionamentos: o que realmente temos de
novo no circo contemporâneo? O que é realizado no
circo da atualidade que não era realizado no tradicio-
nal? Afinal, a tecnologia de cada época sempre foi uti-
lizada, a junção das artes sempre existiu, e a dança, a
música e o teatro sempre estiveram presentes no circo
tradicional.
Quando empregamos no título a palavra versus, buscamos
justamente evidenciar as distinções entre um circo e o outro,
mas chegamos ao fim deste texto sem ter, de fato, uma res-
posta clara e objetiva sobre a diferença do tradicional e do
contemporâneo. Podemos salientar pontos cruciais entre um
e outro, a começar pela criação das escolas de circo e pela de-
mocratização desse ensino para não circenses. Na contempo-
raneidade, essas escolas são um importante fator do fazer cir-
cense, pois, graças a elas, todo indivíduo que se interessa por
esta arte tem a oportunidade de aprendê-la e transformá-la.
Para a continuação desta pesquisa, faz-se necessário pen-
sar a forma como se ensina circo nas escolas circenses atual-
mente. Isso ajudará a compreender o modo pelo qual os dis-

161
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tintos artistas praticantes de circo se apropriam da linguagem


circense em seus trabalhos. Hoje, depois de algumas décadas
observando os desdobramentos das artes circenses, talvez
seja possível voltar a pensar nestas questões para se chegar a
um lugar mais definitivo e assertivo.
O fato é que as artes cênicas estão em transformação, e ca-
tegorizar uma apresentação artística provavelmente não será
o fator principal: focar nos acontecimentos artísticos pode
ser algo mais eficiente para nos levar a outros lugares. Hoje é
possível verificar e analisar a presença do circo, do teatro, da
dança, da performance e da instalação em um único trabalho.
O momento é de transformação; classificar determinada
arte não será a questão de agora em diante, e isso não preci-
sa ser necessariamente um problema. O importante no atual
cenário é entender o momento de transição em que vivemos
e adaptar-se a ele. Em qualquer época, a arte se faz neces-
sária e sempre se fará presente, independente das transições
ou adaptações ocorridas. O artista é um cientista nos campos
dos sonhos que se permite criar, imaginar e até mesmo errar
antes de colocar sua arte em prática.

Referências
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Ed. Unesp,
2003.
BORTOLETO, Marco Antônio Coelho. Introdução à pedagogia das
atividades circenses. Jundiaí, SP: Fontoura, 2008.
JACOB, Pascal. Le cirque: un art à la croisée des chemins. Paris: Gal-
limard, 1992. (Collection Découvertes Gallimard).
MILLER, Sidney. O circo. In: LEÃO, Nara. Vento de maio. Philips,
1967. 1 disco de vinil.

162
Circo: tradicional versus contemporâneo?

MOSTAÇO, Edélcio. Mapeando a teoria e a recepção. In: CAR-


REIRA, André; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FA-
RIAS, Sérgio Coelho (org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 120-129. (Memória Abrace, 9).
PEYRET, Jean-François. Da ciência e da arte. In: RAMOS, Luiz
Fernando (org.). Arte e ciência: abismo de rosas. São Paulo: Abrace,
2012. p. 19-40.
SILVA, Erminia. Respeitável público...: o circo em cena. Rio de Janei-
ro: Funarte, 2009.

163
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

José de Oliveira Júnior1

Resumo: O presente texto refere-se a um projeto de pes-


quisa sobre a construção da cena appiana no que diz respeito
à “luz ativa”, ou seja, à iluminação, e sobre as relações desse
elemento com os outros elementos presentes na cena, como
o ator, a cenografia e os objetos cênicos. A pesquisa está em
andamento no Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás e tem como objeto entender o conceito da
luz ativa aplicada às artes da cena, elaborado por Adolphe
Appia, e avaliar o alcance deste conceito na obra de ilumina-
dores cênicos atualmente. Para isto, analisaremos a obra de
três iluminadores da atualidade: o próprio Adolphe Appia
([1969?], 2016, 2017), Cibele Forjaz Simões (2008, 2013) e
Eduardo Tudella (2017). Os fundamentos teóricos deste es-
tudo se concentram nos trabalhos destes autores, sendo nu-
cleares A obra de arte viva e Música e encenação (partes 1 e 2), de
Adolphe Appia. A questão a se verificar ao final do trabalho
é a operacionalidade das pesquisas técnicas e estéticas for-
muladas por Adolphe Appia para desenhar o espaço cêni-
co vivo conforme idealizado pelo teórico. O objetivo maior

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-


UFG. Bacharel em Direção de Arte pela UFG. Especialista em Docência
do Ensino Superior pela Fabec-GO. Iluminador e cenotécnico com
registro profissional DRT nº 1.095/96. Possui experiência profissional
em trabalhos de pré e pós-produção de eventos artísticos e corporativos,
e na elaboração e execução de projetos de iluminação, com ênfase
em iluminação cênica, cenotécnica e direção de arte. Atualmente é
coordenador técnico-operacional no Teatro Rio Vermelho, no Centro de
Convenções de Goiânia.
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

é analisar a luz ativa como uma prática inovadora da ilu-


minação cênica, atentando para a relação ator-espaço-luz.
Palavras-chave: artes cênicas; Appia; luz ativa; ilumi-
nação cênica; arte viva.

The active light in Adolphe Appia’s work

Abstract: This article refers to a research project on the


construction of the Appia in the scene regarding the “active
light”, that is, the lighting. Like, the relationships with the
other elements present in the scene, such as: the actor, the
scenography and scenic objects. The research is underway
in the Graduate Program in arts of the scene of the School
of Music and Performing Arts of the Federal Universityof
Goiás and aims to understand the concepts of active light
applied the arts of the scene, elaborated by Adolphe Appia,
and what is the scope of this concept in the work of light
designers currently. For this, we will analyze the work of
three designers today: Adolphe Appia himself ([1969?],
2016, 2017), Cibele Forjaz Simões (2008, 2013) and Edu-
ardo Tudella (2017). The theoretical foundations of this
article focuses on the work of these authors, specially The
work of living art and Music and staging, of Adolphe Appia.
The question to be verified at the end of the work is the
operationality of technical and aesthetic research formula-
ted by Adolphe Appia to design the living scenic space, as
idealized by theoretical link. The objective is to analyze the
active light as an innovative practice of scenic lighting, from
the theoretical framework elaborated by Appiato build the
scenic space, paying attention to the actor-space-light.
Keywords: performing arts; Appia; active light; lighting
design; living art.

165
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Introdução

O presente texto, baseado numa pesquisa em andamento


no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola
de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás,
propõe-se a discutir sobre o conceito de “luz ativa” no tra-
balho de Adolphe Appia. Pretendemos, aqui, gerar conheci-
mento sobre esse objeto, que consiste no método de aplicação
da iluminação cênica exposto pelo referido autor e que ainda
é pouco estudado em ambiente acadêmico.
Segundo Plaza (1997, p. 22), “produzir conhecimentos é
transformar informações complexas (científicas ou tecnoló-
gicas, sensíveis e técnicas), em resultados de um processo de
trabalho”. Com esse pensamento, empreenderemos este estudo
(dividido em três etapas), acreditando, ainda em conformidade
com o autor, que “ciência e arte têm [origem] na abdução ou
capacidade para formular hipóteses, imagens, ideias, na colo-
cação de problemas e nos métodos infralógicos” (p. 24-25).
Adolphe Appia (1862-1928) foi um “arquiteto e músico
suíço, um estudioso do espaço teatral, [e com ele] se origina
o trinômio ator-música-cena”. Appia incorpora “uma com-
preensão inovadora de ‘verdade’ na cena, ao vislumbrar novas
fusões para a luz” (TUDELLA, 2017, p. 567).
Na visão de Simões (2008), ele foi o artista que propôs,
com mais consciência, uma mudança estrutural no conceito
e na prática da iluminação cênica. Para isso, lançou mão de
desenhos e concepções cenográficas, que ganham movimen-
to através da luz. Mas a contribuição do autor nesse campo
se deu, sobretudo, por meio de seus escritos sobre a arte do
espetáculo, nos quais dá grande importância à iluminação cê-
nica, à sua relação com os demais elementos da encenação e
ao seu papel artístico na construção da cena.

166
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

Os fundamentos que compõem seus estudos sobre o


teatro foram responsáveis por modificar a visão sobre a en-
cenação no início do século XX, antes ligada ao naturalismo
e ao realismo. Appia propôs uma mudança estética radical
na arte teatral, sugerindo que ela não fosse mais baseada nas
influências pictóricas dos grandes telões decorativos, e sim
no uso da iluminação, do trabalho do ator e da cenografia.
Com esses elementos, segundo ele, é possível garantir a plas-
ticidade do movimento expressivo e a reforma da concepção
espacial, numa tríade harmônica ator-espaço-luz. Seu traba-
lho confirma, portanto, o que diz Plaza (1997, p. 22):
Quando o cientista ou o filósofo se in-
terrogam sobre o que é isto, ou aqui-
lo, iniciam um processo de busca do
conhecimento [...]. Conhecimento é,
pois, um esforço mental que extrai do
caos um esquema de ordem, um cos-
mos, uma informação, uma linguagem,
diríamos.
Investigaremos os procedimentos técnicos e estéticos re-
lacionados à aplicação da iluminação na elaboração da cena
appiana. Para isso, num primeiro momento, faremos uma
análise mergulhada na obra do encenador, reconhecendo os
elementos que definem a luz ativa e as técnicas de sua apli-
cação. Em seguida, por meio de um estudo de caso, exami-
naremos alguns projetos de três iluminadores da atualidade,
observando se o escopo teórico elaborado por Appia pode ser
verificado em seus trabalhos. Nessa etapa, o objetivo é ten-
tar identificar o alcance das influências que a luz ativa exerce
sobre os trabalhos desses profissionais. Por fim, num terceiro
momento, criaremos um trabalho de dança com um grupo de
profissionais locais, visando experienciar através dele os con-
ceitos de Appia para a elaboração do projeto de iluminação.

167
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A primeira etapa, a da consulta bibliográfica, tem como re-


ferências basilares a obra do próprio Appia. Seu pensamento
sobre a arte do espetáculo está gravado em três livros publi-
cados entre o final do século XIX e o início do XX. O primei-
ro foi La Mise-en-scène du drame Wagnerien (1892) (A encenação
do drama wagneriano), o segundo, La musique et la mise-en-scène
(1899) (Música e encenação), e o terceiro, L’ouvre d’art vivant (A
obra de arte viva), lançado em 1921. Neste último trabalho, ele
faz uma síntese de toda a sua teoria sobre a reformulação da
espacialidade cênica.
Mergulhando no íntimo desses escritos, buscaremos com-
preender, da melhor forma possível, o conceito de luz ativa,
que se concentra, objetivamente, nos dois últimos livros. Ou-
tras fontes poderão ser consultadas na primeira etapa com a
finalidade de conhecer o ambiente em que estavam inseridas
as questões levantadas por Adolphe Appia a respeito da arte
teatral, contudo, será nos escritos do encenador que iremos
nos ater com maior atenção a fim de entender as proposituras
sobre a luz ativa.
Assim, a investigação referente à luz em Appia será uma
investida para o interior dos textos, buscando a compreensão
da sua obra de dentro para fora e tendo sempre os seus es-
critos como um modelo/matriz a ser procurado e analisado.
Será utilizado, portanto, para a pesquisa, o método matricial
apresentado por Brito e Guinsburg (2006, p. 20). Esse méto-
do “visa desvendar e analisar a matriz criativa do artista, e tem
como objetivo o esclarecimento do seu processo de criação”.
Podemos dizer que a matriz é um quadro formado pelos ele-
mentos de criação que o artista usa para gerar sua obra. Deta-
lhando sua proposta, os autores registram:

168
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

Ao se esclarecer cada etapa deste traba-


lho, chega-se à sistematização do que
pretendemos denominar de Método
Matricial. O exame realizado princi-
piou com a reunião dos textos [...] com
o objetivo de, a partir deles, investigar
o processo de criação efetivado [...]. O
primeiro passo, portanto, do Método
Matricial, é precisar a fonte primária
do trabalho [...]. Uma vez disposto esse
acervo, determinam-se os elementos
cuja reunião constituirá a matriz e faz-
-se o levantamento dos procedimentos,
objetivando esclarecer os modos pelos
quais o autor configura esses elementos.
(BRITO; GUINSBURG, 2006, p. 19).
Partindo do ponto bibliográfico da pesquisa, aplicando o
método citado e tendo já o conhecimento dos elementos e
procedimentos da luz ativa, iniciaremos um estudo de campo
investigando a obra criativa e documental de três profissio-
nais brasileiros. Nas obras estudadas, analisaremos os planos
(projetos) de iluminação, o memorial descritivo e o roteiro de
operação. Nessa etapa, procuraremos saber se as influências
da proposta de Appia podem ser encontradas e reconhecidas
nos trabalhos dos iluminadores selecionados.
O procedimento de análise nesse momento da pesquisa
levará em conta que as tecnologias que se encontram dis-
poníveis hoje são muito diferentes das do início do século
XX. Dessa forma, consideraremos essa diferença tecnológica,
uma premissa para o estudo de caso. Refletiremos sobre os
conceitos metodológicos e técnicos relativos às orientações
de distribuição dos equipamentos, porém desconsideraremos
indicações, que porventura ocorram, de modelo e aplicação
dos refletores da época.

169
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

De posse do material coletado, adotaremos os seguintes


passos do método matricial indicados por Brito e Guinsburg
(2006, p. 23):
. Utilizando o método comparativo,
destacar os elementos que o artista usa
para criar sua obra. [...]
. Determinar os procedimentos relativos
a cada um dos elementos.
Entendemos que a aplicação do método matricial aos ele-
mentos que constituem as artes cênicas é um deslocamento
do próprio método, visto que ele foi elaborado primeiramen-
te para a análise investigativa no campo literário. Por isso nos
propomos a abordá-lo de forma mais aberta ao transportá-lo
aqui para as artes da cena. Nossa intenção ao empregá-lo nes-
ta pesquisa é encontrar os elementos/procedimentos do pro-
cesso criativo, das matrizes criativas e dos meios construtivos
da luz ativa na cena.
Na última fase da pesquisa, mergulharemos em um pro-
cesso experimental, com a criação de um espetáculo de dança
visando aplicar as proposituras de Appia para a luz ativa. É
importante frisar aqui que não é nossa pretensão avaliar, va-
lidar ou comprovar os estudos de Adolphe Appia a respeito
da luz ativa, emitindo juízo de valor sobre sua obra e apli-
cação prática. Restringimo-nos a apresentar os elementos e
procedimentos do método do encenador, pois a pesquisa é de
natureza básica. Conforme diz Nascimento (2016, p. 3), essa
modalidade de pesquisa
é baseada na interpretação dos fenôme-
nos observados e no significado que car-
regam, ou no significado atribuído pelo
pesquisador, dada a realidade em que os
fenômenos estão inseridos. Considera
a realidade e a particularidade de cada

170
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

sujeito/objeto da pesquisa. O processo


é um descritivo [...] de observação que
considera a singularidade do sujeito e a
subjetividade do fenômeno [...]. Permite
generalizações de forma moderada.
Por ser assim, a montagem proposta visa a experimen-
tação dos conceitos da luz ativa a fim de produzir elementos
para a conclusão da pesquisa e gerar conhecimentos sobre
o escopo teórico dos livros A obra de arte viva e Música e ence-
nação, de Adolphe Appia.
Abordaremos a iluminação cênica como objeto central na
pesquisa, investigando seus modos, seus métodos práticos
e, principalmente, seus conceitos estéticos. A fim de com-
preender qual é o impacto da teoria de Adolphe Appia nos
dias de hoje, trataremos a iluminação cênica como lingua-
gem nos processos de construção das artes da cena nos limi-
tes dessa teorização.

A luz ativa

O conceito ou o método da luz ativa é um dos elementos


propostos por Appia para a reformulação conceitual e estru-
tural da espacialidade cênica. Mais tarde, num compêndio
sobre a arte teatral, o encenador nominou a luz ativa de “obra
de arte viva”. Nosso objetivo aqui é fazer uma reflexão sobre
essa teoria do autor, analisando e debatendo, dentro de sua
obra, as questões que se referem à iluminação cênica, ou luz
ativa. Isso nos leva também à abordagem das transformações
que o espaço teatral sofreu sob a influência da iluminação
elétrica, no final do século XIX. Segundo Roubine (1982,
p. 118), nesse período, “Appia é sem dúvida um dos primeiros

171
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

a tomar consciência dos extraordinários recursos que a ilumi-


nação elétrica põe à disposição do encenador”.
No entanto, apesar da relevância desse progresso, sua che-
gada no teatro, num primeiro momento, não alterou substan-
cialmente as práticas habituais: o uso da iluminação na cena
ainda era o da representação de fenômenos da natureza.
As lâmpadas incandescentes e a ele-
tricidade, utilizadas a partir dos anos
1880, foram consideradas primeira-
mente apenas como uma nova técnica,
mais eficiente, para realizar as mesmas
funções: clarear a cena e copiar, com
maior verossimilhança, os efeitos da na-
tureza, como o arco-íris ou o pôr do sol.
(SIMÕES, 2008, p. 63).
Roubine (1982) diz que Denis Bablet, em seu livro que
trata da cenografia teatral,2 traz informações sobre o gosto
do público do fim do século XIX, um gosto com predileções
para os cenários decorativos, o que denotava um atravanca-
mento estético do palco. Os encenadores naturalistas explo-
raram esse gosto projetando seus trabalhos com uma precisão
e cuidados arqueológicos e/ou sociológicos, na busca de uma
ilusão perfeita da vida real. Essa verossimilhança não teve
outro efeito senão o de reforçar a estranheza da realidade ce-
nográfica artificial.
O fato é que o teatro ilusionista do fim
do século XIX se vê a si mesmo como
uma tecnologia mais do que como uma
arte, e que os problemas de estilização e

2 O livro mencionado por Roubine é uma edição francesa. Não sabemos se


ele tem edição em português, pois não encontramos essa informação. A
edição francesa é Esthétique générale du décor de théâtre de 1870 à 1914. Paris:
CNRS, 1975.

172
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

de expressão simbólica lhe são bastante


alheios. (ROUBINE, 1982, p. 107).
Simões (2008, p. 76) também aborda o problema ao dizer que,
quando o Naturalismo assume como
legado a conquista da verdade no tea-
tro, tem diante de si um paradoxo in-
dissolúvel. Este conflito entre verdade e
ilusão chega ao clímax e engendra sua
própria reviravolta.
Com a chegada da iluminação elétrica, estudiosos do
teatro, como Adolphe Appia, viram nela uma ferramenta im-
portante para as transformações da encenação. A influência
do Simbolismo, corrente literária francesa que inspirou vários
artistas em diferentes áreas por toda a Europa, aliada à eletri-
cidade, abriu caminho para as reformulações do espaço ce-
nográfico e da encenação como um todo. Com a cena abstra-
ta, a ideia simbolista das sugestões se contrapõe à encenação
ilusória dos naturalistas.
A sugestão torna-se parte fundamental
da revelação e o que não pode ser dito,
vira silêncio... E a imagem, da mesma
forma que na poesia simbolista, encon-
tra, através da palavra, o indizível – a
visualidade abre caminho para aquilo
que está para além do visível. (SIMÕES,
2008, p. 84).
É com este espírito de abstração que os encenadores do
final do século XIX iniciam um processo de crítica, reformu-
lação e abandono da cenografia decorativa, pois os simbolis-
tas não se comprometem com o rigor técnico e ilusório dos
cenários pictóricos. “A encenação volta-se para a iluminação
entendida agora como ‘jogo de luzes’, e esse, por sua vez, livre
da coerência naturalista, toma um sentido poético, musical e
sinestésico” (p. 85-86).

173
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A partir de então, a luz tem uma nova função, a da su-


gestão. Não está mais para revelar objetos em cena. Partici-
pa agora do mundo dos sentidos, da imaginação, não para
mostrar algo ao público, mas para sugerir que este descubra
por si mesmo. Abre-se, com isso, um canal de comunicação
sensorial.
Será o encontro entre as possibilidades
da iluminação elétrica e as necessidades
da cena advindas de novas teorias e prá-
ticas do teatro que transformará potên-
cia em ato, impulsionando o salto quali-
tativo da iluminação cênica. (p. 64).
A luz alcança poder transformador em potência. Ela é
de uma flexibilidade quase miraculosa.
[...] Possui todos os graus de claridade, to-
das as possibilidades de cores, como uma
paleta; ela pode criar sombras, torná-las
vivas e expandir no espaço a harmonia
de suas vibrações, exatamente como faz
a música. Nós possuímos nela todo o po-
der expressivo do espaço, se este espaço
é colocado à disposição do ator. (APPIA
apud SIMÕES, 2008, p. 105).
De acordo com Simões (2008, p. 66), rompeu-se a lógica da
realidade e, com isso, a luz, no espetáculo, deixou de ser pas-
siva para se tornar uma luz ativa, passando a construir novos
espaços e tempos, e a multiplicar “os planos de significação
da encenação.” Com a influência dos simbolistas, houve gran-
des transformações na cena teatral, no espaço cenográfico, e
a iluminação elétrica teve papel importante neste processo.
A melhora da acuidade visual na cena revelou uma cenogra-
fia anteriormente deficiente tanto para os naturalistas como
para as aspirações dos novos encenadores. Nessa conjuntura,
Appia foi quem primeiro questionou a pintura, o exagero re-

174
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

buscado da cenografia pictórica, que em nada dialogava com


a vitalidade do ator.
A iluminação e a pintura sobre telas
verticais são dois elementos que, longe
de se enriquecerem mutuamente por
uma subordinação recíproca, excluem-
-se inexoravelmente. A disposição das
telas pintadas que compõem a ceno-
grafia necessita que a iluminação esteja
unicamente ao seu serviço, para tornar
visível a pintura, o que não corrobora o
papel ativo da luz, sendo-lhe até mesmo
contrário. (APPIA, 2016, p. 349).
Na visão de Appia, o ator deveria ocupar o centro da cena,
dada a sua vitalidade e plasticidade. Ele propõe um ator vivo,
móvel, explorando harmoniosamente a espacialidade e sen-
do revelado pela magia sugestiva da luz e da sombra. Só assim
o teatro propiciaria ao espectador uma cena integralmente
livre, ativa, completa e entregue à plasticidade orgânica de
uma ação viva. Daí aplicarmos no presente trabalho a pro-
posta de Appia para o bailarino “vivo”. A cenografia, para
atender à vitalidade do ator, deve ser arquitetônica, com pla-
nos diversos, blocos, linhas de fuga e volumes variados. E ser
aberta à interação e à exploração. Ela não deve impor ao ator
um lugar fixo, deixando-o sem movimento e desconectado
do ambiente. Precisa deixá-lo livre para sua ação. Pelo fato
de não ser assim na pintura, Appia criticava duramente este
domínio. Retomamos suas palavras a respeito da questão:
Aqui eu suponho que o ator já tomou
parte na cenografia que nós acabamos
de percorrer com os olhos. Ora, seu lu-
gar não está no centro da cena, infeliz-
mente; de forma que aquele que, pela
sua atividade dramática, é o único mo-

175
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tivo da representação e da atenção que


nós prestamos a ele, deve se mover na
parte da cenografia onde a ilusão cêni-
ca está no seu mínimo. Essa superfície
plana, ou arbitrariamente despedaçada,
sobre a qual repousa a cenografia, torna-
-se pela presença do ator uma realidade
tangível; são pés vivos que a pisam, e
cada passo acentua sua insignificância.
É evidente que, quanto mais a pintura
das telas for bem feita do ponto de vis-
ta da ilusão de óptica, menos o ator e
seu entorno direto poderão misturar-se
com a cena, já que nenhuma das ações
do ator corresponderia ao lugar e aos
objetos representados pela cenografia.
A iluminação que poderia, pela sua ex-
pressão, dar alguns relevos aos persona-
gens, encontra-se monopolizada pelas
telas pintadas. E o arranjo espacial, qua-
se inteiramente ao serviço dessas telas,
só fornece ao ator o ínfimo mínimo de
praticabilidade autorizado pela pintura.
(APPIA, 2017, parte 2, p. 165).
Conforme o autor, para reformar a espacialidade cênica,
era preciso abandonar a pintura dos telões verticais, colocar
o ator no centro da cena e adotar uma cenografia arquitetu-
ral, trazendo vivacidade à cena e tornando-a ativa. Para se ter
uma cena viva, era necessário que a luz se tornasse realida-
de ambiente, perpassando os objetos cenográficos e criando
sombras e contrastes. Na reformulação da espacialidade cê-
nica que ele propôs, a iluminação, objeto do nosso estudo, é
o terceiro elemento fundante citado em A obra de arte viva. No
livro Música e encenação, escrito no ano de 1897 e publicado
em 1899, Appia expõe mais detalhadamente seu conceito de

176
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

luz ativa. Ele explica as funções e o uso dos equipamentos e


diz também sobre a luz de preenchimento ou difusa e sobre a
luz de efeito ou direta.
Appia acreditava que, para a reforma do espaço cênico, a
luz é o elo entre o ator e o espaço. Para ele, a luz é, no espaço,
uma expressão perfeita da realidade viva, assim como os sons
o são no tempo. A cor, no entanto, é um derivado da luz, e só
pela luz pode ser realidade viva. Portanto, sob dois aspectos
da realidade cênica que diferem enormemente, a cor é de-
pendente da luz. Um deles é a representação por meio da vi-
sibilidade projetada numa superfície que aparentemente se
limita à realidade do objeto. A cor, nessa circunstância, é uma
realidade do objeto, sem conexão externa que a torne viva
fora da representação pictórica, como é nos telões dos pinto-
res. Ela só pode agir por reflexos e absorções, pois está presa
ao objeto, e, se se move, é por causa do objeto, não por ela.
O outro aspecto é a luz viva, em que a cor passeia pelo
espaço cênico tornando-o móvel. Permeia toda a cena con-
ferindo-lhe luminosidade ambiente. Deste modo, a cor par-
ticipa da existência da luz. É um elemento vivo que está em
contato direto com a cena tornando-se parte integrante do
espaço cênico, gerando movimento à cena e conectando-
-se intimamente com o espaço, os objetos e o corpo do ator.
Sua vida não é fictícia, como nas pinturas, mas é realidade
(APPIA, [1969?]). Nesta passagem podemos ver claramente
a força que Appia creditava à iluminação como componente
estruturador de uma espacialidade livre da pintura.
A cena viva exige que a cor seja mais comumente liga-
da à luz e faz que ela adquira status criativo e de linguagem,
não mais só para revelar, para clarear a cena, mas para gerar
emoções, estados d’alma, sensibilizações. De acordo com Si-
mões (2008), a luz cênica como elo entre o ator e a cenogra-

177
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

fia tem diferentes realidades de existência, que são possíveis


graças à imensa flexibilidade de sua natureza. A iluminação
confere, assim, movimento à cenografia; ou seja, vivifica a
cena, permitindo uma relação concreta entre o ator vivo e o es-
paço. A luz ativa é o instrumento de orquestração das relações
entre os diversos elementos que compõem o espetáculo.
No livro Música e encenação, ao contrário do que ocor-
re em seus outros escritos, em que a luz é tratada de forma
estético-filosófica, Appia expõe os fundamentos técnicos da
aplicação da luz ativa:
Appia escreveu muito sobre a ilumi-
nação, mas em geral com enfoque teórico
e conceitual. Em A Música e a Encenação,
porém, como uma exceção que confir-
ma a regra, em cinco páginas dedicadas
especificamente ao tema, ele tenta orga-
nizar um sistema geral da prática da ilu-
minação cênica do ponto de vista esté-
tico e técnico, estabelecendo diferentes
funções e formas da luz no espetáculo,
incluindo a descrição dos equipamentos
e posicionamentos preferenciais para
cada função proposta. Esse “compên-
dio das técnicas de iluminação cênica”
escrito em 1892 é, portanto, documento
fundamental para compreender em seus
primórdios a articulação de uma função
ativa da luz no teatro e suas característi-
cas técnicas. Ou seja, o que poderíamos
chamar de “be-a-bá” da constituição de
uma “Scriptura” da iluminação cênica.
(SIMÕES, 2008, p. 111).
Assim temos que, para Appia, quanto aos equipamentos
de iluminação de uma produção necessários para a cena,
eram requeridos dois grupos distintos de aparelhos, com

178
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

funções também distintas. Um grupo era para as luzes de


preenchimento, para as luzes atmosféricas, uma aplicação, de
certo modo, similar à adotada pelos naturalistas, porém não
com a mesma finalidade. O outro grupo de equipamentos se-
ria para a luz direta.
Para a luz ativa, era importante o uso de equipamentos
com as duas funções: alguns aparelhos seriam encarregados
de propagar a luz; outros, pela direção precisa de seus raios,
criariam as sombras visando assegurar a qualidade da ilumi-
nação. Os primeiros são chamados aparelhos de luz difusa,
e os outros, aparelhos de luz ativa (APPIA, 2017, parte 2,
p. 179). Nas descrições, ao tratar dos equipamentos da luz
difusa, Appia recomenda aparelhos que tenham foco aberto,
lentes transparentes e telas de transparência variável, emitin-
do um facho luminoso de forma a atenuar a claridade em
cima dos objetos cenográficos e do ator.
[É] o que chamamos hoje, justamente, de
difusores, perfeitos para suavizar o con-
traste na luz geral e realçar as cores, vo-
lumes, de forma homogênea [...] ou seja
ele recomenda o que chamamos hoje de
Luz Geral. (SIMÕES, 2008, p. 116).
Em relação à luz ativa, o autor indica o emprego de apa-
relhos móveis, individualizados, direcionais e manipuláveis,
o que permitirá um grande aperfeiçoamento de seus meca-
nismos. “Propõe também o uso de formas e recortes para in-
terceptar parte da luz dos aparelhos móveis e manipuláveis,
criando sombras sugestivas, fachos de luz com formas ou
imagens projetadas” (SIMÕES, 2008, p. 116). Esse mecanis-

179
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mo se aproxima dos gobos3 usados hoje para projetar imagens


quando colocados em aparelhos como o elipsoidal.4
O referencial de Appia para elaborar seus conceitos ine-
rentes à iluminação cênica foi a observação da natureza. Nela
está a influência de sua concepção da luz para a nova ence-
nação. Na visão do autor, na qualidade da luz está a qualida-
de da sombra que ela projeta. A luz do dia penetra em todos
os lugares, e só percebemos sua direção quando percebemos
sua sombra. Ambas se formam pela mesma luz que penetra a
atmosfera e por ela se espalha (APPIA, 2017, parte 2). O es-
critor aponta que não podemos reproduzir este efeito natural
com o mesmo poder que a natureza tem. Uma lareira, por
exemplo, produziria sombra pelo poder de sua luz, uma som-
bra de beleza, é certo, mas ela não seria capaz de penetrar o
ambiente criando o claro-escuro, chamado de “sombra leva-
da”, como faz a natureza. Resumindo, a luz produzida por este
fogo não consegue o claro-escuro pelo poder de sua força.
Para simular essa luz, devemos ter os dois grupos de equipa-
mentos mencionados pelo encenador: os que propagam a luz
e os que criam as sombras.
Para o arranjo espacial de uma boa iluminação, é neces-
sário que – e Appia é enfático em apontar isso – exista a luz
difusa e a luz direta em conjunto. A luz difusa sozinha só
existiria para ajudar a ver claramente, assim como a luz dire-
ta sozinha só poderia expressar o sobrenatural, à noite: uma
3 Gobos são acessórios utilizados em projetores de iluminação, como os
elipsoidais, para projetar imagens. Podem ser feitos de vidros pintados
com alguma imagem ou de aço, sendo a imagem recortada, como um
negativo. Quando os gobos são colocados em frente ao facho luminoso, a
imagem é projetada e forma o desenho através da luz.
4 Elipsoidais são refletores de iluminação, também chamados refletores de
recorte. Possuem componentes como a íris, usada para focalizar a luz, as
facas, que são peças laterais achatadas empregadas para recortar o facho
de luz criando formas geométricas, e o suporte para a fixação dos gobos.

180
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

tocha, uma aparição sobrenatural, por exemplo. Para a exis-


tência da luz ativa, é preciso que as duas luzes, a difusa e a
direta/ativa, sejam projetadas sobre a cena simultaneamen-
te e com intensidades diferentes. Porém a intensidade não
pode ser maior que a necessária para formar as sombras que
a luz direta produz quando atravessa os objetos de cena. Um
afastamento muito grande entre elas não nos permite ver a
luz difusa, e seria somente a luz direta que afetaria a repre-
sentação quanto à visibilidade e/ou à plasticidade.
Para evitar as sombras que alterariam
o poder da luz direta, a luz difusa deve
iluminar todas as partes do material
cenográfico (o ator incluso). Quando,
através dela, nós pudermos “ver clara-
mente” sobre a cena e quando as som-
bras produzidas se contradisserem su-
ficientemente para se anularem, a luz
direta poderá fazer a sua aparição; pois,
excetuando os casos, sem dúvida raros,
onde ou uma ou a outra das duas luzes
deverá operar sozinha, é óbvio que é por
“ver claramente” que nós devemos co-
meçar. A intensidade da luz difusa será
em seguida regulada conforme a da luz
direta. (APPIA, 2017, parte 2, p. 181).
Appia tenta elaborar um sistema metodológico para a
criação da iluminação, com métodos para a aplicação técnica,
indicando posicionamentos e modelos de aparelhos para cada
uso. No entanto, sua teoria é baseada nas condições artísticas
do teatro de seu tempo, é uma tentativa de melhorias para a
confusão da época. Ele identifica os problemas tecnológicos em
relação aos aparelhos existentes para a iluminação no período
e aponta as dificuldades dos encenadores em alcançar tecnica-
mente o ideal para a construção visual do seu espetáculo.

181
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Appia até considerava que os instru-


mentos disponíveis em posições fixas
nos teatros poderiam operar na pro-
dução da luz difusa, mas aponta a ne-
cessidade de estudos do seu posiciona-
mento, uma vez que a nova práxis cê-
nica por ele proposta descartava a dis-
posição sucessiva de pinturas verticais
paralelas, para as quais as posições fixas
dos instrumentos de luz foram concebi-
das. (TUDELLA, 2013, p. 580).
O autor apontou que os equipamentos não eram suficien-
tes e demandou
pesquisas que investigassem a possibi-
lidade de uma maior eficiência técnica
dos instrumentos, incluindo sua mobili-
dade e manuseio, para permitir flexibili-
dade no atendimento das novas propo-
sições dos dispositivos cenográficos [...]
mudando radicalmente a geografia da
cena. (TUDELLA, 2013, p. 580).
No livro Música e encenação, ele explica como era o equipa-
mento para a luz cênica, numa tentativa de organizar o caos
peculiar à iluminação na época:
Sobre nossas cenas, a iluminação se faz
simultaneamente sob quatro formas di-
ferentes: 1 As varas levadiças que, colo-
cadas nas frisas, devem iluminar as telas
pintadas e são apoiadas nas coxias e so-
bre o chão da cena pela ribalta mais mó-
vel, mas cujo objetivo é o mesmo. 2 O
que nós chamamos “ribalta”, essa mons-
truosidade singular de nossos teatros,
encarregada de iluminar a cenografia e
os atores pela frente e por baixo. 3 Os

182
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

aparelhos completamente móveis e ma-


nuseáveis para fornecer um foco preci-
so, ou diversas projeções. 4 E, por fim,
a iluminação por transparência, isto é,
aquela que ressalta certos elementos
transparentes da pintura, iluminando a
tela do lado oposto ao público. O jogo
harmônico de tudo isso é evidentemen-
te bastante complicado, até mesmo tão
complicado que é completamente im-
possível, e nossos espetáculos demons-
tram isso. Há ali elementos contraditó-
rios demais para poder fornecer qual-
quer harmonia; eles também renuncia-
ram e despedaçaram impiedosamente
o exercício do mais poderoso de todos
os engenhos cenográficos. Com efei-
to, como conciliar uma luz destinada a
iluminar as telas verticais e que por isso
não deixa de atingir os objetos coloca-
dos entre elas, com uma luz destinada
a esses objetos e que também não dei-
xa de atingir as telas verticais? (APPIA,
2017, parte 2, p. 179).
Como observa Simões (2008), Appia identificou bem as
relações deste sistema de iluminação do teatro de seu tempo
quanto à técnica, às funções, à forma e aos equipamentos, e
fez reivindicações futuras para a iluminação. Suas propostas
possibilitaram equipamentos melhores, especializados no to-
cante às necessidades que ele defendia para este novo princí-
pio da iluminação cênica. Estas melhorias sugeridas por ele
foram empreendidas ao longo do tempo e fazem parte da
realidade dos iluminadores atualmente.

183
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Considerações finais

Acreditamos que Adolphe Appia ofereceu uma contri-


buição ímpar para o desenvolvimento das artes da cena. Suas
pesquisas foram criativas e até certo ponto incompreendi-
das, mesmo por alguns artistas do seu tempo. Como afirma
Eduardo Tudella (2017), para assimilar na totalidade a obra
de Appia, para se deixar levar pelas possibilidades e sugestões
que ela oferece e adentrar no íntimo visual da cena appiana,
o leitor e/ou o pesquisador precisam ter uma postura aber-
ta e flexível. Precisam livrar-se de molduras, de preconceitos
formais, e incorporar-se em uma leitura aberta dos processos
de experimentações visuais. E isso só será possível através de
uma educação e de um entendimento apreendidos pela ex-
perimentação até então não pensada. Temos percebido, ao
longo de anos de estudo acadêmico, a escassez de pesquisas
científicas sistemáticas sobre a iluminação cênica, e Adolphe
Appia é, para nós, um marco importante nesta discussão. Não
estamos afirmando aqui que não existem outras pesquisas so-
bre o assunto em questão, no entanto grande parte delas foca
apenas no aspecto historiográfico da iluminação, nas trans-
formações conceituais da arte teatral e em sua abordagem
histórica. Esse enfoque nos priva do entendimento de que
o objeto estético pode ser visto ainda
em edificação, ao menos naquilo que
ele apresenta de visível, revelando os
alicerces e os modos pelos quais eles se
relacionam entre si, sugerindo a men-
te do criador em exercício e ainda, não
menos relevante, detectando, aqui e ali,
a alma e o ideário do artista. (BRITO;
GUINSBURG, 2006, p. 24).

184
A luz ativa no trabalho de Adolphe Appia

Esperamos, ao fim da pesquisa, obter uma compreensão


ampla dos conceitos de Appia sobre a luz ativa para, no estu-
do de caso, conseguir analisar com precisão os documentos
dos iluminadores selecionados. Assim, acreditamos poder
aplicar de forma clara esses conceitos em nosso trabalho de
experimentação e ver, numa produção coreográfica contem-
porânea, essa luz que tanto influenciou as artes da cena ao
longo dos anos.

Referências

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boa: Arcádia, [1969?].
APPIA, Adolphe. Música e encenação, parte 1. Tradução Flávio
Café. Dramaturgias, Brasília, UnB, v. 1, ano 1, 2016. Disponível em:
http://ojs.bce.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1521/
showToc. Acesso em: 19 fev. 2020.
APPIA, Adolphe. Música e encenação, parte 2. Tradução Flávio
Café. Dramaturgias, Brasília, UnB, v. 4, ano 2, 2017. Disponível em:
http://ojs.bce.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1728/
showToc. Acesso em: 19 fev. 2020.
APPIA, Adolphe. Música e encenação, parte 3. Tradução Flávio
Café. Dramaturgias, Brasília, UnB, v. 5, ano 2, 2017. Disponível em:
http://ojs.bce.unb.br/index.php/dramaturgias/issue/view/1793/
showToc. Acesso em: 19 fev. 2020.
BRITO, Rubens; GUINSBURG, Jacó. Método matricial. In:
CARREIRA, André; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando;
FARIAS, Sérgio Coelho (org.). Metodologias de pesquisa em artes cêni-
cas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 18-25. (Memória Abrace, 9).
NASCIMENTO, Francisco Paulo do. Classificação da pesquisa:
natureza, método ou abordagem metodológica, objetivos e proce-
dimentos. In: NASCIMENTO, Francisco Paulo do; SOUSA, Flávio

185
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Luís Leite (org.). Metodologia da pesquisa científica: teoria e prática.


Brasília: Thesaurus, 2016. cap. 6.
PLAZA, Julio. Arte, ciência, pesquisa: relações. Trilhas, Campinas,
v. 6, n. 1, p. 21-33, jul.-dez. 1997.
RAMOS, Luiz Fernando. Arte e ciências: abismo de rosas. São Paulo:
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ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral (1880-
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corte: Do fogo à revolução teatral). 2008. Dissertação (Mestrado
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SIMÕES, Cibele Forjaz. À luz da linguagem: a iluminação cênica: de
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cas da luz 2013. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade de São
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TUDELA, Eduardo Augusto da Silva. Práxis cênica como articulação
de visualidade: a luz na gênese do espetáculo. 2013. Tese (Doutora-
do) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2013.
TUDELA, Eduardo Augusto da Silva. A luz na gênese do espetáculo.
Salvador, BA: Edufba, 2017​.

186
Experiências educacionais e práticas educativas
olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

Kayara Castilho Pimenta1


Marlini Dorneles de Lima2

Resumo: Nas memórias e inquietações de um corpo que


dança, que reza, que chora, que sabe parir, que é marcado
historicamente por uma educação hegemônica, racista, pa-
triarcal e colonial, renasce um corpo que encontra na dança
a força para ensinar, aprender e renascer através do parto,
que pode ser compreendido como um momento de criação
feminina. Um olhar para dentro de si, mergulhado na subje-
tividade dos mais íntimos saberes que este corpo adquiriu
durante toda sua vida, em acontecimento único, marcante
e irreprodutível em cada mulher. Para este escrito, convo-
caremos noções conceituais como encruzilhadas, lugares/

1 Mestranda em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás (UFG).


Graduada em Educação Física pela UFG. Especialista em Psicopedagogia
Institucional e Clínica pela Faculdade Brasileira de Educação e Cultura
(Fabec). Especialista em Educação Infantil, Alfabetização e Letramento
pela Fabec. Especialista em Educação Inclusiva com ênfase em AEE
pela Fabec. Professora efetiva de dança na Escola Municipal de Artes
de Aparecida de Goiânia. Membro titular do Conselho Municipal de
Cultura de Aparecida de Goiânia.
2 Docente do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de
Goiás (UFG) e do Mestrado em Artes da Cena-UFG. Doutora em Arte pelo
Instituto de Arte da Universidade de Brasília (UnB). Coordenadora das
Ações Afirmativas da CAAF-UFG. Integrante do (Ve)lhaco? Laboratório
de História e Artes do Corpo e do Laboratório Labphysis, ambos da UFG,
e do Núcleo de Dança Coletivo 22 (Goiânia). Pesquisadora do Coletivo de
Documentação e Pesquisa em Dança Eros Volúsia-UnB.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

momentos, corporeidades, poéticas e saberes com o objetivo


de discutir possibilidades e experiências educacionais atra-
vés de memórias e vivências corporais que levam a aprendi-
zados, seja através de saberes sistematizados ou de saberes
tradicionais populares. Partimos de um olhar sensível para
a dança e suas práticas que marcam a vida e o corpo da ar-
tista-pesquisadora e refletem em um processo de conheci-
mento e renascimento durante o nascimento. Por meio de
aproximações, procura-se compreender como as experiên-
cias vividas dançando e parindo resgatam memórias corpo-
rais, deixando lembranças e inquietações que se traduzem
na prática pedagógica comprometida com a transformação
e a liberdade dos corpos envolvidos.
Palavras-chave: dança; corpo; memória; experiências
educacionais.

Experiencias educacionales y prácticas educativas


miradas a base de la metáfora del parto, nacimiento y
renacimiento

Resumen: En las memorias e inquietudes de un cuerpo


que danza, que reza, que llora, que sabe parir, que es marcado
históricamente por una educación hegemónica, patriarcal y
colonial renace un cuerpo que encuentra en la danza la fuer-
za para enseñar, aprender y renacer a través del parto, que
puede ser comprendido como un rato de creación femenina.
Una mirada para dentro de sí, hundido en la subjetividad,
en los más íntimos saberes que este cuerpo adquirió durante
toda su vida, un acontecimiento único, exuberante e irre-
producible en cada mujer. Para este escrito, iremos convocar
nociones conceptuales como encrucijada, lugares/momen-
tos, corporeidades poéticas y saberes con el objetivo de dis-
cutir posibilidades y experiencias educacionales a través de
memorias y vivencias corporales que llevan a aprendizajes,

188
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

sea a través de saberes sistematizados o saberes tradicionales


populares. Partimos de una mirada sensible para la danza
y sus prácticas que marcan la vida y el cuerpo de la artista-
-investigadora y reflejan en un proceso de conocimiento e
renacimiento durante el nacimiento. Delante aproximacio-
nes y extrañamientos procurase comprender como las ex-
periencias vividas danzando y pariendo rescatan memorias
corporales, dejando recuerdos e inquietudes que se traducen
en la práctica pedagógica comprometida con la transforma-
ción y libertad de los cuerpos envueltos.
Palabras clave: danza; cuerpo; memoria; experiencias
educacionales.

Memórias, corpos e partos: contextualização

Ao pensar em experiências educacionais, fomos levadas,


como artistas-pesquisadoras, a voltar o olhar para dentro de
nós mesmas, buscando aprendizados em nossas memórias e
vivências corporais, seja através de saberes sistematizados ou
de saberes tradicionais populares. Assim, nosso intuito com
este escrito é colocar em diálogo, de um lado, a potência me-
tafórica do parto, o nascimento e o renascimento, e, de outro,
as questões acerca da prática pedagógica, do ser professora de
dança na escola e na universidade, de um corpo que dança
e de seus desafios. Nessa direção, tentaremos provocar, de
alguma forma, o nascimento e o renascimento de caminhos
pertinentes para pensar e viver a dança como produção do
conhecimento, criação artística e prática pedagógica.
Imaginar que o corpo se constrói através de suas memó-
rias corporais, sejam elas positivas ou não, agradáveis ou não,
felizes ou não, leva-nos a entender que é por intermédio das
memórias que estabelecemos nossas relações com o mundo

189
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

circundante e nos constituímos como corporeidade. Logo,


em um processo de criação em dança, e consequentemente
na prática pedagógica do ensino da dança, é possível resgatar
memórias corporais daquilo que vivemos, que deixou marcas
e lembranças no corpo. Izquierdo (2004, p. 16), em A arte de
esquecer, afirma que “cada um de nós é quem é porque tem
suas próprias memórias”. A construção dessas memórias
acontece simultaneamente ao processo de esquecimento e
seleção de lembranças desenvolvido por nossa mente.
Este texto nos remete a um corpo feito das memórias de
uma infância conturbada e desestruturada familiarmente, o
corpo de uma criança que cresceu sem pai e mãe, mas que
tinha em sua avó a figura de uma mãe e em seu avô a figura
da hegemonia, do autoritarismo, do machismo e das rela-
ções de poder e submissão tradicionalmente estabelecidas
entre homens e mulheres numa época vivida no interior
do estado do Pará. Remete-nos, também, ao corpo de uma
menina que viveu com sua mãe, seu pai e suas quatro irmãs
no interior do Rio Grande do Sul e que cresceu interpretan-
do e preenchendo suas amarguras e os questionamentos da
vida com a dança – mais especificamente, com o balé clás-
sico, em que os estereótipos eurocêntricos relativos a corpo,
dança e feminino estão marcados por um corpo branco, ma-
gro, delicado e virgem.
Isso nos faz pensar nas relações de poder descritas por
Foucault (1987), que apontam para um “poder hegemônico
dominante” exercido pelos sistemas sobre as massas atra-
vés das tradições de determinada cultura. Com a finalida-
de de moldar corpos, esse poder direciona pensamentos e
comportamentos dentro de uma sociedade. Greiner (2017,
p. 123) também nos lembra que

190
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

os dispositivos de poder agem profun-


damente na constituição do conheci-
mento e das crenças acerca daquilo que
somos, do que se reconhece (ou não)
como outro, assim como na constituição
de juízo de valor.
Tais relações podem ser comparadas ao poder exercido
pela família sobre uma criança, por exemplo, reprimindo-a
e impedindo-a de ter contato com determinados tipos de ma-
nifestações culturais, como a capoeira, ainda tão marginali-
zada nos espaços formais e, também, nos espaços informais
de ensino. Esse distanciamento, que impede a criança de
experimentar, vivenciar e conhecer as mais variadas danças
populares brasileiras, poderá causar estranhamentos e, con-
sequentemente, novos distanciamentos, e assim por diante,
em um ciclo sem fim.
Diante destas questões, compreendemos a importância de
estarmos atentos a estas “forças colonizadoras”, que são agen-
tes de uma proposta educacional a serviço de uma minoria e
de interesses econômicos em detrimento de um projeto edu-
cacional libertador e comprometido com as questões sociais
e comunitárias, urgentes em nosso país. Por isso lutamos e
resistimos dentro da escola, para que o educando tenha o di-
reito de conhecer sua cultura, seu povo, sua história, seja por
meio da capoeira, do hip-hop, da dança do ventre, do funk ou
de outras manifestações culturais.
Neste cenário, reivindicamos a urgência e insurgência de
corpos com sede de dança, que busquem suas manifestações
por onde passam, que aprendam com cada experiência vivida
desde a infância. De corpos que estudem a dança, que ensi-
nem a dança, que sejam marcados e marquem muitos outros
através das conexões e relações proporcionadas pela dança.
De corpos que organizem sua corporeidade com base nos

191
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

desafios do cotidiano e efetivem “a performance da realidade


vivida como corpo que cria cultura e é dialeticamente cons-
truído por ela” (SILVA; LIMA, 2014, p. 155).
Com essa perspectiva, direcionamos nossa atenção e re-
flexão às possibilidades de compreender as manifestações
das culturas populares dançadas, investigando suas raízes e
o modo como essas raízes metaforicamente florescem e dão
frutos. Assim nos aventuramos a reviver um corpo que gera
a vida, a evocar os conflitos que essa nova realidade provoca
em nosso ser, trazendo uma mistura de sensações e emoções
proporcionadas pela dança. São emoções que marcam a me-
mória, passando a nos acompanhar durante todas as trajetó-
rias da vida.
Das várias vezes que dancei com meus
alunos, e ainda das vezes que dancei
com filhos (no ventre) e no dia em que
usei a dança para juntar toda minha
força feminina no momento de parir,
foi por meio da dança que [aprendi] a
confiar na força da natureza e acreditar
na minha competência, enquanto mu-
lher, de trazer à luz duas crias em meio
a movimentos e embalos da dança, sem
medos ou receios de expor naquele lu-
gar toda a força de uma mulher que
sabe parir. Pensando bem, essa força,
acho que veio da minha avó que pariu
6 ou da minha mãe, que pariu 3, enfim,
a experiência de parir meus filhos, sem
dúvida nenhuma, foi um dos proces-
sos de conhecimento e renascimento
mais marcantes em meu corpo até hoje.
(PIMENTA, 2019, sem paginação).

192
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

O parto nos ajudou a entender nosso lugar no mundo,


nossa força feminina, nossas raízes, nossa fé.
Na mesma intensidade [em que convi-
via] com outro ser em mim, meu corpo
precisava habitar outros “eus” para com-
preender aquele momento, daí muitas
mulheres me habitarem, simbolicamen-
te, minha mãe, minha bisavó, minha ta-
taravó; ser fêmea de força vital me preen-
cheu. Dessa experiência, surgiu também
um corpo questionador e dilacerado.
(LIMA, 2016, p. 38).
As experiências descritas marcam corpos que dançam, que
conseguem parir, que amamentam, que choram, que emba-
lam noites adentro, que aprendem com o outro o que jamais
se aprende nos livros: ser mãe. Quando o nascimento aconte-
ce, há “algo que se quebra ou se desestrutura para possibilitar
a transição do ser apenas um para ser dois” (GUTMAN, 2015,
p. 39). O parto é um momento/estado de criação, é um olhar
para dentro de si e um mergulhar subjetivamente nos mais
íntimos saberes que o corpo adquiriu durante sua vida. É um
acontecimento único, marcante e irreprodutível em cada mu-
lher. Por isso, acreditamos na potência de uma comparação
entre esta experiência corporal intensa e transformadora para
o corpo e a experiência educativa que o parto promove – uma
analogia que leve em conta as relações possíveis com outros
corpos envolvidos no momento de gestação e parto.
Humanizar o nascimento é garantir
protagonismo para as mulheres. En-
tender o nascimento como um evento
social e humano, e não apenas médico.
É reconhecê-lo como o evento apical
da feminilidade, sobre o qual atuam
forças sociais, emocionais, psicológicas,

193
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

afetivas, espirituais e – acima de tudo


– numa configuração subjetiva, única
e intransferível. Mais ainda: é ter uma
visão interdisciplinar, observando a de-
vida consideração com os outros atores
que fazem parte tanto da cena de parto,
quanto do debate sobre seu significado
na cultura. (BALASKAS, 2015, p. 15).
Pensar no parto como lugar/momento, como evento so-
cial, e nos elementos que cercam todo o seu acontecimento
leva-nos a conexões, estranhamentos e tensões que podemos
chamar de “encruzilhada”. Para Lima (2016), viver o momen-
to do parto é viver a própria encruzilhada, entranhada a um
corpo limiar que se faz, desfaz e se refaz durante todo o ritual
do nascimento de duas novas vidas que ficarão marcadas por
um “novo” corpo.

Encruzilhadas e limiaridades: potências de encontros e


experiências corporais educacionais

Falaremos de encruzilhada como um tempo/espaço po-


tente no campo da experiência corporal. Para Silva (2012), a
encruzilhada pode ser compreendida como ponto de tensão,
confrontos e conflitos entre crenças, saberes, conceitos e cul-
turas mediante um encontro com o outro. Encruzilhada signi-
fica ainda ponto de encontro e interseção entre passado e
presente, entrelugar atravessado por uma mistura do cotidia-
no com o ritual, e nela o sagrado e o profano se sobrepõem.
É um lugar de convergência entre forças tangenciais que
podem gerar estranhamento e reconhecimento entre o eu
e o outro, possibilitando diferentes experiências. Para Mar-
tins (apud SILVA; LIMA, 2014, p. 162), a “encruzilhada é o

194
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

encontro de ruas ou trilhas onde se faz oferenda para Exu e


sua falange”. Assim, partindo desse imaginário simbólico da
cultura afro-brasileira, entendemos que, no contexto artístico
de criação, a encruzilhada não se dá como um lugar concre-
to, mas como metáfora da noção de tempo e espaço. Perpas-
sa questões do sagrado, o lugar em que passado e presente
se sobrepõem, conforme nos lembram Silva e Lima (2014,
p. 163). Para abordar o conceito de encruzilhada, as autoras
se aproximam da concepção de corpo limiar, que é a própria
encruzilhada, “um espaço metafórico que revela os encontros
e a memória coletiva”.
Os momentos mais marcantes desta encruzilhada, pode-
mos relacioná-los com um círculo de fogo: nesses momen-
tos, com um grito de desespero, o corpo anuncia seus medos.
Diante de uma tensão jamais imaginada, que, ao mesmo tem-
po, abre outras forças e energias, o corpo afirma não conseguir
fazer algo, dizendo que não tem forças e, muito menos, cora-
gem para aquilo. Porém segue em frente nos novos caminhos
abertos e enfrenta estas passagens, sendo conduzido então de
volta à calma pelos corpos ao redor, que reforçam firmemente
sua força e capacidade. Logo, “presenciar esses momentos é
vivenciar a encruzilhada, acompanhando o corpo limiar se
fazer e desfazer no espaço”. É construir potenciais limiarida-
des entre vida e morte, começo e recomeço, coragem e medo
(SILVA; LIMA, 2014, p. 165).
Então decidi que seria “tudo ou nada”,
enfrentaria a dor e traria minha filha ao
mundo e, assim, juntando toda minha
força feminina, consegui “parir”, e, no
instante em que minha filha nasceu, me
deparei com uma nova encruzilhada:
havia outra vida dependendo da minha
força para chegar a este mundo. Será que

195
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

seria eu capaz de enfrentar tudo isso de


novo? Meu filho não estava preparado
para chegar, tampouco tinha pressa, e
assim tivemos que esperar por longos
40 minutos, para que ele finalmente
resolvesse que era a sua hora de chegar.
Foi então que, de cócoras, assim como
as indígenas em um ato de coragem e fé,
[vi nascer] meu filho, com a mão na ca-
beça para tornar tudo mais emocionan-
te. (PIMENTA, 2019, sem paginação).
Construindo potências corporais, o partejar se concretiza
no nascimento de outros corpos, e, ao mesmo tempo, nós re-
nascemos.
Entre encruzilhadas e limiaridades, somos conduzidos a
pensar, por meio de memórias e afetações corporais, em pro-
cessos educacionais e, logo, em processos criativos em dança.
E mais: somos impelidos a indagar sobre o modo como es-
sas afetações podem marcar nossas experiências educacio-
nais. Ao questionar o nosso próprio fazer dança, vemos esta
problematização como resultado do pensamento decolonial,
que nos instiga a repensar e refazer o processo artístico-
-pedagógico da dança no contexto escolar, partindo de um
olhar para a descolonização.
Neste contexto, buscamos entender como as experiên-
cias educacionais construídas por intermédio do processo de
nascimento e renascimento nos auxiliaram, em nosso papel
de professoras-artistas-pesquisadoras, a revisar nossa práxis
artístico-pedagógica dentro das aulas de dança, no contexto
escolar e na formação inicial de professores de dança. Esse
ponto de partida faz-se importante na construção de um pro-
jeto de intervenção que desenvolvemos com base nos concei-
tos decoloniais de arte-educação. Trata-se de uma proposta

196
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

metodológica pautada na noção de “poetnografias” dançadas,


desenvolvida por Silva e Lima (2014).
O conceito de poetnografia nasce de uma trajetória de
pesquisa artística que, em síntese, busca outros parâmetros
de corpo e movimento para criar em dança. Seguindo nessa
direção, o presente estudo foi atrás dos rastros de memórias
e dos saberes corporais das mulheres do cerrado, dos saberes
da própria artista em estado de criação e das memórias cor-
porais impregnadas no corpo em busca de sua ancestralidade.
Baseou-se nos saberes que nascem das relações entre alteri-
dade e matrizes estéticas (saberes tradicionais), das conexões
construídas em meio às encruzilhadas vividas no cotidiano
destas mulheres na relação consigo mesmas e com o mundo.
Esta noção conceitual, na qual se basearam nossas experiên-
cias no campo da criação artística, aproxima-se do trabalho
de Greiner (2017, p. 124-125), que aborda a questão da alteri-
dade como “estado de criação”.
Pode-se considerar que a experiência
da alteridade, que lida com tudo aquilo
que não é o mesmo (com um estado ou-
tro, acionado por algo, alguém, alguma
circunstância ou ideia diferente), cons-
titui-se como um dos nossos principais
operadores de movimento. É o próprio
Damásio quem explica que o compor-
tamento pessoal e social acontece junto
com a constituição de teorias das pró-
prias mentes e das mentes dos outros.
Teoria, neste contexto, significa um
complexo de leituras que o corpo (in-
cluindo o cérebro, mas sem se restringir
a ele) faz de si próprio, dos ambientes
e de possíveis compartilhamentos. Ao
marcar a imagem da diferença, o corpo

197
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

se disponibiliza à mudança, e ao teori-


zar, já se coloca em movimento.
Além de aproximações, o caminho trilhado por Greiner
(2017) apresenta também distanciamentos da noção de
poetnografia, que pode ser compreendida como fragmentos
dramatúrgicos oriundos de um percurso investigativo. Nes-
se percurso, a encruzilhada e o estado de alteridade presen-
te na experiência com o “campo vivido”3 são a mola propul-
sora do processo de criação e, por conseguinte, de processos
formativos em dança. O ponto mais significativo para este
estudo é o estado de alteridade, necessário para se pensar
a relação do eu com o outro e a maneira como ela se dá no
processo de campo vivido e de criação.
Afinal, as experiências dançantes constituem ações cultu-
rais cujos significados são criados individual e coletivamente
durante os momentos de troca de saberes com o outro e com
o mundo, dando sentido à existência de quem dança. Assim,
pensar a dança no campo educacional nos impele a refletir
sobre a corporeidade dos sujeitos e sobre seus contextos de
vida, a sentir inquietações acerca da realidade social do ser.
O trabalho com a dança na educação promove a integração
de racionalidade e sensibilidade para a construção coletiva e
dialógica de poéticas dançadas.

3 De acordo com Lima (2016, p. 79), o campo vivido seria o trajeto


percorrido durante a pesquisa analisando-se as afetações entre os sujeitos.
Logo, pode-se “pensar que o mundo vivido tece experiências no corpo, na
carne do mundo, sendo [estas] constitutivas da instauração dos sentidos,
do existir, das coisas”.

198
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

Em busca de uma educação decolonial dançada com o


outro

Antes de conjugar estas reflexões à perspectiva decolonial,


faz-se necessário destacar algumas marcas que a colonização
vem deixando em nossa cultura e em nossos corpos. Nessa
direção, ressaltamos os corpos femininos, vistos como objetos
estereotipados, silenciados e deixados na invisibilidade em
decorrência dos processos de inferiorização provocados pela
modernidade/colonialidade. Felizmente, porém, eles são
também corpos que resistem e que constroem conhecimento
através dos diversos saberes, a exemplo daqueles acionados
durante o parto. São corpos que possibilitam à mulher ser/ter
voz, garantindo sua liberdade e ajudando-a a assumir, assim,
seu lugar dentro de uma sociedade ainda com traços fortes
da colonialidade.
Mas como, através do corpo, uma mulher ou qualquer
pessoa enredada pelo colonialismo poderá resistir e li-
bertar-se das circunstâncias aqui enumeradas? A respos-
ta está, de certa forma, nas experiências educacionais que
nascem da interação entre o corpo, o mundo e o corpo do
outro. Por via das diferentes formas de sentir, agir, comuni-
car e expressar-se, tais experiências provocam percepções
traduzidas em histórias, culturas e saberes. Neste contex-
to compreendemos a corporeidade como manifestações
inter-relacionadas, interconectadas com o mundo vivi-
do e seus atravessamentos, sendo que tais manifestações
podem oprimir ou libertar o sujeito. A corporeidade está
presente em todos os processos de interação com o mundo e
com o outro. Nascemos e renascemos imersos em uma cultu-
ra hegemônica e limitante, que direciona e massifica pensa-
mentos e comportamentos. Portanto, as vivências corporais

199
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

que marcam o sujeito ao longo da vida determinam padrões


e estereótipos, além de influenciar significativamente a ma-
neira como este se manifesta em sua existência dentro de
uma sociedade culturalmente definida pela modernidade/
colonialidade.
Graças às experiências educacionais, os sujeitos alcançam
transformações individuais que nascem do envolvimento cole-
tivo durante determinado processo de criação. Nesse percurso,
seu conhecimento elaborado se correlaciona com seu mundo
vivido. No presente estudo, o mundo vivido pode ser tomado
como um campo que a artista-pesquisadora afeta e no qual é
afetada, não estando restrita apenas à observação de seu objeto
de estudo. É possível considerá-lo aqui como o trajeto percorri-
do durante a pesquisa, seus atravessamentos e afetações.
E assim se deu a construção do caminho
metodológico que aqui chamo de traje-
tos percorridos, dito de outra maneira,
mundo vivido. Foi feito, sim, de corporei-
dade a partir do sentir, experienciar, re-
gistrar, problematizar e sistematizar. Es-
tes foram compreendidos e construídos
no próprio andar da pesquisa, depen-
dendo, entre outros fatores, das relações
que se construíram entre os corpos, das
concepções dos fazedores e da própria
pesquisadora. (LIMA, 2016, p. 83).
As relações tecidas entre corpos e saberes por meio do
campo vivido, durante um processo educativo/criativo, pro-
movem diversos saberes que ficam marcados no corpo e nas
memórias e refletem-se na prática educativa. Assim, a cons-
trução do conhecimento se dá de maneira dialógica. Freire
(2015) defende que a aprendizagem acontece mediante o en-
contro com as diferenças e o diálogo entre os indivíduos en-

200
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

volvidos, sendo esta a mola propulsora para uma aprendiza-


gem pela diferença. Respeitar verdadeiramente as diferenças,
de maneira não hierárquica, permitindo ouvir a voz daqueles
que sempre foram silenciados e dialogando com seus sabe-
res de modo ético proporciona a educandos e educadores o
encontro com novos horizontes. Ensinar/aprender dialogica-
mente é uma ação intersubjetiva, que consequentemente de-
sencadeia novas percepções e transformações socioculturais.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2019,
p. 125) sustenta que, como “todo conhecimento é corpóreo,
não é aceitável que se conceda à experiência um estatuto
inferior ao da teoria”. Segundo as epistemologias do Sul, no
tocante às questões existenciais, somos construídos corporal-
mente das relações dialógicas entre saberes e fazeres que se
misturam ao passado, presente e futuro. Tais saberes são tra-
duzidos em histórias, narrativas, poéticas e culturas vividas
durante o processo de aprender, ensinar e reaprender. É o que
acontece quando aprendemos com a dança e (por que não
dizer?) com o parto e com o universo cultural vivido pelo/
no corpo, sendo impossível dissociar a experiência vivida do
sujeito que a experimenta. Isso é válido, também, para todos
os conhecimentos nascidos das lutas sociais, adquiridos in-
dividual ou coletivamente e que são marginalizados e silen-
ciados. É afirmativo dizer que os corpos (des)enraizados dos
sujeitos desses conhecimentos, paradoxalmente, nascem e
parem a cultura de um lugar.
No contexto educacional, estamos habituados a ver a es-
cola como um dos locais onde a disciplina “molda corpos e
pensamentos” e é imposta desde cedo, ou seja, visualizamos
práticas educativas cerceadoras de singularidades e especifi-
cidades culturais desde a educação infantil. Em sua maioria,
essas práticas visam a obediência, a hierarquia dos saberes e

201
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

o domínio das minorias. O educando é constantemente pu-


nido. Sua voz e sua expressão devem permanecer silenciadas
e apagadas. Não lhe são permitidas contestações contra a do-
minação de classe, o racismo estrutural, o machismo patriar-
cal, a opressão elitista e a massificação gerada pelas mídias
que manipulam o pensamento social.
Bell hooks (2017), com sua proposta de uma pedagogia
negra e feminista, provoca uma reflexão acerca do papel da/o
professora/professor e chama a atenção para a importância
de pensar consciente e criticamente sobre o mundo. Destaca
a relevância de tentar transformar as práticas nele reinantes
para que não reforcem a opressão colonial gerada pelas hie-
rarquias de poder.
Consciente de mim mesma como sujeito
da história, membro de um grupo margi-
nalizado e oprimido, vitimada pelo racis-
mo, sexismo e elitismo de classe institu-
cionalizados, eu tinha um medo terrível
de que meu ensino viesse a reforçar essas
hierarquias. (HOOKS, 2017, p. 190).
A autora propõe a busca por uma educação libertária e
dialógica, em que o aprendizado nasça das relações mútuas,
das trocas entre educador e educando, sendo ambos afetados
e influenciados. O professor deve, portanto, reconhecer seu
lugar dentro do universo escolar e atuar de maneira liberta-
dora, já que a realidade deste espaço de ensino é marcada por
um cenário de antagonismos e dificuldades. Ignorar tais con-
flitos é um ato de silenciar as diferenças. Partilhar saberes, ao
contrário, fortalece o processo de crescimento e aprendizado
de todos os sujeitos envolvidos.
Quando os professores levam narrativas
de sua própria experiência para a sala
de aula, elimina-se a possibilidade de

202
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

atuarem como inquisidores oniscientes


e silenciosos. É produtivo, muitas vezes,
que os professores sejam os primeiros
a correr riscos, ligando as narrativas
confessionais às discussões acadêmicas
para mostrar de que modo a experiên-
cia pode iluminar e ampliar nossa com-
preensão do material acadêmico. Mas a
maioria dos professores têm de treinar
para estarem abertos em sala de aula, es-
tarem totalmente presentes em mente,
corpo e espírito. (p. 35-36).
Acreditando na importância da relação de troca entre
educador e educando dentro do universo escolar, na prática
dialógico-mediadora como forma de vincular o conhecimen-
to elaborado e a realidade concreta, compreendemos que a
arte/dança na escola deve partir da adesão a uma educação
popular e decolonial, que tenha sua base no diálogo entre
culturas e saberes. A educação popular ajuda a superar qual-
quer tipo de opressão, pois é feita de luta e de experiências
baseadas em um discurso ideológico que promove o empo-
deramento das classes subalternas. É uma educação edificada
por meio da cultura do povo que se pretende educar. Valoriza
os saberes da comunidade a que se destina e, através do diá-
logo interativo entre educador e educando, busca construir
um conhecimento científico que seja útil para o desenvolvi-
mento dessa comunidade e para a transformação consciente
e autônoma de sua realidade.
Neste sentido, na educação dialógica
são priorizadas atividades que estimu-
lem a participação, a pesquisa, o debate,
o trabalho cooperativo, a solidariedade,
a expressão artística, o afeto, a pergunta,
a oralidade. O professor, sem perder sua

203
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

autoridade, incentiva o desenvolvimen-


to da liberdade com responsabilidade
dos alunos, e aprende enquanto ensina;
o aluno, corresponsável pelo processo
pedagógico, ensina enquanto aprende.
(MOTA NETO, 2016, p. 212).
Acreditamos que a transformação e a emancipação do ser
humano devem acontecer pela ação dos múltiplos conheci-
mentos, diálogos, silêncios e, principalmente, por via do res-
peito mútuo aos saberes e experiências que o outro carrega.
Quando somos capazes de compreender as experiências dos
sujeitos, somos então capazes de refletir criticamente nossas
próprias experiências determinantes e determinadas. As-
sim seguimos em direção a uma educação verdadeiramente
transformadora, potente para transpor as barreiras e colonia-
lidades presentes nos sistemas de ensino-aprendizagem.
A prática do diálogo é um dos meios
mais simples com que nós, como profes-
sores, acadêmicos e pensadores críticos,
podemos começar a cruzar as fronteiras,
as barreiras que podem ser ou não er-
guidas pela raça, pelo gênero, pela classe
social, pela reputação profissional e por
um sem-número de outras diferenças.
(HOOKS, 2017, p. 174).
O universo escolar, na busca por uma prática pedagógi-
ca dialógica, pautada no pensamento decolonial e na edu-
cação popular, é constantemente atravessado por essas in-
quietações e questionamentos. Nas palavras de Mota Neto
(2016, p. 31),
com Freire (2011), entendemos a edu-
cação popular como um esforço de
mobilização, organização e capacitação
científica, técnica e política das classes

204
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

populares, visando à transformação e


inclusão social.
Com base nisso, destacamos a importância de conhecer, vi-
venciar e compreender o meio sociocultural em que a criança
está inserida e de promover conexões entre “escola e vida co-
tidiana”. Mais ainda, de procurar legitimar a identidade cul-
tural da criança dentro do espaço escolar, pois “não há prática
pedagógica que não parta do concreto cultural e histórico do
grupo em que se trabalha” (FREIRE, 2004, p. 57).
Buscamos, portanto, uma educação contextualizada e
pautada no diálogo, que nasça da cultura, das memórias e dos
saberes dos educandos, bem como de suas relações coletivas,
autônomas e democráticas. Uma educação que busque sem-
pre o desenvolvimento crítico do ser e sua libertação de toda
e qualquer invasão cultural destinada a subalternizá-lo. Na
partilha de experiências e narrativas, a arte-educação-dança
nos convida a experimentar práticas educativas que possibili-
tem à criança desconstruir modelos, padrões e certezas, esta-
belecendo, assim, novas formas de enxergar o ser e o mundo:
formas construídas através do amor, não em um sentido afe-
tuoso, mas um amor dialógico e com caráter político.
Não pode haver diálogo... na ausência
dum profundo amor pelo outro e pelas
pessoas. Nomear o mundo, que é um ato
de criação e recriação, não é possível se
não for impregnado de amor. O amor é
ao mesmo tempo a base do diálogo e o
diálogo em si. É portanto tarefa de sujei-
tos responsáveis, e não pode existir uma
relação de dominação. A dominação
revela a patologia do amor: sadismo no
dominador e masoquismo no domina-
do. Por ser um ato de coragem, e não de
medo, o amor é compromisso com os

205
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

outros. Não importa onde se encontrem


os oprimidos, o ato de amor é compro-
metimento com a sua causa – a causa da
libertação. E esse compromisso, porque
é amoroso, é dialógico. Como ato de
bravura, o amor não pode ser sentimen-
tal; como ato de liberdade, não pode se
servir de pretexto para a manipulação.
Deve gerar outros atos de liberdade;
caso contrário não é amor. Somente
abolindo a situação de opressão é possí-
vel restaurar o amor que aquela situação
tornou impossível. Se eu não amar o
mundo, se eu não amar as pessoas, não
posso entrar em diálogo. (MCLAREN,
1999, p. 41-42 apud BARBOSA; COU-
TINHO, 2009, p. 343).
De acordo com Mota Neto (2016), o diálogo e a “escuta
sensível” são características marcantes na proposta pedagó-
gica de Paulo Freire. Afinal, para Freire, é através do diálo-
go que a educação acontece de maneira democrática, tendo
por base o pensamento decolonial e o desejo da superação
da colonialidade do ser, saber e poder. É, portanto, median-
te o diálogo que os subalternos silenciados têm garantido o
seu direito de fala e posicionamento, e buscado a quebra das
limitações e opressões que a sociedade moderna/colonial
impõe sobre as classes “inferiorizadas/invisibilizadas”. Como
assinala Freire (2014, p. 159-160 apud MOTA NETO, 2016,
p. 213), “ter voz é estar presente, não ser presente. Nas expe-
riências autoritárias, tremendamente autoritárias, o povo não
está presente, ele é representado. Ele não representa”. Diante
disso, o educador deve posicionar-se de maneira subversiva e
problematizadora dentro do sistema educativo que as escolas
vivenciam hoje. Essa postura implica não reproduzir a opres-

206
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

são, mas valorizar as memórias culturais coletivas por meio


de uma ação dialógica que estimule a união e a colaboração.
Paradoxalmente, nascemos, aprendemos, ensinamos, vive-
mos, convivemos e parimos em um mesmo universo, e por isso
é preciso sermos todos aprendizes e ensinarmos com amor e
generosidade, lutando e transgredindo os calabouços em que a
educação hierárquica, colonial e capitalista do mundo contem-
porâneo tenta nos aprisionar, silenciar e marginalizar. Enfim, é
preciso lutar por uma educação criativa, diversa, colaborativa,
com mais cores e ritmos; uma educação pautada no diálogo
coletivo e numa “pedagogia que busca constantemente afirmar
o valor das vozes dos alunos” (HOOKS, 2017, p. 200).
As experiências educacionais vividas e partilhadas em
grupo nos levam a crer que é possível educar para a trans-
gressão dos dogmas e paradigmas hegemônicos. É possível
quebrar esses padrões que conduzem o educando, cada vez
mais, para um universo competitivo, individualista, racista
e sexista, no qual se rejeitam a alteridade do ser e o saber
dos indivíduos. Discutindo esses paradigmas, Santos (2019,
p. 126) afirma que
as experiências sociais de injustiça e
opressão causadas pelo capitalismo,
pelo colonialismo e pelo patriarcado são
sempre experiências corpóreas; no en-
tanto, as suas principais manifestações
podem incluir dimensões físicas, men-
tais, emocionais, espirituais ou religio-
sas. São geralmente vividas com maior
intensidade quando incluem resistência
e luta contra a injustiça e opressão. Em
sociedades muito desiguais e injustas
como as nossas, quanto mais intensa é
a opressão, mais difícil se torna para os
grupos oprimidos comunicar o sofri-

207
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mento e as emoções que acompanham


essa experiência de forma a suscitar so-
lidariedade ativa.
Essa discussão nos remete a vivências que fazem aflorar
lembranças, emoções e sensações corporais individuais, refle-
tidas nas dores de um parto natural de gêmeos. Dentro de
um contexto entrelaçado por inúmeros significados culturais
que envolvem a maternidade, as experiências corporais vivi-
das durante o parto, destacamos o protagonismo da mulher
como sujeito que detém o poder de voz e decisão. Parir oca-
sionou “em mim, em nós”, essas experiências físicas e subje-
tivas, e, ao mesmo tempo, sociais e coletivas. Gerou, enfim,
uma reinvenção do cotidiano, do corpo e do ser.

