Anton Tchekhov - O-Violino de Rothschild
Anton Tchekhov - O-Violino de Rothschild
Anton Tchekhov - O-Violino de Rothschild
O Violino de Rothschild
ePub r1.0
I.S. 01.02.2020
Título original: Скрипка Ротшильда
Anton Tchekhov, 1894
Tradução: Noé Silva
A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase só por velhos que
morriam tão raro que isso até causava desgosto. Poucas eram também as
encomendas de caixão do hospital e da cadeia. Em suma, os negócios iam
pessimamente. Se Iákov Ivanov exercesse seu ofício em uma capital de
província, por certo teria casa própria e seria chamado por Iákov
Matviêitch; na cidadezinha tratavam-no apenas por Iákov ou, por alguma
razão, Bronze, o seu apodo de rua; vivia tão pobremente como um simples
mujique, em uma pequena e velha isbá de um só compartimento, com
Marfa, o forno, a cama de casal, os caixões, o banco de carpinteiro e todos
os utensílios domésticos.
Iákov fabricava ataúdes bons, resistentes. Para mujiques ou burgueses
baseava-se no seu próprio tamanho, e nisso nunca tivera dissabores, pois,
embora já contasse setenta anos, em nenhum lugar, inclusive na cadeia,
havia alguém mais alto e robusto que ele. Para nobres e mulheres, fazia os
caixões sob medida, tirada com uma régua de ferro. Recebia as encomendas
de barquinha de muito mau grado, aprontando-as sem medir as crianças,
com desprezo, e ao receber o pagamento, dizia sempre:
― Para ser franco, não gosto de perder tempo com tais ninharias.
Conseguia um pequeno rendimento adicional com o seu violino. Nas
festas de casamento da cidade, era presença quase obrigatória da orquestra
de judeus, dirigida pelo estanhador Moissiêi Ilitch Cháckhkies, que ficava
com mais da metade da renda. Como Iákov tocava muito bem,
principalmente canções russas, às vezes Cháckhkies convidava-o a juntar-se
a eles, por cinquenta copeques por dia, fora as gorjetas dos convidados.
Quando Bronze se sentava na orquestra, seu rosto logo se avermelhava e
começava a suar; em meio ao calor e ao cheiro sufocante de alho o violino
rangia, enquanto na sua orelha direita rouquejava o contrabaixo e na
esquerda plangia a flauta de um judeu ruivo e magricela, com uma
verdadeira rede de veias rubras e azuis no rosto e o sobrenome do
conhecido milionário: Rothschild. E esse maldito judeu dava um jeito de
tocar até a música mais alegre em tom queixoso. Sem qualquer razão
aparente, pouco a pouco Iákov foi tomando ódio e desprezo pelos judeus e,
em particular, por Rothschild; começou a implicar com ele, a xingá-lo e,
certa vez, até quis bater-lhe; Rothschild ofendeu-se e disse, encarando-o
com ferocidade:
― Se não o respeitasse pelo seu talento, há muito já o teria atirado pela
janela.
Dito isso, começou a chorar. Assim, Bronze era convidado apenas às
vezes, nos casos de extrema necessidade, quando faltava um dos judeus.
Iákov nunca estava de bom humor, pois sofria constantemente de
imensos prejuízos. Por exemplo, aos domingos e feriados era proibido
trabalhar; segunda-feira era dia de aziago, e desse modo, em um ano
contavam-se uns duzentos dias que ele, a contragosto, precisava passar de
braços cruzados. Que prejuízo não tinha com isso! O simples fato de
alguém realizar uma boda sem música ou de Cháckhkies não convidar
Iákov também significava prejuízo. Durante dois anos o inspetor de polícia
esteve doente, definhando, e Iákov esperou impaciente pela sua morte, mas
ele foi tratar-se na capital da província e morreu lá. Isso representou um
prejuízo de uns dez rublos no mínimo, pois a encomenda haveria sido de
um caixão caro, com brocado. Era à noite principalmente que a ideia dos
prejuízos atormentava Iákov; ele deitava o violino ao seu lado no leito e,
pensando em uma infinidade de tolices, tocava-lhe as cordas; o instrumento
soava no escuro, trazendo-lhe certo conforto.
