O Duelo - Anton Tchekhov

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DADOS DE ODINRIGHT

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SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
Créditos
I

Eram oito da manhã — hora em que oficiais, funcionários e recém-


chegados, normalmente depois de uma noite quente e abafada, tomavam
banho de mar e depois iam para o pavilhão beber café ou chá. Ivan
Andrêitch Laiévski, um jovem de aproximadamente 28 anos, louro e
magro, usando um quepe do Ministério das Finanças e chinelos, ao
chegar para nadar encontrou na margem muitos conhecidos, entre eles
seu amigo, o médico militar Samóilenko.
Com uma cabeça grande e cabelos curtos, sem pescoço, vermelho,
narigudo, com sobrancelhas pretas e volumosas e suíças grisalhas, gordo,
obeso, e ainda por cima com uma voz baixa e rouca de militar, esse
Samóilenko provocava em qualquer recém-chegado uma impressão
desagradável de um grosseirão de voz rouca, mas passados dois ou três
dias do primeiro encontro seu rosto começava a parecer
extraordinariamente bondoso, terno e até bonito. Apesar de sua falta de
jeito e do tom meio rude, era um homem pacífico, infinitamente bom,
benevolente e solícito. Tratava a todos na cidade com informalidade,
emprestava dinheiro a quem pedisse, oferecia tratamento médico,
arranjava casamentos, reconciliava, organizava piqueniques — nos quais
assava espetinhos e fazia uma sopa de tainha muito saborosa; estava
constantemente pedindo e intercedendo a favor de alguém e sempre
alegre com algo. Na opinião geral, era um homem sem pecados, e só lhe
atribuíam duas fraquezas: primeira, tinha vergonha de sua bondade e
tentava mascará-la com um olhar severo e uma grosseria afetada, e
segunda, amava que os enfermeiros e soldados o chamassem de Vossa
Excelência, apesar de ser apenas conselheiro de Estado.
— Aleksandr Davíditch, responda a uma pergunta — começou
Laiévski quando ambos, ele e Samóilenko1, entraram na água até a
altura do ombro. — Vamos supor que você se apaixonou por uma
mulher e juntou-se a ela; viveu com ela, vamos supor, mais de dois anos
e depois, como às vezes acontece, parou de amá-la e começou a sentir
que ela é uma estranha. Como agiria nesse caso?
— É muito simples. Vá cuidar da sua vida, minha filha; e fim de
conversa.
— Falar é fácil! Mas e se ela não tiver para onde ir? Uma mulher
sozinha, sem família, sem um tostão, incapaz de trabalhar...
— E daí? Junto com isso é só dar a ela quinhentos rublos na fuça ou
25 por mês — está bom demais! Muito simples.
— Mas vamos supor que você tenha os quinhentos rublos e os 25 por
mês, só que a mulher sobre a qual estou falando é intelectual e
orgulhosa. Por acaso você ofereceria dinheiro a ela? E como faria isso?
Samóilenko fez menção de responder, mas nessa hora uma grande
onda cobriu os dois, depois quebrou na praia e, com barulho, rolou de
volta pelas pedras miúdas. Os amigos foram para a praia e começaram a
se vestir.
— Claro, é complicado viver com uma mulher se você não a ama —
disse Samóilenko sacudindo a areia da bota. — Mas, Vánia2, é preciso
pensar com humanidade. Se isso acontecesse comigo, eu não
demonstraria a ela que perdi o amor, e viveria com ela até a morte.
De repente sentiu vergonha de suas palavras e disse:
— Mas para mim o melhor é que nem tenha mulher nenhuma. Que
vão para o quinto dos infernos!
Os amigos se vestiram e seguiram para o pavilhão. Ali, Samóilenko
estava em casa, e tinha até uma louça especial só para ele. Toda manhã
lhe serviam uma bandeja com uma xícara de café, um copo alto lapidado
com água e gelo e um cálice de conhaque; primeiro ele mandava para
dentro o conhaque, depois o café quente, depois a água com gelo, e isso
devia ser muito gostoso, porque depois de beber os olhos dele ficavam
oleosos, ele acariciava as suíças com ambas as mãos e dizia, olhando para
o mar:
— Que vista maravilhosa e admirável!
Depois de uma longa noite despendida em pensamentos infelizes e
inúteis, que o haviam impedido de dormir e pareciam piorar o
abafamento e a escuridão da noite, Laiévski se sentia abatido e mole. O
banho de mar e o café não o deixaram melhor.
— Aleksandr Davíditch, vamos continuar nossa conversa — falou.
— Não vou esconder, vou lhe dizer francamente, como amigo: as coisas
com Nadiejda Fiódorovna vão mal... muito mal! Perdão se lhe confio
meus segredos, mas preciso desabafar.
Samóilenko, pressentindo do que se tratava, baixou os olhos e
começou a tamborilar os dedos na mesa.
— Vivi dois anos com ela e deixei de amá-la... — continuou
Laiévski. — Quer dizer, para ser mais exato, entendi que nunca houve
amor nenhum... Esses dois anos foram um erro.
Laiévski tinha o hábito de, na hora da conversa, examinar
atentamente as palmas rosadas das mãos, roer as unhas, ou amassar o
punho da camisa com os dedos. E naquele momento era isso que estava
fazendo.
— Sei muito bem que você não pode me ajudar — disse ele —, mas
estou lhe contando porque para nós, homens supérfluos e infelizes, a
única salvação é a conversa. Preciso generalizar cada um de meus atos,
preciso encontrar explicação e justificativa para minha vida absurda nas
teorias de alguém, em tipos literários, no fato, por exemplo, de que nós,
nobres, estamos nos degenerando, e assim por diante… Na noite
passada, por exemplo, eu me consolava o tempo todo pensando: ah,
como Tolstói está certo, impiedosamente certo! E ficava mais calmo por
isso. De fato, amigo, ele é um grande escritor! Não há o que dizer.
Samóilenko, que nunca havia lido Tolstói e todo dia se preparava
para ler, ficou desconcertado e disse:
— Sim, todos os escritores escrevem a partir da imaginação, mas ele
parte direto da natureza...
— Meu Deus — suspirou Laiévski —, a que ponto somos mutilados
pela civilização! Eu me apaixonei por uma mulher casada; ela também se
apaixonou por mim... No começo tínhamos beijos, noites tranquilas,
juras, Spencer,3 ideais, interesses em comum... Que mentira! Em
essência, estávamos fugindo do marido dela, mas mentimos para nós
mesmos que estávamos fugindo do vazio de nossas vidas da intelligentsia.
Nosso futuro se desenhava assim: inicialmente, no Cáucaso, enquanto
conhecíamos o local e as pessoas, eu vestiria o uniforme e serviria,
depois pegaríamos um pedacinho de terra na vastidão, trabalharíamos e
com o suor do nosso rosto criaríamos uma pequena vinícola, campos etc.
Se em vez de mim fosse você ou aquele zoólogo Von Koren, talvez vocês
vivessem com Nadiejda Fiódorovna por trinta anos e deixassem para
seus descendentes um rico vinhedo e mil dessiatinas4 de milho, mas eu
me senti falido desde o primeiro dia. Na cidade faz um calor
insuportável, é um tédio, não há ninguém, e se você vai para o campo,
embaixo de cada arbusto e pedra aparecem aranhas, escorpiões e cobras,
e depois dos campos há montanhas e desertos. Gente desconhecida,
natureza desconhecida, uma cultura lamentável — isso tudo, amigo, não
é tão fácil quanto passear na avenida Niévski vestindo um casaco de pele,
de mãos dadas com Nadiejda Fiódorovna, e sonhar com regiões quentes.
Aqui a luta não é de vida, mas de morte, e que raio de lutador sou eu?
Um neurastênico lamentável, um folgado... Desde o primeiro dia
entendi que minhas ideias sobre a vida de trabalho e a pequena vinícola
não valiam nada. No que se refere ao amor, devo lhe dizer que viver com
uma mulher que leu Spencer e foi para o fim do mundo por você é tão
desinteressante quanto o amor com uma Anfissa ou Akúlina. O mesmo
cheiro de ferro de passar, pó de arroz e remédio, os mesmos
papelotezinhos toda manhã e o mesmo autoengano...
— Sem ferro de passar não dá para cuidar da casa — disse
Samóilenko, corando pelo fato de Laiévski falar com ele de forma tão
franca sobre uma mulher conhecida. — Vánia, você hoje não está com
bom ânimo, estou percebendo. Nadiejda Fiódorovna é uma mulher
maravilhosa, culta, e você é um homem do mais alto intelecto... Claro,
vocês não são casados — continuou Samóilenko, olhando em volta para
as mesas vizinhas —, mas isso não é culpa de vocês e, além do mais,
precisamos nos libertar dos preconceitos e estar à altura das ideias
modernas. Eu mesmo sou a favor do casamento civil, sim... Mas, na
minha opinião, já que se juntaram, então é preciso viver juntos até a
morte.
— Sem amor?
— Já vou explicar — disse Samóilenko. — Há uns oito anos,
tínhamos aqui um velho agente, um homem do mais alto intelecto. E ele
dizia o seguinte: na vida familiar, o principal é ter paciência. Está
escutando, Vánia? Não amor, paciência. O amor não pode durar muito
tempo. Você viveu uns dois anos com amor e agora, evidentemente, sua
vida familiar entrou naquele período em que, para manter o equilíbrio,
por assim dizer, deve lançar mão de toda a sua paciência…
— Você acredita no seu velho agente, mas para mim o conselho dele
é absurdo. Seu velho pode ser hipócrita, ele pode exercitar a paciência e
assim ver uma pessoa não amada como um objeto necessário para seu
exercício, mas eu ainda não desci tão baixo; se eu quiser exercitar a
paciência, compro halteres de ginástica ou um cavalo rebelde, mas deixo
as pessoas em paz.
Samóilenko pediu vinho branco com gelo. Depois de beberem um
copo cada, Laiévski perguntou de repente:
— Diga, o que significa amolecimento do cérebro?
— É, como vou explicar… uma doença em que o cérebro fica mole…
como se estivesse mais ralo.
— É curável?
— Sim, se a doença não foi negligenciada. Banhos frios, emplastro…
Bom, algo interno.
— Certo… Pois veja minha situação. Viver com ela eu não consigo;
está acima das minhas forças. Enquanto estou com você eu filosofo,
sorrio, mas em casa perco totalmente o ânimo. Fico tão sombrio que se
me dissessem, vamos supor, que sou obrigado a viver com ela mais um
mês que seja, acho que eu meteria uma bala na cabeça. E ao mesmo
tempo não posso me separar dela. Ela é sozinha, não pode trabalhar,
nem eu nem ela temos dinheiro… Onde ela vai se meter? Quem vai
procurar? Não consigo pensar em nada… Pois então, diga: o que fazer?
— Hm, sim… — resmungou Samóilenko, sem saber o que
responder. — Ela te ama?
— Sim, ama na medida em que, com a idade e o temperamento que
tem, precisa de um homem. Para ela seria tão difícil se separar de mim
quanto do pó de arroz e dos papelotes. Para ela, sou parte integrante do
boudoir.
Samóilenko ficou desconcertado.
— Hoje você não está com bom ânimo, Vánia — disse ele. — Não
dormiu, deve ter sido isso.
— Sim, dormi mal… Amigo, de maneira geral estou me sentindo
péssimo. A cabeça vazia, o coração em suspenso, uma certa fraqueza…
Preciso fugir!
— Para onde?
— Para lá, para o norte. Para os pinheiros, os cogumelos, as pessoas,
as ideias… Eu daria metade da minha vida para estar nadando agora
num riozinho na província de Moscou, ou de Tula, passando frio, sabe,
depois vagar por umas três horas, mesmo que fosse com o pior
estudantezinho possível e tagarelar, tagarelar… O cheiro do feno!
Lembra-se? E à noite, quando você passeia no jardim, chegam da casa
os sons do piano, escuta-se um trem passando…
Laiévski começou a rir de satisfação, vieram-lhe lágrimas aos olhos e,
para escondê-las, sem se levantar, estendeu-se até a mesa vizinha para
pedir fósforos.
— Já tem dezoito anos que não vou à Rússia — disse Samóilenko. —
Já me esqueci de como é por lá. Para mim, não há terra mais magnífica
do que o Cáucaso.
— Tem um quadro de Verescháguin: no fundo de um poço muito
profundo penam condenados à morte. Exatamente igual ao fundo desse
poço, é como vejo seu magnífico Cáucaso. Se me propusessem escolher
uma de duas opções: ser limpador de chaminés em São Petersburgo ou
ser um príncipe aqui, eu escolheria ser limpador de chaminés.
Laiévski mergulhou em pensamento. Olhando para seu corpo
encurvado, para os olhos fixos num ponto, para o rosto pálido e cavado,
as unhas roídas, o chinelo pendente no calcanhar que revelava uma meia
mal cerzida, Samóilenko foi atravessado por pena e, provavelmente
porque Laiévski lhe lembrava uma criança desamparada, perguntou:
— Sua mãe está viva?
— Sim, mas eu e ela cortamos relações. Ela não me perdoou por essa
relação.
Samóilenko amava o amigo. Ele via em Laiévski um rapaz bom,
gente boa, com o qual se pode beber, rir e abrir o coração. O que
entendia dele, não gostava nem um pouco. Laiévski bebia muito e fora
de hora, jogava cartas, desprezava o emprego, vivia acima dos seus
meios, muitas vezes empregava expressões obscenas na conversa, andava
na rua de chinelo e brigava com Nadiejda Fiódorovna na frente de
estranhos — e Samóilenko não gostava disso. O fato de Laiévski ter
frequentado em algum momento a faculdade de Letras, assinar agora
duas revistas grossas, sempre falar de forma tão inteligente que só
poucos o entendiam e morar com uma mulher intelectual nada disso
Samóilenko entendia, ou gostava, mas considerava Laiévski acima de si
e o respeitava.
— Mais um detalhe — disse Laiévski, balançando a cabeça. — Só
entre nós… Por enquanto estou escondendo de Nadiejda Fiódorovna,
não deixe escapar para ela… Há mais de dois dias recebi uma carta
dizendo que o marido dela morreu de amolecimento do cérebro.
— Jesus amado… — suspirou Samóilenko. — Por que está
escondendo isso dela?
— Mostrar essa carta a ela significaria: faça o favor de vir à igreja
casar. E primeiro preciso esclarecer nossa relação. Quando ela se
convencer de que não podemos continuar vivendo juntos eu mostro a
carta. Aí vai ser seguro.
— Sabe de uma coisa, Vánia? — disse Samóilenko, e de repente seu
rosto assumiu uma expressão triste e suplicante, como se ele estivesse se
preparando para pedir algo muito doce e tivesse medo de ouvir uma
recusa. — Case-se com ela, querido!
— Para quê?
— Cumpra seu dever com essa mulher maravilhosa! O marido dela
morreu, e dessa forma a própria Providência está lhe mostrando o que
fazer!
— Mas entenda, seu doido, que isso é impossível. Casar sem amor é
tão canalha e indigno de um ser humano quanto celebrar uma missa sem
crer.
— Mas é sua obrigação!
— Por que é que é minha obrigação? — perguntou Laiévski irritado.
— Porque você a tirou do marido e a assumiu sob sua
responsabilidade.
— Mas vou lhe dizer em russo bem claro: eu não a amo!
— Bem, se não há amor, então respeite, agrade…
— Respeite, agrade… — imitou Laiévski.— Como se ela fosse uma
madre superiora… Você é um mau psicólogo e fisiologista se pensa que,
vivendo com uma mulher, é possível se safar só com respeito e
consideração. Antes de mais nada a mulher precisa do quarto.
— Vánia, Vánia… — Samóilenko ficou desconcertado.
— Você é uma velha criança, um teórico, e eu sou um jovem velho e
prático, e nunca vamos entender um ao outro. Melhor pararmos esta
conversa. Mustafá — gritou Laiévski ao garçom —, quanto devemos?
— Não, não — assustou-se o médico, pegando Laiévski pela mão. —
Essa eu pago. Fui eu que pedi. Anote na minha conta! — gritou para
Mustafá.
Os amigos se levantaram e andaram pela praia em silêncio. Na
entrada do bulevar eles pararam e apertaram as mãos em despedida.
— Os senhores são muito mimados, senhores! — suspirou
Samóilenko. — O destino lhe mandou uma mulher jovem, bonita, culta,
e você recusa; quem me dera ter uma velhinha torta, mas que fosse
carinhosa e boa, como eu estaria satisfeito! Viveria com ela no meu
vinhedo e…
Samóilenko se deu conta de repente e disse:
— E deixaria ela lá, a bruxa velha, pra cuidar do samovar.
Depois de se despedir de Laiévski, ele andou pelo bulevar. Enquanto
ia triste, majestoso, com uma expressão severa no rosto, vestindo sua
túnica militar branca como a neve e botas perfeitamente limpas,
projetando o peito para a frente, no qual sobressaía o vermelho da
Ordem de São Vladímir com uma fita, andando pelo bulevar, naquele
momento sentia-se muito feliz consigo mesmo, e lhe parecia que o
mundo inteiro olhava para ele com satisfação. Sem virar a cabeça, ele
lançava olhares para os lados e ia verificando que o bulevar estava
completamente urbanizado, que os novos ciprestes, eucaliptos e as
palmeiras mirradas e estropiadas eram muito bonitos e com o tempo
dariam uma sombra ampla e que os circassianos eram um povo honesto
e hospitaleiro. “Que estranho Laiévski não gostar do Cáucaso”, pensava
ele, “muito estranho.” Cruzou com cinco soldados armados e eles lhe
fizeram continência. Pelo lado direito do bulevar, na calçada, passava a
esposa de um funcionário com o filho, estudante do ginásio.
— Mária Konstantínovna, bom dia! — gritou Samóilenko para ela,
com um sorriso agradável. — Foram nadar? Ha ha ha… Meus respeitos
a Nikodim Aleksándritch!
E ele seguiu em frente, ainda sorrindo agradavelmente, mas, ao ver
um enfermeiro militar que vinha ao seu encontro, de repente fechou a
cara, o fez parar e perguntou:
— Há alguém no hospital?
— Ninguém, Vossa Excelência.
— Hein?
— Ninguém, Vossa Excelência.
— Certo, pode ir…
Balançando majestosamente, ele se dirigiu à banquinha de limonada,
onde sentava-se atrás do balcão uma velha judia de seios fartos, que
tentava se passar por georgiana, e disse a ela sonoramente, como se
estivesse comandando um batalhão:
— Por gentileza, me dê uma água com gás!
II

O desamor de Laiévski por Nadiejda Fiódorovna expressava-se


principalmente no fato de que tudo o que ela dizia e fazia parecia a ele
uma mentira ou lhe lembrava uma mentira, e tudo o que ele lia contra as
mulheres e o amor parecia se encaixar da melhor maneira possível a ele,
Nadiejda Fiódorovna e o marido dela. Quando voltou para casa, ela, já
vestida e penteada, estava sentada perto da janela e, com o rosto
preocupado, bebia café e folheava uma revista grossa, e ele pensou que
beber café não era nenhum acontecimento tão extraordinário que
merecesse aquela cara preocupada, e que ela desperdiçara seu tempo
fazendo um penteado da moda, já que ali não havia ninguém para
agradar e não havia razão. Na revista também ele via uma mentira.
Pensou que ela se vestia e se penteava para parecer bonita, e lia para
parecer inteligente.
— Tudo bem se eu for nadar hoje? — perguntou ela.
— E daí? Indo ou não indo, acho que não vai ter nenhum terremoto
por causa disso…
— Não, estou perguntando se o médico não vai ficar bravo.
— Bom, então pergunte ao médico. Não sou médico.
Naquele momento o que Laiévski menos gostava em Nadiejda
Fiódorovna era seu pescoço branco, descoberto e os cachos de cabelo na
nuca, e ele se lembrou que Anna Kariênina, quando perdeu o amor pelo
marido, antes de tudo desgostou das orelhas dele, e pensou: “Como está
certo! Como está certo!”. Sentindo fraqueza e um vazio na cabeça, foi
para o escritório, deitou-se no sofá e cobriu o rosto com um lenço para
que as moscas não o incomodassem. Pensamentos frouxos e viscosos,
sempre sobre a mesma coisa, se arrastavam em seu cérebro, como um
longo trem numa noite chuvosa de outono, e ele caiu num estado
sonolento e abatido. Parecia-lhe que ele era culpado em relação a
Nadiejda Fiódorovna e seu marido, e que o marido havia morrido por
culpa dele. Parecia-lhe que ele era culpado em relação a sua vida, que a
havia estragado, em relação ao mundo das ideias elevadas, do
conhecimento e do trabalho, e aquele mundo maravilhoso apresentava-
se a ele possível e existente, mas não ali, na costa, onde vagavam turcos
famintos e abcázios preguiçosos, e, sim, lá, no norte, onde havia ópera,
teatros, jornais e todo tipo de trabalho intelectual. Só era possível ser
honesto, elevado e puro lá, não aqui. Ele se condenava por não ter ideais
e uma ideia que o guiasse na vida, apesar de agora entender vagamente o
que aquilo significava. Dois anos antes, quando se apaixonara por
Nadiejda Fiódorovna, parecia-lhe que bastava juntar-se a ela e irem para
o Cáucaso, e ele estaria salvo da vulgaridade e do vazio da vida; assim
como agora ele estava certo de que lhe bastava abandonar Nadiejda
Fiódorovna e ir para São Petersburgo que receberia tudo de que
precisava.
— Fugir! — murmurava, sentando-se e roendo as unhas. — Fugir!
Sua imaginação mostrava a si mesmo subindo num vapor, e em
seguida tomaria café da manhã, beberia uma cerveja gelada, conversaria
no convés com as damas, depois em Sevastópol subiria num trem e
viajaria. Alô, liberdade!
As estações passariam uma depois da outra, o ar se tornaria cada vez
mais frio e cortante, surgiriam as bétulas e os pinheiros, aí está Kursk,
Moscou… Nos bufês, schi,5 carneiro com mingau, esturjão, cerveja, em
suma, nada dessas coisas asiáticas, mas a Rússia, a verdadeira Rússia. Os
passageiros no trem falam de comércio, de novos cantores, de simpatias
franco-russas; por toda parte se sente a vida animada, cultural,
intelectual, viva… Mais rápido, mais rápido! Enfim, aparece a avenida
Niévski, a rua Bolchaia Morskaia, aparece a travessa Kovenski, onde ele
havia morado em outra época com os estudantes, aparece aquele querido
céu cinza, a chuvinha chuviscando, os cocheiros molhados…
— Ivan Andrêitch! — alguém chamou do quarto vizinho. — Está
em casa?
— Estou aqui! — respondeu Laiévski. — O que foi?
— Papéis!
Laiévski se levantou preguiçosamente, com uma tontura e, bocejando
e arrastando os chinelos, foi para o quarto vizinho. Lá, perto da porta
aberta, do lado de fora, um de seus jovens colegas de trabalho estendia
papéis oficiais no peitoril da janela.
— Já vou, meu caro — disse Laiévski suavemente, e foi procurar um
tinteiro; ao voltar para a janela, assinou os papéis sem ler e disse: — Que
calor!
— Sim, senhor. Vem hoje?
— Duvido… Estou me sentindo meio mal… Meu caro, diga a
Chechkóvski que depois do almoço vou passar na casa dele.
O funcionário foi embora. Laiévski deitou-se novamente no sofá e
começou a pensar: “Pois bem, é preciso pesar todas as circunstâncias e
refletir. Antes de ir embora daqui, preciso pagar as dívidas. Estou
devendo por volta de dois mil rublos. Não tenho dinheiro… Isso, claro,
não é importante; dou um jeito de pagar uma parte agora e a outra parte
mando depois de São Petersburgo. O principal é Nadiejda
Fiódorovna… Antes de mais nada, preciso esclarecer nossa relação…
Sim.”
Um pouco depois, ele refletiu: “Não seria melhor ir falar com
Samóilenko para pedir um conselho?”.
“Posso ir”, pensou, “mas que utilidade isso terá? De novo vou falar
com ele sem propósito sobre boudoir, sobre mulheres, sobre o que é
honesto ou desonesto. Qual conversa, que o diabo carregue, posso ter
aqui sobre o que é honesto ou desonesto se preciso salvar minha vida, se
estou sufocando e me matando neste cativeiro maldito?… Por fim, é
preciso entender que prosseguir numa vida como a minha é uma
canalhice e uma crueldade, diante da qual todo o resto é miúdo e
insignificante.” Fugir! — sussurrou ele, sentando-se. — Fugir!
A praia deserta, o calor excepcional e as montanhas com uma
uniforme cor de névoa, meio lilás, eternamente iguais e silenciosas,
eternamente solitárias, depositavam-lhe angústia, pareciam deixá-lo
sonolento e arrebatá-lo. Talvez ele fosse muito inteligente, talentoso,
extraordinariamente honesto; talvez, se não estivesse cercado de todos os
lados por mar e montanhas, ele pudesse se sair um excelente
administrador do zemstvo, um estadista, um orador, um publicista, um
asceta. Quem sabe?! Se fosse assim, não era bobagem ficar tagarelando
sobre o que era honesto e desonesto, se um homem talentoso e saudável,
um artista ou músico, por exemplo, para fugir de um cativeiro, quebra a
parede e engana seus carcereiros? Na situação dessa pessoa, tudo é
honesto.
Às duas, Laiévski e Nadiejda Fiódorovna se sentaram para almoçar.
Quando a cozinheira serviu a sopa de arroz com tomate, Laiévski disse:
— Todo dia a mesma coisa. Por que não faz um schi?
— Não tem repolho.
— Estranho. Na casa de Samóilenko fazem schi com repolho, na casa
de Mária Konstantínovna também, só eu por algum motivo sou
obrigado a comer essa gororoba adocicada. Assim não é possível,
querida.
Como acontece com a absoluta maioria dos casais, antes Laiévski e
Nadiejda Fiódorovna não passavam um só almoço sem cenas e
caprichos, mas desde o momento em que Laiévski decidira que já não a
amava, ele se esforçava para ceder a Nadiejda Fiódorovna em tudo,
falava com ela de forma suave e educada, sorria, chamava-a de querida.
— Esta sopa tem gosto de alcaçuz — disse ele, sorrindo; esforçava-se
para parecer amável, mas não se conteve e disse: — Ninguém cuida
desta casa… Se você está tão doente ou ocupada lendo, deixe que eu
assumo a cozinha.
Antes ela teria respondido: “assuma” ou “estou vendo que você quer
fazer de mim uma cozinheira”, mas agora só olhou tímida para ele e
corou:
— E então, como está se sentindo hoje? — perguntou ele,
carinhosamente.
— Hoje está tudo bem. Assim, só uma pequena fraqueza.
— Tem que se cuidar, querida. Eu me preocupo muito com você.
Nadiejda Fiódorovna tinha alguma doença. Samóilenko dizia que era
uma febre intermitente, e lhe dava quinino; já outro médico,
Ustimovitch, um homem alto, magro, pouco sociável, que passava o dia
em casa, e à noite, com as mãos atrás das costas e a bengala estendida ao
longo da coluna, passeava em silêncio pela praia e tossia, achava que ela
tinha uma doença feminina e receitava compressas quentes. Antes,
quando Laiévski a amava, a doença de Nadiejda Fiódorovna despertava
nele pena e medo, mas agora até na doença ele via mentira. O rosto
amarelo, sonolento, o olhar mole e os bocejos que Nadiejda Fiódorovna
dava depois dos ataques de febre, e que na hora dos ataques ela ficasse
deitada debaixo de uma manta e parecesse mais um menino do que uma
mulher, que o quarto dela fosse abafado e cheirasse mal — tudo isso, na
opinião dele, destruía a ilusão e era um protesto contra o casamento e o
amor.
No segundo prato serviram a ele espinafre com ovos cozidos, e para
Nadiejda Fiódorovna, como doente, kissel com leite. Quando ela
começou a tocar o kissel com a colher, com o rosto preocupado, e depois
começou a comê-lo preguiçosamente, acompanhando com leite, e ele
escutou seus goles, foi tomado por um ódio tão pesado que até a cabeça
começou a coçar. Ele reconhecia que esse sentimento seria ofensivo até
em relação a um cachorro, mas ficava aborrecido não consigo, e sim com
Nadiejda Fiódorovna por despertar nele esse sentimento, e entendia por
que às vezes os apaixonados matam suas amadas. Ele mesmo não
mataria, claro, mas, se agora tivesse a oportunidade de ser jurado,
absolveria o assassino.
— Merci, minha querida — disse depois do almoço, e beijou
Nadiejda Fiódorovna na testa.
Ao entrar no seu gabinete, passou cerca de cinco minutos andando
de um canto para o outro, olhando para as botas de esgelha, depois se
sentou no sofá e murmurou:
— Fugir, fugir! Esclarecer a relação e fugir! — ele se deitou no sofá e
de novo lembrou-se de que o marido de Nadiejda Fiódorovna talvez
tivesse morrido por culpa dele.
“Acusar uma pessoa por ter se apaixonado ou deixado de se apaixonar
é uma estupidez”, tentava se convencer, deitado e levantando os pés para
calçar as botas. “O amor e o ódio não estão em nosso poder. Já no que se
refere ao marido, talvez eu tenha sido de forma indireta uma das causas
da morte, mas, de novo, tenho culpa de ter me apaixonado pela esposa
dele — e ela por mim?”
Então ele se levantou e, depois de achar o quepe, dirigiu-se para a
casa de seu colega Chechkóvski, onde os funcionários se reuniam todo
dia para jogar vint e beber cerveja gelada.
“Faço lembrar Hamlet em minha indecisão”, pensou Laiévski no
caminho. “Como Shakespeare observou certo! Ah, como está certo!”
III

