Tese Versão Final

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORAMENTO

VOZES INFANTIS INDÍGENAS: AS


CULTURAS ESCOLARES COMO
ELEMENTOS DE (DES)ENCONTROS
COM AS CULTURAS DAS CRIANÇAS
SATERÉ-MAWÉ

ROBERTO SANCHES MUBARAC SOBRINHO

FLORIANÓPOLIS-SANTA CATARINA
2009
2

ROBERTO SANCHES MUBARAC SOBRINHO

VOZES INFANTIS INDÍGENAS: AS


CULTURAS ESCOLARES COMO
ELEMENTOS DE (DES)ENCONTROS
COM AS
AS CULTURAS DAS CRIANÇAS
SATERÉ-
SATERÉ-MAWÉ

ORIENTADORA: Dra. ELOÍSA ACIRES CANDAL


ROCHA

Tese apresentada à banca de defesa como


requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Educação, no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina, orientada pela
professora Dra. Eloísa Acires Candal Rocha.

FLORIANÓPOLIS-SANTA CATARI NA
2009
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4

1
R ESUMO

A presente tese consiste na apresentação dos resultados da pesquisa realizada junto à


comunidade indígena da etnia Sateré-Mawé à partir de uma objetivação participante e
uma pesquisa etnográfica em seus contextos cotidianos. A comunidade pesquisada se
localiza em uma área urbana na cidade de Manaus, estado do Amazonas, Brasil, tendo
como sujeitos um grupo de 12 crianças entre 04 e 12 anos, que durante 12 meses foram
nossas interlocutoras e nos evidenciaram, através de diversas linguagens: desenhos,
escritas, falas, fotografias, vídeos, como elas vivem e constroem suas culturas da
infância, tendo tanto os elementos tradicionais da cultura de seu povo quanto as diversas
influências do meio urbano, elencados nos seus jeitos de viver a infância. O texto reflete
juntamente com as crianças a importância da valorização da cultura Sateré-Mawé
através das brincadeiras, dos rituais, das músicas tradicionais e da língua, e como neste
"entre-lugar", o espaço urbano, são construídas estratégias para garantir seus jeitos
próprios de ser indígenas, de viver e construir suas culturas da infância, de ser da etnia
Sateré-Mawé e, ainda de se relacionar com o mundo e a "escola do branco". A pesquisa
nos demonstrou a importância de olhar e compreender a infância sob o ponto de vista
das crianças Sateré-Mawé, entendendo que neste grupo indígena o conceito de infância
é distinto dos conceitos veiculados nos espaços acadêmicos, e o quanto, a partir desta
compreensão, passamos a respeitar o seu direito de ser criança. Não aquela criança que
se enquadra nos padrões das sociedades de consumo e que tem no brinquedo industrial e
na mídia, a definição da imagem de si mesma. Mas as crianças, que ao valorizarem suas
culturas, mostram-nos o quanto vale a pena ser diferente num mundo que tanto impõe a
padronização. Elas nos ensinaram que viver a infância é uma atividade plena e que se
constrói nas relações mais intensas vividas no dia-a-dia. Aos que se encorajarem nessa
aventura, a ida é sem volta, felizmente, pois ao escutarmos o que elas têm a nos dizer,
jamais seremos os mesmos. Mais do que o direito, enquanto prática normativa, que sem
dúvida é importantíssimo de ser conquistado, elas e seu povo, lutam a cada dia pelo
direito social de ser quem são. O desafio está lançado, a tese é um convite a entrarmos
nos seus mundos infantis.