Em seis de maio do ano passado repentinamente Marfa ficou doente. A
velha ofegava, bebia muita água e cambaleava mas, apesar de tudo, de
manhã acendeu o forno e foi buscar água. À tarde, porém, arriou-se no leito.
Iákov tocou violino o dia inteiro; ao cair da noite pegou o livro em que
diariamente assentava os seus prejuízos; de tédio, pôs-se a fazer o balanço
do ano. Resultado: os prejuízos ultrapassavam mil rublos. Isso deixou-o tão
acabrunhado que ele lançou o ábaco ao chão e pisoteou-o. Depois, pegou-o
novamente e realizou cálculos demorados, com suspiros profundos e tensos.
Seu rosto estava rubro e molhado de suor. Ele pensava naqueles mil rublos
perdidos, calculando que, se estivessem no barco, só de juros renderiam
quarenta rublos por ano, no mínimo. Portanto esses quarenta rublos também
são prejuízos. Em suma, era prejuízo por todo lado.
― Iákov! ― chamou-o Marfa inesperadamente. ― Eu estou morrendo!
Ele voltou-se para a esposa. Seu rosto róseo de febre estava
extraordinariamente límpido e feliz. Bronze, acostumado a vê-la sempre
pálida, temerosa e triste, ficou desconcertado. Parecia que a mulher estava
mesmo a morrer, e contente por enfim ir-se para sempre daquela isbá, dos
caixões, de Iákov... Ela olhava para o teto e movia os lábios com o
semblante feliz, como se visse a morte, sua redentora, e cochichasse com
ela.
Já raiava o dia, e o crepúsculo resplandecia pela janela.
Enquanto olhava para a velha, Iákov por alguma razão lembrou-se de
que provavelmente jamais lhe fizera um carinho ou se compadecera dela,
nunca tivera o impulso de comprar-lhe um lencinho que fosse ou de trazer-
lhe uma guloseima de alguma festa, mas apenas lhe falava aos gritos,
injuriava-a pelos prejuízos e arrojava-se a ela de punhos cerrados; nunca lhe
batera, é verdade, mas, apesar de tudo, assustava-a, e ela todas as vezes
ficava transida de medo. Sim, ele a proibiu até mesmo de beber chá, pois já
sem isso os gastos eram grandes, e ela bebia apenas água quente. Iákov
compreendeu então por que Marfa tinha aquele rosto tão estranho, tão feliz,
e encheu-se de um pavor gélido.
Esperou o amanhecer, depois pediu um cavalo emprestado a um vizinho
e levou Marfa ao hospital. Ali encontrou pouca gente na fila e assim não
teve de esperar muito, só umas três horas. Para sua imensa satisfação seriam
atendidos não pelo médico, doente, e sim pelo enfermeiro Maxim
Nikolaitch, um velho que, embora ébrio e brigão, para o povo da cidade
entendia mais das coisas que seu superior.
― Desejamos-lhe saúde ― disse Iákov, introduzindo a velha no
consultório. ― Perdão, Maxim Nikolaitch, sempre o incomodamos com
alguma coisinha de nada. Como pode ver, a minha mulherzinha ficou
doente. A companheira de minha vida, como se diz, com o perdão da
expressão...
De cenho encrespado, cofiando as suíças, o enfermeiro pôs-se a
examinar a velha, arqueada no banco; magra, com o seu nariz pontudo e a
boca aberta, lembrava de perfil uma ave com sede.
― Hum... Pois é... ― disse o enfermeiro devagar e suspirou. ― Gripe
ou, quem sabe, febre tifoide. Há um andaço de tifo na cidade. Que posso
dizer? A velhinha viveu a sua vida, com a graça de Deus... Quantos anos
tem?
― Vai fazer setenta no ano que vem, Maxim Nikolaitch.
― Pois então? A velhinha viveu a sua vida. Agora chegou a sua hora.