Para evitar o tédio e fazer um agrado à extrema necessidade dos recém-


chegados e sem família — que, por não haver um hotel na cidade, não
tinham onde almoçar —, o doutor Samóilenko mantinha em sua casa
uma espécie de table d'hôte. No momento de que contamos só faziam as
refeições na casa dele duas pessoas: o jovem zoólogo Von Koren, que
vinha para o mar Negro durante o verão estudar a embriologia das
águas-vivas, e o diácono Pobiédov, recém-saído do seminário e enviado à
cidadezinha para cobrir a licença do velho diácono, que havia ido se
tratar. Ambos pagavam doze rublos por mês cada, por almoço e jantar, e
Samóilenko os fazia dar a palavra de honra de que apareceriam para
almoçar pontualmente às duas horas.
Normalmente, o primeiro a chegar era Von Koren. Ele se sentava na
sala calado e, pegando o álbum da mesa, começava a examinar
atentamente fotografias desbotadas de certos homens desconhecidos
com calças largas e cartolas, e damas de crinolina e touca; Samóilenko só
se lembrava de alguns pelo sobrenome, e daqueles que havia esquecido
dizia com um suspiro: “Uma pessoa maravilhosa, do mais alto
intelecto!”. Depois de terminar o álbum, Von Koren pegava uma pistola
da estante e, entrefechando o olho esquerdo, passava muito tempo
mirando o retrato do príncipe Vorontsov, ou então parava na frente do
espelho e examinava seu rosto bronzeado, a testa grande e os cabelos
pretos e encaracolados como de um negro, sua camisa de chita pálida
com flores graúdas, parecendo um tapete persa, e o cinto de couro largo
que usava em lugar de um colete. A autocontemplação lhe
proporcionava quase não menos prazer do que o exame das fotografias
ou da pistola com engaste caro. Ele estava muito satisfeito com seu
rosto, a barba belamente aparada, os ombros largos, que serviam de
prova evidente de sua boa saúde e compleição robusta. Também estava
satisfeito com seu terno elegante, começando pela gravata combinando
com a cor da camisa, e terminando nos sapatos amarelos.
Enquanto observava o álbum e ficava diante do espelho, na cozinha e
perto dela, na entrada, Samóilenko, sem sobrecasaca e sem colete, com o
peito nu, agitado e depois encharcado de suor, andava de um lado para o
outro perto das mesas preparando a salada, ou algum molho, ou carne,
pepinos ou cebola para a okrochka, e enquanto isso arregalava os olhos
para o ordenança que o ajudava e brandia na direção dele ora a faca, ora
a colher.
— Me dê o vinagre! — ordenava. — Quer dizer, o vinagre não, o
azeite! — gritava, batendo os pés. — Para onde você vai, animal?
— Pegar o azeite, Vossa Excelência — dizia o ordenança, perplexo,
com uma voz estridente de tenor.
— Mais rápido! Está no armário! Diga a Dária para acrescentar
funcho ao pote de pepinos! Funcho! Feche o creme azedo, seu cabeça de
vento, senão as moscas vão entrar!
Com seus gritos, a casa parecia tremer. Faltando dez ou quinze
minutos para as duas horas, chegava o diácono, um jovem de cerca de 22
anos, magrelo, cabelos longos, sem barba, com um bigode que mal se
notava. Ao entrar na sala, ele fazia o sinal da cruz diante do ícone, sorria
e estendia a mão a Von Koren.
— Boa tarde — dizia o zoólogo friamente. — Onde o senhor estava?
— Pescando bois no cais.
— Mas claro… Pelo visto, diácono, o senhor nunca vai se dedicar ao
trabalho.
— Mas por quê? O trabalho não é um urso, não vai fugir para a
floresta — dizia o diácono, sorrindo e enfiando as mãos nos bolsos mais
profundos de sua batina branca.
— E não há ninguém para bater no senhor! — suspirava o zoólogo.
Passavam-se ainda mais quinze ou vinte minutos, não chamavam
para o almoço e ainda se escutava o ordenança correndo da entrada para
cozinha e de volta, pisando forte com as botas, e Samóilenko gritando:
— Ponha na mesa! Onde está enfiando? Lave primeiro!
O diácono e Von Koren, com fome, começavam a bater com o salto
dos sapatos no piso, expressando sua impaciência, como espectadores na
galeria do teatro. Por fim, a porta se abria e o ordenança, atormentado,
anunciava: a comida está pronta! Eles eram recebidos na sala de jantar
por um Samóilenko vermelho, irritado e suado por causa da cozinha
abafada; olhava para eles raivoso e com uma expressão de horror no
rosto levantava a tampa da sopeira e servia o prato de cada um, e só
quando se convencia de que eles estavam comendo com apetite e
gostando da comida suspirava de alívio e se sentava em sua poltrona
profunda. O rosto ficava lânguido, oleoso… Sem pressa, se servia de um
cálice de vodca e dizia:
— À saúde da nova geração!
Depois da conversa com Laiévski, a manhã inteira até a hora do
almoço, Samóilenko, apesar do excelente humor, sentia um certo peso
no fundo da alma; estava com pena de Laiévski e queria ajudá-lo.
Depois de beber o cálice de vodca antes da sopa, ele suspirou e disse:
— Hoje vi Vánia Laiévski. A vida do rapaz não está fácil. O lado
material não é nada auspicioso, mas o principal é que a psicologia não dá
sossego. Dá pena do rapaz.
— Esse não me dá pena! — disse Von Koren. — Se esse homem
adorável estivesse se afogando, eu ainda empurraria com um pauzinho:
afunde, irmão, afunde…
— Não é verdade. Você não faria isso.
— Por que acha que não? — o zoólogo deu de ombros. — Sou tão
capaz de uma boa ação quanto você.
— E por acaso afogar uma pessoa é uma boa ação? — perguntou o
diácono e começou a rir.
— Laiévski? Sim.
— Parece que está faltando algo na okrochka… — disse Samóilenko,
querendo mudar de assunto.
— Laiévski sem dúvida é tão nocivo e perigoso para a sociedade
quanto o micróbio do cólera — prosseguiu Von Koren. — Afogá-lo é
um mérito.
— Não lhe faz jus expressar-se assim sobre seu próximo. Diga: por
que o odeia?
— Não diga besteira, doutor. Sentir ódio e desprezo por um
micróbio é uma tolice, mas considerar próximo quem quer que seja,
qualquer um que se encontre, sem diferença — isso, com todo o
respeito, significa não raciocinar, recusar uma relação justa com as
pessoas, lavar as mãos, em suma. Considero seu Laiévski um canalha,
não escondo isso e me relaciono com ele como um canalha, com plena
consciência. Bom, e você o considera alguém próximo — e o beija; se
você o considera próximo, isso significa que se relaciona com ele da
mesma forma que comigo e com o diácono, ou seja, de forma nenhuma.
Você é igualmente indiferente em relação a todos.
— Chamar a pessoa de canalha! — murmurou Samóilenko,
franzindo a testa com desgosto. — Isso é errado a tal ponto que nem
consigo expressar!
— As pessoas são julgadas por seus atos — continuou Von Koren. —
Agora julgue por si só, diácono… A atividade do senhor Laiévski é
desenrolada abertamente diante do senhor como uma longa carta
chinesa, e o senhor pode lê-la do começo ao fim. O que ele fez durante
esses dois anos em que viveu aqui? Vamos contar nos dedos. Em
primeiro lugar, ensinou os moradores da cidadezinha a jogar vint; dois
anos atrás esse jogo era desconhecido por aqui, e agora todos jogam vint
desde a manhã até tarde da noite, até mulheres e adolescentes; em
segundo lugar, ensinou os habitantes a beber cerveja, que também era
desconhecida por aqui; e é a ele que os moradores devem o
conhecimento em relação a diferentes tipos de vodca, de forma que
agora eles podem distinguir com os olhos vendados a vodca de Kóchelev
da n. 21 de Smirnov. Em terceiro lugar, aqui antes as pessoas viviam
com a mulher dos outros às escondidas, pelo mesmo impulso que leva os
ladrões a roubar em segredo, e não escancaradamente; o adultério era
considerado algo vergonhoso de se mostrar a todos; já Laiévski foi
pioneiro quanto a isso: ele mora com a mulher de outro abertamente.
Em quarto lugar…
Von Koren rapidamente tomou sua okrochka e deu o prato ao
ordenança.
— Quando nos conhecemos, entendi Laiévski logo no primeiro mês
— prosseguiu ele, dirigindo-se ao diácono. — Chegamos aqui ao
mesmo tempo. Pessoas assim, como ele, amam muito a amizade, a
proximidade, a solidariedade e similares, porque sempre precisam de
companhia para o vint, a bebedeira e os petiscos; além disso, são
tagarelas e precisam de ouvintes. Ficamos amigos, quer dizer, ele vinha
vadiar na minha casa todo dia, atrapalhava meu trabalho e abria o
coração a respeito da concubina. Logo no primeiro momento me
impressionou pela extraordinária falsidade, que só me dava náuseas. Na
qualidade de amigo eu o repreendia de leve, perguntava por que bebe
tanto, por que vive acima de seus meios e contrai dívidas, por que não
faz nada e não lê, por que tem tão pouca cultura e conhecimento — e
em resposta a todas as minhas perguntas ele sorria amargamente,
suspirava e dizia: “Sou um fracasso, um homem supérfluo” ou “O que
você quer, meu irmão, de nós, resquícios da servidão?” ou “Estamos
degenerando…”. Ou, ainda, começava uma lenga-lenga comprida sobre
Oniéguin e Pietchórin, o Caim de Byron, Bazárov,6 sobre os quais dizia:
“São nossos pais de carne e espírito”. Entenda que está dizendo que ele
não tem culpa de que os pacotes oficiais passem semanas sem carimbo e
que ele beba e embebede os outros, mas os culpados por isso são
Oniéguin, Pietchórin e Turguêniev, que inventou os fracassados e os
homens supérfluos. A razão para o extremo desleixo e indecência, veja,
não está nele mesmo, mas em algum lugar externo, no espaço. E além
disso — que coisa esperta! — o devasso, mentiroso e repugnante não é
apenas ele, mas nós… “somos homens dos anos oitenta”, “somos
rebentos indolentes e nervosos da servidão”, “a civilização nos
mutilou”… Em suma, devemos entender que um grande homem como
Laiévski até na queda é grandioso; que sua libertinagem, falta de estudos
e falta de escrúpulos constituem um fenômeno natural e histórico,
consagrado pela necessidade, que as causas disso são mundiais,
espontâneas e que diante de Laiévski é preciso acender uma vela, já que
ele é uma vítima fatídica dos tempos, das tendências, da hereditariedade
etc. Todos os funcionários e damas ao escutá-lo diziam ahs e ohs, mas eu
passei um tempo sem entender com quem eu estava tratando: com um
cínico ou um pilantra? Sujeitos como ele, com aparência de intelectual,
um pouco instruídos e que falam muito sobre a própria nobreza são
extraordinariamente capazes de fingir que têm naturezas complexas.
— Cale-se — enfureceu-se Samóilenko. — Não vou permitir que
falem mal de um homem nobilíssimo em minha presença.
— Não interrompa, Aleksandr Davíditch — disse Von Koren com
frieza. — Já estou terminando. Laiévski é um organismo bem pouco
complexo. Eis seu arcabouço moral: de manhã, chinelo, banho de mar e
café, depois, até o almoço, chinelo, exercício e conversa; às duas horas,
chinelo, almoço e vinho; às cinco horas, banho de mar, chá e vinho,
depois vint e mentira; às dez da noite, jantar e vinho, e depois, à meia-
noite, sono e la femme. A existência dele se encerra neste programa
estreito como um ovo na casca. Se ele anda, senta, fica bravo, escreve, se
alegra — tudo se reduz a vinho, cartas, chinelo e mulher. A mulher
desempenha na vida dele um papel fatídico, esmagador. Ele mesmo
conta que aos treze anos já estava apaixonado; quando era estudante do
primeiro ano, morou com uma dama que teve sobre ele uma influência
benéfica e a quem ele deve sua educação musical. No segundo ano,
resgatou uma prostituta de um bordel e a elevou à sua altura, ou seja,
tomou-a como concubina, mas ela morou seis meses com ele e fugiu de
volta para a cafetina, e essa fuga provocou nele não pouco sofrimento
espiritual. Infelizmente, ele sofreu tanto que precisou abandonar a
universidade e viver dois anos em casa, sem fazer nada. Mas foi melhor
assim. Em casa, ele se uniu a uma viúva que o aconselhou a abandonar a
faculdade de Direito e ingressar na de Letras. E foi o que ele fez. Depois
de terminar o curso, se apaixonou perdidamente pela atual… como
chama?… a casada, e precisou fugir com ela para cá, para o Cáucaso,
supostamente por causa de seus ideais… Mais dia menos dia ele vai
deixar de amá-la e fugir de volta para São Petersburgo, também por seus
ideais.
— E você lá sabe? — resmungou Samóilenko, olhando bravo para o
zoólogo. — Coma, que é melhor.
Serviram tainha cozida com molho polonês. Samóilenko pôs uma
tainha inteira para cada papa-jantar e acrescentou molho ele mesmo.
Passaram cerca de dois minutos em silêncio.
— A mulher tem um papel essencial na vida de todo homem — disse
o diácono. — Não há o que fazer.
— Sim, mas a que ponto? A mulher de todos nós é mãe, irmã,
esposa, amiga, mas de Laiévski ela é tudo, e além disso apenas uma
amante. Ela, quer dizer, a coabitação com ela é a felicidade e o objetivo
de sua vida; se ele está feliz, triste, entediado, desapontado — é por
causa da mulher; cansou da vida — a mulher é culpada; raiou a aurora
de uma nova vida, encontrou ideais — aí também pode procurar uma
mulher… Os únicos quadros que o satisfazem são os que têm uma
mulher. Nossa era, na opinião dele, é má e pior que os anos quarenta e
sessenta apenas porque não somos capazes de nos entregar com
abnegação ao êxtase amoroso e à paixão. Esses libertinos devem ter um
tumor especial no cérebro, como um sarcoma, que aperta o cérebro e
domina toda a psicologia. Observe Laiévski quando ele está em algum
lugar em sociedade. Reparem: ao levantar na presença dele alguma
questão geral, por exemplo, sobre a célula ou sobre o instinto, ele fica de
lado, em silêncio e não escuta. A aparência dele é lânguida, desiludida,
para ele nada é interessante, tudo é vulgar e insignificante, mas assim
que você fala em fêmeas e machos, por exemplo, que a aranha fêmea
depois da fecundação come o macho, os olhos dele se incendeiam de
curiosidade, o rosto fica mais vivo e o homem, em suma, se anima.
Todos os pensamentos dele, por mais nobres, elevados ou indiferentes
que sejam, têm sempre o mesmo ponto de confluência. Você anda pela
rua com ele e encontra, por exemplo, um burro… “Diga”, ele pergunta
“o que acontece se um burro e um camelo acasalarem?” E os sonhos! Ele
já contou a vocês os sonhos que tem? São excelentes! Uma hora sonha
que está sendo casado na lua, outra que foi chamado à polícia e lá
recebeu ordens de morar com um violão…
O diácono deu uma risada sonora; Samóilenko fechou a cara e
franziu o rosto com um ar bravo para não começar a rir, mas não se
conteve e começou a gargalhar.
— E é tudo mentira — disse ele, secando as lágrimas. — Juro por
Deus, é mentira!
IV

O diácono era muito risonho e por qualquer besteira ria até a barriga
doer, até cair. Parecia que ele amava estar em meio às pessoas só porque
elas tinham lados engraçados e porque era possível dar a elas apelidos
engraçados. Havia apelidado Samóilenko de tarântula, seu ordenança de
pato, e uma vez entrou em êxtase quando Von Koren xingou Laiévski e
Nadiejda Fiódorovna de macacos. Ele examinava avidamente os rostos,
escutava sem piscar, e via-se que os olhos dele se enchiam de riso e o
rosto se contraía à espera de quando seria possível ficar à vontade e cair
na gargalhada.
— É um sujeito depravado e pervertido — continuou o zoólogo, e o
diácono, à espera de palavras engraçadas, aferrou-se ao rosto dele. — É
raro encontrar uma nulidade dessas. De corpo ele é murcho, fraco e
velho, e de intelecto ele não se distingue em nada da esposa gorda de um
comerciante que só se empanturra, bebe, dorme no edredom e tem o
cocheiro entre os amantes.
O diácono começou a gargalhar de novo.
— Não ria, diácono — disse Von Koren. — É uma estupidez, por
fim. Eu não prestaria atenção a sua nulidade — prosseguiu, depois de
esperar o diácono parar de gargalhar —, eu passaria direto se ele não
fosse tão nocivo e perigoso. O caráter nocivo dele encontra-se antes de
mais nada no fato de que tem sucesso com as mulheres e dessa forma
ameaça deixar descendência, ou seja, dar ao mundo uma dúzia de
Laiévskis, tão adoentados e pervertidos quanto ele. Em segundo lugar,
ele é contagioso num grau elevado. Já falei para vocês sobre o vint e a
cerveja. Mais um ano ou dois e ele vai conquistar todo o litoral do
Cáucaso. Você sabe a que ponto a massa, especialmente a camada
média, acredita na intelligentsia, na formação universitária, nos modos
da nobreza e na língua literária. Não importa que canalhice ele faça,
todos acreditam que ele é bom, que tem que ser assim porque ele é
intelectual, liberal e universitário. Além do mais, é um fracasso, um
homem supérfluo, um neurastênico, vítima dos tempos, e isso significa
que ele pode tudo. Ele é querido, uma boa alma, é condescendente de
coração com as fraquezas humanas; é conciliador, flexível, complacente,
não é orgulhoso, dá para beber com ele, falar palavrão, fazer fofoca… A
massa, sempre inclinada ao antropomorfismo na religião e na moral,
ama acima de tudo esses ídolos que têm as mesmas fraquezas que ela.
Julgue por si que amplo campo de contágio ele tem! Além disso, não é
mau ator, é um hipócrita sagaz e sabe perfeitamente como a banda toca.
Pegue os subterfúgios e truques dele, por exemplo, que seja a relação
com a civilização. Da civilização ele não sentiu nem o cheiro e, no
entanto: “Ah, como somos mutilados pela civilização! Ah, como invejo
esses selvagens, esses filhos da natureza que não conhecem a
civilização!”. É preciso entender, está vendo, que outrora, em tempos
imemoriais, ele se entregou de corpo e alma à civilização, serviu a ela,
compreendeu-a do começo ao fim, mas ela o cansou, desapontou,
enganou; está vendo?, ele é um Fausto, é um segundo Tolstói… E
destrata Schopenhauer e Spencer como moleques, bate no ombro deles
paternalmente; e aí, Spencer, meu irmãozinho? Ele não leu Spencer,
claro, mas como fica bonitinho quando, com uma ironia leve e
negligente, fala sobre sua senhora: “Ela leu Spencer!”. E o escutam, e
ninguém quer entender que esse charlatão não tem o direito, não só de
se expressar sobre Spencer nesse tom, mas nem de beijar a sola do pé de
Spencer! Revolver a civilização, a autoridade, o altar dos outros, salpicar
de sujeira, dar piscadelas brincalhonas para eles só para justificar e
esconder sua fraqueza e pobreza moral, só quem consegue fazer isso é
um animal muito egoísta, baixo e vil.
— Kólia, não sei o que você quer com ele — disse Samóilenko,
olhando para o zoólogo já não mais com raiva, mas com culpa. — Ele é
igual a todos. Claro, não é sem fraquezas, mas está no nível das ideias
modernas, trabalha, contribui para a sociedade. Há dez anos trabalhava
aqui um velho agente, um homem do mais alto intelecto… Era isso o
que ele dizia…
— Chega, chega! — interrompeu o zoólogo. — Você diz: ele
trabalha. Mas trabalha como? Por acaso desde que ele apareceu aqui a
ordem melhorou, os funcionários ficaram mais aplicados, honestos e
educados? Pelo contrário, com sua autoridade de universitário da
intelligentsia apenas autorizou o desleixo deles. Ele só é aplicado no dia
vinte, quando recebe o salário, no resto dos dias ele apenas arrasta os
chinelos em casa e tenta conferir a si mesmo uma expressão de que está
fazendo um grande favor ao governo russo por morar no Cáucaso. Não,
Aleksandr Davíditch, não interceda em favor dele. Você não está sendo
sincero do começo ao fim. Se de fato o amasse e o considerasse alguém
próximo, antes de mais nada não seria indiferente a suas fraquezas, não
seria condescendente com ele, e para o bem dele próprio tentaria deixá-
lo mais inofensivo.
— Como assim?
— Deixá-lo inofensivo. Como ele é incorrigível, para deixá-lo
inofensivo só há uma possibilidade…
Von Koren passou o dedo pela garganta.
— Ou afogar, não sei… — acrescentou. — Pelo interesse da
humanidade ou por seu próprio interesse, pessoas assim deviam ser
exterminadas. Sem falta.
— O que você está falando?! — murmurou Samóilenko, erguendo-se
e olhando espantado para o rosto calmo e frio do zoólogo. — Diácono, o
que ele está falando? Você perdeu o juízo?
— Não insisto na pena de morte — disse Von Koren. — Se foi
provado que ela é nociva, pense em alguma outra coisa. Não se deve
exterminar Laiévski, mas então que o isolem, tirem sua
responsabilidade, entreguem para os trabalhos sociais…
— O que você está falando? — Samóilenko estava horrorizado. —
Com pimenta, com pimenta! — começou a gritar com voz desesperada
ao notar que o diácono comia a abobrinha recheada sem pimenta. —
Você, um homem do mais alto intelecto, o que está falando?! Mandar
nosso amigo, um homem orgulhoso, intelectual, para os trabalhos
sociais!!
— Se for orgulhoso e começar a resistir: para os grilhões!
Samóilenko já não conseguia mais articular uma só palavra e apenas
mexia os dedos: o diácono olhou para seu rosto aturdido, de fato
engraçado, e começou a rir.
— Vamos parar de falar disso — disse o zoólogo. — Lembre-se
apenas de uma coisa, Aleksandr Davíditch, que nos primórdios a
humanidade se encontrava protegida de gente como Laiévski pela luta
por sobrevivência e pela seleção natural; mas, agora, nossa cultura
enfraqueceu significativamente a luta e a seleção, e devemos nós mesmos
cuidar do extermínio dos fracos e inúteis, senão, quando os Laiévskis se
multiplicarem, a civilização vai perecer, e a humanidade vai se degenerar
por completo. E a culpa será nossa.
— Se é para afogar e enforcar as pessoas — disse Samóilenko —,
então a civilização pode ir para o inferno, a humanidade pode ir para o
inferno! Para o inferno! Escute o que vou lhe dizer: você é
estudadíssimo, uma pessoa do mais alto intelecto e orgulho da pátria,
mas foi estragado pelos alemães. Sim, os alemães! Os alemães!
Desde que saíra de Derpt, onde havia estudado medicina,
Samóilenko raramente via alemães e não havia lido um só livro alemão,
mas, na sua opinião, todo o mal na política e na ciência vinha dos
alemães. De onde havia tirado essa opinião, ele mesmo não era capaz de
dizer, mas a sustentava com firmeza.
— Sim, os alemães! — repetiu. — Vamos beber chá.
Os três se levantaram e, depois de pôr os chapéus, foram para o
jardim da frente e se sentaram debaixo da sombra de bordos pálidos,
peras e castanhas. O zoólogo e o diácono se sentaram no banco perto da
mesinha, e Samóilenko na poltrona trançada com espaldar alto e
inclinado. O soldado serviu o chá, a geleia e uma garrafa com xarope.
Fazia muito calor, uns trinta graus à sombra. O ar abrasador estava
parado, imóvel, e uma longa teia de aranha, pendurada da castanheira
para a terra, suspendia-se fracamente sem se mexer.
O diácono pegou o violão que ficava sempre no chão perto da mesa,
afinou e começou a cantar com uma vozinha baixa e fina: “Os jovens
seminaristas estavam perto da taberna”… mas imediatamente se calou
por causa do calor, limpou o suor da testa e olhou para cima, para o céu
azul e quente. Samóilenko cochilava; por causa do calorão, do silêncio e
da sonolência doce que se apossou rapidamente de todos os presentes
depois do almoço, ele foi ficando fraco e entorpecido; os braços
amoleceram, os olhos ficaram pequenos, a cabeça ia caindo para o peito.
Ele olhou para Von Koren e o diácono com lágrimas de comoção e
começou a murmurar:
— A nova geração… Uma estrela da ciência e um luminar da
igreja… Veja, se essa aleluia de roupa comprida me aparece como
metropolita, quem sabe, vou ter que beijar a mão dele… Que seja…
Deus permita…
Logo se escutou um ronco. Von Koren e o diácono terminaram de
beber o chá e saíram.
— Vai pescar góbios no cais de novo?
— Não, está muito quente.
— Vamos para a minha casa. O senhor embrulha um pacote na
minha casa e copia umas coisas. Enquanto isso, conversamos sobre a que
poderia se dedicar. Precisa trabalhar, diácono. Assim não dá.
— Suas palavras são justas e lógicas — disse o diácono —, mas
minha preguiça encontra desculpa nas circunstâncias de minha vida
atual. O senhor sabe, uma situação indefinida contribui
significativamente para o estado apático das pessoas. Se me mandaram
aqui por um tempo ou para sempre, só Deus sabe; vivo aqui na
incerteza, e minha diaconisa está mofando na casa do pai, com saudade.
E, é preciso reconhecer, o cérebro já derreteu com este calor.
— Tudo besteira — disse o zoólogo. — A gente também se
acostuma ao calor, pode se acostumar a ficar sem a diaconisa também.
Não pode ficar se mimando. É preciso manter as rédeas firmes.
V