1
Créditos: Muiraquitãn indígena. Foto extraída do site: www.portalamazonia.com
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2
A BSTRACT

The present thesis consists in the presentation of the results of the research made
together with an indigenous community of the ethnic tribal group Sateré-Mawé starting
from a participant objectivity and an ethnographic research in the context of their daily
living. The community researched is located in an urban area of the city of Manaus, the
State of Amazonas, Brazil. Having as our subjects a group of twelve children between
the ages of four and twelve years of age who were our speakers during twelve months
and provided evidence for us though several languages, drawings, writing, speeches,
photographs and videos how they live and construct their childhood culture as well as
having a lot of the traditional cultural elements of their people as well as the diverse
influences of the urban way, shown in their ways of living their childhood. The text
reflects together with the children the importance of the valorization of the Sateré-Mawé
culture through games, rituals, traditional dance and the language and in this “between
place” the urban space, strategies are constructed to guarantee their own ways of being
indigenous, to construct their childhood culture belonging to the ethnic tribal group
Sateré-Mawé and yet still relating with the world and the “white person’s school”. The
research demonstrated to us the importance of looking and understanding childhood
from the Sateré –Mawé children’s point of view, understanding that in this indigenous
group the concept of childhood is distinct from the concept propagated in the academic
world and from this comprehension, we begin to respect their rights to be children. He
is not that child who fits into society’s consumer pattern or molds who have industrial
made toys or media, an image definition of himself. But are children who give value to
their culture, showing us that it is worthwhile to be different in a world where many
demand standardization. They teach us that to live a full childhood is a complete
activity and more intense relationships are built and lived day by day. What has
encouraged us in this venture is understanding that there is no way back, fortunately,
when we listen to what they say, we will never be the same again. It’s more than their
right while normal practice, and without a doubt very important to be conquered, they
and their people struggle every day for the social right to be what they are. The
challenge is given, the theses is an invitation for us to enter their childhood worlds.

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Credits: Indigenous Muiraquitãn. Photo copy to website www.portalamazonia.com
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3
D EDICATÓRIA

Todo mundo ama um dia todo


mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz…
(Almir Sater e Renato Teixeira)

Amar… talvez esse seja um verbo fácil de ser declamado,


Mas muito difícil de ser dito, principalmente a pessoas tão especiais…
Para mim, como foi difícil, principalmente dizê-lo aos meus pais, mas
isso já foi superado.
Eles: JORGE e LUZIA são a razão maior da minha vida,
Pois me deram-na e não só isso fizeram eu aprender como enfrentá-
la com coragem, determinação, honestidade.
Dedicar a vocês esta tese, nada mais é do que dizer:
Que tudo que faço nesta vida é pensando em vocês.
Cada tropeço, seus colos estavam e ainda estão para me amparar,
Cada vitória, seus sorrisos, ainda que tímidos, representam meus
maiores troféus.
Cada momento distante fortalecia-me, como por um telefonema, que
parece dádiva divina e acontecia nas horas em que eu mais
precisava, e minha covardia não me deixava falar.
Se um dia o homem chora, todos os dias eu chorarei por sentir amor
a vocês e choro sempre que precisar lhes dizer isso pela emoção de
tê-los comigo para sempre.
Se cada um de nós compõe a sua história, eu não fiz a minha sozinho
e jamais teria conseguido fazê-la sem tê-los ao meu lado.
Se cada um carrega o dom de ser feliz, eu posso dizer que sou, pois
vocês estão felizes comigo.
Meus amores, pais, amigos, companheiros, grandes mestres,
nenhuma palavra será capaz de externalizar a gratidão, a admiração
e o amor que sinto por vocês.

DEDICO.

3
Créditos: Foto criança indígena. Extraída do site www.portalamazonia.com
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A GRADECIMENTOS

Agradecer é mais do que um ato de exprimir um sentimento nutrido por algo que
lhe foi feito, é poder dividir os momentos vividos e as conquistas, que ao longo do
tempo e pelo apoio de um grupo de pessoas/amigos se tornaram vitórias.