― Muito bem, o senhor está certo, Maxim Nikolaitch ― disse-lhe
Iákov por delicadeza ―, e nós lhe somos imensamente gratos pela
gentileza, mas permita-me dizer-lhe: até um inseto deseja viver.
― É claro, é claro ― disse o enfermeiro com um tom tal que dava a
impressão de que a vida e a morte da velha dependiam dele. ― Pois bem,
meu caro, tu lhe aplicarás uma compressa fria e darás estes polvilhos duas
vezes ao dia. E agora, até logo, bonjour.
Pela expressão do seu rosto, Iákov viu que o caso era grave e que
polvilho algum ajudaria; compreendeu que Marfa morreria logo, de uma
hora para outra. Tocou o enfermeiro levemente pelo cotovelo, piscou-lhe
um olho e disse a meia voz:
― Aplique-lhe ventosas, Maxim Nikolaitch.
― Não tenho tempo, não tenho tempo, meu caro. Pega a tua cara-
metade e vai-te com Deus. Até à vista.
― Faça essa grande caridade ― implorou Iákov. ― O senhor próprio
sabe que se fosse, digamos, alguma dor na barriga ou no peito, então aí sim,
polvilhos e gotas, mas ela está constipada! E, em caso de constipação,
primeiro se faz uma sangria, Maxim Nikolaitch.
Mas o enfermeiro já chamara o próximo, e no consultório entrou uma
camponesa com um menino.
― Vai-te, vai-te... ― disse ele a Iákov, encrespando o sobrolho. ― Não
tens por que vir com caraminholas.
― Nesse caso, aplique-lhe então pelo menos sanguessugas! Eu lhe serei
grato até o fim da vida!
O enfermeiro irritou-se e gritou:
― Cala essa boca! C-cabeça-dura...
Iákov também se irritou e ficou todo vermelho, porém não disse uma
palavra; segurou Marfa pelo braço e levou-a embora. Da carroça olhou para
o hospital com raiva e desprezo, e disse:
― Belas figuras, hem? Em um rico por certo ele haveria aplicado
ventosas, mas teve dó de gastar sanguessugas em um pobre. Carrascos!
Ao entrar em casa, Marfa ficou de pé uns dez minutos, amparada no
forno. Achava que, se deitasse, Iákov começaria a falar dos prejuízos e a
bradar que ela passava o tempo todo deitada e não queria trabalhar.
Enquanto isso, Iákov olhava-a com desgosto e lembrava-se de que o dia
seguinte seria de João, o Teólogo, e o outro, de Nicolau, o Milagroso; em
seguida viria um domingo, e depois uma segunda-feira, dia aziago. Durante
quatro dias não poderia trabalhar e Marfa provavelmente morreria em um
deles; assim, tinha de fazer o caixão ainda naquele dia. Ele tomou a régua
de ferro, acercou-se da velha e mediu-a.
Depois ela deitou-se; ele benzeu-se e iniciou o trabalho. Quando o
caixão ficou pronto, Bronze pôs os óculos e assentou no livro:
“Marfa Ivánovna, um caixão ― dois rublos e quarenta copeques. ”
E suspirou. A valha jazia o tempo todo em silêncio, os olhos fechados.
Porém, quando caiu a noite, ela de repente chamou o marido.
― Tu te lembras, Iákov? ― perguntou, olhando-o feliz. ― Tu te
lembras, cinquenta anos atrás Deus concedeu-nos uma menininha loira. Nós
dois então passávamos muito tempo à margem do rio e cantávamos...
Debaixo de um salgueiro. ― E após um sorriso de amargura, acrescentou:
― Pois nossa menina morreu.
Iákov forçou a memória mas não conseguiu lembrar-se nem da criança
nem da árvore:
― Estás delirando ― respondeu-lhe.
Depois veio o sacerdote para dar-lhe a comunhão e os santos óleos.
Mais tarde Marfa começou a balbuciar coisas ininteligíveis e pouco antes
do amanhecer expirou.
As velhas da vizinhança banharam-na, vestiram-na e colocaram no
caixão.
Depois veio o sacerdote para dar-lhe a comunhão e os santos óleos.