Nadiejda Fiódorovna foi nadar de manhã, e atrás dela, com uma jarra,
uma bacia de cobre, lençóis e uma esponja ia sua cozinheira Olga. No
ancoradouro estavam dois navios a vapor desconhecidos, com chaminés
brancas sujas, evidentemente navios de carga estrangeiros. Alguns
homens de branco, calçando sapatos brancos, andavam pelo cais,
gritavam alto em francês e recebiam resposta dos barcos a vapor. Na
pequena igreja da cidade os sinos tocavam com vivacidade.
“Hoje é domingo!”, lembrou-se Nadiejda Fiódorovna com satisfação.
Ela se sentia completamente saudável e alegre, com um humor de
festa. Usando um novo tecido folgado de tchetchuntcha e com um grande
chapéu de palha, de abas largas bem dobradas nas orelhas, de forma que
o rosto parecia sair de uma caixinha, ela se achou bem bonita. Ela
pensava que de toda a cidade só havia uma mulher jovem, bonita e
intelectual — ela —, e que só ela era capaz de vestir uma roupa barata,
elegante e com bom gosto. Por exemplo, aquele vestido havia custado
apenas 22 rublos, e no entanto era uma graça! Em toda a cidade, só ela
conseguia ser atraente, e havia muitos homens, e por isso todos eles,
querendo ou não, deviam invejar Laiévski.
Ela achava bom que Laiévski ultimamente andasse frio, contido e
educado com ela, e de tempos em tempos até insolente e grosseiro; a
todas as suas brincadeiras e seus olhares de desprezo, frios ou estranhos,
incompreensíveis de antes ela teria respondido com lágrimas, broncas e
ameaças de abandoná-lo ou se matar de fome, mas agora só corava,
olhava para ele culpada e ficava feliz que ele não fizesse carinho nela. Se
ele brigasse com ela ou a ameaçasse, seria melhor e mais agradável, já
que ela se sentia absolutamente culpada em relação a ele. Sentia culpa,
primeiro, por não compartilhar os sonhos dele de uma vida de trabalho,
em nome da qual ele abandonara São Petersburgo e fora para o Cáucaso,
e tinha certeza de que ele estava bravo com ela nos últimos tempos
exatamente por isso. Quando partira para o Cáucaso, achava que já no
primeiro dia encontraria ali um cantinho isolado na praia, um
jardinzinho aconchegante com sombra, passarinhos e regatos, onde seria
possível plantar flores e verduras, criar patos e galinhas, receber vizinhos,
tratar de mujiques pobres e distribuir livros entre eles; mas parecia que o
Cáucaso eram umas montanhas nuas, com florestas e vales enormes,
onde era preciso escolher, se encarregar de fazer as coisas, construir, e
que ali não havia vizinho nenhum, fazia muito calor, e você podia ser
roubado. Laiévski não tinha pressa em adquirir um terreno; ela se sentia
feliz com isso, e era como se ambos tivessem combinado mentalmente
de nunca mencionar a vida de trabalho. “Ele não diz nada”, ela pensava,
“isso significa que está bravo por eu não dizer nada.”
Em segundo lugar, durante aqueles dois anos, sem o conhecimento
dele, ela havia adquirido na loja de Atchmianov várias bobagens por uns
trezentos rublos. Pegara um tecido aqui, uma seda ali, uma sombrinha, e
sem perceber juntara aquela dívida.
— Hoje mesmo vou falar com ele sobre isso… — decidiu ela, mas
logo compreendeu que com o humor atual de Laiévski dificilmente seria
confortável falar com ele sobre dívidas.
Em terceiro lugar, já duas vezes, na ausência de Laiévski, ela recebera
em casa Kirilin, um comissário de polícia: uma vez de manhã, quando
Laiévski havia saído para nadar, e outra vez à meia-noite, enquanto ele
jogava cartas! Ao se lembrar disso, Nadiejda Fiódorovna se incendiou
inteira e olhou para a cozinheira, como se tivesse medo de que ela tivesse
escutado seus pensamentos. Dias longos, tediosos, insuportavelmente
quentes, fins de tarde lindos e aborrecidos, noites abafadas, e toda essa
vida na qual da manhã à noite você não sabe em que gastar o tempo
excessivo, e o pensamento insistente de que ela era a mulher mais bonita
e jovem da cidade, e que sua juventude estava passando em vão, e que o
próprio Laiévski, honesto, idealista, mas monótono — sempre
arrastando os chinelos, roendo as unhas e enfastiado com seus caprichos
—, faziam com que pouco a pouco ela fosse tomada por desejos e, como
uma louca, só pensasse numa coisa dia e noite. Em sua respiração, nos
olhares, no tom da voz e no caminhar ela só sentia desejo; o barulho do
mar lhe dizia que era preciso amar, a escuridão da noite dizia o mesmo,
as montanhas, o mesmo… E quando Kirilin começou a flertar, ela não
tinha forças e não queria, não era capaz de se opor, e se entregou a ele…
Agora, os navios estrangeiros e as pessoas de branco por algum
motivo faziam-na lembrar de um salão enorme; junto com as vozes em
francês ressoavam em seus ouvidos sons de uma valsa, e seu peito tremia
por uma euforia sem motivo. Ela sentiu vontade de dançar e de falar
francês.
Com alegria, entendia que não havia nada de terrível em sua traição.
A alma não participava de sua traição; ela continuava amando Laiévski,
e podia ver isso pelo fato de que tinha ciúmes dele, tinha saudades e
ficava entediada quando ele não estava em casa. Já Kirilin se mostrara
mais ou menos, meio grosseiro, ainda que bonito, mas com ele já havia
terminado tudo e não aconteceria mais nada. O que aconteceu passou,
ninguém tinha nada a ver com isso, e se Laiévski ficasse sabendo, não
acreditaria.
Na praia só havia um lugar reservado para as damas, e os homens
nadavam a céu aberto. Ao entrar no reservado, Nadiejda Fiódorovna
encontrou ali uma dama de mais idade, Mária Konstantínovna
Bitiugova, esposa de um funcionário, e sua filha de quinze anos, Kátia,
aluna do ginásio; ambas estavam sentadas num banquinho e tiravam a
roupa. Mária Konstantínovna era uma pessoa bondosa, animada e
delicada, que falava por muito tempo e com entusiasmo. Até os 32 anos
havia sido governanta, depois se casara com o funcionário Bitiugov, um
homem pequeno e careca, que penteava os cabelos nas têmporas e era
muito cordato. Ela era até hoje apaixonada por ele, tinha ciúmes, ficava
corada ao ouvir a palavra “amor” e assegurava a todos que era muito
feliz.
— Minha querida! — disse ela entusiasmadamente ao ver Nadiejda
Fiódorovna, dando a seu rosto uma expressão que todos os conhecidos
chamavam de adocicada. — Querida, que bom que você veio! Vamos
nadar juntas — é encantador!
Olga rapidamente tirou o vestido e a camisa e começou a despir a
senhora.
— Hoje o tempo não está tão quente quanto ontem, não é? — disse
Nadiejda Fiódorovna, encolhendo-se aos toques grosseiros da
cozinheira. — Ontem eu quase morri de tão abafado.
— Ah, sim, meu bem! Eu mesma quase fiquei sem respiração. Você
acredita que ontem tomei banho de mar três vezes?… Imagine, meu
bem, três vezes! Até Nikodim Aleksándritch ficou preocupado.
“Será possível ser tão feia?” — pensou Nadiejda Fiódorovna olhando
para Olga e para a mulher do funcionário; depois olhou para Kátia e
pensou: “A menina não é desajeitada”. — Seu Nikodim Aleksándritch é
muito, muito querido! — disse ela. — Estou simplesmente apaixonada
por ele.
— Ha ha ha! — riu fingidamente Mária Konstantínovna. — Que
gracinha!
Depois de se libertar das roupas, Nadiejda Fiódorovna sentiu vontade
de voar. Ela teve a impressão de que, se agitasse os braços, certamente
sairia voando. Ao tirar a roupa, notou que Olga olhava para seu corpo
branco com aversão. Olga, uma jovem casada com um soldado, morava
com o marido legítimo e por isso se sentia melhor que ela. Nadiejda
Fiódorovna também sentia que Mária Konstantínovna e Kátia não a
respeitavam e tinham medo dela. Era desagradável e, para se elevar na
opinião delas, disse:
— Lá em casa, em São Petersburgo, a temporada das datchas está no
auge! Eu e meu marido conhecemos tanta gente! Precisamos ir lá fazer
uma visita.
— Seu marido é engenheiro, não? — perguntou timidamente Mária
Konstantínovna.
— Estou falando de Laiévski. Ele conhece muita gente. Mas,
infelizmente, a mãe dele, uma aristocrata orgulhosa, é um pouco
limitada…
Nadiejda Fiódorovna não terminou de falar e se jogou na água;
Mária Konstantínovna e Kátia foram ao encontro dela.
— Em nossa alta sociedade há muitos preconceitos — continuou
Nadiejda Fiódorovna —, e a vida não é tão fácil quanto parece.
Mária Konstantínovna, que havia trabalhado como governanta em
famílias aristocráticas e entendia de alta sociedade, disse:
— Ah, sim! Você acredita, meu bem, que na casa dos Garatinski se
exigia sem falta toalete tanto para o café da manhã quanto para o jantar,
de forma que eu, feito uma atriz, além do salário recebia a mais para o
guarda-roupa.
Ela ficou entre Nadiejda Fiódorovna e Kátia, como se estivesse
formando uma barreira entre a filha e a água que banhava Nadiejda
Fiódorovna. Na porta aberta que dava para o mar do lado de fora, via-se
que alguém nadava a cem passos do lugar reservado.
— Mamãe, é nosso Kóstia! — disse Kátia.
— Ah, ah! — começou a cacarejar Mária Konstantínovna assustada.
— Ah! Kóstia — começou a gritar —, volte! Kóstia, volte!
Kóstia, um menino de quatorze anos, para mostrar sua coragem
diante da mãe e da irmã, deu um mergulho e nadou para longe, mas se
cansou e se apressou em voltar, e por seu rosto sério e tenso dava para
ver que ele não acreditava nas próprias forças.
— É uma desgraça com esses meninos, meu bem! — disse Mária
Konstantínovna, se acalmando. — Você olha e ele está para torcer o
pescoço. Ah, querida, como é agradável e ao mesmo tempo difícil ser
mãe! Você fica com medo de tudo.
Nadiejda Fiódorovna usava seu chapéu de palha e se lançou para
fora, para o mar. Ela havia se distanciado uns quatro sájens a nado e
boiava de costas. Conseguia ver o mar até o horizonte, os barcos a vapor,
as pessoas na praia, a cidade, e tudo isso aliado ao calor e às ondas suaves
e transparentes a exasperavam e lhe sussurravam que é preciso viver,
viver… Passando por ela rapidamente, cortando as ondas e o ar com
energia, avançava um barco a vapor; o homem sentado no leme olhou
para ela, e era agradável que a olhassem…
Depois do banho, as damas se vestiram e saíram juntas.
— Dia sim dia não tenho febre, e ao mesmo tempo não emagreço —
falou Nadiejda Fiódorovna, lambendo seus lábios salgados do banho de
mar e respondendo com um sorriso aos acenos de conhecidos. — Eu
sempre fui mais cheia e agora parece que engordei ainda mais.
— Isso é propensão, meu bem. Se a pessoa não tem propensão a
engordar, como eu, por exemplo, nenhuma comida prejudica. Ah, meu
bem, mas você molhou seu chapéu.
— Não tem problema, vai secar.
Nadiejda Fiódorovna viu de novo pessoas de branco que estavam
andando pela praia e conversavam em francês; e por algum motivo uma
alegria começou a se agitar de novo em seu peito e ela se lembrou
vagamente de algum salão grande no qual em algum momento havia
dançado ou com que, talvez, tivesse sonhado. E algo nas profundezas de
sua alma lhe sussurrou de forma vaga e abafada que ela era uma mulher
insignificante, vulgar, imprestável, fútil…
Mária Konstantínovna parou perto do seu portão e convidou-a para
entrar e se sentar um pouco. — Entre, minha querida! — disse com voz
suplicante, e ao mesmo tempo olhou para Nadiejda Fiódorovna com
tristeza e esperança: “Tomara que se recuse e não entre!”.
— Com prazer — concordou Nadiejda Fiódorovna. — Você sabe
que amo passar tempo na sua casa!
E ela entrou na casa. Mária Konstantínovna sentou-a, serviu café,
deu a ela pãezinhos doces, depois mostrou-lhe fotografias de suas ex-
pupilas — as senhoritas Garatinski, que já haviam se casado —, mostrou
também as notas das provas de Kátia e Kóstia; as notas eram muito
boas, mas para que soassem ainda melhores, ela reclamava com um
suspiro como hoje em dia era difícil estudar no ginasial… Cuidava da
convidada e, ao mesmo tempo, tinha pena dela e sofria com a ideia de
que a presença de Nadiejda Fiódorovna pudesse ser má influência moral
para Kóstia e Kátia, e ficou alegre por seu Nikodim Aleksándritch não
estar em casa. Pois, em sua opinião, como todos os homens amam
“dessas”, Nadiejda Fiódorovna podia ser má influência também para
Nikodim Aleksándritch.
Entretida na conversa com a convidada, Mária Konstantínovna
lembrou que à tarde haveria um piquenique e que Von Koren havia
pedido insistentemente para não contar aos macacos — ou seja, Laiévski
e Nadiejda Fiódorovna. Mas sem querer deixou escapar, ficou toda
vermelha e falou, envergonhada:
— Espero que vocês também possam ir!
VI

Haviam combinado de viajar sete verstas saindo da cidade pela estrada


rumo ao sul, parar no dukhan, onde confluíam dois riachos — o Preto e
o Amarelo —, e lá esquentar a sopa de peixe. Saíram logo depois das
cinco. Adiante de todos, no charabã, viajavam Samóilenko e Laiévski, e
atrás deles, numa carruagem atrelada a uma troica, Mária
Konstantínovna, Nadiejda Fiódorovna, Kátia e Kóstia; junto deles havia
um cesto com provisões e louça. Na carruagem seguinte viajavam o
comissário Kirilin e o jovem Atchmianov, filho do mesmo comerciante
Atchmianov a quem Nadiejda Fiódorovna devia trezentos rublos, e
diante deles no banquinho, encolhido e apertando as pernas, ia Nikodim
Aleksándritch, pequeno, arrumadinho e com as têmporas penteadas.
Atrás de todos iam Von Koren e o diácono; aos pés do diácono havia
uma cesta com peixe.
— Dirrrrreita! — gritava Samóilenko a plenos pulmões quando
vinha na direção deles uma arabá7 ou um abcázio num burrinho.
— Daqui a dois anos, quando eu tiver meios e funcionários prontos,
vou partir numa expedição — disse Von Koren ao diácono. — Vou
percorrer a costa de Vladivostok até o estreito de Bering, e depois do
estreito até a foz do Enissei. Vamos traçar um mapa, estudar a fauna e a
flora e nos dedicar minuciosamente à geologia e às pesquisas
antropológicas e etnográficas. Só depende de você vir comigo ou não.
— Impossível — disse o diácono.
— Por quê?
— Sou um homem comprometido, de família.
— A diaconisa vai lhe deixar ir. Vamos cuidar dela. Seria melhor
ainda se você a convencesse de, para o bem geral, tomar o hábito do
mosteiro; isso lhe daria a possibilidade de você mesmo tomar hábito e ir
como monge na expedição. Posso lhe arranjar isso.
O diácono ficou calado.
— Você conhece bem sua parte teológica? — perguntou o zoólogo.
— Meio mal.
— Hm… Não posso lhe fazer nenhuma indicação a respeito disso
porque eu mesmo sei pouco de teologia. Me dê uma listinha dos livros
de que precisa e no inverno eu lhe mando de São Petersburgo. Também
vai precisar ler as notas dos viajantes espirituais; entre eles há bons
etnógrafos e conhecedores de línguas orientais. Quando se familiarizar
com os hábitos deles, será mais fácil partir para a ação. Mas, enquanto
não há livros, não perca tempo, venha à minha casa e vamos pegar uma
bússola e repassar meteorologia. Tudo isso é necessário.
— Certo… — murmurou o diácono e começou a rir. — Pedi um
lugar na Rússia central e meu tio arcipreste prometeu me ajudar. Se eu
for com você, terei incomodado ele para nada.
— Não entendo sua hesitação. Se continuar a ser um diácono
normal, que só é obrigado a servir nos feriados, e nos dias restantes,
descansar, daqui a dez anos você estará exatamente igual ao que é hoje,
apenas com um bigode e barbicha, enquanto se voltar de uma expedição
daqui a esses mesmos dez anos você será outra pessoa, terá se
enriquecido com a consciência de que fez algo.
Da carruagem das damas escutavam-se gritos de horror e êxtase. As
carruagens seguiam por uma estrada escavada numa orla rochosa
absolutamente escarpada, e parecia a todos que estavam balançando
numa prateleira feita numa parede alta, e que a qualquer momento as
carruagens cairiam no abismo. À direita estendia-se o mar, à esquerda
havia uma parede marrom irregular com manchas pretas, filões
vermelhos e raízes rasteiras, e acima, inclinando-se como por medo e
curiosidade, pinheiros anelados olhavam para baixo. Um minuto depois,
novamente ganidos e risos: foi preciso passar sob uma gigantesca pedra
pendente.
— Não entendo por que diabos estou indo com vocês — disse
Laiévski. — Como isso é bobo e vulgar! Preciso ir para o norte, fugir,
me salvar, e por algum motivo estou indo para esse piquenique idiota.
— Mas veja que panorama! — disse Samóilenko quando os cavalos
viraram à esquerda e revelou-se o vale do riacho Amarelo, e o próprio rio
resplandeceu: amarelo, turvo, louco…
— Sacha, não vejo nada de bom nisso — respondeu Laiévski. —
Estar o tempo todo se entusiasmando com a natureza significa
demonstrar a pobreza da própria imaginação. Em comparação ao que
minha imaginação pode me dar, todos esses riachos e penhascos são lixo
e nada mais.
As carruagens já estavam andando pela margem do rio. As margens
altas e montanhosas pouco a pouco convergiam, o vale se estreitava e um
desfiladeiro se apresentava mais adiante; a montanha pedregosa perto da
qual viajavam fora juntada pela natureza a partir de pedras enormes que
se imprensavam umas às outras com uma força tão terrível que, ao olhar
para elas, Samóilenko toda vez gemia. A montanha sombria e bela era
sulcada aqui e ali por fendas e desfiladeiros estreitos, dos quais soprava
para os viajantes um ar cheio de umidade e mistério; através do
desfiladeiro viam-se outras montanhas, rosadas, lilases, enevoadas e
banhadas por uma luz viva. De quando em quando se escutava, ao
passarem pelo desfiladeiro, que de algum lugar do alto a água caía e batia
nas pedras.
— Ah, montanhas malditas — suspirava Laiévski —, como estou
cansado delas!
No lugar onde o rio Preto caía no Amarelo — e a água escura,
parecendo nanquim, manchava a amarela e lutava contra ela —, ao lado
da estrada ficava o dukhan do tártaro Kerbalai, com a bandeira russa no
teto e uma tabuleta escrita com giz: “Dukhan agradável”; perto dele
havia um jardinzinho pequeno, cercado por uma sebe, com mesas e
bancos, e em meio a um lamentável arbusto espinhoso erguia-se um
único cipreste, bonito e escuro.
Kerbalai, um tártaro pequeno e ágil, de camisa azul e avental branco,
estava postado na estrada; segurando a barriga, fez uma profunda
reverência na direção das carruagens e, sorrindo, mostrou seus dentes
brancos e resplandecentes.
— Alô, Kerbalaika! — Samóilenko gritou para ele. — Vamos nos
afastar para um pouco mais longe, leve para lá um samovar e cadeiras!
Rápido!
Kerbalai assentia com seus cabelos bem curtos e murmurava algo, e
apenas os que estavam sentados na carruagem de trás conseguiam
distinguir: “tem truta, Vossa Excelência”.
— Leve, leve! — disse-lhe Von Koren.
Depois de se distanciar cerca de quinhentos passos do dukhan, as
carruagens pararam. Samóilenko escolheu um pequeno prado no qual
estavam espalhadas pedras confortáveis para se sentar e via-se uma
árvore derrubada pela tempestade, com as raízes frondosas arrancadas e
folhas amarelas secas. Ali, atravessando o rio, fora feita uma frágil ponte
de troncos, e na outra margem, exatamente em frente, sobre quatro
estacas baixas se sustentava um galpãozinho, uma câmara de secar milho
que fazia lembrar a isbazinha sobre pés de galinha dos contos de fadas;8
de sua porta descia uma escadinha.
A primeira impressão de todos era de que eles nunca mais sairiam
dali. De todos os lados, sem importar para onde se olhasse, montanhas
se empilhavam e avançavam, e rápido, rápido, do lado do dukhan e do
cipreste escuro, se formava a sombra da tarde, e por isso o vale estreito e
cheio de curvas do rio Preto parecia parado, e as montanhas, mais altas.
Escutava-se o rio resmungando e as cigarras gritando sem parar.
— Encantador! — disse Mária Konstantínovna, fazendo profundas
inspirações de êxtase. — Crianças, vejam que bom! Que silêncio!
— Sim, de fato é bom — concordou Laiévski, que gostava da vista e
por algum motivo, quando olhou para o céu e depois para a fumacinha
azul que saía da chaminé do dukhan, ficou triste de repente. — Sim, é
bom! — repetiu.
— Ivan Andrêitch, descreva esta vista! — disse Mária
Konstantínovna, chorosa.
— Para quê? — perguntou Laiévski. — A impressão é melhor que
qualquer descrição. Qualquer um recebe da natureza essa riqueza de
cores e sons por meio das impressões, e os escritores ficam tagarelando
para torná-la disforme, irreconhecível.
— Será? — perguntou friamente Von Koren, depois de escolher para
si a maior pedra perto da água e se esforçando para trepar nela e se
sentar. — Será? — repetiu, olhando fixamente para Laiévski. — E
Romeu e Julieta? E, por exemplo, a noite ucraniana de Púchkin? A
natureza devia vir e se ajoelhar aos pés dele.
— Talvez… — concordou Laiévski, com preguiça de refletir e
contradizer. — Aliás — disse ele depois de esperar um pouco —, o que
é Romeu e Julieta, em essência? Um amor bonito, poético, santo: rosas
sob as quais querem esconder a depravação. Romeu é um animal como
todos.
— Não importa sobre o que se fale com o senhor, sempre leva para
o…
Von Koren olhou em volta, viu Kátia e não terminou de falar.
— Levo para o quê? — perguntou Laiévski.
— Se alguém lhe diz, por exemplo: “Como é bonito o cacho de
uvas!”, você diz: “Sim, mas como ele fica feio quando mastigamos e
digerimos no estômago”. Para que dizer isso? Não é novidade e… é um
jeito muito estranho.
Laiévski sabia que Von Koren não gostava dele. Por isso o temia e
em sua presença sentia como se tudo fosse apertado e alguém estivesse
atrás de suas costas. Ele não respondeu nada, se afastou para o lado e
lamentou ter ido.
— Senhores, marchar para recolher galhos para a fogueira! —
comandou Samóilenko.
Todos se dispersaram para vários lugares, e só restaram naquele lugar
Kirilin, Atchmianov e Nikodim Aleksándritch. Kerbalai trouxe cadeiras,
estendeu um tapete no chão e pôs algumas garrafas de vinho. O
comissário de polícia Kirilin, um homem alto, bem apessoado, que em
qualquer clima usava um capote sobre a túnica militar, com sua postura
altaneira, andar imponente e voz grossa, um pouco rouca, fazia lembrar
todos os jovens chefes de polícia de província. Tinha uma expressão
triste e sonolenta, como se acabasse de ser acordado contra a vontade.
— O que é que você trouxe, seu animal? — perguntou para Kerbalai,
escandindo lentamente cada palavra. — Eu te mandei servir Kvareli, e o
que você trouxe, sua fuça de tártaro? Hein? O quê?
— Temos muito do nosso vinho, Iegor Aleksêitch — observou
Nikodim Aleksándritch de forma tímida e educada.
— O que foi, senhor? Eu desejava que tivesse meu vinho também.
Faço parte do piquenique e, suponho, tenho pleno direito de trazer
minha contribuição. Su-po-nho! Traga dez garrafas de Kvareli!
— Para que tanto? — surpreendeu-se Nikodim Aleksándritch, que
sabia que Kirilin não tinha dinheiro.
— Vinte garrafas! Trinta! — gritou Kirilin.
— Tudo bem, deixe — murmurou Atchmianov para Nikodim
Aleksándritch —, eu pago.
Nadiejda Fiódorovna estava de humor alegre, travesso. Ela queria
saltar, gargalhar, gritar, provocar, flertar. Com seu vestido barato de
florzinhas azuis, olhos azuis, de sapatinhos vermelhos e chapéu de palha
achava a si mesma pequenininha, simplezinha, leve e delicada como uma
borboleta. Ela atravessou correndo a pontezinha frágil e por um instante
olhou para a água, para ficar tonta, depois soltou um grito e, rindo,
correu para o lado da câmara de secar, e tinha a sensação de que todos os
homens, até Kerbalai, a estavam admirando. Quando, na escuridão que
avançava rapidamente, as árvores se fundiam com as montanhas, cavalos
e carruagens, e nas janelas do dukhan acendeu-se uma luzinha, ela subiu
a montanha por uma trilha que serpenteava entre as pedras e arbustos
espinhosos, e se sentou numa pedra. Embaixo, a fogueira já ardia. Perto
do fogo, o diácono se mexia com as mangas arregaçadas, e a longa
sombra negra andava em seu raio ao redor do fogo; ele juntava ramos
secos e com uma colher amarrada a um longo bastão, mexia o caldeirão.
Samóilenko, com o rosto vermelho-acobreado, estava atarefado perto do
fogo, como em sua cozinha, e gritava ferozmente:
— Onde é que está o sal, senhores? Por acaso esqueceram? Como é
que estão todos sentados feito uns patrões e só eu estou trabalhando?
Sobre uma árvore caída, Laiévski e Nikodim Aleksándritch estavam
sentados lado a lado e olhavam pensativamente para o fogo. Mária
Konstantínovna, Kátia e Kóstia tiravam da cesta a louça de chá e os
pratos. Von Koren, de braços cruzados e com uma perna sobre a pedra,
permanecia de pé na margem bem perto da água e pensava em algo. As
manchas vermelhas da fogueira, junto com as sombras, andavam pela
terra ao lado das figuras humanas escuras, tremiam na montanha, nas
árvores, na ponte, na câmara de secagem; do outro lado, a margenzinha
escarpada, cheia de sulcos, estava toda iluminada, cintilando, e se refletia
no riozinho, e a água que corria rapidamente cortava seu reflexo em
várias partes.
O diácono foi pegar o peixe que Kerbalai limpava e lavava na
margem, mas no meio do caminho parou e olhou ao redor.
“Meu Deus, que bom!”, pensou. — “Pessoas, pedras, fogo,
crepúsculo, árvores disformes: nada mais, mas como é bom!”
Na outra margem, perto da câmara de secagem, apareceram umas
pessoas desconhecidas. Como a luz estava tremulando e a fumaça da
fogueira ia para aquele lado, não deu para ver todos imediatamente, e só
eram visíveis em partes ora um gorro felpudo e uma barba grisalha, ora
uma camisa cinza, ora uns farrapos dos ombros aos joelhos e um punhal
atravessando uma barriga, ora um rosto jovem e bronzeado com
sobrancelhas pretas tão espessas e nítidas que pareciam ter sido
desenhadas a carvão. Uns cinco deles se sentaram em círculo na terra, e
os cinco restantes foram para a câmara de secar. Um ficou nas portas, de
costas para a fogueira e, pondo as mãos para trás, começou a contar algo
que devia ser muito interessante, porque quando Samóilenko pôs os
galhos secos na fogueira e ela aumentou de repente, jorrou centelhas e
iluminou claramente o galpão, deu para ver que da porta olhavam duas
fisionomias tranquilas, que expressavam uma atenção profunda e que os
que estavam sentados em círculo se haviam virado e começado a escutar
a história. Depois de esperar um pouco, os que estavam sentados em
círculo começaram a cantar baixinho algo arrastado, melódico, parecido
com uma canção de igreja, da quaresma… Ao escutá-los, o diácono
imaginou o que aconteceria com ele dali a dez anos, quando voltasse da
expedição: seria um jovem monge-missionário, autor de renome e com
um passado extraordinário; confiariam a ele a função de arquimandrita,
depois o prelado; ele serviria na missa da catedral; de mitra dourada,
com panagia9 sairia para o púlpito e, abençoando a multidão com
castiçais duplos e triplos, proclamaria: “Dê abrigo nos céus, Senhor, veja
e visite a vinícola que Tua mão plantou!”. E as crianças, com vozes
angelicais, cantariam em resposta: “Santo Deus…”.
— Diácono, onde é que está o peixe? — escutou-se a voz de
Samóilenko.
Voltando para a fogueira, o diácono imaginou que num dia quente de
julho, por uma estrada poeirenta, andava uma procissão religiosa;
adiante, os mujiques carregavam estandartes, e as camponesas e meninas
levavam ícones, e atrás delas iam os meninos cantores e o sacristão com
a bochecha amarrada e com palha nos cabelos, depois, pela ordem, ele, o
diácono, e atrás dele o pope com uma skufia e com a cruz, e atrás,
levantando poeira, uma multidão de mujiques, camponesas, meninotes;
e ali na multidão estariam a esposa do pope e a diaconisa usando
lencinhos. Os cantores cantam, as crianças choram, as codornas gritam,
uma cotovia mergulha… E então param e borrifam o gado com água
benta… Vão em frente e, de joelhos, pedem chuva. Depois uns petiscos,
conversas…
“E isso também é bom”, pensou o diácono.
VII

Kirilin e Atchmianov estavam subindo a montanha pela trilha.


Atchmianov ficou para trás e parou, e Kirilin se aproximou de Nadiejda
Fiódorovna.
— Boa noite! — disse ele, fazendo continência.
— Boa noite.
— Sim, senhora! — disse Kirilin, olhando para o céu e pensando.
— Sim, senhora o quê? — perguntou Nadiejda Fiódorovna, depois
de certo tempo calada e notando que Atchmianov observava os dois.
— Pois bem, quer dizer — disse lentamente o oficial — que nosso
amor murchou antes de florescer, por assim dizer. Como quer que eu
entenda isso? É coqueteria de sua parte, à sua maneira, ou a senhora
acha que sou um moleque com quem pode agir como der na telha?
— Foi um erro! Me deixe em paz! — disse bruscamente Nadiejda
Fiódorovna, naquela noite belíssima, milagrosa, olhando para ele com
medo e se perguntando com perplexidade: será possível que em algum
momento ela de fato tenha gostado e se aproximado daquela pessoa?
— Pois bem, senhora — disse Kirilin; ele ficou um pouco de tempo
parado, pensando, e disse: — E então? Vamos esperar até que a senhora
esteja de melhor humor, mas por enquanto ouso lhe assegurar que sou
um homem de bem e não permito dúvidas quanto a isso. Comigo
ninguém brinca! Adieu!
Ele bateu continência e saiu para o lado, penetrando os arbustos.
Depois de esperar um pouco, Atchmianov se aproximou, hesitante.
— Hoje está fazendo uma bela noite! — disse ele com um leve
sotaque armênio.
Ele não era feio, se vestia segundo a moda, se comportava de maneira
simples, como um jovem de boa educação, mas Nadiejda Fiódorovna
não gostava dele porque devia trezentos rublos a seu pai; ela também
achava desagradável que tivessem chamado o merceeiro, e achava
desagradável que ele tivesse se aproximado dela justamente naquela
tarde, quando sua alma estava tão pura.
— O piquenique deu certo — disse ele, depois de um curto silêncio.
— Sim — concordou ela e, como se tivesse acabado de se lembrar da
dívida, falou displicentemente: — Ah, sim, diga lá na sua loja que daqui
a uns dias Ivan Andrêitch vai passar lá e pagar os trezentos… ou já não
me lembro quanto.
— Estou disposto a lhe dar mais trezentos só para que a senhora pare
de me lembrar dessa dívida todo dia. Para que essa prosa?
Nadiejda Fiódorovna começou a rir; veio à cabeça dela um
pensamento engraçado de que, se ela fosse de pouca moral e quisesse,
em um minuto podia se livrar da dívida. Se, por exemplo, virasse a
cabeça daquele jovem bobo e bonito! Como isso de fato seria engraçado,
absurdo, selvagem! De repente ela teve vontade de fazê-lo se apaixonar,
de arruiná-lo, abandoná-lo e depois ver no que dava.
— Permita-me dar um conselho — falou timidamente Atchmianov.
— Eu lhe peço, tenha cuidado com Kirilin. Ele fala coisas terríveis sobre
a senhora por todo lado.
— Não tenho interesse em saber o que cada idiota fala sobre mim —
disse friamente Nadiejda Fiódorovna, e foi tomada por uma inquietude,
e a ideia engraçada de brincar um pouco com Atchmianov, jovem e
bonitinho, de repente perdeu o encanto.
— Preciso descer — disse ela. — Estão chamando.
Lá embaixo, a sopa de peixe já estava pronta. Serviram nos pratos e
tomaram com aquela solenidade que se costuma ter nos piqueniques; e
todos acharam a sopa muito gostosa e que em casa nunca haviam
comido nada tão saboroso.
Como costuma acontecer em todos os piqueniques, perdendo-se na
massa de guardanapos, pacotes, papéis desnecessários que rastejavam por
conta do vento, ninguém sabia qual era o copo de quem e qual era o pão
de quem, derramavam vinho no tapete e nos próprios joelhos,
espalhavam o sal, mas ao redor estava escuro, a fogueira já não ardia com
tanto brilho, e todos estavam com preguiça de se levantar e pôr mais
galhos secos. Todos bebiam vinho, e até para Kóstia e Kátia haviam
dado meio copo. Nadiejda Fiódorovna bebeu um copo, depois outro,
ficou bêbada e se esqueceu de Kirilin.
— Esplêndido piquenique, noite encantadora — disse Laiévski,
alegre pelo vinho —, mas eu preferiria um bom inverno a tudo isso. “A
poeira do gelo prateia sua gola de castor.”10— Cada um tem seu gosto
— observou Von Koren.
Laiévski se sentia desconfortável: em suas costas sentia o calor da
fogueira, e no peito e no rosto, o ódio de Von Koren; aquele ódio de
uma pessoa de bem, inteligente, que provavelmente tinha uma razão
fundamentada, o humilhava, enfraquecia, e ele, sem forças para se opor,
disse num tom bajulador:
— Amo a natureza de paixão e lamento não ser naturalista. Tenho
inveja do senhor.
— Bom, não lamento nem invejo — disse Nadiejda Fiódorovna. —
Não entendo como é possível se dedicar seriamente a bichinhos e insetos
quando o povo está sofrendo.
Laiévski compartilhava a opinião dela. Ele não sabia absolutamente
nada de ciências naturais e por isso nunca fora capaz de fazer as pazes
com pessoas que tinham um tom de autoridade e a aparência de alguém
estudado e compenetrado, que estudavam anteninhas de formigas ou
patinhas de baratas, e ele sempre se incomodava que, com base em
anteninhas, patinhas e algum tipo de protoplasma (por algum motivo ele
imaginava que tinha a aparência de uma ostra), aquelas pessoas se
incumbiam de decidir questões que abarcavam a origem e a vida do ser
humano. Mas ele achou que ouvira nas palavras de Nadiejda Fiódorovna
uma mentira, e disse apenas para contradizê-la:
— A questão não está nos insetos, mas nas conclusões.
VIII