Reflexões finais

Neste texto, buscamos evidenciar os aspectos coloniais


que envolvem as práticas hegemônicas do parir, do ensinar
e do aprender. Essa tarefa nos levou a refletir sobre a manei-
ra como as memórias, afetações e emoções experimentadas
durante o parir influenciam na vida cotidiana feminina. Li-
bertadoras ou traumáticas, tais experiências marcam o corpo
e a alma da parturiente, que, de acordo com o pensamento
decolonial, deve ser vista como sujeito atuante, com direito
de fala e decisão. E mais: deve buscar subverter as relações de
dominação, massificação e violência, presentes na assistência
obstétrica contemporânea – e por que não dizer no sistema
educacional vigente em nosso país?
As regras opressoras impostas pela sociedade podem ser
entendidas como uma maneira de controlar a população e
seus modos de organização social. Esse controle envolve uma
constante criação e retroalimentação de noções distorcidas

208
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

de dor, sofrimento e riscos, além de questões que incluem a


sexualidade e a maternidade feminina, bem como a potência
criativa gestada no processo educacional de cada criança.
Nesse cenário, o parto tornou-se campo vivido dentro do
qual nosso corpo de mãe, mulher, artista, educadora e pes-
quisadora afetou e foi afetado, sendo transformado signifi-
cativamente pela experiência vivida naquele momento. As
lembranças dessa experiência residem no corpo e na alma,
e se traduzem em poetnografias dançadas. Aqui compreen-
demos a poetnografia como uma proposta metodológica ati-
va usada no campo vivido e que envolve elementos estéti-
cos, performativos e criativos. É uma proposta que orienta o
corpo a criar e reinventar sua realidade entrelaçando-a a um
rico campo gerador de identificações. Esse processo de rein-
venção é fomentado pelas manifestações da cultura popular e
da performance do cotidiano, confluindo afetos e experiências.
Podemos então concluir que, no presente estudo, a poetno-
grafia nasce das memórias corporais impregnadas no corpo da
artista-pesquisadora, ou seja, nasce das relações entre alterida-
de (forma de ver e sentir o outro) e matrizes estéticas (saberes
tradicionais) construídas em meio às encruzilhadas vividas em
campo. Poetnografias são, portanto, fragmentos da realidade
cotidiana reinventados em um jogo entre artista-pesquisador
e campo vivido. No entanto, mesmo reinventados, estes não
perdem sua essência como cultura popular durante as perfor-
mances criadas no cotidiano. Essa relação dialógica entre o eu
e o outro, o corpo e a cultura, a subjetividade e a realidade,
constrói-se com conhecimento em arte: com a apreensão si-
nestésica (associações espontâneas e interligadas, pautadas por
experiências sensoriais pessoais e pelo contato com o outro),
com a aplicação da poética em dança e com a valorização do
campo simbólico que envolve a cultura.

209
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Esta potente metáfora que se inicia no corpo das autoras


representa uma reflexão teórica de suas trajetórias como pro-
fessoras de dança, mães, mulheres e pesquisadoras. Mas, além
disso, expressa, sobretudo, o encontro com uma perspectiva
decolonial em que os corpos são pensados em estado de alte-
ridade e em processos de criação. No caso do presente estudo,
eles são analisados dentro de um processo educativo em arte,
na esperança de abrir círculos de fogo, círculos de esperança
de transgressão comprometidos com uma educação libertá-
ria, antipatriarcal e antirracista, com a justiça social e com a
interseção entre os campos de estudo e a vida.

Referências

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história e a filosofia de uma revolução. 3. ed. rev. atual. e aumenta-
da. Sao Paulo: Ground, 2015.
BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão. Arte/educação
como mediação cultural e social. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
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dução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 38. ed. Rio de Janeiro: Paz e
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tica educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
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mos. São Paulo: Nº 1 Edições, 2017.
GUTMAN, Laura. A maternidade e o encontro com a própria sombra.
Rio de Janeiro: Best Seller, 2015.

210
Experiências educacionais e práticas educativas olhadas com base na metáfora do parto,
nascimento e renascimento

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática


de liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins
Fontes, 2017.
IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer. Rio de Janeiro: Vieira & Lent,
2004.
LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de
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2016. 269 f. il. Tese (Doutorado em Arte Contemporânea) – Uni-
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e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016.
PIMENTA, Kayara Castilho. [Diário de campo]. Goiânia, 2019. Ma-
nuscrito.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afir-
mação das epistemologias do Sul. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2019.
SILVA, Renata de Lima. Corpo limiar e encruzilhada: processo de
criação em dança. 1. ed. Goiânia: Ed. UFG, 2012.
SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles. Entre raízes,
corpos e fé: poetnografias dançadas. Moringa: Artes do Espetáculo,
João Pessoa, v. 5, n. 2, jul.-dez. 2014.

211
Pegadas do samba-chula no chão do teatro:
pistas para um processo de criação

Lorena Fonte de Oliveira1


Renata de Lima Silva2

Resumo: O samba de roda é um gênero musical coreo-


gráfico, poético e festivo, proveniente da região do Recôn-
cavo Baiano. Foi o primeiro gênero musical brasileiro a se
tornar patrimônio oral e imaterial da humanidade, mérito
concedido pela Unesco, em 2005. Entre as distintas mani-
festações do samba de roda, destacamos aqui o samba-chula,
além de fazermos referência ao samba-corrido. As principais
diferenças entre o samba-chula e o samba-corrido se refe-
rem às relações entre música e dança. Depois de um contato
inicial com o samba-chula no grupo Angoleiros do Samba-
-Chula de Goiânia, Goiás, coordenado por Mestre Verme-
lho, propusemo-nos a explorar a potencialidade desse sam-
ba como mola propulsora do trabalho criativo em artes da
cena. O grupo mencionado tem se dedicado ao estudo e à
realização dessa manifestação na cidade de Goiânia, base-
ando-se nas referências do grupo Samba-Chula de João do
Boi em São Braz, distrito do município de Santo Amaro no
estado da Bahia. Partimos aqui do entendimento de que o
diálogo com elementos das manifestações culturais afro-
-brasileiras possibilita a ampliação do potencial comunicati-
vo das artes da cena. Com isso, estas se abrem para possibili-

1 Mestranda em Artes da Cena pelo Programa de Pós-Graduação em Artes


da Cena da Universidade Federal de Goiás (UFG).
2 Professora do curso de Licenciatura em Dança da UFG. Doutora em
Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Unicamp.
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

dades estéticas, adaptando-se a diferentes contextos e valo-


rizando traços da identidade cultural. Assim, interessa-nos
refletir sobre as perspectivas que a cultura afro-brasileira
oferece e que operam na composição de ações performativas
e na edificação de um estudo das artes da cena.
Palavras-chave: samba de roda; samba-chula; processo
de criação; artes da cena.

Huellas de samba-chula en el piso del teatro:


pistas para un proceso de creación

Resumen: Samba de roda es un género musical coreográ-


fico, poético y festivo de la región de Recôncavo Baiano. Fue
el primer género musical brasileño en convertirse en patri-
monio oral e inmaterial de la humanidad, mérito concedido
por la Unesco, en 2005. Entre las diferentes manifestaciones
de samba de roda, destacamos aquí la samba-chula y la sam-
ba-corrido. Samba-chula es un aspecto de samba de roda,
y sus principales diferencias en relación con samba-corrido
se refieren a la relación entre música y danza. Después de
un contacto inicial con samba-chula en el grupo Angoleiros
do Samba-Chula en Goiânia, Goiás, coordinado por Mestre
Vermelho, nosotros nos propusimos explorar el potencial de
samba-chula como una fuerza impulsora para el trabajo creati-
vo en artes de la escena. El grupo mencionado se ha dedica-
do al estudio y la realización de esta manifestación en la ciu-
dad de Goiânia, en base a las referencias del grupo Samba-
-Chula de João do Boi en São Braz, distrito del municipio
de Santo Amaro en el estado de Bahía. Comenzamos aquí
con el entendimiento de que el diálogo con los elementos
de las manifestaciones culturales afrobrasileñas permite la
expansión del potencial comunicativo de las artes escénicas,
lo que se abre a las posibilidades estéticas, adaptándose a di-
ferentes contextos y valorando características de identidad

213
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

cultural. Por lo tanto, estamos interesados en


​​ reflexionar so-
bre las perspectivas que la cultura afrobrasileña opera en la
composición de acciones performativas y en la construcción
de un estudio de las artes escénicas.
Palabras clave: samba de roda; samba-chula; proceso de
creación; artes de la escena.

Introdução

Nos estudos em artes da cena, encontra-se uma gama de


possibilidades e abordagens que norteiam os processos de
criação. Nesse vasto campo, podemos perceber um interesse
genuíno pelas manifestações tradicionais e ritualísticas que
já se anunciaram no pensamento e na prática de figuras im-
portantes para o teatro, como Jerzy Grotowski (1933-1999) e
Eugenio Barba, e para a dança, como Ruth Saint Denis (1879-
1968) e Katherine Dunham (1906-2006). No Brasil, essas
figuras são exemplificadas por Antônio Nóbrega, Ariano
Suassuna (1927- 2014), Mercedes Baptista (1921-2014), en-
tre outros. E é na esteira das escolas frequentadas por esses
artistas e na aproximação com manifestações tradicionais
brasileiras de matriz africana (capoeira-angola, tambor de
crioula, batuque de umbigada, jongo, samba de roda etc.)
que surge o interesse em realizar um processo de investi-
gação cênica por meio do diálogo entre teatro e samba de
roda. Sem ignorar as especificidades de cada prática, estes
contextos são aproximados, sobretudo, com a preocupação
de pensar a cena e a dramaturgia valorizando padrões que
vão além dos cânones europeus.
Tal processo de investigação cênica se constitui como
um projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-

214
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

-Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG e intitulado


Diálogos entre teatro e samba-chula: o corpo em cena sensibilizado
pela cultura afro-brasileira. A pesquisa, orientada pela Profª.
Drª. Renata de Lima Silva, tem como objetivo principal estu-
dar o processo de criação em artes da cena inspirado na cul-
tura afro-brasileira, mais especificamente no samba-chula. O
projeto busca a formação de um corpo cênico amparado pela
técnica corporal e musical de sambadores e sambadeiras da
cidade de São Braz, no estado da Bahia, e também da cidade
de Goiânia, no estado de Goiás.
O presente texto é uma sistematização desse projeto de
pesquisa, que foi apresentado no II Seminário de Pesquisa
e Pós-Graduação em Artes da Cena da UFG. A coautoria da
Profª Renata, orientadora do projeto, é a continuidade de
uma parceria que teve início desde o trabalho de conclusão
do curso de graduação em Artes Cênicas, com um projeto re-
lacionado à capoeira-angola.

Pegadas do samba no chão da trajetória pessoal

A proposta de estudar teatro em diálogo com manifes-


tações afro-brasileiras está diretamente relacionada com nossa
trajetória de vida, já que, entre berimbaus, atabaques, pandei-
ros, rodas de samba e capoeira, vimos a vida, a arte e a cultura
popular se entrecruzarem. O laço familiar nos permitiu cres-
cer acompanhando a capoeira-angola e o samba de roda. Pra-
ticamos essa capoeira no grupo de capoeira Só Angola, fun-
dado por Mestre Vermelho (Vanderly Francisco de Oliveira),
tio paterno, algo extremamente relevante neste percurso.
A Associação de Capoeira-Angola do Estado de Goiás
(grupo Só Angola), fundada em 1988 por Mestre Vermelho,

215
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

localiza-se na região leste de Goiânia, GO, e tem por objetivo


realizar um trabalho de valorização e preservação da capoeira
herdada de nossos antepassados. O grupo cumpre a respon-
sabilidade de passar para as futuras gerações a filosofia e os
ensinamentos dessa arte, que hoje é considerada patrimônio
imaterial brasileiro. No ano de 2011, a Associação recebeu re-
cursos de um convênio firmado entre o Ministério da Cultura
e a Prefeitura de Goiânia, passando a ser conhecida também
como Ponto de Cultura Buracão da Arte. Ali se oferecem au-
las de capoeira-angola, percussão, dança, samba de roda, sam-
ba-chula e viola.
No mesmo ano, Mestre Vermelho fundou em Goiânia um
grupo destinado a estudar o samba-chula e o samba de vio-
la: o grupo Angoleiros do Samba-Chula, composto por dez
integrantes que usam instrumentos como congas, pandeiros,
cavaquinho e viola caipira. O ritmo e a energia das batidas,
somados à interação dos cantos, fazem parte da trajetória de
Mestre Vermelho, que se dedica a pesquisar não só as moda-
lidades referidas, mas o samba de modo geral.
O grupo Angoleiros do Samba-Chula de Goiânia é coor-
denado por Mestre Vermelho, que, em sua trajetória, tem
como referência o grupo Samba-Chula de João do Boi, em
São Braz, distrito do município de Santo Amaro, no estado
da Bahia. Em decorrência do contato inicial com o samba-
-chula é que nos dispusemos a explorar a potencialidade des-
sa manifestação como mola propulsora do trabalho criativo
em artes da cena. Afinal, entendemos que o diálogo das ar-
tes cênicas com elementos das manifestações culturais afro-
-brasileiras possibilita a ampliação do potencial comunica-
tivo da área. E, com isso, abrem-se possibilidades estéticas
adaptadas a diferentes contextos que valorizam traços da
identidade cultural brasileira.

216
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

Nesta perspectiva, compreender as especificidades do


samba de roda e do samba-chula é o primeiro passo para a
realização deste estudo.

Primeiros passos: no rastro do samba-chula

O samba é a vida, é a
alma, é a alegria da gente
[...] lhe digo, eu estou
com as pernas travadas
de reumatismo, a pressão
circulando, a coluna
também, mas quando toca
o pinicado do samba eu
acho que eu fico boa, eu
sambo, pareço uma menina
de 15 anos.
Dalva Damiana de Freitas,
Cachoeira/BA.
(IPHAN, 2007).

O samba de roda, proveniente da região do Recôncavo


Baiano, foi o primeiro gênero musical brasileiro a se tornar
patrimônio oral e imaterial da humanidade, título que lhe
foi conferido pela Unesco em 2005. Como destacado na série
Dossiê Iphan, nº 4, “o Recôncavo Baiano é uma expressão
musical, coreográfica, poética e festiva das mais importantes
da cultura brasileira” (IPHAN, 2007). Para a pesquisadora
Daniela Amoroso, da Universidade Federal da Bahia, o sam-
ba de roda é
um ritual de caráter festivo, no qual a
experiência e a expressão se encontram.
É na roda que acontece a sensação es-
tética do samba e é na vida, no antes,

217
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

no durante e no depois do samba, que


o dinâmico processo reflexivo continua
impulsionado pela experiência da alte-
ridade. O samba de roda não é de domí-
nio do particular, ou seja, não acontece
com uma pessoa isoladamente, ele é
coletivo por natureza. O processo re-
flexivo é constante, o jogo e a troca de
experiência são vivências de quem sam-
ba o passo do miudinho se comunican-
do com a viola, com o outro ou com o
público através da expressão do corpo.
(AMOROSO, 2010, p. 3).
Essa modalidade, presente em toda a Bahia, principal-
mente no Recôncavo, influenciou o samba carioca e, até hoje,
é uma das referências do samba nacional (IPHAN, 2007).
Conforme dados do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan), “não há ocasiões exclusivas para
a realização do samba de roda”, mas existem aquelas em que
ele é imprescindível (IPHAN, 2007, p. 19). É o caso das festas
do catolicismo popular, que são referenciadas no Recôncavo
como tradições religiosas afro-brasileiras. Particularmente no
final de setembro, acontecem os sambas nas festas dos santos
Cosme e Damião, sincretizados com os orixás iorubanos rela-
cionados aos Ibejis, divindades gêmeas. Estas festividades são
chamadas também de Carurus.
Nas festividades dos santos populares celebradas no Re-
côncavo, é possível encontrar apresentações de samba-chula
com uma divisão dos cantos em ladainha, bendito e chula,
nome dado às músicas próprias desse gênero:
Depois de entoada a ladainha e o ben-
dito, a chula é gritada. Um nó bem-
-feito que não se permite desatar para
saber que lado entrou primeiro, onde

218
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

ou quando. Só é sabido basicamente, as


duas cordas soam em uníssono. (MAS-
CARENHAS, 2014, p. 54).
Os cantadores de chulas participam das rezas e ajudam
nos cantos. As chulas são puxadas por duas vozes conhecidas
como parelhas. Conforme destaca Mascarenhas (2014, p. 25),
as parelhas permeiam
toda a tradição da cultura rural no Bra-
sil, desde a música caipira do Centro-
-Oeste e Sudeste até os cantos de traba-
lho encontrados no Nordeste, como o
boi-roça e a chula cantada nos mutirões
de trabalhadores rurais.
Não apenas no Recôncavo, mas também em outros lu-
gares, existem, além do samba-chula, outras vertentes do
samba de roda, como samba de viola, samba-corrido, samba
de umbigada, samba de estivador, samba de coco, samba de
bate-baú, entre outros. Essas modalidades são apresentadas
no Dossiê Iphan nº 4, numa abordagem em que se destaca a
distinção entre samba-corrido e samba-chula. As diferenças
primordiais entre ambos
se referem às relações entre música e
dança, e podem ser resumidas em dois
pontos principais. Primeiro: no Samba-
-Chula, a dança e o canto nunca acon-
tecem ao mesmo tempo – estando os
toques dos instrumentos presentes nas
duas atividades –, enquanto no sam-
ba-corrido, ao contrário, dança, canto
e toques acontecem simultaneamente.
Segundo: no Samba-Chula apenas uma
pessoa de cada vez samba no meio da
roda, enquanto no samba-corrido po-
dem sambar uma ou várias pessoas ao

219
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mesmo tempo no meio da roda. Po-


de-se dizer que no samba-corrido os
eventos tendem a ser mais agregados,
e no Samba-Chula, mais separados. Os
músicos expressam a diferença dizendo,
em outras palavras, que o samba-corrido
é mais livre, mais permissivo, ao passo
que o Samba-Chula é mais exigente,
mais rigoroso. (IPHAN, 2007, p. 34-35).
Em nosso contato inicial com o samba-chula, reconhece-
mos que este valoriza de forma especial a questão da apre-
ciação estética, diferentemente do samba-corrido, por exem-
plo. A dança no samba-chula, conforme mencionado acima,
não acontece juntamente com a chula (canto), separando-se
o momento de cada uma. E tanto na dança quanto no canto
a viola de machete tem lugar de destaque.
Nas localidades onde o samba-chula
está presente, a viola utilizada “ideal-
mente” é o machete, e se constitui como
um dos seus elementos centrais: faz as
introduções, as chamadas marcantes
que caracterizam o estilo, os interlúdios,
os solos marcados pelos ponteados. A
organização estrutural desse tipo de
samba, como relatado em sessões an-
teriores, é mais complexa do que a do
samba-corrido, pois compreende mo-
mentos alternados de parada entre a
dança e o canto, tendo a viola e o pan-
deiro como elementos centrais que con-
vidam a sambadeira para a roda: a viola
com seus toques ponteados, o pandei-
ro com seus dobrados. (QUEIROZ,
2019, p. 212).

220
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

A viola é bem popularizada em todo o Brasil e muito co-


nhecida em sua versão caipira, mas no Recôncavo ela se des-
tacou, criando “uma tradição de violeiros sambadores, que
através dos seus ponteados adornam o samba e o miudinho
das sambadeiras” (MASCARENHAS, 2014, p. 54). A viola
caipira difere da viola de machete, em geral, fabricada artesa-
nalmente no Recôncavo Baiano. Apesar de ambas possuírem
dez cordas dispostas em cinco duplas, a viola de machete tem
seu timbre mais agudo, com a afinação conhecida como “rio
abaixo”, e seu tamanho é reduzido, como podemos observar
na Fotografia 1.
Fotografia 1 - Viola de machete

Fonte: Jornal GGN3

No samba-chula, as sambadeiras respondem ao pinicado


da viola de machete com o requebrado da cintura e com os
pés eufóricos no “passo do miudinho”, nome que se dá ao
passo dançado nesse gênero. À batida do pandeiro, o corpo,
em constante diálogo e movimento, relaciona-se com quem
canta, quem toca, quem dança e quem assiste.
O corpo e sua movimentação, a música
com seus instrumentos e cantos, a roda
como espaço do acontecimento são os
contadores de uma história com escas-

3 Disponível em: http://jornalggn.com.br/blogs/alfeu?page=6

221
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

sos registros, [já que estas expressões são


consideradas], constantemente, como
marginais. [Elas] são os portais para se
entender um passado, de uma manei-
ra nem um pouco cartesiana, nem um
pouco racionalista, nem um pouco de-
terminista ou positivista, porque elas
possuem natureza especial, elas são um
híbrido de resistência e arte. A memó-
ria não se revela apenas pela língua,
pela palavra, pelos livros... Ela se reve-
la também pela estética. (AMOROSO,
2009, p. 51).
Em convergência com Amoroso, entende-se que, no sam-
ba-chula, o corpo e a alma reverenciam a vida de forma ri-
tual. Essa relação fica bem clara, por exemplo, nas palavras
de dona Dalva Damiana de Freitas, citada na epígrafe desta
seção. Ela alega que, apesar das dores, ao sambar, seu corpo
ganha a vivacidade de uma menina de quinze anos de idade.
Atentos a estes atributos do samba-chula, buscaremos alicer-
ces teóricos para refletir sobre as possibilidades que a cultura
afro-brasileira opera na composição de ações performativas e
na realização de um estudo das artes da cena.

Poetnografias para descolonizar o corpo nas artes da cena

Pensar a prática corporal como elemento gerador da or-


ganicidade nos processos de criação é ressaltar que essas ex-
perimentações perpassam o corpo e pelo corpo. Conforme
salientou David Le Breton (2013), este corpo é compreendi-
do como uma construção simbólica sobre a qual incide uma
diversidade de saberes e representações que só adquirem
significado sob o olhar humano. Nessa perspectiva cultural

222
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

é que percebemos a questão da presença cênica como uma


importante tônica das buscas e investigações teatrais.
Disseminar um olhar sensível aos estudos das artes da
cena e à performance das culturas populares e afro-brasileiras,
assinaladas por saberes tradicionais, “é buscar compreender
a noção de tradição atuante na cultura de forma viva, isto é,
no modo de conceber e viver daqueles que produzem e usam
esses bens simbólicos” (SILVA; LIMA, 2014, p. 161).
Ao propor um diálogo entre teatro e manifestações tradi-
cionais expressivas, no campo dos estudos acadêmicos, é pre-
ciso estabelecer olhares metodológicos que possam respaldar
as pesquisas em artes. Plaza (1997, p. 23) destaca que “a sen-
sibilidade artística se inventa e constrói como objeto em si”,
no entanto, na esfera acadêmica das pesquisas em artes, os
discursos acerca das práticas artísticas são providos de alguns
paradigmas:
A questão do conhecimento em ciência
ou em arte apresenta-se de forma mui-
to diferente. Para a primeira, no plano
do conhecimento abstrato de qualquer
fenômeno que ocorre universalmente,
em qualquer época e qualquer sítio;
para a segunda, no plano do conheci-
mento concreto de um objeto concreto
e individual, insubstituível e singular
(Srour, 1978, p. 38). A arte não se doa
ao mundo como informação semân-
tica, mas como informação estética.
(PLAZA, 1997, p. 24).
A busca por um significado claro e objetivo, com infor-
mação passível de transmissão, é quase sempre intencional
em qualquer área do conhecimento, mas a comunicação da
arte percorre caminhos do saber sensível. A dimensão esté-
tica do saber sensível possibilita um olhar expressivo para o

223
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

entendimento da arte, seja ela no campo acadêmico ou não.


Fomentar na sociedade a possibilidade de se expressar por
meio do artístico é encontrar a essência primordial deste sa-
ber. Sendo assim, todo e qualquer trabalho artístico de cunho
acadêmico necessita de uma metodologia de pesquisa cientí-
fica. Não se pode ignorar o fato de que a investigação sobre a
arte está inserida no campo do saber científico, e, se alguém
está disposto a estudar a arte no âmbito acadêmico, essa re-
lação é primordial. Por isso, buscamos subsídio metodológico
para analisar em nossa pesquisa o diálogo entre teatro e ma-
nifestações afro-brasileiras na discussão sobre poetnografia
apresentada por Lima (2016).
No estudo referido, Lima destaca que a poetnografia pro-
porciona uma busca por caminhos de possibilidades poéticas
e estéticas para o processo de criação em artes. E num artigo
que a autora publica em coautoria com Renata de Lima Silva,
elas afirmam que
as poetnografias dançadas são, então,
pedaços de realidades reinventados que
trazem em seu seio identificações en-
contradas em manifestações da cultura
popular e em performances que se abrem
em meio ao cotidiano. (SILVA; LIMA,
2014, p. 167).
Na pesquisa de 2016, respaldada pelos estudos de Silva (2012)
sobre a instalação corporal, a experiência da encruzilhada e o
corpo limiar, Lima destaca que poetnografias são “fragmen-
tos dramatúrgicos [oriundos] de um processo investigativo”
(p. 172). Nessa discussão,
a encruzilhada presente na experiência
com o campo vivido [aparece] como mola
propulsora do processo de criação. A po-
etnografia apresenta-se, pois, nas inúme-

224
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

ras possibilidades e complexidades de


jogo entre essas noções, e dessa dinâmi-
ca se constroem, ou se evocam, matrizes
(pontos de encontros) tecidas entre por-
tas de entrada e saída desta investigação
corporal. (LIMA, 2016, p. 172).
Compreender os conceitos da poetnografia promove uma
abertura no âmbito da experiência estética do campo vivido,
ou seja, nos acontecimentos concretizados através do corpo.
Essa abertura gera uma articulação das expressões culturais
brasileiras com as relações entre alteridade e com as matrizes
estéticas extraídas dos saberes e práticas das manifestações
culturais afro-brasileiras. Assim se pode dizer que existe uma
relação dialógica entre campo vivido e poetnografia.
Outro campo de estudo pertinente para a presente pes-
quisa é o da etnocenologia, uma abordagem teórica que pode
contribuir para pensar a postura do artista-pesquisador em
seu campo. Como ressalta Amoroso (2010), esse campo de es-
tudo “acolhe não só teorias e práticas, mas, sobretudo, dúvidas,
reflexões, encontros e descobertas”. Etnocenologia e poetno-
grafia se entrecruzam, já que ambas propõem estabelecer
uma relação no campo do sensível, das experiências estéti-
cas, possibilitando ao artista-pesquisador a sistematização de
sua própria experiência e a conexão com a expressão cultural
como um todo.
A etnocenologia traz um olhar particu-
lar e estético com relação às formas de
expressão culturais. Não se trata de des-
crever elementos estéticos do ponto de
vista externo àquele objeto de pesquisa.
Trata-se de um aprendizado adquirido
através da pesquisa de campo, da vivên-
cia, das entrevistas, das interações, que
são métodos pré-requisitos para a qua-

225
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

lidade de leitura estética. (AMOROSO,


2010, p. 3-4).
A etnocenologia une o simbólico ao corpo humano, sendo
um campo de estudo que se ocupa da corporeidade, do cor-
po em ação. Essa área foi criada, como destacado por Veloso
(2016, p. 90), em um “colóquio realizado na Maison des Cul-
tures du Monde, em Paris, em 1995”, pelo professor doutor
Jean Marie Pradier. No Brasil, difundiu-se graças aos esforços
do professor doutor Armindo Bião.
Com o passar do tempo, chegamos à
conclusão de que a Etnocenologia teria
estabelecido pelo menos duas vertentes
distintas: uma francesa, cujas referên-
cias principais ficaram em Pradier, e
outra brasileira (inicialmente baiana),
centralizada na figura de Armindo Bião,
precocemente falecido em 2013. (VE-
LOSO, 2016, p. 90).
Através dos estudos da etnocenologia, pretendemos com-
preender a pluralidade do samba-chula, partindo de uma
epistemologia que tem como núcleo o corpo em cena. Para
isso, analisamos os elementos que abrem as possibilidades de
diálogos entre os corpos nas culturas, como as performances
dos sambadores e sambadeiras de samba-chula.
Tendo por base os conceitos referidos, é possível desen-
volver este estudo criando uma discussão sobre a descoloni-
zação do corpo nas artes cênicas e, consequentemente, sobre a
questão da colonização. Tanto a poetnografia quanto a etno-
cenologia podem oferecer subsídios para um outro olhar em
direção ao teatro e à pesquisa acadêmica, revelando a neces-
sidade urgente de se descolonizar o pensamento e (por que
não?) o corpo. Em nosso debate, tomamos a descolonização
do corpo não apenas como superação, mas também como

226
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

processo histórico de corpos que dialogam com a arte e a


cultura. Nessa perspectiva, enfatizamos um conjunto de ele-
mentos que se articulam dentro e fora da academia, como
movimentos sociais, grupos, associações, pesquisadores, artis-
tas e intelectuais.
Durante séculos, o pensamento euro-
peu foi-nos determinante na formação
de uma ideia de “boa cultura”. Enquan-
to país mestiço, nascido do entrecruza-
mento de etnias, apenas recentemente o
Brasil começou a adquirir autonomia de
pensamento. Esta autonomia mostrou-
-se fundamental para que partes pouco
assumidas de nossa herança, como as
contribuições africana e indígena, pu-
dessem vir a ser paulatinamente inte-
gradas. (NUNES, 2016, p. 30).
João Colares da Mota Neto (2016, p. 74) discute a im-
portância de se entender a colonialidade “como um padrão
mundial de poder que persiste, mesmo com as independên-
cias, estruturando as relações desiguais entre pessoas, cultu-
ras e nações”. A decolonialidade, por sua vez, “envolve não
apenas a libertação política de uma nação, mas também todas
as relações de poder implicadas na cultura, na educação, nas
mentalidades e na organização socioeconômica” (p. 17).
O pensamento decolonial pode proporcionar inúmeras
possibilidades para um trabalho artístico, como a valorização
da cultura, das memórias e dos saberes das classes populares.
Mas é preciso recorrer a metodologias que dialoguem com
esse conceito na busca da superação de barreiras entre teoria
e prática, sujeito e objeto, saber popular e saber científico, en-
tre tantas outras barreiras impostas pela colonialidade.

227
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Empreender um estudo sobre o samba-chula e o teatro, na


perspectiva de um corpo decolonial em cena, é se debruçar
em um trabalho artístico comprometido, parte de um pro-
jeto maior em que vida e arte se entrecruzam. É propor uma
análise sobre as manifestações afro-brasileiras refletindo que,
na sua essência e no seu desenrolar histórico, essas mani-
festações tradicionais expressivas rompem barreiras e ali-
mentam a vida e a alma dos que nelas estão inseridos e dos
que nelas ainda podem ser agregados.

Considerações finais

O samba-chula, na qualidade de manifestação expressiva


brasileira de matriz africana, ao ser tratado como lugar de
aprendizagem, conteúdo e forma para a criação cênica, abre
a possibilidade de ampliação dos procedimentos de criação
teatral para além dos cânones europeus e de reconhecimen-
to da contribuição africana na formação cultural do Brasil.
Nesse cenário, a poetnografia aparece como uma alternati-
va metodológica de investigação em arte, na medida em que
permite a expansão do potencial comunicativo das manifes-
tações expressivas tradicionais no campo das artes da cena.
Tais manifestações, como um todo, precisam ser reconhe-
cidas e compreendidas nos discursos dos seus próprios faze-
dores. Assim, cada manifestação poderá vir a ser estudada em
sua essência, de modo a trazer à luz aquilo que estão realizan-
do os seus fazedores (VELOSO, 2016). Ao propor um olhar
para o estudo artístico acadêmico com referências teóricas
e práticas que possibilitem os diálogos por meio desse des-
locamento do lugar de fala, pretendemos desenvolver uma
pesquisa empenhada em disseminar esses saberes de forma
comprometida e engajada.

228
Pegadas do samba-chula no chão do teatro: pistas para um processo de criação

Com as reflexões aqui levantadas acerca do samba-chula


do Recôncavo Baiano, que se difundiu no Brasil e no mundo
afora, pretendemos sistematizar para o leitor essa manifes-
tação e ressaltar nosso interesse em aprofundar nossos es-
tudos sobre o tema. A intenção é subsidiar a criação de um
processo artístico respaldado em metodologias com propos-
tas decoloniais que apontem caminhos e conexões estrutu-
rantes. Mais ainda, que tenham como foco não somente os
aspectos estéticos do samba-chula, mas também a correlação
entre suas corporeidades, narrativas e reflexões, de maneira a
suscitar questionamentos e diálogos.
Quando pensamos em um estudo teórico aliado a uma
proposta prática de encenação, a inserção de campos de es-
tudos como o da etnocenologia pode apontar direções para a
pesquisa, incentivando repensar a prática do samba-chula em
relação com o corpo, a mente, o expressivo e o cotidiano dos
sambadores e sambadeiras. Além da etnocenologia, também a
poetnografia e a decolonialidade são contribuições relevantes
para se pensar a postura do artista-pesquisador no campo. Elas
ajudam a estruturar as experiências com a expressão cultural
como um todo para a sistematização de um processo criativo.

Referências
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estética e diversidade no samba de roda de São Félix e Cachoeira.
2009. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2009.
AMOROSO, Daniela Maria. Etnocenologia: conceitos e métodos
a partir de um estudo sobre o samba de roda do Recôncavo Baiano.
Anais Abrace, v. 11, n. 1, 2010. Disponível em: https://www.publion-
line.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/3233/3395.
Acesso em: 5 jan. 2020.

229
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

IPHAN. Samba de roda do Recôncavo Baiano. Brasília, DF: Iphan,


2007. (Dossiê Iphan, n. 4).
LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Trad. Fá-
bio dos Santos Creder Lopes. Petrópolis: Vozes, 2013.
LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um
processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016.
Tese (Doutorado em Arte) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
MASCARENHAS, João Gilberto Paim. A representação do cotidiano
no samba-chula do Recôncavo Baiano: as letras da chula e o Grupo de
Samba-Chula de São Braz. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciên-
cias Sociais) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na
América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire
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NUNES, Alexandre Silva. Dioniso como método: teatro, mito e
ritual no espetáculo NJILAS: dance e esqueça suas dores. Urdimento:
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 27,
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corpo e fé: poetnografias dançadas. Moringa: Artes do Espetáculo,
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VELOSO, Jorge das Graças. Paradoxos e paradigmas: a etnoceno-
logia, os saberes e seus léxicos: I Encontro Nacional de Etnoceno-
logia. Repertório, Salvador, n. 26, p. 88-94, 2016.
QUEIROZ, Clécia Maria Aquino de. Aprendendo a ler com minhas
camaradas: seres, cenas, cenários e difusão do samba de roda atra-
vés das sambadeiras do Recôncavo Baiano. 2019. Tese (Doutorado
Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conheci-
mento) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.

230
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre
as contribuições do grupo Teatro Ludos na
formação do artista-educador de teatro

Marcos Antônio dos Santos1


Saulo Germano Sales Dallago2

Resumo: Este texto baseia-se nos estudos realizados du-


rante o período do Estágio Supervisionado de Licenciatu-
ra em Artes Cênicas, desenvolvido no grupo de pesquisa e
extensão Teatro Ludos, na Universidade Federal de Goiás.
O principal objetivo da pesquisa é explorar os aspectos da
Pedagogia do Teatro, procurando destacar as contribuições
do grupo Teatro Ludos na formação do artista-educador de
teatro dentro da academia. O estudo é descritivo, explorató-
rio e explicativo, com abordagem qualitativa realizada por
meio de procedimentos bibliográficos, documentais e em-
píricos. O Ludos, grupo de pesquisa e extensão em Inter-
textualidade, Cena e Educação da Universidade Federal de
Goiás, é coordenado pela Profª Drª. Clarice da Silva Costa,
docente da Escola de Música e Artes Cênicas-UFG, e aborda
o contexto dos jogos populares brasileiros, jogos teatrais e
viewpoints. A metodologia de trabalho sugerida consiste em
teorizar sobre a Pedagogia do Teatro, apoiando-se na pes-

1 Graduado em Artes Cênicas Licenciatura pela Escola de Música e Artes


Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac-UFG). Mestrando em
Artes da Cena pela mesma instituição.
2 Bacharel em Artes Cênicas, mestre e doutor em História. Professor
da Emac-UFG na cadeira de Produção Cultural e Teorias do Teatro e
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena
da UFG.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

quisa bibliográfica e de campo. O referencial teórico utili-


za-se dos pensamentos de Koudela (2004), Barbosa (1978),
Courtney (2006), Desgranges (2009) e Ferreira (2006). Por
meio da descrição das metodologias de trabalho empre-
gadas pelo grupo Teatro Ludos, espera-se contribuir para
novas práticas nas artes da cena e para reflexões potencial-
mente construtivas na área, considerando-se a linguagem, a
encenação e a montagem de espetáculo, além dos aspectos
pedagógicos relacionados a estes itens.
Palavras-chave: Pedagogia do Teatro; grupo Teatro Lu-
dos; artes da cena.

Theater pedagogy: initial discussion about the


contributions of the Ludos Theater group in the
training of the theater artist-educator

Abstract: This article is based on the studies carried


out during the Supervised Internship period of Degree in
Performing Arts, carried out in the research and extension
group Teatro Ludos, of the Federal University of Goiás.
The main objective of the research is to explore aspects of
Theater Pedagogy, seeking to highlight contributions by
grupo Teatro Ludos in the formation of the theater artist-
-educator with in the academy. The study is descriptive, ex-
ploratory and explanatory, with qualitative approach and
performed with bibliographical, documentary and empi-
rical procedures. The research and extension group on In-
tertextuality, Scene and Education at the Federal Univer-
sity of Goiás is coordinated by Profª Drª. Clarice Costa in
the context of the popular Brazilian games, theater games
and viewpoints. The suggested work methodology seeks
in the bibliographic and field research support to theorize
about Theater Pedagogy. The theoretical framework uses
the thoughts of Koudela (2004), Barbosa (1978), Court-

232
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

ney (2006), Desgranges (2009) and Ferreira (2006). Based


on the description of the work methodologies used by the
Teatro Ludos group, it is expected to contribute with new
practices and reflections potentially constructive to the Per-
forming Arts, considering the language, the staging and the
setting up of the show, in addition to the pedagogical as-
pects related to these items.
Keywords: Theater Pedagogy; Ludos Theater group;
performing arts.

Introdução

Este texto é parte de uma pesquisa que vem sendo desen-


volvida no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena
(PPGAC) da Universidade Federal de Goiás. Através dos con-
ceitos da Pedagogia do Teatro, a pesquisa referida propõe-se a
refletir sobre as contribuições do grupo de pesquisa e exten-
são Teatro Ludos para a formação acadêmica do discente de
Artes Cênicas Licenciatura dessa universidade.
O desejo de abordar o grupo Teatro Ludos como objeto
de pesquisa surgiu de uma experiência no Estágio Supervi-
sionado de Licenciatura I. A participação de um dos autores
nas atividades desse grupo deixou evidente a significativa co-
laboração dele para a formação acadêmica em Artes Cênicas
Licenciatura, o que o torna passível de ser objeto de pesquisa.
O grupo Teatro Ludos foi criado em agosto de 2016 como
grupo de pesquisa e extensão da Escola de Música e Artes
Cênicas (Emac) da UFG. Resultou de inquietações pessoais
e sociais de sua fundadora e idealizadora, professora Clarice

233
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Costa,3 que, nesse tempo, ministrava a disciplina Linguagem


Dramática na Educação.4 Ao perceber que alguns de seus
educandos tinham potencial para atuar como intérpretes e
desenvolver pesquisas, Clarice Costa, recém-chegada à UFG,
decidiu propor a eles a criação de um grupo de pesquisa e
extensão dentro do qual os discentes pudessem desenvolver
suas habilidades e investigações, além de praticar e aprimorar
seu trabalho como atores e educadores. A criação do grupo
trouxe à luz o papel primordial da universidade em contri-
buir para a produção e disseminação do conhecimento, le-
vando em consideração a carência de pesquisas desenvolvi-
das a respeito do teatro em Goiás.
Para alcançar os objetivos traçados, a pesquisa que deu ori-
gem a este texto enfatiza a produção de conhecimentos sobre
Pedagogia do Teatro a fim de analisar a cooperação das artes
cênicas para o ensino e a aprendizagem dentro dos contextos
educativos. O estudo é descritivo, exploratório e explicativo,
com abordagem qualitativa realizada através de procedimen-
tos bibliográficos, documentais e empíricos.
A pergunta-problema é, portanto: quais as contribuições do
grupo Teatro Ludos da Emac-UFG para a formação do artista-
-educador de teatro? Para respondê-la, a metodologia adotada
neste trabalho foi a observação e a análise reflexiva dos encon-
tros do Teatro Ludos no decorrer do curso de Pós-Graduação

3 Clarice da Silva Costa é coordenadora de graduação do curso Teatro


Licenciatura (Emac-UFG) e diretora do grupo de pesquisa e extensão
Teatro Ludos. É também professora-orientadora do Programa de Pós-
-Graduação Profartes da Universidade de Brasília.
4 A ementa da disciplina Linguagem Dramática na Educação propõe o
exercício prático de encenação e montagem fazendo uso das informações
recebidas na disciplina Encenação/Direção I: pesquisas relativas
à montagem; o estudo da relação entre o diretor e os profissionais
envolvidos na montagem; a abordagem de temas como proposta estética,
cronograma e produção, montagem e temporada.

234
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

em Artes da Cena, empregando-se a coleta e análise de dados,


a elaboração de relatórios e diários de bordo e a realização de
exercícios pelos integrantes do grupo. Nesse percurso, será dis-
cutida a Pedagogia do Teatro na tentativa de compreender a
dinâmica do teatro-educação, destacando-se a maneira como
se relacionam estas duas áreas, teatro e educação.

Pedagogia do teatro como elemento constitutivo da


pesquisa

Courtney (2006) afirma que o teatro “é um dos aspectos


de uma sociedade, mas um aspecto vital”, e, por sua própria
natureza, pressupõe comunicação, sendo este o processo so-
cial primário, porque é impossível educar sem comunicar.
Na opinião de Koudela (2004), o teatro, como proposta de
educação, trabalha com o potencial que as pessoas têm, trans-
formando esse recurso natural em um processo consciente
de expressão e comunicação. A autora enfatiza que a comu-
nicação é uma representação ativa e colabora nos processos
individuais do intérprete, possibilitando a ampliação do seu
conhecimento sobre a realidade.
Do ponto de vista de Desgranges (2009), a arte dramática
passa por diversas mudanças que se operam no espaço cênico,
o que torna importante a revisão da função do teatro na so-
ciedade como um todo, passando justamente pelo questiona-
mento e pela investigação das possibilidades de comunicação.
Nessa linha de raciocínio, o teatro proporciona a ampliação de
conhecimentos permitindo-nos contar, recontar e até cons-
truir e reconstruir histórias, gerando um conhecimento amplo.
Ainda de acordo com Desgranges (2009), apropriar-se da
linguagem é apropriar-se da história, conquistando autono-

235
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mia para interpretá-la, compreendê-la e modificá-la de modo


individual. Segundo ele, tendo autonomia crítica e criativa,
o indivíduo pode, como sujeito da própria história, assumir
caminhos capazes de (re)desenhar um projeto para seu fu-
turo. Por meio de um olhar renovado e investigativo propor-
cionado pela arte, essa autonomia possibilita a construção e
reconstrução da forma de educar.
O autor acrescenta que as formas dramáticas contêm uma
proposta pedagógica atrelada ao interesse artístico e calcada,
em grande parte, na intervenção direta da plateia no even-
to artístico. Assim, o papel do espectador no evento teatral é
modificar e relacionar, através de seu posicionamento dian-
te daquilo a que assistiu, alinhando suas impressões e per-
cepções, e isso abre caminhos para a construção de culturas
do aprender e ensinar.
O teatro permite a transformação do ser humano e, em
um processo cognitivo, suscita nele um olhar crítico e cria-
tivo, habilitando-o para a elaboração de novos saberes, para
a autoanálise e a visão/revisão da realidade em que está in-
serido. Buscando compreender esse processo, denominado
Pedagogia do Teatro, e suas contribuições para o contexto
educativo, Ferreira (2006, p. 15) afirma que o teatro não pre-
cisa ser educativo para educar.
Teatro é educação, é “pedagogia cul-
tural” que veicula sentidos e discursos,
que exercita, primordialmente, a imagi-
nação, tanto em atores e diretores
quanto nos espectadores, em todos que
lançam seus esforços para a realização
do fazer teatral. O conceito de “pedago-
gia cultural” [...] toma as mais variadas
instâncias culturais como espaços emi-
nentemente pedagógicos, nos quais as

236
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

subjetividades e identidades são consti-


tuídas, afirmadas e contestadas.
Assim, todos se educam e se aperfeiçoam como cidadãos,
não apenas quem faz teatro e quem dirige teatro, mas igual-
mente quem assiste aos espetáculos. Não diferente de Ferrei-
ra, Barbosa (1996) destaca que a arte-educação é uma forma
de libertação do sujeito e colabora para o desenvolvimento
da inteligência, para a capacidade criadora, a inventividade,
a habilidade de articular ideias, a liberdade de expressão, o
desenvolvimento da capacidade cognitiva e a organização de
pensamentos, emoções e afetos. Desse modo, o indivíduo, ao
começar a interagir com o teatro ou ao se relacionar com o
meio artístico, vai se posicionando diante de seu contexto,
aprimorando sua visão crítica e aprendendo a traçar cami-
nhos diferentes dos existentes, aqueles que lhe foram impos-
tos. Com as novas experiências adquiridas, passa a construir
a sua própria história.
Sendo assim, o teatro tem se mostrado um caminho pe-
dagógico eficiente nos processos de ensino-aprendizagem,
pois, através dele, o aluno, como fazedor artístico, torna-se
capaz de se libertar e de expressar suas ideias e pontos de
vista, proporcionando ao educador um retorno em relação à
prática aplicada. Dessa forma, todos os envolvidos no proces-
so conseguem sua própria liberdade, inclusive o espectador.
Nas palavras de Miranda et al. (2009, p. 176),
o teatro tem um papel importante na
vida dos estudantes, uma vez que, sen-
do devidamente utilizado, auxilia no
desenvolvimento da criança e do ado-
lescente como um todo, despertando o
gosto pela leitura, promovendo a socia-
lização e, principalmente, melhorando
a aprendizagem dos conteúdos propos-

237
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tos pela escola. Além disso, sob a pers-


pectiva de obra de Arte, o teatro tam-
bém incomoda, no sentido filosófico,
porque faz repensar e querer modificar
a realidade instaurada. Ademais, possui
caráter lúdico e constitui-se como for-
ma de lazer.
Nesse contexto, é importante pensar o teatro no processo
de educação analisando o papel da vivência da arte (no caso
presente, das artes da cena) como promotora da formação
dos alunos como cidadãos e indivíduos críticos. Segundo Fer-
reira (2006), o teatro pode ser uma experiência determinante
na construção da identidade ao colaborar para que artistas e
cidadãos espectadores se tornem sujeitos ativos.
Trabalhar arte envolve também conhecer e apreciar as for-
mas da natureza e refletir sobre elas e sobre as produções ar-
tísticas individuais e coletivas de distintas culturas e épocas.
Assim como os autores elencados, os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) de arte reforçam as vantagens de se perce-
ber mais vivamente a realidade cotidiana da arte, reconhe-
cendo objetos e formas que estão à nossa volta e observando
criticamente o que existe em nossa cultura, de maneira a criar
condições para uma melhor qualidade de vida.

Aproximações com o objeto: discussão inicial

A ideia inicial da criação do Teatro Ludos era aprofundar


as técnicas teatrais e desenvolver pesquisas no campo da Pe-
dagogia do Teatro. A educadora e diretora do grupo, profes-
sora Clarice Costa, deixou os educandos/participantes livres
para escolher as pesquisas e o tipo de teatro que gostariam de
fazer dentro desse grupo. Através dessa pluralidade do grupo

238
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

e da singularidade de cada participante, o projeto foi ganhan-


do vida dentro da extensão e as pesquisas foram surgindo.
Logo no início da criação do grupo, a professora Clarice
deu a sugestão de denominá-lo Teatro Ludos. Ludos quer di-
zer lúdico, relacionado ao jogo, à brincadeira, e, dentro dessa
perspectiva de inserção dos trabalhos cênicos, o grupo relacio-
na-se também com o teatro voltado para a educação da comu-
nidade em geral. Em uma conversa travada em 2018, durante
as discussões precedentes à formação do grupo, a educadora
definiu o Teatro Ludos como “um tipo de fazer teatral que
tem o jogo como eixo de trabalho” e segue a tríplice norteado-
ra das universidades brasileiras: ensino, pesquisa e extensão.
Afinal, o Ludos é composto por estudantes de graduação, em
sua maior parte, vinculados a disciplinas do currículo das Ar-
tes Cênicas Licenciatura da UFG e que têm bastante proximi-
dade com as temáticas trabalhadas. Esses alunos desenvolvem
pesquisas no campo das artes da cena, gerando produções aca-
dêmicas e científicas. Suas pesquisas se dão no âmbito da cena
e da realização de espetáculos que, por si só, possuem um cará-
ter extensionista, levando em conta que as montagens visam
ser apresentadas ao público em geral.
Outra característica do grupo é trabalhar o intérprete
por meio de diversos fundamentos ligados ao fazer teatral.
Assim, a técnica usada para esse trabalho com o intérprete
é a metodologia do Livro dos viewpoints, elaborado por Anne
Bogart e Tina Landau (2017). Os viewpoints constituem uma
filosofia centrada numa técnica para treinar performes, cons-
truir coletivos e criar movimento para o palco. São uma série
de nomes dados a certos princípios de movimentos. Esses no-
mes formam uma linguagem para falar sobre o que acontece
no palco. Os viewpoints são pontos de atentividade de que o
performer ou criador faz uso enquanto trabalha. O livro citado

239
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

é, portanto, considerado um guia prático para a aplicação de


técnicas de atuação e improvisação.
Além de exercitar essas técnicas, o grupo realiza oficinas e
recebe propostas para montagens de cenas específicas, sob de-
manda. Depois de pronto o trabalho, o solicitante é convidado
para assistir e, atendendo aos objetivos propostos, o trabalho é
levado adiante para as apresentações nos ambientes sugeridos.
Em 2018, o Teatro Ludos montou seu primeiro espetácu-
lo, denominado Fragmentos de mãe5 e livremente inspirado
em Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht. A peça é “uma
narrativa cênica direta e dura da guerra protagonizada por
Maria Bauer, que tenta conseguir o impossível, num mundo
cruel” (informação verbal).6 Mãe Coragem, a peça que ins-
pirou o espetáculo, fala da guerra. A personagem principal,
Mãe Coragem, é uma comerciante que tenta vender seus pro-
dutos durante um período de combates. Para isso, ela acom-
panha os exércitos na tentativa de apoiá-los e, dessa maneira,
obter seus lucros. Mãe Coragem enxerga a guerra como uma
oportunidade em tempos difíceis. Ela perde seus três filhos
nas batalhas, mas não admite que “falem mal da guerra”.
Antes da peça Fragmentos de mãe, o Teatro Ludos já produ-
zia oficinas e cenas curtas para espaços pertencentes à UFG,
como a Reitoria, e para eventos dessa universidade, como o
Conpeex e o Espaço das Profissões, entre outros trabalhos.
De acordo com a proposta do grupo, seu escopo é aprofun-
dar estudos sobre os jogos, as brincadeiras, os viewpoints, as

5 Elenco: Dayanne Toko, Marcos Antônio dos Santos, Marcus Vinícius


de Morais, Pedro Paulo Galdino, Ramon Teles, Sarita Paiva e Vitória
Santana. Dramaturgia: Clarice Costa. Direção de arte: Gabriela Ansorge.
Direção-geral: Clarice Costa.
6 Comentário feito pela diretora Clarice Costa durante o processo de ensaio
do espetáculo Fragmentos de Mãe, em 2018.

240
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

intertextualidades de textos dramáticos etc. No decorrer dos


ensaios com a equipe, Clarice Costa enfatiza que
são abordados aspectos da cultura po-
pular para os processos criativos da
cena teatral. [Esses processos envolvem]
graduandos, pós-graduandos, pesquisa-
dores e a comunidade externa. [Cons-
tituem] momentos de estudos, experi-
mentações cênicas, oficinas e apresen-
tações teatrais. Cabe à Extensão e aos
Grupos de Pesquisa agregar e motivar
graduandos e pós-graduandos para as
ações junto à comunidade externa e
para pesquisas específicas.
O Teatro Ludos proporciona aos seus integrantes a oportu-
nidade de desenvolver pesquisas científicas dentro daquilo que
eles desejam explorar no campo da Pedagogia do Teatro, além
de dar liberdade para a criação de trabalhos de experimen-
tação e compartilhamento das experiências e investigações
individuais e coletivas. Os participantes do grupo são pesqui-
sadores motivados e engajados, apaixonados pelo que fazem,
principalmente no que se refere à arte e ao fazer artístico vol-
tado para artes cênicas. A boa comunicação que mantêm entre
si ajuda-os no desenvolvimento dos exercícios de preparação.
O Teatro Ludos busca atingir um público de todas as ida-
des, pessoas que têm e pessoas que não têm experiência com
teatro. Por ser aberto, o grupo tem uma considerável rotativi-
dade de integrantes, pois tanto a professora e diretora quanto
os demais integrantes estão sempre convidando novos par-
ticipantes. Mas tudo é decidido coletivamente, e a pessoa
convidada participa de um primeiro encontro com o grupo
e decide por ficar ou não nele. É um grupo dinâmico, ativo e
participativo, e todas as decisões são compartilhadas.

241
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A estrutura física do Teatro Ludos conta com o laboratório


da Emac-UFG (Área de Artes Cênicas e Direção de Arte), de-
nominado Lab 4: Ludos. Até o momento da elaboração des-
ta pesquisa, o grupo vem se autofinanciando, além de ter o
apoio institucional da Emac-UFG com infraestrutura, ener-
gia elétrica, água, segurança e administração.
São várias as formas de contribuição do grupo para os pro-
cessos de formação e preparação do ator e educador de teatro,
e todas as atividades que ele desenvolve são essenciais no pro-
cesso de formação dos graduandos da área.

Resultados

Considerada o primeiro espetáculo do Teatro Ludos des-


de sua criação, e sendo um trabalho de grande destaque e cir-
culação, a peça Fragmentos de mãe proporcionou a sensação de
uma experiência artisticamente enriquecedora, tanto para os
atores quanto para o espectadores.
Quando iniciamos as atividades nesse grupo, em agosto
de 2018, ele já estava montando este espetáculo. Portanto a
dramaturgia e algumas cenas do trabalho já vinham sendo
construídas. Começamos então a nos envolver no processo e
acabamos fazendo três personagens na peça.
Inicialmente a dramaturgia teve a colaboração de todos
os integrantes do Teatro Ludos, porém a efetivação e a finali-
zação foram da diretora, Clarice Costa. Depois da dramatur-
gia pronta, começamos a fazer o desenho de cena. Aliás, al-
gumas coreografias predefinidas para o espetáculo já estavam
sendo trabalhadas pelo elenco em todos os encontros, como
a abertura com o coro e os arcos, o rap e a luta com os bastões.

242
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

Uma das propostas durante os encontros foi preparar os


intérpretes para serem mais perceptíveis, criativos e sensíveis
e, para isso, em cada encontro, antes de iniciar os trabalhos de
construção da personagem, de encenação e interpretação, rea-
lizávamos a preparação corporal. As técnicas de sensibilização
corporal são ferramentas que auxiliam no preparo dos artistas-
-educadores para a concentração, a criação e a montagem de
cenas. Elas fazem que os atores fiquem mais relaxados e com
os músculos prontos para os movimentos exigidos pelas ati-
vidades teatrais. Os recursos e procedimentos de preparação
corporal usados pelo Teatro Ludos escapam ao conhecimento
específico do teatro. Por exemplo, nesse processo preparatório,
adotamos o aquecimento conhecido como “saudação ao sol”
ou surya namaskar7 (fotografias 1 e 2), prática utilizada no yoga.
Neste aquecimento são trabalhadas a respiração, a concen-
tração, a percepção e a energia do intérprete.

7 A surya namaskar é conhecida como uma das séries de ássana mais antigas
de que se tem conhecimento. Podemos praticar a saudação como uma
forma de agradecer pelo dia, purificando o corpo, acalmando a mente
e iluminando o espírito. A surya namaskar se torna uma dança quando
os movimentos corporais são feitos de forma fluida e harmônica. Além
de aquecer o corpo, também ajuda a preparar a pessoa para permanecer
nas posturas que o exercício exige, atuando nos níveis físico, mental e
emocional.

243
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Fotografias 1 e 2 - Intérprete Marcos Antônio dos Santos realizando a


surya namaskar

Fotografia: Wictor Cardoso.

Depois da ativação corporal, passamos por um momento


de aquecimento vocal (fotografias 3 e 4) e, em seguida, pela
prática da meditação, apesar de ela não fazer parte do cor-
pus conhecido da Pedagogia do Teatro. A meditação oferece
mais possibilidades de concentração para o trabalho seguin-
te: a atuação e a construção de cenas. Na meditação, ficamos
sentados no chão e de olhos fechados, deixando vir qualquer
pensamento aleatório sem obrigatoriedade de compromisso
com nenhum deles. O pensamento nesse momento é livre.
Toda essa preparação inicial é realizada para trazer uma ener-
gia de construção e concentração ao processo de trabalho
adotado pelo grupo.

244
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

Fotografias 3 e 4 - Intérprete Marcos Antônio dos Santos realizando o


aquecimento vocal

Fotografia: Wictor Cardoso.

Uma das técnicas empregadas nos encontros e trabalhos


de pesquisa, investigação e construção de personagem do
Teatro Ludos são os viewpoints, que se ampliam e se dividem
em três eixos principais: viewpoints de tempo (andamento,
duração e resposta cinestésica), viewpoints de espaço (forma,
arquitetura e relação espacial) e viewpoints de tempo e espaço
(gesto, repetição e topografia). Cada uma dessas modalidades
de eixos foi trabalhada na prática com os intérpretes dentro
do processo de montagem do espetáculo Fragmentos de mãe.
Outro elemento utilizado como metodologia pelo gru-
po Teatro Ludos é o jogo teatral, uma forma de abordagem
por meio da ludicidade. Além de constituir um instrumento
poderoso para a obtenção de conhecimentos, como afirma
Koudela (2004), o jogo teatral pode ser atrativo para inse-
rir os intérpretes de uma peça no processo de trabalho que
a envolve. Ainda na visão dessa autora, o jogo é uma das
peças mais influentes na resolução de problemas pedagógi-
cos, devendo ser incluído na categoria de métodos educa-
cionais. É utilitário também para o desenvolvimento inter-

245
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

disciplinar, trazendo consigo o conhecimento por meio de


práticas e exercícios aplicados. Nas atividades desenvolvidas
no Teatro Ludos, os artistas-educadores jogam uns com os
outros usando os próprios adereços e figurinos com que tra-
balham nos espetáculos.
O jogo teatral eleva a percepção dos jogadores para o seu
próprio desenvolvimento e crescimento intelectual, propor-
cionando-lhes a aptidão em se relacionar e socializar com o
outro conforme salienta Koudela (2004). De acordo com a
pesquisadora, o uso desse recurso tem o objetivo de estimu-
lar a capacidade de identificação e o repertorio naqueles que
jogam. Além disso, a abrangência do jogo pode ser observa-
da na consistência dos comentários apresentados pelos joga-
dores e na clareza da relação entre o conteúdo estudado e o
exercício criativo das cenas.
Durante cada encontro, trabalhamos muito as discussões
em grupo, ou seja, tudo era decidido de forma coletiva entre
os integrantes. Resumidamente, os encontros se baseavam na
realização da saudação ao sol ou surya namaskar, no aqueci-
mento vocal e na meditação, e, em seguida, era formada uma
roda de conversa para discutir o que seria trabalhado no en-
saio do dia (Fotografia 5). Na sequência, executávamos o que
havia sido proposto na roda e, depois, ao final do ensaio e do
encontro, havia uma nova reunião em círculo para discutir o
processo em si, a dinâmica da produção do espetáculo e as
impressões, sugestões, reclamações e apontamentos de cada
integrante. A finalização era feita com a palavra do dia: cada
participante escolhia livremente uma palavra que definisse
seu dia, ou o ensaio, ou seu processo de trabalho.

246
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

Fotografia 5 - Roda de conversa e debates entre os integrantes do grupo


Teatro Ludos

Fotografia: Wictor Cardoso.

Desde que iniciamos nossas atividades no Teatro Ludos,


vem se desenvolvendo nossa capacidade de construir e re-
construir nossa realidade e de aceitar-nos e aceitar melhor
o outro com suas ideias e opiniões. Os resultados de nossa
participação no grupo têm sido promissores, tanto na vida
acadêmica e artística, quanto na pessoal e profissional. Tam-
bém nos sentimos mais capacitados dentro do processo de
aprendizagem, que é bastante produtivo: a prática da escrita e
dos registros sobre a produção teatral, alinhada à elaboração
de diários de bordo, é uma das dinâmicas adotadas no Teatro
Ludos. Isso nos ajuda a perceber o que dá para ser mudado
e abre-nos a mente para o desenvolvimento de pesquisas. A
observação e a pesquisa também auxiliam bastante no pro-
cesso de formação, pois, através delas, o acadêmico descobre
caminhos e possibilidades para continuar seu crescimento.

247
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Então, o desafio é pesquisar, aproprian-


do as individualidades num trabalho
contínuo, sem perder os impulsos estéti-
cos, que podem ser as falas, as expressões
corporais, as ideias, as estórias, os desejos
e os medos, surgidos durante o processo.
O caminho é feito por rosas e mais ainda
por seus espinhos, mas, com estudo con-
tínuo e sensibilidade, o professor pode
mediar e catalisar a expressividade de
seus alunos. (DIAS, 2018, p. 9).
O Teatro Ludos proporciona ainda o estímulo de senti-
mentos e outros fatores relevantes para o processo de for-
mação do artista-educador. Com a observação dos proce-
dimentos, a metodologia e a organização de saberes dentro
e fora da academia, o educador de teatro e também o ator
se tornam artistas-educadores investigadores e criativos. Os
exercícios e os jogos teatrais propostos nos deixam mais per-
ceptivos e criativos e nos colocam em estado de precisão para
o trabalho. Nas propostas do Teatro Ludos, não existe certo
nem errado, existe o experimentar. Experimentação e repe-
tição são a base para a busca da perfeição e da qualidade do
trabalho do artista-educador, tão importante para a produção
e disseminação do conhecimento.
As relações de troca de experiências também fazem parte
do grupo de Teatro Ludos. Para Vygotsky (1984 apud OLI-
VEIRA, 2010), o conhecimento se dá por meio dessas trocas,
ou seja, das interações, o que ele chama de visão interacio-
nista. Segundo ele, é graças a essa visão que os sujeitos con-
seguem entender o mundo, pois os indivíduos herdam uma
série de estruturas biológicas, porém a inteligência não é her-
dada, e sim adquirida através das relações estabelecidas entre
os seres humanos.

248
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

A interação com o grupo de teatro e o intercâmbio entre os


diferentes públicos oportunizam a construção de saberes. To-
das as atividades do Teatro Ludos, entre elas, a observação, as
práticas teatrais e de ensino, as leituras e a produção de portfó-
lios, foram decisivas em nosso processo de construção da
identidade docente, em nossa formação como professor de
teatro. Sem falar dos estímulos recebidos na elaboração das
práticas de aquecimento através da surya namaskar, por meio
dos quais ampliamos nossas habilidades de expressão corpo-
ral e passamos a identificar melhor os critérios de aperfeiçoa-
mento dos elementos do personagem. O processo de criação
de cenas também foi bastante melhorado. A cada encontro,
percebíamos nosso amadurecimento como intérprete e um
enriquecimento visível para nossa formação como artista-
-educador, pesquisador e cidadão dentro de uma comunidade.
Além da concepção corpórea do intérprete, o trabalho em
questão, principalmente as atividades práticas e reflexivas,
ainda nos propiciou a reflexão sobre nossas atitudes e habi-
lidades, e colaborou para o nosso desenvolvimento moral e
intelectual como indivíduo. O Ludos realmente propõe um
processo de formação para o artista-educador permitindo
ao integrante observar, refletir e construir suas percepções,
e isso lhe dá uma criticidade imprescindível para o seu cres-
cimento profissional. Durante sua formação no grupo Lu-
dos como professor de teatro, o futuro professor começa a
vivenciar as práticas pedagógicas dentro da sala de aula e
a perceber a realidade com as diversas dificuldades postas,
como salas de aulas não apropriadas e a curta duração das
aulas. O aluno de Artes Cênicas Licenciatura que passar pelo
Teatro Ludos terá bagagem, experiências e pesquisas no seu
processo de formação.

249
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Considerações finais

A relevância deste trabalho está em mostrar a atuação di-


reta do grupo Teatro Ludos na formação de profissionais do
teatro, de artistas-educadores. As práticas desse grupo possi-
bilitam ao formando maior precisão e qualidade nas futuras
atividades docentes e um diferencial para atingir os resul-
tados esperados. Mais ainda, contribuem para um processo
contínuo de reflexão, construção e reconstrução da formação
acadêmica do artista-educador e de sua identidade de profes-
sor de teatro.
O professor não é um profissional acabado, pronto. Ele
precisa estar em constante busca, pois o processo de traba-
lho pode não ocorrer da forma como o educador planejara.
Assim, para que sua aula não se torne improdutiva, ele deve
ter outros caminhos, outros meios para desenvolver seu tra-
balho. Isso exige que ele esteja em contínua investigação,
sempre examinando e questionando a si mesmo, avaliando
e criticando seu próprio fazer, seu pensar, seus métodos, suas
práticas e metodologias. Tanto atores quanto educadores de
teatro devem se empenhar para abrir novos percursos, para
conhecer tecnologias e práticas de ensino revolucionárias.
Afinal, o trabalho do ator, educador e pesquisador é infinito,
pois somos, como diz Freire, inacabados.
O Teatro Ludos, como fonte integralizadora, favorece esse
dinamismo necessário à formação do artista-educador de
teatro. Sendo um espaço de aprendizagem, de saberes, de
compartilhamento de experiências, colabora para uma pos-
tura investigativa, tornando o processo mais significativo. É
um espaço que nos envolve em novas descobertas por inter-
médio de experiências vivenciadas através da arte.

250
Pedagogia do teatro: discussão inicial sobre as contribuições do grupo Teatro Ludos
na formação do artista-educador de teatro

Diante do exposto, podemos dizer que teatro e educação


são canais de mudanças que, quando aplicados, agem de for-
ma ativa e efetiva. E que, em um país como o Brasil, em que
ainda é tão difícil o acesso ao teatro, seja na forma de aula ou
na própria apreciação artística de um espetáculo, a Pedagogia
do Teatro se torna muito importante no processo de desen-
volvimento do ser humano.

Referências

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BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1996. (Série Estudos).
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tico para viewpoints e composição. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hu-
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dológica para o ensino do teatro. 2018. (Trabalho de Conclusão de
Curso) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.
FERREIRA, Taís. A escola no teatro e o teatro na escola. Porto Alegre:
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prá-
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251
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem.


São Paulo: Perspectiva, 2004.
MIRANDA, Juliana Lourenço; ELIAS, Robson Cândido; FARIA,
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Aires de Sousa. Teatro e a escola: funções, importâncias e práticas.
Revista CEPPG, ano 11, n. 20, p. 172-181, jan. 2009.
OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimen-
to: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2010.

252
Suspeita de doutrinação marxista na montagem
do espetáculo infantil A traição nas terrinhas
do Coelho (Goiânia, 1976)

Marcus Vinícius Pantaleão Gomes1


Saulo Germano Sales Dallago2

Resumo: Este estudo propõe-se a averiguar as suspeitas


de doutrinação marxista na montagem do espetáculo teatral
A traição nas terrinhas do Coelho, de Marieta Telles Machado,
encenado no ano de 1976 em Goiânia pelo Grupo de Teatro
Laboratório, sob a direção de Carlos Fernando Filgueira de
Magalhães. Partindo da análise de documentos do antigo
Serviço Nacional de Inteligência (SNI), de matérias de jor-
nais do período e do texto da autora, Marieta Telles Macha-
do, pretendemos investigar as origens e os desdobramentos
das suspeitas de enfoque marxista na referida montagem.
O texto insere-se no campo da historiografia do teatro em
Goiânia, especialmente no tocante ao que foi produzido
no período da ditadura militar brasileira. Assim, concede-
mos especial atenção à constante vigilância dos órgãos de
1 Coordenador de programação de música e artes cênicas no Centro
Cultural UFG. Ex-professor de Teatro e Iluminação Cênica no Itego
em Artes Basileu França e ex-professor substituto de Direção de Arte
e Iluminação na Universidade Federal de Goiás (UFG). Licenciado em
Artes Cênicas pela UFG (2013). Atuou na área de produção de eventos
e no gerenciamento de sala de espetáculo na UFG. Entre 2011 e 2015,
supervisionou tecnicamente os eventos do projeto Música no Campus-
UFG, ligados à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec-UFG).
2 Bacharel em Artes Cênicas, mestre e doutor em História. Professor da
Escola de Música e Artes Cênicas-UFG, na cadeira de Produção Cultural
e Teorias do Teatro. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena da UFG.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

controle sobre as atividades artísticas e intelectuais, o que


implicava a perseguição a pessoas consideradas subversivas,
opositoras ao regime militar ou ligadas a grupos de esquer-
da. Procuramos ainda compreender os procedimentos de
censuras prévia e subsequente aplicados a apresentações
teatrais no período em que estiveram em vigência os órgãos
oficiais de censura.
Palavras-chave: teatro em Goiânia; Grupo de Teatro La-
boratório; censura.

Suspected marxist doctrination in the setting of


the children’s play A traição nas terrinhas do Coelho
(Goiânia, 1976)

Abstract: This study aims to understand as a suspicion


of marxist in doctrination in the staging of the theatrical
show A traição nas terrinhas do Coelho, by Marieta Telles Ma-
chado, staged in the year 1976 in Goiânia by the Grupo de
Teatro Laboratório, under the direction of Carlos Fernando
Filgueira de Magalhães. Through document analysis from
the Serviço Nacional de Inteligência (SNI), newspaper ar-
ticles of the period and the text by author, Marieta Telles
Machado, we intends to investigate how the origins and
the unfolding of the suspected marxista bout the play. This
study belong to the field of theater historiography in Goiâ-
nia, especially that produced during the period of the Bra-
zilian military dictatorship, paying particular attention to a
constant control over artistic and intellectual activities and
persecution subversive people, opponents of the military
regime or leftist groups. It also intends to understand the
previous and subsequent censorship procedures applicable
to presentations in the period in which they were and to
supervise the official censorship bodies.
Keywords: theater in Goiânia; Grupo de Teatro Labora-
tório; censorship.

254
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

Introdução

O presente texto, desenvolvido como parte de nossa pes-


quisa no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da
UFG, tem como foco a repressão ao teatro goiano no período
da ditadura militar. A finalidade do estudo é compreender as
suspeitas de doutrinação marxista na montagem do espetá-
culo teatral A traição nas terrinhas do Coelho, de Marieta Telles
Machado,3 encenado no ano de 1976 em Goiânia pelo Grupo
de Teatro Laboratório, sob a direção de Carlos Fernando Fil-
gueira de Magalhães.4
O trabalho se dará através de análises de arquivos do Sis-
tema Nacional de Informações (SNI) e do Departamento de
Ordem Pública e Social (DOPS-GO). Por meio desses arqui-
vos, buscaremos detectar os procedimentos de censuras pré-
via e subsequente aplicados a apresentações teatrais no pe-
ríodo em que estiveram em vigência os órgãos oficiais de cen-
sura. Baseada em fontes documentais oficiais, esta pesquisa,
longe de estabelecer-se como construção de um passado fe-
chado e de privilegiar uma visão unívoca dominante, procura
demonstrar as contradições e distorções dessas fontes, num
trabalho de interpretação permanente.
As fontes não são nem janelas escanca-
radas, como acreditam os positivistas,
nem muros que obstruem a visão, como
pensam os cépticos: no máximo podería-

3 Marieta Telles Machado publicou diversos livros de poesia, contos,


ensaios e dramaturgia, especialmente infantil. A escritora dá nome a uma
biblioteca pública no Setor Universitário em Goiânia.
4 Médico, pesquisador, artista plástico e escritor, Carlos Fernando publicou
romances, poesias e dramaturgia. Fundou o extinto Grupo de Teatro
Laboratório e o Núcleo de Apoio e Incentivo às Iniciativas Culturais da
UFG (Nucaic), órgão que deu origem à atual Pró-Reitoria de Extensão e
Cultura da Universidade.

255
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mos compará-las a espelhos deforman-


tes. A análise da distorção específica de
qualquer fonte implica já um elemento
construtivo. (GINZBURG, 2002, p. 45).
Neste texto, abordaremos também os fundamentos legais
de censura vigentes no período estudado, além de realizar
entrevistas com artistas que lidaram diretamente com os ór-
gãos censores. Consideramos, assim, que o texto insere-se no
campo da História Cultural, por assumir como fontes tanto
os documentos oficiais quanto aqueles coletados por meio de
entrevistas orais, e por dedicar atenção a produções artísticas
distantes dos principais eixos de difusão nacionais.
Reservaremos ainda parte do texto para o estudo da re-
lação de dois membros do espetáculo com os mecanismos
de repressão da época: Carlos Fernando Magalhães e o ator
gaúcho Daniel Rech, contra os quais recaíam suspeitas de
participação em atividades político-partidárias ou de organi-
zação social contrarrevolucionária. Procuraremos voltar nos-
sa atenção para a constante vigilância dos órgãos de controle
sobre as atividades artísticas e intelectuais da época e para
a perseguição a pessoas consideradas subversivas, opositoras
ao regime militar ou ligadas a grupos de esquerda em Goiás.