Mais tarde Marfa começou a balbuciar coisas ininteligíveis e pouco antes
do amanhecer expirou.
As velhas da vizinhança banharam-na, vestiram-na e a colocaram no
caixão. Iákov, para não ter despesas com o sacristão, leu ele próprio o Livro
dos Salmos; a sepultura saiu-lhe de graça, pois o vigia do cemitério era seu
compadre. Quatro homens carregaram o caixão até a cova, não por
dinheiro, apenas por respeito. Velhas, mendigos e dois iuródivie* formavam
o préstito fúnebre, à cuja passagem as pessoas persignavam-se
piedosamente... E Iákov ficou muito satisfeito por tudo haver saído tão
digno, decente e barato, a contento de todos. Ao despedir-se de Mafra, ele
tocou o ataúde e pensou: "Bom trabalho!"
Porém, no retorno do campo-santo foi tomado por profunda amargura.
Sentiu-se indisposto: tinha a respiração febril e difícil, as pernas bambas e
muita sede. Ainda por cima, vinham-lhe aqueles pensamentos todos.
Recordou-se novamente de que em sua vida inteira jamais se compadecera
de Marfa, nem lhe fizera um carinho sequer. Aqueles cinquenta e dois anos
passados por eles sob o mesmo teto arrastaram-se, esticaram-se no seu
decurso, luas ele nem uma única vez pensou nela ou prestou-lhe atenção,
como se ela fosse um cão ou um gato. Ela, que todos os dias acendia o
forno, fazia comida, ia buscar água, rachava lenha, dormia ao seu lado e,
quando ele voltava bêbado das festas, pendurava o violino à parede sempre
com veneração e punha a ele na cama; e tudo isso sem dizer nada, tímida e
solícita.
Rothschild vinha agora ao encontro de Iákov, com sorrisos e
reverências.
― Pois eu o procurava, titio! disse. Moissiêi Ilitch manda-lhe saudações
e pede que vá vê-lo agora mesmo.
Iákov não queria saber de nada. Sentia vontade de chorar.
― Deixa-me em paz! ― disse, e prosseguiu o caminho.
― Mas como é que pode? inquietou-se Rothschild, cortando-lhe a
frente. -- Moissiêi Ilitch se ofenderá. Ele o chama agora mesmo!
Iákov achou repugnante que o judeu arquejasse, piscasse os olhos e
tivesse tantas sardas ruivas. Olhava com asco o seu casaco verde com
remendos escuros e toda a sua figura frágil e magricela.
― Por que me aborreces, cheiro de alho? ― gritou Iákov. ― Deixa-me
em paz! O judeu zangou-se e também gritou:
― Por favor, mais baixo, senão o senhor voará por cima daquela cerca!
― Some da minha frente! ― pôs-se Iákov a gritar e arrojou-se a ele, de
punhos cerrados. ― Esses porcos não dão sossego a ninguém.
Rothschild ficou aterrorizado, agachou-se e começou a brandir as mãos
sobre a cabeça, como se estivesse defendendo-se de golpes; depois, ergueu-
se de um pulo e pôs-se a correr. Na carreira ele saltava, levantava os braços,
e era possível ver os tremidos do seu tórax comprido e magro. Alguns
meninos alegraram-se do ensejo e atiraram-se no seu encalço, gritando:
"Judeu! Judeu!" Cães seguiram-nos, ladrando. Alguém deu uma gargalhada,
assobiou, e eles pegaram a latir mais alto e mais em uníssono... Por certo,
um deles mordera Rothschild, porque se ouviu, em seguida, um grito
lancinante, desesperado.
Iákov vagou pelo pasto, caminhou pela raia da cidade a esmo, e os
meninos gritavam: "Lá vem o Bronze! Lá vem o Bronze!" Chegou por fim
ao rio. Velozes frangos-d ‘água piando chapinhavam a superfície; patos
grasnavam. O sol queimava e a tremulina na água era tal que até molestava
os olhos. Iákov seguiu por uma vereda ao longo da margem e viu uma
mulher gorda e rubicunda à saída de uma casa de banhos; pensou: "Puah,
que lontra!" Não longe dela, alguns meninos apanhavam caranguejos para
os petiscos; assim que o avistaram começaram a gritar com maldade:
"Bronze! Bronze!" Mais adiante viu um velho salgueiro copado e com uma
grande caverna no tronco e ninhos de corvo entre os galhos... Então de
repente veio viva à lembrança de Iákov a criancinha loira e também a
árvore de que Marfa falara. Sim, aquele era o tal salgueiro ― verdejante,
silencioso, triste... Como envelheceu, o pobre!