Começaram a subir nas carruagens para retornar já era tarde, passava das
dez. Todos subiram e só faltavam Nadiejda Fiódorovna e Atchmianov,
que apostavam corrida do outro lado do rio e gargalhavam.
— Senhores, mais rápido! — gritou Samóilenko para eles.
— Não se devia dar vinho às damas — disse Von Koren baixinho.
Laiévski, extenuado pelo piquenique, pelo ódio de Von Koren e por
seus pensamentos, foi até Nadiejda Fiódorovna e, quando ela, alegre,
feliz, sentindo-se leve como uma pluma, arquejante e gargalhando, o
agarrou com ambas as mãos e pôs a cabeça em seu peito, ele deu um
passo para trás e disse severamente:
— Você está se comportando como uma… cocote.
Aquilo saiu de um jeito muito grosseiro e ele teve pena dela. Em seu
rosto bravo e cansado ela leu ódio, pena, irritação consigo, e de repente
perdeu o ânimo. Ela entendeu que havia passado do ponto, se
comportara de um jeito desenvolto demais e, entristecida, sentindo-se
pesada, gorda, grosseira e bêbada, subiu com Atchmianov na primeira
carruagem vazia que apareceu. Laiévski sentou-se com Kirilin, o
zoólogo com Samóilenko, o diácono com as damas, e o comboio
começou a se mover.
— Veja como eles são macacos… — começou Von Koren,
agasalhando-se na capa e fechando os olhos. — Você escutou, ela não
iria querer se dedicar a insetos e bichinhos porque o povo está sofrendo.
É assim que nos julgam todos os macacos. Uma gente escrava,
maliciosa, até a décima geração assustada com o cnute11 e o punho; ela
estremece, se comove e queima incenso apenas mediante violência, mas
solte um macaco num campo livre, onde não é possível pegá-lo pelo
cangote, e ali ele se revela e se faz conhecer. Veja como ela é ousada nas
exposições, nos museus, nos teatros ou quando julga a ciência: ela se
ouriça, resiste, empaca, xinga, critica… E critica sem falta — um traço
de escravo! Escute bem: as pessoas de profissão liberal são xingadas com
mais frequência do que os vigaristas — isso acontece porque a sociedade
consiste em três quartos de escravos, dos quais saem esses macacos. Não
acontece de um escravo lhe estender a mão e dizer sinceramente
obrigado por trabalhar.
— Não sei o que você quer! — disse Samóilenko, bocejando. — A
pobrezinha teve vontade de conversar com você sobre algo inteligente, e
você chega a essa conclusão. Você se irrita com ele por qualquer coisa, e
com ela pela companhia. Mas é uma mulher maravilhosa!
— Ê, chega! É uma concubina normal, devassa e vulgar. Escute,
Aleksandr Davíditch, quando você encontra uma camponesa simples,
que mora com alguém que não é o marido, não faz nada e fica só de hi
hi hi e ha ha ha, você diz a ela: vá trabalhar. Por que aqui fica acanhado e
tem medo de falar a verdade? Só porque Nadiejda Fiódorovna não é
mantida por um marinheiro, mas por um funcionário?
— O que é que eu devia fazer com ela? — irritou-se Samóilenko. —
Bater nela, por acaso?
— Não bajular o vício. Só amaldiçoamos o vício pelas costas, é como
fazer uma figa no bolso. Sou zoólogo, ou sociólogo, o que é a mesma
coisa, você é médico; a sociedade acredita em nós; temos a obrigação de
apontar esse dano terrível, dizer que a sociedade e as futuras gerações
estão ameaçadas pela existência de senhoras como essa Nadiejda
Ivánovna.
— Fiódorovna — corrigiu Samóilenko. — E o que a sociedade deve
fazer?
— A sociedade? Isso é problema dela. Para mim, o caminho mais
direto e certo é a força. É preciso mandá-la para o marido manu militari,
e se o marido não aceitar, então mandá-la para os trabalhos forçados ou
para algum estabelecimento correcional.
— Uf ! — suspirou Samóilenko; ele se calou e perguntou em voz
baixa: — Um dia desses você disse que é preciso eliminar pessoas como
Laiévski… Diga, se… vamos supor, o governo ou a sociedade o
encarregassem de eliminá-lo, você… se decidiria?
— Minha mão nem tremeria.
IX

Ao chegar em casa, Laiévski e Nadiejda Fiódorovna entraram em seu


quarto escuro, abafado e tedioso. Ambos estavam em silêncio. Laiévski
acendeu uma vela; Nadiejda Fiódorovna se sentou e, sem tirar o casaco e
o chapéu, ergueu para ele olhos tristes, culpados.
Laiévski entendeu que ela esperava uma explicação de sua parte; mas
se explicar seria inútil, cansativo e um tédio, e ele estava com a alma
pesada por não ter se contido e sido grosseiro com ela. Ele casualmente
apalpou em seu bolso a carta que havia tempo se preparava para ler a ela,
e pensou que se a entregasse naquele momento desviaria a atenção dela.
“Já está na hora de esclarecer nossa relação”, pensou Laiévski. “Vou
dar a ela; o que acontecer, aconteceu.”
Tirou a carta e entregou a ela.
— Leia. Isso lhe diz respeito.
Depois de dizer isso, ele foi para o seu gabinete e se deitou no sofá,
no escuro, sem travesseiro. Nadiejda Fiódorovna leu a carta e teve a
impressão de que o teto havia descido e as paredes se aproximado dela.
De repente, o quarto ficou apertado, escuro e assustador. Ela fez o sinal
da cruz três vezes e falou:
— Senhor, dê paz… Senhor, dê paz…
E começou a chorar.
— Vánia — chamou ela. — Ivan Andrêitch!
Não houve resposta. Acreditando que Laiévski se encontrava atrás
dela na mesa, ela soluçava como uma criança e dizia:
— Por que você não me disse antes que ele tinha morrido? Eu não
teria ido ao piquenique, não teria gargalhado daquele jeito tão horrível…
Os homens me diziam vulgaridades… Que pecado, que pecado! Me
salve, Vánia, me salve… Fiquei louca… Eu me perdi…
Laiévski escutava os soluços dela. Sentia o ar insuportavelmente
abafado, e o coração batia forte. Ele se levantou angustiado, postou-se
no meio do quarto, tateou na escuridão a poltrona perto da mesa e se
sentou.
“Isso é uma prisão”, pensou. “Preciso ir embora… Não consigo…”
Já era tarde para ir jogar cartas, não havia restaurantes na cidade. Ele
se deitou de novo e tapou os ouvidos para não escutar os soluços, e de
repente se lembrou de que podia ir à casa de Samóilenko. A fim de não
passar por Nadiejda Fiódorovna, ele foi para o jardinzinho pela janela,
pulou a cerca e foi pela rua. Estava escuro. Um barco a vapor acabara de
chegar, a julgar pela luzes, um grande barco de passageiros… A amarra
da âncora caiu com um estrondo. Uma luzinha vermelha avançava
rapidamente da margem para o navio: era o barco da alfândega.
“Os passageiros estão dormindo nos camarotes…” — pensou
Laiévski e sentiu inveja do sossego dos outros.
As janelas da casa de Samóilenko estavam abertas. Laiévski espiou
por uma delas, depois outra: os quartos estavam escuros e tranquilos.
— Aleksandr Davíditch, está dormindo? — chamou. — Aleksandr
Davíditch!
Escutou uma tosse e um grito alarmado:
— Quem está aí? Que diabos?
— Sou eu, Aleksandr Davíditch. Perdão.
Pouco depois a porta se abriu; brilhou a luz suave da lâmpada do
ícone e apareceu o enorme Samóilenko, todo de branco e com um
gorrinho branco.
— O que foi? — perguntou ele, respirando pesado, meio dormindo e
se coçando. — Espere, já vou abrir.
— Não precisa ter trabalho, entro pela janela…
Laiévski se esgueirou pela janelinha e, aproximando-se de
Samóilenko, pegou a mão dele.
— Aleksandr Davíditch — disse com a voz trêmula —, me salve! Eu
lhe imploro, suplico, me compreenda! Minha situação é um tormento.
Se isso continuar, mesmo que por dois, três dias, vou me estrangular
como… como um cachorro!
— Espere… Está falando de quê, precisamente?
— Acenda uma vela.
— Ah, ah… — suspirou Samóilenko, acendendo a vela. — Meu
Deus, meu Deus… E já passou de uma da manhã, meu irmão.
— Perdão, mas não posso ficar em casa — disse Laiévski, sentindo
um grande alívio com a luz e a presença de Samóilenko. — Aleksandr
Davíditch, você é meu único, meu melhor amigo… Toda minha
esperança está em você. Queira ou não, pelo amor de Deus, me ajude.
Não importa o que aconteça, preciso ir embora daqui. Me empreste
dinheiro!
— Ah, meu Deus, meu Deus!… — suspirou Samóilenko, se
coçando. — Estou adormecendo e escuto um assobio, o vapor chegou, e
depois você… Precisa de muito?
— Pelo menos uns trezentos rublos. Preciso deixar cem para ela e
duzentos para minha viagem… Já lhe devo em torno de quatrocentos,
mas vou mandar tudo… tudo…
Samóilenko pegou ambas as suíças com uma mão, afastou as pernas e
mergulhou em pensamentos.
— Certo… — murmurou, refletindo. — Trezentos… Sim… Mas eu
não tenho tudo. Vai ser preciso pegar emprestado de alguém.
— Pegue emprestado, pelo amor de Deus! — disse Laiévski, vendo
no rosto de Samóilenko que ele queria lhe dar dinheiro e sem falta daria.
— Pegue emprestado, eu lhe devolvo seguramente. Vou mandar de São
Petersburgo assim que chegar. Isso já será um sossego. É o seguinte,
Sacha — disse ele, reanimando-se —, vamos beber um vinho!
— Sim… Pode ser, um vinhozinho.
Ambos foram para a sala de jantar.
— E Nadiejda Fiódorovna? — perguntou Samóilenko, pondo na
mesa três garrafas e um prato com pêssegos. — Por acaso ela vai ficar?
— Vou ajeitar tudo, vou ajeitar tudo… — disse Laiévski, sentindo
um inesperado acesso de felicidade. — Depois mando dinheiro para ela,
e ela vai me encontrar… Lá nós esclareceremos nossa relação. Pela sua
saúde, amigo.
— Espere! — disse Samóilenko. — Primeiro beba este… É da
minha vinicolazinha. Essa garrafa é da vinícola de Navaridze, e essa de
Akhatulov… Prove os três e diga sinceramente… O meu não está um
pouco ácido? Hein? Não acha?
— Sim. Você me confortou, Aleksandr Davíditch. Obrigado…
Estou reanimado.
— Está ácido?
— Só o Deus sabe, sei lá. Mas você é um homem magnífico,
maravilhoso!
Olhando para seu rosto pálido, agitado e bondoso, Samóilenko se
lembrou da opinião de Von Koren, de que era preciso exterminar pessoas
assim, e Laiévski lhe pareceu uma criança fraca, indefesa, que qualquer
um pode ofender e exterminar.
— E você, quando for, faça as pazes com sua mãe — disse. — Isso
não é bom.
— Sim, sim, sem falta.
Ficaram um tempo calados. Quando terminaram a primeira garrafa,
Samóilenko disse:
— Você também devia fazer as pazes com Von Koren. Vocês dois são
pessoas maravilhosas, do mais alto intelecto, e olham um para o outro
como lobos.
— Sim, ele é uma pessoa maravilhosa, do mais alto intelecto —
concordou Laiévski, agora disposto a elogiar e perdoar todos. — É uma
pessoa admirável, mas para mim é impossível manter amizade com ele.
Não! Nossas naturezas são diferentes demais. Sou de natureza indolente,
fraca, submissa; talvez num bom momento eu estendesse a mão para ele,
mas ele me viraria a cara… com desdém.
Laiévski tomou um gole de vinho, andou de um canto para o outro e
continuou, parando no meio do quarto:
— Entendo Von Koren perfeitamente. É uma natureza firme, forte,
despótica. Já escutou? Ele vive falando de expedições, e não são palavras
vazias. Precisa do deserto, na noite de lua: ao redor, nas barracas e sob o
céu aberto dormem seus cossacos famintos e doentes, torturados pela
difícil viagem a pé, os guias, carregadores, o médico, o padre; só ele não
dorme e, como Stanley, sentado numa cadeira dobrável, sente-se o rei do
deserto e senhor daquelas pessoas. Ele anda, anda, anda para algum
lugar, as pessoas gemem e morrem uma após outra, e ele anda e anda, no
fim das contas ele mesmo morre e ainda assim permanecerá um déspota
e o rei do deserto, já que sua cruz e seu túmulo serão vistos pelas
caravanas a trinta, quarenta milhas e reinarão sobre o deserto. Lamento
que um homem assim não esteja no serviço militar. Ele daria um líder
militar excelente, genial. Seria capaz de afogar sua cavalaria no rio e
fazer pontes com os cadáveres, e essa ousadia é mais necessária numa
guerra do que todas as fortificações e táticas. Ah, eu o entendo
perfeitamente! Diga: para que ele está se corroendo aqui? De que ele
precisa aqui?
— Ele estuda a fauna marinha.
— Não. Não, irmão, não! — suspirou Laiévski. — Um cientista me
disse no barco que o Mar Negro tem uma fauna pobre e que no fundo,
graças à abundância de sulfito de hidrogênio, é impossível haver vida
orgânica. Todos os zoólogos sérios trabalham nas estações biológicas de
Nápoles ou Villefranche. Mas Von Koren é independente e teimoso: ele
trabalha no Mar Negro porque ninguém trabalha aqui; ele rompeu com
a universidade, não quer conhecer cientistas e colegas porque é, antes de
mais nada, um déspota, e depois um zoólogo. E disso, você vai ver, vai
tirar um grande proveito. Agora mesmo ele já sonha que, ao voltar da
expedição, vai expulsar a intriga e a mediocridade de nossas
universidades e pegar os cientistas pelo chifre. O despotismo na ciência é
tão forte quanto na guerra. Ele está passando o segundo verão nesta
cidadezinha fedida porque é melhor ser o primeiro no campo do que o
segundo na cidade. Aqui ele é cara e coroa; ele segura todos os
habitantes na rédea curta e os oprime com sua autoridade. Ele segura
todos com pulso firme, se mete nos negócios dos outros, precisa estar em
tudo e todos têm medo dele. Eu escapei da pata dele, ele sente isso e me
odeia. Ele não lhe disse que eu preciso ser exterminado ou enviado para
os trabalhos sociais?
— Sim — Samóilenko começou a rir.
Laiévski também começou a rir e bebeu o vinho.
— Os ideais dele também são despóticos — disse, rindo e dando
uma mordida num pêssego. — Os mortais comuns, se trabalharem para
o bem geral, têm em vista quem é próximo: eu, você, em suma, um ser
humano. Para Von Koren, as pessoas são filhotes e nulidades, muito
insignificantes para serem o objetivo da vida dele. Ele trabalha, vai para
a expedição e torce o pescoço não em nome do amor a quem é próximo,
mas em nome de abstrações como a humanidade, as gerações futuras,
uma raça ideal de seres humanos. Ele trabalha por um aperfeiçoamento
da espécie humana, e no que se refere a isso, para ele somos só escravos,
bucha de canhão, animais de carga; uns ele exterminaria ou despacharia
para os trabalhos forçados, outros dobraria pela disciplina, obrigaria,
como Araktcheiev, a dormir e acordar com os tambores, botaria eunucos
para guardar nossa castidade e moralidade, mandaria fuzilar qualquer
um que saísse do círculo de nossa moral estreita e conservadora, e tudo
isso em nome do aperfeiçoamento da espécie humana… Mas o que é a
espécie humana? Uma ilusão, uma miragem… Déspotas sempre foram
ilusionistas. Meu amigo, eu o entendo perfeitamente. Eu o estimo e não
nego sua importância; o mundo se sustenta sobre gente como ele, se o
mundo fosse dado a gente como nós, apesar de toda a nossa bondade e
melhores intenções, faríamos dele o mesmo que as moscas daquele
quadro. Sim.
Laiévski se sentou ao lado de Samóilenko e disse com um
entusiasmo sincero:
— Sou um homem vazio, insignificante, corrompido! O ar que
respiro é esse vinho, o amor, em suma, comprei a vida até agora ao preço
de mentiras, ócio e covardia. Até agora enganei as pessoas e a mim, sofri
por isso, e até meus sofrimentos foram baratos e vulgares. Diante do
ódio de Von Koren eu me humilho porque de tempos em tempos eu
mesmo me odeio e me desprezo.
Laiévski novamente andava de um canto a outro preocupado, e disse:
— Estou feliz por ver minhas falhas claramente e reconhecê-las. Isso
vai me ajudar a renascer e virar outra pessoa. Meu caro, se você soubesse
com que paixão, com que angústia anseio meu renascimento. E, juro
para você, vou virar um ser humano! Eu vou! Não sei se é o vinho que
está me fazendo dizer isso, ou se é isso de fato, mas acho que há muito
tempo já não vivo momentos tão claros e puros como esses agora na sua
casa.
— Irmãozinho, está na hora de dormir… — disse Samóilenko.
— Sim, sim. Perdão. Já vou.
Laiévski andava atarantado perto dos móveis e das janelas,
procurando seu quepe.
— Obrigado… — balbuciou ele, com um suspiro. — Obrigado…
Um afago e uma boa palavra são melhores que esmola. Você me fez
reviver.
Ele encontrou o quepe, parou e olhou para Samóilenko culpado.
— Aleksandr Davíditch! — disse ele com uma voz suplicante.
— O quê?
— Meu caro, permita que eu fique para dormir na sua casa!
— Mas por gentileza… como não?
Laiévski se deitou para dormir no sofá e passou ainda muito tempo
conversando com o médico.
X

Cerca de três dias depois do piquenique, Mária Konstantínovna veio


inesperadamente ver Nadiejda Fiódorovna e, sem cumprimentar, sem
tirar o chapéu, pegou suas mãos, apertou-as contra o peito e disse, com
grande preocupação:
— Minha querida, estou agitada, impressionada. Nosso médico
querido, encantador, ontem contou para meu Nikodim Aleksándritch
que parece que seu marido morreu. Diga, meu bem… Diga, é verdade?
— Sim, é verdade, ele morreu — respondeu Nadiejda Fiódorovna.
— Isso é terrível, terrível, querida! Mas há males que vêm para o
bem. Seu marido certamente era um homem santo, admirável,
maravilhoso, e esses são mais necessários no céu do que na terra.
No rosto de Mária Konstantínovna começaram a tremer todos os
tracinhos e pontinhos, como se debaixo da pele estivessem saltando
agulhazinhas minúsculas, ela deu um sorriso doce e disse com
entusiasmo, perdendo a respiração:
— Então você está livre, querida. Agora pode erguer a cabeça e olhar
as pessoas nos olhos sem hesitar. De agora em diante, Deus e os homens
abençoarão sua relação com Ivan Andrêitch. Isso é maravilhoso. Estou
tremendo de felicidade, não encontro palavras. Querida, vou ser sua
casamenteira… Eu e Nikodim Aleksándritch amamos tanto vocês,
permitam-nos abençoar sua união pura e legítima. Quando, quando
pensam em se casar?
— Eu nem estava pensando nisso — disse Nadiejda Fiódorovna,
soltando as mãos.
— Não pode ser, querida. Pensou, sim, pensou!
— Juro por Deus, não pensei — Nadiejda Fiódorovna começou a rir.
— Para que vamos casar? Não vejo a menor necessidade disso. Vamos
viver como antes.
— O que está dizendo?! — horrorizou-se Mária Konstantínovna. —
Pelo amor de Deus, o que está dizendo?
— Porque se nos casarmos não vai ser melhor. Pelo contrário, vai ser
até pior. Vamos perder a liberdade.
— Querida! Querida, o que está dizendo?! — exclamou Mária
Konstantínovna, dando um passo para trás e apertando as mãos. —
Você está sendo extravagante! Acorde! Se aquiete!
— Mas diga, me aquietar como? Eu ainda nem vivi e você me diz: se
aquiete!
Nadiejda Fiódorovna se lembrou de que ela de fato ainda não vivera.
Se formara na universidade e se casara com um homem que não amava,
depois se juntara com Laiévski e vivera o tempo todo com ele naquela
praia entediante e erma esperando por algo melhor. Por acaso isso é
vida?
“Precisava casar…”, pensou ela, mas se recordou de Kirilin e
Atchmianov, corou e disse:
— Não, é impossível. Mesmo que Ivan Andrêitch pedisse de joelhos,
eu recusaria.
Mária Konstantínovna passou um minuto sentada em silêncio no
sofá, triste, séria e com o olhar fixo num ponto, depois se levantou e
falou friamente:
— Adeus, querida! Perdão pelo incômodo. Ainda que isso não seja
fácil para mim, devo lhe dizer que a partir deste dia está tudo terminado
entre nós e, apesar de meu profundo respeito por Ivan Andrêitch, a
porta da minha casa está fechada para vocês.
Falou com solenidade, ela mesma deprimida por seu tom solene; o
rosto começou a tremer mais uma vez, assumiu uma expressão suave,
doce, e Mária Konstantínovna estendeu para uma Nadiejda Fiódorovna
assustada e desconcertada ambas as mãos para dizer, implorando:
— Minha querida, permita-me ao menos por um minuto ser sua mãe
ou irmã mais velha! Serei franca como uma mãe com você.
Nadiejda Fiódorovna sentiu em seu peito tanto calor, felicidade e
compaixão por si mesma, como se de fato sua mãe tivesse ressuscitado e
estivesse diante de si. Num ímpeto, abraçou Mária Konstantínovna e
apertou o rosto contra seu ombro. Ambas começaram a chorar. Elas se
sentaram no sofá e passaram alguns minutos soluçando, sem olhar uma
para a outra e aparentemente sem forças para articular uma só palavra.
— Querida, minha menina — começou Mária Konstantínovna —
vou lhe dizer umas verdades cruas, sem lhe poupar.
— Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus!
— Confie em mim, querida. Lembre-se, de todas as damas daqui só
eu a recebi. Você me horrorizou desde o primeiro dia, mas eu não tinha
forças para lhe menosprezar como todos. Eu sofria pelo querido, o bom
Ivan Andrêitch, como por um filho. Um jovem numa terra estranha,
inexperiente, fraco, sem mãe; eu me atormentava, me atormentava…
Meu marido era contra a amizade com ele, mas eu o convenci…
persuadi… Começamos a receber Ivan Andrêitch, e com ele, claro, você
também, senão ele se ofenderia. Tenho uma filha, um filho… Você
entende, a mente das crianças é frágil, o coração puro… e quem vai
tentar um único desses pequenos… Eu os recebia e temia pelas crianças.
Ah, quando você for mãe vai entender meu medo. E todos se
surpreenderam com o fato de eu receber vocês, desculpe, como pessoa de
bem, faziam indiretas… bem, claro, fofocas, hipóteses… No fundo da
minha alma eu julgava vocês, mas vocês eram infelizes, lamentáveis,
extravagantes, e eu sofria por pena.
— Mas por quê? Por quê? — perguntou Nadiejda Fiódorovna, com o
corpo inteiro tremendo. — O que eu fiz pra eles?
— Você é uma pecadora terrível. Violou o voto que fez a seu marido
diante do altar. Seduziu um jovem maravilhoso que, talvez, se não a
tivesse encontrado, poderia ter tomado para si de forma legítima uma
companheira de vida de uma boa família de seu círculo, e agora seria
como todos. Você arruinou a juventude dele. Não diga nada, não diga
nada, querida! Não acredito que o homem seja culpado por nossos
pecados. As mulheres são sempre as culpadas. No ambiente doméstico
os homens são levianos, vivem com a mente, não com o coração, não
entendem muito, mas as mulheres entendem tudo. Tudo depende delas.
Ah, querida, se em relação a isso ela fosse mais boba ou mais fraca do
que o homem, Deus não teria confiado a ela a criação de meninos e
meninas. E depois, querida, você seguiu o caminho do vício, esquecida
de todo o pudor; outra na sua situação se esconderia das pessoas, ficaria
em casa trancada, e as pessoas só a veriam na igreja, pálida, vestida toda
de preto, chorosa, e todos diriam com sincera desolação: “Deus, este
anjo pecador novamente torna a ti…”. Mas você, querida, esqueceu
qualquer discrição, vive de forma aberta, extravagante, como se estivesse
orgulhosa do pecado, brinca, gargalha, e, ao olhar para você, eu tremia
de horror e tinha medo de que um raio viesse dos céus e atingisse nossa
casa quando você estava de visita. Querida, não diga nada, não diga
nada! — gritou Mária Konstantínovna, ao notar que Nadiejda
Fiódorovna queria falar. — Confie em mim, não vou lhe enganar e não
vou esconder dos olhos de sua alma nenhuma verdade. Me escute,
querida… Deus marca os grandes pecadores, e você foi marcada.
Lembre-se, suas roupas sempre foram horríveis!
Nadiejda Fiódorovna, que sempre tivera a melhor opinião de suas
roupas, parou de chorar e olhou para ela surpresa.
— Sim, horríveis! — prosseguiu Mária Konstantínovna. — Pelo
refinamento e colorido de suas roupas podemos julgar seu
comportamento. Todos, ao verem você, riam e davam de ombros, mas
eu sofria, sofria… E me perdoe, querida, vocês não têm asseio! Quando
nos encontrávamos no banho de mar, você me fazia tremer. O vestido
externo ainda era mais ou menos, mas a saia, a camisa… querida, fico
vermelha! O pobre Ivan Andrêitch também não tem ninguém pra dar o
nó na sua gravata, e pela roupa branca e as botas do coitadinho se vê que
ninguém cuida dele em casa. Ele está sempre com fome, querida, e, na
verdade, se em casa ninguém cuida do samovar e do café, a contragosto
você vai gastar no pavilhão metade do seu salário. E sua casa é
simplesmente um horror, um horror! Na cidade toda, ninguém tem
moscas dentro de casa, e vocês não têm descanso delas, todos os pratos e
pires estão pretos. Nas janelas e nas mesas, veja, há pó, moscas mortas,
copos… Por que estes copos estão aqui? E, querida, até agora você não
tirou a mesa. No seu quarto dá vergonha de entrar: roupa de baixo
espalhada por todo lado, suas várias borrachas penduradas na janela, uns
pratos… Querida! O marido não deve saber de nada, e a esposa diante
dele deve ser pura como um anjinho! Toda manhã eu acordo assim que
clareia e molho meu rosto com água fria para que meu Nikodim
Aleksándritch não perceba que estou sonolenta.
— Isso tudo é besteira — começou a chorar Nadiejda Fiódorovna. —
Se eu fosse feliz, mas sou tão infeliz!
— Sim, sim, você é muito infeliz! — suspirou Mária
Konstantínovna, mal se contendo para não chorar. — E uma desgraça
terrível lhe espera no futuro! Uma velhice solitária, doenças, depois
responder ao terrível julgamento… Um horror, um horror! Agora, o
próprio destino estende a mão para lhe ajudar, e você insensatamente a
afasta. Case-se, case-se logo!
— Sim, preciso, preciso — disse Nadiejda Fiódorovna —, mas é
impossível!
— Por quê?
— É impossível! Ah, se você soubesse!
Nadiejda Fiódorovna queria contar a respeito de Kirilin e que na
noite anterior ela se encontrara no cais com o jovem e belo Atchmianov,
e que lhe viera à cabeça a ideia louca e engraçada de se livrar da dívida
de trezentos rublos; ela havia achado muito engraçado. Voltou para casa
tarde da noite, sentindo-se caída e perdida sem volta. Ela mesma não
sabia como aquilo havia acontecido. E agora queria jurar diante de
Mária Konstantínovna que pagaria a dívida sem falta, mas o choro e a
vergonha a impediam de falar.
— Vou embora — disse ela. — Que Ivan Andrêitch fique, vou
embora.
— Para onde?
— Para a Rússia.
— Mas de que você vai viver lá? Você não tem ninguém.
— Vou fazer traduções ou… Ou abrir uma pequena biblioteca…
— Não fantasie, minha querida. Para abrir uma bibliotecazinha é
preciso dinheiro. Agora vou lhe deixar, se acalme e pense, e amanhã
venha me encontrar alegre. Vai ser um encanto! Bom, adeus, meu
anjinho. Deixe eu lhe dar um beijo.
Mária Konstantínovna beijou Nadiejda Fiódorovna na testa, benzeu-
a e foi embora em silêncio. Já escurecia, e na cozinha Olga acendeu o
fogo. Ainda chorando, Nadiejda Fiódorovna foi para o quarto e deitou-
se. Foi tomada por uma forte febre. Deixou cair a seus pés o vestido
amarrotado e se enrolou debaixo do cobertor como um novelo. Sentiu
sede, mas não tinha ninguém para lhe ajudar.
— Eu vou pagar! — disse para si mesma, e no delírio parecia que
estava sentada ao lado de alguma doente e reconhecia nela a si própria.
— Eu vou pagar. Seria idiota pensar que por dinheiro… Vou embora e
mando dinheiro para ele de São Petersburgo. Primeiro cem… Depois
cem… E depois... cem…
Laiévski chegou tarde, de madrugada.
— Primeiro cem… — disse a ele Nadiejda Fiódorovna — depois
cem…
— Você devia tomar quinino — disse ele, e pensou: “Amanhã é
quarta, o vapor vai partir, e eu não vou. Isso quer dizer que precisarei
viver aqui até sábado”.
Nadiejda Fiódorovna se ajoelhou na cama.
— Não falei nada agora? — perguntou ela, sorrindo e apertando os
olhos por causa da vela.
— Nada. Amanhã de manhã será preciso chamar o médico. Durma.
Ele pegou um travesseiro e foi para a porta. Depois que finalmente
tomara a decisão de ir embora e deixar Nadiejda Fiódorovna, ela passara
a despertar nele pena e sentimento de culpa; na presença dela ele sentia
um pouco de vergonha, como na presença de um cavalo velho ou doente
que já decidiram matar. Ele parou na porta e se voltou para olhar para
ela.
— No piquenique eu estava irritado e fui grosseiro. Me desculpe,
pelo amor de Deus.
Depois de falar isso, ele foi para o seu gabinete, se deitou e passou
muito tempo sem conseguir dormir.
Quando na manhã seguinte Samóilenko, vestido de acordo com a
ordem do dia, de uniforme de gala completo com dragonas e medalhas,
tomou o pulso de Nadiejda Fiódorovna e olhou a língua dela, saiu do
quarto, Laiévski, de pé na soleira, perguntou a ele preocupado:
— Bem, e então? E então?
Seu rosto expressava medo, preocupação extrema e esperança.
— Fique tranquilo, não é nada perigoso — disse Samóilenko. — É
uma febre comum.
— Não estou falando sobre isso — Laiévski fez uma careta
impaciente. — Conseguiu o dinheiro?
— Meu querido, desculpe — cochichou Samóilenko, voltando-se
para porta e embaraçado. — Pelo amor de Deus, me desculpe! Ninguém
tem dinheiro, até agora só consegui cinco ou dez rublos de cada um —
no total, cento e dez. Hoje ainda vou falar com mais alguém. Tenha
paciência.
— Mas no máximo até sábado! — sussurrou Laiévski, tremendo de
impaciência. — Pelo amor de todos os santos, até sábado! Se eu não for
embora sábado, então não preciso de mais nada… nada! Não entendo
como um médico pode não ter dinheiro!
— Seja feita a Vossa vontade, Senhor — cochichou Samóilenko
rápido e tenso, e algo até guinchou em sua garganta — pegaram todo
meu dinheiro, estão me devendo sete mil, e eu devo de volta. A culpa é
minha?
— Quer dizer: até sábado você consegue? Sim?
— Vou tentar.
— Eu imploro, querido! Que na sexta de manhã o dinheiro esteja nas
minhas mãos.
Samóilenko sentou e receitou uma solução de quinino, kalii bromati,
infusão de ruibarbo, tincturae gentianae, aquae foeniculi — tudo isso num
tônico, acrescentou xarope de rosas, para que não ficasse amargo, e foi
embora.
XI