A traição nas terrinhas do Coelho

Fins de maio de 1976. Sob as árvores do Parque Mutirama


em Goiânia, localizado no Setor Central da cidade e fundado
em 1969, estreava o espetáculo teatral A traição nas terrinhas
do Coelho, encenado pelo Grupo de Teatro Laboratório, sob
a direção de Carlos Fernando Magalhães. Na história, escrita
por Marieta Telles Machado, um grupo de animais se junta

256
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

para auxiliar o Coelho a sair da extrema pobreza. A situação


da família Coelho se apresenta logo na primeira rubrica:
Aparece um ranchinho caindo aos pe-
daços. Pano de fundo: uma paisagem
seca, árida. O coelho está sentado à porta
com a mão no queixo, triste. Dona Coe-
lha varre a casa. Os filhos pedem de co-
mer: tô com fome, mãe… quero cenoura…
quero leite… Um deles choraminga baixi-
nho. (MACHADO, 1984, p. 10).
Logo em seguida, são apresentados aos espectadores os
motivos das dificuldades enfrentadas pelo casal: a sequidão
do cerrado é uma inimiga, e, além disso, o Coelho só sabe
plantar ao modo antigo, com enxada nas mãos e com fogo no
terreno. Desconhece o arado e o uso dos fertilizantes, que são
caros para adquirir, e o banco do seu Raposo não empresta
para pobres, só para gente que já é rica e poderosa, como o
seu Lobo. Este, aliás, é uma das razões para tanta dificuldade,
pois exige parte da colheita e ameaça devorar os filhotes e
roubar os poucos bens de quem não lhe pagar a parte reque-
rida (MACHADO, 1984).
A encenação da peça em dois atos compunha o Programa
de Arte (1976), promovido pela Secretaria de Cultura e Edu-
cação da Prefeitura de Goiânia (Figura 1), que tinha como
titular a professora Nair Stival Pereira. A relação de ativida-
des incentivadas trazia, além da peça em estudo, concertos
de música erudita, exposições de artes plásticas e concurso
de literatura, e contava com o apoio do antigo Instituto de
Artes da UFG.
O prefeito da cidade à ocasião era Francisco de Freitas Cas-
tro, nomeado pelo então governador Irapuã da Costa Júnior,
que, por sua vez, fora eleito indiretamente pela Assembleia
Legislativa no ano anterior. Na plateia, ao lado de dezenas de

257
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

famílias, alguns oficiais acompanhavam a apresentação. Sus-


peitava-se de um plano oculto de doutrinação marxista atra-
vés do espetáculo infantil. O país enfrentava um período de
ditadura militar, em que eram vigiadas as iniciativas culturais
e artísticas, os jornais e rádios, o cinema e a televisão.
Figura 1- Capa do Programa de Arte da Prefeitura de Goiânia (1976)

Fonte: BRASIL, 1977.

Para entendermos os processos de censura no período,


precisamos retroceder a 1964 e ainda mais. Se o Ato Insti-
tucional nº 1, primeiro documento oficial de instalação do
regime militar, não fazia qualquer referência direta à censu-
ra, ele a reafirmava indiretamente ao decretar a validade da
Constituição Federal de 1946, que previa a possibilidade de
censura a espetáculos e diversões públicas. Vejamos o texto
do artigo 141, parágrafo 5º, da referida constituição:

258
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

§ 5º - É livre a manifestação do pensa-


mento, sem que dependa de censura, sal-
vo quanto a espetáculos e diversões públicas,
respondendo cada um, nos casos e na
forma que a lei preceituar, pelos abusos
que cometer. Não é permitido o anoni-
mato. É assegurado o direito de resposta.
A publicação de livros e periódicos não
dependerá de licença do Poder Público.
(BRASIL, 1946, grifo nosso).
Já o Ato Institucional nº 2, de outubro do ano seguinte,
estende o alcance do artigo citado ao acrescentar as seguintes
palavras: “Não será, porém, tolerada propaganda de guerra,
de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de clas-
se” (BRASIL, 1965). O novo trecho, inofensivo à primeira vis-
ta, estabelece uma condição de indefinição jurídica, uma vez
que não há critérios claros para definir o que se entende por
“subversão da ordem”.
Ainda desse período, temos a Lei de Imprensa, igualmen-
te criada como instrumento de censura:
Essa lei, baseada nos princípios da Dou-
trina de Segurança Nacional, atingiu
outro importante aspecto da institucio-
nalidade democrático-liberal, pois insti-
tuía a censura e o direito de intervenção
governamental nos órgãos de imprensa,
além de possibilitar a instauração de
processos criminais pela divulgação de
notícias. A medida atingia particular-
mente os órgãos da grande imprensa,
que geralmente adotavam uma postura
de apoio ao governo, mas às vezes divul-
gavam notícias e opiniões indevidas [...]
Porém, a lei afetava também a chamada
“imprensa alternativa”, que atingia cír-
culos restritos. (MACIEL, 2004, p. 51).

259
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A Constituição Federal promulgada em 1967 manteve os


mesmos termos e restrições em relação à censura. A situação
se agravaria ainda mais com o famigerado AI-5, que conce-
dia ao poder federal o direito de suspender sumariamente a
liberdade de reunião e associação, e de censurar correspon-
dências, imprensa, telecomunicações e diversões públicas
(BRASIL, 1968, art. 9º).
Pouco antes, a Lei nº 5.536, de novembro de 1968, indica-
va em seu parágrafo segundo a possibilidade de reprovação
parcial ou total de obras teatrais ou cinematográficas que in-
centivassem a luta de classe, entre outros fatores. A mesma
lei criara o Conselho Superior de Censura, responsável pela
avaliação prévia das obras, que deveriam ser submetidas a ele
antes de sua encenação e não poderiam receber alterações
ou acréscimos posteriores. Em outras palavras, a censura não
apenas era possível, como também obrigatória.
A censura organizada, definitiva e im-
placável não chegou com Castello Bran-
co, após a deposição de João Goulart.
O golpe militar trouxe os IPMs, os in-
quéritos policiais militares horrendos e
cruéis. A censura apareceu, desprepara-
da, néscia, arrogante e implicante com o
Ato Institucional no 5 e os três ministros
militares no exercício da Presidência da
República. Inchou, esparramou tentácu-
los e em determinado momento se fez
incontrolável, muito mais realista do que
o próprio rei. (GODINHO, 2004, p. 21).
Hugo Zorzetti, respeitado dramaturgo, diretor e estudioso
do teatro goiano, conta, em seu livro de memórias, sobre os
procedimentos adotados pelos censores.

260
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

A gente fazia um texto e mandava para


Brasília e ele vinha carimbado, frases
cortadas, páginas inteiras cortadas com
os carimbos de censurado e depois ain-
da tínhamos que submeter a um ensaio
com a presença do censor5 [...]. Quando
as coisas ficaram mais difíceis, o grupo
começou a ser visto de uma forma mais
exigente, mais policialesca por parte dos
repressores. Eles passavam a nos policiar
mais e isso [a atividade do grupo] aca-
bou. Depois houve várias prisões, inclu-
sive dois ou três elementos do grupo de-
sapareceram. (ZORZETTI, 2005, p. 53).
Os autores deveriam submeter as propostas aos órgãos
responsáveis, que detinham o poder de censurar total ou par-
cialmente a exibição da obra, e esta ficava ainda condicio-
nada a um ensaio aberto para a censura (Figura 2), como se
pode verificar em documentos do período. A montagem do
espetáculo em estudo havia passado pela censura prévia, que,
apenas no início de junho daquele ano (1976), viria a emitir
o certificado aprovando a apresentação da peça, como indica
o documento do Departamento de Censura de Diversões Pú-
blicas (DCDP) da Polícia Federal (BRASIL, 1977).

5 Izaías Almada, ator do Teatro Arena, concede um depoimento semelhante


que pode ser encontrado na série “Semana do Proibido”, veiculada pelo
Jornal da Noite, TV Brasil, em 15 de maio de 2013. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=-ANFOwLUu_s. Acesso em: 21 fev. 2020.

261
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 2 - Certificado de censura e aprovação da peça A traição nas


terrinhas do Coelho, emitido pelo DCDP em 1976

Fonte: BRASIL, 1977.

No palco improvisado, o personagem do Macaco con-


vidava os outros animais para uma traição nas terrinhas do
Coelho. O termo traição, utilizado no interior de Goiás, não
tem sentido negativo. Trata-se de um “mutirão que tem como
objetivo executar uma tarefa em benefício de alguém sem seu
prévio conhecimento, sendo um dos objetivos surpreender o
beneficiado”.6 Na traição, chega-se de madrugada à casa da-
quele que receberá o auxílio, com instrumentos musicais para
a cantoria e ferramentas para a reforma, o plantio ou a co-
lheita. Dividem-se as funções, e o labor segue durante o dia,
enquanto se preparam a comida e as bebidas, numa ativida-
de que é, ao mesmo tempo, trabalho e festa. A apresentação

6 Tesauro de folclore e cultura popular brasileira. Disponível em: http://www.


cnfcp.gov.br/tesauro/00001407.htm. Acesso em: 1º mar. 2020.

262
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

das dificuldades da família Coelho e a organização da traição


compõem todo o primeiro ato da peça.
O segundo ato inicia com a casa arrumada e o serviço con-
cluído. Em meio aos cantos improvisados ao som de um vio-
lão, os bichos bebem quentão, uma tradicional bebida à base
de cachaça, limão, açúcar e gengibre. Dançam catira, brincam
e até brigam entre si pelo amor da Sapinha, a única fêmea
solteira do enredo. É quando chega de surpresa o seu Lobo,
com sua grave imponência e a violência conhecida.
Então fazem festa e não me convidam.
Esta é muito boa. Não sabem que eu
sou a figura principal desta região? Eu,
o poderoso e valente Lobo [...]. Agora
vou querer meu banquete. Estou com
fome (dá um urro). Qualquer bichinho
pequeno serve, ou grande mesmo. (MA-
CHADO, 1984, p. 14).
A figura do Lobo, simulacro dos poderosos coronéis do
interior goiano, assume no enredo infantil o papel de odio-
so algoz. Ele exige seu banquete a qualquer custo enquanto
os outros animais recuam até o canto direito do palco e se
amontoam combinando em mímicas algo ainda indecifrável.
O Coelho oferece as sobras do jantar, prontamente recusadas
pela autoridade lupina. Oferece então uma galinha, a única
cria que dá alguns ovos aos seus filhotes de vez em quando.
Diante da demora no preparo do prato, o Lobo se impacien-
ta e decide devorar o próprio Coelho. Os outros animais, que
durante esse intervalo haviam se organizado para um combate
com as ferramentas do trabalho, intervêm no conflito em defe-
sa do amigo, e a história prossegue do seguinte modo:
Macaco - (à frente do grupo e já entran-
do). Vamos, minha gente! Coragem. Va-
mos acabar com esse tirano. É tempo de
mudar…

263
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

(Os bichos invadem o rancho. O lobo


quer fugir, ruge, ameaça. Os bichos con-
seguem agarrá-lo. Enquanto a onça e o
macaco agarram-no fortemente, fala o
papagaio).
Papagaio - Ele não é um líder. É um pa-
rasita. Só nos explora e ameaça nossas
vidas. Não ajudou na traição, agora quer
acabar com nossa festa. Rouba tudo de
nós e não nos ajuda em nada. Enquanto
não nos livrarmos dele, não seremos li-
vres e felizes. Somos muitos, ele é um só.
Devíamos ter feito isso há muito tempo.
Mas é preciso apanhar para aprender…
(MACHADO, 1984, p. 12).
Os animais amarram o Lobo em uma estaca e continuam a
festa, a que este apenas assiste. Como em Os músicos de Bremen,
dos Irmãos Grimm, lançada originalmente em 1819, a união
entre os animais é fundamental para o sucesso da empreita-
da. Também é simbólico que as mesmas ferramentas utilizadas
para melhorar a vida do Coelho (foices, enxadas, martelos etc.)
tenham sido as responsáveis por melhorar a vida de todos, ao
subjugar o responsável pela repressão aos animais.7
A relação de repressão e resistência estendia-se para além do
palco onde a história era apresentada. O diretor da peça, Carlos
Fernando Magalhães, era considerado um elemento subversi-
vo e de inclinações marxistas, como mostram os arquivos do
Serviço Nacional de Informação. Em uma entrevista concedi-
da à Divisão do Patrimônio Histórico da Secretaria Munici-
pal de Cultura de Goiânia, ele relata que chegara a ser detido
em razão de suas atividades artísticas. Enfrentou uma prisão
7 O musical Os saltimbancos, adaptado por Chico Buarque de Holanda e
inspirado na referida fábula dos Grimm, teria sua estreia em agosto do
ano seguinte, no Rio de Janeiro.

264
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

preventiva devido à sua ligação com o movimento estudan-


til da Universidade Federal de Goiás, conforme se depreende
do inquérito policial militar produzido no ano de 1966.
Todo mundo fugia da gente, era uma
coisa perigosa, foi desmantelada toda
uma perspectiva do Centro Popular de
Cultura, muita gente presa, inclusive eu,
né? Em 65 eu estive um mês e pouco
preso aqui no 10º DC. (MAGALHÃES,
2005, sem paginação).
Anos depois, o escritor seria ainda investigado por ser um
dos autores do periódico Esqueleto 21, do diretório acadêmico
da Faculdade de Medicina da mesma instituição, que foi ex-
tinto no ano de 1976 por força de um decreto do ministro da
Justiça Jarbas Passarinho.
O teatrólogo já contava nessa época com a encenação de
alguns espetáculos considerados de contestação ao regime.
Em 1971, montara o drama satírico A Incelença, de Luiz Mari-
nho. A trama gira em torno das “incelenças” (espécie de can-
to e prece que se oferece aos mortos) cantadas no velório do
camponês seu Quirino. Mais do que um estudo sobre os cos-
tumes sociais e religiosos dos sertões brasileiros, o espetáculo
traz profunda reflexão acerca das relações de poder entre as
autoridades locais e o povo simples. O indiferente senhor de
engenho que abrigava a família do defunto dá o prazo de três
dias para que a viúva e os filhos deixem a propriedade, mas,
ao notar que a filha mais nova do casal poderia, no futuro, ser
mais uma de suas conquistas sexuais, volta atrás na decisão.
Com isso, até mesmo o morto se levanta (não morrera de fato,
apenas sofrera de um ataque de catalepsia), e, assim, toda a
comoção diante de sua partida desaparece.
Também pesava contra Carlos Fernando a acusação de di-
rigir a peça A exceção e a regra, do teatrólogo marxista alemão

265
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Bertold Brecht (Figura 3),8 apresentada em 15 de julho de 1975,


na Primeira Mostra Local da Federação Nacional de Teatro
Amador (Fenata) (BRASIL, 1976). A própria mostra recebera
especial atenção da Divisão de Segurança e Informação da Se-
cretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, que produ-
ziu um relatório com os nomes dos organizadores do evento e
as principais informações sobre eles, citando principalmente
seus antecedentes ideológicos (GOIÁS, 1975).
Figura 3 - Trecho do dossiê do Serviço Nacional de Informações contra
as atividades supostamente subversivas de Carlos Fernando Magalhães

Fonte: BRASIL, março de 1976.

Além de Carlos Fernando, outro membro considerado


subversivo no elenco do espetáculo era o ator Daniel Rech,
nascido em Caxias do Sul, RS, no ano de 1947. Assim como o
colega diretor, não possuía formação profissional em teatro.
Era graduado pela Universidade Católica de Goiás em Histó-
ria e em Direito, tendo concluído os cursos em 1976 e 1983,
respectivamente. Consta ainda em seu currículo a graduação
incompleta em Filosofia, iniciada em 1968 e interrompida no
ano de 1970.9 Em 1975, Daniel Rech participara, como ator,

8 Como se vê na Figura 3, ao referir-se a esta peça, o Serviço Nacional de


Informações diz, erroneamente, A execução é a regra, de Bartola Brech,
9 Disponível no site O Escavador, que agrupa informações públicas de
órgãos oficiais brasileiros: https://www.escavador.com/sobre/5966017/
daniel-turibio-rech. Acesso em: 2 mar. 2020.

266
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

dos espetáculos A exceção e a regra e Woyzeck, obra inacabada


do dramaturgo alemão Georg Büchner. Em 1976, atuou em
Os justos, de Albert Camus. As duas últimas peças foram diri-
gidas por Carlos Fernando Magalhães.
No início da década de 1970, era funcionário da antiga
Universidade Católica de Goiás e residia na casa paroquial
de Itapuranga, GO. Teria chegado à cidade juntamente
com outros cinco missionários, entre eles, o também gaú-
cho e futuro prefeito de Goiânia Darci Accorsi. Consta em
sua ficha cadastral no Serviço Nacional de Informações que
ministrava as disciplinas de Moral e Cívica, História, Ciên-
cias e Lógica no Colégio Estadual da Itapuranga, mediante
a autorização da Comissão de Educação Moral e Cívica de
Goiás, cadeira da qual foi dispensado por supostamente ter
emitido conceitos anticonvencionais sobre religião e moral
(BRASIL, abril de 1976).
Mantinha relações com diversos campos políticos e de
defesa dos direitos humanos, sendo membro da Comissão
Pastoral da Terra até os dias de hoje. Pela comissão, organi-
zou eventos ou colaborou com eles em diversas cidades do
país, sempre contestando a truculência das leis de defesa
nacionais, a violência no campo e as desigualdades sociais
(BRASIL, 1972, abril de 1976). É um dos autores do livro O
genocídio no Nordeste, 1979-1983 (CPT; CEPAC; IBASE, 1989),
organizado pela Comissão Pastoral da Terra, pelo Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e pelo Centro
Piauiense de Ação Popular.
Na obra, assina o primeiro capítulo, onde afirma que as
mais de setecentas mil mortes, ocorridas, segundo ele, no pe-
ríodo de 1979 a 1983, não foram causadas propriamente pelo
problema da seca, e sim pela irresponsabilidade das autorida-
des governamentais da época. Para Daniel Rech, o que houve

267
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

foi um genocídio, ou seja, “uma intenção no crime cometido,


intenção de autores humanos que devem ser responsabiliza-
dos pelo resultado de suas atitudes e de suas omissões” (LI-
VRO DENUNCIA..., 1988).
Devido à sua relação com os meios sindicais, Rech parti-
cipou, em 1982, dos primeiros movimentos para a criação da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), oficialmente cons-
tituída em 1983, embora não conste em seus arquivos a con-
firmação de qualquer filiação partidária.
Sua relação com o teatro e a política o levaria a partici-
par do I Congresso da Federação Internacional de Teatro
Amador de Goiás, em 1982, quando foi eleito como segun-
do secretário para a segunda gestão da referida federação e
também como membro da Fenata (BRASIL, 1982). Era um
grande entusiasta do teatro amador, como mostram diversos
artigos de opinião que publicou em jornais da época.
No dossiê relativo à montagem de A traição nas terrinhas
do Coelho em 1975, é apontado como elemento esquerdista e
líder do Grupo Teatro Laboratório. É também mencionado
como membro do Teatro Oficina de Porto Alegre, RS, infor-
mação não confirmada por outras fontes até o momento da
publicação deste texto. Nos arquivos encontrados, não cons-
tam os nomes dos demais participantes da montagem da
peça referida, ainda que o enredo original preveja doze perso-
nagens. Também não estão citados cenógrafos, maquiadores
ou qualquer outro membro de equipes técnicas ou de apoio.
Existem registros de que o espetáculo teria uma aborda-
gem marxista de uma problemática rural. Tal como percebe-
mos hoje em dia, diversas manifestações de insatisfação com
autoridades, bem como as organizações sociais em geral ou
as lutas de classes, eram sumariamente categorizadas como
manifestações de cunho comunista. Assim, a presença de

268
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

Carlos Fernando Magalhães e de Daniel Rech na peça em


questão, somada a suas posições ideológicas e atuações em
outros campos, soava como indicador de que a apresentação
do espetáculo consistia numa atitude subversiva. Por isso a
peça foi alvo de investigação (Figura 4) e, embora já tivesse
encerrado o período das apresentações, que fora bem curto,
não escapou à censura.
Figura 4 - Trecho de um arquivo endereçado ao Ministério do Exército
com informações sobre a montagem do espetáculo A traição nas terrinhas
do Coelho em Goiânia (1976), pelo Grupo de Teatro Laboratório

Fonte: BRASIL, agosto de 1976.

Considerações finais

Ao final deste estudo, é possível notar a frequente vigilân-


cia que recaía sobre artistas de matizes ideológicos contrários

269
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ao do governo vigente na época da ditadura, mesmo quando


os produtos artísticos levados ao público já haviam se subme-
tido ao escrutínio censor. Nesse cenário, o envolvimento de
Carlos Fernando Magalhães e Daniel Rech em atividades
consideradas subversivas à ordem posta tornou suspeita a
montagem teatral em estudo, voltada para crianças.
Não foram encontrados registros de novas apresentações
do espetáculo A traição nas terrinhas do Coelho pelo Grupo de
Teatro Laboratório, além desta curta temporada inserida na
programação anual da Prefeitura de Goiânia em 1976. Isso
pode ter ocorrido por razões pessoais ou financeiras, ou devi-
do aos resultados das investigações de que tomamos conhe-
cimento neste texto.
As cópias de arquivos secretos e a grande quantidade de
informações coletadas pelos órgãos oficiais nos dão a dimen-
são de uma política de estado opressora, focada em vigiar su-
postos opositores e reprimir quaisquer iniciativas que contra-
riassem os interesses do grupo político no poder. Havia cons-
tante suspeita de propagação de ideias marxistas de modo
subliminar através de obras de arte, e consideráveis recursos
eram dedicados a coibir qualquer tentativa neste sentido.
Neste estudo, pudemos perceber o esmero nas monta-
gens do Teatro Laboratório, nas quais estão presentes a ino-
vação e o ineditismo, aliados ao interesse em praticar um
teatro de alcance popular. Infelizmente, porém, são escassas
as informações acerca dos aspectos técnicos da montagem,
de seu público total e de grande parcela dos participantes
do trabalho.
Consideramos que estas lacunas, além de um desafio para
a pesquisa historiográfica, constituem uma oportunidade
para que novos estudiosos se debrucem sobre o tema abor-

270
Suspeita de doutrinação marxista na montagem do espetáculo infantil
A traição nas terrinhas do Coelho (Goiânia, 1976)

dado e tragam suas contribuições para enriquecer a literatura


acadêmica referente à história do teatro goiano.

Referências

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para


Assuntos Jurídicos. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de
setembro de 1946). Brasília: Planalto do Governo, 1946. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui
cao46.htm. Acesso em: 19 fev. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para As-
suntos Jurídicos. Ato institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-02-65.
htm. Acesso em: 19 fev. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-
mação. Núcleo Central/Brasília. Informação nº 322/NAGO/SNI/72.
Assunto: Prof. Daniel Turíbio Rech. Junho de 1972.
BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-
mação. Núcleo de Agência de Goiânia. Informação nº 138/NAGO/
SNI/76. Assunto: Infiltração de elementos esquerdistas na admi-
nistração pública. Março de 1976.
BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-
mação. Núcleo Central/Brasília. Informação nº 064/14/AC/SNI/76.
Assunto: Daniel Turíbio Rech. Abril de 1976.
BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-
mação. Núcleo Central/Brasília. Informação nº 320/AC/SNI/76. As-
sunto: Infiltração esquerdista em teatro. Agosto de 1976.
BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-
mação. Núcleo de Agência de Goiânia. Informação nº 067/116/
NAGO/SNI/77. Assunto: Apresentação do Grupo Teatro Labo-
ratório de Goiânia/GO: “A Traição nas Terrinhas do Coelho”.
Março de 1977.

271
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

BRASIL. Presidência da República. Serviço Nacional de Infor-


mação. Núcleo de Agência de Goiânia. Pedido de busca nº 026/116/
AGO/SNI/82. Assunto: Federação Independente de Teatro Ama-
dor de Goiás. Março de 1982.
CPT; CEPAC; IBASE. O genocídio do Nordeste (1979-1983). São Pau-
lo: Mandacaru, 1989.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. São Paulo: Cia. das Letras,
2002.
GODINHO, Jávier. A imprensa amordaçada. Goiânia: Contato Co-
municação, 2004.
GOIÁS (Estado). Secretaria de Segurança Pública de Goiás. Infor-
mação nº 823/75. Assunto: Primeira Mostra Local da Fenata. Ou-
tubro de 1975.
LIVRO denuncia 5 mil mortes por omissão: matéria anuncia
lançamento do livro O genocídio no Nordeste, 1979-1983. Jornal da Ba-
hia, 5 jul. 1988.
MACHADO, Marietta Telles. A traição nas terrinhas do coelho. Goiâ-
nia: Ed. Divanir Pimenta & Nilson Gorosthides, 1984.
MACIEL, David. A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova
República (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004.
MAGALHÃES, Carlos Fernando Filgueiras de. [Depoimento: entre-
vista cedida a Vera Gomes]. Goiânia, 2005. Arquivo da Divisão do
Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de Goiâ-
nia. Manuscrito.
ZORZETTI, Hugo. Memória do teatro goiano. Goiânia: Ed. UCG,
2005.

272
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Maria Ângela de Ambrosis Pinheiro Machado1

Resumo: Esta comunicação pretende traçar um panora-


ma dos estudos que venho realizando no Programa de Pós-
-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Uni-
camp, SP, na qualidade de estágio pós-doutoral. Trata-se de
um relato analítico e reflexivo das atividades desenvolvidas
no grupo de pesquisa Prática como Pesquisa: Processos de
Produção da Cena Contemporânea, vinculado ao programa
de pós-graduação referido, e de demonstrar a inter-relação
do Grupo com a pesquisa em desenvolvimento acerca do
processo criativo do espetáculo Não posso esqu cer, de Valé-
ria Braga e Maria Ângela de Ambrosis. Serão apresentados
um estudo conceitual sobre as perspectivas elencadas pela
“prática como pesquisa” e os caminhos possíveis de investi-
gação da arte do ator nas práticas de ensaio e apresentação.
Também será observada a aplicabilidade dessa abordagem
na pesquisa relativa ao processo de criação do espetáculo
Não posso esqu cer. Em função de apresentações agendadas,
este espetáculo precisou de vários ensaios. Esses ensaios e a
apresentação foram subsidiados pelo workshop Creative Ar-
ticulations Process, ministrado por Vida Midgelow e Jane
1 Pós-doutora em Artes da Cena pelo Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas. Doutora e mestra em Comunicação e Semiótica
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Educadora do
Movimento Somático pela School of Body Mind Centering. Especialista
em Comunicação e Educação pela Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo e graduada e licenciada em Ciências Sociais
pela PUC-SP. Atualmente, é professora associada da Escola de Música
e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, onde ministra
disciplinas na área de interpretação teatral, improvisação e jogos teatrais,
montagem de espetáculo e artes do corpo.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Bacon, da Middlesex University de Londres, em setembro


de 2019. Ao analisar o contexto e os fundamentos da prática
como pesquisa no âmbito da epistemologia dos estudos em
arte e sua aplicabilidade no processo de ensaio e apresen-
tação do espetáculo mencionado, esta comunicação buscará
evidenciar o conhecimento gerado pelas práticas somáticas
e criativas na construção do objeto artístico.
Palavras-chave: prática como pesquisa; prática artística;
práticas somáticas.

Practice as research: context and perspective

Abstract: This paper intends to draw an overview of


the studies that are being carried out with the Postgraduate
Program in Performing Arts of the Institute of Arts of Uni-
camp, SP, as a postdoctoral internship. It is an analytical and
reflective report of the activities developed with the research
group Practice as Research: Processes of Contemporary Sce-
ne Production (PPGAC-IA-Unicamp) and its interrelation
with research under development about the creative process
of show Can’t forget, by Valéria Braga and Maria Ângela de
Ambrosis. It will be presented a conceptual reflection about
the perspectives listed by the “practice as research” and the
question about work of the actor in the practice of rehe-
arsal and presentation, as well as the research exercise of
this approach and its applicability to the research about the
creative process of the show Can’t forget. Due to scheduled
performances, this show required rehearsals. This practice of
rehearsal and performance of the show was subsidized by the
Creative Articulations Process workshop, taught by Vida
Midgelow and Jane Bacon of Middlesex University of Lon-
don, in September 2019. Thus, the scope of this commu-
nication will compose the context and foundations of the
practice as research in the field with in the epistemology

274
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

of art research, its applicability to the rehearsal and presen-


tation process of the talked-about show, highlighting the
knowledge generated by the somatic and creative practices
in the construction of the artistic object.
Keywords: practice as research; artistic practice; so-
matics practices.

Pesquisa em artes da cena

A “prática como pesquisa” vem constituindo um parâmetro


epistemológico para o estudo acadêmico da prática artística.
Trata-se de uma abordagem recente nas pesquisas acadêmi-
cas em artes nos cursos de graduação e pós-graduação que fo-
mentam a participação de artistas-pesquisadores acolhendo-
-os no âmbito da universidade. Segundo Fortin e Gosselin
(2014), a entrada de artistas no meio acadêmico tem deman-
dado uma revisão dos eixos epistemológicos da pesquisa em
arte, de forma a contemplar a especificidade apresentada
pelo artista-pesquisador interessado em compreender o seu
fazer artístico.
Os autores apontam para o contexto da pesquisa em arte
na academia mapeando as bases epistemológicas positivistas
e as pós-positivistas. Cada uma destas vertentes traz qualida-
des diversificadas de pesquisa, sendo a base epistemológica
do pós-positivismo mais acolhedora das pesquisas em artes.
Mas, ainda assim, é a prática como pesquisa que contempla o
fazer artístico como pesquisa.
Este é o ponto em que pretendo pautar esta comunicação.
Sou artista da cena e reconheço nesta prática um processo
de pesquisa e conhecimento que pode ser compartilhado não
somente na forma de um espetáculo, mas também mediante

275
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

um mergulho nos processos de criação. A prática artística en-


volve pesquisa, e conhecer os meandros da pesquisa artística
e exercitá-la na universidade, locus reconhecidamente da pro-
dução de conhecimento, consubstancia os processos e obras
artísticas como modos de ação e produção de conhecimento.
A inserção de artistas na universidade é recente e tem gran-
jeado um olhar mais cuidadoso para os modos de pesquisar
desses artistas. Concordo com Silvia Geraldi (2019, p. 140,
grifo da autora) quando afirma:
Como primeiro aspecto, parece-me ne-
cessário enfatizar o caráter corporal,
produtivo, realizativo – próprio do cam-
po da arte – que tanto a prática quan-
to a pesquisa têm, compreendendo-os
como modos de ação. Pensar na prática e
na pesquisa como modos de ação tem
também um viés político, já que mui-
tos pesquisadores – entre os quais me
incluo – têm buscado afirmar e validar
os saberes do corpo como conhecimen-
tos de igual hierarquia em relação aos
chamados conhecimentos científicos,
sobretudo dentro do meio acadêmico.
Nesta direção, a vertente metodológica da prática como
pesquisa tem sido um dos caminhos para melhor acolher
este modo de fazer, pensar e criar arte no meio acadêmico,
ultrapassando os universos epistemológicos positivista e pós-
-positivista, como está pontuado no artigo de Fortin e Gosse-
lin. Ao que parece, a recente sistematização do conhecimento
relativo à arte (últimos trinta anos) alimenta algumas corren-
tes deste pensamento com denominações diversas. Confor-
me aponta Geraldi (2019, p. 147, grifo da autora),
a pesquisa em arte no contexto acadê-
mico tem recebido diferentes denomi-

276
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

nações nos mais diversos países: nos


países nórdicos e da Europa Continental
predomina o nome pesquisa artística; na
Austrália, é denominada pesquisa guiada
pela prática (practice-led); na Inglater-
ra, desenvolveu-se principalmente sob
o nome de práxis como pesquisa (praxis
as research) (ALARCÓN; LUDWIGS,
2014). Surgidos de diferentes filiações
e contextos, estes e outros modelos têm
se disseminado e servido de referência
para os programas de pós-graduação
latino-americanos, que consideram o
trabalho da criação como fundamental
para o desenvolvimento investigativo.
Apesar do espelhamento, as abordagens
locais não se constituem em mera re-
produção de experiências estrangeiras,
mas em um repensar crítico das mesmas
frente a realidades contextuais singula-
res, gerando inclusive novas e profícuas
modelagens para a pesquisa em arte.
Quando o corpo constitui o eixo da pesquisa e da criação
em arte, como acontece nas artes da cena, estes parâmetros
metodológicos trazidos por esta nova vertente epistemológi-
ca parecem contemplar um estudo mais focado na pesquisa
artística como produtora de conhecimento. Ou seja, o corpo,
suas sensações, percepções e ações de movimento, de fala e
de pensamento constituem modos de conhecer e elaborar co-
nhecimento, levando em conta a especificidade deste proces-
so de conhecimento. Sendo assim, a prática artística ganha
espaço nas universidades na qualidade de pesquisa acadêmi-
ca nomeada, entre outras formas, pesquisa guiada pela práti-
ca ou prática como pesquisa (GERALDI, 2019).

277
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Os caminhos que ora desenvolvo têm recorrido ao concei-


to de “prática somática” elaborado pela pesquisadora Ciane
Fernandes. Afinal, o foco de minha pesquisa é a questão da
performatividade ou ação performativa do ator, seus modos
de construção, criação e presença cênica, elementos cuja base
são as práticas somáticas de diversas naturezas. Minha práti-
ca como pesquisa é baseada na prática somática fundamen-
tada no body-mind centeringTM,2 uma perspectiva prática de co-
nhecimento do corpo, de sua anatomia, seu movimento e sua
expressividade no contexto da criação e expressão artística.

Exercício da prática como pesquisa

Entre os dias 12 e 15 de setembro de 2019, como parte das


atividades desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade de
Campinas (Unicamp), em estágio pós-doutoral sob a super-
visão de Silvia Maria Geraldi, participei do workshop Creati-
ve Articulations Process (CAP) na Unicamp: Diálogos sobre
Prática como Pesquisa. O evento foi ministrado pelas profes-
soras Vida L. Midgelow (Middlesex University, Reino Unido)
e Jane Bacon (University of Chichester, Reino Unido).
Nesse encontro, foi possível vivenciar, discutir e com-
preender os procedimentos elaborados por essas professoras
e expressos no artigo intitulado “Processo de articulação cria-
tiva PAC”, em que definem a abrangência da prática como
pesquisa como metodologia possível para a pesquisa em arte
no âmbito acadêmico. O “vivenciar” consistiu numa prática
2 O body-mind centering é uma abordagem somática desenvolvida por
Bonnie Cohen (USA). Sou formada no curso de Educador do Movimento
Somático, pela School of Body Mind Centering – Programa Brasileiro,
desde 2014.

278
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

de pesquisa em arte associada à prática da escrita, o “nomear”,


que passo a descrever.
O princípio metodológico da prática como pesquisa é o de
que a percepção deve “sentir os sentidos”. Observo que este
princípio tem fundamento nas práticas somáticas: o proces-
so de ensaio, pesquisa, criação e apresentação constitui um
modo de o ator perceber como sente e entender quais são
suas sensações, qual é o seu posicionamento no espaço e qual
é a qualidade de integração e consciência do corpo no mergu-
lho do fazer, pesquisar, criar e pensar o trabalho artístico em
artes do corpo (MIDGELOW; BACON, 2015).
Como procedimentos de pesquisa, aprofundamos no
workshop o uso das denominadas “facetas” (diversas faces de
um mesmo processo), que não são necessariamente instru-
mentos de criação, mas um modo de lidar com uma questão
surgida no momento da prática de investigação artística. As
facetas trabalhadas no evento foram abrir, situar, escavar, ele-
var, anatomizar e externalizar. No artigo acima referido, Mid-
gelow e Bacon explicitam melhor o que cada uma destas fa-
cetas propõe como pesquisa. Supostamente, há um caminho
linear de execução de cada faceta, mas a natureza do processo
investigativo em artes da cena dissolve esta aparente lineari-
dade e direciona para a complexidade de cada uma e para a
interação entre elas. Assim, as facetas constituem apenas um
modo mais analítico e sistemático de estudo de uma questão
artística que está sendo investigada pelo corpo.
As investigações em artes da cena realizadas com a utili-
zação desta metodologia das facetas implicam também um
processo de nomeação daquilo que se está realizando, ou seja,
exigem a observação e nomeação do que está acontecendo,
o reconhecimento de padrões e a criação das questões a se-
rem apresentadas na obra artística (MIDGELOW; BACON,

279
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

2015). Nesta perspectiva, a escrita torna-se um elemento cru-


cial para a investigação e para uma direção cênica focada em
atentar na participação do corpo neste processo e em perce-
ber que tipos de escrita podem aparecer (detectar modos cria-
tivos de escrever). Como o corpo está inserido e imbricado na
escrita destes processos? E como esta escrita pode posterior-
mente tornar-se expressão do conhecimento desenvolvido
na prática da pesquisa cênica?
Em vez de trazer as descrições das facetas e da escrita
tais como apresentadas no artigo acima citado, descreverei
o modo como investiguei as facetas e a escrita durante o
workshop. Tal percurso deixará evidente a relação entre essa
forma adotada e os procedimentos de pesquisa e ensaio para
o espetáculo Não posso esqu cer, de Valéria Braga e Maria Ân-
gela de Ambrosis, com dramaturgia de Kleber Damaso.3

3 A pesquisa de criação dessa performance iniciou em 2016, e sua primeira


temporada foi realizada no mesmo ano, com o apoio da Lei Municipal de
Incentivo à Cultura de Goiânia. A segunda temporada ocorreu em 2018,
com o apoio do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás (https://www.
youtube.com/watch?v=bQw0oUVQc&t=33s). Em 2019, novamente com o
apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Goiânia, foi realizada
a terceira temporada do espetáculo implementando-se acessibilidade e
oficinas de formação de plateia. Ainda em 2019, o espetáculo já iniciou
seus caminhos fora de Goiás. Foram feitas duas apresentações no Sesc
Ipiranga em São Paulo, SP. Em 2020, está prevista a circulação nacional
com o fomento do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás e duas
apresentações no Sesc Pompéia em São Paulo, SP. Além de constituir um
projeto de pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em
Artes da Cena do Instituto de Artes da Unicamp, esta pesquisa cênica é
também um projeto de extensão desenvolvido no Grupo IPU – Núcleo de
Estudos Corpo, Jogo e Criação Cênica. O projeto, coordenado por Valéria
Braga, conta com o apoio da Casa 107 (café-teatro), em Goiânia, GO.

280
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Descrevendo um processo

Ao final do workshop realizado, ficou evidente para mim


a relação corpo-voz na expressão cênica e passei a entender
melhor especificamente alguns aspectos da pesquisa corpo-
-voz para performance. Meu desafio nesse período de pesquisa
e ensaio do espetáculo consistiu em trazer a voz para o pro-
cesso de ensaio e, posteriormente, para a ação performativa
da apresentação, compreendendo e integrando a voz na dra-
maturgia sonora da cena. Esta questão foi clareada durante
o workshop, e não foi premeditada: ela emergiu no exercício
das facetas. O que passo a descrever constitui o caminho pelo
qual a questão veio se configurando em meu processo de pes-
quisa e ensaio da performance Não posso esqu cer.
A faceta “abrir” é o primeiro momento da pesquisa, no
qual se focam o corpo e sua interação com o espaço e o tem-
po presente – um olhar acurado para as condições dos es-
tados corporais nesse momento da investigação. O conceito
de estados corporais segue, neste texto, a acepção trazida por
Antonio Damásio, em que o corpo, em sua relação com o am-
biente, ajusta-se, por meio da homeostasia, às suas condições
internas (estados diversos de humor, bem-estar, atenção etc.)
e ao ambiente. Este é constituído por sons, pessoas, objetos
e outros elementos que afetam o corpo. Ao mesmo tempo,
nesta variação contínua de afetos, o corpo cria o ambiente
(DAMÁSIO, 1997).
Destaco esta primeira faceta pelo fato de ela ser recor-
rente, inclusive, nas práticas somáticas, em que se propõe o
desenvolvimento da consciência do corpo. Trata-se de um
momento de esvaziamento de perspectivas, expectativas e
pensamentos de diversas ordens que carregamos. Momento
de escuta. Esse processo conduz a uma reconexão do corpo

281
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

com suas sensações, estados e necessidades. Como o próprio


nome diz, é o momento de abrir-se para o que já está presen-
te. A meu ver, é o principal momento da pesquisa, pois ele
indica o norte para o desenvolvimento da pesquisa do dia.
Traz o foco para o momento presente, colocando em segun-
do plano possíveis desejos ou necessidades mais associados a
uma ansiedade ou a um pensamento externo ao que de fato
está ocorrendo nesse instante. É o momento de confiar no
que o corpo aponta como estado de pesquisa ou necessidade.
Posteriormente, esta clareza vai se reverter para o trabalho
artístico, facilitando o seu desenvolvimento e acolhendo as
ansiedades e vontades gestadas nesse fazer.
Mas, para continuar, vou primeiro à última das facetas: ex-
ternalizar. É o momento deste processo de pesquisa em que o
pesquisador coloca em questão aquilo que aprendeu durante
o processo e define a forma de mostrar este conhecimento ao
outro. No meu caso, o que aprendi durante a pesquisa desen-
volvida no workshop foi que precisava investigar melhor a in-
tegração corpo e voz para o espetáculo Não posso esqu cer. Esta
questão permeou os procedimentos de ensaio posteriores ao
workshop, trazendo renovações ao resultado estético da perfor-
mance. Isso envolveu corpo, respiração (relação entre pulmão,
coração e diafragma), texto de referência, sons, onomatopeias,
substantivos e verbos. Evitei adjetivos. O momento descrito
proporcionou a integração entre o estado corporal trazido pela
performance e os sons produzidos pela voz ou pelo movimento
como componentes da dramaturgia sonora dessa performance.
O que se configurou durante essa interação foi algo que só o
performer e a performance poderiam explicar. Estes estudos for-
taleceram a presença da voz no espetáculo, a voz integrada ao
corpo, integrada ao fluxo de movimento do corpo, um proces-
so melódico próprio de composições com esse fluxo.

282
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Como a experiência da criação artística produz conheci-


mento? Esta é uma resposta que a faceta “externalizar” pode
oferecer. É preciso descobrir e expressar o conhecimento
gerado na ação e escrever sobre ele. Como cheguei, pois, à
investigação da questão do corpo e da voz para a performan-
ce Não posso esqu cer? No primeiro dia de experiência com a
faceta “externalizar”, fui orientada a elencar as palavras que
conduziram a investigação do dia e escrevê-las em uma tira
de papel. Minhas palavras foram dor, voz da dor, postura, lu-
gares, cuidado, suavidade, apoios, emitir som, coluna mole,
dói, planos, por quê?, grito, relação, arde, aperto, outro, per-
cepção, garganta e cura. Tínhamos de espalhar estas palavras
pelo espaço. Então coloquei aperto, dor, arde, dói e por quê?
nos espaços periféricos da sala e, no centro, alinhadas, segui-
ram-se as palavras voz, voz da dor, grito, cuidado, suavidade,
apoios, garganta e emitir som.
Como trabalhávamos em duplas, eu tinha de mostrar ao
meu parceiro o percurso das palavras, usando, para isso, mo-
vimentos diversos, como correr, arrastar, pular, enfim, eu po-
dia ir de uma palavra a outra com movimentos e intenções
distintos sugestionados por aquilo que gostaria de explicitar.
Assim, meu percurso pelas palavras da periferia foram pe-
quenas corridas, um andar cuidadoso, como se estivesse en-
trando em casa sorrateiramente, e um andar decidido. Para
chegar ao centro, onde estavam as palavras cura, voz, gar-
ganta, grito etc., como as palavras estavam alinhadas, sugeri
brincar de amarelinha.
O “abrir” desse dia focou em minha dor na coluna. Estava
tensionada e dolorida. Assim, desenhei o tensionamento que
sentia nas costas (Figura 1). Em seguida, passei às outras face-
tas: situar, escavar, elevar e anatomizar.

283
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 1- Desenho feito para a faceta “abrir”

Fonte: Diário de bordo da autora.

- Situar: o desenho referente a esta faceta foi o eixo para


investigar o movimento do corpo. Nesse momento, movi-
mentei-me com suavidade, coluna mole, fazendo contração
e expansão e procurando reconhecer os possíveis campos de
investigação daquele dia.
- Escavar (aprofundar o foco da investigação): para este
aprofundamento, coloquei uma lente de aumento no desenho
e ampliei o movimento para o corpo como um todo, em vez de
deixá-lo somente na coluna (Figura 2).

284
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Figura 2 - Desenho para a faceta “escavar”

Fonte: Diário de bordo da autora.

- Elevar: nesta faceta, destaquei o que pareceu mais im-


portante nas propostas de movimento e temas: apoios, con-
tração e expansão ao caminhar, correr e deitar, e integração
respiração-movimento.
- Anatomizar (criar diferentes meios de realizar a proposta
de pesquisa do movimento). Esta prática é bastante comum
no meu modo de realizar pesquisa de movimento e de criação
cênica. Procuro empregar diversas dinâmicas, fazer deslo-
camentos no espaço, manter o foco na investigação, utilizar
várias partes do corpo e observar como cada parte realiza o
pex, ou seja, o movimento de contração e expansão. Muitos
estímulos podem ser oferecidos à pesquisa a fim de ampliar
seu espectro de investigação. Para que servem eles? Jamais
para criar repertório, mas para instigar e implementar o cor-
po, lançando-o em espaços de experimentação, identificando
padrões através dele, criando novas possibilidades, realizan-
do novas conexões neurofisiológicas.

285
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

No decorrer do workshop, fomos refazendo todos os dias


esta sequência de facetas, a cada vez dando mais espaço de
observação e compreensão para uma delas. Como o primei-
ro momento é sempre o de abrir-se para o que está presen-
te, as investigações tinham de se pautar no que chamava a
atenção no dia. Este critério parece-me fundamental, pois a
percepção e a consciência do estado do corpo constituirão a
base da investigação do dia e, ao mesmo tempo, a base para
a realização da performance artística, cujo foco é a experiência
viva do ator em cena. Neste aspecto, evidencia-se a diluição
das fronteiras entre ensaio e performance.
Quando nos aquecemos antes das apresentações e nos
ensaios, esta base se torna clara e passa a constituir o eixo,
o contexto do ensaio ou da performance naquele dia. Assim,
nenhum dia será igual ao outro, tudo dependerá do estado
corporal que se apresente. Esse processo é semelhante ao
ocorrido no conto “Livro de areia”, de Jorge Luis Borges, em
que, a cada vez que o narrador abre o livro, este apresenta um
conteúdo diverso, com paginação arbitrária. Um desenho que
aparece uma vez não será mais visto. Não se encontra nem a
primeira, nem a última página, porque é um livro infinito, e o
que é infinito não tem começo nem fim. Assim são o proces-
so de criação e a performance: sempre resultados provisórios,
num continuum infinitum.
Lidar com o que chama a atenção no dia tem esta impli-
cação e parece promover certa dispersão na pesquisa, tal
como acontece no livro de areia de Borges. Mas o que ocorre
de fato é que o corpo vai corporificando as práticas anterio-
res, e mesmo que, aparentemente, o estudo pareça diverso,
ao final se observa que se trata de diferentes caminhos que o
próprio corpo cria para investigar uma mesma questão. Foi o
que constatei nas propostas seguintes.

286
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

O jogo de amarelinha foi utilizado nos demais dias do


workshop, tornando evidente que a ludicidade amplia enor-
memente a capacidade comunicativa. Jogar com o que se
aprendeu constitui um modo de deixar o conhecimento
sempre em fluxo, aberto para outras possibilidades latentes
ou emergentes. No decorrer dos trabalhos, foram recorrentes
as questões que surgiram logo no primeiro dia do workshop,
como, por exemplo, “qual é a voz da dor”? e “qual é o assun-
to da dor?”. Dessa forma, elas compuseram a orientação de
investigação da voz e do corpo, que ia sendo retomada nos
ensaios do espetáculo Não posso esqu cer.
Outro aspecto importante neste workshop foi a questão da
escrita. Consegui explorar várias formas de escrita, sempre
buscando associá-las ao estado corporalizado de investigação
presente no momento. A Figura 3 mostra, por exemplo, uma
brincadeira com a escrita da palavra “apertado”.
Figura 3 - Experiência com formas de escrita (palavra “apertado”)

Fonte: Diário de bordo da autora.

287
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Variadas possibilidades foram experimentadas: escrever


sem parar, descrever, escrever por tópicos, desenhar a escrita,
desenhar, escrever só palavras, dar voz a uma parte do corpo,
criar metáforas, enfim, um universo de possibilidades e jogos
a serem criados. Novamente, a escuta do momento para per-
ceber qual seria a melhor forma de registro.
Todos os dias, cada faceta passava por um momento de
experimentação no corpo (de três a cinco minutos) seguido
de um tempo de escrita com essa mesma duração. Além de
modos diversos de registro, a perspectiva desta conduta é
aprender a nomear para que o processo ganhe outro estado
de conhecimento. Ao nomear, o pesquisador-artista consegue
observar o que está acontecendo, reconhecer padrões, elabo-
rar/identificar a questão de sua pesquisa e expressar o conhe-
cimento emergido da prática (MIDGELOW; BACON, 2015).
Como dar escrita ao movimento? O exercício da escrita,
em seus distintos modos, permite uma melhor apropriação
daquilo que se deu a conhecer durante a pesquisa prática,
além de contribuir para uma aproximação das questões que
devem ser resolvidas em performance e facilitar o comparti-
lhamento da experiência e do conhecimento desenvolvidos
na prática como pesquisa. O corpo todo é envolvido na prá-
tica da escrita, e, com isso, diversas formas de escrever vão
aflorando e ampliando o potencial de comunicação escrita da
experiência. Esses fatos, aliás, podem também favorecer a es-
crita acadêmica. Ou seja, prática como pesquisa não é neces-
sariamente a busca por um resultado artístico, mas um cami-
nho para realizar uma pesquisa em arte de forma sistemática,
observando os processos criativos disponíveis na área para o
artista-pesquisador e as possibilidades de comunicação desta
prática de pesquisa.

288
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Isso pôde ser percebido em um momento de trabalho com


a faceta “abrir”, durante o qual identifiquei uma tensão em
meu corpo na base do crânio, descendo pelo lado esquerdo
paralelamente à coluna. Associei essa tensão ao cabo de aço
tensionado que sustentava a vara de luz do espaço. Perguntei
então: o que estou segurando? O que estou sustentando com
esta tensão? O processo de exploração das outras facetas pro-
porcionou-me a oportunidade de tensionar e relaxar como
se fosse uma marionete. O jogo estabelecido na experimen-
tação trouxe o movimento que realizo com o braço esquerdo
na performance do Não posso esqu cer. Propus-me a questionar,
usando o “se mágico” de Stanislavski (2014), como seria o
movimento do corpo se o braço esquerdo o sustentasse. De
acordo com essa proposição, o corpo se movimentava para
que o braço ganhasse o movimento que ele faz na performan-
ce. Aprendi a me dependurar em mim.
Outro resultado da prática como pesquisa pôde ser verifi-
cado no terceiro dia do workshop, na faceta “abrir” para sentir
os sentidos, em que a percepção de meu corpo apontou para
o estômago. Destaco nos procedimentos subsequentes a es-
crita desta prática e, no desenho da Figura 5, grifo de azul a
frase “comer o ar como se procurasse comer as palavras”. Essa
frase tem conexão direta com a performance Não posso esqu cer,
especificamente com a cena em que como a manga da blusa
pronunciando palavras (Figura 4).

289
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 4 - Cena do espetáculo Não posso esqu cer

Fotografia: Layza Vasconcelos.

290
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

Figura 5 - Atividade realizada durante a faceta “abrir”

Fonte: Diário de bordo da autora.

Ao final do workshop, para exteriorizar o que foi aprendido


na prática e que era passível de ser compartilhado, foquei a
investigação na faceta “externalizar”. Como se vê na Figura 6,
criei nesse momento uma estrutura de amarelinha para apre-
sentar minha exposição desta proposta.

291
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 6 - Exposição, no formato de amarelinha, da realização da faceta


“externalizar”, desenvolvida no workshop

Perceber o corpo (ação: pausa e


escuta do corpo).

Levantar material e jogar tudo 3


fora, porém escolhendo algo
Falar sem parar (ação: leitura de
para reter. A escolha pode ser
um texto ou improviso de uma
feita ao acaso (ação: jogar um
fala sem interrupção).
monte de papel para o alto e
catar ao acaso apenas um).

Investigar fala, sons e corpo


(ação: leitura de um texto
brincando com os sons e
fazendo movimentos).

Fonte: Elaborado pela autora.

Para concluir

O modo como foi desenvolvida esta questão do corpo/voz


para a construção da dramaturgia sonora da performance Não
posso esquecer constitui matéria para um novo texto. Por ora, é
suficiente pontuar que os procedimentos de investigação tra-
zidos pelo workshop foram amplamente utilizados nos proces-
sos de ensaio fortalecendo, por meio do espaço da pesquisa,
as possibilidades cênicas do uso da voz e dos sons.

292
Prática como pesquisa: contexto e perspectiva

O estudo evidenciou a prática somática como pesquisa tal


como conceituada por Ciane Fernandes (2018) em sua traje-
tória de artista-pesquisadora. Para ela, as práticas somáticas
consistem em modos sistemáticos de conhecer como o corpo
conhece, produz e expressa conhecimento. Ressalto aqui que
a pesquisa artística em artes da cena traz implícito no corpo
do ator um processo duplo: por um lado, ela coloca o corpo
em situação de aprendizado (para realizar uma cena, o ator
precisa saber o que vai realizar), o que implica conhecimentos
relativos à maneira como o corpo conhece. Por outro lado,
simultaneamente, o corpo é o locus onde este conhecimento
será explicitado.
Sem dizer que a forma de conhecimento vivenciada pelo
corpo orienta as escolhas de procedimentos de criação e as
ações estéticas para a composição da obra artística. Uma obra
artística demanda pesquisas semelhantes (mas com especifi-
cidades) às pesquisas científicas. A obra de arte é resultado de
um estudo que articulou diversos conhecimentos, de diversas
ordens, e estes dialogam com o interlocutor em vários está-
gios da percepção e do conhecimento humano. Da mesma
maneira que uma demonstração científica gesta prazer esté-
tico, uma obra artística também gesta conhecimento.
Diante disso, compreendo que articular a epistemologia
da criação artística às epistemologias da pesquisa em arte de-
senvolvidas no âmbito acadêmico pode validar as produções
de conhecimento que a prática artística exige e obtém.

293
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Referências

BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Mediafashion,


2012.
DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1997.
FERNANDES, Ciane. Dança cristal: da arte do movimento somá-
tico à abordagem somático-performativa. Salvador, BA: Edufba,
2018.
FORTIN, Sylvie; GOSSELIN, Pierre. Considerações metodológi-
cas para a pesquisa em arte no meio acadêmico. Art Research Jour-
nal/Revista de Pesquisa em Arte, Brasil, v. 1, n. 1, p. 1-17, jan.-jun. 2014.
GERALDI, Silvia Maria. A prática da pesquisa e a pesquisa na
prática. In: CUNHA, Carla; PIZARRO, Diego; VELLOZO, Mari-
la Annibelli (org.). Práticas somáticas em dança: body-mind cente-
ring™ em criação, pesquisa e performance. Brasília, DF: IFB, 2019.
p. 139-149. (Coleção Práticas somáticas em dança).
MIDGELOW, Vida; BACON, Jane. Processo de articulação criativa
PAC. In: SILVA, Charles Roberto et al. (org.) Resumos do 5º Seminário
de Pesquisa em andamento. São Paulo: PPGAC-ECA-USP, 2015. v. 3,
n. 1, p. 55-70.
STANISLAVSKI, Constantin. Preparação do ator. Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 2014.

294
Encruzilhada: corpos insurgentes
e estados de alteridade

Maria Antônia de Oliveira Souza1


Marlini Dorneles Lima2

Resumo: Este escrito promove um encontro delineado


na potência da encruzilhada de duas pesquisas artísticas
que compartilham das corporeidades presentes nos fazeres
tradicionais de mulheres engajadas num insurgente encon-
tro para refletir acerca dos corpos femininos (in)visíveis e
dos processos de criação e produção de conhecimento em
arte/dança e performance. Sob uma perspectiva decolonial,
o escrito parte de diálogos, noções conceituais e processos
criativos dos trabalhos analisados. Para tal, serão elencados
alguns elementos comuns das pesquisas, como campo vi-

1 Mestranda em Antropologia Social e licenciada em Dança pela


Universidade Federal de Goiás (UFG). Tem formação técnica em
Alimentos pelo Instituto Federal do Maranhão, com ênfase na área de
Ciência e Tecnologia de Alimentos. Participa de atividades acadêmicas
que envolvem estudos voltados ao corpo nas danças populares brasileiras.
Integra o grupo de pesquisa Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-
-Raciais e Espacialidade (LaGente)-UFG. Na graduação, foi bolsista do
projeto de extensão Dançando com a diferença: arte, inclusão e comunidade,
e bolsista da Coordenadoria de Ações Afirmativas (CAAF). É autora
do projeto Marias que existem em mim, aprovado pela Lei Municipal de
Incentivo à Cultura de Goiânia.
2 Docente do curso de Licenciatura em Dança e do Mestrado em Artes da
Cena da UFG. Doutora em Arte pelo Instituto de Arte da Universidade
de Brasília (UnB). Coordenadora das Ações Afirmativas da CAAF-UFG.
Integra o Núcleo de Dança Coletivo 22 (Goiânia) e dois laboratórios de
pesquisa da UFG: Labphysis e (Ve)lhaco? Laboratório de História e Artes
do Corpo. Participa como pesquisadora do Coletivo de Documentação e
Pesquisa em Dança Eros Volúsia-UnB.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

vido, poetnografias e saberes tradicionais de mulheres. Por


fim se apresentarão provocações e questionamentos capa-
zes de ajudar a pensar um devir poético insurgente, com
base em outras referências de corpo, de dança e de processo
de criação.
Palavras-chave: dança; processo de criação; saberes tra-
dicionais; estados de alteridade.

Crossroads: insurgent bodies and states of alterity

This paper promotes a meeting drawn in the power of


the crossroads of two artistic researches which share the cor-
poralities present in the traditional practices of women who
design an insurgent encounter to think about and reflect on
the visible (in)female bodies, the paths of creation processes
and production of knowledge in art/dance and performance.
From a decolonial perspective, the writing starts from dialo-
gues, conceptual notions and images of the analyzed works.
To this end, will be listed some common elements of the re-
search: as a lived field, dance poetnographs and traditional
knowledge of womem. And finally we will present possible
provocations to think about an insurgent poetic becoming,
other references of body, dance and creation process.
Keywords: dance; creation process; traditional knowled-
ges, states of alterity.

Encontros potentes e corpos insurgentes

A intenção deste trabalho é audaciosa, pois ele propõe


um encontro descritivo no fluxo da noção de encruzilhada.
Para Martins (2002), a encruzilhada é um lócus tangencial,
uma espécie de instância simbólica na qual se processam
múltiplos caminhos de elaborações discursivas que coabi-

296
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

tam. Diante desta potência imagética da encruzilhada, duas


mulheres se encontram e duas pesquisas artísticas também.
Nesses encontros, comungam-se forças irradiadas pela en-
cruzilhada, elucidando-se possibilidades de experienciar
processos de criação em dança e performance, e, consequente-
mente, processos formativos em arte. As instâncias simbóli-
cas carregam as narrativas dos corpos das mulheres, das mães
e avós das artistas, das relações estabelecidas em encruzilhada
com o campo de pesquisa. E, por fim, quando estes corpos se
encontram, revelam saberes e fazeres tradicionais presentes
nos corpos femininos em um devir constante de existência
e resistência no seu cotidiano, e presentes também nos obras
artísticas e processos de pesquisa.
O encontro seria de professora e estudante, ou de orien-
tadora e orientanda, porém preferimos nos apresentar sem
as amarras acadêmicas que geram hierarquias. Desejamos ser
compreendidas como duas mulheres artistas e pesquisado-
ras que se encontraram e propuseram pôr em diálogo seus
processos formativos, aproximar seus estudos. Assim se deu
essa confluência de campos de pesquisa cujo lócus foram as
mulheres e seus saberes tradicionais, ora as parteiras, raizeiras
e dançadeiras de “suça” na Chapada dos Veadeiros em Goiás,
ora as quebradeiras de coco babaçu e brincantes de boi do
município de Zé Doca no Maranhão.
Os trabalhos aqui tratados são Entre raízes, corpos e fé: tra-
jetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alte-
ridade e Marias que existem em mim: caminhos e narrativas que se
encontram no processo de criação em dança. São respectivamen-
te uma tese de doutorado realizada no Instituto de Artes da
Universidade de Brasília (UnB) e um memorial de conclusão
de curso de Licenciatura em Dança da Faculdade de Edu-
cação Física e Dança da Universidade Federal de Goiás.

297
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Conhecendo os campos de pesquisa: saberes


tradicionais femininos

Antes mesmo de descrever os dois contextos pesquisados,


faz-se necessário situar no “campo vivido” as duas mulheres
artistas-pesquisadoras e autoras deste artigo, pois uma pes-
quisa pautada na alteridade, numa estética vivida e consti-
tuída no cotidiano e na relação com os outros, exige isso. A
noção conceitual de campo vivido refere-se, em síntese, a um
questionamento sobre o modo como o pesquisador-artista se
relaciona com o campo de pesquisa. Assim procuramos situar
no campo vivido os saberes tradicionais e os corpos que os
habitam. Nas duas pesquisas citadas, isso é entendido como
mola propulsora para uma criação artística que, mais tarde,
apresentaremos como “as poetnografias”. Faremos, portanto,
uma apresentação dos lugares de enunciação, dos lócus de
produção de sentidos e de construções corporais, dos con-
tornos e encontros entre corpo e natureza intrínsecos a estes
saberes. Apresentaremos também as relações das duas auto-
ras com a elaboração dos saberes tradicionais, que nomeamos
neste escrito como “saberes tradicionais femininos” por ve-
rificar que o partejar, o quebrar coco e a sabedoria das raízes
são coisas que vêm sendo cultivadas por essas mulheres já há
muitos anos em suas comunidades tradicionais.
A compreensão dos saberes tradicionais femininos
para este texto se dá por meio de estudos das performances
culturais que têm como referências o teatrólogo Richard
Schechner e o antropólogo Victor Turner. O primeiro faz, em
suas pesquisas, uma apresentação do eu nas práticas cotidia-
nas, e o segundo, em seus estudos de campo, percebeu uma
espécie de teatralidade inerente ao ser humano, desenvol-
vendo então uma abordagem antropológica das performances

298
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

culturais. Nessa abordagem, deu ênfase ao drama social e à


expressão cultural como teatro e ritual.
Nos estudos das performances culturais,
as matrizes acima citadas se entre-
laçam na diversidade de temas, interes-
ses, questões, perspectivas e objetos de
estudo voltados para as danças, festas,
fazeres e práticas cotidianas, jogos, ri-
tuais, artes visuais, música, entre outros.
As performances culturais são reiteradas
por desempenhos coletivos, [por] papéis
culturais construídos e prescritos por
um conjunto de normas sociais cristali-
zadas, os quais são reencenados em ato
presente, de maneira ritualizada ou não.
Entretanto, desempenhados de acordo
com um determinado jogo de interesses
e poderes. (VELOSO, 2007, p. 195).
Na esteira desta reflexão, apresentaremos em seguida prá-
ticas coletivas e saberes femininos que, ao serem realizados
através de corpos, expressam rituais e espaços de poder sim-
bólico presentes nestes saberes. Ressaltaremos nesse percurso
a postura do lugar de enunciação proposto pela escrita e, so-
bretudo, a postura das duas pesquisas, que situam as pesqui-
sadoras no campo pesquisado e no processo de criação.

Eu, Maria: filha da terra e quebradeira de coco babaçu

Eu, Maria, sou filha da terra de Igara-


pé dos Índios, município de Zé Doca,
interior do Maranhão. Venho de mui-
to longe contar minha história de vida,
que está ligada intimamente às quebra-
deiras de coco babaçu, pois sou filha,

299
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

neta, sobrinha, irmã, amiga, colega de


quebradeiras de coco. Eu sou uma que-
bradeira de coco babaçu [e] me orgulho
muito disso, somos mulheres guerreiras
que aprendemos desde cedo a ser fortes
e não abaixar nossas cabeças para qual-
quer coisa, lutamos com as únicas ar-
mas que conhecemos nesse mundo de-
sigual, o machado e o lápis. Vencemos
todos os dias uma luta com essas armas:
a luta de embrenhar nas matas atrás de
coco para colocar comida na mesa, a
luta de quebrar o coco às pressas para
não ser pega pelos donos das terras [em]
que estão as palmeiras de coco. Donos
de terra que, mesmo conhecendo [nos-
sa lida de mulheres], insistem em nos
negar o único meio de sobrevivência
que conhecemos. A luta de sermos fi-
lhas de negras, nordestinas, maranhen-
ses, quebradeiras de coco, dentro de
uma sala de aula à procura de um futu-
ro melhor, tendo que mostrar todos os
dias que somos capazes, que esse lugar
também nos pertence e que não vão nos
silenciar, somos filhas de povos tradi-
cionais que têm todo o direito de estar
dentro de uma universidade federal
mostrando nossos conhecimentos, que
são tão preciosos quanto os que a aca-
demia nos trazem. (SOUZA, 2018, p. 7).
“Somos filhas de povos tradicionais”, estes povos que en-
contraram na dança, na música, na fé e no brincar a forma
de mostrar para o mundo que, mesmo que lhes tirem tudo,
eles serão felizes, serão unidos, e ninguém conseguirá tirar
com facilidade o sorriso sincero de suas faces. O sustento das

300
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

famílias de Igarapé dos Índios vem do plantio da roça, onde


os moradores plantam arroz, feijão, milho e mandioca. E vem
da quebra do coco babaçu, que é trabalho feito somente por
mulheres. As quebradeiras. Eu me coloco como quebradeira
de coco babaçu mesmo não estando no Maranhão. Mesmo
não tendo esta profissão, ainda faço parte daquele lugar.
Para Hagino (2007, p. 2),
as quebradeiras de coco babaçu fazem
parte de um movimento social femini-
no que combina consciência ecológica,
saberes vivenciados pela prática e de-
tenção da autonomia da produção, for-
mando uma identidade coletiva.
As práticas coletivas que constituem a rotina destas mulhe-
res, de minha vó, de minha mãe, de minhas tias e de muitas
outras Marias, passaram por processos intensos de silencia-
mento de suas vozes, por muito tempo.
Hagino (2007) assinala que um dos grandes desafios para
as quebradeiras de coco babaçu é a garantia do direito a terra
e ao território. A territorialidade é um fator essencial para a
sobrevivência e a formação da identidade coletiva das que-
bradeiras de coco. Como povo tradicional, elas precisam ter
terra e territórios garantidos e reservas legalizadas onde pos-
sam produzir alimentos suficientes para suprir as necessida-
des de suas famílias e auferir renda.

Eu, Maria: filha da terra e brincante de boi

A brincadeira do boi entrou na minha vida desde que me


entendo por gente. Brincava de boi em louvor a São João, para
agradecer pelo dom da vida. Quando tinha três meses de nas-
cida, sofria de tosse braba, mais conhecida como coqueluche.

301
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Meus pais, sem nenhuma condição, na época, de me levar


para um hospital, recorreram a todos os remédios caseiros que
as pessoas ensinavam. Até leite de uma jumenta que tivera a
primeira cria eles me deram. Minha mãe conta que foram três
longos meses em que ela não saía de casa para nada, só fazen-
do remédios caseiros e dobrando o joelho em oração todas as
noites, pedindo a Deus um milagre. Então o milagre veio, e,
em agradecimento, passei a brincar o boi.
O que pulsa dentro de mim é o boi, é ele
que me causa arrepios, que me faz cho-
rar de saudades no mês de junho, foi ele
que eu dancei antes mesmo de aprender
a andar. O boi não foi uma herança dos
meus avós, mas foi uma herança da mi-
nha mãe.3
O boi é a festa mais importante do Maranhão, a festivida-
de esperada por todos. Acontece uma vez no ano e é um mo-
mento de lazer, diversão, reencontros, fé e gratidão. Segundo
Reis (2008 apud CARDOSO, 2016, p. 15), é uma das manifes-
tações culturais de maior significado social nesse estado. Pas-
sou de brincadeira de escravo perseguido radicalmente pelas
autoridades policiais ao mais importante folguedo do grande
repertório maranhense de manifestações populares. No inte-
rior onde nasci, Igarapé dos Índios, o boi acontece logo após a
colheita do arroz. Ele não é feito apenas pela minha comuni-
dade; também participam da brincadeira do boi os interiores
vizinhos ao meu: São Benedito, Centro do Piauí, Buqueirão,
Centro dos Cabocos, Cajueiro, Morada Nova, Cansado, Rizi-
na, Jacaré, Areias e Santo Antônio.

3 Inventário pessoal produzido por Maria Antônia de Oliveira Souza em


2017.

302
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

Benção, minha vó Amélia

O universo feminino também presente


neste estudo surge a partir das mulhe-
res da minha vida, minha mãe, minhas
irmãs, minhas avós e bisavós, mulheres
que [...], semelhantes à natureza, fize-
ram composições vitais para sobrevi-
verem e florescerem. Minha bisavó era
descendente de indígenas de etnia gua-
rani, benzedeira que manipulava brasa
e fogo com fé. Minhas lembranças e ru-
ídos sentidos no corpo traduzem outro
ponto importante desta investigação:
um corpo de mulher que tem sua(s)
história(s) deixando rastros e ruídos no
seu cotidiano. (LIMA, 2016, p. 23).
Antes de vir habitar o cerrado brasileiro, peço bênção às mi-
nhas ancestrais maternas, especialmente, à minha vó Amélia,
uma índia que benzia com brasa todas as crianças. Eu mesma
fui benzida por ela, muito antes do pôr do sol, lá no Rio Gran-
de do Sul, ao vir morar em Goiânia. Escolhi habitar este lugar
e significá-lo por meio da cultura local, dos fazeres e saberes
tradicionais pertencentes à natureza do cerrado: suas plantas,
morros, cachoeiras e comunidades tradicionais, quilombolas
e indígenas. Assim, já residindo em Goiânia, fui caminhar
pelo cerrado, na Chapada dos Veadeiros, onde conheci muitas
comunidades remanescentes de quilombolas, com seus can-
tos, festas e tradições. Também caminhei na Ilha do Bananal,
onde convivi com indígenas da comunidade de Santa Isabel,
da etnia Karajá, os quais se autodenominam povo inã.
Nessa convivência com o cerrado, evoco rastros de mim e
trajetórias de nós, no coletivo, incluindo minhas ancestrais.
Nós, mulheres que parimos, plantamos e colhemos, ben-

303
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

zemos e ressignificamos nossa existência po intermédio de


saberes que, dentro do seu contexto, trazem-nos poder e re-
conhecimento. Parto do princípio de que a vida habita e faz
sentido em um lugar quando lhe damos significado. Morar
atualmente no cerrado me traz o desafio de experienciá-lo,
de conhecê-lo, investigá-lo através dos corpos e suas corpo-
reidades cor de terra, entendendo o corpo como um lugar de
expressão social e individual (STRATHERN apud HART-
MANN, 2011).
Decidi habitar o cerrado e significá-lo com os saberes e
fazeres tradicionais de mulheres, com os rastros e ruídos cor-
porais que, em muitos momentos, são silenciados, mas que
trazem na fé, nos rituais e nos conhecimentos tradicionais
uma profunda inter-relação entre natureza e cultura. Cogitei
também a possibilidade de propor um diálogo entre a cultura
indígena e a afro-brasileira, proclamando o reconhecimento
da diversidade, das formas de conhecer e do princípio da al-
teridade na trajetória da pesquisa e na produção cênica.
No fluxo destas trocas, pude aproximar os saberes tradi-
cionais presentes nos corpos femininos e a perspectiva da
“ecologia dos saberes”, apresentada e defendida por Boaven-
tura de Souza Santos (2007). Tal concepção aponta para sa-
beres que sobrevivem a um “pragmatismo epistemológico”,
em que atores históricos do sul global,
sujeitos coletivos de outras formas de
saberes e de conhecimento, a partir do
cânone epistemológico ocidental, fo-
ram ignorados, silenciados, marginali-
zados, desqualificados ou simplesmente
eliminados. (NUNES, 2008, p. 62).
O pragmatismo epistemológico nos apresenta uma rede de
possibilidades para olhar e compreender o movimento destas
mulheres que partejam, rezam, benzem e curam sua comuni-

304
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

dade e arredores e que, no entanto, não aparecem na historio-


grafia oficial de sua região, como nos mostra Parente (2005)
no seu livro O avesso do silêncio: vivências cotidianas das mulheres
do século XIX.
Insurgindo-me contra este silenciamento, ao longo do
meu processo de pesquisa de campo, que mais tarde será apre-
sentado por meio da noção de campo vivido, embrenhei-me
no cerrado, em estradas de chão, em conversas sem hora para
começar e terminar, conversas que eram acompanhadas pelos
pores do sol, como o da Ilha do Bananal, conversas que ex-
pressavam os desafios do cotidiano destas mulheres anônimas.
Queria trazer à cena essas mulheres que organizam suas cor-
poreidades no infortúnio de suas vidas e comunidades, onde
a cultura é dialeticamente construída por elas, em sua vivên-
cia e convivência com a natureza e com as crenças originárias
de uma mistura de fé, saberes e ancestralidade. “Nesse entre-
laçar de elementos, essas mulheres do cerrado se presenti-
ficam no mundo, pois suas narrativas corporais traduzem
poéticas e processos de identificação” (LIMA, 2016, p. 92).
Sigo em frente caminhando no cerrado, lugar que com-
bina com resistência e adversidade, que apresenta múltiplos
diálogos polifônicos entre a seca e as chuvas, as frutas e as
plantas, a cura e o nascimento, o sagrado e o profano, a abun-
dância e a pobreza. Em deslocamentos constantes, a pesquisa
foi realizada nas comunidades da Chapada dos Veadeiros, no
estado de Goiás, e na Ilha do Bananal, Aldeia Santa Isabel,
estado do Tocantins.
Situo meu campo vivido no universo que envolve as práti-
cas de sobrevivência, que, segundo Veloso (2007), podem estar
ligadas a dois elementos: a sagração, formas encontradas pelas
pessoas para adorar as várias divindades e agradecer as ações
atribuídas a elas; os saberes decorrentes do “estar juntos”, que

305
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

possibilitaram experienciar poéticas de alteridades, poéticas


de corpos insurgentes, corpos que desafiam discursos e narra-
tivas autoritárias do patriarcado e seus dispositivos de poder,
aspectos encontrados nos dois estudos aqui apresentados.