Sentou-se à sua sombra e mergulhou nas recordações. Na outra margem,
prado que as águas da cheia costumavam inundar, houvera em outros
tempos um vasto bosque de bétulas, e sobre a colina nua do horizonte então
azulejava um pinhal velho e revelho. Pelo rio, circulavam barcas. Agora
estava deserto; na outra margem erguia-se uma única bétula, novinha e
esbelta como uma moça, enquanto no rio havia tão somente patos e gansos
e nem parecia que um dia ele fora singrado por barcas. A impressão era de
que, comparado com antes, havia até menos gansos. Iákov cerrou os olhos;
bandos imensos deles, voando um de encontro a outro, branquejaram na sua
imaginação.
Ele estava perplexo: como é que não fora uma vez sequer ao rio
naqueles quarenta, cinquenta anos, e, se alguma vez ali estivera, como pôde
não haver-lhe prestado atenção? Pois aquele era um rio considerável, nada
desprezível; poderia pescar ali regularmente, vender o pescado a
comerciantes, funcionários públicos e ao copeiro da estação e depois
depositar o dinheiro no banco; assim como tocar violino em algum barco
que navegasse de uma herdade a outra, e os passageiros de todas as
camadas pagariam pela música; outra possibilidade era pôr de novo barcas
no rio, coisa melhor que fazer caixões; por fim, poderia criar gansos, abatê-
los e, no inverno, enviá-los para Moscou; só com a penugem, certamente
ganharia uns dez Rublos por ano. Mas ele deixara escapar a oportunidade,
não fizera nada daquilo. Que prejuízo! Ah, que prejuízo! E, se pescasse,
tocasse violino e criasse gansos, tudo junto, que capital não teria juntado!
Aquilo porém não acontecera nem em sonhos; a vida não lhe trouxera
nenhum proveito, nenhum gozo, fora desperdiçada inteiramente; já não
tinha nada pela frente e, quando olhava para o passado, não via nada além
de prejuízos, e tais, que até sentia calafrios. Por que uma pessoa não
consegue viver de um modo que exclua a possibilidade dessas perdas,
desses prejuízos? Por que cortaram o bosque de bétulas e o pinhal? Por que
não plantavam nada no pasto? por que as pessoas sempre fazem exatamente
aquilo que não é necessário? Por que Iákov a vida inteira injuriara, gritara,
arrojara-se de punhos cerrados, ofendera a esposa, e ― por fim ― que
necessidade tivera pouco antes de insultar e pôr a correr aquele judeu? Por
que, de modo geral, as pessoas dificultam a vida uma das outras? Pois que
prejuízos isso gera! Que imensos prejuízos! Se não existissem o ódio e a
maldade, a vida de cada um seria de imenso proveito para os outros.
À tardinha e à noite, parecia-lhe ver uma criancinha, um salgueiro,
peixes, gansos abatidos, Marfa com o seu perfil de ave sedenta, o rosto
pálido e lastimoso de Rothschild e algumas caras, que vinham de todas as
direções e resmungavam algo sobre prejuízos. Virou-se e revirou-se no
leito, levantando-se umas cinco vezes para tocar violino.
De manhã, ergueu-se a custo e foi ao hospital. O mesmo Maxim
Nikolaitch ordenou-lhe aplicar compressas frias à cabeça, deu-lhe alguns
polvilhos; pela expressão do rosto e por seu tom, Iákov compreendeu que o
caso era grave e que polvilho nenhum o ajudaria. A caminho de casa, achou
que a morte só lhe traria proveito: não é preciso comer, beber, pagar
impostos, nem ofender a ninguém, e, como as pessoas passam na sepultura
não um ano, mas centenas, milhares, no fim das contas, o proveito é
enorme. Portanto, para as pessoas a vida representa um prejuízo e a morte
― um proveito. Esse raciocínio, sem dúvida é justo, mas ainda assim, não
deixa de causar lástima e amargura a estranha organização do mundo, pela
qual da vida, dada a nós uma única vez, não se logra nenhum proveito.