— Agora você está com cara de que vai me prender — disse Von Koren,
ao ver Samóilenko com uniforme de gala.
— Pois eu estava passando e pensei: vou dar um pulo, fazer uma
visita à zoologia — falou Samóilenko, sentando-se perto de uma mesa
grande montada pelo próprio zoólogo com tábuas simples. — Olá,
padre! — acenou com a cabeça para o diácono, que se sentava perto da
janela e copiava algo. — Vou me sentar um minutinho e depois corro
para casa para tratar do almoço. Já está na hora… Não estou
incomodando?
— Nem um pouco — respondeu o zoólogo, espalhando sobre a mesa
pedacinhos de papel com anotações. — Estamos fazendo cópias.
— Certo… Ah, meu Deus, meu Deus… — suspirou Samóilenko;
ele pegou da mesa com cuidado um livro empoeirado, sobre o qual havia
uma aranha morta seca, e disse:
— E no entanto! Imagine, um besourinho verde está lá cuidando de
suas coisas e de repente encontra no caminho uma danada dessas.
Imagino o horror!
— Suponho que sim.
— Ela solta veneno para se defender dos inimigos?
— Sim, se defende e ela mesma ataca.
— Certo, certo, certo… Na natureza, meus queridos, tudo é racional
e explicável — suspirou Samóilenko. — Eu só não entendo uma coisa.
Você, um homem do mais alto intelecto, me explique, por favor. Sabe,
existem uns animais, do tamanho de um rato, no máximo, bonitinhos na
aparência, mas, vou lhe contar, cruéis e imorais no mais alto grau. O
animalzinho está andando, vamos supor, pela floresta, vê um passarinho,
pega e come. Anda mais um pouco e vê na grama um pequeno ninho
com ovos; já não tem vontade de mandar para dentro, está satisfeito,
mas ainda assim morde um ovo, e os outros joga para fora do ninho com
a pata. Depois encontra uma rã começa a brincar com ela. Tortura a rã
até a morte, anda e se lambe, e vem ao seu encontro um besouro. Ele
mete a pata no besouro… E tudo o que aparece em seu caminho ele
estraga e destrói. Entra na toca dos outros, revolve formigueiros sem
motivo, destrói lesmas com os dentes… Encontra uma ratazana, briga
com ela; vê uma cobra ou um filhote de camundongo, precisa sufocá-los.
E é assim o dia todo. Bem, diga, para que esse animal é necessário? Para
que ele foi criado?
— Não sei de que animal você está falando — disse Von Koren —,
provavelmente sobre algum insetívoro. Bom, e daí? O pássaro apareceu
no caminho dele porque foi descuidado; ele destruiu o ninho com os
ovos porque o pássaro não foi habilidoso, fez o ninho malfeito e não foi
capaz de camuflá-lo. A rã provavelmente tem algum defeito na cor,
senão ele não a veria, e assim por diante. Seu animal destrói apenas os
fracos, sem habilidade, descuidados, em suma, os que têm falhas que a
natureza não considera necessárias passar para a posteridade. Ficam
vivos apenas os mais ágeis, atentos, fortes e desenvolvidos. Dessa forma,
seu animalzinho, sem que ele mesmo suspeite, serve aos grandes
propósitos do aperfeiçoamento.
— Sim, sim, sim… A propósito, irmão — disse Samóilenko sem
cerimônia — me empreste uns cem rublos.
— Está bem. Entre os insetívoros há indivíduos muito interessantes.
Por exemplo, a toupeira. Dizem que ela é útil, já que extermina os
insetos nocivos. Contam que supostamente um certo alemão enviou ao
imperador Wilheim um casaco de pele de toupeira e o imperador teria
mandado uma reprimenda por ter exterminado tantos animais úteis.
Ainda assim, a toupeira não deixa a dever em crueldade a seu
animalzinho e ainda por cima é muito nociva, pois faz um estrago
terrível nos prados.
Von Koren abriu o cofre e tirou de lá uma nota de cem rublos.
— A toupeira tem uma caixa torácica forte, como a do morcego —
continuou ele, trancando o cofre —, ossos e músculos extremamente
desenvolvidos e uma boca extraordinariamente equipada. Se ela tivesse o
tamanho de um elefante seria um animal invencível, destruidor. É
interessante, quando duas toupeiras se encontram debaixo da terra,
ambas, como se tivessem combinado, começam a roer uma plataforma; é
o espaço necessário para lutar melhor. Depois de fazê-la, elas entram
numa luta encarniçada e brigam até a mais fraca cair. Tome aqui os cem
rublos — disse Von Koren, reduzindo o tom —, mas com a condição de
que não esteja pegando para Laiévski.
— Mas e se for para Laiévski? — encolerizou-se Samóilenko. — O
que você tem com isso?
— Para Laiévski não posso dar. Sei que você adora emprestar. Você
emprestaria dinheiro ao bandoleiro Kerim se ele pedisse, mas, desculpe,
não posso ajudar nesse sentido.
— Sim, estou pedindo para Laiévski! — disse Samóilenko,
levantando-se e brandindo a mão direita. — Sim! Para Laiévski! E
nenhum diabo e nenhum anjo tem o direito de me dar lição de como
devo administrar meu dinheiro. Não deseja dar? Não?
O diácono começou a rir.
— Não se exalte, raciocine — disse o zoólogo. — Fazer um bem ao
senhor Laiévski é tão pouco inteligente, na minha opinião, quanto regar
a grama ou alimentar um gafanhoto.
— Pois para mim temos a obrigação de ajudar nossos amigos! —
exclamou Samóilenko.
— Nesse caso, ajude aquele turco que está passando fome deitado
debaixo da sua cerca! Ele é trabalhador e mais necessário, mais útil do
que Laiévski. Entregue a ele esses cem rublos! Ou doe para mim cem
rublos para uma expedição!
— Você vai me emprestar ou não, é a minha pergunta?
— Diga sinceramente: para que ele precisa desse dinheiro?
— Não é segredo. Precisa ir para São Petersburgo no sábado.
— Aí é que está! — disse Von Koren prolongadamente. — Arrã…
Entendemos. E ela vai com ele ou não?
— Por enquanto ela fica aqui. Ele vai organizar os assuntos dele por
lá e mandar dinheiro, então ela vai.
— Essa é boa!… — disse o zoólogo, e começou a rir uma risadinha
de tenor. — Essa é boa! Bem pensado.
Ele se aproximou rapidamente de Samóilenko e, cara a cara, olhando
nos olhos, perguntou:
— Diga com sinceridade: ele perdeu o amor? Sim? Diga: perdeu o
amor? Sim?
— Sim — declarou Samóilenko e se cobriu de suor.
— Como isso é detestável! — disse Von Koren, e por seu rosto se via
que ele sentia asco. — Das duas, uma, Aleksandr Davíditch: ou você
está conspirando com ele ou, perdão, você é um simplório. Será que não
entende que ele está lhe passando a perna como um menininho, da
forma mais desonesta? Pois está claro como o dia que ele quer se livrar
dela e abandoná-la aqui. Ela vai ficar nas suas costas, e está claro como o
dia que você vai ter que mandá-la para São Petersburgo por sua conta.
Por acaso seu amigo maravilhoso o cegou a tal ponto com suas
qualidades que você não vê até as coisas mais simples?
— Isso são só pressuposições — disse Samóilenko, sentando-se.
— Pressuposições? Mas por que ele está viajando sozinho, e não com
ela? E por que, pergunte a ele, ela não vai na frente, e ele depois? É um
pilantra!
Abatido pelas dúvidas e suspeitas inesperadas em relação a seu
amigo, Samóilenko de repente se enfraqueceu e baixou o tom.
— Mas não é possível! — disse ele, recordando-se da noite que
Laiévski dormira na sua casa. — Ele está sofrendo tanto!
— Mas e daí? Ladrões e incendiários também sofrem!
— Suponhamos que você esteja certo… — disse Samóilenko
refletindo. — Vamos supor… Mas ele é jovem, está numa terra
estrangeira… é estudante, nós também fomos estudantes, e além de nós
não há ninguém aqui para apoiá-lo.
— Ajudá-lo a fazer uma canalhice só porque você e ele estiveram na
universidade em épocas diferentes e ambos não fizeram nada lá! Que
absurdo!
— Pare, vamos raciocinar friamente. É possível, suponho, ajeitar
assim… — considerou Samóilenko, mexendo os dedos. — Entende, eu
darei o dinheiro a ele, mas faço ele dar sua palavra de honra, de
aristocrata, que em uma semana mandará dinheiro para a viagem de
Nadiejda Fiódorovna.
— E ele vai lhe dar a palavra de honra, até derramar lágrimas e ele
mesmo vai acreditar, mas qual é o valor dessa palavra? Ele não vai
mantê-la, e quando daqui um ou dois anos você se encontrar com ele na
avenida Niévski de braço dado com um novo amor, ele vai se justificar
dizendo que foi mutilado pela civilização e que é um resquício de Rúdin.
Largue dele, pelo amor de Deus! Afaste-se do lixo e não o revolva com
as duas mãos!
Samóilenko pensou por um minuto e disse, decidido:
— Mas mesmo assim vou dar o dinheiro a ele. Como queira. Não
tenho condições de negar isso a uma pessoa com base apenas em
suposições.
— Excelente. Vá lá beijá-lo.
— Então me dê cem rublos — pediu timidamente Samóilenko.
— Não vou dar.
Fez-se um silêncio. Samóilenko enfraqueceu por completo; seu rosto
assumiu uma expressão culpada, envergonhada e bajuladora, e era meio
estranho ver aquele rosto triste de criança desconcertada num homem
enorme com dragonas e medalhas.
— O bispo daqui percorre sua eparquia não de carruagem, mas em
cima de um cavalo — disse o diácono, baixando a pena. — A aparência
dele sentado no cavalinho é extraordinariamente tocante. A simplicidade
e a humildade dele são repletas de grandeza bíblica.
— É uma boa pessoa? — perguntou Von Koren, que mostrou-se feliz
por mudarem de assunto.
— Como não ia ser? Se não fosse bom, por acaso teria sido posto no
prelado?
— Em meio aos bispos encontram-se pessoas muito boas e talentosas
— disse Von Koren. — Só é uma pena que muitos deles tenham uma
fraqueza: se imaginam estadistas. Um se dedica à russificação, outro
critica a ciência. Isso não é assunto deles. Seria melhor eles olharem com
mais frequência para o consistório.
— Um leigo não pode julgar os bispos.
— Mas por que, diácono? Um bispo é um humano igual a mim.
— É igual, mas não é igual — ofendeu-se o diácono, pegando a
pluma. — Se o senhor fosse igual, seria abençoado e o senhor mesmo
seria bispo, e como o senhor não é bispo, isso significa que não é igual.
— Não diga bobagem, diácono! — disse Samóilenko com tristeza.
— Escute o que eu pensei — ele se voltou para Von Koren. — Não me
empreste esses cem rublos. Até o inverno você vai comer na minha casa
por mais três meses, então me dê esses três meses adiantado.
— Não vou dar.
Samóilenko piscou os olhos e ficou vermelho; ele puxou para si
maquinalmente o livro com a aranha e olhou para ela, depois se levantou
e pegou o chapéu. Von Koren teve pena dele.
— É nisso que dá viver e fazer negócios com esses senhores! — disse
o zoólogo, e chutou um papel para o canto com indignação. — Entenda
que isso não é bondade, não é amor, mas covardia, indecência, veneno!
O que a razão constrói, seus corações molengas, que não servem para
nada, destroem! No ginásio, tive tifo abdominal, minha tia, por
compaixão, me deu cogumelos marinados para comer e por pouco não
morri. Entendam, você e minha tia, que o amor a uma pessoa não deve
estar no coração, nem sob o estômago e nem na lombar, mas aqui!
Von Koren bateu na própria testa.
— Pegue! — disse e arremessou uma nota de cem rublos.
— Você se irrita para nada, Kólia — disse Samóilenko com doçura,
dobrando a nota. — Eu o entendo perfeitamente, mas… ponha-se na
minha situação.
— Você é uma velha, é isso!
O diácono começou a gargalhar.
— Escute, Aleksandr Davíditch, um último pedido! — disse Von
Koren com ardor. — Quando você for dar o dinheiro para aquele
pilantra, ponha uma condição: que ele viaje com sua senhora ou que a
mande primeiro, senão não empreste. Não há por que fazer cerimônia
com ele. Diga isso para ele, e se não disser, palavra de honra, vou até ele
e o empurro da escada, e corto relações com você. Fique sabendo!
— E daí? Se ele for embora junto com ela ou mandá-la na frente,
para ele é melhor — disse Samóilenko. — Ele vai até ficar feliz. Certo,
adeus.
Ele se despediu ternamente e saiu, mas antes de fechar a porta,
voltou-se para Von Koren, fez uma cara terrível e disse:
— Foram os alemães que estragaram você, meu irmão! Sim! Os
alemães!
XII

No dia seguinte, na quinta, Mária Konstantínovna festejava o


aniversário do seu Kóstia. Ao meio-dia todos tinham sido convidados
para comer uma torta, e à noite para tomar chocolate quente. Quando à
noite chegaram Laiévski e Nadiejda Fiódorovna, o zoólogo, que já se
encontrava sentado na sala bebendo chocolate, perguntou a Samóilenko:
— Você falou com ele?
— Ainda não.
— Veja bem e não faça cerimônias. Não entendo o descaramento
desses senhores! Eles sabem perfeitamente bem como esta família encara
o concubinato deles, e mesmo assim ficam aparecendo aqui.
— Se você for prestar atenção ao preconceito de cada um — falou
Samóilenko —, não vai poder ir a lugar nenhum.
— Por acaso a aversão das massas ao amor fora do casamento e à
licenciosidade é um preconceito?
— Claro. Preconceito e ódio. Os soldados ao verem uma mulher de
comportamento leviano gargalham e assobiam, mas pergunte: e eles são
o quê?
— Não é para menos que assobiam. Que essas moças estrangulam
seus filhos concebidos ilegalmente e sejam mandadas para os trabalhos
forçados, que Anna Kariênina tenha se jogado debaixo do trem, e que
nas aldeias passem breu nos portões, e que eu e você, não se sabe por
quê, gostemos de Kátia por sua pureza, e que todos sintam vagamente a
necessidade de um amor puro, apesar de saber que esse amor não existe
— por acaso tudo isso é preconceito? Isso, irmãozinho, é a única coisa
que sobrevive da seleção natural e, se não fosse por essa força obscura
que regula as relações entre os sexos, os senhores Laiévski lhe
mostrariam com quantos paus se faz uma canoa, e a humanidade se
degeneraria em dois anos.
Laiévski entrou na sala, cumprimentou todos e, apertando a mão de
Von Koren, sorriu de forma servil. Ele esperou o momento propício e
disse para Samóilenko:
— Perdão, Aleksandr Davíditch, preciso falar duas palavrinhas com
você.
Samóilenko se levantou, passou o braço por sua cintura e ambos
foram para o gabinete de Nikodim Aleksándritch.
— Amanhã é sexta… — disse Laiévski, roendo as unhas. —
Conseguiu o que tinha prometido?
— Consegui só duzentos e dez. O restante conseguirei hoje ou
amanhã. Fique tranquilo.
— Graças a Deus!… — suspirou Laiévski, e as mãos dele tremeram
de felicidade. — Você está me salvando, Aleksandr Davíditch, e, juro
por Deus, por minha felicidade e pelo que você quiser, vou mandar esse
dinheiro para você assim que chegar. E também vou mandar a dívida
antiga.
— É o seguinte, Vánia… — disse Samóilenko, pegando-o pelo botão
e corando. — Desculpe por me intrometer nos seus assuntos de família,
mas… por que não ir com Nadiejda Fiódorovna?
— Seu doido, por acaso isso é possível? Um de nós precisa ficar sem
falta, senão os credores vão começar a berrar. Pois em cada loja eu devo
uns setecentos rublos, se não mais. Espere, vou mandar o dinheiro para
eles, enfio nos dentes deles e então ela sai daqui.
— Certo… Mas por que não a manda na frente?
— Ah, meu Deus, e por acaso isso é possível? — horrorizou-se
Laiévski. — É uma mulher, o que ela vai fazer lá sozinha? O que ela
entende? Seria só um adiamento e um desperdício de dinheiro.
“É razoável...” pensou Samóilenko, mas se lembrou da conversa com
Von Koren, baixou os olhos e falou soturnamente:
— Não posso concordar com você. Ou viaje com ela ou mande-a na
frente, senão… senão não lhe empresto o dinheiro. Essa é minha última
palavra…
Ele deu alguns passos para trás, empurrou a porta com as costas e
saiu para a sala com o rosto vermelho, numa perturbação terrível.
“Sexta-feira… sexta-feira”, pensou Laiévski, voltando para a sala.
“Sexta-feira…”
Deram a ele uma xícara de chocolate. Ele queimou os lábios e a
língua com o chocolate quente e pensou:
“Sexta… sexta…”
A palavra “sexta-feira” por algum motivo não saía da cabeça dele; não
pensava em nada além da sexta-feira, e para ele só estava claro, mas não
na cabeça, e sim em algum lugar perto do coração, que ele não
conseguiria ir embora no sábado. Diante dele se encontrava Nikodim
Aleksándritch, arrumadinho, com as têmporas penteadas, e ele pedia:
— Coma, por obséquio…
Mária Konstantínovna mostrava para os convidados as notas de
Kátia e falava de forma arrastada:
— Agora é muito difícil estudar, é terrível! Exigem tanto…
— Mamãe! — reclamava Kátia, sem saber onde se esconder de
vergonha e também dos elogios.
Laiévski também olhou as notas e elogiou. Leis de Deus, russo,
comportamento, os quatro e cincos12 saltavam diante dos seus olhos, e
tudo isso com a sexta-feira que o importunava, as têmporas penteadas de
Nikodim Aleksándritch e as bochechas vermelhas de Kátia lhe pareciam
de um tédio tão infinito e insuperável que por pouco ele não soltou um
grito de desespero e perguntou a si mesmo: “Será, será que não vou
embora?”.
Puseram lado a lado duas mesas de carteado e se sentaram para jogar
carteiro. Laiévski também se sentou.
“Sexta-feira… sexta-feira…”, pensava ele, sorrindo e tirando um
lápis do bolso. “Sexta…”
Ele queria pensar bem em sua situação, mas tinha medo. Tinha
medo de reconhecer que o médico o havia pegado no erro que ele, por
tanto tempo e com tanto cuidado, vinha escondendo de si mesmo.
Sempre que pensava no futuro, ele evitava dar plena liberdade a seus
pensamentos. Ele se sentava no vagão e ia — com isso se resolvia a
questão da sua vida, e não deixava seus pensamentos seguirem em frente.
Como uma luzinha distante no campo, de quando em quando passava
por sua cabeça a ideia de que em algum lugar, numas das travessas de
São Petersburgo, num futuro distante, para poder se separar de Nadiejda
Fiódorovna e pagar as dívidas, ele teria que recorrer a uma pequena
mentira; ele só mentiria uma vez, e depois começaria um completo
renascimento. E isso era bom: pelo preço de uma pequena mentira ele
compraria uma grande verdade.
Mas agora, quando o médico fez alusão a seu engano com aquela
recusa grosseira, ele entendeu que a mentira não seria necessária apenas
num futuro distante, mas naquele dia também, e no dia seguinte, e dali a
um mês, e, talvez, até o fim da vida. Na verdade, para poder ir ele
precisaria mentir para Nadiejda Fiódorovna, os credores e a chefia;
depois, para conseguir dinheiro em São Petersburgo, teria que mentir
para a mãe, dizer a ela que ele já havia se separado de Nadiejda
Fiódorovna; e a mãe não lhe daria mais do que quinhentos rublos, ou
seja, ele já havia mentido para o médico, já que não estaria em condições
de mandar dinheiro para ele em breve. Em seguida, no momento em
que Nadiejda Fiódorovna chegasse a São Petersburgo, seria preciso
lançar mão de uma série de enganos miúdos e graúdos para se separar
dela; e de novo as lágrimas, o tédio, a vida abominável, o
arrependimento e, assim, não haveria nenhuma renovação. Engano e
nada mais. Na imaginação de Laiévski cresceu uma montanha de
mentiras. Para saltá-la de uma vez, e não mentir por partes, seria
necessário decidir-se por uma medida brusca, por exemplo, sem dizer
uma palavra, se levantar, pôr o chapéu e ir embora de imediato sem
dinheiro, mas Laiévski sentia que para ele isso era impossível.
“Sexta-feira, sexta-feira…”, pensava. “Sexta-feira…”
Estavam escrevendo bilhetes, dobrando em dois e pondo numa velha
cartola de Nikodim Aleksándritch e, quando já haviam juntado uma
quantidade suficiente de bilhetinhos, Kóstia, imitando um carteiro,
andou em volta da mesa e os distribuiu. O diácono, Kátia e Kóstia, que
haviam recebido bilhetes engraçados e tentavam escrever outros mais
engraçados, estavam em êxtase.
“Precisamos conversar”, leu Nadiejda Fiódorovna em seu bilhetinho.
Ela trocou um olhar com Mária Konstantínovna, que sorriu com doçura
e balançou a cabeça para ela.
“Conversar sobre o quê?”, pensou Nadiejda Fiódorovna. “Se não se
pode contar tudo, então não há para que conversar.”
Antes da visita, ela dera o nó na gravata de Laiévski, e esse ato
insignificante enchera sua alma de ternura e tristeza. A inquietação no
rosto dele, o olhar distraído, a palidez e a mudança incompreensível pela
qual ele passara nos últimos tempos, e o fato de que ela escondia dele
um segredo horrível, repugnante, e que suas mãos tremessem ao dar o
nó na gravata, tudo isso, por algum motivo, dizia a ela que já não restava
a eles muito tempo morando juntos. Ela olhava para ele como para um
ícone, com medo e arrependimento, e pensava: “perdão, perdão…”. Em
frente a ela na mesa estava sentado Atchmianov, e ele não tirava dela
seus olhos negros e apaixonados; desejos a alvoroçavam, ela tinha
vergonha de si mesma e temia que mesmo a angústia e a tristeza não a
impediriam de ceder à paixão impura, não naquele dia, mas no outro —
e que, como um bêbado inveterado, já não teria forças para parar.
Para não prolongar aquela vida, vergonhosa para ela e ofensiva para
Laiévski, ela decidiu ir embora. Iria implorar a ele, chorando, que a
deixasse ir, e se ele se opusesse, ela iria embora em segredo. Não contaria
a ele o que havia acontecido. Que ele guardasse dela uma memória pura.
“Te amo, te amo, te amo”, leu ela. Era de Atchmianov.
Ela iria morar num fim de mundo, trabalhar e mandar para Laiévski,
“de um desconhecido”, dinheiro, camisas bordadas, tabaco, e só voltaria
para encontrá-lo na velhice, ou caso ele adoecesse seriamente e
precisasse de uma enfermeira. Quando na velhice ele soubesse por que
motivos ela se recusara a ser esposa dele e o havia deixado, ele aprovaria
o sacrifício dela e a perdoaria.
“A senhora tem um nariz comprido.” Esse devia ser do diácono ou de
Kóstia.
Nadiejda Fiódorovna imaginou que, ao se despedir de Laiévski, ela o
abraçaria forte, beijaria a mão dele e juraria que o amaria por toda, toda
a vida, e depois, vivendo num fim de mundo, entre pessoas
desconhecidas, todos os dias ela pensaria que em algum lugar ela tinha
um amigo, uma pessoa amada, pura, nobre e elevada, que guardava dela
uma lembrança pura.
“Se hoje a senhora não marcar um encontro comigo, vou tomar
providências, dou minha palavra de honra. Não pode se comportar
assim com gente de bem, é preciso entender isso.” Esse era de Kirilin.
XIII