Entre encruzilhadas e processos de “estar juntos”

Olho através do saber do corpo que dança;


Olho através do que não consegue ser visto pelo outro;
Olho através dos olhos do sensível, do outro em mim;
Olho através da possibilidade de me diluir no criar;
Olho através do entrelaçar de raízes que surgem em
todas as direções;
Olho através da força invisível que move o ser humano,
na sua pequena existência e grandiosa possibilidade
de estar sendo com o outro. Desejo que a poética da
alteridade guie meu caminhar e minha dança.
(LIMA, 2016).

Seguindo a orientação de Veloso (2007), que nos apresen-


ta a perspectiva do “estar juntos” por meio do campo vivido
e das relações que dele irradiam, convidamos para o nosso
diálogo como mulheres artistas e pesquisadoras a potência
da imagem da encruzilhada. Essa imagem está presente nas
duas pesquisas aqui trabalhadas: Entre raízes, corpos e fé, e Ma-
rias que existem em mim. A encruzilhada situa-se nos saberes
e fazeres tradicionais das mulheres analisadas, ou seja, no
partejar e encontrar raízes para o processo de cura, ou então
no labor de quebrar o babaçu, ou nos cantos destas mulhe-
res e no pilar o arroz. Ao sermos afetados por estes fazeres
cotidianos, nós, artistas, consideramo-los potenciais estéticos
experienciados como como um lugar de encruzilhada. Parti-
mos da compreensão de que nesse cotidiano se estabelecem,
portanto, relações que se dão no entrelugar, ou seja, entre o

306
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

cotidiano e a encruzilhada. Nessas relações, o corpo constitui


um veículo de discurso no qual se processam trajetórias, nar-
rativas de vida e texturas diversas e profícuas na elaboração
discursiva que coabita e, assim, alimenta o corpo das pesqui-
sadoras. Afinal, elas vivem o campo de pesquisa, se afetam e
relacionam com as corporeidades dessas mulheres, no campo
da experiência do sensível, de um estado do sensível. É por
meio desse estado do sensível que entendemos que o mundo
vivido tece experiências no nosso corpo, e estas instauram os
sentidos, o existir, as coisas. Apresentando essa noção, Araújo
(2008, p. 38) afirma:
A dis-posição do estado sensível nos
possibilita o estar-sendo-no-mundo-
-com-os-outros, de modo encarnado,
mediante os processos de percepção e
de compreensão em que podemos to-
car, cheirar, escutar, saborear e olhar o
mundo, bem como, conjunturalmente,
pensar, refletir através de nossa relação
direta e originária com este.
Tal ponto de vista abriu uma fenda que balizou o “campo
vivido” neste estudo, uma noção conceitual importante para
o desenvolvimento da pesquisa de campo e daquilo que de-
nominamos “poéticas insurgentes”. O campo vivido, que diz
respeito à relação entre o pesquisador-artista e o campo de
pesquisa, considera sobretudo o campo do sensível. Leva em
conta os múltiplos e polifônicos contornos do existir e suas
narrativas (vozes, corpos, cheiros, saberes, paisagens, sons
etc.) concernentes à relação campo-artista-pesquisador.
O tempo de contemplar garante a pre-
sença de quem observa. Assim, dá-se a
simbiose entre o sujeito e o objeto. Eu
via a formiga de fora e buscava a chuva
de dentro. Via a chuva de fora e bus-

307
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

cava a chuva de dentro. Via a água de


fora e sentia a água de dentro. E a partir
desse movimento circular alguma par-
te em mim esboçava a necessidade de
compreender a relação do ser humano
com o seu meio através dos tempos.
(MALTY, 2010, p. 18).
Outra camada importante do conceito de campo vivido,
situada entre a encruzilhada e a alteridade, é a oportunidade
que ele nos traz de pensar o modo como se estabelece a re-
lação com o outro, uma relação que parte do corpo e de sua
cadeia de sentidos e provoca um estado de alteridade que vai
além das consequências políticas desta. Greiner (2017) nos
apresenta a possibilidade de experienciar a alteridade como
um estado de criação, e, entre os aspectos abordados pela au-
tora, está a relação com o outro. No caso do presente estudo,
essa relação se dá com os corpos femininos e seus saberes tra-
dicionais no campo vivido, e, no momento da pesquisa em
que convivemos com esses corpos e saberes, a nosso ver, já
estamos em estado de criação. Greiner nos lembra também
do “estado somático”, de António Damásio, que analisa algu-
mas habilidades cognitivas, como a consciência, a memória,
a percepção e o modo como o corpo se organiza em contato
com o outro, com a diversidade, com o que é diferente. Dan-
do continuidade às reflexões de Greiner,
pode-se considerar que a experiência da
alteridade [...] lida com tudo aquilo que
não é o mesmo (com um estado outro,
acionado por algo, alguma circunstân-
cia ou ideia diferente) [e] constitui-se
como um dos nossos principais opera-
dores de movimento. (p. 124).

308
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

Se pensarmos de acordo com este ponto de vista, as duas


pesquisas anteriormente mencionadas propõem, no proces-
so de criação, o contato com o outro, e esta relação provo-
ca movimento nas partes envolvidas. Portanto a troca está
intrínseca ao estado de alteridade, que a todos altera. Este
pressuposto representa um dos dispositivos importantes para
se entender a proposta de criação voltada para corpos insur-
gentes, desafiadores do poder e de seus discursos autoritários.
Na intenção de promover um encontro e diálogos que
comportem a situação de encruzilhada, retomamos essa noção
lembrando que a encruzilhada dispara imagens potentes de
possibilidades de interpretação do trânsito sistêmico e epis-
têmico advindo dos processos transculturais. Nesses proces-
sos se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosa-
mente, as práticas performáticas, as concepções e cosmovi-
sões, os princípios filosóficos e metafísicos, e os saberes di-
versos (MARTINS, 2002, p. 73). Neste trabalho, baseado em
tal perspectiva de encruzilhada, emergem saberes outros na
criação em dança e na formação artística. Para Silva e Lima
(2014), o processo de compreensão da encruzilhada passa,
fundamentalmente, pelo corpo e pelos encontros de forças
diversas e difusas de sincretismo, de conflito, de colonização
e de resistência.
Um dos encontros potentes nesta proposição ocorre
quando se olha para as mulheres e sua corporeidade sem se
esquecer de refletir acerca da história hegemônica mascu-
lina, que deixou significativos rastros, significativas marcas
simbólicas nos corpos destas mulheres. Mais do que meditar
sobre esses fatos, é preciso se contrapor a eles, para que as
mulheres, cada vez mais, possam sair das margens da história
e ser reconhecidas por ela. Para que possam, de uma maneira
ou de outra, viver de forma intensa e relevante, inscreven-

309
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

do suas histórias em seus corpos ao plantar, quebrar coco,


colher, benzer, parir e dançar.
Essas práticas, aliás, quando coletivas, têm uma caracte-
rística comum: a de unir o simbólico à carne dos indivíduos,
numa associação íntima entre os corpos e o espírito. Isso con-
fere a eles uma dimensão espetacular: uma maneira de ser, de
se comportar, de se mover, de agir no espaço, de cantar e de se
enfeitar que se destaca das atividades banais do cotidiano, ou
enriquece essas atividades, ou ainda lhes dá sentido (PRA-
DIER apud AMOROSO, 2010, p. 2).
No cerne dessa reflexão, podemos considerar o quebrar o
coco, o colher arroz, o partejar e o benzer como comporta-
mentos capazes de estabelecer um estado de limiaridade, de
forças tangenciais que abrem estados corporais diferenciados,
abrem encruzilhadas, portanto, nas práticas cotidianas dessas
mulheres. Dessa maneira, um sentir e afetar-se as torna então
extracotidianas.

Reflexões finais: do campo vivido às poetnografias

Nesta pesquisa, partimos da crença de que é necessário


um olhar mais humano para essas “Marias” descritas, que
têm muito a nos ensinar sobre consciência ecológica e sobre
saberes vivenciados na prática e na existência coletiva. Assim
como os babaçuais, elas são resilientes e estão sempre se re-
novando e mostrando sua força e resistência na labuta do seu
cotidiano (SOUZA, 2018).
Nesse trânsito entre o cotidiano e os rituais desses saberes
tradicionais é que foram experienciados os campos de pes-
quisa. Os corpos que os materializaram e se cruzaram com
os nossos fizeram-nos lembrar uma reflexão de Malty (2010,

310
Encruzilhada: corpos insurgentes e estados de alteridade

p. 12-15): “Uma Velha, velha minha, outras tantas me habita-


ram [...]. Meus olhos dependem dos olhos de quem vê. Meus
pés são os mesmos seus pés. Meus ouvidos são os seus agora”.
Para finalizar, ressaltamos a força da encruzilhada e das
polifonias dos estudos acerca do corpo, da criação e da for-
mação, reverberadas na tese de doutorado já mencionada e
em seus produtos, como uma videodança intitulada Elas flo-
rescem; na performance ritual Entre raízes, corpos e fé; ou então na
cena da performance Marias que existem em mim, desenvolvida
para ser apresentada nas escolas públicas de Goiânia, GO.
Esta possibilidade de coexistência conduz a uma poéti-
ca insurgente, uma poética rebelde, transgressora, que nos
remete aos estudos de bell Hooks (2013) sobre educação e
gênero. Neles, a autora nos convoca a pensar criticamente
sobre nós mesmas, nossa identidade e as circunstâncias que
nos cercam. A poética insurgente nos lembra, também, Paulo
Freire (apud HOOKS, 2013) quando o autor fala da necessi-
dade de uma educação para a liberdade, de uma educação
que questione o impossível, que conduza com consciência o
ser e o estar no mundo; da necessidade de um inédito viá-
vel e de ler o mundo com base em nossa prática e (por que
não?) em uma poética insurgente, que evoca a encruzilhada.
Boaventura de Souza Santos (2007) também se aproxima da
poética insurgente ao discorrer sobre a ecologia dos saberes,
de saberes outros, de realidades ausentes e, por muitas ve-
zes, silenciadas, que, nestes estudos artísticos, ousam balizar
obras e processos destas artistas-corpos femininos-mulheres.
Numa trajetória não linear e sem regras e processos prede-
terminados, aventuramo-nos numa pesquisa em arte que se
propõe reconhecer-se como lugar de enunciação. Um lugar
que nos permite ir ao campo e nos situar como corpos femi-
ninos, que nos abre espaço para mostrar nossas identidades: a

311
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

filha de uma quebradeira de coco e a neta de uma benzedeira,


mulheres cheias de histórias de vida que se cruzam umas com
as outras. Compartilhamos um mundo vivido com os corpos
em sua relação com o diferente, os quais se movem dispa-
rados por estados de alteridade e, no processo de pesquisa,
transformam-se em poetnografias dançadas e performadas.
As poetnografias são compreendidas aqui como camadas
dramatúrgicas e, por meio delas, a investigação busca o an-
tietnocentrismo, a contextualização do objeto e a valorização
da alteridade, das diferentes maneiras de ser e estar no cam-
po de pesquisa, como proposto nos estudos de Silva e Lima
(2014) e Lima (2016).
As poetnografias dançadas são, então,
pedaços de realidades reinventados que
trazem em seu seio identificações en-
contradas em manifestações da cultura
popular e em performances que se abrem
em meio ao cotidiano. (SILVA; LIMA,
2014, p. 167).
Sob essa perspectiva, afloram novos modos de pesquisar e
criar em dança, apontando para corpos insurgentes e para a
potência de encontros e do conhecer-se corporalmente. Com
as poetnografias, aprendemos a importância de criar em esta-
do de alteridade, comprometidos com um fazer arte não mais
subserviente aos dispositivos de poder, mas disposto a fazer
da alteridade estados de criação (GREINER, 2017, p. 125).

Referências

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dos a partir de um estudo sobre o samba de roda do Recôncavo
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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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314
A arte de contar histórias no foco da cena:
uma proposição e-arte/educativa para o
desenvolvimento da cognição perceptiva de
alunos do ensino fundamental I

Maria Cecilia Silva de Amorim1


Valéria Maria Chaves de Figueiredo2

Resumo: Este texto apresenta um estudo teórico em de-


senvolvimento no campo das artes da cena. Tem como obje-
to a arte de contar histórias na escola. Pauta-se na seguinte
questão-problema: como a arte de contar histórias na esco-
la pode fomentar o desenvolvimento da cognição percep-
tiva crítica de alunos do 5º ano do ensino fundamental I?
Inicialmente busca-se apresentar e discutir os aspectos con-
ceituais da inter-relação entre a arte de contar histórias e
a contação de histórias, entre os contos da literatura oral e
da literatura escrita. Este esforço justifica-se pelo recorrente
uso de histórias na escola como recurso no processo de en-
sino e aprendizagem motivado pela arte-educação mediada
pela literatura e pelo teatro. As metodologias utilizadas são
a investigação do estado da arte, a pesquisa bibliográfica e
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UFG.
Pedagoga pela UEG. Especialista em Psicopedagogia pela UEG e em Arte-
-Educação Intermidiática Digital pela UFG. Professora na rede municipal
de ensino de Luziânia, Goiás. Membro do Laboratório de Pesquisa
Interdisciplinar em Artes da Cena (Lapiac) e do Grupo de Estudos em
Formação de Professores e Interdisciplinaridade (Gefopi).
2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp. Mestre
em Artes pelo Instituto de Artes da Unicamp. Graduada em Educação
Física pela UFG. Professora associada da Emac e da Faculdade de Educação
Física e Dança da UFG. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Lapiac.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

o relato de experiência. Os eixos teóricos essenciais sobre a


arte de contar histórias apoiam-se nas discussões de Macha-
do (2015), Girardello (2014) e Busatto (2013), e o tema da
narração como exercício cênico baseia-se na discussão teóri-
ca de Rosenfeld (2002). Partindo-se da experiência como
docente e como contadora de histórias em uma biblioteca
de escola pública, função motivada pela curiosidade epis-
temológica de que trata Freire (1996), apresenta-se uma
proposição cujo objeto é a arte de contar histórias/contação
de histórias no contexto escolar. As possibilidades de atuar
com histórias e dinamizá-las vieram pelos caminhos da ar-
te-educação experienciados pelas autoras por meio de um
projeto didático intitulado Tia Cecília conta.
Palavras-chave: arte de contar histórias; contação de his-
tórias; projeto Tia Cecília conta; artes da cena; arte-educação.

The art of telling stories in the focus of the scene: an


e-art/educational proposition for the development of
perceptive cognition of elementary school students I

Abstract: This work presents a theoretical study under


development in the field of performing arts. Its object is
the art of storytelling at school. It is guided by the problem
question: how can the art of storytelling at school foster the
development of critical perceptual cognition of students in
the 5th year of elementary school? Initially we will seek to
present and discuss the conceptual aspects about the in-
terrelation between the art of storytelling and storytelling,
between the tales of oral and written literature. This effort is
justified by the recurrent use of stories at school as a resour-
ce in the teaching and learning process motivated by art-
-education mediated by literature and theater. The metho-
dologies used are state of the art research, bibliographic
research and experience reporting. The essential theoreti-

316
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

cal axes on the art of storytelling are supported by the dis-


cussions of Machado (2015), Girardello (2014) and Busatto
(2013), and narration as a scenic exercise based on Rosen-
feld (2002) theoretical discussion. Based on the experien-
ce as a teacher and storyteller working in a public school
library, moved by the epistemological curiosity that Freire
(1996) deals with, a proposition whose object is the art of
storytelling/storytelling in the school context was thought.
The possibilities of acting with stories and making them
more dynamic came along the paths of art education when
experiencing such artistic activity through a didactic pro-
ject entitled Aunt Cecília tells.
Keywords: art of storytelling; storytelling; project Aunt
Cecília tells; performing arts; art-education.

Introdução

A escola aparece neste texto como palco de aprendizagens


que geram transformações sociais pela leitura e escrita, tendo
como suporte os livros e a internet, além das literaturas oral
e escrita. A ação do professor que conta histórias, combinada
às demais linguagens artísticas, constitui, nesse cenário, uma
experiência que pode ir além do apenas fazer: com o devido
suporte teórico, é possível ressignificar práticas e fomentar o
gosto pela arte mediante o ato de contar histórias.
Esta pesquisa aponta algumas pistas sobre o modo como a
teoria pode embasar a experiência docente tendo em conta a
realidade da escola pública e o saber-fazer. Buscando percor-
rer o caminho dos estudos acerca da arte de contar histórias,
apresentamos um breve panorama sobre esse objeto, partin-
do do estado da arte. A poética da arte de contar histórias
vem sendo explorada por muitos nomes importantes, e a ten-

317
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tativa de relacioná-los cronologicamente foi proposital nesse


percurso exploratório.
Alguns paradigmas conceituais são esboçados neste tex-
to para que seja possível perceber a diferença entre a arte de
contar histórias e a contação de histórias. Por meio dos con-
tos de tradição oral e da literatura escrita, apresentam-se
aqui algumas características da literatura oral. Os conceitos
são discutidos com base no contexto escolar e na proposição
do projeto Tia Cecília conta, motivador deste estudo. Assim,
buscamos fundamentar e evidenciar a experiência com a
arte de contar histórias considerando o entrelugar artista-
-professora-pesquisadora em constituição como resultado da
vontade de compreender melhor as artes da cena, especial-
mente no que tange à arte de contar histórias como arte teatral.
Sendo este um trabalho de prática e experiência realizado
pela professora-pesquisadora em busca de uma constituição
artística, fez-se mister cunhar uma pesquisa acadêmica par-
tindo da prática de contar histórias na escola a fim de assi-
milar os aspectos cênicos dessa prática. A apreensão desses
aspectos demanda uma formação mais profunda por via do
estudo teórico no campo do teatro, cuja linguagem abraça a
arte de contar, ressaltando sua linguagem própria em colabo-
ração com as várias artes.

A arte de contar histórias: percepções iniciais

Nossa atuação como professora numa biblioteca escolar


possibilitou-nos a percepção da necessidade da formação
para atuar como contadora de histórias. Nessa direção, bus-
camos entender o processo da contação de histórias como
prática artística arquimilenar de caráter teatral, uma vez que

318
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

passa pelo texto, seja ele oral ou escrito, por um artista da


narrativa (o contador de histórias) e por seu público. Esses
elementos (artista, texto e público) se revelam na escola pela
criação de narrativas cênicas.
A questão potencial nesta seção é a discussão de alguns
conceitos sobre a arte de contar histórias e a contação de
histórias. Para realizar tal escopo, procuramos investigar o
estado da arte em relação a esse objeto. Com essa reflexão
sobre o estado da arte, visamos perceber como o tema tem
sido abordado e que paradigmas têm fomentado as pesquisas.
Para esse levantamento inicial, usamos três bases de busca
na internet: SciELO, Google Acadêmico e Banco de Teses e
Dissertações da Capes.
Na primeira base, o SciELO, foi possível notar que havia
uma baixa produção voltada para o tema proposto, especial-
mente nas áreas da Arte e da Educação. O Google Acadêmi-
co, apesar de apresentar uma quantidade maior por descri-
tores,3 oferece pouca produção para o contexto da escola e
do teatro. O Banco de Teses da Capes apresenta um número
também pouco significativo. Essas constatações possibilitam
a percepção da importância de discutir sobre a arte de contar
histórias e sobre a contação de histórias na escola consideran-
do nesse debate o contexto educacional e o artístico. O Qua-
dro 1 aponta os quantitativos de produção acadêmica sobre o
tema entre os anos de 2005 e 2019.

3 Descritores: palavras-chave de caráter descritivo que possibilitam


mapear determinado tipo de produção acadêmica em diferentes áreas do
conhecimento.

319
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Quadro 1 - Demonstrativo da produção de pesquisas com aproximação


do objeto “arte de contar/contação de histórias”

Período Base de Dados Quantidade de


Descritor/Termo de Busca
Publicações
2006- SciELO Artigos “contação” 19
2019
“arte de contar histórias” 4
Google “contação” 14.700
Acadêmico
“contação de histórias na escola” e 42
Artigos, E-Books,
“arte de contar histórias”
Dissertações e
Teses “contação de histórias na escola” 97
“arte de contar histórias” 2.800
“contação de histórias e teatro” 20
“arte de contar histórias” e 1.370
“tecnologia”
2005- “arte de contar histórias” Sem filtro 44
2019 Capes-Teses e
“arte de contar histórias” Com filtro 14
Dissertações
“Contação de histórias na escola” 2

Fonte: Elaborado pela pesquisadora em novembro de 2019.

Contar histórias é uma prática bastante comum, e na es-


cola esse tipo de atividade aparece especialmente como ele-
mento mediador e incentivador da leitura e da escrita, em-
bora as aprendizagens proporcionadas pelo trabalho com as
histórias ultrapassem o ler e o escrever. As histórias contadas
apresentam gêneros e traços estilísticos que podem estar en-
trepostos e interligados pelo uso da palavra. Se o conto, por
exemplo, for levado da narrativa para a encenação, isso pos-
sibilita o seu encontro com o gênero dramático por meio de
personagens e do diálogo.

320
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

A maneira pela qual é comunicado o


mundo imaginário pressupõe certa ati-
tude em face deste mundo, ou, contraria-
mente, a atitude exprime certa maneira
de comunicar. Nos gêneros manifestam-
-se, sem dúvida, tipos diversos de ima-
ginação e de atitudes em face do mun-
do. [...] Pertencerá à Lírica todo poema
de extensão menor, na medida em que
nele não se cristalizarem personagens
nítidos e em que, ao contrário, uma voz
central – quase sempre um ‘Eu’ – nele
exprimir seu próprio estado de alma.
Fará parte da Épica toda obra – poema
ou não – de extensão maior em que um
narrador apresentar personagens envol-
vidos em situações e eventos. Pertencerá
à Dramática toda obra dialogada em que
atuarem os próprios personagens sem
serem, em geral, apresentados por um
narrador. [...] Se nos é contada uma es-
tória (em versos ou prosa), sabemos que
se trata de Épica, do gênero narrativo.
(ROSENFELD, 2002, p. 17).
A arte de contar histórias, arte da narrativa ou arte da pa-
lavra e da escuta é considerada uma das primeiras formas
de arte, visto que teria surgido da experiência humana, ser-
vindo como uma forma de manter vivas as memórias de po-
vos e culturas. Nossa condição de professora polivalente nos
trouxe a necessidade de fundamentar tal prática na escola e
compreender de que forma os alunos se apropriam das his-
tórias contadas.
O levantamento bibliográfico realizado até o momento
destacou alguns autores reconhecidos na arte de contar histó-
rias. Em 1915, a inglesa Marie L. Sheldlock, artista e contado-

321
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ra de histórias, publicou o livro The art of the story-teller (A arte


de contador de histórias), em que aponta os seguintes elementos
dessa arte: aspectos essenciais, artifícios da narração, dificul-
dades e seleção de material. Com base em sua experiência de
artista e educadora, Sheldlock procura instruir contadores de
histórias e professores que trabalham como tais.
Contar histórias é quase a arte mais
antiga do mundo – a primeira forma
consciente de comunicação literária.
No Oriente, ela ainda sobrevive, e não
é incomum ver a multidão na esquina
sustentada pela simples narração de
uma história. No Ocidente, há sinais de
crescente interesse por essa arte antiga
[...]. Um dos sinais mais seguros de uma
crença no poder educacional da histó-
ria é a sua introdução no currículo da
escola. (SHELDLOCK, 2016, p. 15).
No Brasil, um grande e bastante citado estudioso dos
contos tradicionais é o folclorista Luís da Câmara Cascudo,
notável compilador desses contos. Em 1946, publicou a cole-
tânea Contos tradicionais do Brasil. Cascudo produziu mais de
192 títulos e elevou a cultura brasileira advinda dos negros,
índios e povos colonizadores. Embora o conto não seja foco
de nosso esforço teórico, ressaltamos a importância desse au-
tor como responsável pela classificação e caracterização dos
contos populares. Para caracterizá-los, ele adota os seguintes
critérios:
antiguidade, anonimato, divulgação e
persistência. É preciso que o conto seja
velho na memória do povo, anônimo
em sua autoria, divulgado em seu co-
nhecimento e persistente nos repertó-
rios orais. (CASCUDO, 2000, p. 13).

322
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

Em Contos tradicionais do Brasil, o autor classifica os contos em


doze tipos, dividindo a obra, portanto, em doze seções: con-
tos de encantamento, contos de exemplo, contos de animais,
facécias, contos religiosos, contos etiológicos, demônio logra-
do, contos de adivinhação, natureza denunciante, contos acu-
mulativos, ciclo da morte e tradição.
Em 1957, Júlio César de Mello e Souza, sob o heterônimo
de Malba Tahan, contribuiu grandemente para a difusão da
literatura modernista com seu livro A arte de ler e contar histó-
rias, em que discute sobre histórias infantis e procura especi-
ficações didáticas para sua utilização. Esse autor aponta que
a função das histórias é ensinar, instruir, educar, comover e
agradar. Segundo ele,
a ‘‘história infantil’’ é o relato de um
ou mais episódios, verídicos ou não,
simples ou com enredo complexo que
possa ser apresentado dentro de certas
condições a ouvintes infantis, juvenis,
ou adolescentes. (TAHAN, 1961, p. 12,
grifo nosso).
O termo “apresentado” aparece em seguida explicado pelo
autor quando ele afirma que uma história não precisa ser nar-
rada, podendo ser transmitida de outras formas, entre elas, a
dramatização.
Nem sempre a história é narrada. Em
certos casos a história poderá ser: drama-
tizada (teatro infantil, teatro de fanto-
ches, teatro de marionetes); semidrama-
tizada (sombrinhas, flanelógrafo); filma-
da (cinema, desenhos animados); lida
ou declamada; sugerida (história dese-
nhada); sem legenda (história muda);
em colaboração; com interferência de
personagens, etc. (p. 12).

323
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Subsidiado pelo estudo do professor Câmara Cascudo,


que, tempos antes, trouxera o termo “conto” por meio da lin-
guagem antropológica do folclore, Malba Tahan (1961, p. 13)
discorre também sobre esse vocábulo:
A palavra conto é empregada, pelos au-
tores de maior renome, como sinônimo
perfeito de história. Na opinião do Sr.
Josué Montelo, o vocábulo conto, no lar-
go campo da Literatura, tem uma signi-
ficação muito ampla. Escreve esse jo-
vem e erudito acadêmico: “Em verdade,
de todos os gêneros de composição lite-
rária, é o conto que se reveste de maior
soma de facetas, no jogo numeroso das
mais diversas e curiosas modalidades”.
Uma autora que também colaborou nos estudos sobre o
conto, aliás, muito referenciada, foi Maria Betty Coelho Sil-
va. Em 1986, ela publicou o livro Contar histórias: uma arte sem
idade. Para abordar a arte de contar histórias, o texto parte da
simples narrativa e segue apresentando formas de trabalhar
com as histórias para a promoção da leitura. Sua autora ins-
pirou a criação do Centro de Estudos em Leitura e Literatu-
ra Infantil e Juvenil Maria Betty Coelho Silva, em 1995, na
Universidade Estadual de São Paulo. Esse centro de estudos
é responsável por diversos projetos de leitura financiados sob
a coordenação da professora Renata Junqueira de Souza. A
arte de contar histórias é analisada por Silva (1986, p. 8) espe-
cialmente pela perspectiva da valorização da oralidade e da
literatura infantil.
Em louvor a esta arte, é meu intuito
reativar o interesse por sua importância,
reavivando-a na lembrança dos que me
escutam. Afinal, quem não se lembra
de alguma história ouvida na infância?

324
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

Perde-se na noite dos tempos – ou seria


madrugada? – a origem da arte de nar-
rar. Fico a pensar no homem primitivo
à entrada da caverna, noite de luar, fo-
gueira acesa para aquecer o corpo. De
que falariam entre si? Da faina do dia,
caçadas, peixes que pescaram, chuva,
sol, contendas, troféus, estrelas distantes
que talvez fossem deuses, lendas con-
tadas pelos antepassados. Certamente
esse homem primitivo fazia silêncio
para ouvir aquele que melhor contasse
uma história e haveria de ser o que me-
lhor a revestisse de detalhes, sem fugir
ao essencial, o que tivesse mais dons de
graça, fantasia, aquele que contasse com
emoção – como se estivesse vendo o que
sua própria fala evocava na imaginação
dos companheiros...
A arte de contar histórias é caracterizada por um ordena-
mento próprio e uma estrutura simbólica, e pelo fortaleci-
mento que, com seu contexto e com o desconhecido, ela traz
para o sujeito por meio do ato criador e recriador. De acordo
com Silva (1986, p. 9),
como toda arte, a de contar histórias
também possui segredos e técnicas.
Sendo uma arte que lida com matéria-
-prima especialíssima, a palavra, depen-
de, naturalmente, de certa tendência
inata, mas pode ser desenvolvida, culti-
vada, desde que se goste de crianças e
se reconheça a importância da história
para elas.
Os requisitos para o desempenho dessa arte envolvem a
estética, a forma e o cuidado para encantar o público, além

325
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

da disponibilidade do narrador. Na condição de artista-


-professora, entendemos que isso implica preparação e fun-
damentação para emocionar e sensibilizar as pessoas por
meio das histórias. Silva (1986, p. 13), em seu “manual”, ex-
plica que
nem toda história vem no livro pronta
para ser contada. A linguagem escrita,
por mais simples e acessível, ainda re-
quer a adaptação verbal que facilite sua
compreensão e a torne mais dinâmica,
mais comunicativa.
Entre os pesquisadores na arte da palavra, o destaque em
1989 se deu para a socióloga Regina Machado, professora de
Artes na Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. Sob a orientação de Ana Mae Barbosa, cria-
dora da “abordagem triangular” no Brasil, Regina Machado,
preocupada com a formação dos professores de Artes e com
seus fundamentos teórico-práticos, elaborou a tese Arte-
-educação e o conto de tradição oral: elementos para uma pedagogia
do imaginário. Em sua tese, Machado (1989) apresenta uma
nova metodologia para a arte-educação, área voltada para os
professores. Como já atuava com contos, avançou nesta seara
ao ministrar formações, valendo-se da obra de E. Eisner e E.
B. Feldman para trazer fundamentos em arte-educação; de
J. R. R. Tolkein e Walter Benjamin para teorizar sobre a arte
da narrativa; e de Gilbert Durant para explicar as estruturas
antropológicas do imaginário.
A fragmentação conceitual, a desvincu-
lação entre teoria e prática, a ausência
de objetivos claros, a confusa ligação da
arte com a vida da maioria desses pro-
fessores, tem me levado há muito tempo
a procurar uma forma de compreender,

326
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

fundamentar e propor um trabalho com


Arte educadores que lhes propicie, an-
tes de mais nada, a conquista da signifi-
cação de sua prática pedagógica. Tal signi-
ficação é conquistada pelo professor de
Arte quando sua formação integra teoria
e prática dentro de uma atividade cria-
dora, na qual reflexão e imaginação se
constituem nos dois lados de uma mes-
ma moeda, realizando a completude
de uma experiência de aprendizagem.
(MACHADO, 1989, p. 4).
A autora relata que, após atuar com histórias de diversos
autores, passou a se interessar por contos da tradição oral, es-
pecialmente os orientais. Em 2004, Regina Machado apre-
sentou aprofundamentos sobre a arte de contar histórias na
obra Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar his-
tórias, relançada em 2015, numa edição revisada e ampliada,
com o título A arte da palavra e da escuta. Nesse estudo, a autora
defende a abordagem teórico-poética, por ela utilizada:
Um fundamento teórico-poético pode
ser constituído pelo sujeito como con-
figuração de uma aprendizagem signi-
ficativa. Nesse modo de aprender, as for-
mulações se tornam significativas a par-
tir da experiência conjunta do pensa-
mento e do encontro das imagens poéti-
cas pessoais despertadas pelo contato
com formas artísticas. (MACHADO,
2015, p. 12).
A arte de contar histórias tem como essência a palavra em
forma de texto oral ou escrito e apresenta possibilidades de
diálogo com outras linguagens artísticas, como a música e a
pantomima, por exemplo. Por meio da literatura oral ou da

327
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

literatura escrita, as histórias revelam-se como potencial nar-


rativo-cênico para o desenvolvimento da memória, da apren-
dizagem e das linguagens literárias e teatrais compartilhadas
no espaço do imaginário individual e coletivo, como aconte-
ce nas comunidades indígenas, quilombolas, ciganas e outras.
Celso Sisto (2001), contador de histórias e estudioso dessa
arte, defende o ato de contar com arte no livro Textos e pretex-
tos sobre a arte de contar histórias, no qual apresenta a expressão
“texto oral”. Em sua prática com as histórias e com a educação
de crianças, o autor observou que “a fruição conjunta das his-
tórias revelava-se ritual e mistério. Os segredos daqueles que
conheciam as histórias passava a ser um bem comum” (p. 15).
Essa afirmação sugere que as histórias são fonte de memória
ancestral e de aprendizagem, encontro da disponibilidade do
narrador com a emoção dos ouvintes. Desse ponto de vista,
elas são, pois, alvo da própria emoção, alcançando lugar na
subjetividade de um coletivo.
Rosenfeld (2002, p. 25) menciona alguns recursos que po-
dem provocar a emoção durante a contação de uma história:
“Ao narrar a estória deles imitará talvez [...] as suas vozes e es-
boçará alguns de seus gestos e expressões fisionômicas”. Tais
mecanismos indicam que contar histórias é ocupar a cena,
não como metáfora, mas literalmente; é uma ação teatral ma-
nifestada com o olhar, o gesto e a escuta.
A narração oral é sempre um exercício
cênico. Mesmo que não se ocupe o espaço
“sagrado” do teatro e do palco. Mesmo
que se conte sentado ou de qualquer
outro jeito. Seja qual for a posição que
se assuma para contar, ela deve estar a
serviço da melhor funcionalidade da
história. E funcionalidade aqui significa
“dar um estatuto literário” ao texto oral,

328
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

transformá-lo em “objeto” de arte, dizê-


-lo com todas as nuances possíveis, fazê-
-lo chegar ao ouvinte como uma labare-
da (e isso não exclui o humor! Labareda
pode ser chicote, pode ser cócega!). Con-
verter o narrar num espetáculo. (SISTO,
2006, p. 92).
Em seguida, enfatizaremos as abordagens acerca da arte de
contar histórias. Podem ser destacadas as abordagens poéti-
ca, literária e performática. A poética está ligada à atividade,
a poiésis; a literária, à palavra oral e escrita; e a performática, à
imagem do contador de histórias e ao uso do corpo/voz para
dar vida à história pelos gestos e pela voz (TIERNO, 2010).

O ato de narrar: a contação de histórias

Os primeiros contadores de histórias antecedem a escrita.


Os contadores nasciam da necessidade de manter viva a cul-
tura de um povo, de preservar suas crenças e costumes para
as futuras gerações por meio da oralidade. Numa visão artísti-
ca, pode-se questionar: se são necessárias técnicas para contar
histórias, como nossos antepassados conseguiam realizar essa
tarefa? E quem é o artista da palavra? Tentando responder a
tais indagações, recordo Walter Benjamin (1994) no seu texto
“O narrador”, em que afirma que todos somos contadores de
histórias. Há contadores-artistas espalhados pelo mundo intei-
ro, e essa arte vem se reconstruindo, inclusive, como profissão.
Atualmente, a arte de contar histórias dispõe dos recursos in-
termidiáticos e da internet, que facilitam a tarefa de registrar as
novas formas de contar histórias e dar visibilidade a elas.
O contador de histórias é um narrador e, para Rosenfeld
(2002), este tem um papel fundamental no teatro. Ele ante-

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

cede o advento do ator, que, segundo esse estudioso, é uma


fusão de narrador com personagem.
O narrador muito mais que se exprimir
a si mesmo (o que naturalmente não é
excluído) quer comunicar alguma coisa
a outros que, provavelmente, estão sen-
tados em torno dele e lhe pedem que
lhes conte um “caso”. Como não expri-
me o próprio estado de alma, mas narra
estórias que aconteceram a outrem, fa-
lará com certa serenidade e descreverá
objetivamente as circunstâncias objeti-
vas. A estória foi assim. Ela já aconteceu
– a voz é de pretérito – e aconteceu a
outrem (João, Maria) e em geral não [a
mim]. (ROSENFELD, 2002, p. 25).
Ao trazer a questão da contação de histórias, faz-se ne-
cessário pensar sobre a literatura oral, que é composta pelos
contos da tradição oral ou contos populares, também motivo
das pesquisas de Machado (1989, 2015); é preciso ainda levar
em conta a literatura escrita, que é preconizada no contexto
escolar como dispositivo que fortalece as competências de
leitura e escrita no ensino fundamental I. A explicação con-
ceitual adotada aqui para o termo contação de histórias tem
sua base em Matos e Sorsy (2009), que discutem sobre o tipo
de conto ideal para um contador de histórias. Segundo as au-
toras, há quem entenda que a literatura escrita é de ordem
superior à tradição oral.
Esse é um grande equívoco que vem do
início do século XIX, quando a noção de
tradição oral apareceu em meio à atmos-
fera intelectual do romantismo euro-
peu, momento em que a arte popular
(incluindo o conto popular) opôs-se à

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A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

arte refinada (incluindo o conto literá-


rio). [...]. Preferimos nos apoiar no fato
de que esses dois tipos de contos apre-
sentam características e funções dife-
rentes, mas igualmente importantes, e
ambos podem contribuir para o proces-
so de ampliação da consciência huma-
na. (MATOS; SORSY, 2009, p. 2).
A visão de cultura oral e cultura escrita é explorada por
Matos e Sorsy (2009), que exemplificam bem a relevância
tanto de uma quanto da outra para a formação da consciência
e consequentemente para a aprendizagem. É fundamental
que o artista-professor que conta histórias e por meio delas
ensina perceba que os contos de tradição oral estão ligados ao
sentido da audição, enquanto os contos de literatura escrita
se encontram mais voltados ao sentido da visão, mas ambos
são indispensáveis no contexto do ensino.
Enraizado na oralidade, o conto popular
tem sua base de comunicação na per-
cepção auditiva da mensagem, enquan-
to o literário, enraizando-se na escrita,
tem sua base de comunicação na per-
cepção visual da mensagem. Além disso,
o conto literário é produção de um autor
que nele irá imprimir seu estilo pessoal
e sua própria visão de mundo. Os con-
tos tradicionais, cuja origem parece en-
contrar-se nos mitos primitivos, que por
muitos séculos orientam o homem em
sua busca de conhecimento do cosmo
e de si mesmo, não são obra de um só
autor. Resultam da produção coletiva de
um povo que os cria a partir das repre-
sentações de seu imaginário coletivo e,
ao mesmo tempo, encontra neles o ali-

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mento para nutrir esse mesmo imaginá-


rio. (MATOS; SORSY, 2009, p. 2).
Os contos representam vertentes diferentes e geram dis-
cussões para quem defende uma ou outra vertente. No en-
tanto, apesar das características diferentes, no contexto da
escola, todos podem ser empregados e valorizados como
arte e suas linguagens em momentos de contação de histó-
rias. A pesquisadora Cléo Busatto (2013, p. 9) apresentou em
sua dissertação de mestrado o termo “contação de histórias”
como um “neologismo, uma expressão que se refere ao ato de
contar histórias”. O blog desenvolvido pela Cia. Arte & Palco
amplia o significado da contação, definindo-a como o uso da
simples narrativa, com ou sem outros recursos:
A Contação de Histórias é uma expres-
são relativamente recente, livremente
traduzida e adaptada de países de lín-
gua castelhana, “cuentacuentos”, que
pode significar tanto o ato de se contar
histórias, quanto o próprio contador. Na
língua inglesa, temos o termo “story-
telling”, similar à contação de histórias,
que é o ato ou capacidade de se narrar
um fato ou história, de improviso ou
planejadamente, usando diversos ti-
pos de recursos, ou apenas a oralidade.
(SANTOS, 2017).
Não cabe a este texto apresentar e esgotar conceitos e pa-
radigmas; pelo contrário, a intenção é levantar pensamentos
de autores sobre a arte de contar e sobre a contação de his-
tórias para encaminhar discussões posteriores ligadas a tais
concepções. Na escola, o professor lê e conta histórias usando
apenas a voz, outros sons, o corpo e recursos visuais; utiliza
essas histórias para dramatizar, realiza direção de arte e, ainda

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A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

assim, ouve-se, muitas vezes, pelos corredores: “não sei con-


tar histórias, não tenho criatividade”. Será preciso memorizar
histórias para contá-las? São entretenimento ou recurso de
ensino? São mobilizadas por causa da arte ou para adequar
comportamentos, educar e moralizar? O que um aluno pode
aprender no contato com as histórias de tradição oral e de
literatura escrita? Incorre em erro o professor que lê uma his-
tória e chama essa leitura de “contação”? Busatto (2013, p. 35)
acredita que sim. Para ela,
narração oral de histórias ou contação
de histórias é outra coisa. Aqui entra em
cena o sujeito-narrador oral e sua técnica
peculiar, que é envolver o ouvinte usan-
do como suporte apenas o seu corpo e
a sua voz. [...] Pois, se contar histórias
é uma arte, uma necessidade humana,
então o artista da palavra materializa-
da precisa ter um domínio profundo da
técnica a ponto de interiorizá-la e não
precisar conscientemente dela durante
a sua apresentação. Nesse momento de
fruição artística o que transparece não é
a técnica, mas, antes, a vida.
Os nossos antepassados não sabiam técnicas, mas impri-
miam vida aos momentos de contar histórias. E na sala de
aula, o que pode ser chamado de história? Apresentamos
apontamentos de dois autores que pesquisaram esse contex-
to, a professora Gilka Girardello, no Sul do Brasil, e Geoff
Fox, no Sul da Inglaterra:
Usamos a palavra “histórias” para falar
tanto do conto cuidadosamente prepa-
rado por um narrador experiente, quan-
to de uma piadinha familiar recontada
por uma criança de sete anos. Não esta-

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

mos lidando, por exemplo, com as dis-


tinções entre mitos e lendas, contos de
fadas e contos folclóricos, [mas] usan-
do o termo “contos tradicionais” para
abranger todas essas histórias. (FOX;
GIRARDELLO, 2006, p. 119).
Nessa tentativa de descobrir e elencar alguns padrões
conceituais que envolvem as histórias na cena da escola e de
perceber os apontamentos teóricos fundamentais de que eles
fazem parte, trazemos à tona a motivação inicial deste traba-
lho: a experiência com o projeto Tia Cecília conta.

Experiência constitutiva: projeto Tia Cecília conta

A experiência da contação de histórias no projeto Tia Ce-


cília conta iniciou-se da curiosidade e da vontade artística de
envolver as crianças através da arte de contar histórias. Desde
sua abertura, o projeto atende escolas de ensino fundamen-
tal do 1º ao 5º ano e da educação infantil com apresentações
artísticas. Inicialmente, após a organização de uma pequena
biblioteca escolar, que antes era apenas um depósito de li-
vros, realizávamos a contação de histórias em grupos, dire-
cionando-a de forma criativa e dinâmica. Usávamos livros
literários, canções infantis, apresentações teatrais e objetos
cênicos divertidos para chamar a atenção das crianças. Nas
apresentações cênicas ocorridas nesses momentos, a caracte-
rização era feita de acordo com a história, ora com adereços,
ora com vestimentas. A primeira concepção em que o projeto
esteve ancorado foi o “letramento literário”, perspectiva de
Rildo Cosson.
O uso de histórias no projeto estava vinculado a práticas
de leitura e escrita na sala de aula. Elas serviam como uma

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A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

motivação inicial para atividades de produção oral e escrita


de gêneros diversos, recontos e atividades de artes visuais de
acordo com a série/ano e o objetivo do professor regente. Du-
rante o período de março a junho de 2018, aos sábados letivos,
as crianças aguardavam ansiosas as surpresas da Tia Cecília.
Em pouco tempo, as possibilidades artísticas se ampliaram
e a concepção teórica já buscava respaldo na arte-educação,
mas sem o devido conhecimento para dominar as técnicas
necessárias. Imperava a boa vontade de uma professora que
desejava tornar o processo de ensino envolvente e dinâmico e
contagiar outros professores.
A alegria das crianças se manifestava em suas expressões
pessoais no momento da contação e se estendia para a sala de
aula por via das músicas e dos enredos apresentados. Mesmo
não dominando as histórias, quase sempre escolhidas com
base nas posteriores atividades pedagógicas que elas possibi-
litavam, os alunos tentavam memorizá-las e dar-lhes expres-
sividade. Algumas estratégias especiais foram sendo incor-
poradas, como o teatro de fantoches, as histórias cantadas, a
utilização de animações do YouTube, entre outras.
Para os registros realizados durante o projeto, utilizamos
os aprendizados adquiridos no curso de Especialização Latu
Sensu em Arte-Educação Intermidiática Digital, ofertado
pela UFG de 2017 a 2018. Destacamos aqui uma memória
publicada no Instagram @tiaceciliaconta, criado especial-
mente para divulgar esses registros: trata-se do conceito de
“e-arte/educação”, desenvolvido pela professora Fernanda
Pereira da Cunha em 2012, em seu doutorado, sob a inspi-
ração da “abordagem triangular” de Ana Mae Barbosa, nome
de referência em arte/educação. Tal abordagem é composta
por três processos mentais: o ler, o fazer e o contextualizar a
prática artística.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O Sistema Triangular Digital é uma


abordagem e-arte/educativa, cujo pa-
radigma educacional também é pós-
-moderno, cultural, cognitivo, contex-
tual, interacionista e está fundamentado
em três processos mentais que consti-
tuem sua triangulação [e] que se inter-
ligam por meio da linguagem digital.
(CUNHA, 2012, p. 245).
Entre os vários episódios desenrolados no projeto Tia Ce-
cília conta, recordamos a história que encerrou a primeira
etapa desse projeto quando ele foi aplicado na Escola Muni-
cipal Carlos Alberto Brandão Ferreira, no município de Lu-
ziânia, Goiás. A narrativa lembrada aqui é Viviana, Rainha do
Pijama, escrita por Stive Webb. Essa história sobressaiu graças
à sua possibilidade de envolver os alunos e à caracterização
que lhes permitiu realizar. No momento em que ela foi con-
tada, a brincadeira tomou a direção do imaginário: alunos,
professores e gestão escolar se vestiram com seus pijamas,
cada um do seu jeito (Imagem 1), dando ainda mais significa-
do àquele momento. Não houve risos, nem julgamentos; pelo
contrário, dali em diante, a vontade de contar e ler histórias
e de conhecer mais dessa arte tornou-se ainda maior, e já se
misturavam realidade e fantasia, arte e educação...

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A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

Imagem 1 - Divulgação do projeto Tia Cecília conta

Fonte: Instagram @tiacecíliaconta, 2018.

No segundo semestre de 2018 e primeiro de 2019, os tra-


balhos do projeto ganharam espaço na oficina de literatura e
teatro realizada na biblioteca da 1ª Escola de Tempo Integral
Laudimírio de Jesus Tormin, no mesmo município, Luziânia.
Com duração de uma hora por turma, a oficina atendia se-
manalmente a dezenove turmas. De forma contextualizada,
apresentava momentos de música, contação apenas com li-
vro, com a narrativa ou com material ilustrativo, e, ao final,
os alunos desenvolviam atividades pedagógicas para consoli-
dar as aprendizagens. Essas atividades incluíam gráfico, pro-
dução textual, desenho, dramatização, leitura, jogral e em-
préstimo de livros, entre outras.
A arte de contar histórias está ligada à forma de contar e à
constante reelaboração e criação de técnicas artísticas pecu-

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

liares. A contação de histórias aparece no ato da performan-


ce do contador por meio do corpo/voz e da apresentação da
narrativa. Nesse momento, a singularidade se coloca como
a maior característica, pois, ainda que a mesma história seja
contada várias vezes e, inclusive, pela mesma pessoa, não há
como ela ser contada da mesma maneira. Parafraseando He-
ráclito, não é possível passar pela mesma história duas vezes.

Artes da cena, arte-educação e contação: mudanças no


percurso metodológico

Inicialmente esta pesquisa, pretendendo elucidar e pro-


por uma prática artística fundamentada, buscou uma me-
todologia que correspondesse com a experiência e a teoria
da arte de contar histórias. Atuando como professora, traba-
lhamos com a perspectiva da arte e da educação perceben-
do a necessidade de ampliar horizontes teóricos, poéticos e
performáticos na contação de histórias. O trabalho com essa
perspectiva nos despertou para a relevância da compreensão
das potencialidades das histórias na formação da criança e na
sua percepção cognitiva crítica, especialmente no contexto
da atualidade, que já coaduna mundo real e virtual.
A aprendizagem perceptiva e a cognição perceptiva crítica
de alunos do ensino fundamental I são campos que refletem
no comportamento e no rendimento individual e que apon-
tam diversas problemáticas de ordem coletiva. Assim nos
pareceu oportuno trabalhar com esses campos, pois a pesqui-
sa bibliográfica e a pesquisa-ação nos possibilitariam, desse
modo, desenvolver uma proposição arte-educativa capaz de
contemplar três temáticas planejadas para este estudo: a con-
tação de histórias, a e-arte/educação e o teatro-fórum. Nas-

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A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

cimento (2016, p. 8) explica da seguinte maneira o trabalho


com a arte-educação:
Nesse tipo de pesquisa, certa situação-
-problema, de abrangência coletiva, é
investigada para, em discussão com as
pessoas atingidas por um problema ou
questão sobre causas, agentes, opções
de reparo, ações, negociações e conflitos,
chegar à resolução e gerar aprendiza-
gem sobre o que se tratou. É educativa e
politizadora, tendo, [assim como a] pes-
quisa participante, potencial e intenções
transformadoras sob o enfoque social.
Apesar de nosso interesse pelas duas abordagens mencio-
nadas no parágrafo anterior, ao conhecer a Pesquisa Educa-
cional Baseada em Arte e a a/r/tografia, ficou claro que essa
metodologia se adequava perfeitamente à nossa proposta de
pesquisa. Afinal, ela traz em seu bojo a excelente oportunida-
de de utilizar a escrita a/r/tográfica, visto que, por esse viés,
é possível considerar a experiência como fonte de conheci-
mento. Trata-se de uma vertente pautada no vivido, no per-
cebido e na transformação que a narrativa pode evidenciar
por meio da reflexão. “Narrativas são construídas na expe-
riência como atos de formação e transformação de episódios
que, elaborados, produzem diversas temporalidades, novas
significações e outras histórias de vida” (SOUZA; MARTINS;
TOURINHO, 2017).
A subjetividade e as inúmeras possibilidades, reações, ten-
sões e realizações, se forem pensadas no campo da pesquisa
narrativa, sairão do lugar da simples descrição do quê e do
como ocorreu na contação, viabilizando um olhar mais sen-
sível para a pesquisa. Assim, pretende-se adotar a consciên-
cia crítica do lugar de artista-pesquisadora-professora que,

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

por meio de sua experiência, considera a seguinte sequên-


cia procedimental esboçada por Hernández (2017): revelar as
hipóteses, conceitos e referências; discriminar a posição e a
estratégia metodológica adotada; argumentar por que o pro-
blema de pesquisa pede que o enfrentem por meio de deter-
minada perspectiva, e não de outra; explicitar o quê e o como
das decisões na construção do relato; manter uma estratégia
de reflexividade; não perder de vista a finalidade do relato/
pesquisa; elaborar formas de representações que permitam
visualizar processos, percursos e contribuições; construir um
relato verossímil.
Essa perspectiva teórico-metodológica compara-se a
uma forma de fabulação da escrita, ou seja, de utilização de
metáforas e metonímias para dar vigor artístico e acadêmi-
co a essa escrita. A a/r/tografia requer compromissos e um
projeto que estimule mudanças através do pensar a maneira
de ser/estar no mundo. Exige inquérito constante. Mostra
que é preciso negociar o engajamento e criar práticas que
problematizem e reflitam a diferença. Ela “considera as per-
cepções do artista/pesquisador, [que] devem ser exploradas
e valorizadas” (MAÇANEIRO, 2013, p. 74). “Investigar a/r/
tograficamente é dar sentido às experiências, interpretá-las
e compartilhá-las” (p. 71).
Após uma contação de histórias, o que permanece? Qual
é o produto desse tempo mágico? A a/r/tografia vem trazen-
do essa resposta ao oferecer a oportunidade/possibilidade
de entender a experiência vivida por meio da narrativa e da
reflexão fundamentadas. A proposta metodológica da a/r/
tografia contextualiza que “saber, fazer e realizar se fundem”
(DIAS, 2013, p. 25). Questionar a prática da “tia Cecília” traz
reflexões teóricas e análises fundamentadas, e movimenta a
prática docente e artística indagando: Como a arte de contar

340
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

histórias reverbera na escola e na aprendizagem? Qual é o


sentido de trazer experiências híbridas na contação de histó-
rias? A quem cabe contar histórias? Tem um jeito correto de
contar? Ler, contar ou encenar, o que mais motiva na prática?
E o papel do aluno no processo, é de mero espectador ou de
protagonista? Na era da tecnologia digital, qual é a relevância
de ver, escutar e contar histórias?
Sob a perspectiva de contadora de histórias, acreditamos
que a presente investigação possibilitará aprimorar a arte
cênica envolvida na narrativa para fomentar a criatividade.
Como professora, sabemos que é essencial conhecer sobre
as histórias, seus contextos, origens e técnicas para realizar
boas e eficientes narrativas, sejam elas inspiradas na tradição
oral ou na literatura escrita. Como pesquisadora, retomamos
a possibilidade de utilizar tais conhecimentos para apoiar a
formação de outras pessoas que também se interessam por
esse objeto e percebem que a imaginação, a memória e a
aprendizagem podem ser estimuladas pelas histórias na esco-
la, reverberando em novas dramaturgias.
Nesse âmbito, não cabe a visão da professora, mas da ar-
tista e pesquisadora, pois, assim como narrar para outros de-
manda preparo, é preciso trabalhar sob bases que permitam
desmitificar e ressignificar as práticas já estabelecidas. Pro-
fessamos um certo medo de ter que revelar nossas próprias
memórias e narrativas, de precisar atuar sobre razões e teorias
próprias, o que certamente ocorrerá se não houver respaldo
na teoria sobre a contação ou arte de contar histórias.

341
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Considerações finais

A tentativa inicial de apresentar alguns paradigmas con-


ceituais que permeiam a arte de contar histórias e a contação
de histórias demanda um esforço investigativo voltado para
os aspectos da teatralidade contida na contação de histórias.
A questão ligada à arte e à educação ancorada na cena parece
ainda bastante nebulosa, necessitando, portanto, de um es-
paço de pesquisa sobre o campo do teatro e seus elementos
constitutivos.
O projeto Tia Cecília conta tem favorecido uma atuação
dinâmica na escola, mas carece de análise e reflexão para a
ressignificação de práticas e para o fortalecimento da visão
artista-professora-pesquisadora através da atenção às premis-
sas desses entrelugares.
O desempenho como professora e contadora de histórias
no espaço escolar e a probabilidade de cursar o mestrado em
Artes da Cena vêm transformando e afetando nossa reflexão
sobre a atividade artística e incitando-nos à busca de pistas
para atuar mediante uma formação nesse campo. Esse tempo
de transformação experimentado como artista, mediante o
estudo da Arte, tem gerado uma desconstrução em nossa for-
mação como docente, cuja prática está sempre associada ao
currículo e a uma intencionalidade.
A escrita deste trabalho propiciou o reconhecimento da
multiplicidade da arte da narrativa. O esforço teórico da pes-
quisa buscou construções mais específicas para o que cha-
mamos de narrativa cênica e o aprimoramento da contação
por meio das possibilidades dramatúrgicas que a linguagem
teatral da arte de contar histórias pode oferecer no contexto
da escola.

342
A arte de contar histórias no foco da cena: uma proposição e-arte/educativa para
o desenvolvimento da cognição perceptiva de alunos do ensino fundamental I

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Machado. São Paulo: Salamandra, 2006.

345
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras
do multiartista John Louis Graz

Paulo Damasceno1

Resumo: O presente texto tem por intuito apresentar


uma metodologia capaz de identificar relações e concatenar
características peculiares às obras do multiartista John Louis
Graz, bem como apontar traços inerentes à sua formação
multidisciplinar. O objetivo é conhecer o processo criativo
do artista e estabelecer uma aproximação desse processo com
sua formação multidisciplinar. Nessa direção, utilizaremos
uma abordagem que nos permita, como artista-pesquisador,
correlacionar sua multidisciplinaridade à função do diretor
de arte.
Palavras-chave: imagens; processo criativo; multidisci-
plinaridade; expressão visual.

Traces, relationships and intercrossings in the works


of multiartist John Louis Graz

Abstract: This article aims to present a methodolo-


gy with the research proposal that seeks to identify rela-
tionships and concatenate peculiar traits in the works of the
multiartist John Louis Graz, with the intention of pointing
out peculiar and inherent traits in his work multidiscipli-
nary training. The objective is to get to know and establish

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola


de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac-
UFG). Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura
Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. Bacharel em Direção
de Arte pela Emac-UFG (2018). Desenvolve projetos de arquitetura de
interiores e detalhamentos.
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

an approximation of the artist’s creative process with his


multidisciplinary background, starting with an approach
that allows me as an artist-researcher to correlate his multi-
disciplinarity to the function of the art director.
Keywords: images; creative process; multidisciplinarity;
visual expression.

Introdução

Este texto é produto de uma pesquisa de natureza biblio-


gráfica, documental e historiográfica, tendo como objeto de
estudo as obras do multiartista John Louis Graz,2 que desen-
volveu trabalhos em pintura, litogravura, escultura, design,
decoração e arquitetura de interiores. A principal fonte para
o estudo são as imagens de suas obras que se encontram num

2 Graz nasceu em Genebra, Suíça, 1891. Em 1908, o artista ingressa no


curso de arquitetura, decoração e desenho da Escola de Belas-Artes de
Genebra, onde foi aluno de Eugène Gilliard (1861-1921), Gabriel Vernet e
Daniel Baud-Bovy (1870-1958). Foi discípulo também de Edouard Ravel,
com quem aprendeu uma multiplicidade de técnicas e estilos. De 1911
a 1913, na Escola de Belas-Artes de Munique, estuda decoração, design e
publicidade com Carl Moos (1873-1959). Retorna à Escola de Belas-Artes
de Genebra, onde permanece de 1913 a 1915, período em que passa boa
parte do tempo em companhia dos irmãos Regina Gomide (1897-1973)
e Antonio Gomide (1895-1967). Viaja a Paris, onde se familiariza com o
trabalho de Paul Cézanne (1839-1906) e entra em contato com o cubismo,
o fauvismo e o futurismo. Recebe, por duas vezes, a Bolsa Lissignol e parte
para estudos na Espanha. De volta à Suíça, realiza vários trabalhos como
ilustrador. Em 1920, vem para o Brasil e, nesse mesmo ano, casa-se, em
São Paulo, com Regina Gomide. Por intermédio de Oswald de Andrade,
o casal passa a fazer parte da vida intelectual da cidade. Graz participa da
Semana de Arte Moderna de 1922, expondo sete obras. No mesmo ano,
tem um de seus trabalhos publicados na revista Klaxon, 7ª edição. Em
1923, trabalha com o arquiteto Gregori Warchavchik. Projeta e executa
a decoração de residências paulistanas, desenhando móveis, luminárias,
afrescos, vitrais, maçanetas, banheiros e jardins. Torna-se sócio-fundador
da Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam), em 1932. Graz faleceu na cidade
de São Paulo, em 1980.

347
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

acervo no Instituto John Graz,3 na cidade de São Paulo (ver


Anexo). A pesquisa é de ordem científica básica, estruturan-
do-se em um referencial teórico e partindo da compreensão
das teorias consultadas para, posteriormente, chegar a uma
observação e análise do objeto pesquisado, sem a pretensão
de uma aplicação específica. Quanto à forma de abordagem,
o estudo classifica-se como qualitativo, subjetivo e descritivo.
E, no tocante aos objetivos, é uma pesquisa exploratória por-
que visa buscar a aproximação do assunto com o problema
explorado, almejando maior conhecimento da temática em
estudo e partindo da construção de hipóteses.
A formação multidisciplinar de John Graz foi relevante
para seus processos de criação, como podemos perceber pelos
traços peculiares recorrentes nas diferentes obras do multiar-
tista. Segundo o levantamento realizado por Américo Som-
merman, vários autores e pensadores procuraram conceituar
as propostas de cooperação entre as disciplinas, elaborando
conceitos semelhantes para uma compreensão do que seja
cada abordagem.
Neste estudo, trazemos uma síntese de cada um desses
conceitos de maneira a diferenciá-los, tendo como para-
digma as obras do multiartista John Graz, que ajudam a com-
por nosso objeto de pesquisa. Ao final do texto, apresentamos
um anexo que reúne algumas imagens dessas obras.

3 Fruto do empenho de Annie Graz, o Instituto John Graz é uma instituição


sem fins lucrativos fundada em 2005. Tem como missão preservar, estudar
e difundir a obra de John Graz em suas diversas influências estéticas e em
suas relações com a sociedade brasileira, ampliando a discussão dessas
obras nos âmbitos artísticos, educacionais, acadêmicos e profissionais.
Busca ainda diluir as fronteiras estabelecidas entre as artes plásticas e o
design e contribuir para a preservação do patrimônio cultural, bem como
para a ampliação do repertório cultural da sociedade brasileira.

348
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

Formas de cooperação entre saberes e disciplinas

Uma disciplina pode ser entendida como um recorte do


saber ou ainda como “o aprendizado ou o ensino de uma
ciência, seguindo as regras e métodos da ciência a que cor-
responde” (SOMMERMAN, 2006, p. 25). Esse recorte deve
incluir o rigor científico da disciplina estudada e os seus mé-
todos, dos quais decorre o aprendizado. Apesar dos inúmeros
recortes de saber gerados nos últimos séculos, a humanidade
sempre aspirou a uma unidade do saber. De alguma manei-
ra, os pensadores sempre se dedicaram a procurar desvelar
verdades ou princípios válidos universalmente. Contudo, na
contramão desse propósito, os métodos da ciência moderna
vêm se aprofundando e criando disciplinas cada vez mais es-
pecializadas. Como resultado disso, o que vemos é o surgi-
mento de ilhas epistemológicas que procuram conhecer e ex-
plicar os fenômenos relacionados a tais disciplinas de forma
sempre mais fechada (SOMMERMAN, 2006), com o risco
de dogmatismos e teorizações tautológicas.
Para tentar resolver os problemas decorrentes da falta de
diálogo entre os saberes e do desenvolvimento tecnológico
desenfreado, surgiram, a partir da segunda metade do século
XX, algumas propostas para novas formas de cooperação en-
tre as disciplinas e os saberes, sobretudo, no âmbito das pes-
quisas acadêmicas (SOMMERMAN, 2006). Estas propostas
de cooperação podem ser multidisciplinares, pluridisciplina-
res, interdisciplinares ou transdisciplinares.
Multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade são prati-
camente sinônimas, com poucas diferenças apontadas entre
os estudiosos. Resumidamente, poderíamos defini-las como
uma justaposição de saberes e perspectivas em torno de um
mesmo objeto de estudo. Nas palavras de Nicolescu (1999,

349
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

p. 52), elas dizem “respeito ao estudo de um objeto de uma


mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo
tempo”. Para ilustrar, podemos imaginar um ambiente de pes-
quisa no qual estejam presentes estudiosos de áreas distintas.
Estes pesquisadores podem compartilhar suas experiências,
mas seus conhecimentos e métodos continuam restritos às
suas disciplinas; ou ainda, cada um dá o seu parecer sobre a
pesquisa em questão conforme a sua profissão e suas técnicas.
Interdisciplinaridade é uma forma de colaboração entre
os saberes e as disciplinas. Pressupõe uma cooperação e com-
penetração de olhares e perspectivas, com colaborações mú-
tuas. Nesse caso, pode haver transferência de conhecimentos,
leis, técnicas e métodos de uma disciplina a outra, de modo
a gerar enriquecimentos mútuos de conteúdo. Esta forma de
cooperação pode originar também novas disciplinas, como
a geoquímica, a astrofísica e a psicolinguística. Nicolescu
(1999, p. 53) faz, entretanto, uma ressalva destacando que
“a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua fi-
nalidade permanece inscrita na pesquisa disciplinar”.
Por sua vez, a transdisciplinaridade é uma cooperação que
se propõe a perceber o que está entre as disciplinas, através
das disciplinas e além das disciplinas. Ela não possui um obje-
to específico, mas pressupõe o imperativo da unidade do co-
nhecimento. Esta unidade não significa fusão de saberes ou
uniformidade do conhecimento; tampouco significa que as
disciplinas não têm sua importância particular. “As pesquisas
disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas
complementares” (NICOLESCU, 1999, p. 54). Ou seja, a trans-
disciplinaridade não implica descartar as abordagens discipli-
nares, nem prevê um sincretismo dos saberes, mas é um con-
vite a perceber além e não restringir o próprio conhecimento
a perspectivas limitadas ou fechadas. Ela ultrapassa as discipli-

350
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

nas, e sua finalidade também vai além delas. Esta é a grande


diferença desta abordagem de cooperação entre saberes para as
que foram mencionadas (multi, pluri e interdisciplinaridade).
Segundo Sommerman (2006), o primeiro pensador a uti-
lizar o termo transdisciplinaridade foi o suíço Jean Piaget.
Ele acreditava na evolução do pensamento e destacava que
as formas de cooperação entre os saberes e entre as discipli-
nas deveriam alcançar a etapa da transdisciplinaridade e ser
capazes de uma interação num sistema total, sem fronteiras
estáveis entre os saberes. A essa definição sucederam-se ou-
tras tentativas de conceituação da transdisciplinaridade, que
foi tema de eventos em todo o mundo e suscitou a criação de
grupos de estudo e centros especializados no assunto.
Nas palavras do matemático Ubiratan D’Ambrosio (1997,
p. 79-80),
o essencial na transdisciplinaridade re-
side na postura de reconhecimento de
que não há espaço nem tempo culturais
privilegiados que permitam julgar e hie-
rarquizar como mais corretos – ou mais
certos ou mais verdadeiros – os diversos
complexos de explicações e de convi-
vência com a realidade. A transdisci-
plinaridade repousa sobre uma atitude
aberta, de respeito mútuo e mesmo de
humildade com relação a mitos, reli-
giões e sistemas de explicações e de co-
nhecimentos, rejeitando qualquer tipo
de arrogância ou prepotência.
O grande desafio da transdisciplinaridade é estender nos-
so olhar para além do que achamos que sabemos e para além
do que achamos que podemos fazer. É permitir um conhe-
cimento sempre maior, que pode e deve ser adquirido por
diversas vias, sem desprezar as disciplinas existentes e as tra-

351
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

dições criadas e transmitidas ao longo dos séculos de nossa


existência humana. Não podemos admitir que o reducionis-
mo esvazie de vez os sentidos de nossas vidas.

A ação da memória na seleção de imagens para análise

Existem várias técnicas para estimular a criatividade e para


fazer vir à consciência imagens e relações que se encontram
escondidas no inconsciente (BULCÃO, 2008, p. 2). É preciso
estar atento e aberto a esse acesso aos registros da memória e
ao inconsciente, como refere Samain (2012, p. 22):
toda imagem (um desenho, uma pintu-
ra, uma escultura, uma fotografia, um
fotograma de cinema, uma imagem ele-
trônica ou infográfica) nos oferece algo
para pensar: ora um pedaço de real para
roer, ora uma faísca de imaginário para
sonhar.
O acesso a essas memórias, a toda essa bagagem de regis-
tros, pode ser de extrema utilidade se elas forem adaptadas
ao processo de criação para direção de arte. O objetivo de
se utilizá-las é apresentar o processo criativo encontrado e
analisá-lo de modo que, na direção de arte, tal processo faça
parte de um planejamento preciso, não se baseando apenas
na intuição e na sensibilidade do criador.
Tomando como referência de análise o livro Matéria e
memória, nota-se que seu autor, Henri Bergson (1859-1941),
destaca ali importantes conceitos que potencializam estudos
sobre a memória e sua relação com as imagens. O conceito
central dessa obra é o de memória. Henri Bergson, um in-
telectual francês, formado em Letras, dedicou-se a estudos
filosóficos de cunho fenomenológico e produziu obras de

352
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

referência, como Ensaios sobre os dados imediatos da consciência


(1889), Matéria e memória (1896), A evolução criadora (1907) e
Duração e simultaneidade (1918).
Para Bergson (1999, p. 247), a memória é um fenômeno
que responde pela reelaboração do passado no presente, que
“prolonga o passado no presente”. “É do presente que par-
te o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos
sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o
calor que lhe confere vida” (p. 179). Segundo o estudioso, a
lembrança é “a representação de um objeto ausente” (p. 80).
Em outras palavras,
a memória, praticamente inseparável
da percepção, intercala o passado no
presente, condensa também, numa in-
tuição única, momentos múltiplos da
duração e, assim, por sua dupla ope-
ração, faz com que de fato percebamos
a matéria em nós, enquanto de direito a
percebemos nela. (p. 77).
[Ela] tem por função primeira evocar
todas as percepções passadas análogas a
uma percepção presente, recordar-nos o
que precedeu e o que seguiu, sugerindo-
-nos assim a decisão mais útil. (p. 266).
Nossa memória escolhe sucessivamente
diversas imagens análogas que lança na
direção da percepção nova. (p. 116).
É sabido que Freud recorreu à arte para encontrar nela
algo que lhe fornecesse material analítico através do qual
pudesse expor e discutir suas descobertas. Sua obra é repleta
de referências às obras de arte advindas ora da literatura, ora
da pintura e da escultura. Os textos das primeiras décadas
do século XX o comprovam: Delírios e sonhos na Gradiva de

353
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Jensen (1907), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infân-


cia (1910), O Moisés de Michelangelo (1913), O estranho (1919) e
Dostoievski e o parricídio (1928). Existem ainda outras maneiras
de reconhecer o recurso psicanalítico às artes. Desde Lacan,
vimos uma inversão daquela primeira perspectiva freudiana.
Em vez de aplicar a psicanálise à leitura das obras de arte,
veremos psicanalistas e estudiosos do campo aplicar a arte à
psicanálise, isto é, fazer da arte um instrumento para avançar
na teoria psicanalítica. É por meio deste debate que o filósofo
Jacques Rancière, em O inconsciente estético (2009), trata das
relações entre a teoria freudiana e o domínio da estética.
Abordando o tema do inconsciente estético fora da visada
psicanálise da arte e do continente analítico, o filósofo vivifica
ainda mais a discussão em jogo, baseando sua fala no domí-
nio da estética, sua especialidade: “Não tenho nenhuma com-
petência para falar do ponto de vista da teoria psicanalítica”
(RANCIÈRE, 2009, p. 9). Vemos que o autor parece colocar
em tensão esses dois regimes de uso da arte pela psicanálise.
Se por um lado, a interpretação das obras ocupa “um lugar es-
tratégico na demonstração da pertinência dos conceitos e das
formas de interpretação analíticas” (RANCIÈRE, 2009, p. 9),
por outro lado, Rancière resguarda a tradição, a autonomia e a
potencialidade do pensamento estético nas obras de arte:
Elas são os testemunhos da existência
de certa relação do pensamento com o
não-pensamento, de certa presença do
pensamento na materialidade sensível,
do involuntário no pensamento cons-
ciente e do sentido no insignificante.
(p. 10-11).
Para Rancière, a revolução estética não se dá, por exemplo,
por via da rebeldia britânica de Lord Byron contra a moral
civilizada ou denunciando as desordens da alma. Trata-se

354
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

antes de uma nova ideia de artista: daquele que sabe frequen-


tar os subsolos, como o geólogo e naturalista francês Georges
Cuvier; de um artista que sabe encontrar a palavra muda atra-
vés dos diversos usos do detalhe. Diante disso, Rancière irá
aliar a revolução estética ao advento da psicanálise:
O novo poeta, o poeta geólogo ou ar-
queólogo, num certo sentido, faz o que
fará o cientista de A interpretação dos so-
nhos. (p. 37).
[Ou seja], a grande regra freudiana de
que não existem ‘‘detalhes’’ desprezíveis,
de que, ao contrário, são esses detalhes
que nos colocam no caminho da verda-
de, [está inscrita] na continuidade dire-
ta da revolução estética. (p. 36).

O valor dos métodos de análise no estudo das imagens

Presentes na variedade de produtos culturais expressivos


de uma sociedade, as imagens possuem dois espaços determi-
nantes para a sua percepção: o olhar de quem as produz, ou
do autor, e o de quem as recebe. Como receptores das imagens
produzidas por John Graz, procedemos à sua análise enten-
dendo que, para ser levada a bom termo, uma análise requer
um projeto de estudo. Tentar estudar as fontes compostas
por imagens sem ter como base hipóteses a serem provadas
e defendidas representaria navegar sem rumo em meio a um
mar de múltiplas possibilidades. A interpretação da imagem
orientada por um projeto condiciona a elaboração de uma
metodologia adequada e a escolha de teorias e conceitos nor-
teadores das conclusões.

355
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A explicação ou interpretação histórica não se faz ao largo


de uma noção hipotética. A argumentação científica, incluin-
do a oriunda das análises das imagens, caminha pelas fontes
guiada por questões antecipadamente referenciadas. O que
buscamos provar quando analisamos uma fotografia, por
exemplo, vai influenciar na escolha do método de análise e
na formação das séries conexas. Existe outro ponto que deve
ser observado com cuidado: à análise feita pela história ou
pela comunicação, seguem as várias categorias de interpre-
tação que se tornam ora concorrentes, ora complementares.
O trabalho do analista rompe muitas vezes com antigas ver-
dades e argumentos, e as pesquisas e análises, mesmo quando
partem de uma mesma premissa, chegam a resultados dife-
rentes. Isso merece ser refletido.
A análise das imagens é um comentário exegético que,
por conseguinte, constitui uma hipótese capaz de responder
às questões levantadas em um texto ou em um documento
(ORTIGUES, 1987, p. 222). O interesse por algumas dessas
questões é determinado pela época e pelo grupo a que perten-
cemos. A história que construímos, mesmo quando olhamos
para o passado distante, é uma história do nosso tempo, e seus
temas são selecionados entre aqueles mais caros nos âmbitos
políticos, sociais e culturais. Uma análise imagética pressupõe
escolhas a serem feitas, incluindo a opção pelo melhor méto-
do a ser aplicado. A semiótica ou a iconologia, ou até o diálogo
entre as duas, como sugere o professor Eduardo Neiva, po-
dem ser excelentes métodos de análise. Afinal, elas nos ofere-
cem um campo conceitual importante para compreendermos
os mecanismos de construção dos significados. Max Black
apontou certas condições gerais que conduzem uma imagem
a mostrar um objeto, e estas se afirmam como suficientes se
mediadas e colocadas em níveis equivalentes de importância.