Iákov não sentia pena de morrer, mas ao ver o violino em casa foi invadido
por um aperto no coração. Não Podia levar o violino consigo para a
sepultura; ele ficaria abandonado e teria o mesmo fim do bosque de bétulas
e do pinhal. Tudo se acaba neste mundo! Iákov saiu da isbá e sentou-se ao
pé da porta, apertando o violino ao peito. Pensou na sua vida tão cheia de
perdas, começou a tocar sem saber o quê; era uma música lamentosa e
comovente, e as lágrimas lhe corriam pelas faces. E quanto mais fundo ele
pensava, tanto mais triste soava o violino.
O ferrolho do portão rangeu e surgiu Rothschild. Percorreu metade do
terreiro com passo decidido, mas ao ver Iákov estacou, encolheu-se todo e,
provavelmente de medo, pôs-se a fazer-lhe alguns sinais com os dedos,
como se quisesse indicar-lhe as horas.
― Aproxima-te, não temas ― disse Iákov amavelmente, acenando-lhe.
― Aproxima-te.
Olhando com desconfiança e medo, Rothschild foi chegando e deteve-
se a poucos passos dele.
― Mas, por favor, não me bata! ― disse ele, acocorando-se. ― Foi
Moissiêi Ilitch de novo. Mandou não ter medo e vir dizer que não podemos
ir sem o senhor. Quarta-feira, um casamento... Sim! Da filha do senhor
Chapoválov com uma pessoa muito boa. Festa pomposa, u-u! —
acrescentou o judeu e entrefechou um olho.
― Não posso ir... disse Iákov, respirando com dificuldade. ― Estou
muito doente, irmão.
Recomeçou a tocar; suas lágrimas caíram sobre o violino.
Rothschild deixou-se ficar a escutá-lo atentamente, sentado de perfil
para ele, com os braços cruzados sobre o peito. A expressão temerosa e
atónita do seu rosto aos poucos tornou-se triste e dorida; ele revirou os
olhos, como se experimentasse um enlevo pungente, e disse: "A-a-a-h!..."
Pelas suas faces correram lágrimas, goteando na sobrecasaca verde.
Depois Iákov deitou-se e passou o dia todo no leito, amargurado. À
noite, quando o pope, confessando-o, perguntou-lhe se desejava desobrigar-
se de algum pecado mais grave, ele, num esforço da sua obscurecente
memória, recordou novamente o rosto infeliz de Marfa e o grito
desesperado do judeu mordido pelo cão, e disse num murmúrio quase
inaudível:
― Dê o violino a Rothschild.
― Muito bem respondeu o padre.
E agora, todos na cidadezinha perguntam: onde Rothschild conseguiu
um violino tão bom? Tê-lo-ia adquirido ou roubado? Ou, quem sabe,
tomado como penhor? Abandonou há muito a flauta e agora tange só o
violino. Com o arco tira-lhe sons tão lamentosos como da flauta
antigamente, e quando, ao pé da porta, tenta repetir a música tocada por
Iákov, consegue algo tão triste e cheio de mágoa, que os ouvintes choram;
ele próprio, nas notas finais revira os olhos e diz: "A-a-a-h...” Essa nova
melodia caiu tão ao gosto da cidade, que comerciantes e funcionários
públicos disputam aos gritos a honra de ter Rothschild em casa, e lá
obrigam-no a executá-la umas dez vezes seguidas.