Laiévski recebeu dois bilhetes; ele abriu um e leu: “Não vá embora, meu
querido”.
“Quem pode ter escrito isso?”, pensou. “Claro que não foi
Samóilenko… E nem o diácono, já que ele não sabe que quero ir
embora. Von Koren, será?”
O zoólogo estava inclinado sobre a mesa e desenhava uma pirâmide.
Pareceu a Laiévski que seus olhos estavam sorrindo.
“Samóilenko deve ter tagarelado…”, pensou.
No outro bilhete, com a mesma caligrafia estropiada, cheia de
voltinhas retorcidas, estava escrito: “Alguém não vai embora no sábado”.
“Que brincadeira boba”, pensou Laiévski. “Sexta, sexta…”
Algo lhe subiu à garganta. Ele tocou o colarinho e tossiu, mas em vez
de tosse escapou da garganta uma risada.
— Ha ha ha! — começou a gargalhar. — Ha ha ha! “Por que estou
fazendo isso?”, pensou. — Ha ha ha!
Tentou se conter, tapou a boca com a mão, mas a risada lhe sufocava
o peito e o pescoço, e a mão não conseguia cobrir a boca.
“E no entanto como isso é bobo” — pensou, balançando um pouco
com o riso. — “Será que fiquei louco?”
A gargalhada foi se tornando mais e mais alta e se transformou em
algo parecido com o latido de um cachorrinho. Laiévski quis se levantar
da mesa, mas as pernas não obedeciam e a mão direita, de uma forma
meio estranha, contra a sua vontade, saltou pela mesa, agarrou e apertou
convulsivamente alguns papéis. Ele viu os olhares espantados, o rosto
sério e assustado de Samóilenko e o olhar do zoólogo, cheio de aversão e
de frio desdém, e entendeu que estava tendo um ataque histérico.
“Que horror, que vergonha”, pensou, sentindo no rosto o calor das
lágrimas… “Ah, que vergonha! Nunca me aconteceu isso…”
Então o pegaram pela mão e, segurando a cabeça atrás, levaram a
algum lugar; então um copo brilhou diante de seus olhos e bateu nos
dentes, e a água caiu em seu peito; então apareceu um quartinho, entre
duas camas ao lado, coberta por colchas limpas, brancas como a neve.
Ele caiu numa cama e começou a chorar.
— Não é nada, não é nada… — disse Samóilenko. — Acontece…
Acontece…
Com o corpo frio por causa do susto, tremendo inteira e pressentindo
algo terrível, Nadiejda Fiódorovna perguntava, de pé ao lado da cama:
— O que você tem? O quê? Pelo amor de Deus, diga…
“Será que Kirilin escreveu algo para ele?”— pensou ela.
— Nada… — disse Laiévski, rindo e chorando. — Saia daqui…
querida.
O rosto dele não expressava nem ódio, nem aversão: isso queria dizer
que ele não sabia de nada; Nadiejda Fiódorovna se acalmou um pouco e
foi para a sala.
— Não se preocupe, querida! — disse Mária Konstantínovna,
sentando-se ao lado dela e segurando sua mão. — Vai passar. Os
homens são tão fracos quanto nós, pecadores. Vocês dois estão passando
por uma crise… é tão compreensível! Bem, querida, estou esperando
uma resposta. Vamos conversar.
— Não, não vamos conversar… — disse Nadiejda Fiódorovna,
apurando o ouvido para escutar o choro de Laiévski. — Estou
angustiada… Permita-me ir embora.
— O que está dizendo, querida!? — assustou-se Mária
Konstantínovna. — Por acaso acha que vou lhe deixar sair sem jantar?
Fazemos um lanche e depois vá com Deus.
— Estou angustiada… — murmurou Nadiejda Fiódorovna e, para
não cair, segurou com ambas as mãos o braço da poltrona.
— Ele está com eclampsia — disse Von Koren alegremente,
entrando na sala, mas, ao ver Nadiejda Fiódorovna, ficou constrangido e
saiu.
Acabada a crise de histeria, Laiévski se sentou na cama estranha e
pensou: “Que vergonha, caí no choro feito uma menina! Devo estar
ridículo e asqueroso. Vou sair pela porta dos fundos… Aliás, isso
significaria que dou ao meu ataque de histeria um significado sério. Seria
melhor fazer passar por uma brincadeira…”.
Ele olhou para o espelho, ficou um tempo sentado e voltou para a
sala.
— Aqui estou! — disse ele, sorrindo; torturadamente envergonhado,
sentia que os outros também tinham vergonha em sua presença. —
Acontecem essas coisas — disse ele, se sentando. — Eu sentei e de
repente, sabem, senti uma pontada horrível, uma dor aqui do lado…
insuportável, os nervos não aguentaram e… e saiu aquela coisa boba. É
o nosso século nervoso, fazer o quê?
No jantar ele bebeu vinho, conversou e, às vezes, suspirando
convulsivamente, passava a mão na lateral do corpo, como que
mostrando ainda sentir dor. E ninguém, exceto Nadiejda Fiódorovna,
acreditava nele, e ele percebia isso.
Pouco depois das nove foram passear no bulevar. Nadiejda
Fiódorovna, com medo de que Kirilin começasse a falar com ela, se
esforçava para ficar o tempo todo perto de Mária Konstantínovna e das
crianças. Ela estava fraca de susto e de angústia e, pressentindo a febre,
se afligia e mal movimentava as pernas, mas não ia para casa, pois tinha
certeza de que Kirilin ou Atchmianov, ou os dois, iriam atrás dela.
Kirilin andava atrás, ao lado de Nikodim Aleksándritch, e cantarolava a
meia-voz:
— Não vou permiti-ir que brinquem comi-go! Não vou permiti-ir!
Do bulevar viraram rumo ao pavilhão, foram andando pela praia e
passaram muito tempo olhando o mar fosforescente. Von Koren
começou a contar a razão pela qual ele era fosforescente.
XIV

— Porém, está na hora do meu vint… Estão me esperando — disse


Laiévski. — Adeus, senhores.
— Vou com você, espere — disse Nadiejda Fiódorovna, e pegou seu
braço.
Eles se despediram do grupo e saíram. Kirilin também se despediu,
disse que ia pelo mesmo caminho e foi andando ao lado deles.
“O que acontecer, aconteceu…”, pensou Nadiejda Fiódorovna. “Que
seja…”
Tinha a impressão de que todas as lembranças ruins haviam saído de
sua cabeça e estavam andando na escuridão ao lado dela com a
respiração pesada, e ela mesma, como uma mosca que caíra na tinta, se
arrastava com todas as forças pela calçada, sujando de preto a lateral e o
braço de Laiévski. Se Kirilin, pensava ela, fizer algo de ruim, então o
culpado não será ele, apenas ela. Pois houve um tempo em que nenhum
homem falava com ela assim como Kirilin, e ela mesma rompera esse
tempo, como um fio, e o perdera sem volta — de quem era a culpa?
Embriagada por seus desejos, ela começou a rir para um homem
absolutamente desconhecido, provavelmente apenas porque ele era
bonitão e alto, em dois encontros se cansara dele e o deixara, mas será
que por isso — pensava ela agora — ele tinha o direito de se comportar
com ela como quisesse?
— Aqui, querida, me despeço de você — disse Laiévski, parando. —
Iliá Mikháilitch vai acompanhá-la.
Ele fez uma reverência para Kirilin e rapidamente atravessou o
bulevar, percorreu a rua até a casa de Chechkóvski, onde as janelas
estavam abertas e as luzes acesas, e depois escutaram quando o portão
bateu.
— Permita que eu me explique para a senhora — começou Kirilin.
— Não sou um moleque, não sou um Atchkássov ou Latchkássov,
Zatchkássov qualquer… Exijo receber atenção séria!
O coração de Nadiejda Fiódorovna começou a bater forte. Ela não
respondeu nada.
— No começo, eu explicava sua mudança brusca no trato comigo
como coqueteria — continuou Kirilin —, mas agora vejo que a senhora
simplesmente não consegue se relacionar com gente de bem. A senhora
só queria brincar comigo, como com aquele rapaz armênio, mas sou um
homem de bem e exijo ser tratado como um homem de bem. Pois bem,
estou a seu serviço, eu…
— Estou angustiada… — disse Nadiejda Fiódorovna, começou a
chorar e, para esconder as lágrimas, se virou.
— Eu também estou angustiado, mas o que faremos?
Kirilin ficou em silêncio por um tempo e depois disse de forma
distinta, pausada:
— Repito, minha senhora, que se não me der um encontro hoje,
começarei um escândalo agora mesmo.
— Me deixe em paz hoje — disse Nadiejda Fiódorovna, e não
reconheceu a própria voz, de tão queixosa e fina.
— Devo lhe dar uma lição… Perdão pelo tom grosseiro, mas preciso
lhe dar uma lição. Sim, senhora, infelizmente preciso lhe dar uma lição.
Exijo dois encontros: hoje e amanhã. Depois de amanhã a senhora
estará absolutamente livre e pode ir para o raio que a parta com quem
quiser. Hoje e amanhã.
Nadiejda Fiódorovna se aproximou de seu portão e parou.
— Me deixe ir! — murmurou ela, com o corpo todo tremendo e sem
ver nada a sua frente na escuridão além da túnica militar. — O senhor
tem razão, sou uma mulher terrível… a culpa é minha, mas me deixe…
Eu lhe peço… — tocou a mão fria dele e estremeceu —, eu imploro…
— Infelizmente! — suspirou Kirilin. — Infelizmente! Não está em
meus planos deixá-la ir, só quero lhe dar uma lição, lhe fazer entender, e
além do mais, madame, tenho muito pouca confiança em mulheres.
— Estou angustiada…
Nadiejda Fiódorovna escutou o barulho constante do mar, olhou para
o céu estrelado e teve vontade acabar com tudo o mais rápido possível e
se livrar daquela maldita sensação de vida com seu mar, estrelas,
homens, febre…
— Só que não na minha casa… — disse ela friamente. — Leve-me
para outro lugar.
— Vamos para a casa de Miuridov. É o melhor.
— Onde fica?
— Perto do aterro antigo.
Ela andou pela rua rapidamente e depois deu a volta na travessa que
ia dar nas montanhas. Estava escuro. Em algum lugar na ponte
estendiam-se faixas pálidas e brilhantes das janelas iluminadas, e ela teve
a impressão de que, como uma mosca, ora caía na tinta, ora saía se
arrastando de novo na direção da luz. Kirilin andava atrás dela. Em
algum lugar ele tropeçou, quase caiu e começou a rir.
“Está bêbado”, pensou Nadiejda Fiódorovna. “Tanto faz… tanto
faz… Que seja.”
Atchmianov também logo se despediu do grupo e foi procurar
Nadiejda Fiódorovna e convidá-la para andar de barco. Ele se
aproximou da casa dela e olhou através da cerca: as janelas estavam
escancaradas, não havia luz.
— Nadiejda Fiódorovna! — chamou.
Passou um minuto. Ele chamou de novo.
— Quem está aí? — escutou-se a voz de Olga.
— Nadiejda Fiódorovna está em casa?
— Não. Ainda não chegou.
“Estranho… Muito estranho”, pensou Atchmianov, começando a
sentir uma forte preocupação. “Ela estava indo para casa…”
Ele deu uma volta pelo bulevar, depois pela rua e espiou pela janela
da casa de Chechkóvski. Laiévski se achava sentado à mesa sem a
sobrecasaca e olhava atentamente para as cartas.
— Estranho, estranho… — murmurou Atchmianov, e ao se lembrar
do ataque de histeria de Laiévski teve vergonha. — Se ela não está em
casa, então onde está?
Foi para a casa de Nadiejda Fiódorovna de novo e olhou para as
janelas escuras.
“É uma enganação, uma enganação…”, pensou, lembrando-se de que
ela mesma, ao se encontrarem ao meio-dia na casa dos Bitiugovi,
prometera passear com ele no barco à noite.
As janelas da casa onde morava Kirilin estavam escuras, e perto dos
portões, num banquinho, um policial dormia sentado. Quando olhou
para as janelas e para o policial, ficou tudo claro para Atchmianov. Ele
decidiu voltar para casa, mas de novo foi parar perto da casa de Nadiejda
Fiódorovna. Então, ele se sentou no banquinho e tirou o chapéu,
sentindo a cabeça arder de ciúme e despeito.
Na igreja da cidade as horas soavam apenas duas vezes por dia: ao
meio-dia e à meia-noite. Logo depois de bater a meia-noite, escutaram-
se passos apressados.
— Certo, amanhã à noite de novo na casa de Miuridov! — escutou
Atchmianov e reconheceu a voz de Kirilin. — Às oito horas. Até logo,
senhora!
Perto do jardinzinho apareceu Nadiejda Fiódorovna. Sem notar que
Atchmianov estava sentando no banquinho, ela passou como uma
sombra diante dele, abriu o portão e, deixando-o aberto, entrou na casa.
Em seu quarto acendeu a vela, se despiu rapidamente, mas não se deitou
na cama, e sim se pôs de joelhos diante da cadeira, abraçou-a e apertou a
testa contra ela.
Laiévski voltou para casa depois das duas.
XV

Após decidir não mentir de uma vez, e sim por partes, no dia seguinte,
depois da uma, Laiévski foi para a casa de Samóilenko com o objetivo
de pedir o dinheiro para viajar no sábado sem falta. Depois da crise de
histeria do dia anterior, que acrescentou mais um sentimento agudo de
vergonha ao estado pesado de sua alma, ficar na cidade havia se tornado
impensável. Se Samóilenko insistisse em suas condições, pensava, podia
concordar com elas e pegar o dinheiro, e no dia seguinte, bem na hora
da partida, dizer que Nadiejda Fiódorovna se recusara a ir; à noite ele
poderia convencê-la de que tudo isso estava sendo feito justamente para
o bem dela. Mas se Samóilenko, que se encontrava sob evidente
influência de Von Koren, se recusasse por completo a dar o dinheiro ou
propusesse alguma condição nova, então ele, Laiévski, naquele mesmo
dia pegaria um barco de carga, ou até um veleiro, para Novi Afon ou
Novorossisk, de lá mandaria um telegrama humilhante para a mãe, e
moraria ali enquanto ela não lhe mandasse dinheiro para a viagem.
Ao chegar à casa de Samóilenko, encontrou Von Koren na sala. O
zoólogo acabava de chegar para almoçar e, como de hábito, abrindo o
álbum, observava os homens de cartola e as mulheres de touca.
“Que inoportuno”, pensou Laiévski ao vê-lo. “Ele pode atrapalhar.”
— Oi!
— Oi — respondeu Von Koren sem olhar para ele.
— Aleksandr Davíditch está em casa?
— Sim. Na cozinha.
Laiévski foi para a cozinha, mas, ao ver da porta que Samóilenko
estava ocupado com a salada, voltou para a sala e se sentou. Ele sempre
se sentia constrangido na presença do zoólogo, mas agora temia ter de
falar sobre a crise de histeria. Passou-se mais de um minuto de silêncio.
Von Koren de repente levantou os olhos para Laiévski e perguntou:
— Como está se sentindo depois do que houve ontem?
— Excelente — respondeu Laiévski, corando. — Na verdade não foi
nada de mais…
— Até ontem eu supunha que só quem tinha ataques histéricos eram
as damas, e por isso no começo achei que o senhor estivesse fazendo a
dança de são Vito.
Laiévski deu um sorriso bajulador e pensou:
“Que indelicadeza da parte dele. Ele sabe muito bem que é difícil
para mim…” — Sim, foi uma história engraçada — disse ele, ainda
rindo. — Hoje passei a manhã toda rindo. O engraçado no ataque de
histeria é que você sabe que é absurdo, e ri dele por dentro, mas ao
mesmo tempo está soluçando. No nosso século nervoso somos escravos
dos nossos nervos; eles são nossos senhores e fazem o que querem
conosco. A civilização, no que se refere a isso, se revelou um
desserviço…
Laiévski falava e achava desagradável que Von Koren o escutasse com
seriedade e atenção e olhasse para ele fixamente, sem piscar, como se o
estivesse estudando; e ficava incomodado consigo mesmo por, apesar de
sua falta de afeto por Von Koren, não conseguir de forma alguma fazer
desaparecer aquele sorriso bajulador do rosto.
— Porém, é preciso reconhecer — prosseguiu —, havia motivos
muito íntimos para o ataque, e bem sólidos. Nos últimos tempos minha
saúde anda muito abalada. Se acrescentarmos a isso o tédio, a constante
falta de dinheiro… a ausência de gente e interesses em comum… A
situação é pior que a de um governador.
— Sim, sua situação não tem saída — disse Von Koren.
Aquelas palavras tranquilas, frias, que continham em si não bem um
escárnio, não bem uma profecia não solicitada, ofenderam Laiévski. Ele
se lembrou do olhar do zoólogo no dia anterior, cheio e zombaria e
aversão, ficou um tempo calado e perguntou, já sem sorrir:
— E como o senhor sabe qual é a minha situação?
— O senhor mesmo acabou de falar dela, e além disso seus amigos
têm pelo senhor uma simpatia tão ardente que o dia inteiro só se escuta
falar de você.
— Que amigos? Samóilenko, por acaso?
— Sim, ele também.
— Eu pediria a Aleksandr Davíditch e a meus amigos em geral para
se preocuparem menos comigo.
— Aí vem Samóilenko, peça a ele que se preocupe menos com o
senhor.
— Não entendo o seu tom… — murmurou Laiévski; ele foi tomado
por um sentimento, como se só naquele momento tivesse entendido que
o zoólogo o odiava, desprezava e zombava dele, e que era seu mais cruel
e implacável inimigo. — Guarde esse tom para outra pessoa — disse ele
em voz baixa, sem forças para falar alto, tamanho era o ódio que já
oprimia seu peito e sua garganta, como no dia anterior a vontade de rir.
Samóilenko entrou sem a sobrecasaca, suado e vermelho do vapor da
cozinha.
— Ah, você está aqui? — disse ele. — Olá, meu caro. Já almoçou?
Não faça cerimônia, diga: já almoçou?
— Aleksandr Davíditch — disse Laiévski, levantando-se — se eu me
dirigi a você com um pedido íntimo, isso não queria dizer que eu o havia
liberado da obrigação de ser discreto e respeitar meu segredo.
— O que foi? — surpreendeu-se Samóilenko.
— Se não tem dinheiro — continuou Laiévski, levantando a voz e se
apoiando num pé e no outro —, então não dê, recuse, mas para que
anunciar aos quatro ventos que minha situação não tem saída etc.? Esses
favores e serviços de amizade, quando se faz um copeque, mas se fala um
rublo, isso eu não posso tolerar! Você pode se vangloriar de seus favores
o quanto quiser, mas ninguém lhe deu o direito de revelar meus
segredos!
— Que segredos? — perguntou Samóilenko, sem compreender e
começando a se irritar. — Se veio brigar, saia. Depois você volta!
Ele se lembrou da regra de que ao se enfurecer com alguém próximo
deve-se começar a contar mentalmente até cem e se acalmar; e começou
a contar rapidamente.
— Peço ao senhor que não se preocupe comigo! — continuou
Laiévski. — Não preste atenção em mim. Quem tem alguma coisa a ver
comigo e com a forma como vivo? Sim, quero ir embora! Sim, eu me
endivido, bebo, vivo com a mulher de outro, tenho ataque de histeria,
sou vulgar, não tenho pensamentos tão profundos quanto alguns, mas
quem tem alguma coisa a ver com isso? Respeite a individualidade!
— Você me desculpe, irmãozinho — falou Samóilenko, depois de
contar até 35 —, mas…
— Respeite a individualidade! — interrompeu-o Laiévski. — Essas
conversas constantes sobre a vida dos outros, esses ais e uis, bisbilhotices
constantes, essa compaixão amistosa… podem levar para o quinto dos
infernos! Emprestam-me dinheiro e impõem condições, como se eu
fosse um menino! Tratam-me mal, só o diabo sabe como! Não desejo
nada! — gritou Laiévski, cambaleando de agitação e com medo de que
tivesse outra crise de histeria. — “Quer dizer que não vou embora no
sábado”, passou por sua cabeça. — Não desejo nada! Só peço, por favor,
que me poupem da tutela. Não sou um menino e não sou louco, peço
que tirem de mim essa vigilância.
O diácono entrou e, ao ver Laiévski pálido, agitando os braços e
dirigindo seu discurso estranho para o retrato do príncipe Vorontsov,
parou perto da porta petrificado.
— Esses exames constantes da minha alma — prosseguiu Laiévski
— me ofendem em minha dignidade humana, e peço a esses detetives
voluntários que parem com essa espionagem! Chega!
— O que você… o que o senhor falou? — perguntou Samóilenko,
depois de contar até cem, ficando roxo e se aproximando de Laiévski.
— Chega! — repetiu Laiévski, perdendo a respiração, segurando o
quepe.
— Sou um médico, nobre e conselheiro estatal russo! — disse
Samóilenko controladamente. — Espião eu nunca fui, e não permito
que ninguém me insulte! — gritou ele com uma voz estridente, pondo
ênfase na última palavra. — Silêncio!
O diácono, que nunca vira o médico tão majestoso, inchado, rubro e
terrível, fechou a boca, correu para a antessala e rolou de tanto rir. De
forma um tanto nebulosa, Laiévski viu Von Koren se levantar e,
enfiando as mãos nos bolsos das calças, parar numa pose como se
estivesse esperando o que viria a seguir; aquela pose tranquila pareceu a
Laiévski insolente e ofensiva no mais alto grau.
— Faça o favor de retirar o que disse! — gritou Samóilenko.
Laiévski, já sem recordar o que tinha dito, respondeu:
— Deixem-me em paz! Não quero nada! Quero só que você e os
alemães descendentes de jids13 me deixem em paz! Senão, vou tomar
medidas! Vou partir para a briga!
— Agora entendi — falou Von Koren, saindo de trás da mesa. — O
senhor Laiévski está com vontade de se distrair com um duelo antes de
partir. Posso proporcionar essa satisfação a ele. Senhor Laiévski, aceito
seu desafio.
— Desafio? — falou Laiévski em voz baixa, aproximando-se do
zoólogo e olhando com ódio para a testa bronzeada e os cabelos
encaracolados. — Desafio? Pois bem! Odeio você! Odeio!
— Fico feliz. Amanhã de manhã cedo, perto de Kerbalai, com todos
os detalhes a seu gosto. Agora suma daqui.
— Odeio! — disse Laiévski, respirando pesado. — Odeio há muito
tempo! Um duelo! Sim!
— Tire ele daqui, Aleksandr Davíditch, senão sou eu que vou
embora — falou Von Koren. — Ele vai me morder.
O tom tranquilo de Von Koren acalmou o médico; de certa forma ele
voltou a si de repente, recobrou o juízo, pegou Laiévski pela cintura com
as duas mãos e, afastando-o do zoólogo, começou a murmurar com uma
voz terna, trêmula de preocupação:
— Meus amigos… meus bons amigos, gente boa… Nós nos
exaltamos e chega… chega… Meus amigos…
Ao escutar aquela voz suave, amigável, Laiévski sentiu que acabava
de acontecer em sua vida algo inédito, monstruoso, como se por pouco
não tivesse sido atropelado por um trem; quase começou a chorar, agitou
os braços e saiu correndo.
“Experimentar o ódio de outra pessoa, mostrar-se diante da pessoa
que o odeia da maneira mais lamentável, desprezível, insegura — meu
Deus, como é difícil!”, pensava ele um pouco depois, sentado no
pavilhão e sentindo como se o corpo estivesse enferrujado pelo ódio do
outro que acabara de experimentar. “Como isso é grosseiro, meu Deus!”
A água fria com conhaque o animou. Imaginou com clareza o rosto
tranquilo e desdenhoso de Von Koren, seu olhar ontem, a camisa que
parecia um tapete, a voz, as mãos brancas, e o ódio pesado, apaixonado,
faminto que se revirava em seu peito e exigia satisfação. Em
pensamento, derrubou Von Koren no chão e começou a pisoteá-lo. Ele
se lembrava nos menores detalhes de tudo o que havia acontecido e ficou
surpreso com sua capacidade de sorrir servilmente a uma pessoa
insignificante e de uma maneira geral dar valor a opiniões de uma
gentinha miúda, que ninguém conhecia, morando na cidade mais
desprezível, que parecia nem estar no mapa e cuja existência era
ignorada por toda pessoa de bem em São Petersburgo. Se aquela
cidadezinha de repente sumisse ou pegasse fogo, leriam um telegrama
sobre isso na Rússia com o mesmo tédio de uma declaração da venda de
móveis de segunda mão. Matar Von Koren amanhã ou deixá-lo vivo —
dava na mesma, era igualmente inútil e desinteressante. Atirar no pé ou
na mão, feri-lo, depois rir dele, e como um inseto com a patinha
arrancada se perde na grama, deixar que ele, com seu sofrimento surdo,
se perdesse depois numa multidão de pessoas tão insignificantes quanto
ele mesmo.
Laiévski foi ao encontro de Chechkóvski, contou tudo a ele e o
convidou para ser seu padrinho; depois, os dois se dirigiram ao chefe do
Escritório Postal-telegráfico, convidaram-no também para ser padrinho
e ficaram na casa dele para almoçar. Durante o almoço, riram e
brincaram bastante; Laiévski zombava do fato de praticamente não
saber atirar, e se chamou de fuzileiro do rei e de Guilherme Tell.
— É preciso dar uma lição nesse senhor… — dizia.
Depois do almoço se sentaram para jogar cartas. Laiévski jogava,
bebia vinho e pensava que um duelo era absolutamente idiota e sem
sentido, já que ele não resolvia a questão, apenas a complicava, mas que
às vezes era inevitável. Por exemplo, neste caso: ele não podia processar
Von Koren com o juiz de paz! E o duelo iminente ainda tinha a
vantagem de que, depois dele, seria impossível ficar na cidade. Ele ficou
levemente bêbado, distraiu-se com as cartas e sentia-se bem.
Mas quando o sol se pôs e ficou escuro, a preocupação tomou conta
dele. Não era medo da morte, porque dentro dele — sem saber ao certo
o motivo —, enquanto jogava cartas e almoçava, tinha a convicção de
que o duelo não daria em nada; era medo de algo desconhecido que
aconteceria na manhã seguinte pela primeira vez em sua vida, e medo da
noite que caía… Ele sabia que a noite seria longa, insone e que seria
preciso pensar não apenas em Von Koren e em seu ódio, mas também na
montanha de mentiras que ele precisava atravessar e não tinha forças
nem capacidade para evitar. Parecia que ele adoecera de súbito; de
repente perdeu todo o interesse pelas cartas e pelas pessoas, se
atrapalhou e começou a pedir que o deixassem ir para casa. Queria, o
mais rápido possível, se deitar na cama, ficar quieto e preparar os
pensamentos para a noite. Chechkóvski e o funcionário do correio o
acompanharam e se dirigiram à casa de Von Koren para falar sobre o
duelo.
Perto de casa Laiévski deparou com Atchmianov. O jovem
encontrava-se agitado e arquejando.
— Estava lhe procurando, Ivan Andrêitch! — disse ele. — Por favor,
vamos logo…
— Para onde?
— Um senhor que não conhece quer vê-lo, ele tem um assunto
importante para tratar. Pede encarecidamente que vá falar com ele um
minutinho. Precisa falar sobre algo com o senhor… Para ele é
igualmente uma questão de vida e morte…
Agitado, Atchmianov disse isso com um sotaque armênio forte, de
forma que não saiu “morte”, e sim “moite”.
— Quem é? — perguntou Laiévski.
— Ele pediu que eu não dissesse o nome.
— Diga a ele que estou ocupado. Amanhã, se puder…
— Impossível! — assustou-se Atchmianov. — Ele quer dizer algo
muito importante ao senhor… muito importante! Se o senhor não for,
ocorrerá uma desgraça.
— Estranho… — balbuciou Laiévski, sem entender por que
Atchmianov estava tão agitado e que segredos podiam haver naquela
cidadezinha tediosa e sem importância. — Estranho — repetiu,
refletindo. — Pensando bem, vamos. Tanto faz.
Atchmianov ia rápido na frente, e ele ia atrás. Percorreram uma
ruazinha, depois uma travessa.
— Que chatice — falou Laiévski.
— Já vai, já vai… Está perto.
Perto de um aterro antigo, eles passaram por uma travessa estreita
entre dois terrenos baldios cercados, depois entraram numa espécie de
grande pátio e se dirigiram a uma casinha pequena…
— Essa é a casa de Miuridov, não? — perguntou Laiévski.
— É.
— Mas não entendo, por que estamos entrando pelos fundos? Podia
ser pela rua. Lá é mais perto…
— Não é nada, não é nada…
Laiévski também achou estranho que Atchmianov o levasse para a
entrada de serviço e agitasse a mão para ele, como se estivesse dizendo
para fazer menos barulho e ficar calado.
— Por aqui, por aqui… — disse Atchmianov, abrindo a porta
cuidadosamente e entrando no saguão na ponta dos pés. — Mais baixo,
mais baixo, por favor… Podem escutar.
Ele apurou o ouvido, tomou fôlego com dificuldade e falou num
sussurro:
— Abra esta porta aqui e entre… Não tenha medo.
Laiévski, sem compreender, abriu a porta e entrou num quarto com o
teto baixo e janelas fechadas por cortinas. Havia uma vela em cima da
mesa.
— Está procurando quem? — perguntou alguém no quarto vizinho.
— É você, Miuridka?
Laiévski se virou para esse quarto e viu Kirilin, e ao lado dele
Nadiejda Fiódorovna.
Ele não escutou o que lhe disseram, deu a volta e não reparou como
foi parar na rua. O ódio de Von Koren e a inquietação — tudo sumiu de
sua alma. Indo para casa, ele mexia o braço direito desajeitadamente e
olhava debaixo dos próprios pés com atenção, se esforçando para andar
pela parte plana. Em casa, no gabinete, esfregando as mãos e mexendo
canhestramente os ombros e o peito, como se a jaqueta e a camisa
estivessem apertadas, andava de um canto a outro, depois acendeu uma
vela e se sentou à mesa…
XVI