356
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

A iconologia pode apresentar alguns problemas em razão


de sua origem dual, kantiana, cujas raízes remetem a uma
predominância da linguagem verbal. No entanto, é possível
atenuar esses problemas com o destaque dado à dimensão
histórica das imagens. Acreditamos que a análise das ima-
gens é um campo ainda em desenvolvimento e que a inter-
disciplinaridade pode se mostrar como urna grande aliada
nessa tarefa.
Ao analisar as obras de John Graz, levamos em conta três
ações mentais que, ao ser colocadas em prática, resultam
no processo criativo. Essas ações são a atenção, despertada
no momento em que uma pessoa enxerga um problema ou
uma oportunidade; a fuga, em que um indivíduo deixa de
pensar apenas na realidade presente e abre a mente para no-
vas conexões, escapando do pensamento convencional; e o
movimento, que ocorre quando alguém explora sua imagi-
nação, gerando novas ideias e fazendo conexões inéditas. Es-
sas três ações, apontadas por Paul Plsek (1997 apud SIQUEI-
RA, 2012), formam uma estrutura integrada em que se ba-
seiam todos os métodos de pensamento criativo.
Assim como as ações mentais, a cotidianidade também é
uma característica de grande importância em processos de
reconhecimento de padrões, especialmente naqueles que en-
volvem a análise de imagens, como bem ressaltam Uchoa e
Godoi (2016, p. 5):
Uma das principais contribuições da
utilização de recursos visuais na prática
da pesquisa é a imprescindibilidade que
[ela] gera ao pesquisador de sair do la-
boratório e investigar acerca do campo,
construí-lo, pois é justamente ali que re-
side a cotidianidade significativa capaz
de encarnar a prática transformadora da
investigação.

357
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Não menos importante é o fato de que uma pesquisa com


imagens está sujeita a diversas interpretações, mesmo saben-
do que “toda imagem é portadora de um pensamento” (SA-
MAIN, 2012, p. 22). Segundo Didi-Huberman (2006 apud
SAMAIN, 2012, p. 34), “é necessário pois abrir a imagem,
desdobrar a imagem, inquietar-se diante de cada imagem”.
Isso mostra a importância da descrição dos métodos utiliza-
dos nas análises, do relato dos procedimentos empregados e
das características observadas, aspectos que respondem a es-
sas necessidades no trabalho com as imagens.
Cada profissional encontra e desenvolve um processo de
criação mais adequado ao seu trabalho, ou à sua maneira de
criar. Na direção de arte, as coisas interessantes a cada um são
definidas muito por sua diferença no meio das outras coisas e
pela surpresa. Então, quando encontramos algo interessante,
isso nos surpreende e nos faz ver que aquilo que se conhece já
não funciona tão bem. Assim, é preciso se posicionar de outra
maneira, pensar lateralmente, mexer-se de algum modo para
encontrar uma solução. Quando nos permitimos participar
desse processo de aprendizado, da comunicação de qualquer
ideia nova, lembramos com mais frequência do aprendido:
passamos a ter um tipo mais funcional de memória.
Um processo criativo em direção de arte, assim como nas
artes plásticas, pode ter diferentes etapas e diálogos. Pode ser
um processo lento, mas não por isso menos intenso. Desse
processo, podem resultar trabalhos com infinitas conexões ou
nenhuma conexão. Mas, quando analisamos todos os traba-
lhos e todos os processos, começamos a perceber que existe
ali uma costura entre eles. O diretor de arte pode não traba-
lhar em cima de um só suporte, de um só material, ou de um
só meio, mas de vários. Portanto, não existe uma identidade,
e sim um pensamento que passa por trás de tudo, um percur-

358
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

so criativo gravado. Se o trabalho é lento, mas muito intenso,


o processo vai amadurecendo e se transformando durante o
percurso. Esse tipo de trabalho não parte de uma ideia; parte
de um desenvolvimento. Depois de certo tempo da concre-
tização de um trabalho, outro pode surgir e passar por outro
processo, e ter conexão com o trabalho anterior, porque tudo
faz parte de um mesmo conceito.
Diferentes metodologias são adotadas por todos os profis-
sionais ligados a atividades projetuais e criativas, e a escolha
de uma ou mais dessas técnicas orienta o profissional em seu
processo de criação. Na escolha da solução técnica e estética
para seu projeto, cada profissional adota um caminho entre a
coleta de dados, o surgimento das ideias e o desenvolvimento
conceitual delas. Confrontando nossas experiências como di-
retor de arte com nossas vivências experimentadas na arqui-
tetura, traçando comparativos de nossa experiência artística
em áreas distintas, foi possível compreender melhor nossos
interesses, desejos e paixões.
A direção de arte, vista como um novo ramo profissional
no campo das visualidades, está cercada de inúmeros desa-
fios, que vão desde as definições de atribuições e competên-
cias até a questão da afirmação no contexto mercadológico.
Assim, o processo de aprendizagem e a aquisição de expe-
riências e vivências nessa área exigem maior complexidade,
tempo e dedicação. A graduação é apenas uma parte dessa
formação. Segundo Salles (2006, p. 64-65),
a relação da organização do espaço com
a constituição da subjetividade do ar-
tista pode ser observada sob a mesma
perspectiva para o tempo da criação.
Sem desvincular o tempo das criações
de obras com o tempo de autocriação.
A grande criação de um artista, que seja

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

própria da sua vivência, do seu mundo e


da sua cultura, está diretamente ligada
a suas necessidades, paixões e desejos.
Trata-se de um conjunto de comandos
éticos e estéticos, ligados a tempos e es-
paços, e com fortes marcas pessoais.
A autora segue dizendo que o percurso criador, ao gerar
uma compreensão maior do projeto, leva o artista a um co-
nhecimento de si mesmo. Daí o percurso criador ser para ele,
também, um processo de autoconhecimento e, consequen-
temente, de autocriação, pois ele não sai de um processo do
mesmo modo que nele entrou: a compreensão de suas buscas
estéticas envolve autoconhecimento.

Considerações finais

O intuito desta investigação é deixar como registro para a


comunidade acadêmica, em especial, para o bacharelado em
Direção de Arte, nossa experiência particular com o proces-
so de criação. Durante nossa trajetória nesse curso, foram os
estudos e as discussões sobre estética, visualidades e pensa-
mento artístico no processo criativo e no fazer que abriram
caminho para esta pesquisa. A complexidade experimenta-
da ao estudar o assunto está na densidade e nas múltiplas
compreensões sobre o ato criador. Estamos certos de que não
é possível nos apropriar totalmente de um processo criativo
por meio de relatos, depoimentos e documentos. Essas infor-
mações são capazes apenas de nos aproximar um pouco mais
da compreensão do ato de criação; nunca nos apropriaremos
por completo desse entendimento. As análises e as compreen-
sões do processo pelo ponto de vista de quem o estuda, certa-

360
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

mente, jamais estarão em total confluência com o raciocínio


do artista.
Chegamos a essas derradeiras ponderações com a sen-
sação de que uma visão crítica do processo de criação se tor-
nou fundamental para pensar determinadas questões que,
de certo modo, sempre acompanharam a arte, mas na con-
temporaneidade se colocam com maior intensidade. Nessa
direção, as redes da criação artística se propõem a oferecer
algumas formulações teóricas para fundamentar o estudo
dessas quetões.
Finalmente, reconhecemos e destacamos a importância
de desenvolver pesquisas como esta, pontuando generali-
dades a respeito do tema. É partindo de estudos assim, com
abordagens gerais, que se consegue verticalizar o pensamento
e chegar a apontamentos específicos, com aprofundamentos
relevantes.

Referências

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Paulo: Martins Fontes, 1999.
BULCÃO, Heloisa Lyra. A criação da cenografia. Anais Abrace,
v. 9, n. 1, 2008. Disponível em: http://www.portalabrace.org/vcon
gresso/textos/territorios. Acesso em: 4 jun. 2018.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas
Athena, 1997.
DIDI-HUBERMAN, Georges. S’inquiéter devant chaque image.
Entrevista cedida a Mathieu Potte-Bonneville e Pierre Zaoui.
Vacarme, n. 37, out. 2006. Disponível em: https://vacarme.org/arti
cle1210.html. Acesso em: 4 jun. 2018.

361
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São


Paulo: Triom, 1999.
ORTIGUES, Edmond. Interpretação. In: ENCICLOPÉDIA
Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda, 1987. v. 2,
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RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed. 34,
2009.
SALLES, Cecília Almeida. Redes de criação: construção da obra de
arte. São Paulo: Horizonte, 2006.
SAMAIN, Etienne. As imagens não são bolas de sinuca. In: SA-
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SIQUEIRA, Jairo. O processo criativo em criatividade, técnicas e fer-
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com/2007/02/10/o-processo-criativo/. Acesso em: 4 jun. 2018.
SOMERMMAN, Américo. Inter ou transdisciplinaridade? da
fragmentação disciplinar ao novo diálogo entre os saberes. São
Paulo: Paulus, 2006.
UCHOA, Antonio Giovanni Figliuolo; GODOI, Christiane
Kleinübing. Metodologias qualitativas de análise de imagens:
origem, historicidade, diferentes abordagens e técnicas. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS ORGANIZACIO-
NAIS, 6., 2016, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: SBEO, 2016.
p. 1-7.

362
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

ANEXO - Obras do artista plástico John Graz

Imagem 1 - Litografia: Fiandeira dos Valais, 1918

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

Imagem 2: Guache (sem título), 1935

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

363
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Imagem 3: Guache sobre papel: Abstrato, 1969

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

Imagem 4 - Sala de jantar da residência de Alberto Ferrabino, 1931

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

364
Traços, relações e entrecruzamentos nas obras do multiartista John Louis Graz

Imagem 5 - Detalhe do afresco da mesma sala de jantar

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

365
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Imagem 6 - Detalhe do piso da Sala de banho de Caio Prado

Fonte: Acervo do Instituto John Graz.

Imagem 7 - Litogravura sobre papel, 1924

Fotografia: Hugo Zanella.

366
Metodologia de pesquisa em artes da cena:
teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

Pedro Paulo Galdino Vitorino Dias1


Alexandre Silva Nunes2

Resumo: Neste trabalho, busca-se discutir sobre um pos-


sível caminho metodológico de pesquisa em artes da cena,
tendo como fundamento a coletânea de textos e as dife-
rentes metodologias estudadas ao longo da disciplina Me-
todologias de Pesquisa em Artes da Cena, do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG. O recorte
é feito com base no tema/problema/objeto de nossa disser-
tação de mestrado em processo, alicerçado na teatralidade e
nos jogos tradicionais. Buscam-se relações de aproximação,
distanciamento, ruptura e/ou continuidade entre teatralida-
de e jogos tradicionais por meio do imaginário interiorano

1 Mestrando e bolsista Capes no curso de Pós-Graduação em Artes da Cena


da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás
(Emac-UFG).
2 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, mestre em
Artes pela Universidade Estadual de Campinas e licenciado em Educação
Artística, com habilitação em Artes Cênicas, pela Universidade Federal de
Pernambuco (2000). É professor associado e coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG. É editor-chefe da revista
Arte da Cena e líder do grupo de pesquisa Imagem, Mito e Imaginário nas
Artes da Cena (Íman). Coordena o Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa
nas Artes da Cena (Laborsatori), UFG, e o Festival Universitário de Artes
Cênicas de Goiás (Fuga), UFG. É cofundador dos Encontros Arcanos,
evento itinerante de pesquisa interdisciplinar das relações entre arte, mito
e imaginário. Na UFG, foi também membro do Conselho Deliberativo da
Fundação Rádio e Televisão Educativa e Cultural (RTVE) (2014-2015). É
autor do livro ATOR, SATOR, SATORI: labor e torpor na arte de personificar,
publicado pela Editora da UFG.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

goiano, e não somente por via do fenômeno espetacular.


Para estruturar estas reflexões, perpassaremos de maneira
sucinta questões relativas a senso comum, ciência, artes da
cena, metodologia e teatralidade. A intenção não é aprofun-
dar esses assuntos, mas expor os resultados iniciais do que
vem sendo investigado como parte fundante do nosso pro-
cesso vivido como sujeito, artista e pesquisador. Para isso,
tomaremos como ponto de partida o que foi burilado em
sala de aula.
Palavras-chave: artes da cena; teatralidade; jogos tradi-
cionais; metodologia científica.

Research methodology in scenic arts: theatricality


and traditional games from Goiás

Abstract: This study aims to discuss a possible metho-


dological path of research toward the scenic arts, with the
support of the collection of texts and different methodolo-
gies studied in the Scenic Arts Post-Graduation Program of
the Emac-UFG. That study is based upon my master the-
me/problem/object dissertation in process, based on thea-
tricality and traditional games. Starting from these themes,
we are seeking relationships of approach, distance, rupture
and/or continuity, through the interior of the state of Goiás
imaginary beyond the spectacular phenomenon. In order
to structure these reflections, we will go, in a succinct way,
through questions related to a common sense, science, sce-
nic art, methodology and theatricality. The intention is not
to deepen these issues, but to expose the initial results of
what has been investigated as a founding part of my subjecti-
ve artistic process and of research, reflecting on what has
been sharped in the classroom as a starting point.
Keywords: scenic art; theatricality; traditional games;
scientific methodology.

368
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

Senso comum, ciência e arte

O importante é não parar de questionar.


(ALBERT EINSTEIN).
É por meio do senso comum, ou seja, do conhecimento
empírico, que o saber científico pode ser construído. Afinal,
desde o nascimento, o sujeito está exposto a diferentes inte-
rações e tradições que formam a base cultural de cada espaço
ou região. Assim, quase sempre, a crença e a magia estão na
base da realidade primeira do ser humano inserido dentro
do grupo social. Ao mesmo tempo, atualmente, é indiscutí-
vel que o conhecimento científico também está embutido
na sociedade, direta ou indiretamente, seja no uso de medi-
camentos, na organização das cidades ou nas pesquisas da
própria universidade. É dessa forma que Rubem Alves (1981,
p. 20) apresenta suas primeiras noções acerca do conheci-
mento científico:
Estamos fazendo um jogo. Estou ten-
tando demostrar que o quebra-cabeça
do senso comum é muito semelhante
ao quebra-cabeça da ciência, a despeito
das diferenças que encontramos na su-
perfície. Vamos então tentar entender a
atividade científica a partir daquilo que
nós e outras pessoas fazemos o dia todo.
Fazer ciência em muito se assemelha a
cozinhar, a andar de bicicleta, a brincar,
a jogar e adivinhar. A ciência nasceu de
atividades como essas.
Nesta afirmação de Alves, compreendemos melhor a pri-
meira sentença desta seção: naquilo que chamamos de “senso
comum”, ou seja, nas atividades e nos modos de pensar coti-
dianos, é que está o rico lugar do questionamento, da formu-

369
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

lação de hipóteses, análises, métodos, teorias e considerações


significativas a que damos o nome de saber científico.
É importante entender, também, neste contexto, que o ser
humano é social, como afirma a teoria histórico-cultural. Em
Lev Vigotski (1991), autor de referência no estudo da teoria
mencionada, o ser humano se faz humano por meio de suas
interações e relações sociais, que constituem a aprendizagem
e o desenvolvimento. O autor ainda afirma que pela estrutu-
ra social são construídas as funções psicológicas superiores,
específicas do ser humano, como atenção voluntária, criati-
vidade, memória, generalização, abstração, percepção, entre
outras. Assim, as diferentes experiências que o sujeito tem
no decorrer das interações de sua vida são usadas, cientifi-
camente ou não, na formulação de outras perspectivas para
determinado assunto:
O senso comum e a ciência são expres-
sões da mesma necessidade básica, a
necessidade de compreender o mun-
do, a fim de viver melhor e sobreviver.
Para aqueles que teriam a tendência de
achar que o senso comum é inferior à
ciência, eu só gostaria de lembrar que,
por dezenas de milhares de anos, os
homens sobreviveram sem coisa algu-
ma que se assemelhasse à nossa ciên-
cia. Depois de cerca de quatro séculos,
desde que surgiu com seus fundadores,
curiosamente a ciência está apresen-
tando sérias ameaças à nossa sobrevi-
vência. (ALVES, 1981, p. 21).
Portanto, para se posicionar no mundo, o indivíduo relacio-
na-se com o empírico e o científico à medida que surgem ques-
tionamentos, que ele precisa voltar aos conhecimentos acu-
mulados historicamente ou que deseja compreender a reali-

370
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

dade (sujeito e sociedade) ou fugir dela. Não pode haver um


juízo de valor (melhor ou pior) no trato com os conhecimen-
tos empírico e científico. Aliás, somos complexos, mas tam-
bém subjetivos, e o questionamento pode vir de inquietudes
para descobertas, avanços e até mesmo retrocessos.
Sigamos com este raciocínio, agora em relação ao conhe-
cimento em arte e ciência, sob o olhar da academia e na pers-
pectiva do artista-professor. Ao pensar sobre estes dois cam-
pos, faz-se necessário somá-los, e não dividi-los. Primeiro, é
preciso indagar quais elementos seriam científicos e quando
algo constituiria arte. Segundo, entender que, tanto na arte
quanto na ciência, há especificidades intrínsecas, objetivida-
des, subjetividades, concretude, realidade e fuga da realidade:
Em síntese, a questão do conhecimento
em ciência ou em arte apresenta-se de
forma muito diferente. Para a primeira,
no plano do conhecimento abstrato de
qualquer fenômeno que ocorre univer-
salmente, em qualquer época e qual-
quer sítio; para a segunda, no plano do
conhecimento concreto de um objeto
concreto e individual, insubstituível e
singular (Srour, 1978: 38). A arte não
se doa ao mundo como informação se-
mântica, mas como informação estéti-
ca. Comparando a criação científica e a
artística observamos que na origem do
ato criador o cientista não se diferencia
do artista, apenas trabalham materiais
diferentes do Universo. Ciência e arte
têm uma origem comum, na abdução
ou capacidade para formular hipóteses,
imagens, idéias, na colocação de proble-
mas e nos métodos infralógicos, mas é
no seu desempenho e performance que

371
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

se distanciam enormemente, como nos


processos mentais de análise e síntese.
(PLAZA, 1997, p. 24-25).
Assim, voltamos ao entendimento de que arte e ciência
respaldam suas pesquisas na realidade, encontrada no senso
comum. Fica claro que os materiais utilizados em arte se di-
ferenciam dos da ciência, devido às suas diferentes naturezas
primeiras: a poética e a científica, respectivamente. Porém,
uma dá suporte à outra. Talvez pudéssemos então nos per-
guntar sobre o cruzamento entre ambas, ou como fazer ciên-
cia no campo da arte. O intuito desta pesquisa, portanto, não
consiste em estabelecer conceitos, mas sim possibilidades de
entrecruzamentos significativos: além de socializar estéticas
(tipos ou modos específicos de fazer teatro), pretende-se tam-
bém cumprir a função social de ir para fora dos muros da uni-
versidade por meio do ensino, pesquisa, extensão e inovação.
Nessa direção, o artista-pesquisador encontra-se em
meio a um emaranhado sensível de estímulos, códigos,
ideias, percepções e incertezas, conforme demonstra meta-
fórica e plasticamente a Figura 1. Diante desse movimento,
nota-se a importância do posicionamento sobre aquilo que
se propõe a realizar:
Ninguém pode estar no mundo, com o
mundo e com os outros de forma neu-
tra. Não posso estar no mundo de luvas
nas mãos constatando apenas. A acomo-
dação em mim é apenas caminho para a
inserção, implica tomada de decisão, es-
colha, intervenção na realidade. (FREIRE,
2011, p. 75, grifo do autor).
E a intervenção nesta realidade não se faz sem trazer para
ela o extracotidiano, através da observação crítica, intuição e
inteligência:

372
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

O artista-teórico põe em prática uma


ação contemplativa, de examinador e
especulador sistemático. Com lucidez
vai ao encontro dos princípios que fun-
damentam a sua arte. É neste sentido
que ele se opõe ao mistério e à ingenui-
dade em arte, pois “o inconsciente só
funciona a plena satisfação quando a
consciência cumpre sua missão até o li-
mite das suas possibilidades” (Arnheim,
1980: 226). Assim, o meramente lúdico
é completado pelo lúcido, pois Mestre é
aquele que domina as regras de seu jogo.
Conclui-se que a intuição sem conceito
não existe e que o conceito sem a in-
tuição é vazio, assim “a arte é a união do
instinto (intuição) com a inteligência”
(F. Pessoa). (PLAZA, 1997, p. 30-31).
Figura 1 - Entre o ponto de partida e a chegada, o caos

Fonte: Imagem/design própria dos autores.

373
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Se, como assevera Plaza, o artista-pesquisador deve ir “ao


encontro dos princípios que fundamentam a sua arte”, a pes-
quisa, o contato com aquilo que já foi elaborado em estudos
anteriores por outros artistas-pesquisadores, torna-se algo
necessário, uma vez que fundamenta o que refletimos atual-
mente. Além disso, a interdisciplinaridade com outras áreas
do conhecimento, como a filosofia, a sociologia e a antropo-
logia, colabora para uma expansão das fronteiras do que está
sendo discutido. Assim, a arte-ciência-pesquisa, emergida de
desejos, provocações, necessidades ou intuições do sujeito em
suas diferentes faculdades (psicológicas, físicas e sociais), po-
tencializa o ser/estar em sociedade, elaborando e socializando
suas subjetividades.
Toda esta discussão corrobora o sentido do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG, pois, con-
forme dito pelo professor Alexandre Nunes durante uma aula
ministrada no Programa em 2019, o curso não entende suas
subáreas como ilhas; ao contrário, “visa o cruzamento entre
fronteiras, em suas áreas de atuação, não se fechando apenas
em teatro, dança e direção de arte”, mas pensando também na
questão da atuação e do trabalho (informação verbal).

Metodologia: tema-problema-objeto

Sílvia Manfredi (1993, p. 6, grifo nosso) explica nos se-


guintes termos a palavra metodologia:
Etimologicamente, [advém] do grego,
methodos, que significa META (objetivo,
finalidade) e HODOS (caminho, inter-
mediação), isto é, caminho para se atingir
um objetivo. Por sua vez, LOGIA quer
dizer conhecimento, estudo. Assim, meto-

374
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

dologia significaria o estudo dos métodos,


dos caminhos a percorrer, tendo em vista o
alcance de uma meta, objetivo ou fina-
lidade.
Na pesquisa do mestrado em processo, utilizamos a expres-
são “tema-problema-objeto” como uma forma de integrar o
eixo central da metodologia de nossa investigação, ou seja, o
tema e o objeto (teatralidade e jogos tradicionais,3 respecti-
vamente), com o problema, ou os questionamentos: Que re-
lações – de aproximação, distanciamento, ruptura e continui-
dade – podem ser estabelecidas entre a teatralidade e os jogos
tradicionais, por meio do imaginário interiorano goiano, e não
apenas através do fenômeno espetacular?. Com a integração
descrita, esperamos alcançar considerações significativas para
o campo. Ao fazer o recorte sobre a natureza metodológica
a ser adotada neste estudo, optamos pela pesquisa aplicada,
com abordagem qualitativa. Esse tipo de pesquisa “objetiva
gerar conhecimentos para aplicação prática dirigidos à so-
lução de problemas específicos, [envolvendo] verdades e inte-
resses locais” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 51).
Um fato que nos levou a questionar nosso tema-proble-
ma-objeto foi a significativa experiência com o professor An-
dré Carreira, numa aula ministrada em 2019 para a turma da
disciplina Educação Somática e Dramaturgia do Corpo Cêni-
co.4 Durante a aula, Carreira colocou três indagações que, se-
gundo ele, são de fundamental importância para um artista-
-pesquisador, principalmente no início do desenvolvimento

3 “Tradição, neste sentido, não é somente um processo acumulativo


de conhecimento passado, são camadas possíveis de ser atualizadas,
sem necessariamente ser uma reconstituição histórica cronológica”
(OLIVEIRA, 2013, p. 26).
4 Disciplina optativa ofertada no segundo semestre de 2019 pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG.

375
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

de uma pesquisa: “1) Este trabalho causará transformação em


mim? 2) É um trabalho útil para o teatro, existe uma conexão
direta com a área? 3) É útil para a formação de outras pessoas
envolvidas no campo trabalhado?” (informação verbal).
Além desses questionamentos, tudo que vivenciamos na
disciplina de Metodologias de Pesquisa em Artes da Cena
ajudou-nos a entender que, primeiro, o estudo nos causa
transformação. Em nossa condição de sujeito envolto no
imaginário próprio do estado de Goiás (Figura 2) e de suas
fronteiras (e, de algum modo, também em nossa posição de
sujeito distanciado desse lócus), admitimos esse potencial do
estudo para nos transformar. Segundo, compreendemos que
praticamente inexistem pesquisas sobre o imaginário goiano
alicerçadas na teatralidade e nas quais o sujeito seja aborda-
do não apenas em sua constituição biológica, mas também
em seu papel social. E terceiro, percebemos que, no presente
estudo, é preciso conceber nossa existência como sendo for-
mada por um processo cultural e artístico estruturado na in-
teração do homem com a natureza e com os outros homens,
um processo em que são ou já foram constituídas imagens,
memórias, símbolos e mitos.

376
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

Figura 2 - Mapa do estado de Goiás

Fonte: Imagem/design criada pelos próprios autores.

Destarte, este nosso estudo da cultura popular especifica-


da nos jogos tradicionais e na teatralidade poderá contribuir
não só para o estabelecimento de um caminho metodológico
de escrita científica em artes da cena, mas também para o
registro do teatro-arte-cultura como conhecimento funda-
mentado em outros lugares do fenômeno/espetáculo teatral.
A produção de pesquisa na área do
teatro representa, pois, um esforço no
sentido de redimensionar o fenômeno
do espetáculo em suas vias variadas de
manifestações, no contexto da contem-
poraneidade. Isto implica a reinvenção
permanente de seus significados e abre

377
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

o campo de pesquisa para novos luga-


res do fenômeno teatral na definição
dos processos de construção cultural.
(CABRAL; CARREIRA, 2006, p. 13).
Diante disso, o objetivo de nossa pesquisa não é o estudo
do espetáculo teatral em si, mas sim das teatralidades que po-
dem ser encontradas em jogos praticados na região de Goiás.
Tais jogos fazem parte do que constitui a cultura de um povo
que, ao estabelecê-los, atua sem intencionalidade. Ao mes-
mo tempo, esses jogos dizem muito do imaginário do povo,
no caso, goiano e, portanto, brasileiro. Gaston Bachelard re-
presenta nesse campo uma importante referência, tendo em
vista seus esforços em investigar os sentidos profundos da
imaginação poética. No estudo desse tema, ele apresenta dois
aspectos da imaginação:
expressando-nos filosoficamente desde
já, poderíamos distinguir duas imagi-
nações: uma imaginação que dá vida à
causa formal e uma imaginação que dá
vida à causa material, ou, mais breve-
mente, a imaginação formal e a imagi-
nação material. (BACHELARD, 2016,
p. 4).
Para o autor, a imaginação formal volta-se à percepção e
à memória, ou seja, está relacionada ao real. Já a imaginação
material relaciona-se “às imagens sublimadas pelos arquéti-
pos – ar, água, fogo e terra – que cumprem a função do ir-
real e colocam em movimento a articulação simbólica entre
o mundo interior e o exterior do indivíduo” (SILVA, 2009,
p. 1). No estado de Goiás, por exemplo, a imaginação mate-
rial pode ser percebida na forte relação física e psíquica do
homem com a terra e o gado, seja para a subsistência, expor-
tação ou religiosidade.

378
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

Bachelard (2016) discorre sobre o conceito de “imagi-


nação das forças”, algo que se aproxima da seguinte teoria
formulada por Silva (2009, p. 3): à medida que “a matéria ter-
restre provoca, por sua resistência, a psique do indivíduo, este
por sua vez emprega sua força contra ela, transformando-a e
transmutando, com isso, seu próprio psiquismo”. Seguindo o
raciocínio, entendemos que a teatralidade é mais do que uma
conceituação genérica, mais do que simplesmente “dar quali-
dade de teatro”. Este termo se mostra complexo, podendo signi-
ficar “também o canteiro de obras de um ‘work in progress’
teatral, ou uma categoria que se apaga sob formas diversas de
performatividade, revelando campos extracênicos, culturais,
antropológicos e éticos” (FERNANDES, 2011, p. 12). Assim,
a teatralidade abrange não apenas os signos do fenômeno
teatral (palavra, expressão corporal, maquiagem, figurino,
cenário etc.), como também o próprio caráter performático.
Neste estudo, por exemplo, ela envolve as manifestações cul-
turais do interior de Goiás absorvidas pelo olhar e pela leitu-
ra do espectador que as assiste, mas não passivamente, pois
“a teatralidade não pode mais ser entendida como uma pro-
priedade do teatro, mas de todo e qualquer evento que, em
um dado espaço/tempo, reúne um observado e um observa-
dor” (FERNANDEZ, 2011 apud THOMAZ, 2016, p. 318).
Quando decidimos pesquisar este assunto, partimos da
ideia de que as artes da cena, numa práxis – teórica e prática –,
representam significações detidas por um indivíduo e/ou por
uma sociedade e devem ser estudadas em caráter de processo,
de ação contínua:
Isso significa que a arte adquire maior
amplitude como experiência humana,
como práxis, relacionando-se com um
maior número de elementos e expon-
do-os para o público. Neste sentido, es-

379
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tudar a arte cênica, entendendo-se arte


como junção do processo com o objeto,
é algo, em si, processual, em contínuo
movimento em vez de ser algo a pos-
teriori como poderíamos dizer de uma
pesquisa tradicional. Assim, se estudo
o processo de criação é porque quero
fazer arte, ou estou fazendo. (BRAGA,
2006, p. 78).
Neste contexto, percebemos o quanto o estudo das artes
cênicas sob a forma de um processo é importante tanto para a
pesquisa artística, quanto para a acadêmica. É certo que os re-
sultados ou as considerações finais aparecerão de alguma for-
ma, mas não podemos fixá-los. Há de se estudar permanente-
mente, tendo em vista estabelecer concretude nas pesquisas
em artes da cena. Esta concretude é o desafio, pois reside nas
questões objetivas que sempre devem existir dentro de toda a
subjetividade que a arte provoca.
Do ponto de vista específico dos caminhos vislumbrados
para se atingir determinado objetivo numa investigação, to-
mamos como procedimento metodológico deste estudo a
análise de uma bibliografia específica associada a uma pes-
quisa de campo. Para as visitas de campo, elegemos os seguin-
tes espaços: Museu Zoroastro Artiaga (Goiânia), Museu His-
tórico do Tocantins, Museu Histórico de Mato Grosso, em
Cuiabá, Museu Histórico Abílio Barreto (Belo Horizonte) e
Museu Municipal de Uberlândia. Estas visitas têm o intuito
de expandir as possibilidades de coleta dos dados a ser ana-
lisados no registro acerca dos jogos tradicionais (escritos ou
imagéticos) do estado de Goiás e de suas fronteiras.
Outra dimensão que esta pesquisa aborda está relacionada
ao modo como é compreendido o corpo, por onde se dá todo
o trabalho. Nessa direção, falamos de um corpo psicofísico,

380
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

pessoal, cênico e coletivo. Dentro de uma perspectiva tão am-


pla, o processo de estudo que um artista se propõe a fazer
através dos jogos e trabalhando seu corpo acaba por tomar
proporções e revelar descobertas antes não imaginadas. Aliás,
é por meio do questionamento nascido desse contexto que
o homem se reinventa, e este questionar também desperta a
nossa sensibilidade.
De modo geral, os corpos permanecem em um estado con-
dicionado pelos padrões preestabelecidos, que geram ansie-
dades, angústias e tensões. Porém, com a desestruturação e
a adaptação das regras do jogo e das suas possibilidades de
execução, cada artista/jogador pode trilhar o seu próprio ca-
minho, ainda que dentro do coletivo. É o deixar-se levar a
serviço do trabalho que trará a beleza das descobertas. Nesse
cenário, a musculatura e as articulações do corpo, por exem-
plo, precisam de novos espaços e de uma troca entre eles,
como a que acontece dentro da arte, tanto na esfera pessoal
quanto na interpessoal.
A troca viabilizada pela experimentação dos jogos tra-
dicionais e até mesmo das cantigas de roda pode retomar o
aspecto lúdico, em que são lembradas experiências vividas
na infância, e também a percepção de como o corpo se mo-
vimenta, se transforma e se constrói. Os jogos acabam por
despertar novos impulsos de movimentos e pensamentos.
Podemos citar como exemplo o jogo Salve a bandeira, em
que os jogadores precisam de total concentração em si mes-
mos, em seus parceiros e na estratégia para conseguir chegar
ao objetivo.5

5 Não nos ateremos a esmiuçar este exemplo ou a trazer mais exemplos de


jogos, pois isso está fora do intuito deste texto. Esse detalhamento fica
reservado à nossa dissertação, já em andamento.

381
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Em determinadas situações de jogo, parece não haver um


controle das ações realizadas com o corpo, que se passam de
forma rápida e sem conceber pensamentos longos; o próprio
corpo se coloca em movimento. Através desses jogos e com
o uso da imaginação, o artista cria possibilidades, por exem-
plo, de explorar os níveis do espaço (alto, médio e baixo), de
experimentar emoções e de perceber o seu corpo como um
todo. Além disso, estar exposto ao jogo auxilia nas habilida-
des de escutar o próximo, de observar o corpo do outro e de
entender as motivações interiores e exteriores na construção
de uma organicidade.
Essa mesma imprevisibilidade e potência de criação e de
circulação existente num espetáculo encontra-se presente
também nas pesquisas científicas em arte. Isso permite aos
pesquisadores
uma forma de desapego e um espírito
de aventura indispensáveis a qualquer
projeto de investigação que não preten-
da tornar absolutas hipóteses formula-
das longe do corpo de experiências, mas
se propor aberta a descobertas não pro-
gramadas ou pensadas. (NUNES, 2016,
p. 33).
Esse estar aberto ao percurso da pesquisa é essencial: por
mais que tenhamos um fio condutor e objetivos estabele-
cidos, a investigação pode proporcionar descobertas ainda
mais significativas do que as objetivadas. Portanto, como nos
alertou a professora Fernanda Cunha, nossa pesquisa biblio-
gráfica e de campo pode sugerir outros caminhos de reali-
zação ao longo do processo. Afinal, há um abismo entre o
nosso recorte do tema-problema-objeto e aquilo que o fenô-
meno em si pode fornecer. É neste ponto que o pesquisador
precisa aguçar ainda mais a sensibilidade para aceitar ou re-

382
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

futar o que surgir; do contrário, poderá ficar andando em cír-


culos, sem chegar a lugar algum.

Contribuições para considerações em processo

Enquanto houver desordem, o princípio da revolução,


o princípio da felicidade, estará aqui, ao alcance dos
nossos buracos todos, entre nós.
(PATRICK PESSOA).

Há de se entender que, na pesquisa em artes da cena, en-


contramos diferentes caminhos metodológicos e variados
procedimentos adequados às especificidades deste campo,
que trata, sobretudo, de lugares efêmeros e subjetivos, mas
não generalizemos. Cada pesquisador e cada artista, ao longo
do seu fazer, precisa descobrir sua própria metodologia com
base no recorte de seu arcabouço teórico-artístico. No pre-
sente estudo, tentamos uma articulação entre o científico e a
diversidade do processo de criação artística, aqui representa-
do pelas teatralidades. Para isso, utilizamos o termo artista-
-pesquisador.
Por meio da filosofia de Peirce, pode-
mos encontrar uma das possibilidades
de entendimento dessa diversidade ao
compreendermos que o conhecimento
artístico está mergulhado em um cam-
po sempre hipotético. Ou seja, por um
lado, o objeto da arte é mera possibilida-
de de ser, por outro, a metodologia desse
fazer organiza-se na própria construção
do objeto [...]. Como campo de natureza
hipotética, a linguagem teatral permite

383
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

uma maleabilidade de métodos e recur-


sos, e o objeto de representação se cons-
trói no momento da própria criação.
O processo lógico (semiose) engendra-
do por essas construções constitui tam-
bém a especificidade da composição da
linguagem artística que orienta, baliza
e delimita o processo de criação. (MA-
CHADO, 2006, p. 92).
Ao mesmo tempo que a metodologia se organiza durante
a criação do objeto, não necessariamente o pesquisador irá
criar um novo método para os estudos que realizar, mas, de
alguma forma, este estará embutido nas leituras utilizadas
por ele. Surgirá em meio a um emaranhado de referências
e metodologias de outros autores, que afetarão de maneira
direta ou indireta o artista-pesquisador. Assim, as subjetivi-
dades coletivas, tanto quanto as individuais, estarão presen-
tes durante a trajetória da pesquisa, atuando consciente ou
inconscientemente na condução do trabalho. A liberdade
criadora exercida pelo artista-pesquisador, ainda que dirigida
por um modo de produção, num tempo e espaço, apresenta-
-se em inúmeras possibilidades de fluxos:
O que [gera] certo grau de liberdade é o
fato [de a] arte estar mergulhada num
fluxo, sempre renovado; o campo do
possível, cujas regras se definem por si
mesmas, cujos métodos se constroem a
partir de si mesmos e cujos resultados,
objeto da arte, se determinam no fazer
e no momento em que o autor diz ter
acabado aquele objeto. (MACHADO,
2006, p. 102).
Diante disso, falamos de uma pesquisa em, sobre e através
da arte. Pesquisamos sobre a arte focando na teatralidade e

384
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

observando, por meio dos jogos praticados na região Centro-


-Oeste, as relações entre a arte e a cultura popular, num
cruzamento entre fronteiras. Com essa perspectiva, pressu-
pomos uma relação da arte com a geografia, a sociedade e o
imaginário presente no estado de Goiás e em suas fronteiras.
E entendemos que “o teatro pode ser pensado não só como
uma forma de arte que expressa diferentes circunstâncias da
experiência humana, mas também como seu elemento for-
mador” (CABRAL; CARREIRA, 2006, p. 13).
Realizar uma investigação nesses trâmites é ampliar a
possibilidade de pensar não apenas o fenômeno teatral, o
espetáculo, mas sim o próprio processo em sala de aula/en-
saio como parte integrante desse fenômeno e como algo de
intrínseco valor. E isso só ocorrerá se o pesquisador estiver
sensível às teorias existentes, que propõem outras perspecti-
vas, se estiver disposto a escutá-las e estudá-las como fontes
estruturantes do saber ou dos saberes artístico-científicos, na
dialética tese-antítese.
Com esse entendimento e como ator e pesquisador nasci-
do e criado em Goiânia, tomamos como análise a sociedade
goiana, sem perder de vista o aspecto macro em que ela se
insere, ou seja, o contexto brasileiro. Nessa tarefa, adotamos
um distanciamento do objeto de estudo para entender de
que forma o teatro e seus fundamentos podem ser perpas-
sados e constituídos pela singularidade de cada sociedade
ou comunidade.

385
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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386
Metodologia de pesquisa em artes da cena: teatralidade e jogos tradicionais em Goiás

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387
A direção de arte: o corpo shívico das artes

Ravana da Silva Lobo1


Samuel José Gilbert de Jesus2

Resumo: O texto discorre sobre a dificuldade de loca-


lização do diretor de arte nas artes, analisando as citações
de autores que, indiretamente, sugeriram a necessidade da
existência desse profissional para criar diversos signos e sen-
sações, mediando diferentes atividades artísticas. Discute-
-se o seu posicionamento natural como artista-pesquisador,
comparando-se o seu trabalho à expressão “corpo shívico”,
utilizada por Edélcio Mostaço, e refletindo-se sobre o con-
texto das visualidades da cena e sobre as pesquisas biblio-
gráficas relacionadas a esse tema.
Palavras-chave: diretor de arte; artes da cena; artista-
-pesquisador; visualidades.

The art direction: the shivic body of the arts

Abstract: The paper aims to discuss the difficulty of po-


sitioning the production designer within the art field, analy-
zing the authors citations that indirectly suggested a nee-
ded existence of this professional, to create different signs
and sensations, mediating several artistic activities. It dis-
cuss the natural position as an artist-researcher, comparing
the work to the expression “shivic body”, used by Edélcio
Mostaço, and analyzing the context of the scene visualities,
as well as the bibliographical research about of this theme.
1 Mestranda em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás.
2 Professor efetivo adjunto na Universidade Federal de Goiás. Orientador
da pesquisa de mestrado que deu origem a este texto.
A direção de arte: o corpo shívico das arte

Keywords: production designer; performing arts; artist-


-researcher; visualities.

Introdução

As diferentes perspectivas metodológicas presentes nas


artes da cena desencadeiam dúvidas nos pesquisadores da
área, já que as interlinguagens podem causar inseguranças,
principalmente, quando se trata dos desdobramentos das lin-
guagens que fogem à dramaturgia clássica. Mas, ainda diante
dessa dificuldade, é fundamental promover o uso da lingua-
gem teatral, como sugere Villar (2006, p. 138):
Perder o uso da linguagem teatral é
um exemplo que pode ter ressonâncias
semelhantes em outras artes cênicas,
como a dança, ou em outras interlin-
guagens, como performance, teatro-
-dança ou teatro-performance; o campo
de nosso GT é o do desbordamento e
não o do fechamento do teatro em si
próprio e partimos da intenção de não
estabelecer qualquer hierarquia que pri-
vilegie o teatro (e o teatro com texto ver-
bal), em relação às outras formas cênicas
(teatro sem texto verbal, espetáculo de
formas animadas, dança com uso de
imagens e sons eletrônicos, investigação
do corpo híbrido, performance etc.).
Assim, de acordo com Villar, na contemporaneidade, pro-
cura-se esboroar as fronteiras entre as diversas interlingua-
gens, e entre estas e o teatro. Busca-se uma desconstrução
de qualquer hierarquia que vise privilegiar o teatro em de-
trimento de diversas outras formas cênicas que não possuam

389
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

características clássicas. Espera-se, inclusive, uma maior va-


lorização dos demais profissionais que se envolvem nas pro-
duções cênicas:
O trabalho com as telas e as imagens,
entretanto, modifica em profundidade
a prática teatral, tipos específicos de
criação coletiva se difundem, reagru-
pando, em torno das pessoas de teatro,
artistas plásticos, videastas, informatas,
infográficos... (VILLAR, 2006, p. 143).
Logo, há uma clareza do quanto a dramaturgia contempo-
rânea, com seus profissionais visionários e abertos às novi-
dades, busca incluir as novas funções teatrais e valorizar a
criação coletiva. Deixando de lado qualquer preconceito, ela
abrange todas as novas possibilidades de produção artística.
Inicialmente o presente trabalho aborda algumas funções
do diretor de arte dentro das várias vertentes artísticas, mas
não ousa delimitar sua atuação, já que se vive um processo de
estabelecimento e de posicionamento desse profissional no
mercado. No entanto, apesar de não consolidada, a profissão
do diretor de arte já foi legalmente descrita no Anexo do De-
creto nº 82.385, de 5 de outubro de 1978:
DIRETOR DE ARTE - Cria, concei-
tua, planeja e supervisiona a produção
de todos os componentes visuais de um
filme ou espetáculo; traduz em formas
concretas as relações dramáticas ima-
ginadas pelo Diretor Cinematográfico
e sugeridas pelo roteiro; define a cons-
trução plástico-emocional de cada cena
e de cada personagem dentro do contex-
to geral do espetáculo; verifica e elege as
locações; as texturas, a cor e os efeitos
visuais desejados, junto ao Diretor Cine-

390
A direção de arte: o corpo shívico das arte

matográfico e ao Diretor de Fotografia;


define e conceitua o espetáculo estabe-
lecendo as bases sob as quais trabalharão
o Cenógrafo, o Figurinista, o Maquiador,
o Técnico em Efeitos Especiais Cênicos,
os gráficos e os demais profissionais ne-
cessários supervisionando-os durante as
diversas fases de desenvolvimento do
projeto. (BRASIL, 1978).
A profissão ganhou um curso de bacharelado somente em
2010, na Universidade Federal de Goiás. Ao comentar sobre
o curso, a Emac-UFG ([2010]) explica da seguinte forma a
função do diretor de arte:
O Diretor de Arte em Artes Cênicas é
responsável pela unidade estética dos
elementos visuais de espetáculos de
Teatro, Dança, Circo ou Performance. Ou
seja, ao lado do encenador, o Diretor de
Arte colabora para que os elementos,
como figurino, cenário, maquiagem e
iluminação, apresentem coerência com
as ideias e valores a serem apresentados
ao público.
Como o bacharelado em Direção de Arte é um curso re-
cente, esse profissional ainda está galgando espaço nas ar-
tes, o que não lhe impede uma demarcação profissional no
mundo artístico. Além disso, há pouca bibliografia nessa área,
fazendo-se imperativo um desbravamento de território, mes-
mo que de forma lenta, cortando-se um galho por vez. É pos-
sível que, nesse cenário, o diretor de arte encontre um futuro
promissor na carreira e descubra novos lugares, mas, ainda
assim, talvez ele nunca consiga se situar.
Inicialmente o curso de Direção de Arte se prende ao
espetáculo e ao encenador, embora instigue a multidiscipli-

391
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

naridade. Essa restrição, entretanto, não impede que, com o


tempo e a variedade de disciplinas estudadas, o bacharel pos-
sa enveredar-se por outras vertentes artísticas que também
envolvam as visualidades da cena. Afinal, como pontuou Be-
nedito Ferreira Neto (2019, p. 3), “o diretor de arte exercita
a autonomia da imaginação, vive a projeção da descoberta”.
Pode parecer tranquilo assumir esse papel profissional
multidisciplinar e sem locus definido, porém atuar em proje-
tos de direção artística ainda não é tão simples. No mercado,
além dos estigmas de artesania, sente-se que, por um lado,
há algumas pessoas das artes da cena que consideram os di-
retores de arte muito “visuais” para a área, e, por outro lado,
há aqueles que os consideram muito “cênicos” para as artes
visuais. O que não é de se admirar, como relata Alexandre
Nunes (2019, p. 124, grifo do autor):
Esse extenso campo da direção de arte
foi o que mais obteve resistência na
afirmação de sua autonomia. Comu-
mente associada a ofícios menos no-
bres, como os de marcenaria e costura,
[a direção de arte] atravessou a virada
do século ainda tendo sua autonomia
questionada, sob a égide de uma subor-
dinação, seja à literatura, seja à direção,
seja à atuação, seja a tudo isso ao mes-
mo tempo. Parece lógico que qualquer
um desses campos possua interdepen-
dência, no contexto de uma arte que
se funda no encontro de saberes, mas
é curioso que a direção de arte seja a
que mais encontrou dificuldades na
afirmação de seu poder de fala.
Nunes explicita que, com a dificuldade de afirmar o poder
de fala, aparece também a dificuldade na tratativa de posicio-

392
A direção de arte: o corpo shívico das arte

namento profissional, além, é claro, do constante anseio por


uma desassociação dos ofícios artesanais. Quando se contex-
tualiza o surgimento da necessidade de criação do curso, ain-
da se depara com os entraves de atuação, principalmente no
que tange à crescente popularização dos cursos técnicos de
produção cênica,3 que parecem tentar devolver essa função à
tecnicidade da cena. Ou seja, os bacharéis precisam se impor
como atuantes que realizam pesquisas acadêmicas. A criação
do bacharelado em Direção de Arte atende a uma deman-
da artística e acadêmica para esta nova profissão, que deverá
abranger as pesquisas na área e a aplicação de signos nas artes
cênicas contemporâneas.
Ainda existe o fato de que o diretor de arte compartilha
o nome da profissão com os diretores de arte da publicidade.
E, embora haja diferenças entre ambos, eles realmente não
diferem muito em sua essência de seres criativos, por meio
da qual conseguem estabelecer-se no mercado de maneira
artística. Essa estabilidade, porém, não ocorre sem que eles
enfrentem certos preconceitos comuns e sem que consigam
acumular muita informação e cultura. Como diria Newton
Cesar (2011, p. 17),
informação e cultura são característi-
cas do “ser” criativo. Todos os criativos
desse planeta concordam. Diretores de
arte e redatores precisam se informar
sobre tudo. Ler livros, muitos. Revistas.

3 Nessa atividade, o profissional executa e coordena a produção de


espetáculos cênicos (teatro, circo, dança, formas animadas e audiovisual).
Atua na pré-produção e finalização do espetáculo. Planeja e executa as
ações necessárias à realização deste. Responsabiliza-se pela logística do
espetáculo cênico. Gerencia recursos disponíveis. Divulga e promove
o espetáculo. Utiliza tecnologias para trabalhar linguagens e propostas
estéticas das artes cênicas. Avalia e emite parecer técnico em sua área de
formação (BRASIL, 2016).

393
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Jornais. Ir ao teatro pelo menos de vez


em quando. Ouvir música, todas. Visitar
museus. Vá sem preconceito, deixe de
lado o fato de você achar um programa
chato. Viajar. Conhecer culturas. Tudo,
exatamente tudo o que você imaginar é
importante.
O ser criativo deve mostrar-se um ser dinâmico, infor-
mando-se não somente em referências bibliográficas, mas
em diferentes fontes de saber, e observando as manifestações
presentes nas várias culturas, sem discriminação. Deve aten-
tar-se a toda forma de inspiração que possa ser suscitada por
essas experiências. Sem qualquer tipo de preconceito. Paulo
Damasceno (2018, p. 14) também explica que
o acesso a essas memórias, a toda essa
bagagem de registros, pode ser de extre-
ma utilidade se [elas forem] adaptadas
ao processo de criação para direção de
arte. [...] o processo de criação deve fa-
zer parte de um planejamento preciso,
não se baseando apenas na intuição e na
sensibilidade do criador.
Para uma criação profissional rica em signos e de signifi-
cativa experiência para o receptor, é de suma importância um
planejamento preciso, racional, que não se embase somente
no plano intuitivo ou na inspiração. No processo de pesquisa,
há que se explorar a intuição de maneira consciente, mes-
clando conhecimento, interpretação, emoção, técnica e exe-
quibilidade.
E, mesmo que surjam questionamentos orgânicos, não so-
mente sobre o caráter apátrida da Direção de Arte, imersa
em mundo amplo de vertentes artísticas, mas também sobre
a multidisciplinaridade prevista pelo curso, podemos reco-

394
A direção de arte: o corpo shívico das arte

nhecer tanto a problemática de sua localização entre as artes,


quanto a beleza de sua peculiaridade.

Direção de arte: muito cênica para as artes visuais e


muito visual para as artes da cena

As questões levantadas na Introdução poderão, ou não,


ser posteriormente respondidas, e talvez somente ao longo de
vários anos de atuação e experiência. E com certeza surgirão,
constantemente, diversas outras situações relativas ao diretor
de arte e à necessidade de lembrar sua existência e sua im-
portância. Entre elas estaria a relevância do posicionamento
natural desse sujeito como artista-pesquisador, algo que, ape-
sar de ainda gerar discussões no meio artístico, é intrínseco à
função do diretor de arte e à sua forma de trabalhar.
Recorrendo à historicidade, trazemos à cena o termo Ge-
samtkunstwerk (obra de arte total), apresentado por Richard
Wagner, ainda no século XIX, em referência à ópera, que con-
jugava múltiplas vertentes artísticas: artes plásticas, teatro,
dança, música e canto. Tanto que o termo, ainda utilizado,
principalmente na Alemanha, foi ampliado para designar a
miscigenação das diferentes expressões artísticas. Sendo as-
sim, os diretores de arte não seriam potenciais operadores
dessa obra de arte total na contemporaneidade? Afinal, nos
projetos criativos, eles trabalham praticamente com todas
essas vertentes.
Ao se projetar uma direção de arte, cria-se uma obra total
e, para que o projeto tome forma, recorre-se à pesquisa, que é
inerente ao trabalho de criação de signos em um espetáculo
(ou audiovisual). Talvez se possa falar também de “pesquisa
total”, pois investigam-se referências visuais, técnicas de pin-

395
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tura e de escultura, paleta de cores, materiais, desenhos de


figurino e seus materiais, cenografias com seus props e dese-
nhos técnicos, além de objetos cênicos, contextualização his-
tórica, sonoplastia e rider técnico, iluminação com seus mapas
e riders técnicos, maquiagem e postiços e o que mais possa
surgir de acordo com a proposta.
A geração de todos esses signos numerados acima preci-
sa estar em consonância com o espaço e o público para pro-
porcionar a verdadeira fluência de ações e emoções consen-
sualmente coordenadas, sem contar os outros detalhes que
surgem especificamente em cada projeto. Afinal, o figurino
não pode atrapalhar a atuação do ator, nem a cenografia pode
oferecer risco, muito menos prejudicar a sonoridade. A ilu-
minação não pode alterar as cores dos objetos cênicos, nem
destoar da paleta, nem ousar representar algo não intencio-
nal. Gianni Ratto, em seu Antitratado da cenografia, explica o
trabalho de um diretor de arte (ou de um cenógrafo) ao pro-
jetar uma cenografia:
Quando sentamos na frente da pranche-
ta, a tendência instintiva é a de organi-
zar um bom desenho, algo formalmente
satisfatório, como se o resultado final
de nosso trabalho devesse corresponder
ao de um artista plástico: essa forma de
iniciar ou conduzir nosso trabalho cons-
titui-se num equívoco. O cenógrafo não
é um artista plástico, da mesma forma
que o projetista de um carro de Fórmu-
la 1 não é um corredor: o projetista deve
saber tudo do corredor e deve fornecer,
para a execução do projeto, todas as con-
dições para que o piloto possa se reali-
zar, e com segurança, em sua atuação.
(RATTO, 1999, p. 61).

396
A direção de arte: o corpo shívico das arte

Apesar de não mencionar particularmente o diretor de


arte, o autor exemplifica bem a forma de trabalho desse pro-
fissional, que utiliza dos métodos e técnicas criativas de um
artista plástico mesmo não o sendo. Na verdade, ele está ci-
tando o cenógrafo, comparando seu projeto de trabalho ao
de um projetista de automóvel da Fórmula 1, mas poderia
utilizar nessa comparação qualquer projeto completo de di-
reção de arte, já que, em todos eles, há pranchas de cenogra-
fia, de figurino, de caracterização do ator, de mapa de ilumi-
nação cênica, entre outras. Ou seja, tecnicamente é preciso
conhecer as artes visuais, cênicas e sonoras para fornecer a
mais segura e completa realização cênica possível.
Ao ler Edélcio Mostaço (2006, p. 121), notamos que, certa-
mente por essa abrangência da direção de arte, ela se tornou
uma necessidade das artes da cena:
Recusando os estatutos hegemônicos
anteriores, ciente da necessidade de
uma permanente atualização e inserção
em contextos diversos, além de uma
adaptação às condições concretas nas
quais vige a multifacetada prática con-
temporânea das artes cênicas, uma nova
teatrologia necessitou ser articulada.
Menos centrada, menos totalizadora,
mais inquieta e aberta aos reclamos do
multiculturalismo, ela se consubstan-
ciou como um corpo Shívico dotado de
quatro braços investigativos: a semióti-
ca, a história, a sociologia e a antropo-
logia. Ou seja, quatro vozes para uma
escuta, a recepção.
É possível inferir que a profissão do diretor de arte teria,
sim, nascido dos anseios dessa nova teatrologia citada pelo
autor, dessa nova articulação, a multifacetada prática con-

397
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

temporânea das artes da cena. A comparação à figura indiana


do deus Shiva (“corpo shívico dotado de quatro braços investi-
gativos”) realmente faz sentido quando pensamos na atuação
de um diretor de arte. Afinal, sempre que inicia um projeto,
ele pesquisa a historicidade, a realidade presente na época
em que se passa a história, ou cria um não lugar (podendo
este até ser atemporal) que melhor represente semioticamen-
te o que se almeja e, de certa forma, os costumes e a cultura
da região indicada como palco da história. Tudo sem precisar
manter uma relação direta com as rubricas, que, antigamente,
direcionavam os trabalhos.

Direção de arte: o corpo shívico das artes

A relação feita por Edélcio Mostaço entre a nova teatro-


logia e a figura de Shiva, um dos deuses do hinduísmo, re-
presenta grande profundidade semiótica, visto que esse deus
é considerado em virtude de seu grande poder de aniquilar
e regenerar a energia vital. Shiva é conhecido como a força
destruidora do universo, porém, na mitologia hinduísta, a
destruição não é negativa, já que representa a capacidade de
provocar transformações depois do caos.
Ousamos comparar essa figura mitológica também com a
figura do diretor de arte, que, de certa forma, desconstrói ima-
gens, textos e signos, podendo reconstruí-los com diferentes
significados “regenerados”. Como resultado de pesquisas
embasadas naqueles quatro braços investigativos (a semióti-
ca, a história, a sociologia e a antropologia), ele tece cone-
xões diversas, acrescentando as visualidades. Ao utilizar a
subsunção/adesão a outras ciências, a direção de arte torna-
-se o fio condutor multifacetado que desafia o antigo texto-

398
A direção de arte: o corpo shívico das arte

centrismo. E, mesmo que o autor não tenha empregado essa


nomenclatura, indicou que, nessa nova etapa do teatro, a
“subsunção” a todos esses estudos é de suma importância
para a recepção dos signos teatrais.
São diversas as representações de Shiva, tanto pela exis-
tência de inúmeras maneiras de se contar sua história, quanto
pelos múltiplos símbolos associados à sua figura. Ele é repre-
sentado como Mahadeva (deus supremo), Shankara (o que
medita) e Shambu (o que traz alegria ao mundo). Na pintu-
ra e na escultura, sua imagem, muitas vezes, aparece branca,
simbolizando as cinzas de cadáveres que mancharam seu cor-
po; ou com o pescoço azul, pelo fato de ele ter engolido um
veneno azul para salvar a humanidade; ou ainda com cabelos
longos e três olhos, sendo que o terceiro lhe confere, metafo-
ricamente, a visão interior. Em uma das mãos, ele carrega um
tambor que anuncia a criação, na outra, o fogo que representa
a renovação. Já a mão estendida representa sua força superior,
e o pé suspenso, a liberdade.
Comparando essas inúmeras significações da figura hindu
com a existência de todas as dramaturgias e estudos semióti-
cos possíveis, pode-se considerar o diretor de arte como um
instrumento analítico capaz de traduzir os anseios do texto.
Nessa perspectiva, ele se torna um criador de diferentes sen-
tidos em performances ou instalações, ampliando ainda mais
a noção da dramaturgia, na tentativa de inseri-la no plano
da recepção. Afinal, como disse Lucia Santaella (2007, p. 9,
grifo da autora), “é no homem e pelo homem que se opera o
processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido
pelos objetos do mundo) em signos ou linguagens (produtos
da consciência).” Gianni Ratto (1999, p. 19) completa essa
ideia afirmando:

399
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Acho que o trabalho do homem de


teatro – seja diretor, cenógrafo, figuri-
nista, iluminador, sonoplasta, etc. – tem
afinidade com o dos alquimistas que
deixavam decantar por longo tempo
infusões, óleos e compostos para que se
transformassem em filtros mágicos: essa
é a tarefa do teatro, decantar as idéias
para que, quando propostas, transfor-
mem quem as recebe.
As duas citações mostram que o diretor de arte, ao con-
ceber as visualidades da cena com riqueza de signos, assume
a criação desses signos alterando significados em diferentes
linguagens da cena, num processo semelhante ao descrito
por Gianni Ratto. A comparação com o alquimista é justa
se pensarmos que este, ao combinar elementos de diversas
áreas (química, biologia, semiótica, misticismo, espiritualis-
mo, arte, antropologia, astrologia, filosofia etc.), na verdade,
está buscando algo maior – a transmutação espiritual. É justa
se pensarmos também que o diretor de arte é um criador de
signos híbridos. Ele utiliza técnicas e métodos das artes plás-
ticas, além de diversificadas tecnologias, para criar as visuali-
dades, aprofundando os significados das cenas, com ou sem a
parceria de encenadores. E mais: para compor trilhas sonoras,
performances, instalações, videoartes e expografias, posicionan-
do-se como um artista multidisciplinar e cheio de possibilida-
des. O próprio teatro tem essa amplitude como característica,
conforme já diziam Carreira e Cabral (2006, p. 10):
Quaisquer que sejam os pontos de parti-
da da pesquisa, o horizonte leva sempre
ao espetáculo. A palavra teatro traz em
si tantas possibilidades que aquilo que
parece a delimitação de um objeto de
pesquisa claro, nada mais é que a aber-
tura de um leque de proposições.

400
A direção de arte: o corpo shívico das arte

A professora Maria Ângela Machado, citando Ostrower,


enfatiza que a criação artística está fundada na relação do
ser humano com o mundo, visto que, através de suas expe-
riências, o homem compreende, elabora, ordena e expressa a
maneira pela qual entende o universo ao seu redor. Mais do
que simplesmente criar, o artista experimenta um processo
de conhecimento e até mesmo de autoconhecimento, enxer-
gando-se como ser criativo e social.
A própria relação do homem com o
mundo, por exemplo, pode ser entendi-
da como fruto de processos criativos, na
medida em que o homem dá forma às
suas experiências e, para tanto, necessi-
ta compreender, elaborar, ordenar e ex-
pressar essas experiências [...]. Trata-se de
um processo de conhecimento, do qual a
criação artística participa como uma de
suas formas de expressão. (OSTROWER
apud MACHADO, 2006, p. 93-94).
A utilização metafórica da figura de Shiva, em todas as
suas significações mitológicas, presta-se a representar a di-
reção de arte com as muitas intempéries do ofício e a expres-
sar a necessidade de ressignificação de visualidades, objetos
e dramaturgias, para criar novas possibilidades nas artes da
cena. O emprego dessa metáfora é uma forma interessante de
demonstrar as possibilidades conhecidas (e também as ain-
da desconhecidas) que a profissão proporciona no âmbito da
criação. O grande problema é que o diretor de arte, infeliz-
mente, ainda trabalha com escassez de recursos financeiros,
precisando adaptar seus projetos por intermédio da criativi-
dade, desconstrução, reciclagem e ressignificação de objetos
dramatúrgicos, na tratativa de apresentar a maior profundi-
dade semiótica possível para a cena, dentro do que foi pro-
posto para a sua função.

401
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Conclusão

Como inicialmente explicado, não há aqui o intento de


responder aos questionamentos levantados desde a intro-
dução do texto. São apenas pressupostos aflorados diante de
algumas situações vividas durante os poucos anos de expe-
riência na área, provocadas, talvez, pelo desconhecimento ou
mesmo pela indefinição acerca do posicionamento do diretor
de arte no mercado de trabalho. Trata-se, porém, de situações
que poderão ser resolvidas ao longo dos anos de carreira exer-
cida e através de discussões acadêmicas e da produção de bi-
bliografias na área.
Isso dependerá, em parte, dos profissionais que vêm se
formando em Direção de Arte desde 2010, de seu engaja-
mento em pesquisas e na publicação de seus experimentos
e experiências. Assim os iniciantes na área terão inspirações
profissionais e materiais para embasar suas produções. Mais
ainda, terão a segurança de pertencer a um coletivo de artistas
criadores e pesquisadores. O intuito do texto foi precisamen-
te demonstrar as dúvidas e inseguranças dos profissionais da
cena e das visualidades, que, muitas vezes, não conseguem sa-
ná-las por falta de pesquisas mais aprofundadas na área, por
falta de analogias, enfim, de subsunções a escritos anteriores
à denominação profissional em questão.
A figura de Shiva metaforicamente se apresentou como
uma visualidade capaz de simbolizar, ao mesmo tempo, uma
prévia do surgimento da profissão e os braços investigativos
do diretor de arte. Afinal, além de possuir força mitológica e
semiótica, ele carrega um misticismo que inspira uma gama
de possibilidades criativas, incluindo desde a representação
das forças da vida e da morte, até símbolos que expressam a
reconciliação entre religião, poesia, dança e ciência. Assim, a

402
A direção de arte: o corpo shívico das arte

aproximação entre essa figura e o diretor de arte traria a ma-


terialização dos anseios da nova teatrologia citada por Mos-
taço, marcada pela articulação multifacetada e contemporâ-
nea das artes da cena.
A falta de embasamento para um estudo mais consistente
da área analisada e da atuação no mercado de trabalho causa
nos profissionais pioneiros um desamparo coletivo, mas, pa-
ralelamente, conduz à busca de novos caminhos, que poderão
ser adotados a longo prazo. E, mesmo a curto prazo, algumas
ações podem ser colocadas em prática, como a autodefinição
profissional e a delimitação do lugar de fala. Trata-se de me-
didas para valorizar a carreira do diretor de arte, (re)lembrar
o seu potencial criativo e, sobretudo, demarcar sua área de
atuação para que outras ocupações deixem de assumir essa
função nas artes cênicas e passem a contratar os diretores de
arte capacitados.

Referências

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Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, que dispõe sobre as profissões
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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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A direção de arte: o corpo shívico das arte

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405
Antígona, uma poética política:
ação trágica e sentido dionisíaco

Renata Cesar Torres1

Resumo: Este trabalho aborda a tragédia Antígona, de


Sófocles, em suas diferenças e peculiaridades, na razão e na
ação política e no seu sentido trágico e dionisíaco. Antígona
revela a fragilidade da ação individual e do poder público
nas relações de poder e nas complexidades das dicotomias
humanas. O poder dionisíaco do trágico em Antígona se en-
contra na finalidade da ação, na desmistificação da razão e
nas potencialidades das imagens metafóricas e poéticas.
Palavras-chave: política; poética; ação trágica; sentido
dionisíaco.

Antigone, a political poetics: tragic action and


dionisiac sense

Abstract: This work addresses the Antigone tragedy in its


differences and peculiarities, in reason and political action
and in its tragic dionysian sense. Antigone reveals the fragili-
ty of individual action and public power in power relations
and in the complexities of human dichotomies. The diony-
sian power of the tragic in Antigone is found in the purpose
of action, in demystifying reason and in the potential of
metaphorical and poetic images.
Keywords: politics; poetics; tragic action; dionysian sense.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Emac-


UFG. Possui graduação em História e especialização em História Cultural
pela UFG.
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

No presente texto, proponho repensar a tragédia Antígona,


de Sófocles, com um olhar sobre as ações política e poéti-
ca, que incluem tanto a ação política de poder do Estado
quanto as ações e relações de poder individuais. Dicotomias
como democracia e tirania, povo e detentores do poder, novo
e velho, homem e mulher e vida e morte são elementos fun-
damentais para o enredo de Antígona. Sob esta visão, procuro
compreender os aspectos das razões (no sentido da boa de-
liberação) presentes no discurso ético e na conduta dos per-
sonagens; perceber Antígona, em seu sentido trágico, como
fonte poética e como meio de conhecimento na sua comple-
xidade de significados; entender a condição do trágico como
construção política do enredo que se fundamenta nos diálo-
gos racionais dos personagens e no sentido poético de meta-
morfose e transformação dionisíaca.
Um dos sentidos da ação trágica para o espectador está
na capacidade que o homem tem de se refazer por meio da
compreensão sobre o engano dos heróis quanto à racionali-
dade e invisibilidade dos fatos e sobre as desmedidas de suas
ações; mais ainda, está principalmente em sua capacidade de
se recompor através da sabedoria poética da constante busca
de satisfação da vida por meio das ilusões, dos sonhos e da
arte. A arte trágica grega é para o espectador não somente a
sabedoria e o entendimento racional do discurso trágico, mas
também o alimento poético e artístico para a vida.
Como poética, a arte trágica é ao mesmo
tempo realisticamente ilusionista e cria-
tivamente destruidora de suas próprias
ilusões. [Ela transforma] o horror do
vazio primordial em belas imagens de
vidas em que se baseia a cultura huma-
na e prepara o terreno para a construção
de novos sonhos através dos quais novas

407
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

necessidades humanas podem ser satis-


feitas. (WHITE, 1992, p. 346).
White menciona uma relação entre a razão trágica e o
“horror do vazio primordial”, e Paul Ricoeur (2014) reconhe-
ce nas dicotomias presentes em Antígona o vazio existente
nas relações das diferenças básicas. Se identificarmos esses
pressupostos como complexidades próprias e primordiais
dos indivíduos em comunidade, poderemos ver o trágico de
Antígona como a tragédia das relações humanas sob o desafio
da sabedoria da razão. Martha Nussbaum (2009) admite a
importância das tragédias gregas nos discursos ético e políti-
co e, principalmente, sua utilidade como instrumento para se
pensar o ser humano em suas potencialidades, complexida-
des e fragilidades.
A tragédia Antígona apresenta uma diferença em relação a
todas as outras tragédias de Sófocles. Podemos pensar que a
ação trágica dessa obra resulta da ação e da razão dos heróis
em face de um acontecimento inesperado e, ainda, que ela se
revela na falta de visão dos heróis sobre os outros persona-
gens. Os heróis têm, cada qual, uma razão e convicção pessoal
para efetuar suas ações. Abrangendo os conceitos de sabedo-
ria prática e invisibilidade da razão, Martha Nussbaum nos
oferece uma perspectiva sobre a ação da razão trágica dos
heróis. Ela reconstrói, nos detalhes metafóricos do enredo, a
falta de visão dos personagens e o que isto implica para toda
a ação trágica.
Antígona é uma peça sobre a razão prá-
tica e as maneiras como a razão ordena
ou vê o mundo. É incomumente repleta
de termos que significam deliberação,
raciocínio, conhecimento e visão. [...] É
também uma peça sobre ensinamentos
e aprendizado, sobre a mudança pes-

408
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

soal de visão do mundo, sobre a perda


do domínio daquilo que se afigurava
como verdade segura e o aprendizado
de uma sabedoria mais etérea e fugidia.
(NUSSBAUM, 2009, p. 44).
Antígona é a continuidade da tragédia familiar que começa
com Édipo Rei e termina com Édipo em Colono. Nela podemos
identificar dois heróis, Antígona e Creonte. O enredo começa
com a fala de Antígona à sua irmã Ismena, ao saber que seu
irmão, Polinices, morto em disputa com o outro irmão, Etéo-
cles, não pôde ser sepultado nem ter as honras reservadas aos
mortos, porque Creonte assim o determinara. Creonte, ao se
tornar governante da cidade de Tebas, depois da morte dos
dois filhos homens de Édipo, promulga um édito proibindo o
sepultamento de um deles, Polinices. Aquele que desrespei-
tasse o édito seria severamente punido, já que Polinices era
considerado por Creonte como inimigo de Tebas, por tentar
atear fogo a esta cidade.
Sua irmã Antígona contraria o édito de Creonte e faz, ela
mesma, o sepultamento do irmão. Fica bem claro, na peça,
que o ato de sepultar e fazer honras aos mortos é sagrado,
e, portanto, a ação de Antígona pode ser considerada uma
ação de amor e de justiça, tanto ao irmão morto, quanto à
mãe, Jocasta, já falecida no mito que dá início à maldição dos
Labdácidas. A razão de Creonte não tem outro fim senão o
poder e a autoridade que um governante detém sobre as de-
terminações e o comando da cidade. Entretanto, sua intenção
é de bem governar e ser justo com aqueles que vivem para a
cidade de Tebas e em conformidade com ela.
Creonte mandou prender Antígona numa caverna até sua
morte: para ele, o desrespeito de Antígona era gravíssimo, e
tinha de ser punido severamente. Ele tinha a convicção de es-

409
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tar fazendo o certo, aquilo que um governante, por dedicação


ao seu poder, deve fazer. Mas sua ação se revela, no decorrer
da peça, como uma ação autoritária e injusta. Em nenhum
instante, Creonte leva em consideração os direitos e as leis
originárias e de costumes, pertencentes ao povo, e o respeito
aos familiares com quem ele próprio tem parentesco: ele é
irmão de Jocasta, mãe de Antígona, portanto, é tio de Antígo-
na. Sua ação autoritária é um desrespeito aos sentimentos de
seu próprio filho, Hémon, que é noivo de Antígona. O fato
de ele exercer o poder ignorando as razões e os pensamentos
dos que lhe são próximos vem à tona em vários momentos,
como, por exemplo, nesta fala de Hémon: “Não há Estado al-
gum que seja pertença de um só homem [...]. Mandarias mui-
to bem sozinho numa terra que fosse deserta” (SÓFOCLES,
2007, p. 83).
A atitude arbitrária de Creonte reporta-nos à Poética de
Aristóteles, segundo o qual os heróis trágicos não são ho-
mens extremamente maus, mas homens bons que cometem
um erro grave porque lhes falta a boa razão, a boa delibe-
ração. Essa falha de caráter, ou “hamartia”, só é constatada em
sua ação durante um acontecimento inesperado ou novo. A
real falha trágica de Creonte se efetiva na sua resistência em
não querer entender as razões dos que lhe são próximos. Ao
saber que a ação de sepultar Polinices fora praticada por sua
sobrinha Antígona, com certeza, ele teria motivos suficientes
para voltar atrás em seu édito, porém se recusou a fazê-lo. Sua
relutância em perceber as outras razões, mostrando-se insen-
sível para com os parentes, é a sua maior falha. A hamartia
se configura em seu discurso racional: em nenhuma de suas
falas, em nenhum momento, ele considera o afeto, a empatia,
o amor. Creonte só reconhece a ação que se deve ter com a
cidade: “E quem quer que tenha mais amor a outrem do que à

410
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

sua própria pátria, por esse não tenho a menor consideração”


(SÓFOCLES, 2007, p. 55). Mas, apesar desse ufanismo, Creon-
te revela uma visão empobrecida da cidade, como afirma
Nussbaum (2009, p. 52):
Uma cidade é um todo complexo, com-
posto de indivíduos e famílias, com
todas as preocupações discrepantes,
confusas e às vezes conflitantes que os
indivíduos e as famílias têm, incluin-
do suas práticas religiosas, sua preocu-
pação com o funeral de parente. Um
plano que faz da cidade o supremo bem
não pode negar tão facilmente o valor
intrínseco dos bens religiosos [do povo
que a compõe]. Somente ter uma con-
cepção empobrecida da cidade pode ter
a simplicidade que Creonte exige.
Para Creonte, o fato de Antígona ser mulher a impedia de
ter qualquer ação e decisão individual que fosse de razão pú-
blica e política. Podemos perceber nas falas dele a ideia da su-
perioridade masculina sobre a mulher em tudo, e, principal-
mente, nas questões que envolviam o poder da ação pública:
É ela que será um homem e não eu, se
lhe deixo esta vitória impunemente.
(SÓFOCLES, 2007, p. 68).
Enquanto eu viver, não será uma mu-
lher quem dá ordens. (p. 71).
A partir deste momento, têm de ser mu-
lheres [Ismena e Antígona], em vez de
andarem livremente. (p. 76).
Deste modo se devem conservar as de-
terminações e de forma alguma deixá-
-las aniquilar por uma mulher. (p. 80).