Aos membros da Comunidade Indígena Sateré-Mawé que mais do que


informantes em uma pesquisa, foram companheiros, deixaram fluir seus desejos,
anseios e acreditaram – apesar de todas as formas crueis de lhes fecharem as portas – na
possibilidade de juntos podermos construir não só esta tese, mas um caminhar que se
pretende estender por longos anos;
À Laiz, Taíza, Mateus, Gabriel, Kézia, Raquel, Talice, Nandria, Kely, Emile,
Taise e Raisa, pequenos/grandes guerreiros Sateré-Mawé, com os quais pude aprender a
dar valor a coisas do cotidiano que por muito tempo deixei de enxergar e pelos seus
olhares pude ver que a vida é cheia de plenitudes onde os momentos mais simples
representam uma real possibilidade de viver;
À fundação de Amparo a Pesquisa no Estado do Amazonas/FAPEAM, pela
bolsa integral para realização do doutoramento e pelos diversos incentivos a realização
da minha pesquisa e divulgação dos meus trabalhos;
À Universidade do Estado do Amazonas/UEA, principalmente na pessoa da
reitora professora Marilene Correia da Silva Freitas, que mesmo diante dos “formatos
burocráticos”, deu total apoio ao processo de liberação para a realização do curso e
principalmente pelos inúmeros incentivos de engrandecimento para a pesquisa e para a
minha formação;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior/CAPES,
pela bolsa PDEE, para realização do estágio de doutoramento em Portugal;
Ao projeto “Educação Como Exercício de Diversidade: estudos e ações em
campos de desigualdades sócios educacionais” ANPED/SECAD pelo finaciamento

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Créditos: Foto cocar indígena. Extraída do site www.portalamazonia.com
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parcial da investigação e pelo apoio no engrandecimento e divulgação do trabalho de


pesquisa;
Ao PPGE/CED/UFSC e ao NUPEIN que foram de suma importância nesse
processo de crescimento;
À professora Eloísa Acires Candal Rocha, orientadora e companheira neste
longo e prazeroso processo de formação, suas palavras sábias e doces, seu jeito amável,
e ao mesmo tempo, firme de conduzir as orientações foram fundamentais para o meu
crescimento pessoal e intelectual e para a concretização dessa etapa. Elô agradecer-lhe é
a forma mais sublime de poder dizer que conseguimos;
Ao professor Manuel Sarmento, pelo apoio incondicional no meu estágio de
doutoramento no Instituto da Criança/IEC na Universidade do Minho em Portugal, que
pelas suas palavras sábias me deram novos rumos para os caminhos que estava
trilhando;
À professora Rosa Helena/UFAM, que acompanhou meu trabalho junto ao
projeto da ANPED/SECAD e me deu uma grandiosa contribuição na discussão sobre a
temática indígena, apontando suportes para que, nos momentos mais difíceis, eu
pudesse pensar que junto ao meu trabalho estava um grupo de crianças e adultos que
passaram por problemas tão grandes cujos meus pareciam pequenos pingos de chuva
que sempre passam.
Aos professores Manuel Sarmento, Ione Valle, Antonella Tassinari e Rosa
Helena, Rita Marchi que se dispuseram a contribuir com este trabalho, tanto na
qualificação quando na defesa da tese, a grandiosidade de suas intervenções foi
fundamental para os resultados alcançados e para minha vida acadêmica;
Às minhas companheiras de trabalho e amigas, Graça Barreto (grande mestra e
inspiradora), Ana Paulina (pelo carinho e apoio) e Adilma Portela (pelas palavras de
insentivo e de aconchego);
Aos amigos que fiz em Florianópolis e que foram fundamentais nesse período de
mudanças: Kátia, Márcia, Moema, Maurício, Geórgia, Diego, Ricardo, Erica;
Aos meus amigos de Manaus, que são meus outros irmãos e que souberam
entender minhas ausências: Daniel, Thiago, Rafinha, Joelson, Ana Claudia obrigado por
vocês existirem na minha vida;
Aos meus irmãos, em especial a Greice e Heider, que sempre me apoiaram e me
deram forças para continuar meu caminho intelectual, acreditando que mesmo distante
deles eu estava e como ainda estou construindo a minha história;
9