1894
O VIOLINO DE ROTHSCHILD
A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase só por velhos que
morriam tão raro que isso até causava desgosto. Poucas eram também as
encomendas de caixão do hospital e da cadeia. Em suma, os negócios iam
pessimamente. Se Iákov Ivanov exercesse seu ofício em uma capital de
província, por certo teria casa própria e seria chamado por Iákov
Matviêitch; na cidadezinha tratavam-no apenas por Iákov ou, por alguma
razão, Bronze, o seu apodo de rua; vivia tão pobremente como um simples
mujique, em uma pequena e velha isbá de um só compartimento, com
Marfa, o forno, a cama de casal, os caixões, o banco de carpinteiro e todos
os utensílios domésticos.
― Para ser franco, não gosto de perder tempo com tais ninharias.
Dito isso, começou a chorar. Assim, Bronze era convidado apenas às vezes,
nos casos de extrema necessidade, quando faltava um dos judeus.
Enquanto olhava para a velha, Iákov por alguma razão lembrou-se de que
provavelmente jamais lhe fizera um carinho ou se compadecera dela, nunca
tivera o impulso de comprar-lhe um lencinho que fosse ou de trazer-lhe uma
guloseima de alguma festa, mas apenas lhe falava aos gritos, injuriava-a
pelos prejuízos e arrojava-se a ela de punhos cerrados; nunca lhe batera, é
verdade, mas, apesar de tudo, assustava-a, e ela todas as vezes ficava
transida de medo. Sim, ele a proibiu até mesmo de beber chá, pois já sem
isso os gastos eram grandes, e ela bebia apenas água quente. Iákov
compreendeu então por que Marfa tinha aquele rosto tão estranho, tão feliz,
e encheu-se de um pavor gélido.
• Pois então? A velhinha viveu a sua vida. Agora chegou a sua hora.
Pela expressão do seu rosto, Iákov viu que o caso era grave e que polvilho
algum ajudaria; compreendeu que Marfa morreria logo, de uma hora para
outra. Tocou o enfermeiro levemente pelo cotovelo, piscou-lhe um olho e
disse a meia voz:
• Não tenho tempo, não tenho tempo, meu caro. Pega a tua cara-metade e
vai-te com Deus. Até à vista.
Iákov também se irritou e ficou todo vermelho, porém não disse uma
palavra; segurou Marfa pelo braço e levou-a embora. Da carroça olhou para
o hospital com raiva e desprezo, e disse:
― Belas figuras, hem? Em um rico por certo ele haveria aplicado ventosas,
mas teve dó de gastar sanguessugas em um pobre. Carrascos!
Iákov forçou a memória mas não conseguiu lembrar-se nem da criança nem
da
árvore:
• Por favor, mais baixo, senão o senhor voará por cima daquela cerca!
Iákov vagou pelo pasto, caminhou pela raia da cidade a esmo, e os meninos
gritavam: "Lá vem o Bronze! Lá vem o Bronze!" Chegou por fim ao rio.
Velozes frangos-d ‘água piando chapinhavam a superfície; patos
grasnavam. O sol queimava e a tremulina na água era tal que até molestava
os olhos. Iákov seguiu por uma vereda ao longo da margem e viu uma
mulher gorda e rubicunda à saída de uma casa de banhos; pensou: "Puah,
que lontra!" Não longe dela, alguns meninos apanhavam caranguejos para
os petiscos; assim que o avistaram começaram a gritar com maldade:
"Bronze! Bronze!" Mais adiante viu um velho salgueiro copado e com uma
grande caverna no tronco e ninhos de corvo entre os galhos... Então de
repente veio viva à lembrança de Iákov a criancinha loira e também a
árvore de que Marfa falara. Sim, aquele era o tal salgueiro ― verdejante,
silencioso, triste... Como envelheceu, o pobre!
Ele estava perplexo: como é que não fora uma vez sequer ao rio naqueles
quarenta, cinquenta anos, e, se alguma vez ali estivera, como pôde não
haver-lhe prestado atenção? Pois aquele era um rio considerável, nada
desprezível; poderia pescar ali regularmente, vender o pescado a
comerciantes, funcionários públicos e ao copeiro da estação e depois
depositar o dinheiro no banco; assim como tocar violino em algum barco
que navegasse de uma herdade a outra, e os passageiros de todas as
camadas pagariam pela música; outra possibilidade era pôr de novo barcas
no rio, coisa melhor que fazer caixões; por fim, poderia criar gansos, abatê-
los e, no inverno, enviá-los para Moscou; só com a penugem, certamente
ganharia uns dez Rublos por ano. Mas ele deixara escapar a oportunidade,
não fizera nada daquilo. Que prejuízo! Ah, que prejuízo! E, se pescasse,
tocasse violino e criasse gansos, tudo junto, que capital não teria juntado!