411
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Ó caráter vil! Vales menos que uma mu-


lher! (p. 84).
Antígona, assim como Creonte, também não consegue
perceber a visão do outro, a razão dos que vivem próximos a
ela, nem a de sua irmã Ismena, nem a do seu noivo, Hémon.
Ela não se importa com os sentimentos dos que estão vivos,
pensa somente na justiça aos seus familiares mortos e em sua
convicção sobre a justiça dos deuses, como se pode notar nes-
ta sua fala à Creonte:
Eu entendi que os teus éditos não ti-
nham tal poder, que um mortal pudes-
se sobrelevar os preceitos, não escritos,
mas imutáveis dos deuses. Porque esses
não são de agora, nem de ontem, mas
vigoram sempre, e ninguém sabe quan-
do surgiram. (p. 67).
Entretanto, diferente da ação de Creonte, a de Antígona
não consiste num desvio de caráter, mas numa reação por
discordância da visão autoritária do tio. Antígona agiu contra
uma medida violenta, e sua ação não desrespeita os demais
cidadãos, nem a cidade, nem os deuses; só atinge a si mesma
e seus familiares. É o que atesta Nussbaum (2009, p. 57):
Primeiramente, no mundo da peça,
parece claro que a escolha efetiva de
Antígona é preferível à de Creonte. O
desrespeito aos valores cívicos implica-
do no ato de providenciar um funeral
pio ao cadáver de um inimigo é muito
menos radical que a violação envolvida
no ato de Creonte. Antígona demons-
tra um envolvimento mais profundo
da comunidade e seus valores do que
Creonte quando [ela] argumenta que a
obrigação de enterrar os mortos é uma

412
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

lei de costume que não pode ser pos-


ta de lado pelo decreto de governante
particular. [...] Ademais, a busca de An-
tígona pela virtude é somente dela. Não
envolve ninguém mais e não a compro-
mete a injuriar nenhuma outra pessoa.
Governo é governo de alguma coisa;
as pias ações de Antígona se executam
sozinhas, em razão de um comprome-
timento solitário. Ela pode estar estra-
nhamente distante do mundo; mas não
comete nenhuma violência contra ele.
A ação do coro, que também pode ser tomado como per-
sonagem, merece igualmente ser destacada. Uma singular
diferença o separa dos outros personagens: o coro não repre-
senta, porque não atua no diálogo, não tem nome próprio,
ele é a representação da imagem do povo e, ao mesmo tem-
po, uma visão sobre o trágico. Em sua ode, na sensibilidade
poética dionisíaca, ele detecta um sentido para revelar seu
avesso. É o coro que faz o convite final para o esquecimento
da dor trágica e para a catarse, para dar espaço à sensibilidade
e alegria em Dioniso.
Uma visão poética e significativa sobre o ser humano e
sobre o trágico se encontra na segunda ode do coro em An-
tígona, na qual o ser humano é descrito como um ser racional,
produtivo, ativo e de vontades, mas, simultaneamente, como
um ser vulnerável. Paul Ricoeur (2014, p. 62) interpreta o
sentido trágico da primeira frase da ode sobre o homem con-
siderando-o maravilhoso e terrível a um só tempo: “Há mui-
tas coisas deinón, mas nenhuma delas é mais deinón que o ser
humano”. A palavra grega deinón possui vários significados,
como maravilhoso, formidável e, também, terrível, tenebroso.

413
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O ser humano, que se afigura excitante


e admirável, pode revelar-se ao mesmo
tempo monstruoso em sua ambição de
simplificar e controlar o mundo. A con-
tingência, um objeto de terror e aversão,
pode acabar sendo [também] admirá-
vel, componente daquilo que faz a vida
humana bela e excitante. A palavra é,
assim, bem adequada para ser central
em um drama que investigará a relação
entre beleza e desarmonia, entre valor
e exposição, excelência e surpresa. Po-
demos ver a peça como investigação do
deinón em toda a sua ilusiva multilatera-
lidade. (NUSSBAUM, 2009, p. 45).
Depois da primeira frase da ode, o coro continua o seu
canto descrevendo a grandiosidade das ações humanas, qua-
lificando o homem como um ser criador, que elabora, que
age, que consegue grandes feitos no trabalho, nos desbrava-
mentos marítimos e no enfrentamento dos lugares ermos, e
que domina os animais mais selvagens. Na segunda estrofe,
destaca-se o poder do ser humano no pensamento, na fala,
na criação de leis, normas e regimentos e na organização das
cidades. Entretanto, afirma-se que, do Hades, o homem não
consegue escapar: apesar de toda a sua grandiosidade, ele
pode, por um único ato errado, ser severamente punido, por-
que a justiça dos deuses é implacável. Além disso, é detido
por limitações, não sendo capaz de determinar ou prever os
resultados de suas ações, que podem desencadear outras sem
que haja controle algum sobre isso.
Tanto a ação de Creonte como a de Antígona foram ra-
dicais e irreversíveis, e desencadearam várias tragédias: a de
Antígona, o seu próprio fim; a de Creonte, a morte de seu
filho Hémon e de sua esposa Eurídice. Toda ação, além de ir-

414
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

reversível, tem um começo, mas não tem fim. A ação pode se


estender e gerar outras ações, que, quando desastrosas, confli-
tantes, produzem uma cadeia de ações destrutivas.
O motivo pelo qual jamais podemos
prever com certeza o resultado e o
fim de qualquer ação é simplesmente
[o fato] de que a ação não tem fim. O pro-
cesso de um único ato pode perdurar, li-
teralmente, por todos os tempos até que
a própria humanidade tenha chegado
ao fim. Que os atos, mais que qualquer
outro produto humano, tenham tão
grande capacidade de perdurar constitui-
ria motivo de orgulho para os homens se
eles fossem capazes de suportar seu ônus,
o ônus da irreversibilidade e da impre-
visibilidade, do qual o processo da ação
extrai sua própria força. (ARENDT,
2014, p. 291).
Antígona é a confirmação daquilo que o coro revela sobre
as razões e ações humanas. Os heróis possuem, cada um, uma
razão que os faz acreditar na consistência de seus atos. Es-
tas mesmas razões são percebidas pelos demais personagens
como falta da visão e da ética. Assim, eles tentam fazer que os
heróis percebam a importância de considerar e reconhecer as
diferentes razões. Entretanto, em toda tragédia e também em
Antígona, esse reconhecimento só se dá com a decadência do
herói, e nisto consiste o trágico. Em todas as tragédias gregas,
os heróis acreditam que seus atos são corretos, são de sabe-
doria e justiça. É claro que, se o herói não acreditasse estar
agindo de maneira correta, não teria o ímpeto de agir daquela
maneira. E sua ação ocorre justamente por uma única falha
do seu caráter. O modelo trágico constitui também esse en-
gano da razão de si, pela falta de visão.

415
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A tragédia Antígona enfatiza as dualidades, as diferenças


que aparecem nos personagens em suas relações uns com os
outros e em suas características próprias. Creonte represen-
ta o poder masculino, a racionalidade, a tirania. Antígona,
a razão na emoção, a juventude, a irreverência, o feminino,
o dionisíaco e, também, a vida e a morte, simultaneamente.
Hémon representa o novo, o amor, a vida, a morte, a justiça e
a razão afetiva. Ismena, o medo, a incerteza, o amor familiar.
Tirésias representa a visibilidade, a justiça e a religiosidade.
Ele é a metáfora do cego que vê: a visão da sabedoria da razão.
O coro é a representação do povo, da verdade, da diversidade,
do dionisíaco em sabedoria, em imagens poéticas.
O poder de Creonte é um poder político por excelência:
ele é um governante, tem o poder público nas mãos. Repre-
senta a falta de visão desse poder pelo exagero desmedido.
A cidade como espaço do poder é sua única razão de ação.
Ele tem como justiça os amigos da cidade; os que cometem
qualquer tipo de ação destrutiva contra a cidade são inimi-
gos. Para Creonte, qualquer feito contrário ao bem da cidade
deve ser punido rigorosamente. Ele não consegue enxergar
que a cidade não é só um corpo de funções institucionaliza-
das para os desmandos de um só homem. Ela é formada pelo
povo, pelo passado, por histórias, mitos, crenças, memórias
e razões coletivas. A cidade é um organismo vivo. Na visão
dos demais personagens e do coro, mesmo aquele a quem é
confiado o poder de liderança da cidade não pode querer agir
sem o respaldo da maioria. O poder não é somente dado, o
poder é construído. A complexidade da cidade está além do
querer de um governante. A cidade é algo que não pode ser
controlado na individualidade. No entanto, em virtude de
sua função, Creonte tem a sensação de poder controlá-la, sem
verificar razões nem pensar nas consequências. Ele é um he-

416
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

rói cheio de grandezas. Várias de suas falas revelam somente


evocações de poder, conforme se percebe na ênfase a expres-
sões como progresso, prosperidade, ganância, dinheiro, ami-
go, inimigo, bom e mau. Creonte confere amizade e bondade
apenas a quem respeita e protege a cidade.
Essa estreiteza de visão reflete-se em
sua apreciação de todas as virtudes. Só é
“bem” o que serve à cidade, “mal” o que
a prejudica; só é “justo” o bom cidadão,
e a justiça só rege a arte de governar e
ser governado. A “piedade”, virtude con-
siderável, restringe-se a vínculo cívico, e
os deuses são intimados a só honrarem
os cidadãos mortos pela pátria. É essa
visão empobrecida e simplificada de
sua própria cidade que leva Creonte à
perdição. (RICOEUR, 2014, p. 281).
O poder de Antígona é um poder dionisíaco, pois sua
ação afirmativa é uma tomada de poder, mesmo sendo uma
ação como reação de um fato. É uma ação impetuosa, ativa
e dionisíaca por sua especificidade em se contrapor ao que
é velho, gasto, antigo, injusto e autoritário. É de desmedida
e coragem de enfrentar um ato novo, apossando-se de uma
faculdade de poder que é sempre masculina. Antígona não
tem medo. E, em razão desta ousadia, terá como destino a
caverna, como Dioniso, deus marginal e afastado do Olimpo,
que vive encavernado na floresta. Mas a caverna dionisíaca
é alegre, nela há musicalidade, dança, festividade, enquanto
na caverna destinada à Antígona encontram-se a solidão e a
morte. Contudo, a heroína acredita na morte como mudança
e como superação.
A aceitação do novo, da mudança e das diferenças está
presente também no coro, que se aproxima de Dioniso pelo

417
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

sentido dionisíaco da alegria, da sabedoria sem dor e sem


desventura. Em muitos momentos da peça, o coro reflete so-
bre a ação dos heróis e reconhece quando uma razão deve ser
ponderada e sábia, e o quanto é dever de todos adquirir esta
ponderação, como se pode verificar nesta fala sobre Creonte e
Hémon: “Senhor, se ele dissertou com propriedade, é natural
que tu aprendas com ele, e tu, Hémon, com teu pai, por tua
vez; pois de ambas as partes se disseram palavras sensatas”
(SÓFOCLES, 2007, p. 81). Nesse discurso está a preocupação
com o respeito pelas diferenças entre as razões. Em outras
passagens, o coro indaga sobre a desmedida dos heróis como
ato de vaidade e rancor e como resultado do empobrecimento
da razão pela falta de visão. Depois das desgraças dos heróis,
ele reconhece o aprendizado e a sabedoria no acontecimento
que deu origem a elas. São essas visões que o aproximam de
Dioniso, porque, afinal, este não é um deus de racionalidades
herméticas; é o deus da multiplicidade de visões, das dife-
renças, da transformação, na alegria de se refazer. Dionisía-
co é o poder do homem na criatividade espontânea, na ação
pela vontade. Quando o espectador se junta na celebração da
festividade dionisíaca, está contribuindo para romper a des-
ventura e a decadência do herói afirmando a alegria.
Antígona revela um conflito existencial que sempre existi-
rá em toda sociedade e tem em si uma complexidade própria,
feita das dualidades inerentes a todas as culturas e tempos. O
velho tem resistência ao que é novo, e o novo tem a necessida-
de de superar o que é velho. Nestas diversidades se encontra a
relevância da mudança de pensamento. Os humanos são se-
res que vivem em comunidade, em sociedade, estabelecem re-
lações, constroem famílias, afetividades, regras e leis, determi-
nam o que é ético, criam condutas, institucionalizam os meios
de trabalho, as crenças, a educação e os governos. Também

418
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

são atraídos pelas coisas sobre as quais não se tem domínio: a


vulnerabilidade da vida, a morte, os deuses. Todas estas com-
plexidades de forças estão inseridas no enredo de Antígona
em forma de conflitos que geram necessidade de superação.
Estes conflitos tornam a peça sempre presente e atual. Paul
Ricoeur identifica a peculiaridade trágica de Antígona e apon-
ta a complexidade e atualidade da obra como meio de pensar
questões básicas da condição humana:
Se a tragédia Antígona ainda pode nos
ensinar, é porque o próprio conteúdo
do conflito – apesar do caráter perdido e
não repetível do fundo mítico de que ele
emerge e do ambiente festivo que cerca
a celebração do espetáculo – conservou
uma permanência indelével. A tragédia
Antígona toca naquilo que, na esteira
de Steiner, pode ser chamado de fun-
do agonístico da provação humana, em
que se defrontam interminavelmente,
homem e mulher, velhice e juventude,
sociedade e indivíduo, vivos e mortos,
homens e divindades. O autoconheci-
mento se dá à custa do duro aprendiza-
do adquirido durante uma longa viagem
através desses conflitos persistentes,
cuja universalidade é inseparável de
sua localização insuperável de cada vez.
(RICOEUR, 2014, p. 279-280).
Na peça, estes conflitos têm como resultado o pensamento
e o entendimento da boa deliberação. A sabedoria da razão,
o reconhecimento da necessidade de proximidade e corres-
pondência entre estas dualidades, é o que fica para o especta-
dor e lhe dá a convicção de que precisa pensar e agir melhor,
e aceitar as diferenças, as diversidades e as razões múltiplas.

419
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O entendimento do trágico não se dá somente pela catarse


como purificação trágica, mas igualmente por esta convicção
do espectador sobre a realidade, por seu discernimento entre
sabedoria e poder, razão e emoção, ação trágica e sabedoria da
ação. Essa convicção é a alegria do espectador em se reconhe-
cer um ser de sabedoria, de consciência e de devires.
Uma das funções da tragédia em re-
lação à ética é criar uma distância en-
tre sabedoria trágica e sabedoria prática.
Recusando-se a dar “solução” aos con-
flitos que a ficção tornou insolúveis, a
tragédia, depois de ter desorientado o
olhar, condena o homem da práxis a
reorientar a ação, por sua própria con-
ta e risco, no sentido de uma sabedoria
prática em situação que corresponda
melhor à sabedoria trágica. Essa respos-
ta, adiantada pela contemplação festiva
do espetáculo, faz da convicção o além
da catarse. (RICOEUR, 2014, p. 284).
Nussbaum também explica que os conflitos estritamen-
te humanos revelam-se como ensinamento do trágico, cujo
entendimento se dá em festividade no desfecho do trágico
de modo dionisíaco. A glorificação dionisíaca, no final de
toda tragédia, é a afirmação (por meio do sentido trágico) da
possibilidade humana de se refazer, de se deliberar a fazer o
bem. É a constatação da condição humana de entendimento.
É nesta possibilidade que a tragédia é dionisíaca, na purifi-
cação dos sentimentos trágicos para a atividade do instante,
na cura através da alegria.
Que cura há nessa dança? Seguramente
ela não leva à rígida saúde de Creonte.
Essa cura não é dominação, mas sim-
plesmente o reconhecimento comum,

420
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

no movimento e na música, no poder


do estranho e do súbito, da combinação
indissolúvel de êxtase e perigo, de luz e
sombra no mundo. Invocando Dioniso,
o coro nos faz lembrar que estamos as-
sistindo e respondendo precisamente a
uma dança coral como a de um festejo
dionisíaco. Sugere que o espetáculo des-
sa tragédia é ele mesmo um mistério or-
denado, sujeitando-se ambiciosamente,
remediando sem cura, [e sua] harmonia
não é simplicidade, mas tensão de bele-
zas distintas e separadas. (NUSSBAUM,
2009, p. 71).
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche observa que a di-
ferença entre a arte dionisíaca e a apolínea é que Apolo se
encontra nas formas plásticas e figurativas da arte, enquanto
Dioniso tem lugar nas formas não figurativas e fluidas. A mú-
sica é uma representação dionisíaca; a escultura e a pintura
são apolíneas, e é na poética trágica que elas se fundem.
Até que por fim, através de um miraculo-
so ato metafísico da “vontade” helênica,
[Dioniso e Apolo] apareceram empare-
lhados um com o outro, e nesse empare-
lhamento tanto a obra de arte dionisíaca
quanto a apolínea geraram a tragédia
ática. (NIETZSCHE, 1992, p. 27).
Como evidenciou Nietzsche, o trágico é a junção da arte
apolínea e da arte dionisíaca. Em Antígona, é Dioniso que
toma a cena final; aliás, em todo o contexto trágico do coro,
revelam-se imagens dionisíacas, líricas e provocadoras. A fes-
tividade dionisíaca é a alegria da sabedoria trágica, expressa
na glorificação do ser humano, no esquecimento das desven-
turas e da vulnerabilidade da ação. Nietzsche, nas Conside-

421
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

rações intempestivas, fala do esquecimento como suspensão


necessária para a criação, para o novo. A história e a arte pre-
cisam de pinceladas de esquecimento. Esquecer é também
desmistificar um sentido, desfazer um ato rancoroso; é pro-
duzir um gesto novo, uma memória transformada; é permitir
uma visão outra, como se permite a metamorfose dionisíaca.
Todo esquecimento contém uma memória que quer ser mo-
dificada. Esquecer é sentir o presente, viver o instante, entre-
gar-se às imagens novas.
O ator tem, em sua arte, momentos de esquecimento
quando a criação apolínea se desfigura para a alegre fluidez
da ação dionisíaca: este é o ato de criação do ator. Como me-
taforicamente evidencia Brandão (1985, p. 11), a sensibilida-
de dionisíaca de transformação está na própria criatividade
da potencialidade de representação:
Os devotos de Dioniso, após a dança
vertiginosa de que se falou, caíam des-
falecidos. Nesse estado acreditavam
sair de si, pelo processo do êxtase. Esse
sair de si, numa superação da condição
humana, implicava num mergulho em
Dioniso e este no seu adorador, pelo
processo do êxtase e entusiasmo, co-
mungado com a imortalidade, tornava-
-se um herói, um varão que ultrapassara
o métron, a medida de cada um. Tendo
ultrapassado o métron, o herói é aquele
que responde com êxtase e entusiasmo,
isto é, o ator.
O sentido político em Antígona está na ação do poder pú-
blico e nas relações humanas, marcadas pelas condições exis-
tenciais, individuais e culturais dos homens; está no conflito
das diversidades: homem-mulher, público-privado, indivi-
dual-social, democracia-tirania, amigo-inimigo, vida-morte,

422
Antígona, uma poética política: ação trágica e sentido dionisíaco

razão-emoção e família-Estado. Estes pontos de relações


humanas formam a base do trágico em Antígona. Provocam
também um pensamento filosófico sobre o ser humano e
compõem um forte sentido de atualização histórico-filosófica
do homem em seu sentido humano, demasiado humano.
Este sentido é gerado quando o homem adquire uma cons-
ciência de si, na sabedoria da razão e da ação.
De forma geral, a tragédia Antígona comprova que o tea-
tro é uma forma de arte política na ação teatral, no enredo,
nos diálogos e no discurso, mesmo porque se representam
sempre questões humanas, que envolvem problemas sociais
e políticos da vida em sociedade. A representação teatral é
valoração das necessidades, dos dilemas e das inquietações
humanas, é discurso sobre esses temas, como observa Arendt
(2014, p. 235):
O teatro é a arte política por excelência;
somente no teatro a esfera política da
vida humana é transposta para a arte.
Pelo mesmo motivo, é a única arte cujo
assunto é, exclusivamente, o homem
em sua relação com os outros homens.
A ação e as diferentes razões dos heróis são as vias pelas quais
se concretiza o sentido político de Antígona. Já o sentido trá-
gico dionisíaco da peça se localiza principalmente na função
do coro, a de estética e poética transformadora do trágico. O
coro revela a imagem da vida em movimento, em diferença.
Em suas odes, há o entendimento de que o ser humano é a
diversidade, a vontade de viver, de agir, de transformar. Tam-
bém são dionisíacos os sentimentos e as ações dos heróis, com
suas razões e seus conflitos individuais, sociais e existenciais
relativos à família, à religião, à vida e à morte, aos deuses e à
condição humana. Antígona deseja a justiça familiar, ao pas-

423
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

so que Creonte deseja ser um governante exemplar. O trágico


demonstra que os heróis agem guiados por suas convicções
porque são humanos e possuem a impetuosidade dionisíaca
da vontade, do desejo e das determinações. Por fim, Dioniso
está presente, em Antígona, na finalidade do trágico de trans-
formar a desmedida do herói em sabedoria e alegria.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2014.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Eudoro de Souza. São Paulo:
Ars Poetica, 1993.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Pe-
trópolis: Vozes, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações intempestivas. Tradução: Le-
mos de Azevedo. Lisboa: Presença, 1977.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pes-
simismo. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
NUSSBAUM, Martha Craven. A fragilidade da bondade. Tradução:
Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2014.
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Maria H. da Rocha Ferreira. Lisboa:
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
WHITE, Hayden. Nietzsche e a defesa poética da história no
modo metafórico. In: WHITE, Hayden. Meta-história: a imagi-
nação histórica do século XIX. Tradução: José Laurênio de Melo.
São Paulo: Edusp, 1992.

424
Práticas somáticas como meio integrador da
dramaturgia do movimento

Sarah Auxiliadora Paiva Duarte1


Valéria Maria Chaves de Figueiredo2

Resumo: Esta pesquisa é embasada no estudo do instru-


mento de trabalho do intérprete teatral: o corpo. Com esse
recorte, tecemos algumas considerações sobre o conceito de
corpo e sobre as práticas somáticas no processo criativo do
intérprete. A pesquisa faz parte da disciplina Metodologia
de Pesquisa em Artes da Cena e Educação Somática e da
disciplina Dramaturgia do Corpo Cênico, ambas do Progra-
ma de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás. Abordamos o processo criativo abrangen-
do o significado de soma e o desenvolvimento do repertó-
rio metodológico em relação à autorregulação corporal. O
estudo tem como objetivo colaborar no modo de pensar as
técnicas de construção da dramaturgia do movimento por
meio da educação somática e dos conceitos de descondicio-
namento gestual, autenticidade somática e tecnologia inter-
na. As práticas somáticas como meio integrador do processo
de criação artística permitem a manutenção da atenção do
intérprete, promovendo novas percepções do processo cria-
tivo e novas abordagens no estudo das artes cênicas.

1 Mestranda em Artes da Cena pela Universidade Federal de Goiás (UFG).


2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp. Mestra
em Artes pelo Instituto de Artes da Unicamp. Graduada em Educação
Física pela UFG. Professora associada da Emac e da Faculdade de
Educação Física e Dança, ambas da UFG. Coordenadora do grupo de
pesquisa Lapiac, desta mesma universidade.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Palavras-chave: educação somática; processo criativo;


corpo; dramaturgia do movimento.

Somatic practices as a means of integrating


movement dramaturgy

Abstract: This research is based on the study of the


working instrument of the interpreter: the body and some
considerations about the concept of body and somatic prac-
tices in the creative process of the interpreter. The research
is part of the study in the subjects of Methodology of Re-
search in Performing Arts and Somatic Education, and
Dramaturgy of the Body Scenic, both of the Postgraduate
Program in Performing Arts of the Federal University of
Goiás. The creative process approache the meaning of soma
and the development of the methodological repertoire in
to body self-regulation. It aims to collaborate with the way
of thinking the techniques of construction of the drama-
turgy of the movement through the concepts of gesture de-
conditioning, somatic authenticity and internal technology
approached through somatic education. Somatic practices
as an integrating meaning of the artistic creation process,
allows to the maintaining attention of the interpreter, pro-
moting new perceptions of the creative process and new
approaches in the study of the performing arts.
Keywords: somatic education; creative process; body;
movement dramaturgy.

426
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

Introdução

Esta pesquisa surgiu na incessante busca do contínuo trei-


namento do intérprete e no anseio de descobrir novas manei-
ras de contribuir para o ato de interpretar. Durante a expe-
riência corporal nos palcos e o convívio com outros colegas
de trabalho, percebemos um desconforto corporal na exe-
cução de propostas cênicas e na representação de persona-
gens, algo não verificado necessariamente ao longo do pro-
cesso de criação/construção.
Por mais que o intérprete treine seu instrumento de tra-
balho, o corpo, quando ele sustenta uma cena, é afetado pela
relação existente entre o espaço/tempo e o personagem, na
qual são geradas dores e lesões que dificultam sua susten-
tação proposta inicialmente. Assim, na tentativa de aliar al-
gum subsídio ao uso de técnicas teatrais e treinamentos, reali-
zamos nesta pesquisa um estudo contínuo sobre o corpo
como experiência na esfera artística. Um campo de conheci-
mento bastante utilizado foi a educação somática, que, justa-
posta aos fundamentos e técnicas teatrais, proporciona novas
experiências e percepções para o intérprete.

Processo criativo e reflexivo

O fazer teatral se encontra em diversos contextos e con-


ceitos que, além do produto final de um espetáculo, propi-
ciam outro âmbito, o processual. Para demonstrar a cons-
trução de um caminho no domínio do fazer teatral, buscamos
sistematizar o próprio método de trabalho do treinamento do
intérprete. Esse treinamento se inicia com o estudo básico
dos fundamentos teatrais, como o foco, a respiração, o an-

427
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

dar no espaço etc., e se processa por meio dos viewpoints, que


procuram sistematizar variados fundamentos e exercícios. Os
viewpoints foram introduzidos por Anne Bogart e Tina Lan-
dau. Constituem
uma filosofia traduzida em uma técni-
ca para: 1 treinar performers; 2 construir
coletivos; e 3 criar movimento para o
palco. Os Viewpoints são uma série de
nomes dados a certos princípios de mo-
vimento através do tempo e do espaço;
esses nomes constituem uma linguagem
para falar o que acontece no palco. Os
Viewpoints são pontos de atentividade
de que o performer ou criador faz uso en-
quanto trabalha. (BOGART; LANDAU,
2005, p. 25).
O treino constante desses fundamentos proporciona uma
base mínima para o intérprete executar ações no espaço. A
utilização de jogos teatrais e tradicionais também promove
o trabalho elementar do intérprete. Pelo uso frequente dos
viewpoints e dos jogos, percebe-se que o treinamento teatral é
um ritual. Para sistematizar um método de trabalho que gere
possibilidades de processos criativos e reflexões, é necessário
um fazer teatral diário.
Como ressaltam Carreira e Cabral (2006, p. 13), “o teatro
pode ser pensado não só como uma forma de arte que ex-
pressa diferentes circunstâncias da experiência humana, mas
também como [...] elemento formador [dessa experiência]”. O
teatro é elemento formador social e cultural. Além de trans-
formar o conhecimento dentro de sua área, ele ultrapassa esse
âmbito. Por isso a pesquisa de corpo, instrumento de trabalho
no teatro, precisa ocorrer de maneira interdisciplinar, com o
estudo de conceitos variados, e não só da palavra corpo e sua

428
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

etimologia. A investigação de locais e espaços torna-se rele-


vante como forma de gerar novas concepções do corpo e do
“ser” corpo. O estudo do corpo no âmbito teatral proporciona
tal interdisciplinaridade, promovendo novos saberes em re-
lação a esse objeto e fortalecendo o teatro para ser formador
de si mesmo.
O treinamento teatral cotidiano traz o corpo como expe-
riência e instrumento de trabalho do intérprete. O termo ex-
periência é usado por Débora Bolsanello (2005) para se refe-
rir à educação somática. Nesta pesquisa, o corpo será contex-
tualizado como experiência. Não se trata de uma maneira de
abordar o corpo, mas da experiência através dele: uma “pro-
priocepção”, ou seja, o corpo se torna a fonte primária de seu
próprio processo de trabalho ao tentar sistematizar esse pro-
cesso. Contemporaneamente o conceito de corpo passa por
várias acepções e historicidades, abrangendo muitas áreas.
O corpo humano foi tratado como pri-
são da alma, por Platão; como lugar
do pecado, pelo pensamento judaico-
-cristão e como entidade separada da
mente, por Descartes. De um ponto de
vista antropológico, as concepções de
corporeidade constituem o eixo em tor-
no do qual se articulam as intervenções
sobre o corpo, sejam elas terapêuticas,
estéticas, educacionais, científicas etc.
Na medicina ocidental, por exemplo,
o modelo de corpo máquina tem sido a
referência utilizada para o tratamento
de disfunções e patologias. (BOLSA-
NELLO, 2005, p. 1).
Percebe-se a dissociação do corpo e da mente, sendo o cor-
po visto como um objeto segmentado. Consequentemente,
após a Revolução Industrial, o corpo contemporâneo passa a

429
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ser analisado como corpo subjetivo. Nessa perspectiva, ele é


estudado como fenômeno e consciência humana, afirma Bol-
sanello (2005). Essa fenomenologia é o que interessa no âm-
bito do trabalho do intérprete, na medida em que ela valoriza
a experiência física e a experiência subjetiva de cada corpo:
mente e corpo caminham juntos seguindo os eixos sensação,
vivência e percepção, aprendidos nas práticas somáticas. A
experiência faz do aprendizado um processo durável que per-
manece na memória corporal, tornando-se fonte de conheci-
mento para o trabalho do intérprete e para a construção da
dramaturgia do movimento.

Dramaturgia do movimento

Depois que o intérprete passa a treinar de modo cotidiano,


fazendo de seu estudo dos fundamentos do teatro um pro-
cesso rotineiro, ele já pode partir para a dramaturgia do mo-
vimento. Segundo Pallottini (1989), a dramaturgia é um pro-
cesso técnico de composição. Quando se trabalha o corpo em
movimento, criando uma série de movimentações, cria-se a
dramaturgia do movimento, ou seja, compõe-se um conjunto
de movimentos. Como afirma Ferreira (2012), para construir
e descontruir uma variedade de movimentações corpóreas e a
energia desse corpo fenomenológico, é preciso o uso de técni-
cas corporais.
Para trabalhos laboratoriais do corpo como experiência
e para a construção de movimentos destinados ao exercício
teatral ou à criação de características de um personagem,
utilizaremos aqui o princípio da partitura da Antropologia
Teatral de Eugenio Barba. Segundo Barba (1993), o treina-
mento corporal aprimora o estado de presença cênica no

430
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

ato de interpretar. O teatro antropológico deixa clara a dife-


rença do cotidiano do indivíduo e seus hábitos em relação ao
intérprete em sua representação de forma sistematizada. Ou
seja, antropologia teatral, de acordo com Barba (1993, p. 24), é
“o estudo do comportamento pré-expressivo do ser humano
em situação de representação organizada”. Toda essa repre-
sentação sistematizada é construída por meio da história, da
cultura, da memória e da técnica aprendida.
A técnica da antropologia teatral vem como um procedi-
mento de controle para os movimentos criados pelo intérpre-
te. Na explicação de Barba, um dos princípios dessa técnica é
o da partitura. Dentro desse princípio, “o momento essencial
não [é] a improvisação em si, mas, sim, a fase imediatamen-
te sucessiva, quando a improvisação [é] memorizada e fixada
pelos atores tornando-se uma partitura precisa” (BARBA,
1993, p. 107). Laban (1978) assinala que a improvisação des-
ses movimentos e sua sistematização não se mostram sufi-
cientes para sua memorização, e, desse modo, a repetição da
partitura se torna indispensável.
Somente depois de construída a dramaturgia do movimen-
to e após trabalhada sua repetição é que o intérprete está den-
tro de seu processo individual e único durante o percurso de
composição e se encontra em estado de prontidão para atuar.
Segundo Stanislavski (1980), não se representa no teatro
a vida com a verdade que ela é, mas, sim, com a condição cêni-
ca que idealiza tal vida. Uma vez elaborada a dramaturgia do
movimento dentro de um exercício teatral ou na construção
do personagem, surge um desgaste de repetição. Esse desgas-
te, se comparado ao cotidiano, seria o hábito adquirido com
o passar dos anos por um indivíduo. O desgaste do trabalho
do ator seria a repetição da dramaturgia do movimento: uma
repetição habitual e cotidiana do movimento.

431
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Neste trabalho, partimos do processo criativo como desejo


de desenvolvimento da pesquisa, sem a intenção de sistema-
tizar uma maneira, um método que o intérprete deva seguir
como um manual para a representação. A pesquisa funda-se,
de modo geral, nos casos de desconforto no corpo ao atuar,
não um desconforto que se confunde com timidez, mas, sim,
aquele gerado pelo mau uso das habilidades corporais ou pelo
desgaste nos processos criativos e de construção do persona-
gem. Um novo caminho ou a mistura de possibilidades para
resolver essa questão é o anseio de evoluir o instrumento de
trabalho do intérprete, o corpo, mas através da experiência.
Neste sentido, posso construir um pen-
samento inverso, isto é, não estudo para,
necessariamente, organizar dados do fe-
nômeno criativo, verificar fundamentos
do próprio processo criador, qualificar
alguns argumentos e contestar outros,
descrever, registrar ou avaliar os percur-
sos de várias composições. Estes proce-
dimentos surgirão, inevitavelmente [...].
A motivação de meu estudo do proces-
so de criação é a criação de si mesma.
(BRAGA, 2006, p. 79).
Por esse viés contemporâneo, percebem-se a grande
mutação e a transmutação da maneira de se estudar a arte
e, principalmente, o corpo. A interdisciplinaridade leva à
construção de novas perspectivas no estudo do corpo, graças
às ferramentas que são disponibilizadas com o tempo e ao
registro de pesquisas passadas. Com tantas possibilidades, é
preciso afunilar as fontes de pesquisa a ser utilizadas para
o estudo do corpo, como se faz a seguir, na reflexão sobre a
educação somática.

432
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

Práticas somáticas: descondicionamento gestual,


autenticidade somática e tecnologia interna

Buscamos, como intérprete, expandir nossos espaços in-


ternos em nossos trabalhos práticos, e o caminho apropriado
para esse fim é a educação somática, que se desenvolve nas
práticas da consciência corporal enquanto o corpo se movi-
menta. Com o estudo da educação somática neste trabalho,
não pretendemos fazer dela apenas mais uma técnica, mas
sim torná-la um meio integrador através do qual o intérprete,
depois de ter seu corpo sistematizado e construído para uma
encenação, possa alcançar outros patamares em cena por
meio das experiências individuais de seu corpo.
E essa descoberta moderna muito co-
laborou com a revisão contemporânea
de nossas ideias sobre o corpo, sobre a
dialética de relações entre sua dimen-
são de diversidades, em recíproca e con-
tínua reversão. (NUNES, 2019, p. 126).
Com a consciência do corpo em movimento e da expres-
sividade do corpo do intérprete no espaço, estando ele em
cena, e sabendo que isso foi alcançado com o auxílio das
técnicas de educação somática, questionamos: como inserir
a educação somática de modo integrador sem desconstruir
a dramaturgia do movimento elaborada, mas gerando uma
contribuição única e individual para o intérprete?
Segundo Fortin (2011), essa modalidade se desenvolve nas
práticas da consciência corporal enquanto o corpo se movi-
menta. Integram o estudo da educação somática
o método Mosh Feldenkrais; a técnica
Mathias Alexander; o body-mind cente-
ring, de Bonnie Bainbridge Cohen; a
ginástica holística, de Lily Ehrenfried;

433
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

o continuum, de Émilie Conrad; a euto-


nia, de Gerda Alexander; e mais perto
do meio da dança, aqui no Brasil, o
método de Klauss Vianna. (FORTIN,
2011, p. 27).
Pelas técnicas citadas, nota-se que a educação somática
funciona como um mecanismo de percepção e autorregu-
lação corporal do intérprete, permitindo-lhe afinar seu cor-
po na composição de seus personagens, nesse caso, sempre
depois da dramaturgia construída. Para Green (2002, tra-
dução nossa), na educação somática, o corpo não é definido
como um objeto, mas visto como uma seção corporificada da
consciência interna e da comunicação. Assim, esse modelo
fomenta o processo de criação do intérprete, levando-o a ter
mais resiliência, mais resistência.
O conceito de “soma”, que participa do termo “somática”,
remete ao corpo subjetivo ressignificado por Thomas Hanna.
É o corpo percebido pelo próprio indivíduo, em oposição ao
corpo analisado por uma terceira pessoa, o qual é chamado
de “corpo percebido” (BOLSANELLO, 2010). Quando se faz
uma abordagem por meio da educação somática, é preciso
observar alguns critérios comuns para a tomada de consciên-
cia corporal, como a diminuição do ritmo para executar um
movimento; o uso da respiração como suporte do movimen-
to; a observação do comando do professor para os exercícios
sem fazer do corpo dele um modelo a ser seguido; a auto-
pesquisa do movimento e as conexões deste com partes do
corpo; a automassagem com o uso de objetos (bolas, bastões,
tecidos etc); a busca do esforço justo conforme o corpo de
cada indivíduo empregando-se variações de tônus; o aumen-
to do vocabulário gestual com a desconstrução de padrões
motores inconscientes; e a não associação a crenças religiosas
(BOLSANELLO, 2010).

434
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

Devido às variações dos métodos somáticos, Bolsanello


propõe três conceitos para a classificação desses métodos: o
“descondicionamento gestual”, a “autenticidade somática” e
a “tecnologia interna”. O primeiro diz respeito ao processo
de um intérprete aprender a sentir os próprios movimen-
tos corporais ativando a percepção de como ele se move e
explora novas variações do modo de se mover. A ordem das
ações nesse processo seria sentir-perceber-reaprender. Assim,
o descondicionamento gestual refina a capacidade do corpo
para responder a diferentes circunstâncias reorganizando
movimentos corporais.3
Quanto à autenticidade somática, a autora afirma que o
indivíduo a adquire por meio do descondicionamento ges-
tual. A autenticidade permite o acesso à intimidade corporal
e a processos internos, e não vai contra a identidade cultural.
O indivíduo é formado por sua singularidade e pelas relações
vividas em seu corpo. Ele descobre com seu corpo sua verda-
de própria. Com sua verdade própria e as relações processadas
em seu corpo como experiência, permite o desenvolvimento
da tecnologia interna.
Para Bolsanello, a tecnologia interna funciona como um
antídoto para as tensões e consiste em executar o movimento
colocando o foco na ação. Seria o movimento consciente. O
corpo se torna um instrumento de exploração. Tensões sem
utilidade afloram no decorrer do tempo criando disfunções,
e o movimento do corpo consciente livra o corpo desses há-
bitos nocivos. A tecnologia interna é o acesso voluntário à
nossa fisiologia corporal que autorregula o corpo.

3 Bolsanello (2010) faz referência à inibição desses movimentos explicando


que não se trata da supressão deles, mas da manifestação de uma nova
intenção.

435
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Então, o intérprete, com sua dramaturgia do movimento


construída ao aplicar os três conceitos nesse âmbito, tem como
proposta abordar as partituras do personagem construído ou
exercido, e não o intérprete em si. Ele busca uma via que o
ajude a sustentar a dramaturgia do movimento. Por meio do
descondicionamento gestual, a dramaturgia construída au-
xilia no refinamento do processo de repetição: repetem-se
os gestos sentindo, percebendo e reaprendendo, refinando,
assim, a reorganização das partituras do personagem. Essa
reorganização é feita sem a supressão do movimento, mas
colocando-se intenção nele. Como o movimento está auto-
matizado pela repetição da partitura, o descondicionamento
gestual permite que o intérprete pare antes de reagir na cena,
por mais que esta já esteja em representação organizada.
Uma vez explorada a dramaturgia do movimento com o
refinamento da consciência corporal através do descondicio-
namento gestual, o intérprete atinge a autenticidade somá-
tica. Ou seja, a dramaturgia construída passa a ter verdade
própria deixando o corpo mais disponível diante daquilo que
acontece no palco ou na sala de aula durante o processo de
criação da partitura.
Por fim, a tecnologia interna vem promover, na drama-
turgia do movimento, o resgate dos movimentos quando o
intérprete consegue ter acesso voluntário e consciente ao seu
corpo enquanto executa o movimento. A tecnologia interna
aprimora a atuação consciente do intérprete.
Contemporaneamente, com o desenvolvimento das artes
da cena através de novos paradigmas, as práticas somáticas
trazem uma variedade tanto na cena quanto na construção
do personagem. O teatro pós-dramático de Lehmann (2007)
denota essa variedade ao explorar novos processos e modos
no fazer teatral. A educação somática não está posta somente

436
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

como mais uma técnica de interpretação para a formação do


personagem na dramaturgia do movimento, mas igualmente
como meio integrador e confortante para a execução dos pro-
cessos criativos do ator-compositor.
Dessa maneira, contribui para todos os elementos de com-
posição de um espetáculo e cena. A aplicabilidade das práti-
cas somáticas em consonância com o trabalho do intérprete
não se dá numa posição de verticalização ou sistematização a
ser seguida em processos criativos. Por mais que haja técnicas
e fundamentos teatrais a ser estudados, a absorção do que é
aprendido e executado depende também da subjetividade do
intérprete, ocorrendo então maneiras únicas e individuais de
se iniciar o processo criativo para a interpretação. A somática
entra nesse âmbito como uma nova linguagem.
A teoria pós-dramática, em sua formu-
lação aberta, compreende multiplicida­
de de experiências. Nos termos de
Lehmann, ainda que um espetáculo
não prescinda de elementos dramáticos
tradicionais, seu horizonte poético pode
ser classificado como pós-dramático,
quando a forma de relacionamento en-
tre a lógica do discurso verbal e os de-
mais elementos do mythos (visuais, so-
noros, plásticos, táteis) se pau­ta em cor-
relações horizontais, evitando qualquer
tipo de hierarquização [...]. É preciso ter
olhos para outros verbos, e ouvidos para
outras imagens. (NUNES, 2016, p. 25).
A educação somática configura um novo processo de
criação que não parte da esfera teatral, mas fundamenta-se
no princípio da autorregulação corporal. Através desse prin-
cípio se torna possível sanar traumas ocasionados por hábitos
que geram lesões e traumas corporais. E para o campo teatral,

437
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

qual é a contribuição da educação somática? Ao relacionar o


corpo do intérprete com o espetáculo, ela auxilia em seu pro-
cesso criativo e em sua “propriocepção” (uso do corpo como
fonte do próprio processo de trabalho), ajudando a construir
o personagem e a encenação.
É comum o uso da educação somática durante o treina-
mento do intérprete, e não na construção do personagem
em si. O estudo do corpo aqui não é posto apenas como um
objeto para se chegar a um único resultado ou para dar res-
postas específicas; é uma tentativa de criar novos caminhos
e mesclar ideias para que o âmbito teatral continue em seu
processo contemporâneo evolutivo.
Quaisquer que sejam os pontos de par-
tida da pesquisa, o horizonte leva sem-
pre ao espetáculo. A palavra teatro traz
em si tantas possibilidades que aquilo
que parece a delimitação de um obje-
to de pesquisa claro, nada mais é que a
abertura de um leque de proposições.
(CARREIRA; CABRAL, 2006, p. 10).
No estudo das artes cênicas, levam-se em conta os proces-
sos. Não se olha o resultado de uma pesquisa em si como um
produto final. A observação do processo de criação, do pro-
cesso de treinamento do intérprete, é o ponto a ser priorizado
para o entendimento do modo de se fazer a arte de represen-
tar. O processo criativo, tal qual o de uma pesquisa, não é para
ser visto como um modelo, um retrato, mas sim como uma
comanda, um escrito para ampliar a percepção e apontar a
integração de novas ideias que tenham sido importantes no
processo criativo de um intérprete. De acordo com Mostaço
(2006, p. 124),
noções ampliadas de dramaturgia –
extensíveis agora ao ator, ao encenador,

438
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

ao cenógrafo – tornaram-se moeda


corrente de práticas teatrais, exigindo
instrumentais analíticos que possam
surpreendê-las e inseri-las adequada-
mente no plano da recepção.
Neste trabalho, por exemplo, o estudo da educação somá-
tica não pretende trazer mais uma técnica para o intérprete,
mas contribuir para que suas práticas de encenação possam
alcançar outros patamares por meio das experiências e vivên-
cias individuais de seu corpo. Mais do que apresentar uma
técnica, a pesquisa busca ser recebida na área da artes cênicas
como um integrador da dramaturgia do movimento, um subsí-
dio para inovar e renovar o caminho fenomenológico no per-
curso criativo do ator.
Com o desenvolvimento do pensamento, as ideias gerado-
ras chegam ao encontro de outros juízos que sustentam de-
terminado repertório. Essas combinações geram novas con-
cepções, levando à expansão da dramaturgia da composição
corporal. O ator passa a trabalhar no espaço e no tempo em
sua encenação, criando, assim, sua estética teatral.
A estética teatral contemporânea, no
mesmo rumo tomado pelas demais ex-
pressões artísticas, persegue e procura a
interdisciplinaridade e as conexões entre
os saberes, não para pulverizar seus méto-
dos ou paradigmas, mas, sobretudo, para
intentar novos epistemas que cubram
territórios comuns às múltiplas represen-
tações. (MOSTAÇO, 2006, p. 124).
A educação somática é carregada de interdisciplinaridade.
Com a junção de ideias e a consequente transformação do
pensamento, ela estabelece novas relações, gerando a expan-
são associativa. Nesse processo, o intérprete se torna mais apto

439
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

a avaliar consequências e selecionar ideias que serão absor-


vidas pelo seu corpo como experiência.

Conclusão

O corpo como experiência mantém a conexão entre a mente


e o corpo do indivíduo. Os estudos práticos das técnicas teatrais
não contam com acompanhamento médico, e, dessa forma, o
próprio intérprete fica responsável pelos desdobramentos de
seu treinamento diário. Com a abordagem das práticas somáti-
cas e das técnicas mencionadas aqui, ele aprende a reaprender,
não aquilo que foi aprendido, mas os modos de aprendizagem.
Esta se torna um processo gradual, levando ao refinamento da
capacidade de criar a dramaturgia do movimento.
As práticas somáticas são, portanto, um processo labora-
torial, um work in progress: estão em constante aperfeiçoamen-
to, levando ao desenvolvimento da capacidade de expressão
corporal. Com a aplicação do conceito de “soma”, em que o
corpo é percebido pelo próprio indivíduo, há um desenvol-
vimento metodológico do trabalho corporal do intérprete e
uma consecutiva repercussão na dramaturgia do movimento.
O intérprete consegue, assim, criar estratégias mentais
para a construção de seu trabalho, auxiliado pelas técnicas
abordadas nesta pesquisa, que não excluem outras técnicas
teatrais. O uso dos viewpoints promove uma sistematização
dos fundamentos do teatro, sem dizer que é possível ainda
justapor essa sistematização às técnicas comuns utilizadas
na aplicação das práticas somáticas. Por sua vez, a partitura
funciona como um processo em etapas para a formação da
dramaturgia do movimento, que, por si só, consegue acionar
decisões para sua própria execução.

440
Práticas somáticas como meio integrador da dramaturgia do movimento

Ao aplicar os conceitos inerentes às práticas somáticas,


como o descondicionamento gestual, a autenticidade somá-
tica e a tecnologia interna, percebe-se que essas práticas se
tornam o meio integrador para o processo criativo do intér-
prete e para a sustentação corporal em cena. Com as práticas
somáticas, desenvolve-se a consciência corporal no ato de re-
presentar e ocorre a absorção e autorregulação corporal. Des-
se modo, a memória de corpo passa à criação de estratégias
para o seu próprio refinamento e/ou transformação.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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442
Das transformações da arte e ciência e suas
elucidações na historiografia do gesto dançado

Tainara Carareto1

Resumo: Este texto discute a relação entre arte e ciência


evidenciando como as aproximações entre essas duas áreas,
em princípio, distintas, têm contribuído para o surgimen-
to de uma nova historiografia da dança, pautada no gesto.
Tal como a ciência, por anos, constituiu um saber fechado
em si mesmo e a arte foi compreendida como sinônimo de
atividades primárias e manufaturadas, também a história
da dança parece ter se tornado um conhecimento à parte,
desconectado das práticas e das necessidades de bailarinos
e coreógrafos. Do mesmo modo, a dança, não raras vezes,
foi reduzida à execução de sequências de passos codificados,
transmitidos de um mestre para seus alunos e reproduzidos
da maneira mais fidedigna possível ao original. A concei-
tuação simplória e isolada de arte e ciência, bem como de
história e dança, tornou-se inadequada diante das transfor-
mações que inundaram a sociedade a partir do século XX,
levando-as a uma crise. Das ruínas, emerge um vasto e fértil
território capaz de fazer renascer a ciência e a arte, a história
e a dança, potencializadas: o abismo floresce. Nesse cenário
propício ao diálogo e a interterritorializações, desenha-se
uma nova história da dança, contada através do gesto e dos
contextos em que ele esteve inserido. Ao mesmo tempo, a
dança torna-se o objeto de investigações e criações artísti-
cas capazes de ressignificá-la. Nesse percurso, não importa
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da
Universidade Federal de Goiás sob a orientação do Prof. ph.D. Rafael
Guarato.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

a obra em si, mas a maneira como o artista apropria-se do


conhecimento histórico, como esse conhecimento reverbera
em sua prática artística e como isso contribui para a escrita
de uma historiografia do gesto dançado.
Palavras-chave: arte; ciência; dança; história da dança;
interterritorializações.

The transformations of art and science and its


elucidations in the historiography of the danced
gesture

Abstract: This article discusses the relationship between


art and science, showing how the approximations between
these two areas have contributed to the emergence of a new
dance historiography, based on gesture. Just as science, for
years, constituted itself as closed knowledge in itself and
art was understood as a synonym for primary and manu-
factured activities, the history of dance also seems to have
become a separate knowledge, disconnected from practices
as well as the needs of dancers and choreographers. Like-
wise, dance has often been reduced to the execution of se-
quences of coded movements, transmitted from a master to
his students, reproduced in the most reliable way possible
to the original. The simple and isolated concept of art and
science, history and dance became inadequate in the face of
the transformations that flooded society in the beginning
of the 20th century, leading them to a crisis. From the ruins
emerges a vast and fertile territory capable of reviving scien-
ce and art, history and dance, potentiated: the abyss flou-
rishes. In this scenario conducive to dialogue and interter-
ritorialization, a new dance history is drawn, told through
the gesture and the contexts in which it was inserted. At the
same time, it becomes the object of investigations and artis-
tic creations capable of reframing dance. In this path, the

444
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

work itself does not matter, but how the artist appropriates
historical knowledge, how this knowledge reverberates in
his artistic practice and how it contributes to the writing of
a historiography of the danced gesture.
Keywords: art; science; dance; dance history; interterri-
torializations.

A arte pertence ao inatingível. Nasce do contraste exis-


tente no conhecimento profundo e ironicamente incapaz de
tornar possível a habilidade do fazer artístico: o conhecimen-
to não basta à arte. Na visão de Ramos (2012), o abismo que
separa arte e ciência teve origem, ainda no século XVIII, com
essa crítica do filósofo Immanuel Kant ao conhecimento,
cuja rigidez direciona a uma possível interpretação dos dois
termos como antagonistas. Nesse contexto, por séculos, a arte
foi ignorada pela ciência: a ciência se demonstrou inaplicá-
vel à arte. Paralelismos e oposições à parte, nota-se hoje uma
necessidade de se intensificar a relação entre ambas. Afinal,
o que é a ciência sem a arte, senão a mensuração do mensu-
rável? Do mesmo modo, sem a ciência, seria a arte capaz de
produzir os mundos incomensuráveis que produz?
Artistas e cientistas posicionados em lados opostos à bei-
ra de um precipício, profundo, fértil, mas ainda pouco ex-
plorado. Quais os caminhos a serem percorridos pela arte e
pela ciência no século XXI? Estaríamos no limite de romper
a fronteira que as separa? Em que medida os artistas podem
(e devem) se apropriar do conhecimento científico sem per-
der, porém, o empirismo, a sensibilidade e a intuitividade
inerentes à arte? De que modo o fazer científico pode ser
aplicado à arte de forma a contribuir para o desbravamento
de territórios outros, produzindo novas possibilidades para o
fazer artístico? Enfim, o que move os artistas a buscar a aca-

445
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

demia, lugar histórico de produção de pesquisa e conheci-


mentos essencialmente objetivos e racionalizadores?
O conceito de arte na contemporaneidade encontra-se
deslocado. De acordo com Santaella (2012), com o advento
da revolução industrial, a sociedade presenciou um intenso
desenvolvimento das tecnologias e das redes telemáticas. Foi
atravessada por transformações profundas, capazes de acele-
rar o fluxo informacional e, por consequência, de modificar
a concepção de espaço/tempo que se tinha até então. Ainda
segundo a mesma autora, quando isso acontece, novos signos
são criados em um ritmo intenso, fragmentando a percepção
de mundo vigente, e isso repercute diretamente na cultura e,
portanto, na arte.
Surgem, então, “florestas de tempo”. Presente, passado e
futuro se misturam, se confundem e se redimensionam nesta
nova concepção de sociedade (tecnológica, telemática e in-
termidiática) e de mundo, em que a noção de espaço/tempo
encontra-se reconfigurada. Neste contexto, o corpo, as perso-
nalidades, as relações humanas, a cultura e, por conseguin-
te, a arte se reestruturam. Fluidez, rapidez, liquidez, excesso,
multiplicidade. Sempre que experimentamos o novo, tudo o
que se estrutura ao seu redor se modifica.
Diante desse novo cenário, pergunta-se: estaria a arte
morrendo? Para Santaella (2012), um fim não é nada além de
um recomeço. Sempre que algo rui, surge em seu lugar uma
imensidão de possibilidades. Ruínas podem constituir um
vasto e fértil terreno para o nascimento do novo. Juntando
cacos aqui e acolá, é possível renascer. Resta saber se haverá
a maleabilidade necessária para isso. Adaptação. Talvez seja
esse o lugar da arte hoje. Um indispensável processo de trans-
formação, sem negar o passado, vivendo o presente e proje-
tando-se para o futuro. Afinal, as mudanças advindas com o

446
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

desenvolvimento da tecnologia e da ciência revolucionaram


as formas de relacionamento do homem com o ambiente e
com as pessoas. Mudaram-se as relações sociais, originou-se
uma nova cultura e, neste novo contexto, a arte, intrínseca
aos dois campos, também teve de se transformar.
A arte estética, bela, manufaturada, feita por artesãos no
fundo de suas oficinas, dançada por bailarinos, encenada por
atores, cantada por cantores e orquestras para o mero diverti-
mento de uma elite minoritária, deixou de prevalecer na so-
ciedade ainda no século XX. Em 1917, Duchamp conseguiu
revolucionar o conceito de arte ao expor como obra artística
um urinol em um museu, lugar de legitimação da arte. Sua
atitude chocou o público, mas serviu para reivindicar a li-
berdade do artista e para levantar reflexões profundas sobre
o fazer artístico. Como a sociedade, também a arte vem se
modificando. Essencial ao homem, ela rompe cada vez mais
com paradigmas e se permite metamorfosear, sempre atenta
às necessidades e aos meios de sua época. Portanto, se a con-
temporaneidade – também definida como pós-modernidade,
modernidade líquida, modernidade pós-industrial ou ainda
hipermodernidade – tem como marco o intenso progresso
científico e tecnológico, especialmente voltado para o de-
senvolvimento das mídias digitais, pode-se dizer que há hoje
uma relação intrínseca entre ciência, tecnologia e arte: as três
são essenciais ao ser humano. Nesse sentido, Santaella (2012,
p. 67) afirma que
os artistas inquietos e experimentais
sempre trabalham com os meios mais
avançados que o seu tempo lhes apre-
senta. Se, no Renascimento, o meio
mais avançado era a tinta a óleo, neste
início do terceiro milênio, os meios do
nosso tempo estão nas tecnologias di-

447
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

gitais, nas memórias eletrônicas, nas


hibridizações dos ecossistemas com os
tecnossistemas e nas absorções inex-
tricáveis das pesquisas científicas pelas
criações artísticas. Os artistas que estão
trabalhando com esses meios dificil-
mente poderiam realizar sua arte sem
conhecimentos científicos e técnicos
ou, mais ainda, sem a parceria certeira
com cientistas e técnicos. Essa hibri-
dação entre arte, ciência e tecnologia
tornou-se hoje uma realidade inques-
tionável, especialmente no mais recente
avanço da arte para dentro do território
da ciência como é aquele que se revela
na bioarte.
Com a finalidade de criar uma arte descentralizada, aber-
ta, rizomática e, portanto, efêmera, permeável a um processo
constante de (re)construção, os artistas, a partir da década de
1970, permitiram-se estreitar laços com a ciência. As novas
possibilidades tecnológicas passaram a interessar-lhes. O uso
da tecnologia aliada à informática e aos meios de comuni-
cação atravessou suas obras de modo que a compreensão da
arte do século XX está fortemente relacionada à compreen-
são do imaginário que permeia a cibercultura (LEMOS,
2015). Dessa maneira, a arte contemporânea, identificada por
Lemos como “ciberarte”, enfatizaria a
circulação de informações e a comuni-
cação, abusando da interatividade, das
possibilidades hipertextuais, das co-
lagens de informações, dos processos
fractais e complexos, da não linearidade
do discurso... a ideia de rede, aliada à
possibilidade de recombinações suces-
sivas de informações e a uma comuni-

448
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

cação interativa, torna-se o motor da


ciberarte. A arte eletrônica é uma arte
da comunicação. (p. 181).
Lemos define as combinações múltiplas, as colagens, os
happenings e as performances como as únicas possibilidades
para o artista pós-moderno. Segundo ele, a arte pós-moderna
ancora-se no presente, revisitando o passado. É uma arte per-
formática, participativa e que se apropria das novas tecno-
logias no intuito de multiplicar as possibilidades estéticas.
Uma arte híbrida, em que “estruturas ou práticas discretas,
que existiam de forma separada, se combinam para gerar no-
vas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI apud SILVA,
2012, p. 339).
Plaza (1997) também aborda a relação arte-ciência e dis-
corre sobre a necessidade iminente de se estabelecer o diálogo
entre ambas. Em sua opinião, a crise da arte contemporânea é
consequência de uma conceituação simplória e isolada, que a
coloca como mero produto de atividades primárias e/ou ma-
nufaturadas. Mas, ao contrário disso, “o que temos hoje é um
formidável sistema de manifestações mediáticas e códigos
(artesanais, industriais e pós-industriais) que se misturam, in-
terpenetram e recodificam” (p. 22). Plaza diz ainda que esse
entendimento equivocado de arte ignora características atual-
mente a ela imanentes, tais como complexidade, multiplici-
dade, multimediação e recodificação, sujeitando-a ao papel
de coadjuvante na cena contemporânea. Não seria a ciência
um caminho para romper com essa perspectiva e dar conta da
profundidade das relações e discursos que hoje referenciam o
fazer artístico, e para elucidar o “saber” e o “fazer” arte?
Na visão do autor, a busca por teorias e metalinguagens
que se adéquem às especificidades da arte e sejam capazes
de contribuir, assim, para sua elucidação, tornou-se não só

449
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

inevitável, mas urgente. Citando o filósofo Ortega, ele defen-


de que o conhecimento é “um esforço mental que extrai do
caos um esquema de ordem, um cosmos, uma informação,
uma linguagem” (p. 22). Com estes traços, o conhecimento
torna possível a compreensão de informações complexas, fa-
cultando uma intervenção intelectual sobre objetos simbóli-
cos – intuições, observações e representações – intrínsecos à
prática artística. Mas, apesar dessa relação, o conhecimento
científico e o conhecimento artístico apresentam-se de for-
mas distintas:
[para a ciência] no plano do conheci-
mento abstrato de qualquer fenômeno
que ocorre universalmente, em qual-
quer época e qualquer sítio; [para a arte]
no plano do conhecimento concreto
de um objeto concreto e individual,
insubstituível e singular (Srour, 1978:
38). A arte não se doa ao mundo como
informação semântica, mas como infor-
mação estética. (PLAZA, 1997, p. 24).
A arte não significa. Não explica. Não se torna. Ela sim-
plesmente é. Ou está.
Arte e ciência parecem compartilhar uma necessidade de
se reestruturar. A arte, de desvincular-se de atividades ma-
nuais, primárias ou artesanais, a fim de ser compreendida em
toda a sua complexidade e de experenciar as inúmeras pos-
sibilidades a ela inerentes. A ciência, de afastar-se da preten-
são pueril e improfícua de tudo explicar (RAMOS, 2012), em
razão da qual sua existência é colocada em risco, conforme
demonstra Rubem Alves (1981).
Para este autor, o conhecimento científico não deve se so-
brepor aos outros saberes, já que não é nada mais que um
refinamento do senso comum. Ao transformar-se em mito,

450
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

a ciência torna-se perigosa. Compreendida como verdade


absoluta, como detentora de todo o conhecimento e como
exemplo a ser seguido, ela seduz – incita comportamentos
errôneos e afasta qualquer possibilidade de elaboração crí-
tica do pensamento. Cientistas são especialistas: detentores
de um saber extenso em profundidade, mas raso em exten-
são. Propensos a “conhecer cada vez mais de cada vez menos”
(ALVES, 2007, p. 12), correm o risco de se tornar uma classe
fechada em si mesma, incapaz de dialogar com áreas distintas
e de se interterritorializar e produzir as tão necessárias fron-
teirizações. Sob essa perspectiva, como poderia a ciência re-
sistir ao século XX, durante o qual se revolucionou o modo
de pensar, estruturar e transmitir conhecimento? Sem dúvi-
da, é preciso que aprenda novas maneiras de sobreviver!
Na visão de Plaza (1997), a crise que invade hoje tanto as
artes quanto a ciência resulta de modelos de representação e
determinação do conhecimento e da sensibilidade que se tor-
naram inadequados diante da inundação de transformações
operantes na sociedade no século XX.
Nestes casos, onde a ciência entra em
colapso, só resta a abdução, a teoria, e
é nesse ponto que se abre um possível
contato para a arte e o estético. Cria-
-se então um vácuo, uma tábula rasa, e
isso, ao mesmo tempo que é inquietan-
te, também é entusiasmante, porque se
abre a janela para o criativo, o experi-
mental, isto é, no fundo existe a possi-
bilidade de reunir estas áreas, de esta-
belecer uma coerência (holismo) entre
elas. (p. 24).
A partir do momento em que se compreende que, “à ciên-
cia e à arte, valerá mais o claro enigma da poesia indecifrá-

451
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

vel do que a ilusão árida de luz dos mapas esquadrinhados”


(RAMOS, 2012, p. 18), rompem-se as barreiras que separa-
vam os dois termos. No lugar do abismo, pontes. Do terreno
que se pensava estéril, rosas. Da interterritorialização entre
arte e ciência, a renovação, essencial à sobrevivência das duas.
O mesmo abismo que, sob um olhar superficial, descui-
dado, parece colocar arte e ciência em caminhos opostos, se-
para a dança e sua história. De um lado, a tradição escrita, a
exigência da verdade em nome do científico, a pesquisa e a
permanência das fontes, o trabalho na biblioteca e a escrita
no escritório. Do outro, a tradição oral, a cultura do sensível, a
efemeridade de uma arte pautada no aqui e agora, que pouco
(ou nada) se preocupa em deixar registros, o trabalho nas salas
de dança e a consolidação nos teatros. História e dança pare-
cem, sob esse ponto de vista, inconciliáveis (LAUNAY, 2012).
A história da dança parece ser uma ciência sem lugar, pouco
reconhecida não só pelas ciências humanas, mas também por
bailarinos. Contudo, ainda assim, nota-se nela um protago-
nismo em relação à dança, possivelmente justificado por uma
hierarquização que sobrepõe a tradição escrita à oralidade,
principal fonte de transmissão da dança (LAUNAY, 2012). A
fragilidade da dança diante de sua história repousa justamen-
te na dificuldade de registrá-la. Como armazenar a dança?
Como transmiti-la ao longo de gerações senão pelo gesto?
Ao que parece, a história da dança caiu no problema da
especialização, próprio da ciência. Alheio às transformações
que (re)contextualizaram cultura e sociedade, o conhecimen-
to especializado tornou-se um conhecimento fechado em si
mesmo, restrito a uma elite minoritária e desconectado tanto
das preocupações de bailarinos e coreógrafos, quanto de suas
propostas artísticas. Um conhecimento à parte, inaplicável ao
“fazer dança”. Isolado, incapaz de se renovar.

452
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

Launay (2012) observa, porém, que, nos últimos vinte


anos, esse cenário tem-se deixado alterar. O terreno vem se
mostrando fecundo para o diálogo: historiadores escutam o
que artistas têm a dizer sobre suas propostas artísticas, e ar-
tistas enxergam na história uma possibilidade para a criação.
Surge, dessa maneira, uma nova historiografia, uma nova
escrita para a história da dança, fundamentada na memória
do gesto. A recente historiografia tenta uma conexão entre a
história e a memória, esta compreendida aqui em toda a sua
complexidade como “um processo perpétuo de reinvenção
do passado no presente” (LAUNAY, 2013, p. 89). Procura ain-
da fabricar novas fontes e arquivos; articular saber histórico,
somático e cinético através da análise do gesto; questionar
as concepções de obra, autor, data e corrente, bem como de
pertencimento; propor intercruzamentos entre narrativa his-
tórica, processo criativo, gesto e coreografia (LAUNAY, 2012).
É uma historiografia alicerçada na concepção de que “a dança
é uma arte viva – no momento do gesto dançado, o passa-
do não pára de se reconfigurar e de gerar figuras ainda não
advindas” (LAUNAY, 2013, p. 90). Propõe-se, portanto, uma
história contada com base nas transformações das obras de
dança e, por isso mesmo, organizada de forma heterocrônica,
envolvendo obras que renascem fora de seu contexto origi-
nal, em um processo contínuo e atemporal de (re)construção.
Trata-se então de emancipar a memória
oral do fechamento identitário e suas
imposturas através do exercício crítico
da história, e de emancipar o discurso
histórico de suas certezas de verdade
através de sua colocação à prova com
o contato com o terreno artístico, no
qual se desdobra uma grande parte da
memória do gesto e das obras em dança.

453
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

A partir daí, o monopólio da verdade


“mais verdadeira” não pode perten-
cer nem ao historiador, nem ao artista.
(LAUNAY, 2012, p. 145).
Sendo assim, o que nos resta, nos dias atuais, da história
da dança, compreendida como disciplina histórica? Do mes-
mo modo, o que, dentre as produções artísticas, tem força
suficiente para se eternizar? Do ponto de vista de Launay
(2012), na dança, uma história coerente com a prática ar-
tística só pode ser contada com base na memória de gestos
sobreviventes. Os nachleben, como Warburg (2015) nomeia
“aquilo que ficou perdido no passado”, resistem ao tempo
e, armazenados na forma de uma memória social e coletiva
(engrama), reaparecem em situações particulares, metamor-
foseados, travestidos de uma ideia de novidade. Isso possi-
bilita não só aos gestos, mas também à dança em si, uma
relação com o passado nos termos do fenômeno observado
por Benjamin (2000), em que a ideia de transmissão é substi-
tuída pela ideia de citação.
Sobre a citação, Waizbort (2015, p. 10) explica que “sua
presença revela-se de modo evidente, mas os sentidos são
frequentemente intrincados e alusivos, e são sempre transfor-
mados”. Quando reaparecem nas citações, as formas mudam,
e muda também o olhar do indivíduo sobre elas. Na busca
por vestígios de obras anteriores, num árduo e meticuloso
rastreamento da erudição, verifica-se não somente a identi-
ficação, mas também a articulação de elementos inusitados.
Tal como bailarinos e/ou coreógrafos apoiam-se hoje na
ciência com o intuito de olhar para seu trabalho com maior
lucidez, também o cientista/historiador se permite adentrar
na sala de ensaio a fim de compreender o sentido de um ges-
to antigo. Desfaz-se assim o abismo “entre aqueles [que] se

454
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

supõe saber e não fazem, e aqueles [que] se supõe fazer e não


sabem” (LAUNAY, 2012, p. 46). No lugar do abismo, interco-
nexões, transterritorialidade, diálogo com o além-fronteiras.
Surgem, assim, florestas densas, em que artistas e cientistas,
historiadores e bailarinos têm a oportunidade de atingir seus
objetivos com a máxima potência (SANTAELLA, 2012).
Neste cenário, aberto a múltiplas possibilidades, torna-se
fundamental a escolha de metodologias coerentes, ou seja,
a correta definição do “como” abordar a dança (objeto artís-
tico) sob o viés da história, compreendida como ciência que
estuda acontecimentos passados. Machado (2006) defende
que o objeto artístico não é, mas está: ele surge das inúmeras
possibilidades de ser. Situado em um campo de natureza hi-
potética, estrutura-se por meio de suposições e intuições. E,
em consonância com tal especificidade, as metodologias de
estudo a ele aplicáveis devem estruturar-se na incerteza que
lhe é inerente. Metodologias moldáveis e abertas a transfor-
mações. Efêmeras, transitórias, provisórias, pois,
por mais que se estude e pesquise deter-
minado objeto, estes estudos e pesquisas
serão sempre representações do objeto
e nunca o próprio objeto; “quanto mais
tentamos nos aproximar do objeto di-
nâmico, mais mediações vão surgindo”
(Santaella, 1989: 88). Em primeira ins-
tância, isso constitui a natureza de todo
e qualquer tipo de relação: ser mediado
por signos. (MACHADO, 2006, p. 93).
Ao compreender isso, diz Machado, torna-se possível ul-
trapassar a barreira do medo de racionalização da arte em de-
trimento da “rica experiência emocional e sensível” do fazer
artístico. Assim se faz viável estreitar os laços entre arte e ciên-
cia (dança e história) mediante a escolha de metodologias ca-

455
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

pazes de abraçar a essência da arte e permitir-lhe um contí-


nuo processo de (re)construção.
Launay (2012) menciona dois diferentes trabalhos em que
as metodologias aplicadas favorecem ricos entrecruzamentos
entre história e dança, e provocam discussões sobre a memó-
ria das obras presente em danças contemporâneas. O primei-
ro, Les Carnets Bagouet, diz respeito a um coletivo de reflexões
que analisam a transmissão na dança. Os Carnets Bagouet
eram bailarinos/intérpretes das obras de Dominique Bagouet,
e, após a morte deste seu coreógrafo, optaram por dissolver
a Compagnie Bagouet e criar, em seu lugar, um espaço de
jogo para promover a disseminação de seu legado. Analisan-
do obras, técnicas e períodos vivenciados pela companhia e
confrontando lembranças com registros escritos e em vídeos,
eles buscavam historicizar uma maneira própria de dançar.
Para isso criaram arquivos emergentes de um processo de
desconstrução/desmontagem, visando oportunizar a reinter-
pretação/recriação/encenação das obras da companhia.
O segundo trabalho, D’un faune... (éclats), ou De um fauno...
(estilhaços), do grupo Quatuor Knust, é um espetáculo feito
com base no trabalho emblemático de Nijinski, L’Après-midi
d’un faune (A tarde de um fauno). Este segundo trabalho levan-
ta questões sobre a retomada de obras históricas, mostrando
que ela pode se dar de maneira interessante, sem se tornar
uma cópia da obra resgatada ou tentar se passar por um ori-
ginal dela. Na visão de Launay (2012), propostas de retomada
de obras que carregam em si um simbolismo histórico só se
fazem estimulantes se forem capazes de expor o “movimento
de construção”, ou seja, a essência, a força, da obra original e
todos os estratos históricos que a constituíram.
Trata-se, portanto, de uma metodologia que pode apon-
tar o caminho percorrido pela obra desde sua criação e, con-

456
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

sequentemente, mostrar suas adaptações necessárias a cada


contexto em que ela tenha ressurgido e permitido se ressigni-
ficar. Afinal, como afirma Martha Ribeiro (2006, p. 29),
se desejarmos realmente interpretar
um texto com arte, e não simplesmente
usá-lo, devemos ter em mente que todo
texto é uma construção, uma estrutura
que indica percursos, e que, como tal,
deve ser respeitado.
A mesma reflexão pode ser transposta para qualquer obra
ou objeto artístico que, nessa perspectiva, trace um caminho
próprio, não podendo esse caminho ser ignorado por quem
dele decidir se apropriar.
A escolha de uma obra e seu trajeto demanda, principal-
mente do artista, um distanciamento dessa obra como forma
de entrar em um processo de autoanálise. Nesse processo, o
artista precisa romper com resistências e dogmas, olhar para
seu próprio trabalho com lucidez, desconstruir a experiên-
cia passada para dela inventar outras, renascer, ressignificar,
e tudo isso, às vezes, torna o processo doloroso. Mas só assim
ele consegue “descobrir seus próprios suportes de inscrição
de acontecimento dançado, visando não somente transmitir
a dinâmica de uma obra, mas alimentar a própria dinâmica
do desejo de transmiti-la” (LAUNAY, 2012, p. 148).
Quando processos criativos em dança tornam-se permeá-
veis e se deixam atravessar pela história da dança,
bailarinos performam diante do públi-
co o trabalho do historiador, “suas ope-
rações históricas” (para retomar De Cer-
teau), que consistem em “construir” o
objeto histórico. Esse trabalho genea-
lógico era assim definido por Foucault:
“aprender o retorno dos acontecimen-

457
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tos não para traçar a curva lenta de uma


evolução, mas para encontrar as dife-
rentes cenas em que eles desempenha-
ram papéis diferentes”. (p. 150).
Diante dessas possibilidades historiográficas de dança, en-
tra em crise a concepção de obra como objeto estável, originá-
rio, original e permanente, e caem as ideias de pertencimento,
autoria, ineditismo e identidade. Esfacela-se também a ideia
de obra-prima e se democratiza a transmissão, que passa a
ser possível a qualquer indivíduo que se interessar pela obra.
E mais: emancipa-se a obra do tratamento mercantil (de-
signação de obras como valores certos) e destrói-se a ilusão
de que, tal como um móvel velho, uma obra de arte possa
ser transmitida por gerações. O processo de transmissão na
dança passa a existir somente por meio de transformações,
traduções, transduções e alterações (LAUNAY, 2013).
Desenha-se, assim, uma nova história da dança, uma his-
tória anacrônica, heterogênea, desierarquizada, contada atra-
vés do gesto e dos contextos em que ele esteve inserido. Afi-
nal, a dança não acaba simultaneamente à conclusão de um
trabalho e tampouco se inicia com ele. A dança perdura. Em
conjunto com a memória, apropria-se de rastros e vestígios, e
deixa em seu percurso outros que também terão a oportuni-
dade de ser apropriados e transformados, constituindo outras
obras, em um processo cíclico de reinvenção do passado no
presente (LAUNAY, 2013). Os gestos sobrevivem, de modo
que – não há dúvidas! – é preciso reconhecer a sua história.
Entretanto, tomados por uma ingenuidade que atravessa tan-
to artistas quanto cientistas e, por consequência, bailarinos,
historiadores e espectadores, permitimo-nos (se não deseja-
mos) produzir e consumir o novo como se ele fosse inédito,
ignorando as inúmeras citações que aparecem em cada obra

458
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

(LAUNAY, 2013). Abandonamos memórias, negamos o pas-


sado. Alheios aos caminhos percorridos, rejeitamos a história
da dança e as inúmeras possibilidades que ela pode propor-
cionar à prática de bailarinos e coreógrafos.
E o fato é que não mais importa o dançarino, mas a dança.
Noções de autoria, pertencimento e originalidade não cabem
no século XXI. É preciso assumir o quanto é vã a busca pelo
original, pois tudo é a absorção e a transformação de uma
outra coisa. O novo não passa de uma readaptação contextual
de citações ultrapassadas. Independente da forma de aborda-
gem – aleatória ou assumida, voltada à lembrança ou home-
nagem, à subversão ou fidelidade, literal ou mascarada –, as
citações constituem o caminho pelo qual a dança e a história
se estruturam.
Mathilde Monnier oferece uma figura
coreográfica à primeira das Ficções de
Borges, [segundo o qual] [...] “todas as
obras são a obra de um único autor atem-
poral e anônimo [...]”. Há tantos gestos
quanto há cidades de bailarinos. As
coreografias se tornam, assim, pedaços
de um vasto conjunto coletivo chama-
do dança e formam um corpus que per-
tence a todos e no qual todos podem
se reconhecer. Se a cópia e a dublagem
aparecem como o oposto da dança
(copiar não é criar), elas são, ainda as-
sim, sua definição. No fundamento de
toda criação, existe um gesto preceden-
te. (MONNIER, 1951 apud LAUNAY,
2012, p. 99).
Compreender a dança e suas infinitas possibilidades sob
a perspectiva do conhecimento histórico contribui, assim,
para elucidar o quão ricas e necessárias são as interterrito-

459
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

rializações entre arte e ciência na atualidade. A ciência traz


luz ao processo criativo, sendo incapaz de ofuscar a poética
que lhe é inerente. Desse ponto de vista, a ciência não tem
por objetivo explicar a arte. Nem poderia. Mas constitui uma
fonte de conhecimento capaz de fazê-la renascer, muito mais
forte. Quando compreendida como práxis, como experiência
humana, a arte potencializa-se. Tal como ela é, deve-se estu-
dá-la em caráter processual, tomando-a como algo que está
em contínuo movimento. Do mesmo modo, somente se apli-
cam a ela metodologias coerentes com as suas tão delicadas
particularidades. “Assim, o meramente lúdico é completado
pelo lúcido, pois Mestre é aquele que domina as regras de seu
jogo” (PLAZA, 1997, p. 30).
E a arte, ávida, sobrevive sob os olhares apoéticos da
ciência...