Aos diretores, professores e demais funcionários das escolas, sei que a


dificuldade do trabalho de vocês é grande, pois também já estive neste lugar, mas
gostaria de lhes dizer, algo que também aprendi com as crianças, que conviver na
diversidade é uma grande possibilidade de rompimento com nossos preconceitos e nos
dá mais forças para continuar nossa trajetória;
Por fim, diante das minhas crenças e nos momentos de solidão, aprendi a buscar
numa força maior – que habita todos os lugares e sem distinção nos acompanha em cada
momento de nossa existência – mais vontade de viver, de crescer, de aprender e de ver a
vida com olhos mais simples, aprendi a me desarmar dos meus “vícios” oriundos de um
pretenso saber superior e deixar fluir a emoção, deixar derramar lágrimas pelas coisas
mais cotidianas e esse texto é cheio delas, pois em muitos momentos de sua escrita, as
lembranças do convívio com as crianças me vinham a mente, mas o coração falava mais
forte e a emoção se fez presente, e é com ela que pretendo caminhar pelos novos
caminhos que hei de traçar.

Do fundo do coração, MUITO OBRIGADO A TODOS.

(Assim como a canoa, um transporte para desbravar o nosso rio Amazonas, a presença
de cada uma das pessoas aqui citadas foi fundamental no enfrentamento dos obstáculos
que surgiram no caminho de construção desta tese e representaram o meu porto seguro).
5
Créditos: Foto canoa da região amazônica. Extraída do site www.portalamazonia.com
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S UMÁRIO

PARA COMEÇARMOS A REFLETIR..................................................................... 12


1. INTRODUÇÃO........................................................................................................ 14
2. CAPÍTULO I: TRAJETÓRIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: TRILHAS
CONSTRUIDAS E EM CONSTRUÇÃO............................................................... 26
2.1 As escolhas, os pressupostos e os objetivos desse trabalho...................................... 26
2.2 Os percursos e percalços da pesquisa: apontando desafios e revelando caminhos... 35
2.2.1 Conviver com as crianças......................................……………………........... 39
2.2.2 A escola lugar de quem?: ..............................………...………………….. 46
2.3 Dialogando com diversas fontes: criando possibilidades de integração…............... 50
2.4 Peças que articulam o nosso mosaico: a organização da tese………………………69

3. CAPÍTULO II: INFÂNCIAS/CRIANCAS INDÍGENAS NAS CIDADES: UM


CAMPO DE PESQUISA EM CONSTRUÇÃO..................................................... 74
3.1 A infância e as crianças indígenas na Amazônia: uma breve historiografia............. 75
3.2 A literatura sobre as crianças indígenas: um panorama das pesquisas e as
contribuições para sedimentação de um campo de investigação cientifica no
Amazonas…………………………………………………………….................... 86

4. CAPÍTULO III: A CRIANÇA SATERÉ-MAWÉ NA CIDADE DE MANAUS:


INFÂNCIAS EM ESPAÇOS DE DISPUTA...........................................................113
4.1 A comunidade WAYKIHU: um lugar das crianças...................................................114
4.2 Brincando de ser Sateré-Mawé: entre as vozes e os imaginários das crianças……...129
4.3 O desenho e a música como elementos simbólicos: tons, riscos e rabisco da
infância………………………………………………………………………….......140

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Créditos: Foto zarabatana indígena. Extraída do site www.portalamazonia.com
11

4.4 Jeitos de ser criança Sateré-Mawé: os elementos da cultura frente aos determinismos
sociais “urbanos”……………………………….............………..............................148

5 CAPITULO IV: A ESCOLA PÚBLICA E SUA REPRESENTAÇÃO


ACERCA DA CRIANÇA INDÍGENA…................................................................156

5.1 A criança indígena nos documentos oficiais das escolas: cultura escolar como
elemento de “distinção”………………………………………………………………..157
5.2 Os professores e as crianças Sateré-Mawé: uma cultura de invisibilidade………..171
5.3 A escola dos “brancos”: um construto da violência simbólica…………………….175