— As ciências humanas das quais você está falando só vão satisfazer o


pensamento humano quando, em seus movimentos, encontrarem as
ciências exatas e andarem lado a lado com elas. Se elas vão se encontrar
sob o microscópio ou nos monólogos de um novo Hamlet, ou numa
nova religião, isso eu não sei, mas acho que a terra vai ser coberta por
uma casca de gelo antes disso acontecer. A mais firme e mais viva de
todas as ciências humanas é, claro, o ensinamento de Cristo, mas vejam
como ele é entendido de formas diferentes! Uns ensinam que devemos
amar o próximo, e apesar disso fazem exceção para os soldados, os
criminosos e os loucos: os primeiros, permite-se que sejam mortos na
guerra; os segundos, que sejam isolados ou executados; os terceiros são
proibidos de se casar. Outros intérpretes ensinam a amar todos sem
exceção, sem diferenciar mais e menos. Segundo seus ensinamentos, se
chega um tuberculoso ou um assassino, ou vem um epiléptico e pede sua
filha em casamento — você tem que permitir; se os cretinos declaram
guerra contra os física e mentalmente saudáveis, ofereça sua cabeça. Esse
sermão do amor pelo amor, como a arte pela arte, se tivesse força, no fim
das contas levaria a humanidade à completa extinção, e assim se
realizaria o mais grandioso dos crimes que já ocorreram sobre a terra. As
interpretações são muitas, e se são muitas, então o pensamento sério não
se satisfaz com nenhuma delas e vai se apressar para acrescentar à massa
de todas as interpretações a sua própria. Por isso, nunca ponha a questão
num terreno, como você diz, filosófico, ou no assim chamado terreno do
cristianismo; com isso você só vai se afastar da resolução da questão.
O diácono escutou atentamente o zoólogo, pensou um pouco e
perguntou:
— A lei moral inerente a cada pessoa, foram os filósofos que
inventaram ou foi Deus que a criou junto com o corpo?
— Não sei. Mas essa lei é a tal ponto comum a todos os povos e
épocas que, na minha opinião, é preciso reconhecer sua ligação orgânica
com o ser humano. Ela não foi inventada, mas existe e seguirá existindo.
Não vou lhe dizer que um dia conseguirão vê-la pelo microscópio, mas a
ligação orgânica já é demonstrada por evidência: os transtornos sérios do
cérebro e todas as assim chamadas doenças mentais se expressam antes
de mais nada na perversão da lei moral, que eu saiba.
— Certo, senhor. Isso significa que assim como o estômago quer
comer, o sentimento moral quer que amemos o próximo. É assim? Mas
nossa índole natural, por egoísmo, se opõe à voz da consciência e da
razão, e por isso surgem várias questões de quebrar a cabeça. A quem
devemos nos dirigir para resolver essas questões, se o senhor manda não
levá-las para o âmbito filosófico?
— Dirija-se às várias ciências exatas que temos. Confie na evidência
e na lógica dos fatos. É verdade que é pouco, mas não é tão inconstante
e vago como a filosofia. A lei moral, vamos supor, exige que você ame as
pessoas. E então? O amor deve consistir na eliminação de tudo o que, de
uma forma ou de outra, prejudica as pessoas e as ameaça de perigo no
presente e no futuro. Nossos conhecimentos e evidências nos dizem que
o que ameaça a humanidade é o perigo do lado dos que são moral e
fisicamente anormais. Se é assim, lute contra os anormais. Se não há
forças para elevá-los à norma, então que lhe bastem forças e habilidade
para neutralizá-lo, ou seja, exterminá-lo.
— Quer dizer que o amor consiste na dominação do fraco pelo forte?
— Sem dúvida.
— Mas foram os fortes que crucificaram nosso senhor Jesus Cristo!
— disse o diácono exaltado.
— É essa a questão! Quem o crucificou não foram os fortes, mas os
fracos. A cultura humana se enfraqueceu e procura levar a zero luta pela
existência e a seleção natural; daí a rápida multiplicação dos fracos e seu
predomínio sobre os fortes. Imagine que você conseguiu incutir numa
abelha ideias humanas em sua forma rudimentar, não elaborada. O que
vai acontecer a partir daí? Os zangões, que elas precisam matar, vão ficar
vivos, vão comer o mel, corromper e sufocar as abelhas — o resultado
seria o predomínio dos fracos sobre os fortes e a degeneração desses
últimos. O mesmo está acontecendo agora com a humanidade: os fracos
oprimem os fortes. Para os selvagens que ainda não foram tocados pela
cultura, o mais forte, mais sábio e com mais moral vai na frente; ele é o
líder e o soberano. Mas nós, que somos culturais, crucificamos Cristo e
continuamos a crucificar. Ou seja, nos falta algo… É esse “algo”
devemos recuperar em nós mesmos, senão esses equívocos não terão fim.
— Mas qual é o seu critério de distinção dos fortes e dos fracos?
— Conhecimento e evidências. Os tísicos e escrofulosos são
reconhecidos por suas doenças, os imorais e loucos pelos seus atos.
— Mas é possível cometer erros!
— Sim, mas não adianta nada ter medo de molhar os pés se estamos
sob a ameaça de um dilúvio.
— Isso é filosofia — o diácono começou a rir.
— De jeito nenhum. O senhor está a tal ponto estragado por sua
filosofia de seminário que só quer ver tudo debaixo de uma névoa. As
ciências abstratas que preenchem sua cabeça jovem se chamam abstratas
porque elas abstraem a mente das evidências. Olhe direto nos olhos do
diabo e, se ele é um diabo, diga que é um diabo, não procure Kant e
Hegel para ter explicações.
O zoólogo calou-se, mas depois prosseguiu:
— Dois vezes dois é quatro, e uma pedra é uma pedra. Amanhã
temos um duelo. Eu e você vamos dizer que isso é tonto e absurdo, que
duelo é uma coisa antiquada, que um duelo de aristocratas em essência
não tem nenhuma diferença de uma briga de bêbados numa taberna, e
mesmo assim não vamos parar, vamos lá e vamos nos enfrentar. Ou seja,
há uma força maior do que todo o nosso raciocínio. Gritamos que a
guerra é uma bandidagem, uma barbaridade, um horror, matança entre
irmãos, não conseguimos ver sangue sem desmaiar; mas basta que os
franceses ou alemães nos ofendam para imediatamente sentirmos o
espírito se exaltando, gritar “viva” com a maior sinceridade e partir para
cima do inimigo, e o senhor vai chamar nossas armas de bênção divina e
nossa bravura vai despertar o êxtase geral, e ainda por cima, sincero. Ou
seja, de novo, há uma força que, se não é mais elevada, ao menos é mais
potente do que nós e nossa filosofia. Não podemos pará-la, como
acontece com aquela nuvem que está se mexendo atrás do mar. Não seja
hipócrita, não faça figa no bolso nem diga: “ah, que bobo! ah, que
antiquado! ah, não está de acordo com as escrituras!”, mas olhe para ela
direto nos olhos, reconheça sua legitimidade racional, e quando, por
exemplo, ela quiser exterminar uma linhagem doentia, escrofulosa,
pervertida, não a atrapalhe com suas pílulas e citações de um Evangelho
mal-entendido. Leskov tem o Danila14 consciente, que encontrou na
cidade um leproso, alimentou e aqueceu em nome do amor e de Cristo.
Se esse Danila de fato amasse as pessoas, arrastaria o leproso para fora
da cidade e o jogaria num fosso, e depois iria servir os saudáveis. Cristo,
espero, pregava o amor racional, refletido e são.
— Você é fogo! — riu o diácono. — Se não acredita em Cristo, para
que o menciona tantas vezes?
— Não, eu acredito. Apenas, claro, à minha maneira, e não à sua.
Ah, diácono, diácono! — o zoólogo começou a rir; ele abraçou o
diácono pela cintura e disse alegremente: — Bom, e então? Vamos
amanhã para o duelo?
— Meu título não permite, senão eu iria.
— O que quer dizer com título?
— Sou um religioso. Tenho a graça divina.
— Ah, diácono, diácono — repetiu Von Koren, rindo. — Adoro
conversar com o senhor.
— O senhor diz que tem fé — disse o diácono. — Que fé é essa? Eu
tenho um tio que é pope, e ele acredita tanto que, quando há uma seca e
ele vai para o campo pedir por chuva, já leva um guarda-chuva e um
sobretudo de couro para não se molhar com a chuva na volta. Isso é que
é fé! Ao falar de Cristo, irradia um brilho e todas as camponesas e
mujiques choram de soluçar. Ele poderia fazer parar aquela nuvem e
fazer toda a sua força fugir. Sim… A fé move montanhas.
O diácono começou a rir e dar umas palmadas no ombro do zoólogo.
— Pois então… — continuou. — O senhor continua ensinando, vai
até o fundo do mar, distingue os fracos dos fortes, escreve livros e desafia
para duelos — e tudo continua em seu lugar, mas veja, um certo velho
fracote balbucia apenas uma palavra com o Espírito Santo ou um novo
Maomé chega a galope da Arábia com um sabre e põe tudo o que você
tem de ponta-cabeça, e não vai restar pedra sobre pedra na Europa.
— Mas isso, diácono, é escrever no céu com uma forquilha!
— A fé sem ação está morta, e ação sem fé é pior ainda, um
desperdício de tempo e nada mais.
O médico apareceu no cais. Ele viu o diácono e o zoólogo e se
aproximou deles.
— Parece que está tudo pronto — disse ele, arquejando. — Os
padrinhos serão Govoróvski e Boiko. Vão passar de manhã, às cinco.
Escureceu de um jeito! — disse ele, depois de olhar para o céu. — Não
dá pra ver nada. Daqui a pouco vai cair uma chuvinha.
— Você vai conosco, espero? — perguntou Von Koren.
— Não, Deus me livre, só com isso estou exausto. Ustimovitch vai no
meu lugar. Já falei com ele.
Longe, sobre o mar, brilhou um relâmpago, e se escutaram os
estrondos abafados de um trovão.
— Como fica abafado antes da tempestade! — disse Von Koren. —
Aposto que você já esteve na casa de Laiévski e chorou no ombro dele.
— Para que vou à casa dele? — respondeu o médico, desconcertado.
— Só faltava essa!
Até o pôr do sol ele havia percorrido várias vezes o bulevar e a rua, na
esperança de se encontrar com Laiévski. Envergonhava-se por sua
explosão e pelo ímpeto súbito de bondade que se seguira à explosão. Ele
queria se desculpar com Laiévski num tom brincalhão, repreendê-lo
ligeiramente, tranquilizá-lo e dizer a ele que um duelo era um resquício
de um barbarismo medieval, mas que a própria providência designara
para ele um duelo como forma de reconciliação; amanhã, os dois,
pessoas maravilhosas, do mais alto intelecto, trocariam tiros, aprovariam
a nobreza um do outro, e se tornariam amigos. Mas não encontrou
Laiévski nem uma só vez.
— Para que vou falar com ele? — repetiu Samóilenko. — Não fui eu
quem o ofendeu, mas ele a mim. Diga, por gentileza, por que ele veio
para cima de mim? O que eu fiz de mal para ele? Entro na sala e de
repente, oi, tudo bem: espião! Tome essa! Diga: como começou? O que
você disse para ele?
— Eu disse que a situação dele era sem saída. E eu estava certo. Só
os honestos e os vigaristas conseguem achar uma saída de qualquer
situação, e quem quer ser ao mesmo tempo honesto e vigarista não tem
saída. Porém, senhores, já são onze horas, e amanhã temos que acordar
cedo.
De súbito, começou um vento forte; ele levantou a poeira da praia,
fez voar num redemoinho, rugiu e abafou o barulho do mar.
— Que rajada! — disse o diácono. — Preciso ir, senão meus olhos
vão ficar cheios de areia.
Quando saíam, Samóilenko suspirou e disse, segurando o quepe:
— Acho que agora não vou dormir.
— Não se preocupe — riu o zoólogo. — Pode ficar tranquilo, esse
duelo não vai dar em nada. Laiévski vai atirar para o ar num gesto
magnânimo, ele não é capaz de fazer nada diferente, e eu não devo atirar
em absoluto. Ir parar no tribunal por causa de Laiévski é perda de tempo
— não vale a pena. A propósito, de quanto é a pena para duelo?
— Detenção, e, em caso de morte do oponente, prisão na fortaleza
por até três anos.
— Na Fortaleza de Pedro e Paulo?
— Não, acho que numa militar.
— Mas seria bom dar uma lição nesse rapaz!
Atrás, no mar, fulgurou um relâmpago e por um instante iluminou o
telhado das casas e as montanhas. Os amigos se separaram perto do
bulevar. Quando o médico desapareceu na escuridão e seus passos já
estavam silenciando, Von Koren gritou para ele:
— Espero que o clima não nos atrapalhe amanhã!
— Pode ser! Tomara!
— Boa noite!
— O que, noite? Do que está falando?
Com o barulho do vento e do mar e os estrondos dos trovões era
difícil escutar.
— Nada! — gritou o zoólogo, e foi apressado para casa.
XVII

… em minha mente oprimida pela angústia,


Ideias pesadas em demasia se comprimem;
Em silêncio, à minha frente, a memória
Desenrola seu longo pergaminho.
E, lendo com repulsa minha vida,
Tremo e amaldiçoo,
E com amargura lamento, e amargas lágrimas verto
Mas não apago as tristes linhas.

Púchkin

Se o matassem na manhã seguinte ou rissem dele, ou seja, deixassem


essa vida para ele, não fazia diferença, ele já estava morto. Se aquela
mulher desonrada se matasse de desespero e vergonha ou se seguisse
arrastando sua existência lamentável, não fazia diferença, ela já estava
morta…
Era o que pensava Laiévski, sentado à mesa tarde da noite e ainda
esfregando as mãos. A janela de repente se abriu e bateu, um vento forte
irrompeu no quarto e os papéis voaram da mesa. Laiévski trancou a
janela e se inclinou para juntar os papéis do chão. Ele sentia no corpo
algo novo, um certo embaraço que antes não havia, e não reconhecia
seus movimentos; andava com timidez, jogando os cotovelos para os
lados e contraindo os ombros, e quando se sentou à mesa, começou a
esfregar as mãos de novo. Seu corpo havia perdido a flexibilidade.
Na véspera da morte era preciso escrever para as pessoas próximas.
Laiévski se lembrou disso. Ele pegou a pena e escreveu com uma letra
trêmula:“Mamãe!”.
Queria escrever para a mãe que, em nome da misericórdia de Deus,
no qual ela acreditava, oferecesse abrigo e cobrisse de carinho aquela
mulher infeliz, desonrada por ele, tão solitária, pobre e fraca, que ela
esquecesse e perdoasse tudo, tudo, tudo, e com sacrifício expiasse ao
menos em parte o terrível pecado do filho; mas lembrou-se de que a
mãe, uma velha rechonchuda e corpulenta, com uma touca de renda,
saía de manhã para o jardim da casa, e atrás dela ia um agregado com
um cachorrinho; de que ela gritava com voz imperiosa com o jardineiro
e a criada e tinha um rosto orgulhoso e arrogante — ele se lembrou disso
e riscou a palavra que havia escrito.
Nas três janelas brilhou claramente um relâmpago e, em seguida,
ressoou um estrondoso e retumbante impacto de trovão, no começo
abafado, mas depois ribombando e estrepitando, e tão forte que os vidros
tilintaram nas janelas. Laiévski se levantou, aproximou-se da janela e
apoiou a testa contra o vidro. No pátio caía uma tempestade forte,
bonita. No horizonte, os relâmpagos se jogavam ininterruptamente das
nuvens para o mar como fitas brancas e iluminavam as ondas altas e
escuras a uma longa distância. À direita e à esquerda e, provavelmente,
sobre a casa também, reluziam relâmpagos.
— Tempestade! — sussurrou Laiévski; ele sentia o desejo de rezar
para alguém ou algo, nem que fossem os relâmpagos ou as nuvens. —
Tempestade querida!
Ele se lembrou de que na infância, durante as tempestades, corria
para o jardim com a cabeça descoberta, e era perseguido por duas
meninas de cabelos brancos de olhos azuis, e a chuva os molhava; eles
gargalhavam extasiados, mas quando um forte barulho de trovão
ressoava, as meninas se apertavam contra o menino com confiança, ele
fazia o sinal da cruz e se apressava para recitar: “santo, santo, santo…”.
Ah, pra onde vocês foram, em que mar se afogaram, embriões de uma
vida maravilhosa e pura? Ele já não tem medo das tempestades e não
ama a natureza, ele não tem Deus, todas as meninas confiantes que ele
um dia conheceu já foram arruinadas por ele ou por seus
contemporâneos, no jardim de sua casa natal, em toda a vida não
plantara uma só arvorezinha e não fizera crescer uma só grama e,
vivendo entre os vivos, não salvara uma só mosca, apenas destruíra,
arruinara e mentira, mentira…
“O que não é um defeito no meu passado?”, ele se perguntava,
fazendo esforço para se agarrar a alguma lembrança radiante, como
alguém que está caindo num abismo e se agarra a arbustos.
Ginásio? Universidade? Mas isso era um engano. Ele havia estudado
mal, esquecera tudo o que lhe haviam ensinado. Servir à sociedade? Isso
também é um engano, porque no serviço ele não fazia nada, recebia o
salário para nada e seu trabalho era uma dilapidação infame do dinheiro
público, que poderia levá-lo para o tribunal.
Ele não precisava da verdade, e não a buscava, sua consciência,
enfeitiçada pelo defeito e pela mentira, estava adormecida ou calada;
como um estrangeiro, ou alguém de outro planeta, ele não participava da
vida comum das pessoas, era indiferente a seus sofrimentos, ideias,
religiões, conhecimentos, buscas, batalhas, ele não dissera para as
pessoas uma boa palavra sequer, não havia escrito uma só linha útil, que
não fosse vulgar, não levantara um dedo pelas pessoas, só comia o pão,
bebia o vinho, roubava as esposas, morava com elas por uns meses e,
para justificar sua vida desprezível e parasita diante delas e de si mesmo,
sempre tentava dar a si mesmo ares de que era mais elevado e melhor do
que elas. Mentira, mentira, mentira…
Ele se lembrou claramente do que havia visto à noite na casa de
Miuridov, e a repulsa e angústia que sentia eram terríveis, insuportáveis.
Kirilin e Atchmianov eram detestáveis, mas só estavam continuando o
que ele havia começado; eles eram seus cúmplices e alunos. Da mulher
jovem e fraca, que confiava nele mais do que num irmão, ele tirara o
marido, o círculo de conhecidos e a terra natal e a levara para ali — para
o calor abrasante, para a febre e o tédio; dia após dia, como um espelho,
ela precisara refletir em si a inatividade dele, a viciosidade e a mentira —
e isso, apenas isso, preenchia a vida dela, fraca, indolente; depois ele
havia ficado farto dela, passado a odiá-la, mas faltava coragem para
deixá-la, e ele tentava cada vez mais enredá-la em mentiras, como uma
teia de aranha… O restante fora finalizado por aqueles homens.
Laiévski ora se sentava à mesa, ora se dirigia à janela de novo; ora
apagava a vela, ora acendia de novo. Amaldiçoava a si mesmo em voz
alta, chorava, reclamava, pedia perdão; algumas vezes, em desespero,
corria para a mesa e escrevia: “Mamãe!”.
Além da mãe, ele não tinha mais ninguém querido e próximo; mas
como a mãe poderia ajudá-lo? E onde ela estava? Ele queria correr até
Nadiejda Fiódorovna para cair aos seus pés, beijar suas mãos e seus pés,
implorar por perdão, mas ela era a vítima dele, e ele tinha medo dela,
como se ela tivesse morrido.
— A vida acabou! — murmurava, esfregando as mãos. — Para que
ainda estou vivo, meu Deus?!…
Ele derrubara do céu sua estrela turva, ela caíra e seu rastro se
misturava com a escuridão da noite; ela já não voltaria para o céu porque
a vida só é dada uma vez e não se repete. Se fosse possível recuperar os
últimos dias e anos, ele trocaria a mentira neles pela verdade, o ócio por
trabalho, o tédio por alegria, ele recuperaria a pureza daqueles que levou,
encontraria Deus e justiça, mas isso era tão impossível quanto devolver
para o céu uma estrela que havia caído. E que isso fosse impossível o
levava ao desespero.
Quando a tempestade passou, ele estava sentado perto da janela
aberta e pensava com tranquilidade no que lhe aconteceria. Von Koren
provavelmente o mataria. A visão de mundo límpida e fria daquele
homem permitia eliminar os fracos e inúteis; se mudasse de ideia no
minuto decisivo, seria ajudado pelo ódio e pelo sentimento de repulsa
que Laiévski lhe despertava. Se ele errasse o alvo, ou, para zombar do
adversário odioso, apenas o ferisse, ou atirasse para o ar, o que fazer
então? Para onde ir?
“Viajar para São Petersburgo?” — Laiévski se perguntava. — “Mas
isso significaria começar de novo a vida que estou maldizendo. E quem
procura salvação na mudança de lugar, como um pássaro migratório, não
encontra nada, já que a terra é igual em todo lugar. Procurar salvação nas
pessoas? Procurar em que e como? A bondade e a generosidade de
Samóilenko eram tão pouco salvadoras quanto o riso fácil do diácono ou
o ódio de Von Koren. Só se deve procurar salvação em si mesmo, e se
não encontrar, para que perder tempo, é preciso se matar, pronto…”
Ouviu o barulho de uma carruagem. Já amanhecia. Ela passou por
ele, deu a volta, e, rangendo as rodas pela areia molhada, parou perto da
casa. Havia duas pessoas sentadas na carruagem.
— Espere, já vou! — disse Laiévski pela janela. — Não estou
dormindo. Por acaso já está na hora?
— Já. Quatro horas. Até chegar…
Laiévski vestiu o sobretudo e o gorro, pegou o cigarro no bolso e
parou, pensativo; tinha a impressão de que era preciso fazer mais alguma
coisa. Lá fora os padrinhos conversavam em voz baixa e os cavalos
bufavam, e aqueles sons na madrugada úmida, enquanto todos dormiam
e o céu quase brilhava, encheram a alma de Laiévski de um desalento
que parecia um mau pressentimento. Ele ficou um tempo parado,
pensando, e foi para o quarto.
Nadiejda Fiódorovna estava deitada na cama, estendida, coberta até a
cabeça com uma manta; ela não se mexia e lembrava, especialmente a
cabeça, uma múmia egípcia. Ao olhar para ela em silêncio, Laiévski
pediu perdão em pensamento e pensou que se o céu não fosse vazio e de
fato houvesse um Deus lá, então ele a protegeria; mas se Deus não
existisse, então que morresse, ela não tinha mais para que viver.
De repente ela deu um salto e se sentou na cama. Levantando o rosto
pálido e olhando com horror para Laiévski, ela perguntou:
— É você? A tempestade passou?
— Passou.
Ela se lembrou, pôs as duas mãos na cabeça e seu corpo inteiro
tremeu.
— Como é difícil para mim! — falou ela. — Se você soubesse como
é difícil para mim! — Eu esperava — prosseguiu, com os olhos
semicerrados — que você me matasse ou expulsasse de casa debaixo de
chuva e tempestade, mas você demora… demora…
Ele a abraçou de súbito e forte, cobriu de beijos seus joelhos e mãos,
depois, enquanto ela murmurava algo para ele e estremecia com a
lembrança, ele fez carinho nos cabelos dela e, olhando para seu rosto,
entendeu que aquela mulher infeliz, cheia de defeitos, era a única pessoa
próxima, querida e insubstituível para ele.
Quando, ao sair de casa, subiu na caleche, sentiu vontade de voltar
para casa vivo.
XVIII

O diácono se levantou, pegou seu cajado grosso e nodoso e saiu de casa


em silêncio. Estava escuro, e nos primeiros minutos que andava na rua
não viu nem seu cajado branco; no céu não havia uma só estrela, e
parecia que ia chover de novo. O ar cheirava a areia molhada e mar.
“Por favor, que os tchetchenos não ataquem”, pensava ele, escutando
seu cajado bater na calçada e como aquela batida ressoava sonora e
solitária no silêncio da noite.
Ao sair da cidade, ele começou a ver tanto a estrada quanto seu
cajado; no céu escuro, aqui e ali apareciam manchas turvas; logo surgiu
uma estrela que timidamente pôs a piscar seu único olho. O diácono
andava pela margem alta e pedregosa e não via o mar, que adormecia
abaixo, e suas ondas invisíveis batiam na costa, preguiçosas e pesadas, e
pareciam suspirar: uf ! E tão devagar! Uma onda bateu, o diácono teve
tempo de contar oito passos, então bateu outra, seis passos depois uma
terceira. Não via nada, como antes, e nas trevas escutava-se o barulho
preguiçoso e sonolento do mar, escutava-se um tempo infinitamente
distante, inimaginável, quando Deus pairava sobre o caos.
O diácono começou a se sentir lúgubre. Pensou se Deus não o
puniria por estar em companhia de ateus e até estar indo ver um duelo.
O duelo seria insignificante, sem sangue, ridículo, mas, não importa
como fosse, era um espetáculo pagão, e absolutamente inapropriado que
uma figura da igreja estivesse presente. Ele parou e pensou: não seria
melhor voltar? Mas uma curiosidade forte e inquietante se sobrepôs às
dúvidas, e ele seguiu em frente.
“Apesar de descrentes, são pessoas boas e vão se salvar”, ele se
tranquilizava. — Com certeza vão se salvar! — disse em voz alta,
acendendo um cigarro.
Com que medida era preciso medir as qualidades das pessoas para
julgá-las com justiça? O diácono se lembrou de seu inimigo, o inspetor
do seminário, que acreditava em Deus, não se batia em duelos e vivia em
castidade, mas outrora dava a ele pão com areia para comer, e uma vez
quase arrancou sua orelha. Se a vida humana era constituída de forma
tão pouco sábia que todos respeitavam aquele inspetor cruel e desonesto,
que roubava farinha do governo, e rezavam pela saúde e pela salvação
dele, então seria justo afastar-se de pessoas como Von Koren e Laiévski,
apenas porque eram ateus? O diácono começou a tentar decidir essa
questão, mas se lembrou de como estava engraçada a figura de
Samóilenko naquele dia, e isso interrompeu o fluxo de suas ideias.
Como ririam amanhã! O diácono imaginava que se sentaria debaixo de
um arbusto e observaria, e no dia seguinte, no almoço, quando Von
Koren começasse a se vangloriar, ele, o diácono, gargalhando contaria a
ele todos os detalhes do duelo.
“Como você sabe tudo?”, perguntaria o zoólogo. “É assim. Fiquei em
casa, mas sei.”
Seria bom descrever o duelo de forma engraçada. O sogro iria ler e
rir, não dê mingau para seu sogro, apenas conte ou escreva algo
engraçado a ele.
Abriu-se o vale do riacho Amarelo. Por causa da chuva, o riacho
havia ficado mais largo e furioso, e já não resmungava como antes, mas
rugia. O alvorecer começava. Era uma manhã cinza e baça, e as nuvens
corriam para oeste, a fim de alcançar a tempestade que se armava, e as
montanhas, cingidas pela neve, e as árvores molhadas — tudo parecia
feio e zangado para o diácono. Ele se lavou no riacho, leu as preces
matinais e teve vontade de tomar chá e comer os pãezinhos quentes com
creme azedo que toda manhã serviam na mesa do sogro. Ele se lembrou
da diaconisa e de Irrecuperável, que ela tocava no piano. Que mulher era
ela? Foi apresentada a ele, arranjaram o casamento e casaram em uma
semana; ele havia morado com ela menos de um mês e fora mandado
para lá, de forma que até então ainda não havia entendido que tipo de
pessoa ela era. E mesmo assim ficava meio entediado sem ela.
“Preciso escrever uma cartinha para ela…”, pensou.
A bandeira no dukhan estava ensopada pela chuva e pendurada, e o
próprio dukhan com o teto molhado parecia mais escuro e mais baixo do
que antes. Perto da porta estava parada uma arabá; Kerbalai, dois
abcázios e uma jovem tártara de calças bufantes, que devia ser esposa ou
filha de Kerbalai, carregavam para fora do dukhan sacos com algo e os
colocavam na arabá sobre palha de milho. Perto da arabá, de cabeça
baixa, estavam dois burrinhos. Depois de empilhar os sacos, os abcázios
e a tártara começaram a cobri-los com palha, e Kerbalai pôs-se a atrelar
os burros apressado. “Contrabando, deve ser”, pensou o diácono.
Surgiu a árvore derrubada com folhas secas, surgiu a mancha preta da
fogueira. Ele se lembrou do piquenique com todos os detalhes, o fogo,
as canções dos abcázios, os sonhos doces de ser bispo e a procissão… O
riacho Preto, por causa da chuva, havia ficado mais preto e mais largo.
Com cuidado, o diácono passou pela pontezinha frágil, que já fora
alcançada pelas ondas sujas com suas jubas, e subiu pela escadinha para a
câmara de secagem.
“Que cabeça excelente!”, pensou ele, estendendo-se sobre a palha e
lembrando-se de Von Koren. “Uma boa cabeça, Deus lhe dê saúde. Só
que há crueldade nele…”
Por que ele odiava Laiévski e Laiévski a ele? Por que iam se bater
num duelo? Se desde a infância tivessem conhecido a necessidade como
o diácono, se eles tivessem sido criados em meio a corações ignorantes e
insensíveis, avarentos por lucro, que repreendiam por um pedaço de pão,
grosseiros e brutos no trato, que cuspiam no chão e arrotavam depois no
almoço e na hora de rezar, se desde a infância não tivessem sido
mimados por boas condições de vida e um círculo seleto, como iriam se
aferrar um ao outro, como perdoariam com gosto as falhas e
valorizariam o que cada um tinha? Pois até externamente há tão pouca
gente de bem no mundo! É verdade, Laiévski era louco, desregrado,
estranho, mas ele não roubava, não cuspia no chão, não repreendia a
esposa com “você come, mas não quer trabalhar”, não ia bater numa
criança com uma rédea ou dar carne podre para os criados — por acaso
isso não bastava para ser condescendente com ele? Além do mais, ele era
o primeiro a sofrer com suas falhas, como um doente por suas feridas.
Em vez de, por tédio ou por algum mal-entendido, procurar um no
outro degeneração, extinção, hereditariedade e assim por diante, o que
era pouco compreensível, não seria melhor para eles olhar mais para
baixo e direcionar o ódio e a fúria para onde ruas inteiras gemiam por
falta de educação e grosseria, ganância, broncas, sujeira, xingamento,
mulheres estridentes?
A batida de uma carruagem ressoou e interrompeu o pensamento do
diácono. Ele olhou para a porta e viu a caleche, e três pessoas dentro
dela: Laiévski, Chechkóvski e o chefe do Escritório Postal-telegráfico.
— Pare! — disse Chechkóvski.
Os três desceram e olharam um para o outro.
— Eles ainda não chegaram — disse Chechkóvski, batendo a sujeira
da roupa. — E então? Enquanto o tribunal cuida do caso, vamos
procurar um lugar bom. Aqui não há onde dar a volta.
Eles subiram um pouco mais pelo rio e logo sumiram de vista. O
cocheiro tártaro subiu na carruagem, inclinou a cabeça sobre o ombro e
adormeceu. Depois de esperar cerca de dez minutos, o diácono saiu da
câmara de secagem e, tirando o chapéu preto para que não o notassem,
agachando-se e olhando ao redor, começou a avançar pela margem entre
arbustos e faixas de milho; das árvores e dos arbustos caíam sobre ele
gotas graúdas, a grama e o milho estavam molhados.
— Que vergonha! — murmurou, levantando suas abas molhadas e
sujas. — Se eu soubesse não teria vindo.
Logo ele escutou vozes e viu algumas pessoas. Laiévski, com as mãos
enfiadas nas mangas e curvado, andava rapidamente para a frente e para
trás pela pequena clareira; seus padrinhos estavam parados bem perto da
margem e enrolavam cigarros.
“Estranho…”, pensou o diácono, sem reconhecer o andar de
Laiévski. “Parece um velho.”
— Que falta de educação da parte deles! — disse o funcionário do
Escritório Postal-telegráfico, olhando para o relógio. — Talvez para os
eruditos seja bom se atrasar, mas para mim é uma indecência.
Chechkóvski, um homem gordo de barba preta, apurou os ouvidos e
disse:
— Estão chegando!
XIX