Referências

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460
Das transformações da arte e ciência e suas elucidações na historiografia do gesto dançado

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WAIZBORT, Leopoldo (org.). Apresentação. In: WARBURG, Aby.
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cias. Tradução Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Cia. das Letras,
2015. p. 7-22. (Coleção História social da arte).
WARBURG, Aby. Introdução à Mnemosyne. In: WARBURG, Aby.
Histórias de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferên-
cias. Tradução Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Cia. das Letras,
2015. p. 363-376. (Coleção História social da arte).

461
O Ritual da Queima dos Tambores:
símbolos de um rito

Taiom Nunes Faleiro1


Alexandre Silva Nunes2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo rela-


tar e discutir a manifestação cultural denominada Ritual da
Queima dos Tambores, examinando suas possíveis contri-
buições para os estudos sobre a dimensão ritual e perfor-
mática das artes da cena. Como membro da comunidade
envolvida com esse ritual, fazemos o relato com um olhar
de dentro, mas buscando nos distanciar da experiência e

1 Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG).


Faz parte do grupo Os Tawera, com atividades artísticas que percorrem
desde a cultura popular (pesquisa com bonecos gigantes) até a arte ritual
(atividade fixa do Ritual dos Tambores). Em 2014, participou de um grupo
profissional de dança, o grupo Lamira, atuando nos espetáculos Olhai por
nós, Do repente, Gibi e Adorno da realidade. De 2017 a 2019, ministrou aulas
no Instituto Federal do Tocantins, Campus Gurupi, no curso de Artes
Cênicas.
2 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, mestre em
Artes pela Universidade Estadual de Campinas e licenciado em Educação
Artística, com habilitação em Artes Cênicas, pela Universidade Federal de
Pernambuco. É professor associado e coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena da Emac-UFG. É editor-chefe da revista
Arte da Cena e líder do grupo de pesquisa Imagem, Mito e Imaginário nas
Artes da Cena (Íman). Coordena o Laborsatori, Núcleo Multidisciplinar
de Pesquisa nas Artes da Cena, da UFG, e o Festival Universitário de Artes
Cênicas de Goiás (Fuga). É cofundador dos Encontros Arcanos, da UFG,
evento itinerante de pesquisa interdisciplinar das relações entre arte, mito
e imaginário. Na UFG, foi também membro do Conselho Deliberativo
da Fundação Rádio e Televisão Educativa e Cultural (RTVE), de 2014
a 2015. É autor do livro ATOR, SATOR, SATORI: labor e torpor na arte de
personificar, publicado pela Editora da UFG.
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

lançando mão do diálogo com o orientador do trabalho e


com os autores utilizados como referência. O conceito de
“teatro das origens”, formulado por Zeca Ligiéro, é utilizado
como ferramenta de categorização da manifestação cultu-
ral em apreço, no contexto das artes da cena. A festividade
mencionada é caracterizada por resguardar elementos estru-
turais de conotação ritual, como a formação circular e o uso
de fogo, música percussiva, cantos e contações de histórias.
O pressuposto de partida é que tais elementos contribuem
para uma forma de participação ativa dos espectadores e
fortalecem a relação deles com as imagens psíquicas que
carregam consigo.
Palavras-chave: Ritual da Queima dos Tambores; sim-
bologia do fogo; teatro das origens.

El Ritual de la Quema de los Tambores: símbolos de


un rito

Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo relatar


y discutir la manifestación cultural denominada Ritual de
Quema de Tambores, examinando sus posibles contribucio-
nes para los estudios sobre la dimensión ritual y performá-
tica de artes de escena. Como miembro de esta comunidad,
informamos desde el interior, tratando de distanciarnos de
la experiencia a través del diálogo con el supervisor del tra-
bajo y con los autores utilizados como referencia. El con-
cepto del “teatro das origen”, formulado por Zeca Ligiéro,
es utilizado como herramienta del la categorización de esta
manifestación cultural, en el contexto de artes de escena.
La manifestación mencionada es caracterizada por resguar-
dar elementos estructurales de connotación ritual, como la
formación circular y el uso del fuego, música de percusión,
cantos y narración de la historia. El supuesto de partida es
que tales elementos contribuyen para una forma de partici-

463
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

pación activa de espectadores y fortalecen su relación con


las imágenes psíquicas que llevan consigo.
Palabras clave: Ritual de la Quema de los Tambores;
simbología del fuego; teatro de orígenes.

Introdução

O presente trabalho visa investigar os conceitos de ritual


em uma manifestação popular no Tocantins, chamada Ri-
tual da Queima dos Tambores. Por se tratar de uma manifes-
tação sem aparentes registros científicos, focaremos na aná-
lise estrutural da festividade e na análise das letras de mú-
sicas que compõem o ritual. Acreditamos que essas músicas
possuem um material rico de informações e, portanto, capaz
de promover a compreensão do ritual aqui pesquisado. Para
estudá-las, procuraremos nos respaldar em pequenos comen-
tários conceituais de autores como Zeca Ligiéro e Richard
Schechner no intuito de embasar a noção de rito analisada
nesta pesquisa. Além desses autores, utilizaremos os estudos
de Carl G. Jung, Joseph Campbell e Gaston Bachelard, que
nos apontarão certas compreensões da noção simbólica que a
manifestação investigada possa conter.
O Ritual da Queima dos Tambores completa, em 2021,
dezoito anos consecutivos de festividade. Essa tradicionali-
dade foi um dos motivos que nos levaram a pesquisá-lo, sem
dizer que se trata de uma importante atividade cultural no
Norte do país ainda não relatada. O ritual é realizado no Pon-
to de Cultura Aldeia Taboka Grande, em Taquaruçu.3 No in-
3 Taboca é a designação comum da taquara, que, de acordo com o Dicionário
tupi-guarani (2020), é uma “planta das gramíneas que alcança grande
altura”. Em razão da cavidade da haste desta planta, o dicionário citado
conceitua taquara também como “tronco ou haste furada”.

464
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

tuito de melhor explicar seu processo de criação e realização,


faremos uma digressão para apresentar informações necessá-
rias sobre o entorno deste ritual, esperando que, no fim, seja
possível fazer uma análise mais significativa do evento.
Taquaruçu é distrito do município de Palmas, no estado do
Tocantins. Este pequeno vilarejo tem por volta de 80 cachoei-
ras catalogadas, sendo as principais a Cachoeira da Ronca-
deira, a Cachoeira do Evilson e a do Vale do Vai Quem Quer.
O turismo de lazer e aventura é uma das principais fontes
de renda do distrito. São quase 120 atrativos naturais, como
mirantes, vales e cavernas, além da maior tirolesa da região
Norte, a Tirolesa Voo do Pontal, que é a terceira maior do
Brasil. Um desses atrativos é o mirante Pedra do Pedro Paulo,
que se encontra na referida Aldeia Taboka Grande. Sua trilha
registra 600 metros de subida entre árvores nativas do cerra-
do. A pedra tem o formato de mesa, e de lá se tem a vista do
Vale de Taquaruçu.
Ao lado de suas várias atrações naturais, Taquaruçu ain-
da comporta uma diversidade de manifestações culturais.
O pequeno vilarejo registra quatro pontos de cultura, sendo
três municipais: Ponto de Cultura Canto das Artes, Ponto de
Cultura Casa de Caboclo e Ponto de Cultura Circo os Kaco.
O quarto ponto pertence ao âmbito federal: é o Ponto de Cul-
tura Aldeia Taboka Grande, que será nosso foco de discussão,
especialmente no que se refere ao objeto da pesquisa, o Ri-
tual da Queima dos Tambores.
A Aldeia Taboka Grande foi contemplada como ponto de
cultura pela Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural
do Ministério da Cultura (Minc), no programa Cultura Viva
(seleção do edital em 2005). Ela mantém uma proposta de tra-
balhos culturais em sintonia com a preservação da natureza,
entre eles, a oficina Okodopau, que ensinava a produzir tam-

465
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

bores artesanais e proporcionava vivências em teatro, música


e dança no ritmo “capoeboicongo” (NASCIMENTO, 2007).
Dois desses trabalhos foram primordiais para a aprovação
da aldeia como ponto de cultura: os bonecos gigantes, apre-
sentados desde 2001 pelo Bloco Taboka Grande, que reali-
za seus desfiles uma vez ao ano, no domingo de Carnaval, e
o Ritual da Queima dos Tambores, apresentado desde 2002.

O cortejo dos bonecos gigantes

O bloco de carnaval Taboka Grande, com seus bonecos gi-


gantes, foi fundado por Wertemberg Pereira Nunes. Ele foi o
idealizador do Ponto de Cultura Aldeia Taboka Grande, pelo
qual é responsável. Tocantinense criado na região do Jalapão,
Wertemberg é ator, dramaturgo, encenador, compositor e tu-
rismólogo, e foi reconhecido como Mestre de Cultura Popu-
lar pelo Prêmio de Culturas Populares 2007, do Ministério
da Cultura (PARAGUASSÚ, 2008). Seu trabalho é fruto de
suas andanças e de seus olhares atentos às diversas mani-
festações culturais do país. As manifestações que observou,
principalmente as do boi, estiveram presentes em algumas
peças teatrais de sua autoria, como Caminhos de Demé e Boizi-
nho sonhador. A capoeira teve influências tanto em suas com-
posições como no treinamento de atores de seu extinto grupo
teatral, Pingo D’água (Goiânia, GO). Durante sua estadia de
três anos em terras capixabas, aprendeu também o ritmo e a
cultura do congo. Na Figura 1, ele aparece cantando uma de
suas canções, Procura, da qual destacamos o seguinte trecho:
Às vezes a gente procura um sonho,
um lugar, um caminho pra se viver em
paz. A vida é essa procura, cruzados ca-
minhos que nos ensinam, como o mar,

466
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

a se viver em paz. Andei... E não pude


encontrar um lugar que fosse meu, tive
que criar. Tem o tempo de plantar, tem
o tempo de colher, tem o tempo que dá
tudo, noutro tempo nada faz, equili-
brando o tempo, aprendi a viver em paz.
(NUNES, 2004).
Figura 1 - Wertemberg Nunes cantando no Ritual da Queima dos
Tambores (2019)

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

De 1982 a 1992, Wertemberg ocupou o cargo de presiden-


te da Confederação Nacional de Teatro Amador (Confenata).
Foi depois de seu retorno ao estado do Tocantins, no ano de
2000, passados mais de vinte anos fora, que decidiu compilar
suas experiências culturais com a criação do Ponto de Cultu-
ra da Aldeia Taboka Grande. Seu trabalho pode ser entendi-
do como uma junção das células rítmicas do boi, da capoeira
e do congo, o ritmo “capoeboicongo”, como ele denominou
essa fusão. Este ritmo é de fundamental importância para os
trabalhos da Aldeia Taboka Grande e para o Ritual da Quei-
ma dos Tambores, pois as composições e as brincadeiras rea-

467
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

lizadas pelos “brincantes” durante essas atrações são criadas


em consonância com ele.
Por aproximadamente seis anos (2001-2007), o desfile dos
bonecos gigantes de Wertemberg foi uma das principais atra-
tividades culturais da Aldeia Taboka Grande. A cada ano, o
desfile tinha um tema, que era expresso por meio de músicas
e adereços relacionados a ele. Essas músicas-tema traziam
particularidades constitutivas da aldeia, como pode ser per-
cebido neste fragmento:
Minha aldeia não tem água, não tem
água em minha aldeia, lá tem bicho
do cerrado, rastejando pelo chão, voa
Pomba e Ararinha, tem Rolinha e Ga-
vião. Ipê-Roxo e Amarelo, Jatobá, Bar-
batimão, Tem fulô de todo tipo prôs
que gostam de paixão. Minha aldeia é
força, minha aldeia é bela, minha aldeia
é moça, minha aldeia é velha, minha al-
deia é pau, é pedra, é fogo, Taboka Gran-
de é o nome dela. (NUNES, 2008a).
Esta música foi feita como uma menção ao fato de a Al-
deia Taboca Grande não ser contemplada com nenhuma das
oitenta cachoeiras que Taquaruçu registra em sua cartografia.
Felizmente, porém, existem ali fortes componentes naturais,
conforme relatado na letra acima transcrita. Aliás, um ele-
mento bastante valorizado na aldeia é a harmonia entre o ser
humano e a natureza. Na música se percebe uma junção en-
tre a ação do homem e os elementos naturais: “Minha aldeia
é força, minha aldeia é bela; minha aldeia é moça, minha al-
deia é velha, minha aldeia é pau, é pedra, é fogo”. Todos estes
elementos juntos formam a Aldeia Taboka Grande, com seus
preceitos éticos, morais e culturais.

468
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Do bloco de carnaval Taboka Grande e seus bonecos, ori-


ginou-se o Ritual da Queima dos Tambores, objeto central
da presente pesquisa. Tendo fortes conotações mitológicas, o
Bloco propunha contar a história da fundação do distrito Ta-
quaruçu, e é deste objetivo que surge a denominação Taboka
Grande. A história era contada através de um cortejo que saía
da casa do mestre popular Wertemberg e percorria diversas
ruas do vilarejo.
No início, o Bloco tinha como estrutura cinco bonecos: o
Tabokão, representante da força da terra e da energia masculi-
na, composta pelas serras de Taquaruçu; a Boiúna, símbolo da
força feminina e das águas das cachoeiras e córregos do vilare-
jo; o boneco Amarelo, representante da manifestação humana
e dos habitantes do lugar; a boneca Mãe Bá, em alusão à mãe
de leite, e o Boi, em referência às pesquisas feitas pelo mestre
sobre a cultura do boi, do Maranhão. O cortejo era animado
pelo ritmo capoeboicongo e pela música Taboka Grande:
Alegre eu vou, vou com meu amor, lá em
Taquaruçu, alegre eu vou. Por um mun-
do melhor, vamos subir a serra, pra ver
Taboca Grande, muita gente chega lá e
eu vou lá; espalhando alegria nesse bloco
eu vou amar [...] Lá vem Boiúna grande,
com seu cordão de festa a boiúna está na
rua, paixão de cobra é grande como a mi-
nha e como a sua. (NUNES, 2001).
No terceiro ano do bloco (2003), surge mais um importan-
te boneco, o Cobaçu. Este boneco representa a força da terra
e das águas, das quais brota toda a natureza. A confecção do
Cobaçu é baseada no artesanato de Taquaruçu, utilizando
elementos do coqueiro babaçu: “Peneira pra se vender, balaio,
esteira e jacá, minha casa, óleo e dendê, tambor dança, meu
Cobá” (NUNES, 2003).

469
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Nos anos seguintes, essa festividade, que viria a se trans-


formar no Ritual da Queima dos Tambores, passaria a contar
a história não só de Taquaruçu, mas também de Palmas e de
seus principais bairros. Assim surgiriam ainda quatro novos
bonecos míticos, cada um representando um bairro de Pal-
mas com suas características elementares (Figura 2). Em sín-
tese, teríamos o boneco Imperioso, representando o comércio
de Taquaralto, que abriga um importante fluxo comercial de
Palmas; o Galo União, alusivo à região dos Aureny I, II e III,
e símbolo da força do povo e de seu trabalho; o Galo Alto,
representativo da região das Arnos,4 e, por fim, o boneco
Mahanduká, que representa a modernidade do centro de Pal-
mas. Estaria assim constituída a representatividade mítica de
Palmas, abrangendo desde o que há de mais antigo na capital
até os tempos modernos. Essas manifestações são realizadas
anualmente, há quase vinte anos, na Aldeia Taboka Grande.
Figura 2 - Bonecos gigantes da Aldeia Taboka Grande. Da esquerda
para a direita, no fundo, Galo Alto, Imperioso, Galo União, Tabokão e
Mahanduká, e, no centro, a Boiúna

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

4 Arnos, Taquaralto e Aureny são todos bairros da capital do Tocantins,


Palmas. Taquaruçu, conforme já referido, é distrito desta capital.

470
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Já no segundo ano do Bloco Taboka Grande (2002), sur-


gem as primeiras ideias do que viria a ser o Ritual da Queima
dos Tambores. Nesse ano, o evento ainda não tinha um cará-
ter ritualístico, identificando-se mais com um esquenta pré-
-Carnaval. Era uma festa particular chamada Queima dos
Tambores e que acontecia uma semana antes do Carnaval –
logo, as datas eram maleáveis, segundo o calendário oficial do
Carnaval de cada ano. A festa tinha como intuito divulgar e
preparar os tambores para o cortejo dos bonecos na semana
seguinte.
Os tambores que saíam no Bloco Taboka Grande eram ar-
tesanais, feitos de madeira ocada e couro de boi. Sua confecção
se iniciava na “semana derradeira” (uma semana antes) do cor-
tejo e marcava o início dos ensaios da banda Taboka Grande.
Também eram ministradas oficinas de ritmo capoeboicongo,
destinadas aos interessados em tocar no cortejo na semana
seguinte. Logo, além de servir como forma de divulgação do
cortejo dos bonecos, a Queima dos Tambores tinha como prin-
cípio dar início a um trabalho de finalização dessa apresen-
tação. A partir do ano de 2005, dois fatores contribuíram para
a festa mudar de caráter, passando a se chamar definitivamente
Ritual da Queima dos Tambores: a abertura do edital que ins-
titucionalizou o Ponto de Cultura e a aquisição de uma sede
própria para ele, a já mencionada Aldeia Taboka Grande.

O Ritual da Queima dos Tambores

Nesta última seção, vamos relatar as etapas constitutivas


da ritualística da Queima dos Tambores. Segundo o mitólogo
Joseph Campbell (2008, p. 58), “os ritos de determinada cul-
tura reproduzem seu mito fundamental. Pode-se definir um

471
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ritual [...] como a oportunidade de participar diretamente em


um mito”. Observamos que algo dessa natureza ocorreu na
criação do Ritual da Queima dos Tambores, em Taquaruçu. A
primeira mudança na queima dos tambores, de modo a trans-
formá-la em um ritual específico, foi essa representatividade
que ela passou a dar a um mito, conforme mencionado por
Campbell. Afinal, o Ritual da Queima simboliza a abertura
das atrações culturais da Aldeia Taboka Grande, operacio-
nalizadas através de um rito de purificação e transformação
amparado numa mítica específica que se originou na própria
Aldeia. Oficialmente chamado Queima dos Turimbós, esse
ritual expressa “a consciência mítica de misturas de tradições
e raízes da Aldeia” (TRADICIONAL RITUAL..., 2021). O tu-
rimbó é um tronco de madeira ocada usado na confecção dos
tambores, um neologismo criado pelo mestre popular Wer-
temberg Nunes, com origens na língua tupi-guarani.
Um dos fatores de origem do ritual da queima foi a con-
fecção de tambores artesanais para a banda Taboka Grande.
Com o passar dos anos, esse trabalho tornou-se um ato pú-
blico que “espetacularizava” o processo em um ritual especí-
fico. Resumidamente, o ritual tem como objetivo prático a
queima do centro de um tronco de madeira, o turimbó, para a
futura produção de um tambor (Figura 3). A madeira tem de
se abrir até a circunferência desejada, de modo que a abertura
não venha a interferir na confecçção do tambor.
A queima começa com o rito de acender
o Turimbó (“Turi”, a tocha ou fogueira em
tupi). [Trata-se de uma] junção de “curi”
(pau oco) e “m’bó” (furado). Essa espécie
de fornalha de barro ou madeira é onde
se modelam e afinam os tambores arte-
sanais de capoeboicongo. No Turimbó são
feitos pedidos de [purificação e] transfor-

472
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

mação do que está ruim para algo bom,


e, na força do fogo presente, cantam-se
os mitos da “Aldeia Taboka Grande”,
além de canções de raízes populares das
brincadeiras de Boi, da Capoeira e do
Congo. (QUEIMA DE TAMBORES...,
2020, grifo nosso).
Antes de se acender o fogo no turimbó, colocam-se numa
cabaça cerrada ao meio pequenos pedaços de madeira, tam-
bém conhecidos como cavacos, que serão ofertados ao públi-
co participante do rito de purificação e transformação. Cada
um deve pegar um cavaco e fazer um pedido, solicitando que
algo que julgue ruim em sua vida queime e se transforme em
algo bom. Após a realização desse pedido (em silêncio ou em
voz alta, como se queira), joga-se o cavaco dentro do turimbó
para que se queime quando este for aceso e, com isso, ocorram
a purificação e a transformação pretendidas. Nesse processo
de purificação e transformação, estão presentes influências
indiretas de vários mitos de morte e renascimento relativos
a culturas diversas desenvolvidas ao longo da história da hu-
manidade. São mitos que representam o fim de um ciclo e o
surgimento de um novo (CAMPBELL, 2008).
Quando se acende o turimbó, o puxador de cantos, em
reverência ao elemento natural fogo, recita a primeira “cha-
mada”, espécie de música sagrada e/ou ritualística usada em
manifestações populares nas sociedades ancestres:
O fogo é trator de pobre, elemento nobre
transformando a terra. Quem não conhe-
ce o fogo não sabe o que o fogo dá. Quem
não respeita o fogo não sabe os perigos
que há. Chamo, chamo o fogo.
A essa chamada, o público participante responde em coro:
“Vem, fogo” (NUNES, 2010a). Canta-se essa música por al-

473
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

guns minutos, até que o fogo comece a queimar a madeira.


Tanto a incandescência do fogo quanto a fumaça produzida
simbolizam a realização dos pedidos depositados no turimbó.
O fragmento abaixo faz parte de uma chamada de saudação
ao fogo, composta por Nunes (2005) (Figura 3):
Alegre, alegre eu vim, alegre, alegre eu
vou, na queima dos Tambores alegria paz
e amor. Vem, vem, vem; vem meu amor
não deixe a roda parar, vem mostrar no
Turimbó o teu jeito de dançar. Capoeira,
boi e congo e um berimbau pra tocar, tra-
dição do meu país e da cultura popular.
Figura 3 - Mestre Wertemberg Nunes cantando em frente ao turimbó
aceso a música Saudação (2019)

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Até que o fogo no turimbó se propague a ponto de não mais


se apagar, demora-se um tempo (cronologicamente não deter-
minado, porque depende de cada experiência) durante o qual

474
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

os performers5 realizam contações de histórias. Essas histórias


são contos e lendas de tradição oral, alguns referentes à Al-
deia Taboka Grande, outros relacionados a assuntos da vida
comum. Os contos têm afinidades com a vida de todas e todos,
e servem como indutores de reflexões diversas capazes de pro-
duzir amadurecimento entre os participantes no que tange aos
pedidos realizados. A intenção é que, aliados ao elemento fogo,
presente na queima, esses contos produzam reações capazes de
atuar nos participantes, consciente ou inconscientemente. Ou
seja, espera-se que o rito funcione como uma porta de acesso
ao que Jung (2016) denominou “inconsciente coletivo”.
Por fim, quando o fogo já está inteiramente aceso, entre um
“causo” e outro, procede-se à segunda etapa do ritual, em que
os músicos da banda esquentam o couro dos tambores feitos
em anos anteriores (Figuras 4 e 5). Neste momento, há mais
uma chamada ritualística, específica desta etapa:
Jogue nos Tambores todas suas dores,
todos os seus lamentos, todo sofri-
mento. Acenda os tambores, queima
o que tava ruim; Deus guarde a nossa
casa, proteja a nossa festa, na queima
dos tambores. Puxe na corda e no pau,
puxe no berimbau o som dos tambores.
Na queima dos tambores muita paz e
alegria. A queima dos tambores traz o
fogo e harmonia, queimou, queimou.
(NUNES, 2010b).

5 O termo performers utilizado neste contexto é um mero desígnio dos


participantes (atores em ação). Não há aqui uma preocupação com as
discussões acerca dos conceitos de atuação e performance segundo a
terminologia adotada pelas artes cênicas.

475
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Figura 4 - Tambores artesanais que serão esquentados no turimbó

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Após essa etapa, iniciam-se os cânticos tradicionais de


agradecimento pelo suposto atendimento aos pedidos reali-
zados. A música do turimbó cantada nesse momento traduz
bem os preceitos do ritual da queima:
Vou acender, acender meu turimbó, o
fogo de minha aldeia tudo muda pra
melhor, transformando o que está ruim
pro mundo ficar melhor. Violência e a
maldade eu joguei no turimbó, pedi paz
e harmonia pro mundo ficar melhor.
(NUNES, 2008b).

476
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Figura 5 - Membros da banda Taboka Grande esquentando os tambores


no turimbó

Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Nesse aglomerado de elementos simbólicos, pontuamos


como eixo estruturante do Ritual da Queima sua capacidade
de interação com o público através das simbologias do fogo.
São elas que contribuem para a participação do público nas
práticas do ritual. Existem várias lendas e mitos em torno do
significado simbólico do fogo, que aparece como causa total
ou parcial da purificação e transformação do ambiente e da
vida dos partícipes do ritual. Para apresentar e discutir algu-
mas simbologias do fogo, tomamos como base os estudos do
filósofo Gaston Bachelard (2008, p. 11):

477
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O fogo e o calor fornecem meios de ex-


plicação nos domínios mais variados
porque são, para nós, a ocasião de lem-
branças imperecíveis, de experiências
pessoais simples e decisivas. O fogo é
assim, um fenômeno privilegiado capaz
de explicar tudo.
Qualquer pessoa, ao se colocar diante de uma fogueira,
provavelmente se deterá por um tempo em devaneios olhan-
do para o fogo. Os efeitos sinestésicos desse elemento pare-
cem dialogar com o inconsciente coletivo, tal como Jung o
definiu. O estalar do fogo, a dança das chamas e o cheiro de
madeira queimando possuem propriedades quase hipnóticas
que nos induzem a refletir sobre a vida ou mesmo sobre ações
corriqueiras do dia a dia. Basta que nos disponhamos a per-
manecer por um momento olhando para as chamas. Como
diz Bachelard (2008, p. 25), “o devaneio junto à lareira tem
aspectos mais filosóficos. O fogo, para o homem que o con-
templa, é um exemplo de pronto devir e um exemplo de de-
vir circunstanciado”.
No livro A psicanálise do fogo, Bachelard fala da grande po-
tencialidade de certos elementos para desencadear o que ele
denomina “devaneio”. No contexto amplo das associações
simbólicas que o fogo desperta, conforme o pensamento do
filósofo, notam-se as estritas relações deste elemento com a
intelectualidade. O autor discorre sobre isso no primeiro ca-
pítulo de sua obra quando analisa o “complexo de Prometeu”,
o Titan da mitologia grega antiga que foi retratado na tragé-
dia Prometeu acorrentado, de Ésquilo. Prometeu foi castigado
por Zeus por ter roubado o fogo do Monte Olimpo para dá-lo
aos homens. O fogo roubado por esse Titan seria, segundo
Bachelard, o fogo da consciência, dom até então reservado
aos deuses.

478
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Bachelard explica que o calor do fogo também educa o


frágil instinto curioso de se colocar a mão nele e, nessa passa-
gem, diz: “talvez não se tenha reparado o bastante que o fogo
é muito mais um ser social do que um ser natural” (p. 15). Ele
chama de “substância do capricho” os ensinos que o fogo traz
para aquele que o acende, que o mantém e o observa. Há uma
ciência em acender e manter um fogo aceso, uma sabedoria
existente desde manifestações ancestrais. Essa sabedoria está
implícita na chamada “evocação ao fogo”, feita durante o Ri-
tual da Queima, conforme já citado: “quem não conhece o
fogo não sabe o que o fogo dá; quem não respeita o fogo não
sabe os perigos que há” (NUNES, 2010a).
Em uma análise estrutural do Ritual da Queima, obser-
varemos sua estreita relação com o que o pesquisador e pro-
fessor Zeca Ligiéro (2019), em sua pesquisa Teatro das origens,
chamou de “o quarteto inseparável”. Trata-se dos elementos
mais significativos das manifestações “ritoteatrais” (Zeca usa
essa expressão) das sociedades ancestrais: o cantar, o batucar,
o dançar e o contar.
Ligiéro demonstra que estes elementos estão arraigados
nas manifestações populares e/ou sagradas de quase to-
dos os povos. Ele assume aqui um confronto direto com as
teorias que vinculam e restringem a prática teatral às origens
do teatro grego, com o surgimento ali das noções de persona-
gem e de drama. Em sua visão, esses dois elementos mantêm
todas as manifestações ritoteatrais, ou pré-dramáticas, consi-
deradas como teatro primitivo e de pouca importância para
os estudos do fenômeno teatral. Para ele, o teatro tem ramifi-
cações que vão muito além do drama, e esse quarteto insepa-
rável (cantar, batucar, dançar e contar) é recorrente naquilo
que ele designa como “teatro das origens”. Todos esses ele-
mentos, aliás, estão presentes no Ritual da Queima: as cha-

479
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

madas feitas pelo mestre popular Wertemberg Nunes como


composições estruturantes do ritual, os causos apresentados
e a música percussiva que dialoga com o corpo, de uma forma
inconscientemente espontânea.
O pensamento de Ligiéro é, de certa forma, influenciado
diretamente por Richard Schechner, que orientou sua pes-
quisa de doutorado em Nova Iorque. Entretanto, Zeca pro-
cura descolar-se da teoria geral da performance, formulada por
Schechner, propondo o uso do termo teatro em experiências
que aquele denominaria performances. Sem entrar numa dis-
cussão sobre a pertinência ou não da proposta de Ligiéro,
gostaria de trazer para o debate a noção de ritual elaborada
pelo pesquisador norte-americano, porque ela tem muita uti-
lidade para a compreensão do Ritual da Queima dos Tam-
bores, que classifico tanto como experiência teatral, quanto
como experiência ritual. De acordo com Schechner (apud
LIGIÉRO, 2012, p. 53),
rituais sagrados são aqueles associados
com a expressão ou a promulgação de
crenças religiosas. Entende-se que esse
sistema de crenças religiosas envolve o
comungar-se, orar, quando não invocar
forças sobrenaturais. Estas forças po-
dem residir internamente ou ser sim-
bolizadas por deuses ou outros seres
sobre-humanos. Ou elas podem ser ine-
rentes ao próprio mundo natural – pe-
dras, rios, árvores, montanhas –, como
nas religiões nativas americanas e na-
tivas australianas. Rituais seculares são
aqueles associados com cerimônias de
estado, vida diária, esportes e qualquer
outra atividade não especificamente de
caráter religioso.

480
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Assim, o Ritual da Queima pode ser compreendido como


um tipo de ritual secular, por não ter expressamente feições
religiosas, por mais que tenha em suas raízes aspectos cul-
turalmente arraigados a algumas religiões, como as mani-
festações culturais do boi, congo e capoeira, todas ligadas ao
sincretismo religioso afro-brasileiro. Essa ligação com o re-
ligioso não impede que esse ritual se identifique mais com
um sincretismo cultural que mantém sua independência em
relação a quaisquer dogmas religiosos.

Reflexões em conclusão

São muitas as áreas passíveis de pesquisa no extenso cam-


po das artes da cena. Neste vasto campo de possibilidades,
optamos por fazer um registro e uma breve análise do Ritual
da Queima dos Tambores, que pode enriquecer discussões
sobre as relações entre rito e teatro partindo de experiências
concretas realizadas em localidades humildes e ainda pouco
conhecidas, como é o caso das experiências ocorridas na re-
gião Norte do país. Escolhemos a região Norte por sabermos
que, em meio às desigualdades de condições econômicas e
culturais do país, as regiões mais pobres acabam esquecidas.
A tendência é concentrar investimentos naquilo que se pro-
duz nos eixos centrais e já privilegiados da cultura brasileira.
Não são raros os registros de manifestações culturais sendo
efetivadas no Norte e Nordeste do Brasil com poucas con-
dições orçamentárias. Somente pelo vínculo que mantêm
com as comunidades a que estão ligadas e pela valorização
das práticas culturais destas regiões é que tais manifestações
ainda se fazem constantes e tradicionais.
A valorização não só das culturas populares, mas ainda
de seus mestres, sejam eles reconhecidos pelas comunidades

481
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

que os acolhem ou por incentivos federais, é de fundamen-


tal importância para a perpetuação dessas culturas. Logo, a
investigação do trabalho do mestre popular Wertemberg Nu-
nes faz-se um registro necessário e merecido em face de sua
participação cultural em sua comunidade e de suas contri-
buições para a cultura brasileira como um todo. A importân-
cia de suas experiências e realizações se estende da cultura ao
turismo, fonte de renda principal de Taquaruçu. Wertemberg
é responsável pelo projeto turístico Taquaruçu é o destino,
da Prefeitura Municipal de Palmas, TO. Esse projeto coloca
o distrito como rota principal para a região do Jalapão, ponto
turístico mais destacado do Tocantins.
Este texto teve como intuito exercitar algumas reflexões
iniciais sobre o Ritual da Queima, constituindo, assim, a
primeira etapa de uma pesquisa mais ampla que está sendo
realizada sobre essa manifestação cultural. A escolha desse
recorte de investigação tem relação com nossa condição de
residente da Aldeia Taboka Grande, morador de Taquaruçu
e filho do mestre Wertemberg Nunes. De certo modo, cada
aprendizado que obtivemos na vida passa por esse tronco-
-aldeia onde crescemos. Nosso modo de versar, de observar a
vida, de cantar e dançar o dia a dia é devedor a esta aldeia de
cultura e preservação dos atrativos naturais.
Aqui os aprendizados sempre foram regados a café feito
na hora, a contemplações do horizonte das serras de Taqua-
ruçu, a conversas no pé de ouvido abaixo d’um pé de pau (co-
paíba, sucupira, cajuí, ingá e tantas outras árvores do cerra-
do), ouvindo o som das abelhas-jataís, tucanos, araras e bem-
-te-vis. Ao cair da noite, os sons dos grilos, rãs, corujas e
acauãs compõem a sonoridade junto com o estalar do fogo.
Então o fundamento desta investigação é também a proposta
de revalorização de processos de ensino-aprendizagem ba-
seados na cultura popular.

482
O Ritual da Queima dos Tambores: símbolos de um rito

Encerramos este trabalho com uma poesia sobre o fogo


que, certa vez, escrevemos para ser declamada no Ritual da
Queima dos Tambores:
No estalar do fogo, a minha atenção
ecoa. No simples olhar atento da
minha reflexão de dentro! O fogo é
elemento natural; atual reexistir de
mitos e ritos, ao qual sobrevivo, pas-
sado, futuro, presente! O fogo é pai-
xão, intelecto das emoções. É cura do
corpo-alma; zelo que ensina sobre a
vida. Esquenta, alimenta e reinventa.
O Fogo é sabedoria! Eu chamo, cha-
mo o FOGO. (FALEIRO, 2018).

Referências

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Fontes, 2008.
CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
DICIONÁRIO ilustrado tupi-guarani. Disponível em: https://
www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/taquara. Acesso em:
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FALEIRO, Taiom Nunes. No estalar do fogo. Taquaruçu, 2018. Ar-
quivo pessoal do autor.
JUNG, Carl G. (org.). O homem e seus símbolos. 3. ed. Rio de Janeiro:
Harper Collins Brasil, 2016. Edição especial.
LIGIÉRO, Zeca. Performance e antropologia de Richard
Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
LIGIÉRO, Zeca. Teatro das origens: estudos das performances
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483
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

NASCIMENTO, Glês. Lendas e folclore no carnaval de Taquaruçu.


2007. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/
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NUNES, Wertemberg Pereira. Queima dos tambores. 2010b. Arqui-
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tradicional-ritual-da-queima-de-tambores-acontece-nesse-saba-
do-em-taquarucu. Acesso em: 17 jul. 2021.

484
O palco como território

Thiago Moura Carneiro1

Resumo: Na presente pesquisa, pretendemos investigar os ter-


ritórios de atuação disponíveis ao ator contemporâneo. Partimos
do pressuposto de que o elemento basilar que “distancia” a obra
teatral da obra cinematográfica é a mediação da câmera, que es-
tabelece um novo território, um novo espaço ou palco para a ação
cênica. Propomos a experimentação de métodos particulares de
treinamento para o ator contemporâneo no cinema, ou seja, o en-
trecruzamento desses métodos com os processos de preparação do
ator para teatro. Com isso buscamos comprovar que a diferença
fundamental entre as duas áreas é o registro de interpretação uti-
lizado. Assim, um ator de teatro seria facilmente adaptado a uma
interpretação para a câmera ao compreender as nuances entre ter-
ritórios. Seu registro de interpretação, tamanho de gestos e volume
de voz se alteram de acordo com a distância espacial entre ator
e espectador, e com o tamanho e as características do espaço em
1 Thiago Moura é curador, ator de cinema e teatro, preparador de elenco,
diretor e palhaço. É o ator-criador, de forma colaborativa e coletiva,
de todos os espetáculos do Grupo Bastet apresentados desde 2003.
Produtor engajado, foi também o criador do Na Ponta do Nariz: Festival
Internacional de Palhaçaria e Comicidade, que, em 2017, realizou sua
sexta edição. Sempre no caminho da criação de redes colaborativas e
pontes que conectem os artistas do mundo sob sua direção, Thiago
Moura tem conseguido, por meio do festival, trazer a Goiânia e ao Brasil
os maiores nomes da palhaçaria mundial: Avner Eisenberg (EUA), Sue
Morrison (Canadá), Leo Bassi (Itália), Jango Edwards (EUA), Chacovachi
(Argentina), além de nomes como Letícia Sabatella e outros. Abriu espaço
para a participação coletiva de nomes importantes da palhaçaria, do circo,
teatro e cinema nacional, proporcionando o encontro de realizadores e
criadores. O hibridismo de sua pesquisa, seus espetáculos e suas propostas
coloca em diálogo circo, teatro, cinema, vídeo e performance.
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

que atua: palco italiano, rua, teatro para dois mil espectadores ou
para trinta, instalação em uma ampla casa abandonada ou dentro
do banheiro de um hotel até se chegar ao cinema, onde o ouvi-
do do espectador está colado à sua lapela e os olhos, posiciona-
dos sobre cada detalhe do corpo do ator. Nessa discussão, ganham
destaque as redes sociais e as novas mídias digitais: será que elas
podem ser entendidas como palco? O fato é que, com a migração
ou passeio do trabalho do ator por territórios distintos, este chega
às multimídias e, dessa maneira, há uma proliferação do uso de
conceitos como multiplicidade, complexidade, multimediação e
recodificação, fundamentais para o entendimento desse processo
de transformação do trabalho do ator contemporâneo. Daí a pre-
sente proposta de um paralelo entre duas linhas de treinamentos
e processos preparatórios para a atuação. A propriedade essencial
para um treinamento prático capaz de atender a atores que traba-
lham em diversos territórios de atuação parece ser um colorido re-
sultante da identificação dos elementos primordiais nos processos
de treinamento e preparação já evidenciados nas técnicas prece-
dentes para cada tipo de território. Assim, atemo-nos à capacidade
de trânsito de um registro para outro na investigação dos atores
envolvidos no processo e enfatizamos os exercícios e as técnicas
que podem auxiliar na manutenção de uma qualidade fundamen-
tal para todos os processos, isto é, procuramos nos aproximar aqui
da verdade cênica.
Palavras-chave: teatro; território; palco; verdade; ator.

The stage as territory

Abstract: It is a research about acting territories avai-


lable to contemporary actor. Starts from the assumption
that basilar element that separates the theatrical work of
the cinematographic work is the mediation of the camera,

486
O palco como território

which establishes a new territory to the representation. It


is proposed to experiment particular methods of contem-
porary actors training at cinema from a dialogue between
the processes of preparation to the theater, seeking to ve-
rify that a fundamental difference is the hue of interpreta-
tion used. So, a theater actor would be easily adapted to a
performance to the camera if understand the difference of
hue between the territories. The hue of interpretation, size
of gestures and voice volume will be altered according to
spatial distance between actor and spectator, as well as ac-
cording to the size and characteristics of space in which he
plays: italian stage, street, theater to two thousand or thirty
spectators, installation at an abandoned house or inside the
bathroom of a hotel or, how we can see at the cinema, where
the spectator ears are near from the lapella and its eyes are
positioned on each detail of its body. How internet social
medias and others new medias can be understood like a
stage? The migration or tour of the actor for different ter-
ritories is identified till its arrival at the multimedias and
the proliferation of concepts like multiplicity, complexity,
multi-mediation and recoding – essential to understand
this process of transformation of the contemporary actor
work. It is proposed a parallel between two trannings and
preparatory processes for acting. A fundamental property
for a practical tranning that works for actors who work in
various territories of acting seems to be a colorful from the
identification of essential elements of the tranning process
and preparation as evidenced by the preceding techniques
for each type of territory. It will be experienced, then, a tran-
sit capacity of a hue to another at the investigation realized
by involved actors using tools and techniques that can assist
in the maintenance of a fundamental quality to all proces-
ses: scenic truth.
Keywords: theater; territory; stage; truth; actor.

487
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Introdução

Neste texto, tratamos de um recorte de pesquisa acerca da


preparação do ator2 transmidiático, o artista da cena que cons-
trói uma trajetória caracterizada pelo trabalho com múltiplas
mídias. Arnaut et al. (2011) falam da existência da transmídia
muito antes do advento das mídias digitais. A transmídia se
estabelece quando uma obra expande as várias facetas de seu
universo para múltiplos meios de comunicação, formando
um quebra-cabeça. A faceta do universo da obra que se apre-
senta em determinada mídia nasce organicamente conectada
a este ambiente. Assim também, na perspectiva deste traba-
lho, acreditamos que a técnica de interpretação utilizada pelo
ator deve estar intimamente conectada com a mídia em que
ele atua. Na concepção transmidiática, em cada mídia para a
qual o universo da obra inicial transborda, existe uma nova
obra com início, meio e fim que se conecta às demais.
Como estratégia de pesquisa, revisitamos neste estudo a
obra Katatonisch, espetáculo solo do autor do trabalho, reali-
zando uma análise comparativa entre essa obra e a técnica de
Meisner. Buscamos um diálogo transmidiático ao enfatizar a
preparação de atores para teatro, cinema e multimídias. Re-
visitando o espetáculo como uma experiência work in process,3
propomos uma esquematização contínua dos procedimentos
metodológicos utilizados em sua montagem. Esta descrição
de procedimentos promove a possibilidade de um treina-

2 O termo “ator” é utilizado neste trabalho para designar o artista da cena,


a quem outros podem dar múltiplos nomes, como performer, contador de
histórias, atuador, dançarino etc.
3 Work in process, ou work in progress, é um termo utilizado na língua inglesa
para referir-se a um bem, trabalho ou obra que ainda está em fase de
desenvolvimento. Em arte, geralmente se define o termo como uma obra
que está em constante mutação.

488
O palco como território

mento permanente para o ator, como forma de lidar com as


relações híbridas que a obra propõe. Na condição de obra em
campo expandido, o espetáculo estabelece um diálogo mul-
timidiático, na medida em que se utiliza concomitantemente
de características de teatro, vídeo, fotografia, projeções e mú-
sica. Sua estética também converge em múltiplas linguagens,
entre elas, o teatro físico, a mímica contemporânea, a dança, o
circo e a palhaçaria. Para pensar além de um espetáculo multi-
midiático, pretendemos desenvolver alguns experimentos de
expansão do universo da obra numa perspectiva transmidiá-
tica, efetivando a ação poética por meio da fotografia, do ci-
nema, do vídeo, das artes plásticas, das plataformas de inter-
net e plataformas off-line, de forma a desdobrar suas várias
facetas em múltiplas mídias. Com isso, buscamos construir
novas relações com o conteúdo da obra e com sua narrativa,
culminando na geração de novos conteúdos. Mais ainda, es-
peramos que esta pesquisa favoreça o surgimento de relações
que ecoem para muito além de si mesma, ajudando a acionar
novos vínculos com o público e a apresentar, a longo prazo,
respostas para problemáticas contemporâneas relacionadas
a marketing cultural, formação e engajamento de público.
No entanto, esses resultados dependem, também, de fatores
que extrapolam nossos esforços na realização desta pesquisa,
como os descritos por Arnaut et al. (2011, p. 270):
As pessoas devem ter acesso às ações
através de diferentes plataformas, como
telefone celular, tablets, PC, entre ou-
tros dispositivos. Além das mídias on-
-line, deve-se lembrar das mídias off-line
como impressos, anúncios internos em
transportes públicos, conhecidos como
busdoor, bottons, camisetas, adesivos afi-
xados em automóveis, faixas, outdoors e

489
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

etc; [as mídias off-line] conseguem atin-


gir audiência em diferentes momentos
e diferentes perfis, que podem e devem
ser relevantes para o projeto. (ARNAUT
et al., 2011, p. 270).
Pensar nas mídias, inclusive numa perspectiva de mercado
e distribuição do produto artístico, torna-se relevante numa
pesquisa como esta, que se debruça sobre os espaços e territó-
rios de atuação disponíveis ao ator contemporâneo e analisa
sua relação com o público. Por isso abordamos a maneira como
cada mídia pode influenciar no registro de interpretação do
ator e discutimos as ferramentas e técnicas que podem subsi-
diá-lo neste trabalho. Apesar de focarmos no campo artístico, é
importante refletir também sobre aquilo que motiva o trânsito
entre as mídias, já que isso pode ser útil no atendimento das
necessidades econômicas inerentes à subsistência do artista.
Um ponto de discussão não menos importante é a urgência do
fluxo e da distribuição da produção num mundo cada vez mais
digital. A relação com o espectador nesse contexto passa a ir
além da mera exibição das obras que se utilizam das estratégias
tradicionais de comunicação e projeção.4
No cinema contemporâneo, produções influenciadas pe-
las inovações cinematográficas apostaram no não ator como
um caminho para uma atuação menos viciada, falsa e teatra-
lizada. Essa transformação contou principalmente com o

4 Nesse cenário, já não é mais suficiente a monomídia, que se utiliza de um


único meio para se comunicar com o público, como o teatro, ou a TV, ou
o cinema. O trânsito entre as mídias torna-se uma imposição. Surgem,
assim, a crossmídia, em que a mesma mensagem se repete em várias
mídias; a obra multimídia ou multiplataforma, que emprega várias mídias
e plataformas ao mesmo tempo ou desmembra um mesmo conteúdo em
múltiplas plataformas e mídias; e, por fim, a transmídia, em que cada
faceta do universo da obra se manifesta de forma autônoma, com início,
meio e fim em cada mídia, formando-se um quebra-cabeça.

490
O palco como território

trabalho de preparadores de atores como Sérgio Penna em


Bicho de sete cabeças (2000) e Fátima Toledo em Pixote (1981)
e Cidade de Deus (2002). Tendo como referencial de obser-
vação empírica o contexto cinematográfico do estado de
Goiás entre os anos de 2000 e 2019, verificamos que diretores
que nunca haviam trabalhado com atores experientes inicia-
ram suas carreiras dispensando a figura do ator profissional,
como se este fosse fechado a um trabalho de ressignificação e
ao abandono de técnicas pré-estruturadas. Para agravar a si-
tuação desse profissional, adensou-se, no âmbito do cinema,
a ponto de se tornar senso comum, o uso do termo “teatral”
como sinônimo de falso. Isso, certamente, também influencia
de forma negativa a visão de diretores e produtores de casting
(ou de elenco) sobre o trabalho do ator de teatro.
Nesse quadro de extensão de funções, o preparador de
elenco, independente de quem seja, dispõe atualmente de um
espaço aberto dentro da produção cinematográfica onde os
atores, sob sua direção, podem ensaiar e desenvolver experi-
mentações e estudos mais aprofundados sobre uma obra traba-
lhada. E tem mais: este espaço pode ser criado igualmente por
diretores, produtores ou pelos próprios atores. Diante disso,
embora acreditemos na importância do preparador de elen-
co e dos demais profissionais citados, destacamos a preocu-
pação dos artistas da cena com a preparação para o seu tra-
balho, que se torna mais exigente no atual cenário multimi-
diático. Assim, talvez caiba aqui levantar a seguinte pergun-
ta-problema: em que medida os procedimentos utilizados na
montagem do espetáculo Katatonisch dialogam com a técnica
de Meisner e os experimentos transmidiáticos contribuindo
para o trabalho dos atores que buscam um referencial comum
em preparação e atuação para teatro, cinema e multimídias?
Por meio de um levantamento técnico e processual acerca
da preparação e da atuação do ator, procuramos refletir so-

491
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

bre o conceito de verdade cênica segundo Sanford Meisner5 e


com base nas noções de imersão e de presença cênica. Partin-
do dessa reflexão, a pesquisa pretende estabelecer um ponto
de conexão entre a linguagem teatral e a cinematográfica, na
perspectiva do ator, buscando possibilidades de treinamento
que possam instrumentalizá-lo para transitar entre múltiplos
territórios de atuação. Como observa Canton (2019, p. 58),
atuar, para Meisner, é viver verdadei-
ramente em circunstâncias imaginárias
(em inglês: to live truth fully under imagi-
nary circumstances). Os exercícios iniciais
da técnica Meisner enfrentam a primei-
ra parte de sua definição de atuação:
viver verdadeiramente. Para encontrar
o eixo da vivência cênica ele começa
a exposição da técnica com o conceito
da realidade do fazer, comparando-a a
um edifício que deve ter uma base só-
lida para ficar de pé. Essa base, para a
atuação, é a realidade do fazer, que ele
assim define: “Se você fizer alguma coi-
sa, realmente faça, e não finja que está
fazendo”.
Na tentativa de aprofundar em um recorte específico e
oferecer maiores subsídios para o entendimento de conceitos
e procedimentos sobre o treinamento do ator, pretendemos
destacar aqui, além da técnica de Meisner, a importância de

5 De acordo com a pesquisa de Canton (2019, p. 54-58), Meisner nasceu


em 31 de agosto de 1905 em Nova Iorque, no bairro de Greenpoint, e
era filho de judeus imigrantes da Hungria. Iniciou os estudos de atuação
na Theatre Guild School of Acting. Lá conheceu Harold Clurman e Lee
Strasberg, que também tinham origem judaica, e iniciou com eles uma
parceria que se concretizou no Group Theatre. Meisner atuava em muitas
produções do grupo e dirigia outras. Foi o primeiro instrutor do Actors
Studio, de onde saíram grandes estrelas do cinema americano.

492
O palco como território

nomes como Constantin Stanislávski, Michael Chekhov,


Jerzy Grotowski, Vsevolod Emilevich Meyerhold, Stella
Adler e Lee Strasberg. Comentaremos ainda alguns artigos,
livros e nossos próprios registros pessoais de ator-pesquisador
sobre processos de oficinas de Fátima Toledo e Sérgio Penna.
A busca por artigos científicos formará uma importante base
de dados sobre o que temos de mais recente dentro do enfo-
que desta pesquisa.
O conceito de “fé cênica”, criado por Stanislávski, permeia
toda a pesquisa, visto que é subsídio para o conceito de “ver-
dade cênica” de Meisner.
Quando Meisner diz, citando Michael
Chekhov, que a verdade está longe da
verdade inteira, ele quer dizer que a ver-
dade cênica está bem longe da verda-
de da vida. É o estado que Stanislávski
chamava de “eu estou sendo” ou, na
tradução de Elena Vássina, “eu existo”,
termo explicado por ela neste trecho: O
segredo principal reside em que a lógi-
ca e a coerência das ações físicas e dos
sentimentos o conduzem até a verdade;
esta desperta a fé, e todo este conjunto
dá origem ao “eu existo”. E o que signifi-
ca “eu existo”? Ele significa: existo, vivo,
sinto e penso em uníssono com o papel.
Em outras palavras, o “eu existo” con-
duz à emoção, ao sentimento, à vivên-
cia. “Eu existo” é a verdade concentrada
no palco, quase absoluta. (CANTON,
2019, p. 60).
Por sua vez, os conceitos de espaço e território serão to-
mados de estudiosos de teatro, cinema e transmídia – dando
também um norte para um levantamento bibliográfico.

493
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Hoje, território é entendido, nas mais diversas análises e


abordagens, como um espaço delimitado pelo uso de fron-
teiras (não necessariamente visíveis) e que se consolida como
uma expressão e imposição de poder. Já espaço, termo que
vem do latim, spatĭum, admite vários entendimentos. Tem a
ver, por exemplo, com a extensão que contém a matéria nele
existente. Em um sentido parecido, o espaço é a parte ocu-
pada por um objeto sensível e por determinada capacidade
de terreno ou lugar.
A expressão “lugar” é igualmente polissêmica, possuindo
uma variedade de significados. Pesquisando definições para
este termo em diversos dicionários, como o popular Novo Au-
rélio século XXI (FERREIRA, 1999), entre outros, veremos o
conceito de lugar relacionado a espaço ocupado, localidade,
pequena área, ponto de observação, região de referência etc.
Ao que parece, lugar passou a se associar à corrente filosófi-
ca da fenomenologia, que, basicamente, trata os fatos como
únicos, partindo da compreensão do ser dentro da realidade,
e não da realidade em si – esta tida como inatingível. Assim,
entenderemos lugar, nesta pesquisa, atribuindo-lhe a ideia
de significação e, mais do que isso, de afeto e percepção. O
conceito de lugar se conecta, portanto, à ideia de espaço do
cotidiano. E muitas definições são caras a este trabalho, pois
seus usos abrem diferentes campos para a análise e o enten-
dimento da problemática levantada. À medida que nos apro-
fundamos na compreensão de cada conceito e o utilizamos,
novos matizes de cores começam a surgir diante do olhar an-
tes indiferente a tantos detalhes dessa paisagem que estamos
visitando, carregada de significâncias.
Além de realizar a pesquisa teórica e o levantamento
bibliográfico já citado anteriormente, que colabora, sobre-
tudo, para o esclarecimento dos conceitos, temos em vis-

494
O palco como território

ta experienciar práticas de cursos que pesquisam a técnica


de Meisner no Brasil; realizar, com preparadores de elenco,
entrevistas semidirigidas e questionários semiestruturados;
desenvolver uma pesquisa laboratorial por meio de uma ex-
periência transmidiática, utilizando o espetáculo Katatonisch;
sistematizar a pesquisa laboratorial em formato de conteúdo
programático para uma oficina/curso de preparação de ato-
res; e trabalhar o conteúdo da pesquisa numa relação trans-
midiática, atuando em fotografia, performance, intervenção
de rua, plataformas de internet, vídeo e cinema. Afinal nos
encontramos diante de um cenário em que
a abordagem transmídia se mostra cada
vez mais atual e interessante por inte-
grar todos os conceitos de produção e
distribuição de conteúdos em uma úni-
ca metodologia e processo de criação,
envolvendo qualquer tipo de mídia.
(ARNAUT et al., 2011, p. 265).
Para a efetivação do estudo, partimos do pressuposto de
que o elemento basilar que “distancia” a obra teatral da obra
cinematográfica é a mediação da câmera, que estabelece um
novo território para a ação cênica. Focando na relação entre
teatro e cinema, discutiremos os desdobramentos dessa re-
lação para mídias de internet e outras plataformas. Um deles
é a alteração do registro de interpretação, do tamanho de ges-
tos e do volume de voz (ou a sensação de que estes deveriam
se alterar) de acordo com a distância espacial entre ator e es-
pectador e com o tamanho e as características do espaço em
que o primeiro atua: palco italiano, rua, teatro para dois mil
espectadores ou para trinta, instalação em uma ampla casa
abandonada ou dentro do banheiro de um hotel até se chegar
ao cinema, onde o ouvido do espectador está colado à sua la-
pela e os olhos, posicionados sobre cada detalhe do corpo do

495
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

ator. Nesse debate, as redes sociais e as novas mídias digitais


se tornam significativas. Surge assim mais uma pergunta im-
portante para este trabalho: em que medida estas podem ser
entendidas como palco?
No contexto descrito, identificamos a migração ou o pas-
seio do trabalho do ator por territórios distintos até sua che-
gada às multimídias. Com isso, há uma proliferação do uso
de conceitos como multiplicidade, complexidade, multime-
diação e recodificação, fundamentais para a percepção desse
processo de transformação do trabalho do ator contempo-
râneo. Esta conjuntura nos leva a propor um paralelo entre
duas linhas de treinamentos e processos preparatórios para
a atuação. De um lado, noções para um treinamento práti-
co destinado a atores que trabalham em diversos territórios
de atuação podem ser identificadas em meio aos elementos
fundamentais nos processos de preparação já evidenciados
nas técnicas precedentes. Neste contexto da pluralidade, a
verdade cênica dependerá também da capacidade de trân-
sito dos atores envolvidos no processo. Quando falamos
em transmídia e também quando mencionamos o traba-
lho do ator em diferentes territórios (ou mídias), notamos
que a conexão com o ambiente onde se está desenvolvendo
a linguagem é primordial para que a obra seja um convite
convincente à imersão do espectador no universo que lhe é
apresentado. O ator, portanto, é uma ferramenta que deve
moldar-se às engrenagens que sustentam o mecanismo com
que pretende trabalhar.
De outro lado, para o campo do teatro, o advento das
mídias sociais, do cinema, da TV e de tantas outras formas
de interação entre conteúdos suscita o desafio de aprender
a se comunicar com o espectador através destes aparatos
corriqueiros do cotidiano. Pensar arte hoje exige o desen-

496
O palco como território

volvimento de um pensamento cada vez mais transversal.


E a discussão sobre territórios e bordas, sobre a forma de se
manter na área e de ganhar autonomias artísticas, está se in-
tensificando mais e mais. Ao mesmo tempo, a defesa cega da
autonomia de determinada área pode nos deixar insensíveis
às transformações que, de fato, já ocorreram. Como, então,
assimilar estes diálogos em vez de ignorar ou diminuir sua
existência? Quando falamos sobre espaço cênico hoje, como
não falarmos sobre o universo digital? O desenvolvimento da
internet e a experiência que ela supõe transformam tudo ao
nosso redor. Os conceitos de rede se desdobram e invadem
o cotidiano. O formato do teatro tradicional e até mesmo as
rupturas propostas pelas (neo)vanguardas se deparam agora
com uma nova relação entre ator e espectador. Mesmo no
cinema a coisa se transformou, não apenas em relação ao ta-
manho da tela ou à duração do conteúdo, mas cada mídia
e plataforma exige uma habilidade diferente para o diálogo
com seu espectador. Talvez o conceito de transmídia seja o
que mais se aproxime desse trânsito constante que o artista
contemporâneo vem fazendo pelos múltiplos palcos:
Em nosso entendimento, o mundo é
transmídia desde a existência do homem,
mas a velocidade proporcionada pela
Internet e pelas redes sociais nos leva a
chamar os tempos atuais de “Era trans-
mídia”. (ARNAUT et al., 2011, p. 273).
Um palco mutante exige também um ator mutante. Em-
bora essa essência metamórfica sempre tenha sido parte
do ator, agora ela exige mais agilidade em sua capacidade
de migração. Por razões econômicas, sociais, geográficas,
históricas, artísticas e estéticas, não nos prendemos mais a
uma única mídia para comunicar com o nosso público. Na

497
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

transmídia, nosso teatro proteiforme adquire muitos nomes:


vídeo, fotografia, cinema, performance, teatro de rua, inter-
venção, contação de histórias... E em todos os palcos onde
atua é sempre o ator, agindo, representando, sendo, estando,
vivendo, existindo no aqui e no agora, entregue imersiva-
mente à ideia proposta.
Qualquer pessoa está apta a habitar o palco do cinema ou
do teatro com eficácia desde que tenha uma preparação ade-
quada para se comunicar de forma inteira e presente. É fácil,
portanto, entendermos as razões pelas quais alguns diretores
preferem trabalhar com um personagem real a contratar um
ator que o represente. Podemos observar, como resultado,
inúmeros filmes com personagens singulares (pois são eles
próprios que se representam), mas com grandes deficiências
de atuação. Afinal, por mais que sejam eles mesmos se repre-
sentando, estão interpretando um papel, restringindo-se à
ideia que têm de si próprios ou habitando um ambiente ar-
tificial que não dominam, o da atuação. É comum notarmos
falas extremamente falseadas e um desnivelamento para
baixo no tom e na qualidade do resultado cênico exposto,
principalmente quando fazemos um paralelo comparativo
usando um ator profissional experiente na mesma cena que
o não ator.
Outro problema que podemos constatar, além do resul-
tado, é o paradoxo gerado pela situação exposta: o gosto de
trabalhar com não atores faz que a carreira dos profissionais
seja cada vez mais abreviada, pois, se alguém gravou um úni-
co filme, deixou de ser um não ator e, sendo assim, a pro-
dução estará sempre precisando encontrar novos não atores
para atender ao critério insaciável da novidade. Diante disso,
talvez caiba o seguinte questionamento: num contexto em
que procuramos atores experientes e, ao mesmo tempo, bem-

498
O palco como território

-preparados para uma obra a ser apresentada, o trabalho com


não atores na busca de uma verdade cênica aparentemente
mais facilmente atingível pode, de fato, ser uma alternativa
producente? E mais: o objetivo desse tipo de trabalho é real-
mente facilitar o alcance da verdade cênica ou isso é apenas
fetiche de um mercado que anseia por construir produtos
“exclusivos” e “únicos” para obter maior apelo público? Nesse
jogo, há muito para se pensar dentro do campo da preparação
do ator. Estamos sempre tentando um caminho para poten-
cializar seu trabalho, promover o diálogo com o mundo que
o cerca e chegar a uma relação ator-espectador que seja ver-
dadeira e singular.

A ação da transmídia para o alcance da verdade cênica

Para sustentar o presente trabalho, empregamos referen-


ciais transmidiáticos sobre a preparação do ator. O universo
das principais obras usadas habita o palco, o texto dramatúr-
gico, a sala de experimentos e os livros – com seu trabalho,
alguns destes pesquisadores ainda habitaram, além do teatro,
o cinema e a TV.
Apesar [de a] expressão Narrativa
transmídia (Transmedia Storytelling) ter
sido usada pela primeira vez em 2006,
no livro “A Cultura da Convergência”,
de Henry Jenkins, um dos pensado-
res da comunicação mais respeitados
dos EUA, Jeff Gomez (2010), produtor
transmídia, já faz o exercício prático do
conceito desde meados dos anos 1990.
Utilizando a definição do teórico Henry
Jenkins, transmídia é: “Processo onde

499
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

os elementos integrais da ficção são


sistematicamente dispersos através de
múltiplos canais de distribuição para
criar uma experiência unificada e coor-
denada de entretenimento” (JENKINS,
2006). Segundo Jenkins, “em termos
de domínio cultural, a transmídia nos
permite criar uma experiência mais
rica, mais profunda do que a expressa
por um único meio”. Isso porque a nar-
rativa transmídia [...] é capaz de trans-
formar o público-alvo tanto em media-
dor (emissor) como em midiatário (re-
ceptor) e, assim, desconstruir as estrutu-
ras das narrativas clássicas, com noções
estruturais consagradas há séculos.
(DOMINGOS, 2008 apud ARNAUT
et al., 2011, p. 267).
Nas produções cinematográficas, as estruturas tradicio-
nais do grande cinema hora ou outra se rompem. A interação
entre meios é cada vez maior em todos os campos. E num
mundo que recorre ao novo de maneira voraz, nota-se uma
urgência de retorno às raízes. Talvez seja no teatro e em suas
formas ritualísticas que o cinema conseguirá encontrar poder
e singularidade. O ator atua como elemento humano presen-
te, vivo e pulsante, e anteriormente reclamou inclusive o seu
lugar como objeto central da obra teatral. Quanto mais hu-
mana, mais sensibilizante e visceral é a obra de arte, afinal
não somos máquinas fazendo obras de arte para máquinas. A
máquina é apenas uma tecnologia que pode potencializar a
comunicação.
O caminho para alcançar a verdade cênica no trabalho do
ator e para mantê-la em todos os palcos e múltiplos territórios
de atuação sintetiza nossa problemática. A fala e a comuni-

500
O palco como território

cação em si já são representações. Resta encontrar esta verda-


de cênica na representação. Ela é necessária tanto no mundo
entendido como real (off-line) quanto no simbólico-artístico
(ou no mundo on-line). Representar não significa mentir ou
falsear. Talvez este seja o maior de todos os enganos: conside-
rar o termo teatral como sinônimo de falso.
Existimos em um mundo em que as fronteiras da reali-
dade como concebida no Ocidente até o início do século XX
começam a se diluir. Em certa medida, na contemporanei-
dade, todas as realidades parecem possíveis e impossíveis ao
mesmo tempo. Habitamos um espaço/tempo onde o que
outrora foi chamado de mundo espiritual se torna cada dia
mais tangível. Cada vez que desvendamos o mítico, necessa-
riamente o tiramos da esfera do espiritual, imagético, men-
tal, metafísico e o trazemos para o mundo que chamamos de
real. Tornamo-nos capazes de “ver” a forma e a composição
de Rá e o chamamos de sol, mas nem por isso ele perdeu seus
poderes divinos de fazer a árvore nascer, de trazer a luz do
dia, secar o chão, trazer a vida e a morte. Fazendo o caminho
contrário ao da ciência contemporânea e trazendo um pouco
mais de magia para os nossos dias, podemos compreender o
ator como um tipo de divindade, um ser metamorfo, capaz
de atravessar e materializar realidades com a simples ação de
enxergá-las como verdade. E essa verdade, que chamamos de
cênica, chega além do olhar único e verdadeiro do ator. O
ator precisa ser capaz de fazer o espectador enxergar por meio
de seus olhos, por isso a técnica lhe é indispensável. Diante
desta missão, parece imprescindível uma relação mais pro-
funda com o que o espectador encara como verossímil. Ou
seja, espera-se que o ator consiga dialogar com um conjunto
de crenças de determinada comunidade. Talvez por isso as
obras e produções necessitem definir um público-alvo. Um

501
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

conteúdo que atinge um grupo de espectadores pode não


atingir, com verdade, outro grupo. E, pelo mesmo motivo,
cada mídia necessita de uma atenção muito especial, pois
tem seus próprios códigos e formas de se relacionar com o
público. Um trabalho de preparação para o ator envolven-
do o diálogo entre diferentes treinamentos, de maneira a
lançar pontes sobre as fronteiras entre diversos territórios de
atuação, parece ser ideal para capacitar o ator a enxergar a
conexão com o espectador em campos além da estética e do
território midiático em que esse ator está inserido.
Hoje os atores não costumam se limitar a um único tipo
de espaço cênico e de linguagem. O palco, grande ou peque-
no, a casa ou a rua, a fotografia, o circo, o teatro ou o cinema
se tornam ambientes para existir. Talvez seja essa linha de
pensamento que traz o ator para o lugar arquetípico do me-
tamorfo. Sua função social é transitar, fazendo a humanidade
lembrar-se de seu aspecto nômade e de sua capacidade de
pensar sua própria matéria. Nesse quadro, conforme dito an-
tes, a câmera é o elemento que estabelece um novo território
para a ação cênica e que “distancia” a obra cinematográfica
da obra teatral. E mesmo o processo de montagem e edição
talvez possa vir a ser experimentado em sala de ensaio e apre-
sentado como resultado em tempo real no teatro.
Em relação ao ator, até que ponto alguém que escolheu
uma única poética para se dedicar durante toda a vida está
instrumentalizado para habitar o território de outras poéti-
cas? E quais ferramentas tornaria esse trânsito mais orgânico,
rápido e assertivo? Como auxiliar este ator experiente a não
perder potencial ao migrar de uma mídia ou técnica a outra?
Na perspectiva da preparação de atores por meio da técnica
de Meisner, posta em diálogo com nossas próprias experiên-
cias de trânsito pelas múltiplas mídias com a obra Katatonisch,

502
O palco como território

algumas respostas podem ser apontadas. Propomos trazer


um olhar particular sobre essas questões sugerindo o cruza-
mento entre um método específico de preparação de atores
para cinema e os processos de preparação do ator para teatro
utilizados na montagem do espetáculo citado. Durante este
percurso, na tentativa de dar um caráter mais universal às
escavações desta pesquisa, receberemos o subsídio de outros
pensadores e práticos do teatro e do cinema no que tange à
preparação do ator.
Pensar a pesquisa como parte indisso-
ciável do próprio teatro contemporâ-
neo nos obriga a refletir se essa pesquisa
deve reafirmar seu caráter filosófico ou
científico, ou buscar uma imbricação
entre ambos. (CARREIRA; CABRAL,
2006, p. 13).
Optando pela imbricação, compreendemos que a pre-
paração dos atores para a cena, para o palco tradicional ou
para a câmera deve estar inserida numa proposição científi-
ca de inúmeras experimentações possíveis, sem a obrigação
imediata do acerto, tão comumente cobrado de um técnico
diante da urgência da filmagem cinematográfica. É preciso
entender cada mídia e o espectador de cada uma delas. Como
proceder nesse território? Qual poder a ele é inerente? Ter
um espaço para a preparação é ter um espaço/tempo para
o desenhar coletivo da obra cênica final com a participação
dos artistas que a encenam, sem abrir mão, é claro, do olhar
e crivo do diretor. É entender a colaboração do ator como
artista-criador-colaborador, e não como um mero técnico que
executa o que se espera dele com eficiência e precisão.
A ideia do fazer deve ser estendida além
dos limites do trabalho da interpre-
tação ou direção; “fazer” teatro é tam-

503
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

bém tomar parte no funcionamento do


espetáculo como acontecimento que
envolve a plateia. Assim, devemos con-
siderar a prática teatral como algo que
incorpora os dois lados do fenômeno.
(CARREIRA; CABRAL, 2006, p. 14).
A obra de arte cênica final é sempre uma tentativa de
diálogo e conexão com o outro para que uma verdade coleti-
va seja lembrada. Esse lugar de pensamento exige que o pro-
cesso de criar seja um revelar de algo já sabido pelo incons-
ciente de um coletivo que abarca artistas e público da mesma
maneira. A pesquisa é para desvendar, sacudir os tecidos e
levantar a poeira. É no outro que me vejo. O outro me revela
quando ele mesmo é revelado.
Em Uma breve história do tempo, Hawking (1988) discorre
sobre a relação dos seres humanos com o tempo, demons-
trando que este estabelece muitas dimensões à medida que
expandimos a experiência humana possível. Kopenawa e Al-
bert (2015) também abordam esta nossa relação com o tem-
po falando do sonho como um canal de acesso ao mundo
espiritual, uma outra dimensão de existência, com outras ló-
gicas para o espaço/tempo ainda pouco compreendidas pela
cultura ocidental dominante. O universo digital, a realidade
expandida e a física quântica, assim como os rituais, expe-
riências xamânicas e obras de arte, parecem também propor
uma expansão da experiência de vida e da existência huma-
na. Os carros, os aviões e a internet podem ser compreendidos
como máquinas do tempo na medida em que nos permitem
efeitos e resultados próximos a algo como o teletransporte:
muito imaginado na arte e hoje ainda estudado pela ciência,
este tem o poder de diminuir distâncias e nos fazer atingir,
num espaço de tempo muito curto, territórios antes jamais
imaginados.