6 CAPÍTULO V: OS LUGARES ENTRE AS CULTURAS INFANTIS E OS


SABERES DA ESCOLA: OS (DES)ENCONTROS............................................ 185
5.1 O rito e o ritmo das crianças na escola…………………………………………….186
5.2 O saber da cultura Sateré-Mawé e o saber “légitimo” da escola: onde as fronteiras se
intensificam……………………………………………………………………………192

7 CONCLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO COM AS CRIANÇAS SATERÉ-


MAWÉ ………....................………………………………….............................. 200

8 REFERÊNCIAS..........................................................................................................211
12

7
P ARA COMEÇARMOS A REFLETIR...

“A escrita é uma realidade ambígua: por um lado, ela nasce incontestavelmente de um


confronto entre o escritor e a sociedade; por outro lado, dessa finalidade social, ela
reenvia o escritor por uma espécie de transferência trágica, às origens instrumentais da
sua criação (...) em que o álibi da linguagem é ao mesmo tempo intimidação e
glorificação: efetivamente, são o poder e o combate que produzem
os tipos mais puros de escrita.
A escrita como paixão... a linguagem poética...”.

(BARTHES, 1953, p. 40)

Vamos em busca dessa poesia, dessa “POÉTICA TEXTUAL”, que, além dos padrões
da escrita científica, possa expor um pouco mais dos sentimentos comuns da vida
cotidiana, dos seus detalhes, dos seus suspiros, dos pingos de chuva, dos raios do sol,
dos jeitos mais sublimes de amar. Esta tese é um caminhar por essa escrita científico-
mitológica, que nos convida a adentrar nos espaços desses dois campos da produção
literária e que suaviza, com simplicidade, o contato entre o conhecimento indígena,
aqui representado pela linguagem corriqueira dos seus cotidianos, e a ciência da
erudição, da conceitualização, da categorização. Intencionamos que ambas possam
dialogar nestas páginas como companheiras capazes de nos permitir compreender
melhor o mundo das CRIANÇAS SATERÉ-MAWÉ.

(ROBERTO MUBARAC)

7
Créditos: Foto de criança indígena extraída do site www.portal Amazônia.com
13
14

8
1. I NTRODUÇÃO

“A Amazônia foi lançada ao mundo [...] fizeram-na um campo aberto para os


exercícios de guerra e de orações que ora exaltam a exuberância da sua
natureza tropical, ora abatem-se sobre ela em ação de perfeita negação.
Expondo-se ao mundo, a Amazônia incita os lados extremos [...] dos seus
despojos, de todo o seu corpo líquido e de tudo que se encontra escondido entre
os trançados do seu verde.”

(BARRETO, 2007, p. 10)

A escolha do título desta tese, diante do universo de possibilidades que nos


meandros de sua escrita se apontavam, foi um verdadeiro quebra-cabeça, cujas peças
não se encaixavam. Era como a tessitura de uma grande rede de pesca, que quando se
perde um ponto, o tecido também é perdido. Por muitos momentos sentimo-nos assim:
entrelaçados por um emaranhado de fios9 cujas pontas por vezes se perdiam e,
aparentemente, apresentavam-se como impossíveis de serem reatadas.
Durante a escrita do texto e, à medida que cada um dos capítulos tomava forma,
começamos a visualizar que as peças ainda soltas do mosaico (contexto) que pareciam
sem sentido, ao se juntarem, oportunizaram constatar toda uma articulação que estava
por trás da pesquisa e da escrita aqui propostas. Esse processo apresenta como objetivo
desta reflexão: conhecer, da maneira mais próxima do seu mundo cotidiano, a infância
das crianças Sateré-Mawé, ou melhor, as infâncias, pois cada uma das partes que
compõe esta realidade gira em torno de basicamente dois contextos diferentes: a
comunidade indígena e as escolas onde as crianças estudam.
Do desenrolar desses fios, emergiu o nosso objeto de pesquisa, ou seja, o
cotidiano das Crianças Sateré-Mawé em uma comunidade da zona urbana da cidade de