— Estou vendo pela primeira vez na vida! Que beleza! — disse Von
Koren, apontando para a clareira e estendendo ambas as mãos para o
leste. — Vejam: raios verdes!
A leste, atrás das montanhas, estendiam-se dois raios verdes e de fato
era bonito. O sol nascia.
— Olá! — prosseguiu o zoólogo, acenando com a cabeça para os
padrinhos de Laiévski. — Não me atrasei?
Atrás dele vinham seus padrinhos, dois oficiais muito jovens da
mesma altura, Boiko e Govoróvski, usando túnicas militares brancas, e o
médico esquálido e pouco sociável Ustimovitch, que trazia numa mão
uma trouxa com algo enquanto apoiava a outra atrás; como de hábito, a
bengala se estendia ao longo de sua espinha. Depois de pôr a trouxa no
chão e sem cumprimentar ninguém, ele pôs a mão agora livre também
atrás das costas e começou a caminhar pela clareira.
Laiévski sentia o cansaço e o constrangimento de uma pessoa que
talvez morra em breve e por isso atrai atenção. Ele queria que o
matassem rápido ou então que o levassem para casa. Via o nascer do sol
pela primeira vez na vida; aquele começo de manhã, os raios verdes, a
umidade e as pessoas de botas molhadas lhe pareciam supérfluas em sua
vida, desnecessárias, e o envergonhavam; tudo aquilo não tinha
nenhuma ligação com a noite que vivera, com seus pensamentos e com o
sentimento de culpa, e por isso ele teria com gosto ido embora sem
esperar o duelo.
Von Koren estava visivelmente animado e tentava esconder isso
fingindo que, acima de tudo, se interessava pelos raios verdes. Os
padrinhos estavam desconcertados e se entreolhavam, como que
perguntando a razão de estarem ali e o que deviam fazer.
— Suponho, senhores, que não há por que seguir em frente — disse
Chechkóvski. — Aqui está bom.
— Sim, claro — concordou Von Koren.
Fez-se silêncio. Ustimovitch, caminhando, de súbito se virou
bruscamente para Laiévski e disse a meia-voz, respirando em seu rosto.
— Provavelmente ainda não tiveram tempo de lhe comunicar minhas
condições. Cada lado me paga quinze rublos e, no caso de morte de um
dos oponentes, o que ficou vivo me paga os trinta.
Laiévski conhecera aquele homem antes, mas só agora via
distintamente pela primeira vez seus olhos baços, o bigode rígido e o
pescoço descarnado, tísico: um usurário, e não um médico! Sua
respiração tinha um cheiro desagradável, de carne.
“Quanto tipo de gente que existe no mundo”, pensou Laiévski, e
respondeu:
— Certo.
O médico balançou a cabeça e de novo começou a caminhar, e via-se
que ele não precisava em nada do dinheiro, pedia apenas por ódio.
Todos sentiam que já era na hora de começar ou terminar o que já havia
sido começado, mas não começavam nem terminavam, e sim andavam,
paravam e fumavam. Os jovens oficiais, que participavam de um duelo
pela primeira vez na vida e agora já não acreditavam muito naquele
duelo de civis, desnecessário na opinião deles, examinavam com atenção
suas túnicas e alisavam a manga. Chechkóvski se aproximou deles e
falou em voz baixa:
— Senhores, devemos empregar todos os esforços para que este
duelo não aconteça. É preciso reconciliá-los.
Ele corou e prosseguiu:
— Ontem Kirilin esteve em minha casa e reclamou que Laiévski o
pegou com Nadiejda Fiódorovna e tudo mais.
— Sim, também sabemos disso — disse Boiko.
— Bem, pois estão vendo…? As mãos de Laiévski estão tremendo…
Ele não vai conseguir nem erguer a pistola. Bater-se com ele é tão
desumano quanto com um bêbado ou um doente de tifo. Se a
reconciliação não acontecer, então, senhores, é preciso adiar o duelo, algo
assim… É tão diabólico que não quero nem ver.
— Fale o senhor com Von Koren.
— Não sei as regras de duelo, que o diabo carregue todas, nem quero
saber; talvez ele ache que Laiévski se acovardou e tenha me mandado
falar com ele. Ah, enfim, como queira, vou falar.
Chechkóvski caminhou até Von Koren de forma indecisa, mancando
de leve, como se estivesse com a perna dormente, e enquanto andava e
grasnava, toda sua figura exalava preguiça.
— Isso que eu devo lhe dizer, meu senhor — começou, examinando
com atenção as cores da camisa do zoólogo —, é confidencial… Não sei
as regras de duelo, que o diabo carregue todas, nem desejo saber, e
raciocino não como padrinho e tudo mais, mas como um ser humano e
ponto.
— Sim. E então?
— Quando os padrinhos propõem uma reconciliação, normalmente
não são ouvidos, isso é visto como uma formalidade. Amor-próprio e
pronto. Mas eu lhe peço encarecidamente que preste atenção em Ivan
Andrêitch. Hoje ele não está num estado normal, por assim dizer, não
está bem da cabeça, está deplorável. Aconteceu uma infelicidade com
ele. Não tolero fofoca — Chechkóvski corou e olhou em volta —, mas
em face do duelo acho necessário lhe comunicar. Ontem à noite, na casa
de Miuridov, ele surpreendeu sua senhora com… um cavalheiro.
— Que coisa imunda! — murmurou o zoólogo; ele empalideceu,
franziu a testa e cuspiu algo: — Tfu!
Seu lábio inferior começou a tremer; ele se afastou de Chechkóvski,
sem desejar escutar mais nada e, como se tivesse provado algo amargo
por descuido, cuspiu alto de novo, e pela primeira vez em toda manhã
olhou para Laiévski com ódio. Sua animação e constrangimento haviam
passado, ele balançou a cabeça e falou alto:
— Senhores, o que estamos esperando, eu pergunto? Por que não
começamos?
Chechkóvski se entreolhou com os oficiais e deu de ombros.
— Senhores! — disse ele alto, sem se dirigir a ninguém. — Senhores!
Propomos que se reconciliem!
— Vamos acabar logo com as formalidades — disse Von Koren. —
Já falamos de reconciliação. Agora qual é a próxima formalidade? Mais
rápido, senhores, o tempo não espera.
— Mas ainda assim insistimos na reconciliação — disse
Chechkóvski, com a voz culpada, como uma pessoa que precisa se meter
em assuntos dos outros; ele corou, pôs a mão no coração e prosseguiu:
— Senhores, não vemos relação causal entre a ofensa e o duelo. A
ofensa, que às vezes por fraqueza humana infligimos uns nos outros, e o
duelo não têm nada em comum. Os senhores são universitários e cultos,
e, claro, veem por si próprios que o duelo é apenas uma formalidade
antiquada, vazia e tudo mais. Também vemos assim, senão não teríamos
vindo, e por isso não podemos permitir que em nossa presença as
pessoas atirem uma na outra e pronto. — Chechkóvski limpou o suor do
rosto e continuou: — Senhores, acabem com esse mal-entendido,
estendam a mão um para o outro e vamos para casa beber à paz. Palavra
de honra, senhores!
Von Koren ficou em silêncio. Laiévski, percebendo que estavam
olhando para ele, disse:
— Não tenho nada contra Nikolai Vassilievitch. Se ele acha que sou
culpado, estou disposto a me desculpar com ele.
Von Koren se ofendeu.
— É evidente, senhores — disse —, que desejam que o senhor
Laiévski volte para casa como um homem magnânimo e cavalheiro, mas
não posso lhes proporcionar esse prazer. Nem havia necessidade de
acordar cedo e sair dez verstas da cidade apenas para beber à paz, comer
uns petiscos e me explicar que um duelo é uma formalidade antiquada.
Um duelo é um duelo, e não se deve torná-lo mais bobo e falso do que
ele é de fato. Quero me bater!
Fez-se silêncio. O oficial tirou do estojo duas pistolas: deram uma a
Von Koren, a outra a Laiévski, e depois ocorreu uma perplexidade que
por um breve momento alegrou o zoólogo e seus padrinhos. Verificou-se
que, de todos os presentes, nenhum havia estado num duelo sequer uma
vez na vida e ninguém sabia com precisão como se portar e o que deviam
falar e fazer os padrinhos. Mas depois Boiko se lembrou e, sorrindo,
começou a explicar.
— Senhores, quem se recorda de como está descrito em Liérmontov?
— perguntou Von Koren rindo. — Em Turguêniev também, Bazárov
trocou tiros com alguém…
— Se recordar do quê? — indagou Ustimovitch impaciente, parando.
— Meçam a distância e pronto.
E ele deu uns três passos, demonstrando como é preciso medir.
Boiko mediu os passos, e o amigo desembainhou um sabre e arranhou a
terra nos pontos extremos para marcar a barreira.
Os oponentes, em meio a silêncio geral, ocuparam seus lugares.
“Toupeiras”, lembrou o diácono, sentado nos arbustos.
Chechkóvski falava algo, Boiko explicava algo de novo, mas Laiévski
não escutava ou, melhor dizendo, escutava mas não entendia. Na devida
hora, ele engatilhou e levantou a pistola pesada e fria com o cano para o
alto. Ele esqueceu de desabotoar o sobretudo e sentiu uma forte pressão
no ombro e debaixo da axila; o braço se levantou com tamanha falta de
jeito que era como se a manga fosse costurada com lata. Ele se lembrou
de seu ódio do dia anterior pela testa bronzeada e os cabelos
encaracolados e pensou que mesmo ontem, num momento de forte ódio
e fúria, ele não teria sido capaz de atirar numa pessoa. Temendo que a
bala de alguma forma por acaso acertasse Von Koren, ele erguia a pistola
cada vez mais alto e sentia que essa demonstração excessiva de
magnanimidade não era delicada nem magnânima, mas não conseguia
nem podia fazer diferente. Olhando para o rosto pálido, sorridente e
zombeteiro de Von Koren, que, evidentemente, desde o começo tinha
certeza de que o oponente atiraria no ar, Laiévski pensou que agora,
graças a Deus, tudo terminaria e que ele só precisava apertar o gatilho
mais forte…
Sentiu um forte repuxo no ombro, o tiro ressoou e nas montanhas
respondeu o eco: pa-tah!
Von Koren também engatilhou a arma e olhou para o lado de
Ustimovitch, que caminhava como antes, com a mão para trás e sem
prestar atenção a nada.
— Doutor — disse o zoólogo —, por gentileza, não fique andando
como um pêndulo. O senhor reflete nos meus olhos.
O médico parou. Von Koren começou a mirar em Laiévski.
“Acabou!”, pensou Laiévski.
O cano da pistola apontado direto para o rosto, a expressão de ódio e
desprezo na pose e em toda a figura de Von Koren, aquele assassinato
que realizaria uma pessoa de bem em pleno dia e na presença de outras
pessoas de bem, aquele silêncio, e a força desconhecida que obrigava
Laiévski a ficar parado, e não sair correndo — como tudo isso é
misterioso, incompreensível e terrível! O tempo que Von Koren passou
fazendo pontaria pareceu a Laiévski mais longo do que a noite. Ele
olhou para os padrinhos suplicante; eles não se mexiam e estavam
pálidos.
“Atire mais rápido!”, pensou Laiévski e sentia seu rosto pálido,
trêmulo e lamentável despertar ainda mais ódio em Von Koren.
“Agora vou matá-lo”, pensava Von Koren, fazendo mira na testa e já
sentindo o gatilho com o dedo. “Sim, claro, vou matá-lo…”
— Ele vai matá-lo! — escutou-se de repente um grito desesperado
em algum lugar muito perto.
Imediatamente ressoou o tiro. Ao ver que Laiévski estava parado no
mesmo lugar e não havia caído, todos olharam para o lado de onde se
escutara o grito, e viram o diácono. Pálido, com o cabelo grudado na
testa e nas bochechas, todo molhado e sujo, ele estava de pé na outra
margem, no milho, e de forma meio estranha sorria e acenava com o
chapéu molhado. Chechkóvski riu de alegria, começou a chorar e se
afastou…
XX

Um pouco mais tarde, Von Koren e o diácono se juntaram perto da


pontezinha. O diácono estava agitado, com a respiração pesada e evitava
olhá-lo nos olhos. Envergonhava-se tanto por seu medo quanto por sua
roupa suja e molhada.
— Eu achei que o senhor queria matá-lo… — murmurou. — Como
isso é contrário à natureza humana! A que ponto é antinatural!
— Mas como veio parar aqui? — perguntou o zoólogo.
— Nem pergunte! — o diácono agitou a mão. — Foi o demônio que
me tentou: vá, vá… Então eu vim e quase morro de susto no milho. Mas
agora, graças a Deus, graças a Deus… Estou extremamente satisfeito
com o senhor — murmurou o diácono. — Nosso avô tarântula também
vai ficar satisfeito… É uma piada, uma piada! Eu só lhe peço
encarecidamente, não conte para ninguém, senão a chefia me corta a
cabeça. Vão dizer: o diácono era padrinho.
— Senhores! — disse Von Koren. — O diácono pede que não
contem para ninguém que o viram aqui agora. Pode acontecer um
inconveniente.
— Como isso é contrário à natureza humana! — o diácono suspirou.
— Peço perdão, mas sua expressão me fez pensar que o senhor sem
dúvida o mataria.
— Fiquei muito tentado a dar cabo desse pilantra — disse Von
Koren —, mas o senhor gritou bem na hora e eu errei o alvo. Todo esse
procedimento, no entanto, é repugnante para quem não tem o hábito e
me deixou exausto, diácono. Fiquei terrivelmente fraco. Vamos…
— Não, permita-me ir a pé. Preciso me secar, senão fico molhado e
vegetando.
— Bom, o senhor é quem sabe — disse o zoólogo enfraquecido, com
uma voz lânguida, subindo na carruagem e fechando os olhos. — O
senhor é quem sabe…
Enquanto andavam perto das carruagens e subiam, Kerbalai estava
parado perto da estrada e, segurando a barriga com as duas mãos, fazia
reverências profundas e mostrava os dentes; ele pensava que os senhores
haviam vindo desfrutar a natureza e beber chá, e não entendia por que
estavam subindo nas carruagens. Diante do silêncio geral, o comboio
começou a andar, e perto do dukhan só restou o diácono.
— Ir dukhan, beber chá — disse ele para Kerbalai. — Mim querer
comer.
Kerbalai falava russo bem, mas o diácono achava que o tártaro o
entenderia melhor se falasse com ele num russo capenga.
— Fritar ovos, dar queijo…
— Venha, venha, padre — disse Kerbalai, fazendo uma reverência.
— Vou dar tudo isso… Tem queijo, tem vinho… Coma o que quiser.
— Como se diz Deus em tártaro? — perguntou o diácono entrando
no dukhan.
— Seu Deus e meu Deus não têm diferença — disse Kerbalai, sem
entendê-lo. — O Deus de todos é o mesmo, as pessoas que são
diferentes. Uns são russos, uns são turcos, uns são ingleses — as pessoas
são muitas, mas Deus é um só.
— Certo, senhor. Se todos os povos reverenciam um só Deus, por
que é que vocês, muçulmanos, olham para os cristãos como eternos
inimigos?
— Para que ficar bravo? — disse Kerbalai, agarrando a barriga com
as duas mãos. — Você é padre, eu sou muçulmano, você diz: “quero
comer”, eu dou comida… Só os ricos separam qual é o seu Deus, qual é
o meu, para os pobres tanto faz. Coma, por favor.
Enquanto essa conversa teológica acontecia no dukhan, Laiévski ia
para casa e se lembrava de como fora terrível para ele viajar ao
amanhecer, quando a estrada, os rochedos e as montanhas estavam
molhados e escuros e o futuro incerto parecia horrível como um abismo
em que não se via o fundo, e agora as gotas de chuva que pendiam na
grama e nas pedras cintilavam pelo sol como diamantes, a natureza
sorria alegremente, e o futuro terrível ficava para trás. Ele lançava
olhares para o rosto carrancudo e choroso de Chechkóvski, e adiante
para as duas carruagens nas quais estavam Von Koren, seus padrinhos e
o médico, e lhe parecia que era como se todos estivessem voltando de
um cemitério onde haviam acabado de enterrar uma pessoa difícil,
insuportável, que atrapalhava a vida de todos.
“Está tudo acabado”, pensava ele sobre seu passado, passando os
dedos cuidadosamente no pescoço.
No lado direito do pescoço, perto do colarinho, aparecera um
pequeno inchaço, longo e da espessura do mindinho, e estava dolorido,
como se ele tivesse passado um ferro pelo pescoço. Era a lesão da bala.
Depois, ao chegar em casa, se arrastou um dia longo, estranho, doce
e enevoado, como um devaneio. Como alguém liberado da prisão ou do
hospital, ele examinava objetos há muito conhecidos e se surpreendia
que as mesas, as janelas, a cadeira, a luz e o mar despertassem nele uma
alegria viva, infantil, como ele havia muito, muito tempo não
experimentava. Nadiejda Fiódorovna, pálida e extremamente
emagrecida, não entendia sua voz dócil e seu andar estranho; ela se
apressou a contar a ele tudo o que havia acontecido com ela… Achava
que ele provavelmente escutava mal e não a entendia e que, se soubesse
tudo, a amaldiçoaria e mataria, mas ele a escutava, fazia carinho no rosto
e nos cabelos dela, e dizia:
— Eu não tenho mais ninguém além de você…
Depois eles passaram muito tempo sentados no jardinzinho,
apertados um contra o outro e calados, ou então sonhando em voz alta
com sua feliz vida futura, falavam frases curtas, entrecortadas, e parecia a
ele que nunca havia falado de forma tão longa e bonita antes.
XXI

Passaram-se pouco mais de três meses.


Chegou o dia que Von Koren designara para a partida. Desde cedo
caía uma chuva graúda, fria, soprava um vento a nordeste e no mar
subiam ondas fortes. Diziam que naquele clima dificilmente o vapor
partiria. Pelo horário marcado, ele devia chegar por volta das nove, mas
Von Koren, que andara na margem ao meio-dia e depois do almoço, não
avistara com o binóculo nada além de ondas cinzentas e a chuva que
encobria o horizonte.
No fim do dia a chuva parou e o vento começou a se acalmar
perceptivelmente. Von Koren já se reconciliara com a ideia de que não
partiria naquele dia, e se sentou para jogar xadrez com Samóilenko; mas
ao escurecer, o ordenança comunicou que no mar haviam aparecido
umas luzes e que tinham visto um foguete.
Von Koren começou a se apressar. Pôs a bolsa atravessada no ombro,
beijou Samóilenko e o diácono, deu a volta em todos os quartos sem a
menor necessidade, despediu-se do ordenança e da cozinheira e saiu
com um sentimento de que havia esquecido alguma coisa na casa do
médico ou no seu apartamento. Na rua, foi andando ao lado de
Samóilenko, atrás deles ia o diácono com uma caixa, e atrás de todos o
ordenança com duas malas. Apenas Samóilenko e o ordenança
discerniam as pequenas luzes baças no mar, enquanto o resto olhava para
a escuridão e não via nada. O vapor havia parado longe da margem.
— Mais rápido, mais rápido — se apressava Von Koren. — Estou
com medo de que ele vá embora!
Passando pela casa de três janelas para a qual se mudara Laiévski
logo depois do duelo, Von Koren não se conteve e espiou pela janela.
Laiévski, curvado, estava sentado à mesa, de costas para a janela, e
escrevia.
— Fico assombrado — disse o zoólogo em voz baixa. — Como se
corrigiu!
— Sim, é digno de assombro — suspirou Samóilenko. — Fica assim
desde a manhã até a noite, sentado, sempre sentado e trabalhando. Quer
pagar as dívidas. E vive pior que um mendigo, irmão!
Passaram meio minuto em silêncio. O zoólogo, o médico e o
diácono, parados perto da janela, continuavam olhando para Laiévski.
— E no fim não foi embora daqui, o coitado — disse Samóilenko. —
Lembra-se de como ele estava empenhado?
— Sim, se consertou bem — repetiu Von Koren. — O casamento
dele, esse trabalho o dia inteiro por um pedaço de pão, uma certa nova
expressão no rosto dele e até o andar: tudo é a tal ponto extraordinário
que nem sei que nome dar — o zoólogo pegou Samóilenko pela manga
e continuou, com uma agitação na voz: — Diga a ele e à esposa que ao ir
embora eu estava surpreendido com eles, e lhes desejava tudo de bom…
e peça a ele que, se for possível, não guarde más lembranças de mim. Ele
me conhece. Ele sabe que, se na época eu previsse essa mudança, seria
capaz de me tornar o melhor amigo dele.
— Passe você na casa dele e se despeça.
— Não. É constrangedor.
— Por quê? Sabe Deus se vocês vão se encontrar de novo.
O zoólogo pensou um pouco e disse:
— É verdade.
Samóilenko bateu baixinho com o dedo na janela. Laiévski teve um
sobressalto e olhou para trás.
— Vánia, Nikolai Vassilievitch deseja se despedir de você — disse
Samóilenko. — Ele está indo embora.
Laiévski se levantou da mesa e foi até a entrada para abrir a porta.
Samóilenko, Von Koren e o diácono entraram na casa.
— É só um minutinho — começou o zoólogo, tirando as galochas na
entrada e já lamentando ter cedido ao sentimento e entrado sem convite.
“Estou importunando”, pensou ele, “e isso é uma burrice.” — Perdão por
incomodá-lo — disse ele, entrando depois de Laiévski em seu quarto —,
mas estou indo embora daqui a pouco, e me senti atraído para sua casa.
Só Deus sabe se vamos nos ver de novo outra vez.
— Fico muito feliz… Peço humildemente — disse Laiévski e
desajeitadamente pôs cadeiras para os convidados, como se quisesse
obstruir o caminho deles, e parou no meio do cômodo, esfregando as
mãos.
“Foi erro não deixar as testemunhas do lado de fora”, pensou Von
Koren, e falou com firmeza: — Não guarde más lembranças de mim,
Ivan Andrêitch. Esquecer o passado, claro, é impossível, ele é triste
demais, e não vim aqui para pedir desculpas ou afirmar que não tenho
culpa. Agi com sinceridade e minhas convicções não mudaram desde
então. É verdade, vejo agora, que para minha grande alegria eu estava
enganado em relação ao senhor, mas a gente tropeça até numa estrada
lisa, e esse é o destino humano: se você não se engana no principal, vai
se enganar nos detalhes. Ninguém sabe a verdade de fato.
— Sim, ninguém sabe a verdade… — disse Laiévski.
— Bem, adeus… Eu lhe desejo tudo de bom.
Von Koren estendeu a mão para Laiévski; ele a apertou e fez uma
reverência.
— Não guarde más lembranças de mim — disse Von Koren. —
Mande saudações à sua esposa e diga que lamento muito não poder me
despedir dela.
— Ela está em casa.
Laiévski se aproximou da porta e disse para o outro cômodo:
— Nádia, Nikolai Vassilievitch quer se despedir de você.
Nadiejda Fiódorovna entrou; ela parou perto da porta e olhou
timidamente para os convidados. Seu rosto exprimia culpa e terror, e ela
segurava os braços, como uma aluna do ginásio que está levando uma
bronca.
— Estou indo embora, Nadiejda Fiódorovna — disse Von Koren —
e vim me despedir.
Ela estendeu a mão para ele indecisa, e Laiévski fez uma reverência.
“E no entanto, como os dois estão lamentáveis!”, pensou. “Conseguir
essa vida não sai barato para eles.” — Vou para Moscou e São
Petersburgo — comentou —, não precisam que mande algo de lá?
— Mas o quê? — disse Nadiejda Fiódorovna, e trocou olhares
irrequietos com o marido. — Acho que nada…
— Sim, nada… — disse Laiévski, esfregando as mãos. — Mande
lembranças.
Von Koren não sabia o que mais era possível e necessário dizer, e
antes, ao entrar, pensava que diria muitas coisas boas, calorosas e
significativas. Ele apertou a mão de Laiévski e de sua esposa em silêncio
e saiu da casa deles com uma sensação pesada.
— Que gente! — dizia o diácono a meia-voz, andando atrás. — Meu
Deus, que gente! De fato a mão de Deus plantou este vinhedo! Senhor,
senhor! Um venceu milhares, e outro venceu a escuridão. Nikolai
Vassilievitch — disse ele entusiasmado —, saiba que hoje o senhor
venceu o maior dos inimigos da humanidade: o orgulho!
— Chega, diácono! Que raio de vencedores somos eu e ele? Os
vencedores olham feito águias, e ele é lamentável, tímido, retraído, fica
fazendo reverências como um bobo chinês e eu… eu estou triste.
Atrás escutaram-se passos. Era Laiévski que os alcançava para
acompanhá-los. No cais estava o ordenança com as duas malas, e um
pouco mais distante, quatro remadores.
— Só que está ventando bem… brr! — disse Samóilenko. — No mar
deve estar a maior tempestade: ai, ai! Não é boa hora para viajar, Kólia.
— Não tenho medo de ficar enjoado.
— Não é isso… Será que esses tontos não vão derrubar você no mar?
O certo era ir na lancha do agente. Onde está a lancha do agente? —
gritou para os remadores.
— Já saiu, Vossa Excelência.
— E a da alfândega?
— Também saiu.
— Por que não anunciaram? — irritou-se Samóilenko. — Seus
idiotas!
— Tanto faz, não se preocupe… — disse Von Koren. — Bem, adeus.
Deus lhe guarde.
Samóilenko abraçou Von Koren e o benzeu três vezes.
— Mas não esqueça, Kólia… Escreva… Vamos esperar por você na
próxima primavera.
— Adeus, diácono — disse Von Koren, apertando a mão do diácono.
— Obrigado pela companhia e pelas boas conversas. Quanto à
expedição, pense.
— Sim, meu Deus, mesmo que seja para o fim do mundo! — riu o
diácono. — Por acaso sou contra?
Von Koren reconheceu Laiévski na escuridão e estendeu a mão para
ele em silêncio. Os remadores já estavam postados embaixo e seguravam
o barco, que se batia contra a estaca, ainda que o dique o protegesse das
ondas grandes. Von Koren desceu pelo portaló, saltou no barco e se
sentou perto do leme.
— Escreva! — gritou Samóilenko para ele. — Cuide da saúde!
“Ninguém sabe qual é a verdade de fato”, pensava Laiévski,
levantando a gola do sobretudo e enfiando as mãos na manga.
O barco contornou o cais com agilidade e saiu para mar aberto. Ele
desapareceu nas ondas, mas imediatamente saiu de um profundo vale e
deslizou para uma colina alta, de forma que era possível distinguir as
pessoas e até os remos. O barco percorreu uns três sájens e foi jogado
para trás uns dois sájens.
— Escreva! — gritou Samóilenko. — Vai ser uma viagem difícil com
esse tempo!
“Sim, ninguém sabe qual é a verdade de fato…”, pensou Laiévski,
olhando com tristeza para o mar escuro e agitado.
“O barco é jogado para trás”, pensou, “dá dois passos para a frente e
um passo para trás, mas os remadores são obstinados, remam sem cansar
e sem temer as ondas altas. O barco vai sempre em frente e em frente,
agora já não o vemos, mas passa uma meia hora e os remadores vão ver
claramente as luzes do vapor, e uma hora depois já vão estar no portaló.
Na vida é a mesma coisa… As pessoas dão dois passos para a frente e
um para trás na busca pela verdade. O sofrimento, os erros e o tédio da
vida as joga para trás, mas a sede pela verdade e a vontade obstinada
empurram para a frente e para a frente. E quem sabe? Pode ser que
naveguem até chegar à verdade de fato…”
— Ade-e-eus! — gritou Samóilenko.
— Não dá para ver nem ouvir — disse o diácono. — Boa viagem!
Começou a chuviscar.
COPYRIGHT THE ART OF THE NOVELLA © 2014 MELVILLE HOUSE PUBLISHING
COPYRIGHT SÉRIE A ARTE DA NOVELA © 2014 GRUA LIVROS

Essa tradução foi publicada após acordo firmado com a Melville House
Publishing, EUA. A série The Art of The Novella e sua identificação visual
são propriedades da Melville House Publishing, USA.

PRIMEIRA PUBLICAÇÃO: 1891, NO JORNAL NOVOYE VREMYA DE SÃO PETERSBURGO


© UNIVERSITY OF NORTH CAROLINA PRESS

DESIGN DA SÉRIE
DAVID KONOPKA

REVISÃO
THAÍS TOTINO RICHTER

VERSÃO DIGITAL
ANTONIO HERMIDA

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PINHEIROS
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Tel: (011) 4314-1500

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T244d
Tchekhov, Anton Pavlovitch, 1860-1904
O duelo / Anton Tchekhov ; tradução Cecília Rosas. - 1. ed. - São Paulo :
Grua, 2024.
Tradução de: дуэль
ISBN 9786588410493
1. Novela russa. I. Rosas, Cecília. II. Título.

24-88754 CDD: 891.73


CDU: 82-32(470+571)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643


1. Os nomes na Rússia são compostos por nome, patronímico e
sobrenome, sempre nesta ordem. Neste caso, a personagem seja chama
Aleksandr Davídovitch Samóilenko; o partronímico Dav;idovitch
ocasionalmente é reduzido para Davíditch como tratamento de
intimidade. (Todas as notas são da tradutora)
[««]

2. Vánia é o apelido do usado para o nome Ivan.


[««]

3. Referência a Herbert Spencer, filósofo inglês.


[««]

4. Antiga medida russa, equivalente a 1,09 hectare.


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5. Sopa de repolho.
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6. Personagens, respectivamente, de Púchkin, Liérmontov, Byron e


Turguêniev, que estabelecem a linhagem do tipo literário do “homem
supérfluo”.
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7. Carroça do Cáucaso.
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8. Referência à casa da baba-iagá nos contos de fada, que se sustenta


sobre pés de galinha.
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9. Medalhão usado na Igreja Ortodoxa, em geral com a imagem da
Virgem Maria.
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10. Verso de Ievguêni Oniéguin, romance de Aleksandr Púchkin.


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11. Tipo de chicote feito de tiras de couro


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12. As notas escolares na Rússia vão até o cinco.


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13. Forma depreciativa de se referir aos judeus.


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14. Personagem do escritor russo Nikolai Leskov (1831-1895).


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