504
O palco como território

Vivemos muito mais em muito menos tempo. De algu-


ma maneira, estes recursos já nos permitem uma viagem no
tempo. Sem eles, jamais estaríamos em determinado espaço
no “tempo natural” das coisas. Drivers virtuais imensos, capa-
zes de armazenar milhões de informações, possibilitam-nos
revisitar o passado e, agregados a outras tecnologias, ofere-
cem-nos um tempo presente expandido para além das nossas
fronteiras físicas e nos fazem vislumbrar futuros possíveis de
forma cada vez mais bem-definida. Várias ferramentas digi-
tais concedem-nos, como a arte, experimentar, no mundo
abstrato, uma realidade possível antes de experimentá-la no
mundo que chamamos de concreto.
Assim, pensar na concepção de arte transmidiática pare-
ce exigir o entendimento de que nossa realidade já é trans-
midiática. E, como a matéria-prima para o ator é a própria
vida, sua habilidade de trânsito neste mundo disforme é uma
vantagem imprescindível. Nesse trânsito, vamos nos miscige-
nando e rompendo os selos sociais que nos foram impostos.
E vemos surgir, dessa maneira, artistas híbridos de múltiplos
territórios, artistas-cientistas e cientistas-artistas, além de
invenções tecnológicas que são verdadeiras obras de arte, e
obras de arte que trazem clareza científica e respostas inven-
tivas para questões fundamentais à humanidade. Para Mos-
taço (2006, p. 124),
a estética teatral contemporânea, no
mesmo rumo tomado pelas demais ex-
pressões artísticas, persegue e procura a
interdisciplinaridade e as conexões en-
tre os saberes [...], territórios comuns às
múltiplas representações.
Nesse esforço de interconexão e escuta, o espectador é um
elemento crucial no estudo do teatro como experiência vivida,

505
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

análise e reconstituição do texto espetacular. Mostaço (2006,


p. 125) diz que “o teatro não é apenas um local para o olhar,
mas também para o contato e a escuta”. Um contato verdadei-
ro e uma escuta mútua entre artista e espectador estranham,
aliás, a possibilidade (ou necessidade) de uma obra cênica que
não dialogue com o seu tempo. Afinal, onde cabe uma arte
que não reflita as inquietações do seu público, que não provo-
que empatia, afinidade, identificação e incômodo transforma-
dor ou que não tire esse público de um lugar comum?
Diante desses questionamentos, propomos uma relação
transmidiática entre teatro, cinema e multimídias, na pers-
pectiva do ator e de suas relações sensoriais de registro e re-
gulagem do volume e timbre de voz, e do tamanho do gesto
na atuação para o palco e para a câmera. E se pensamos ain-
da em videoteatro e videodança ou nas performances digitais,
podemos ir além e perguntar sobre o tipo de relação que o
espectador desenvolve com cada uma dessas mídias e como
isso o afeta em sua condição de receptor. E quais métodos
e procedimentos serão necessários para identificar tais re-
lações?6 Essa discussão pode ser mediada por Arnaut et al.
(2011, p. 264):
O receptor não é apenas um mero deco-
dificador dos conteúdos das mensagens
impostas pelo emissor, mas também
produtor de novos conteúdos. Embora
inicialmente designado como um agen-
te passivo na comunicação, o receptor
mantém um espaço interior de resistên-

6 Nessas relações entre método, linguagem e criação artística, o cientista-


-artista Charles Pearcy Snow denuncia a ignorância tanto dos cientistas
sobre a arte, quanto dos artistas sobre a ciência: “pergunte a um literato
a definição da segunda lei da termodinâmica e você verá o resultado [...],
interrogue um cientista para saber se ele leu Shakespeare e você verá a
resposta” (PLAZA, 1997, p. 24).

506
O palco como território

cia que lhe permite rejeitar informações


que culturalmente não são reconheci-
das por ele. O receptor seria, então, bem
mais que um mero indivíduo que recebe
as mensagens, mas um sujeito do pro-
cesso de comunicação que interpreta o
conteúdo da mensagem conforme os
valores sociais que defende.
Quando o teatro chega nesse nível de interação com ou-
tras mídias, ele deixa de ser teatro? E até que ponto o concei-
to de teatro é importante para o fazer artístico do ator? Se o
ator abandona o teatro e o cinema, ele deixa de ser ator? E em
que medida a definição de ator é relevante para este ser que
age ludicamente sobre as realidades dos outros e as transmu-
ta? Ele segue, metamorfo, dando outros nomes aos territórios
que habita: performance, videoarte, cinema, instalação, dança,
contação de histórias, intervenção etc.
E as redes sociais, será que elas podem ser consideradas pal-
co? Certa feita, ouvimos que, para resistir, é preciso ser resilien-
te: quem não o for se quebrará. Para resistir, é preciso reexistir.
Se o castelo de areia ruiu, não seria este o momento de aceitar-
mos e assimilarmos os novos territórios para onde o teatro pode
transbordar? E se os aceitamos, não é justamente pelo fato de
ele já ter transbordado e nos dotado de outras perspectivas, to-
das tão reais quanto possível? Este trabalho defende a ideia de
que as características do espaço e do território onde o ator re-
presenta definem o registro de sua interpretação, a quantidade
de espectadores e a distância entre ator e audiência. Nessa li-
nha, parece interessante propor, em um diálogo possível entre
teatro e cinema, também o diálogo entre os diversos espaços
e territórios plausíveis para a atuação: o espaço digital como
espaço cênico, palco e território de experimentação, pesquisa e
atuação. E tal concepção interage com o processo de formação

507
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

e preparação do ator, sugerindo uma transformação constante


que também namora com os períodos históricos e interesses
sociais de cada momento.

Conclusão

Na exploração do objeto de pesquisa em questão (a prepa-


ração do ator transmidiático), verificamos que o ator transita
por diferentes territórios e chega, finalmente, ao lugar contem-
porâneo das multimídias, do cinema, da propaganda... Muito
desse movimento é regido também por interesses de mercado,
de maneira que a qualidade do trabalho do ator, muitas ve-
zes, é medida por sua popularidade ou pelos canais e meios
de representação que consegue alcançar. E isso atinge dire-
tamente sua capacidade de subsistência. Parece que, quanto
maior audiência o ator atinge, mais ele é considerado um bom
profissional. Ao mesmo tempo, como vemos em Plaza (1997,
p. 22), “as ideias-chave de multiplicidade, complexidade, mul-
timediação e recodificação são fundamentais para entender-
mos esse processo da arte contemporânea”, pois existem ou-
tras perspectivas sobre o desenvolvimento do trabalho do ator
que transcendem o ponto de vista limitado dos ambientes de
grande audiência. Temos os circuitos dos festivais de cinema
de longa-metragem, os circuitos de curta-metragem, as pro-
duções para internet, os conteúdos experimentais para mídias
sociais, os palcos de teatro, de circo, de rua, as ações perfor-
máticas, os ambientes de festa... cada nicho parece apresentar
suas próprias medidas de valor. Se, enquanto o cientista joga
com as técnicas, o artista joga com as possibilidades de per-
cepção, de que maneira cada território de atuação pode gerar

508
O palco como território

novos significados para uma mesma atuação, ou mesmo dis-


tintos efeitos e qualidades de percepção?
Em vez de considerar os atores profissionais, principal-
mente os advindos do teatro, como más opções para o traba-
lho cinematográfico e preferir não atores em virtude de sua
suposta maior disposição para ver a situação fictícia como
um ato verdadeiro, não será melhor construir um treinamen-
to e um processo de preparação de atores para cinema que
permitam aos atores profissionais abrir mão da técnica, jus-
tamente por serem capazes de reconhecê-la e de mergulhar
no desconhecido da nova ação? Não é, muitas vezes, mais
complicado trabalhar com amadores que têm uma ideia es-
tereotipada do que é representar um papel? Não estaríamos
inventando uma estética baseada na deficiência técnica na
representação ao fomentarmos essa lógica do não ator e um
mercado cruel que descarta profissionais em fase de consoli-
dação de experiência? E que cria montanhas de atores de um
só filme, impedindo o desenvolvimento de uma técnica de
interpretação para câmera que assimile contribuições do ator
como profissional de arte? Em suma, não seria mais acertado
experimentar “aquilo que os cientistas chamam de pesqui-
sa: testar as suas hipóteses, isto é, verificar, na prática, quais
das suas construções mentais do defeito é a verdadeira”?
(ALVES, 1981, p. 19).
Para concluir, o que temos na direção de uma tentativa
de solução da problemática inicial levantada é a proposta de
uma pesquisa que lance pontes sobre fronteiras e revele novas
questões. Assim, procuraremos realizar esse estudo traçando
um paralelo entre dois tipos de treinamentos e processos pre-
paratórios para a atuação. De um lado, a técnica de Meisner,
ainda pouco difundida no Brasil, como um expoente na pre-
paração de atores no teatro e no cinema. De outro lado, a me-

509
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

todologia de trabalho adotada na montagem do espetáculo


teatral Katatonisch e fundada num entrecruzamento de olha-
res que expande a obra e aumenta a habilidade de trânsito do
ator, dos personagens e da narrativa por variadas mídias. O
processo teórico deverá apoiar o processo prático, assim como
o desenvolvimento da obra em uma mídia apoia o desenvol-
vimento dela em outras. A fim de demonstrar este trânsito,
durante o processo, realizaremos um treinamento prático
empregando o diálogo entre os métodos de preparação. Este
treinamento incluirá experimentos que visam colaborar na
ampliação da capacidade de migração do ator-pesquisador
de um registro para outro utilizando exercícios e elementos
técnicos para subsidiar a manutenção, nos diversos territórios
de representação, de uma qualidade que acreditamos funda-
mental ao trabalho do ator: a verdade cênica.

Referências

ALVES, Rubens. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas re-


gras. São Paulo: Brasiliense, 1981.
ARNAUT, Rodrigo Dias et al. Era transmídia. Revista GEMInIS,
São Carlos, v. 2, n. 2, p. 259-275, 7 dez. 2011.
CANTON, Luciana Giannini. A técnica Meisner e as sementes do siste-
ma stanislavskiano plantadas em solo americano. 2019. Tese (Doutora-
do em Artes Cênicas) – Escola de Comunicações e Artes, Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 2019.
CARREIRA, André Luiz Antunes Netto; CABRAL, Beatriz Ân-
gela Vieira. O teatro como conhecimento. In: CARREIRA, An-
dré; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FARIAS, Sérgio
Coelho (org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janei-
ro: 7 Letras, 2006. p. 9-16. (Memória Abrace, 9).

510
O palco como território

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI:


o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1988.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MOSTAÇO, Edélcio. Mapeando a teoria e a recepção. In: CAR-
REIRA, André; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FA-
RIAS, Sérgio Coelho (org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 120-129. (Memória Abrace, 9).
PLAZA, Julio. Arte, ciência, pesquisa: relações. Trilhas, Campinas,
v. 6, n. 1, p. 21-32, jul.-dez. 1997.

511
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

Tiago Barreto de Barros1


Saulo Germano Sales Dallago2

Resumo: Este texto visa refletir acerca das possibilida-


des de construção e análise do discurso em cores, perpas-
sando algumas das diversas etapas da composição imagéti-
ca cênica, sobretudo a composição em acordes cromáticos
designantes em presenças sígnicas no imaginário, na cena,
no outro. Suscitando percepções sensoriais através de inten-
cionais codificações extraculturais elaboradas com enfoque
no aspecto pictórico do estudo de Pierre Verger acerca do
orixá, relacionaremos sintéticos usos da cor em publici-
dade com os efeitos que o uso desse instrumento afetivo-
-comunicativo torna perceptíveis na recepção. Mostraremos
o papel dessas percepções sensoriais como ferramentas para
a transformação do arquétipo, como elemento do planeja-
mento da cena e ainda como lócus deflagrador de sensações,
significações e plasticidades em construções (co)autorais.
Diante da relevância desse aspecto, reconhecemos a neces-
sidade urgente da construção de conhecimentos artísticos
transitantes em liminaridades, e por isso analisaremos a cor
em conexão com a cena. Estudaremos a capacidade que tem
a cor para inovar o teatro em suas convergentes potenciali-

1 Graduado em Artes Cênicas (licenciatura) pela Escola de Música e Artes


Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac-UFG). Mestrando no
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena pela Emac-UFG.
2 Graduado em Artes Cênicas pela Emac-UFG. Mestre e doutor em
História também pela UFG. Integra o quadro de professores efetivos da
Emac-UFG, lecionando nos cursos de Direção de Arte e Artes Cênicas
(bacharelado e licenciatura) e no Mestrado em Artes da Cena, na cadeira
de Produção Cultural e Teorias do Teatro, desde 2010.
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

dades cênicas por ela alteradas e valorizadas. Os efeitos da


cor na cena influenciam positivamente a dramaturgia tex-
tual convencional alterando o estético das criações poéticas
que primam pela autonomia criativa do ator.
Palavras-chave: cor; orixá; arquétipo; cena; teatro.

Color, orixá y los acordes cromáticos intencionales

Resumen: Este artículo visa reflexionar sobre las posi-


bilidades de construcción y análisis del discurso del color,
pasando por algunas de las diversas etapas de la compo-
sición de imágenes escénicas, especialmente en los acor-
des cromáticos designantes em presencia significativa en el
imaginario, en la escena, en el otro. Impactando percepcio-
nes sensoriales en codificaciones extra culturales intencio-
nales elaboradas con un enfoque en el aspecto pictórico del
estudio de Pierre Verger (2005) sobre orixá, relataremos los
usos sintéticos del color en la publicidad y las reflexiones
que surgen de los efectos percibidos en la recepción en un
instrumento comunicativo de este tipo, como herramientas
para la transformación del arquetipo como un elemento
de planificación de escenas y el desencadenante lugar de
sensaciones, significados, plasticidades en construcciones
de (co)autoría. Pretendiendo la perspectiva urgente de la
construcción del conocimiento artístico transitorio en las
liminaridades, el color en conexión con la escena apunta al
teatro en sus potencialidades escénicas convergentes altera-
das y valoradas más allá de la dramaturgia textual conven-
cional, contrastando la estética de las creaciones poéticas
que se destacan por la autonomía creativa del actor.
Palabras clave: color; orixá; arquetipo; escena; teatro.

513
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

As discussões desenvolvidas neste trabalho vieram da


constatação da necessidade de arquivos sobre o assunto “cor”,
especialmente sobre a forma de torná-la uma importante
aliada na criação de máscaras teatrais. A partir da entrada,
no ano de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Artes
da Cena da Escola de Música e Artes Cênicas da Universida-
de Federal de Goiás (Emac-UFG), com a pesquisa intitulada
MÁSCARA: das ritualidades candomblecistas à animação cênica,
compreendemos o conceito de animação cênica pesquisado
pela professora Ana Maria Amaral. Em suas pesquisas utili-
zadas durante as aulas da pós-graduação, Amaral levanta e
aprimora elementos que foram estruturados dentro daquilo
que chamou de “teatro de formas animadas”, a exemplo do
uso da máscara (informação verbal). Baseamos nesse aporte
o presente trabalho a respeito dos orixás e das teatralidades
envolvidas nas manifestações destes deuses. O eixo desta dis-
cussão é a representação dos orixás através das máscaras do
candomblé, religião brasileira de origem africana. Esse foco
vem alimentando diferentes abordagens sobre este fenôme-
no cultural/cênico.
A análise desse único ponto entre as diversas expressões
culturais de origem africana que fazem parte da formação do
brasileiro foi suficiente para revelar muitas palavras da lín-
gua ioruba. Os iorubas, povo de origem nigeriana escraviza-
do durante o período da colonização no Brasil, geraram des-
cendentes que foram nascidos aqui ou tornados brasileiros
à forçosa custa da exploração e progressão geracional. Esses
descendentes foram amalgamando as sacralidades e os cultos
dos deuses de berço negro e dos deuses de terras colonizadas
pelos europeus, além das mitologias ramificadas em diversas
circunstâncias territoriais advindas da colonização europeia.
Outros fatores se conjugaram para a formação dos descen-

514
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

dentes de iorubas no Brasil, entre eles, a dinâmica econômica


pautada pelas relações de sobrevivência; a liberdade religiosa,
respaldada pela Constituição Brasileira, que resguarda o cida-
dão contra retaliações e vandalismos motivados por precon-
ceitos religiosos; as manufaturas tradicionais herdadas ou de
algum modo acessadas, entre tantas possibilidades esmiuça-
das por outras áreas de conhecimento. Em nossa discussão,
esbarramos nesses pontos de congruência entre aspectos que
se fundem para configurar diversas polivalências ou, melhor
dizendo, para gerar universos mitológicos e religiosos centra-
lizados no elemento “orixá/cor”. Esse binômio significa cor
originada no candomblé, religião que se estabeleceu e foi es-
tabelecida por meio de heranças histórico-culturais e estéti-
cas, muitas delas advindas do povo iorubá. O conceito foi de-
senvolvido em sala de aula em 2019 pela professora Fernanda
Pereira da Cunha a fim de ser usado na análise do material
bibliográfico, sendo resgatado para o presente debate.
Trata-se de um conceito basilar, gerador de composições
estéticas, poéticas e cênicas identificadas em cerimoniais e
apartadas de seu contexto sagrado, que lhes confere as quali-
dades arquetípicas. Na tentativa de causar estímulos para que,
cada vez mais, busquemos as possibilidades de relações pre-
sentes na noção de orixá/cor, ressaltamos os aspectos pictó-
ricos oriundos das manifestações culturais brasileiras de
cunho religioso. Esses aspectos aparecem em estudos de dra-
maturgias não verbais inerentes à produção de máscaras, em
meio a uma explanação ambígua da cor e do orixá/cor. Ten-
tando fugir dessa ambiguidade, iniciamos relatando um dos
caminhos que demonstram como a cor tornou-se elemento
cênico de evidência discursiva e, em seguida, partimos para
a explicação de alguns arquétipos do candomblé. Nessa di-
reção, apontamos as maneiras pelas quais os impulsos ou

515
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

padrões acontecem, se preservam e modificam, e como eles


podem inspirar produções teatrais envolvendo máscaras.
A contemporaneidade das artes cênicas, com enfoque na
teatral, constantemente deflagra discursos que entendem e
utilizam a cor como fenômeno de criação em sinestesias, crí-
ticas, autonomias e globalizações, ou seja, nas possibilidades
evidentes nos trânsitos e trâmites tradutórios entre as lin-
guagens. Não só nas artes da cena, mas também em outros
campos do conhecimento, existe uma imensidão de estudos
basilares acerca da cor, repletos de especificidades científicas
de suas áreas de origem. Nesses estudos, o discurso materiali-
zado sobre a cor emprega, em grande parte, o preto e o branco
das palavras digitalizadas no papel, e não outros elementos
pictóricos, fato curioso quando pensamos em relacionar o
pictórico à linguagem não verbal.
Entre os estudos percorridos na elaboração deste trabalho,
salientamos um artigo de Julio Plaza sobre as relações entre
arte, ciência e pesquisa, no qual ele fala da produção de co-
nhecimentos como uma intervenção sobre objetos simbólicos.
Produzir conhecimentos é transformar
informações complexas (científicas ou
tecnológicas, sensíveis e técnicas), em
resultados de um processo de trabalho.
Trata-se, pois, de uma intervenção in-
telectual sobre objetos simbólicos (in-
tuições, observações, representações), e
não de uma transformação da própria
realidade observada, já que o “Real”
somente é acessível pelo signo, pois
“o máximo grau de realidade só é atin-
gido pelos signos”, como disse Peirce.
(PLAZA, 1997, p. 23).

516
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

Já na época do artigo citado, esse debate era enriquecido


pela gradativa produção de conhecimentos que pretendiam
não se limitar às diferenças cavadas como fosso delimitador
de fronteiras entre arte e ciência, assumidas como desafios
para o ato de pesquisar, sobretudo no campo das artes cêni-
cas. De acordo com Plaza, a arte não tem compromisso com
o real, em outras palavras, com a reprodução do fato como ele
fora detectado originalmente, ou de servir como linguagem,
ou de preservar culturas. Em sua condição de poética aparta-
da de dogmas estilísticos, ela constantemente se descobre, se
redefine e se imagina, através das possibilidades de relações
com outros campos do saber. Logo, este trabalho justifica-se
na necessidade de aproximar conhecimentos de outras áreas
ao conhecimento sobre teatro, visto que múltiplas realidades
se afiguram no cenário contemporâneo artístico mundial:
Também, a crise da arte na contempo-
raneidade é evidente. Pois enquanto
insistimos em chamar de “arte” o pro-
duto das atividades primárias e/ou arte-
sanais, o que temos hoje é um formidá-
vel sistema de manifestações mediáti-
cas e códigos (artesanais, industriais e
pós-industriais) que se misturam, in-
terpenetram e recodificam. Assim, as
ideias-chave de multiplicidade, comple-
xidade, multimediação e recodificação
são fundamentais para entendermos
esse processo da arte contemporânea.
(PLAZA, 1997, p. 22).
Sendo assim, refletimos de maneira hipotática e paratática
acerca do orixá/cor, em outras palavras, discutimos o tema
por meio da organização de pensamentos para a escrita e
para a imagem, respectivamente. E cientes estamos das cila-
das da organização deste trabalho em texto, dos perigos das

517
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

nomenclaturas e do nexo teatral, que podem reduzir a gama


de significações do conteúdo analisado e posto em relação
com outras áreas do conhecimento. Na exposição desse con-
teúdo, relevamos as propriedades do acervo imaterial, cons-
tituído por cânticos, danças, orações, entre outros exemplos
da transmissão oral e cultural popular, e recorremos à história
material, em que a cor tem sido registrada como índice sa-
grado, cultural, arquetípico, socioeconômico e político. Seja
ela de origem natural, sintética, pura, misturada, simbólica
etc., os pigmentos atuam e influenciam nas formas de me-
diação desenvolvidas pelas/nas humanidades. A presença
deles nas artes da cena é cada vez mais pesquisada em tra-
balhos de cunho teatral, indicando a intensa diversidade
de utilizações da cor nas mais variadas vertentes e épocas
teatrais, melhor pormenorizadas por Lehman (2007). Esse
autor levantou e agrupou movimentos de vanguarda artística
denominando-os “teatro pós-dramático”, corrente que reúne
nomes como o do teatrólogo Tadeus Kantor em sua busca
pela metamorfose do ser ator, ser público e ser cena. As re-
flexões de Lehman remetem ao motivo da morte, que, grosso
modo, significa uma situação imutável com que o ser hu-
mano se relaciona e que motiva métodos ou instrumentos
ritualísticos impregnados em suas próprias culturas. O tea-
tro pós-dramático fora praticado por Lehman e seu grupo
teatral para a abolição de la repetición e como meio de fixação
e produção teatral. Foi uma porta para a ressignificação dos
usos das coisas e das imagens.
Gordon Craig (1963) também se enveredou por esses es-
tudos teatrais, pretendendo substituir completamente a im-
perfeição humana pela “máscara cênica”. Afinal, segundo
ele, a imperfeição do homem é instável demais em compa-
ração com a constância da técnica de utilização da máscara.

518
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

Brecht enriqueceu igualmente a área com investigações vol-


tadas para os gestos ou para imagens representadas que pode-
riam ser repletas de ideologia política e de influências espor-
tivas. Fez um resgate do distanciamento grego, mas politizan-
do o público e conscientizando-o a respeito do ato teatral, em
vez de proclamar o alcance da figura divina pelo ator, como
ocorria na civilização grega antiga. Antonin Artaud, por sua
vez, remeteu às origens puras da palavra liberta das amarras
hipotáticas/inorgânicas do texto, que costumam ser coloca-
das acima da dimensão paratática/somática/sagrada do ator.
Trouxe ainda a explanação de movimentos históricos como
paisagismo, simbolismo, futurismo e outros que partiram da
imagem como pilar central do discurso cênico.
Foi graças a essas e outras escolas estilísticas e artísticas,
hoje vencidas pelo discurso/paradigma pós-contemporâneo,
que o teatro começou a ser compreendido como instância in-
dependente do drama, sendo este último referente à literatu-
ra dramática (LEHMAN, 2007). Esse tipo de literatura tanto
pode significar o conjunto dos textos teatrais quanto uma
fórmula de organização textual caracterizada pela existên-
cia de conflitos sujeitos a uma lógica originada na mitologia
grega e estruturada em tempo, ação, conflitos, personagem,
enredo e peripécia. No antigo teatro clássico grego, o drama
era associado mais claramente à tragédia e menos aberta-
mente à comédia. Teatro e drama são, portanto, diferentes,
e não dependem um do outro para sobreviver (ARISTÓTE-
LES, 2001). Não sendo nossa intenção ecoar esse paralelo
com o contexto grego, um discurso já bastante difundido no
Ocidente, o assunto surge apenas como indicativo inevitável
para a discussão acerca das potencialidades discursivas cêni-
cas/teatrais.

519
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Além das pesquisas mencionadas, há, também, alguns


estudos relativos a diversas culturas que, por um motivo
ou por outro, não haviam sido democratizados e que so-
mente foram conhecidos graças aos avanços dos meios de
comunicação. Esses estudos vieram à tona principalmente
com a criação e democratização da internet, rede global de
transmissão de informações, de conexão em tempo real e
armazenamento digital. Sem mencionar a influência da se-
gunda e da terceira Revolução Industrial, que igualmente
contribuíram para a difusão do conhecimento e de novas
tecnologias. Esses mecanismos desencadearam os contatos
entre alteridades, gerando um conjunto de saberes sobre
o outro-sociedade/outro-indivíduo (MOTA NETO, 2016)
e impulsionando as ciências e as tecnologias. Assim espa-
lhados, esses conhecimentos possibilitaram que artistas do
mundo inteiro percebessem e desenvolvessem relações cê-
nicas, sobretudo através da quebra contemporânea da hie-
rarquia entre as linguagens artísticas.
A partir daí, cada potencialidade cênica passou a ser en-
tendida como universo próprio de análise, podendo ser es-
tudada de maneira isolada ou em relação a outras áreas, o
que deu origem ao campo das artes da cena. Pelos debates
contemporâneos mencionados anteriormente, essas poten-
cialidades, sendo independentes, compõem-se dos seguintes
elementos de análise, além do texto escrito ou falado: o tem-
po, que pode ser determinado de acordo com as construções
lineares ou em oposição a elas; o som, mixado em produtos
estilizados e destinados a gerar afetações que conectem os
corpos-ouvidos ao espaço sonoro por meio de notas musicais
harmônicas ou dissonantes e de notas do próprio silêncio; a
cenografia/espaço, conjunto dos objetos materiais de uso coti-
diano, que são colocados na cena ou dela retirados para criar

520
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

distâncias, profundidades e deformidades, enfim, objetos


transformados em cena; e a imagem, que foi experimentada
por diversos pesquisadores do teatro e do cinema decididos a
ir além da imutabilidade estática e da imperfeição da huma-
nidade, expressa pelo ator espontaneamente (CRAIG, 1963).3
Quando comparamos coexistências, semelhanças e di-
ferenças, e examinamos as críticas sobre a natureza de um
elemento, especialmente quando se trata do fenômeno (ou
seja, da maneira como surge/acontece determinada coisa),
perguntamo-nos: como surgiu esta coisa? Como se mostra?
Como ela é entendida no seu contexto de origem? Seguindo
esse paradigma, analisaremos, no âmbito da imagem, a cor-
-orixá tratando-a como um conteúdo transmidiático, isto é,
passível de de ser transmitido/mediado por diversas mídias,
sobretudo as artísticas teatrais e visuais.
O estudo da imagem será feito aqui de modo semelhan-
te aos estudos realizados sobre a palavra, que, no Ocidente,
é composta por “significante” e “significado”, conceitos mais
precisamente detalhados nas pesquisas da semiologia. Mas
por que estamos discutindo a imagem nos mesmos moldes
dos estudos referentes à palavra? Porque, assim como a pala-
vra é formada por conjuntos de estruturas visuais fonêmicas
(sílabas que indicam sons), a imagem também possui seus
próprios conjuntos de significantes visuais, entre eles, a cor.
Graças a esses significantes, uma imagem pode, por exemplo,
ser transportada de um contexto de teatro para uma situação
publicitária, de uma propaganda para uma sessão de terapia

3 Dentro do campo da imagem, citamos o ator diretor Bob Wilson, que


desenvolveu novas técnicas para criar filmes mexendo na continuidade
cinematográfica, em que a organização do tempo das imagens
cinematográficas segue uma lógica linear. Entre as inovações desse diretor,
estão a sobreposição de imagens e o slow motion, movimento tornado
lento com a utilização de técnicas artísticas orgânicas ou mecânicas.

521
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

psicológica etc., sem que seja alterada a estrutura fundamen-


tal que emite sinais não verbais e estabelece relações entre
essa imagem e quem a experiencia.
Estes casos podem ter origem em padrões imagéticos co-
muns, que seriam equivalentes ao radical da palavra ociden-
tal, um fragmento idêntico percebido em diversas variantes
de uma mesma palavra: terra, terreno, terreiro e terrinha, por
exemplo. Também há situações que misturam as característi-
cas da palavra e da imagem, como é o caso da escrita oriental
japonesa. Partindo de Nunes (2019), percebemos que o cine-
ma japonês utiliza a estrutura ideogramática como base para
a composição de imagens cinematográficas, em outras pala-
vras, usa uma escrita desenhada de seu idioma. Ou seja, no
campo da imagem, podemos ir além da comunicação verbal
ou não verbal.
Existem diversos significados para as cores, pois são en-
tendidas de maneiras diferentes em cada cultura. Por exem-
plo, o branco no Brasil é a cor da paz, por causa de influên-
cias da simbologia católica; já no vestuário usado nas sextas-
-feiras pelos candomblecistas, essa cor é escolhida em hon-
ra ao orixá Oxalá, simbolizando o respeito máximo a ele. O
azul, por sua vez, é comumente associado às sensações de cal-
ma e confiança (HELLER, 2013), e, nas descrições dos mares,
pode também ser identificado à Iemanjá (PRANDI, 2001),
conhecida por alternar estados de calmaria e de intensidade,
assim como as águas do mar.
Aqui escolhemos analisar a cor por meio de elementos
da brasilidade oriundos do povo ioruba, portanto através
de um conjunto histórico-filosófico e cultural com raízes
na África. Na pesquisa de mestrado que deu origem a este
texto, elegemos dois orixás dentre o panteão de divindades
candomblecistas, Xangô e Ogum. Ambos têm suas caracte-

522
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

rísticas mais detalhadas nos estudos dos pesquisadores Re-


ginaldo Prandi, doutorado em sociologia da religião, e Pier-
re Fatumbi Verger.4
Ao pesquisar sobre os orixás, percebemos semelhanças
entre alguns deles, sobretudo no que tange às suas cores ar-
quetípicas, que são associadas a elementos da natureza. A cor
configura um dos aspectos das manifestações (i)materiais de
um orixá/axé/vida, energia que permeia e compõe o univer-
so, segundo as histórias de origem iorubá-candomblecista
(PRANDI, 2001).
O orixá é uma força pura, axé imaterial
que só se torna perceptível aos seres hu-
manos incorporando-se em um deles.
Esse ser escolhido pelo Orixá, um de seus
descendentes, é chamado seu elégùn,
aquele que tem o privilégio de ser “mon-
tado”, gùn, por ele. Torna-se o veícu-
lo que permite ao Orixá voltar a terra
para saudar e receber as provas de res-
peito de seus descendentes que o evoca-
ram. Os elégùn muitas vezes são chama-
dos iyawóòrìsà (iaô), mulher do Orixá.
Este termo tanto se aplica aos homens
quanto às mulheres e não evoca uma
ideia de união ou de posse carnal, mas
a de sujeição e de dependência, como
[a que] antigamente as mulheres [de-
viam] aos homens. (VERGER, 1951, p. 4).
Na cultura dos orixás, há um grande fascínio por grupos
que não se permitem ou não têm permissão para aproximar-
-se da sociedade geral, seja em razão de projetos político-
-religiosos e econômicos (PRANDI, 2007), ou de preconcei-

4 O sobrenome Fatumbi é um pseudônimo adquirido nos processos


religiosos do candomblé, sendo um título de alta hierarquia.

523
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

tos sociais, ou mesmo do resguardo hierofânico. Esses grupos


estão detalhados na literatura referente a instâncias de resis-
tência, como as retratadas por Mota Neto (2016). A maioria
das comunidades latino-americanas é caracterizada pela si-
tuação de resistência. Alguns desses grupos espalharam-se e
misturaram-se a outros pela necessidade de sobrevivência e
de adaptação de sua religião, o candomblé ou outras religiões
de matriz africana, formadas e desenvolvidas no Brasil por
meio do sincretismo entre religiões e mitologias. Esses fato-
res são analisados por Prandi (2007), que cita, entre outras
coisas, a moda como possibilidade econômica dentro e fora
da religião candomblecista, destacando o turbante branco, o
colar de contas de búzios azuis ou verdes e outros aspectos.
Nosso texto se apropria desses elementos culturais visan-
do submetê-los a relações produtivas e valorativas. Conscien-
tes estamos das intenções pictóricas, sensoriais, imagéticas,
identitárias e até mesmo publicitárias que remontam às ra-
mificações sagradas, culturais e cênicas do candomblé, ainda
que não tenhamos a intenção de reproduzir seus objetivos
sagrados. Procuramos respeitar os limites cênicos e religiosos
que refletem as possibilidades de encontro entre candomblé,
cena e teatro.
Mesmo apartado do contexto ritual, o visual candomble-
cista possui resquícios de sacralidade em suas possibilidades
estéticas:
Vigora a percepção de que tudo o que
se faz é para agradar os deuses e assim
obter seus favores, e eles se agradam do
que é bonito, é com beleza que se louva
os orixás. A riqueza, o luxo, a opulência
integram o ideal de culto no candomblé.
Essa noção vem da África, onde a opu-

524
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

lência deve ser sempre mostrada, osten-


tada. (ALMEIDA et al., 2016, p. 30).
Devido à diáspora colonizadora sofrida pelos negros,
elementos de diversas culturas africanas, em especial as do
povo iorubá, cruzaram o mar junto com os filhos desse povo
e passaram por modificações influenciadas pela transitorie-
dade das gerações e das relações humanas, pelos sincretismos
e pelas maneiras de cultuar. Por isso, remeter fielmente aos
fatores religiosos originais é uma tarefa árdua para os prati-
cantes do candomblé. Para resgatá-los, seria necessário um
esforço coletivo intenso de pesquisa, buscando socializar
esses saberes com a academia. Muitos desses elementos são
transmitidos em relações parentais que envolvem linhagens/
orixás consanguíneas e/ou a participação de iniciados, e isso
dificulta sua identificação. Estima-se que, desde a década de
1930 (PRANDI, 2001), a polifonia de discursos, muitas ve-
zes, dogmáticos ou preconceituosos, vem estimulando a bus-
ca das origens do candomblé por intermédio da voz de seus
próprios mestres antigos, que são convidados a falar sobre a
tradição oral e a renovação cultural.
Fazendo coro a esse contexto investigativo, tentamos en-
contrar as raízes cromáticas do candomblé e simultaneamen-
te imaginar como elas são ou poderiam ser representadas.
Para isso, recorremos ao aporte artístico-visual do pesquisa-
dor Hugo Canuto, quadrinista idealizador e concretizador da
obra Contos dos orixás (2018). Nessa obra, Canuto comprome-
te-se a estudar a mitologia dos orixás nas diversas religiões
originárias da diáspora dos negros, especialmente no can-
domblé, e a retratar os orixás em histórias em quadrinhos. Por
meio do discurso mitodramático e da estrutura quadrinista,
ele conta as histórias dos orixás e as distribui para a popu-
lação da qual elas se originaram e para as demais populações

525
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

interessadas em conhecê-las. Na obra mencionada, os orixás


foram aproximados a uma figura amplamente difundida nos
meios de produção cultural de massa, o herói dos quadrinhos
norte-americanos. Esse artifício colabora para que os não ini-
ciados possam conhecer melhor essas narrativas embasadas
no próprio candomblé.
A obra de Canuto apontou relações com o conjunto de as-
pectos filosóficos, históricos, religiosos e culturais de origem
iorubá partindo de recursos intermidiáticos. Seguindo uma
direção análoga, é possível conhecer e levantar outras possi-
bilidades, como o estudo estético das escolhas poéticas que
retratam o orixá através da cor. Novos discursos, semelhan-
tes ou diferentes aos originais, tornam-se, portanto, viáveis
na descrição dos orixás. As cores já tinham o poder de dizer
muito antes de elementos textuais verbais e não verbais. Por
exemplo, a cor do ferro nos elmos que representam defesa
ressalta a resistência; o verde nas coroas indica sabedoria; o
cobre reflete imponência e nobreza por apontar o uso de ma-
teriais preciosos.
Essas indicações cromáticas geram identificações arque-
típicas de elementos candomblecistas em situações cênicas,
apontando para a afetação sensorial-sinestésica do criador
de máscaras. Os significados das cores influenciam o ator em
seu conhecimento sobre a máscara, sobre si mesmo e sobre a
animação que está sendo desenvolvida. Eles conscientizam o
profissional por meio da sensibilização prévia acerca daqui-
lo que a máscara inicialmente pede ou daquilo em que ela
será transformada. Não analisamos aqui os traços do autor
ou outras discussões próprias da área de artes visuais, mas a
afetação pela cor (GUIMARÃES, 2001) através dos “acordes
cromáticos” harmoniosos ou dissonantes (HELLER, 2013).
No contexto cênico da máscara, buscamos atingir a cor que

526
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

exprime e preserva a identidade do orixá em reinterpretações


arquetípicas.
Conhecemos muito mais sentimentos
do que cores. Dessa forma, cada cor
pode produzir muitos efeitos, frequen-
temente contraditórios. Cada cor atua
de modo diferente, dependendo da oca-
sião. O mesmo vermelho pode ter efei-
to erótico ou brutal, nobre ou vulgar. O
mesmo verde pode atuar de modo salu-
tar ou venenoso, ou ainda calmante. O
amarelo pode ter um efeito caloroso ou
irritante. Em que consiste o efeito espe-
cial? Nenhuma cor está ali sozinha, está
sempre cercada de outras cores. A cada
efeito intervêm várias cores – um acor-
de cromático. (COLLER, 2000, p. 2).
Antes de prosseguirmos, cabe esclarecer que esse tipo de
estudo deve levar em conta as tipologias do daltonismo. Esse
fator é importante na medida em que o trabalho aqui propos-
to ajuda a modificar a percepção do público daltônico sobre
determinadas cores, podendo causar disfonias entre as in-
tencionalidades propostas e as recebidas e acionar as demais
originalidades perceptivas próprias de cada ser humano. Essa
situação também nos inquietou para as possibilidades que
surgem nas significações engatilhadas pela imagem posta em
relação com os conhecimentos prévios do público, sejam eles
culturais, empíricos ou hipotéticos. Pensamos nas interessan-
tes diferenças entre a percepção do público e a intencionali-
dade de quem elabora discursos cromáticos. Como a cor pode
contribuir para a leitura das imagens? As sensações que ela
desperta podem instigar a compreensão dessas imagens? Ve-
jamos o seguinte exemplo:

527
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

O arquétipo de Xangô é aquele das pes-


soas voluntariosas e enérgicas, altivas
e conscientes de sua importância real
ou suposta. Das pessoas que podem ser
grandes senhores, corteses, mas que não
toleram a menor contradição, e, nesses
casos, deixam-se possuir por crises de
cólera, violentas e incontroláveis. Das
pessoas sensíveis ao charme do sexo
oposto e que se conduzem com o tato
e encanto no decurso das reuniões so-
ciais, mas que podem perder o contro-
le e ultrapassar os limites da decência.
Enfim, o arquétipo de Xangô é aquele
das pessoas que possuem um eleva-
do sentido da sua própria dignidade e
das suas obrigações, o que as leva a se
comportarem com um misto de severi-
dade e benevolência, segundo o humor
do momento, mas sabendo aguardar,
geralmente, um profundo e constante
sentimento de justiça. (VERGER, 1951,
p. 94-95, grifo colorido nosso).
Que sensações nos invadem ao lermos todas estas caracte-
rísticas na cor vermelha em contraste com o preto? Há dife-
renças entre o que lemos e o que imaginamos? Nossa rápida
fuga do protocolo monocromático acadêmico, com certeza,
influenciou na leitura acerca de Xangô, esse orixá-cor, inde-
pendente da presença ou ausência de conhecimentos prévios
sobre ele, e influenciaria ainda que a descrição não fosse em
palavras. E, mesmo que visivelmente haja apenas uma cor em
destaque, provavelmente ela contribuiu para nossa leitura e
para a construção da imagem de Xangô dentro de nossa par-
ticularidade, de forma consciente ou inconsciente.

528
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

Mas nem todas as características destacadas remetem ao


vermelho (COLLER, 2000); algumas pertencem ao domínio
de outras cores. O fato é que, por ser nocivo às nossas córneas,
o vermelho é uma cor que os seres humanos não conseguem
enxergar em todas as suas tonalidades existentes. Esse des-
conforto gerado nessa reação fisiológica é comumente iden-
tificado na associação dessa cor às paixões, à impetuosidade,
aos saltos entre amor e ódio, ou seja, à imprevisibilidade. E a
experiência com as cores não acontece apenas em humanos;
outros animais enxergam mais espectros do vermelho do que
nós e assim também experienciam a cor, ainda que não refli-
tam sobre ela (COLLER, 2000).
Na ilustração de Xangô fornecida por Canuto em Contos
dos orixás, a cor vermelha compõe as peças mais resistentes da
armadura desse orixá e é retratada nessas peças como uma
tentativa de prepará-lo para a batalha, de ajudá-lo a impor
sua presença de modo certeiro, intransigente e ameaçador,
pois o vermelho também pode significar ameaça/alerta. En-
tretanto, atentemos para o fato de que Xangô, assim como
todas as outras divindades do panteão candomblecista, en-
contra-se presente, com sua imagem arquetípica, em outras
religiões das matrizes africanas. Sua essência, aqui vista na
perspectiva da cor, é mantida além do candomblé, nos mui-
tos sincretismos existentes. A imagem mencionada foi pro-
duzida por Canuto com base em diversas especificidades e
ramificações culturais.
Nessa ilustração, Xangô é retratado nas cores vermelha,
marrom, branca, verde, amarela, azul, laranja, preta, roxa,
anil, entre outras. Considerando que seria demasiado o estu-
do de cada uma dessas cores, atemo-nos a um paralelo entre
o vermelho e o azul, desta vez utilizando uma descrição da
figura mítica de Ogum, também ilustrada por Canuto. Se-

529
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

gundo Coller (2000), vermelho e azul, quando relacionados,


compõem um acorde cromático opondo-se psicologicamente
entre si e gerando sinestesias divergentes.
O arquétipo de Ogum é o das pessoas
violentas, briguentas e impulsivas, in-
capazes de perdoar as ofensas de que
foram vítimas. Das pessoas que perse-
guem energeticamente seus objetivos
e não se desencorajam facilmente. Da-
quelas que nos momentos difíceis triun-
fam onde qualquer outro teria abando-
nado o combate e perdido toda a espe-
rança. Das pessoas que possuem humor
mutável, passando [de] furiosos acessos
de raiva ao mais tranquilo dos compor-
tamentos. Finalmente, é o arquétipo
das pessoas impetuosas e arrogantes,
daquelas que se arriscam a melindrar os
outros por uma certa falta de discrição
quando lhes prestam serviços, mas que,
devido à sinceridade e fraqueza de suas
intenções, tornam-se difíceis de ser
odiadas. (VERGER, 1951, p. 49, grifo
colorido nosso).
De modo similar ao que observamos no exemplo passado,
nem todas estas características remetem ao azul. Mas isso não
nos impede de concretizar nossa intenção, que é sensibilizar
sobre o poder do discurso não verbal em contrapartida ao
discurso verbal e apontar as relações passíveis de ser reali-
zadas através de cada um deles em leituras sobre um mesmo
tema. Dessa forma, poderemos, em seguida, utilizá-los cons-
cientemente em cena. O azul é tido como a cor da confiança,
da calma, da profundidade, o que não condiz com a descrição
textual de Ogum, que também é combativo e rancoroso, e

530
Cor, orixá e os intencionais acordes cromáticos

por isso se encaixa igualmente na contextualização do orixá


Xangô. A belicosidade de Ogum poderia ser reforçada se mais
utilizações de preto fossem adicionadas ao vermelho, numa
relação entre o que indica poder e o que o impõe. A pre-
sença do azul no orixá combativo Ogum mostra que o tema
da guerra não se dissocia do tema da paz. O espírito guerreiro
indica o aporte mitodramático dos orixás candomblecistas.
As sociedades africanas que foram retratadas nessa mitolo-
gia guerreavam constantemente entre si e não aboliam tais
comportamentos como imorais ou contraproducentes para a
convivência social.
Se, por um lado, o azul não se coaduna com a belicosida-
de de Ogum, por outro, em Xangô, o vermelho, cor das per-
sonalidades impositivas, também mantém contato com um
pouco de branco, que significa benevolência, paz e tranqui-
lidade. E mais: Ogum, que foi retratado nas cores marrom,
violeta, verde, cinza, branco, laranja, amarelo, ocre, vermelho,
entre outras, possui o descritor “triunfante”, presentificado na
imagem pelo amarelo, cor do sucesso, ao passo que, fora do
contexto candomblecista, o amarelo é tido como a cor dos
traidores. Isso contradiz o aspecto sincero de Ogum.
Diante das sensibilizações gestadas por essas reflexões, es-
peramos entender, portanto, que, mais do que um elemento
contextualizado em estudos acadêmicos, religiosos ou intui-
tivos, a cor pode ser e está sendo transformada junto com a
evolução artística. As intuições do artista-pesquisador e do
público significador, e, principalmente, aquelas consubstan-
ciadas na relação ator-máscara, devem ser reforçadas por per-
cepções e perspectivas, e ainda por arbitrariedades, pois a in-
tencionalidade da ética teatral profissional requer uma cons-
cientização e um domínio prévio. Se o ator, com sua intuição
reforçada, para e escuta as indicações não verbais do objeto

531
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

cênico em afetações percebidas e contínuas, ele não fica res-


trito, por exemplo, a determinada cor que apareça; ao con-
trário, consegue constituir discursos não verbais que estejam
ou não sob suas influências. Buscar essas conscientizações é
religar-se ao que há de mais comum, original e recorrente do
ponto de vista humano e da perspectiva de um ator público.
Quando remontamos a obras artísticas originadas de con-
textos religiosos candomblecistas, vivenciamos o patrimônio
(i)material do candomblé, independente de estarmos ou não
inseridos em suas ritualidades. Reinventamos histórias a que
provavelmente nem tivemos acesso, mas que gestam afe-
tações em nossas camadas profundas. Diante dos efeitos des-
sas obras religiosas sobre nós, é possível concluir que usar
uma máscara cênica candomblecista não é simplesmente uti-
lizar a cor como artifício cromático para capturar a atenção
ou desviar o foco da qualidade da obra cênica; pelo contrário,
as cores, como vimos, geram discursos intencionais ou con-
sequentes, vindos do ator ou para o ator. Se dominamos os
saberes acerca da cor dentro e fora da contextualização can-
domblecista, a criatividade poética é convidada a surgir como
autora de si mesma, como fenômeno artístico intencional.

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533
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na
expressão metacênica crítica no Departamento
de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

Yasmin Gonçalves e Lyra1

Resumo: O estudo em questão descreve nossa pesquisa


de mestrado em Artes da Cena, em que tivemos como obje-
tivo central identificar e analisar os estereótipos de gênero
presentes nas expressões estéticas metacênicas de crianças
de quatro a seis anos, matriculadas no Departamento de
Educação Infantil do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada
à Educação da Universidade Federal de Goiás (DEI-Cepae-
-UFG). Essas expressões metacênicas, em suas represen-
tações binárias de masculino e feminino, podem estar esti-
mulando relações de poder desiguais. A pesquisa se desen-
volve com base nesta questão motriz: como promover o de-
senvolvimento ontológico das crianças pequenas por meio
da formação de sua identidade com intervenções cibercê-
nicas/educativas? Para resolver esta questão, levantamos
outros questionamentos: quais são os conceitos existentes
acerca das representações binárias de masculino e femini-

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola de


Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac-UFG).
Atriz e professora, possui graduação em Artes Cênicas pela Emac-UFG,
tendo desenvolvido durante o curso duas pesquisas de iniciação científica
sobre performances culturais teatro-educativas nos âmbitos digital e não
digital. Atualmente cursa especialização em Arte/Educação Intermidiática
pela UFG. Atuou como professora de Teatro do ensino fundamental I e II
no Colégio Ateneu Salesiano Dom Bosco, no Centro Educacional Casinha
Feliz e no Colégio Victória Figueiredo. Atualmente é professora bolsista
no Departamento de Educação Infantil do Centro de Ensino e Pesquisa
Aplicada à Educação (Cepae), UFG, em Goiânia, GO.
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

no? Em que instância este binarismo nas representações de


gênero é reforçado pelas relações desiguais de poder já por
crianças de quatro a seis anos?
Palavras-chave: gênero; cibercena/educação; primeira
infância.

Cybercena/education: gender esteriotypes in the


critic metacenic expression at the Departamento de
Educação Infantil (DEI) of the Cepae-UFG

Abstract: The present investigation regards the master’s


research in arts of the scene (Emac-UFG), which the mean
goal is to identify and analyze the gender stereotypes that
exists in the aesthetic metascenic’s expressions of children
from four to six years old studying in the Child Education’s
Department of Cepae-UFG, which such aesthetics expres-
sions could be reinforcing unequal power relations by bi-
naries representations of male and female. This research is
developed starting with the driving question: how to further
children’s ontological development, because it’s the identity’s
development, through cyberscenic/education al interven-
tions? Therefore in this text we approach first the questions:
what are the existing concepts about the binaries representa-
tions of male and female? Which is the instance that binaries
representations of gender are reinforced by unequal relations
already by children from four to six years old?
Keywords: gender; cyberscene/education; early childhood.

A presente investigação é baseada em nossa pesquisa


de mestrado em Artes da Cena desenvolvida na Escola de
Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás
(Emac-UFG), sob a orientação da professora Fernanda Perei-
ra da Cunha. O objetivo central da pesquisa é identificar e

535
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

analisar os estereótipos de gênero presentes nas expressões


estéticas metacênicas de crianças de quatro a seis anos do
Departamento de Educação Infantil do Centro de Ensino e
Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de
Goiás (DEI-Cepae-UFG). A análise dessas expressões indica
que elas podem estar reforçando relações de poder desiguais
por meio das representações binárias de masculino e femini-
no expressas pelas crianças.
Por meio da análise destes estereótipos, buscaremos reali-
zar intervenções cibercênicas educativas para a promoção
de ressignificações estético-cênicas no tocante à percepção
cognitiva da identidade pessoal. Esperamos alcançar estas
ressignificações mediante o uso do conceito da “cibervida ar-
tista”, forjado pela professora Fernanda Cunha como paráfra-
se do conceito de “vida artista”, de Michel Foucault. Com esta
noção, o filósofo sugere que a vida também pode ser vivida
e percebida como uma obra de arte. A finalidade das inter-
venções cibercênicas direcionadas às crianças nesta pesquisa
é colaborar para a formação de cidadãos capazes de autogo-
vernabilidade, ou seja, de governar a si mesmos sem se deixar
consumir pela indústria massiva que impõe ideias alheias.
É esse desenvolvimento crítico do sujeito que Paulo Freire
(2011), no contexto da pedagogia da autonomia, compreende
como autogovernança.
O trabalho em questão se apresenta como prosseguimen-
to dos estudos realizados durante a graduação em Artes Cê-
nicas pela Emac-UFG (2013-2015), centrados nas performan-
ces culturais teatro-educativas em prol do desenvolvimento
da consciência crítica no Cepae-UFG; de nossas reflexões
como professora bolsista que trabalha com as expressões me-

536
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

tacênicas cotidianas das crianças pequenas2 no espaço esco-


lar do DEI-Cepae-UFG (2015-2017); e dos estudos acerca da
cultura digital infantil, no curso de Especialização em Arte-
-Educação Intermidiática Digital, também pela Emac-UFG
(2017-2019). Nesse curso, compreendemos algo bastante signi-
ficativo para o delineamento de nosso objeto de estudo: a
Arte-Educação tem como premissa a valorização do con-
texto do educando, permitindo que, por meio de ações crí-
ticas e questionadoras, ele (res)signifique suas experiências
no desenvolvimento estético de sua identidade, ampliando
assim sua visão de mundo. Trata-se de um conceito pós-
-modernista fundamentado na “abordagem triangular”, ela-
borada pela professora Ana Mae Barbosa.
A Abordagem Triangular, por ser uma
perspectiva cuja gênese epistemológica
se alicerça em seu caráter genuinamen-
te contextual, é uma abordagem em
processo, portanto, contínua, dado seu
aspecto orgânico, voltando-se para o
desenvolvimento da identidade cultu-
ral e da cognição/percepção. (CUNHA,
2017, p. 208).

2 O termo “criança pequena” é utilizado em artigos científicos e livros


referentes às crianças da educação infantil, que têm entre zero e seis
anos. Este intervalo é designado como “primeira infância” ou “pequena
infância”, considerando que o período da infância transcende a idade de
seis anos. O marco legal da primeira infância é definido pela Lei Federal
nº 13.257/2016.

537
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Partindo das observações do contexto escolar das crianças


do DEI-Cepae-UFG,3 caminhamos na contramão do “ensino
bancário”, que, segundo Paulo Freire (2013, p. 79), concebe o
professor como único detentor do conhecimento, que é “de-
positado” acriticamente na cabeça dos educandos por meio
de solilóquios docentes. Numa direção contrária a esse en-
sino, foi possível perceber nas brincadeiras, corporeidades e
reflexões cotidianas das crianças observadas alguns valores
provenientes da intensa imersão na transmídia. Para essas
análises, trabalhamos com a reprodução de personagens e de
enredos provenientes de filmes e com desenhos, vídeos do
YouTube, jogos etc., direcionados ou não para o público da
primeira infância. Os valores demonstrados pelas crianças
durante as atividades reforçavam estereótipos de gêneros di-
cotômicos e revelavam relações de poder e submissão na se-
paração entre “coisas de menino” e “coisas de menina” dentro
do comportamento infantil.
Deste contexto identificado durante a docência na edu-
cação infantil no DEI-Cepae-UFG, surgiram as primeiras
questões que deram início a este estudo, voltadas para os
consumos transmidiáticos da primeira infância: que con-
teúdos compõem o contexto cultural digital das crianças do
DEI com idade entre 4 e 6 anos? Que estereótipos de gênero
são reafirmados na transmídia hodiernamente? Como estes
paradigmas têm influenciado as expressões metacênicas das

3 As observações assinaladas fundamentaram-se no curso de Especialização


em Arte-Educação Intermidiática Digital (Emac-UFG). Tiveram como
lócus o agrupamento Tatu-Bolinha, composto por quinze crianças de
três a quatro anos de idade, e o agrupamento Jacaré, com quinze crianças
de quatro a cinco anos de idade. No DEI-Cepae-UFG, opta-se por não
classificar os agrupamentos numericamente, mas usando-se nomes de
animais do cerrado escolhidos pelas crianças. É uma estratégia para evitar
possíveis hierarquias de ensino-aprendizado pautadas em uma progressão
de “turmas”.

538
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

crianças pequenas? Para responder a estas questões, realiza-


mos uma pesquisa de campo por meio de observações coti-
dianas no espaço escolar supracitado, no ano de 2017. Duran-
te esse período, procuramos identificar a influência de consu-
mos transmidiáticos nas expressões metacênicas das crianças
deste espaço, entendendo que, ao mediar sua cibervida, esses
consumos compunham sua cultura digital.
O universo digital, como afirma Castells (2005, p. 456),
não exclui o universo não digital: “os novos meios de comu-
nicação eletrônica não divergem das culturas tradicionais:
absorvem-nas”. Essa interconexão tem interferido fortemen-
te na formação humana, e, inclusive, na da criança pequena,
ao estabelecer um novo estado da mente humana. Castells
(apud CUNHA, 2012) chama-a de metalinguagem: interco-
nexão entre som, imagem e texto. Bia Medeiros, professora
da Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesqui-
sa Corpos Informáticos, também remete à interconexão pro-
porcionada pelo universo digital:
A que mundo somos sensíveis hoje? Es-
tamos embebidos de telepresenças, ao
vivo ou não: telefones, celulares, televi-
sões, chats, videoconferência, todos cada
vez mais atingindo todos os sentidos,
sentidos solidários entre [si]. (MEDEI-
ROS, 2005, p. 156).
A que conteúdos do universo digital as crianças pequenas
são sensíveis hoje? Esta indagação foi trabalhada na pesquisa
de campo ao investigarmos os consumos transmidiáticos reali-

539
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

zados pelos educandos da primeira infância do DEI/Cepae/


UFG no ano de 2017. As primeiras buscas4 revelaram que
as crianças de 4 a 5 anos no DEI/CE-
PAE/UFG têm consumido [...] majo-
ritariamente desenhos animados e fil-
mes. Dos conteúdos mencionados pelas
crianças, esmagadora maioria possui
personagens e protagonistas do gênero
masculino e brancos [...]. Nas categorias
disponibilizadas após [a análise] dos
conteúdos, é também possível perceber
que a categoria princesas foi mencio-
nada apenas por meninas, enquanto a
maior parte dos conteúdos que apresen-
tam tema de luta foi mencionada por
meninos. (LYRA, 2017).
Esta primeira análise das observações do cotidiano escolar
infantil revela a necessidade de trabalhar com os possíveis es-
tereótipos de gênero presentes na cibervida das crianças pe-
quenas. É preocupante o fato de que tais estereótipos possam
estar contribuindo para uma formação humana dicotômica,
ditando e reforçando regras sociais de conduta e influencian-
do em questões de identidade e poder nas relações entre os
cidadãos desde a tenra idade.
Em uma pesquisa acerca dos estereótipos coreográficos
de crianças do ensino básico, Elaine Cruz (2015) analisa, com
base em alguns dicionários, os aspectos conceituais do termo
estereótipo. Segundo ela, etimologicamente, este provém do
campo da tipografia, em que o estereótipo significa a matriz

4 Essas experiências estão descritas no blog Arte/Educação Intermidiática,


dentro do site Teatro/Educação Infantil Digital. O site foi desenvolvido
como trabalho de conclusão de curso da Especialização em Arte/
Educação Intermidiática, promovida pela Emac-UFG, de 2017 a 2019.
Está disponível em https://yasminlyra.wixsite.com/arteeducacao.

540
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

em que se produz estruturalmente o texto (seja física ou digi-


talmente) para a impressão de múltiplas cópias.
Atentamos para o fato de que o termo
estereótipo [nem sempre foi] utilizado
para definir a padronização de indiví-
duos em uma sociedade ou grupo social,
ele tem a sua origem na tipografia, mais
precisamente no processo de impressão
gráfica, no qual uma única impressão é
usada para produzir muitas cópias idên-
ticas. (CRUZ, 2015, p. 37).
No escopo das relações sociais e das criações coreográfi-
cas humanas, o conceito de estereótipo descreve um processo
semelhante, o da representação de clichês que se ritualizam
devido à falta de criticismo acerca daquilo que se reproduz:
“compreendemos o estereótipo coreográfico como um mol-
de estabelecido que padroniza um grupo e pode dificultar o
surgimento de ideias autônomas e questionadoras” (CRUZ,
2015, p. 91). Dentro desta compreensão, algumas reflexões se
fazem pertinentes: das relações de poder imbricadas nos es-
tereótipos de gênero difundidos na transmídia, quais podem
estar padronizando as expressões metacênicas na primeira
infância? Até que ponto estas relações de poder e submissão
intrínsecas a estes estereótipos têm passado despercebidas
pelas crianças dessa fase e por seus responsáveis em vivências
acríticas nos contextos educacional e familiar?
Durante a mencionada pesquisa no curso de Especiali-
zação em Arte-Educação Intermidiática, além das obser-
vações cotidianas, foram realizadas entrevistas com as famí-
lias das crianças do agrupamento Jacaré. A oitava e última
pergunta feita aos responsáveis pelas crianças era: “Quanto
tempo por dia as crianças têm acesso a conteúdos digitais?”.
Nas respostas, foram utilizadas expressões como “devo te

541
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

confessar”, “infelizmente”, “isso é até uma coisa assim que a


gente queria tirar, né” e “Tá muito. É, tô achando que é muito.
Eu não fico lá muito para ver, mas eu acho que ele fica muito”.
De acordo com as famílias, durante a semana, o tempo de
acesso a programas de televisão e principalmente ao YouTube
variava em torno de duas horas diárias, sendo que, nos finais
de semana, o consumo diário podia chegar até a dez horas. As
expressões usadas pelos responsáveis já denotam certa preo-
cupação ao mostrar que eles consideram demasiado o tempo
de acesso das crianças ao ambiente digital.
A professora Fernanda Pereira da Cunha salienta a respon-
sabilidade dos educadores em conscientizar as famílias sobre
esse acesso exagerado a que as crianças estão expostas. Segun-
do ela, no impasse existente “no paradigma da [ir]responsabi-
lidade formativa de nossos jovens”, os educadores e a socieda-
de compreendem, equivocadamente, que, quando o uso das
plataformas digitais é feito em casa ou na escola, esses jovens
estão “resguardados dos ‘perigos da vida’”. Entendem que
os muros de casa e/ou da escola podem
proteger seus filhos e alunos da “vida lá
fora”. Mas se esquecem de que a inter-
net é a porta aberta para o mundo sem
fronteiras, onde é a capacidade de esco-
lha que pode determinar os rumos pela
internet. (CUNHA, 2017, p. 217).
Nessa discussão, a autora enaltece a consciência autogo-
vernativa, cujo desenvolvimento
pode evitar que pessoas despreparadas
sejam sugadas pelo universo do entre-
tenimento fácil, imediato, que antecede
o direito de escolha. É neste paradigma,
contrário à educação digital crítica, [vol-
tada para o] desenvolvimento da cons-

542
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

ciência autogovernativa, que impera a


verticalidade da indústria cultural mas-
siva. (p. 217).
Dar liberdade à criança para escolher seus consumos é di-
ferente de lhe conceder licença para assistir a tudo indiscri-
minadamente e por quantas horas ela desejar. Como escreve
Paulo Freire (2011, p. 103), “a liberdade sem limite é tão ne-
gada quanto a liberdade asfixiada ou castrada”.
A falta de reflexão, nos espaços educativos formais, acerca
das expressões metacênicas infantis e da pluralidade de gê-
neros existentes na sociedade contribui para a disseminação
de padrões culturais dicotômicos. Como afirma Jane Felipe
(2003, p. 56), professora da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, tais padrões estimu-
lam crimes como a erotização infantil precoce, especialmente
de meninas:
Ao mesmo tempo que se condena qual-
quer tipo de relação sexual envolvendo
um adulto e uma criança, como sendo
a forma mais terrível de violência se-
xual, vive-se em uma cultura que pro-
duz constantemente imagens erotiza-
das das crianças, em especial de meni-
nas. Os corpos vêm sendo instigados a
uma crescente erotização, amplamente
veiculada através da TV, do cinema, da
música, dos jornais, das revistas, das
propagandas, outdoors, e, mais recente-
mente, [por meio] da Internet, tem sido
possível vivenciar novas modalidades de
exploração dos corpos e da sexualidade.
Tal processo de erotização tem produ-
zido efeitos significativos na construção
das identidades de gênero e identidades

543
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

sexuais das crianças, especialmente em


relação às meninas.
Desde a concepção humana, a definição da sexualidade e
do gênero parece sempre uma questão urgente na sociedade
ocidental, e até motivo de festejo ou decepção. Basta lembrar,
por exemplo, os famosos “chás de revelação”, motivados pe-
las questões “Qual é o sexo do bebê?”, “É menino ou meni-
na?”. Tais eventos se pautam na descoberta do órgão sexual
da criança que virá a nascer, e apenas duas possibilidades de
gênero são delineadas: feminino e masculino. E mais: a con-
duta esperada é sempre a submissão do primeiro ao segundo
e a estipulação de signos diferenciadores, como a cor da ves-
timenta. Isso fica evidente, por exemplo, na frase de Damares
Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos: “Atenção! É uma nova era no Brasil: menino veste
azul e menina veste rosa!” (Menino veste azul..., 2019).
A frase da ministra comprova alguns dos estereótipos
sexistas encontrados nos estudos realizados durante o curso
de especialização. Durante esses estudos, nos momentos de
brincadeiras livres, perguntamos às crianças do agrupamento
Jacaré do DEI-Cepae-UFG, que têm de quatro a cinco anos,
o que elas mais gostavam de fazer por meio das tecnologias
de informação e comunicação digitais a que tinham acesso:
televisão, tablet, celular ou computador. Os consumos meta-
cênicos mais assinalados pelas crianças apontaram que meni-
nas consumiam mais cibercenas de coloração rosa, e meninos
consumiam mais super-heróis, todos eles grandes lutadores e
predominantemente retratados nas cores azul e preta.5 Esses
dados demonstram uma apropriação acrítica destas represen-
5 Ver post O que as crianças pequenas consomem e apreciam na internet?, no
blog Arte/Educação Intermidiática. Disponível em: https://yasminlyra.
wixsite.com/arteeducacao/single-post/2018/09/28/O-que-as-crianças-
pequenas-consomem-e-apreciam-na-internet.

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Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

tações de identidade aplicadas ao corpo infantil. Dentro do


âmbito dos estudos pós-estruturalistas sobre corpo, sexuali-
dade, linguagem e identidade, Jane Felipe (2003, p. 53-54) es-
creve acerca destas representações culturais:
Ao longo da história e nas mais diferentes
culturas, o corpo tem sido pensado, cons-
truído, investido, produzido de diversas
formas. Vários campos do conhecimen-
to têm tomado para si, através de seus
experts, a tarefa de falar sobre ele, descre-
vê-lo, conceituá-lo, atribuir-lhe sentido,
ditar regras de modo a normatizá-lo.
Por outro lado, não podemos deixar de
considerar que o corpo tem sido dividi-
do e demarcado através das expectativas
que se colocam sobre ele, conferindo-lhe
maior ou menor status, especialmente
quando se trata de defini-lo e situá-lo
em função do sexo. Corpos masculinos e
femininos não têm sido percebidos e va-
lorizados da mesma forma. Há uma ten-
dência a hierarquizá-los, a partir de suas
diferenciações mais visíveis e invisíveis.
Em nossa cultura os corpos constituem-
-se no abrigo de nossas identidades (de
gênero, sexuais e de raça).
Destas reflexões realizadas durante a especialização, surge
o questionamento motriz desta pesquisa, que tem prossegui-
mento no mestrado em Artes da Cena da Emac-UFG: como
promover o desenvolvimento ontológico das crianças peque-
nas no trabalho com a formação de sua identidade por meio
de intervenções cibercênicas/educativas? Mas antes, e para
tanto, questionamos: Quais são os conceitos existentes a res-
peito das representações binárias de masculino e feminino?
Em que instância esses binarismos no campo do gênero são

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

reforçados pelas relações desiguais de poder já por crianças


de quatro a seis anos?
O filósofo britânico John Langshaw Austin (1911-1960)
estudou os atos da linguagem trazendo o conceito de “perfor-
matividade” e chamou de “performativas” as frases que não
têm uma função apenas descritiva, mas que realizam uma
ação ao serem ditas. Por exemplo, em “O livro está sobre a
mesa”, temos uma frase de função descritiva; já em “Decla-
ro aberto este congresso”, é visível a realização de uma ação,
portanto, estamos diante de uma frase performativa.6 Tomaz
Tadeu da Silva (2011, p. 92) adverte que, graças à performati-
vidade, a identidade deixa de ser vista como algo estático para
constituir algo em constante movimento e transformação.
Desse ponto de vista, são altamente performativas as defi-
nições afirmativas acerca do sexo/gênero da criança (“é me-
nina!”, ou “é menino!”) ou uma página de jogos on-line que
se identifica como “jogos para meninos”. Essas situações tra-
zem consigo uma série de marcas identitárias definidoras das
relações e dos modelos de tratamento que formam a criança.
Afinal, se somos seres histórico-culturais e nos desenvolvemos
em sociedade, não escapamos aos padrões que ela estabelece.
A linguagem é performativa e estrutura relações de po-
der ao dar significado a tudo aquilo que medeia as relações
que nos constituem como humanos, criando representações
da cultura dominante. Tais representações têm disseminado
concepções binárias, castradoras e hierarquizadas de gêneros
que estão sendo reforçadas nas cibercenas consumidas pelas
crianças da educação infantil.
Mas o que significa gênero? Etimologicamente o termo
provém do latim gĕnus, ĕris, “origem”, que, de acordo com as

6 Essas ações realizadas na anunciação do próprio enunciado foram


chamadas de “ilocuções” (SILVA, 2011, p. 92).

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Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

primeiras definições dadas pelo Dicionário Aurélio da língua


portuguesa (2010), quer dizer “classe”, “espécie”, grupo reunido
por determinada característica comum. Dentro de seu caráter
polissêmico, o termo gênero é utilizado, entre outras coisas,
para descrever certos agrupamentos nas diferentes áreas epis-
temológicas (biologia, literatura, linguística e gramática), bem
como nos estudos sobre sexualidade. No campo de busca do
site de pesquisa on-line mais acessado nos âmbitos nacional
e mundial, Google, a primeira definição assinalada para gê-
nero é: “conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma
origem ou que se acham ligados pela similitude de uma ou
mais particularidades” (BARATA, 2009). Lima (2007, p. 14)
destrincha o conceito dentro do âmbito de nossa pesquisa:
O termo gênero vem do Latim genus,
que significa “nascimento”, “família”,
“tipo”. Tradicionalmente, [...] é utilizado
como um conceito gramatical de classi-
ficação de palavras, dividindo-se entre:
masculino, feminino e neutro. Embora
em sua origem grega, genos e geneā,
o termo também fizesse referência ao
sexo, foi somente a partir do século XV
que esta associação passou a ser mais
utilizada, ou seja, o termo gênero pas-
sou a ser sinônimo do sexo biológico
dos indivíduos. Consequentemente, os
termos masculino e feminino torna-
ram-se especificações do gênero, sendo
o primeiro empregue aos machos e o
segundo às fêmeas.
O conceito de gênero aplicado para definir a organização
social dos sexos surge dentro dos movimentos feministas,
mais especificamente a partir da década de 1970, no cam-
po do pós-estruturalismo anglo-saxão, em um contexto de

547
II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

problematização da identidade (LOURO et al., 2010, p. 14).


Primeiramente, essa aplicação do termo é uma tentativa de
questionar as representações biologizantes de sexo, que res-
tringem o corpo a duas possibilidades: homens masculinos ou
mulheres femininas. Sob a influência das divisões platônicas
e cartesianas entre corpo e mente – o corpo sendo associado
ao feminino e a mente, dita superior, ao masculino –, o sexo,
em algumas teorias de gênero, passou a designar as caracte-
rísticas biológicas do corpo, ditas imutáveis e determinadas
pela ciência; o gênero, por sua vez, tornou-se um termo usado
para tratar estritamente dos significados culturais conferidos
a este ou àquele corpo/ser.
Tal definição levanta uma cisão importante para se am-
pliar a percepção das identidades binárias e heterossexuais,
pois, neste novo sentido, o gênero é uma qualidade identi-
tária independente do sexo. Torna-se uma característica in-
trinsecamente ligada à cultura e às relações de poder e domi-
nação que constituem essa cultura e que tendem a subordi-
nar o gênero ao sexo. Trabalhando com essa definição, Gua-
cira Lopes Louro, pesquisadora e professora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, levanta, porém, o seguinte
questionamento: “existe um domínio biológico que possa ser
compreendido fora do social? É possível separar cultura e
biologia?” (LOURO, 1997, p. 44).
Neste mesmo viés de estudo, Judith Butler, filósofa pós-
-estruturalista estadunidense, autora de grandes estudos so-
bre o feminismo, levanta as seguintes reflexões: não será o
sexo, também, uma construção cultural produzida por dis-
cursos científicos? Ele é apenas binário e imutável? Se o con-
ceito de sexo também foi formulado dentro de um contexto
cultural, por signos sociais da cultura – em que a ciência está

548
Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

inserida e da qual é produto –, será que existe mesmo a dis-


tinção entre sexo e gênero? (BUTLER, 2012, p. 25).
Se o sexo é, ele próprio, uma categoria
tomada em seu gênero, não faz sentido
definir o gênero como a interpretação
cultural do sexo. O gênero não deve ser
meramente concebido como a inscrição
cultural de significado num sexo pre-
viamente dado (uma concepção jurídi-
ca); tem de designar também o aparato
mesmo de produção mediante o qual os
próprios sexos são estabelecidos. (p. 25).
Ao buscar o termo gênero na biblioteca on-line de artigos
científicos, Scientific Electronic Library Online (Scielo), en-
contramos 11.806 referências distribuídas em 1.181 páginas,
conforme exemplifica a Imagem 1 (A, B e C):
Imagem 1 - Print screen da tela do computador mostrando a primeira
página da Scielo após a busca pela palavra gênero em todos os índices
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Fonte: http://www.scielo.br. Acesso em: 8 out. 2019.

Dos dez primeiros artigos indicados na primeira de 1.181


páginas de pesquisa, oito citavam a palavra gênero apenas
como definição de uma categoria de objetos ou como um
dado de separação binária de feminino e masculino entre os

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Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

participantes da pesquisa. Desses oito, quatro se situavam no


campo da terapia, dois integravam os estudos de medicina,
um pertencia ao campo do esporte e um, ao âmbito da polí-
tica social. Apenas dois artigos, inseridos no campo do direi-
to eleitoral e da terapia, discutiam o gênero em suas imbri-
cações sociais com a sexualidade. Os artigos evidenciam que
a palavra gênero é um conceito relacionado a várias episte-
mologias, podendo ter significados diferentes até dentro de
uma mesma área de estudo.
Após esta descoberta, a primeira metodologia selecionada
foi a pesquisa bibliográfica, que teve início com o levanta-
mento e a escolha de fontes primárias voltadas ao gênero no
intuito de identificar os paradigmas em que se situa o termo
e, assim, definir o lócus do gênero dentro do qual se poderia
inserir a discussão do nosso objeto: a transmídia e a ciberce-
na/educação na primeira infância.
Para tanto, partimos de uma análise quantitativa e qualita-
tiva das(os) autoras(es) mais referenciadas(os) por quatro auto-
ras emblemáticas que possuem pesquisas sobre gênero, identi-
dade, primeira infância, teatro e corpo dentro dos estudos fe-
ministas. Foram consultadas 303 fontes, entre livros, capítulos
de livros, entrevistas e artigos publicados por essas autoras. Em
seguida, fizemos a identificação e sistematização dos assuntos
que se relacionam aos estudos de gênero nestas obras.
Com base no material levantado, realizamos essa siste-
matização em uma tabela com todos os autores citados em
cada uma das publicações, na tentativa de compreender um
pouco das matrizes dos estudos de gênero na atualidade par-
tindo das quatro autoras mencionadas. As referências das
obras consultadas apontam a forte presença de autores como
Michel Foucault, Joan Scott, Sigmund Freud, Jacques Lacan,
Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall.

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

Compreender os estereótipos de gênero presentes nas


expressões metacênicas da primeira infância engloba com-
preender também as relações sociais e jurídicas de poder ex-
plícitas nas linguagens humanas, no seu viés ético, estético
e político. Por isso é importante atentar para os tipos de re-
lações de poder que estão sendo enaltecidas pelos consumos
transmidiáticos das crianças pequenas e buscar (res)significar
essas relações por meio de intervenções cibercênicas/educa-
tivas críticas. Como escreve a professora Fernanda Pereira da
Cunha (2012, p. 32),
faz-se necessário formarmos um públi-
co consciente, capaz de ler/interpretar
os códigos culturais que compõem o
universo digital da sociedade em rede
com autonomia e criticidade, [para que
esse público não seja] assimilado, suga-
do pela “ordem de massificação huma-
na” que tem como premissa a homoge-
neização.
No prosseguimento da pesquisa, problematizaremos o
gênero na primeira infância observando suas relações líqui-
das no ciberespaço e buscando identificar como a transmí-
dia produz e consome identidades de gênero. Nessa direção,
analisaremos o modo pelo qual as representações de gênero
presentes nas cibervidas das crianças de quatro a seis anos no
DEI-Cepae-UFG mantêm ou subvertem relações de poder e
hegemonia entre o que se entende por masculino e o que se
classifica como feminino.

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Cibercena/educação: estereótipos de gênero na expressão metacênica crítica
no Departamento de Educação Infantil (DEI) do Cepae-UFG

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II Seminar - Seminário Internacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes da Cena

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SOBRE O E-BOOK

Tipografia: Bely
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