Aquilo porém não acontecera nem em sonhos; a vida não lhe trouxera
nenhum proveito, nenhum gozo, fora desperdiçada inteiramente; já não
tinha nada pela frente e, quando olhava para o passado, não via nada além
de prejuízos, e tais, que até sentia calafrios. Por que uma pessoa não
consegue viver de um modo que exclua a possibilidade dessas perdas,
desses prejuízos? Por que cortaram o bosque de bétulas e o pinhal? Por que
não plantavam nada no pasto? por que as pessoas sempre fazem exatamente
aquilo que não é necessário? Por que Iákov a vida inteira injuriara, gritara,
arrojara-se de punhos cerrados, ofendera a esposa, e ― por fim ― que
necessidade tivera pouco antes de insultar e pôr a correr aquele judeu? Por
que, de modo geral, as pessoas dificultam a vida uma das outras? Pois que
prejuízos isso gera! Que imensos prejuízos! Se não existissem o ódio e a
maldade, a vida de cada um seria de imenso proveito para os outros.
― Não posso ir... disse Iákov, respirando com dificuldade. ― Estou muito
doente, irmão.
◦ Dê o violino a Rothschild.
◦ Muito bem respondeu o padre.
1894
ANTON PAVLOVITCH TCHEKHOV (Tapanrog, Rússia, 1860 -
Hadenweilcr, Alemanha, 1904) Neto de camponeses, recebeu uma
formação escolar precária, na província. Para prover às necessidades
econômicas da família e custear os seus estudos de Medicina, em Moscou,
Tchekhov escreve contos humorísticos e crônicas, que publica em jornais.
Em 1884 é editada a sua primeira recolha de contos. Datam também dessa
altura as primeiras peças de teatro: Os Malefícios do Tabaco (1886), Ivanov
(1887, a mais importante das obras deste período), O Urso (1888), O Pedido
de Casamento (1888) e O Casamento (1889). É com a publicação de uma
novela, Â lístepc (1888), que Tchekhov vê consolidada a sua posição de
escritor. Dos jornais humorísticos em que colaborava, passa a escrever para
revistas literárias; e o conto, até então considerado gênero menor na Rússia,
assume nova importância. Em 1890 viaja pela ilha de Sacalina, lugar de
deportação dos condenados a trabalhos forçados, e descreve-a num livro
objetivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, e compra
uma propriedade nos arredores de Moscou. Preocupado com a sorte dos
camponeses, manda construir escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897
são bastante férteis para a sua obra: desta época data A Enfermaria nº 6,
uma das suas novelas mais notáveis. Toda a dramaturgia tchekjhoviana é
caracterizada por uma aversão aos acontecimentos espectaculares ou
"teatrais".
Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro de Arte de
Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção cênica de
Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa aquando da sua estreia em Moscou, que
coincide com o agravamento da tuberculose de que Tchekhov padecia há
anos. Passa o Inverno de 1897-1898 em Nice, e em 1899 compra uma
propriedade em Yalta, na Crimeia. Só após o seu casamento com Olga
Knipper (1898), primeira atriz do Teatro de Arte, de Stanislavski, têm início
os seus triunfos dramáticos. É nos últimos anos de vida que Tchecov
escreve as melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As Três
Irmãs (1901) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado
de Gogol e Gorki, Tchekhov é dos maiores contistas da literatura russa.
Debruçando-se piedosamente sobre os diversos tipos sociais da época,
Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisquer tendências políticas ou
religiosas, ao contrário de tantos escritores russos. Não obstante a sua
irreligiosidade, confere às coisas mais insignificantes um conteúdo
densamente filosófico e uma tonalidade estranhamente mística.