8
Créditos: Foto de criança indígena extraída do site www.portalamazonia.com
9
Os fios correspondem aos problemas da pesquisa, ou seja: As crianças Sateré-Mawé da área urbana de
Manaus são reconhecidas enquanto Agentes Sociais da realidade em que vivem? Como se dá a inserção
das Crianças Sateré-Mawé nas escolas? As vozes das crianças Sateré-Mawé são ouvidas e servem como
referencial para o trabalho pedagógico dos professores e das escolas?
15

Manaus, seus processos comunitários de socialização, suas diversas maneiras de encarar


o mundo que as cerca e a inserção destas nas escolas públicas nas quais estudam.
Na intenção de situar nosso objeto de pesquisa, retomaremos a questão dos
contextos. O primeiro é a comunidade indígena onde as crianças vivem e convivem com
diversos elementos da cultura tradicional de seu povo, cujos espaços proporcionam-lhes
um espírito de liberdade, de sentir o valor das tradições e dos modos de organização,
que, embora distantes da aldeia de origem, os pais fazem questão de lhes mostrar e
manter vivos.
É uma realidade que se articula por valores que transitam entre mundos, ao
mesmo tempo, tão opostos e que, pela condição de estarem na cidade, dialogam de
maneira a buscar os fios e limites que permeiam essa relação. Tais questões, às vezes,
são difíceis de serem entendidas e exigem um rigor acadêmico na sua percepção, mas
precisa, também, de um caráter artesanal10 para não deixar fugir o tom da simplicidade,
ou seja, a vida cotidiana da comunidade. Por isso, vamos, no decorrer da escrita, apostar
na “poética”, pois, segundo Barthes (1953, p. 44):

Aqui as relações fascinam, é a Palavra que alimenta e satisfaz como o


desvendamento súbito de uma verdade, dizer que esta verdade é de ordem
poética é apenas dizer que a Palavra poética nunca pode ser falsa porque é
total; brilha como uma liberdade infinita e está pronta a resplandecer em
direcção a múltiplas relações incertas e possíveis.

O segundo contexto é a escola, aqui identificada – pelos Sateré-Mawé – como


“a escola do branco”, onde seus filhos estudam e eles depositam muitas esperanças. É o
lugar do conhecimento, dos saberes instituídos como legítimos, dominantes, verdadeiros
e que, como analisaremos nos capítulos posteriores, tende a invisibilizar a condição de
serem indígenas e opera, como nos afirma Bourdieu (2007, p. 11), produzindo um
arsenal ideológico de maneira simbólica, em que “[...] a cultura que une (intermediário
de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que
legitima as distinções compelindo todas as culturas[...]”.
Neste sentido, uma realidade contraditória se apresenta como fio condutor do
processo de discussão da tese, pois as crianças, nestes dois contextos, reproduzem,
traduzem e são produtoras de culturas infantis próprias. Logo, essa realidade pode ser

10
Utilizamos aqui esta expressão para fazer uma analogia à produção do artesanato pelos Sateré-Mawé,
que produzem belíssimas peças e ornamentos feitos com sementes e materiais típicos da região e que
representam um pouco da sua vida cotidiana, dos seus modos de viver.
16

assim caracterizada: pelo cotidiano da comunidade, que permite que vivam


intensamente, na compreensão indígena, a infância, e pela cultura da escola/cultura
escolar, que as enquadra no “oficio11/invenção do aluno12”.
A respeito desta segunda dimensão, Sacristán (2005, p. 14), ajuda-nos a pensar
nessa “metaformose” empreendida pela escola frente aos alunos:

É possível instituir que, em torno da categoria aluno, formou-se toda uma


ordem social na qual se desempenham determinados papéis e se configura
um modo de vida que nos parece muito familiar porque estamos acostumados
a ele. Essa ordem propicia e “obriga” os sujeitos nela envolvidos a serem de
uma determinada maneira. Eles pensam, sentem, se entusiasmam, se inibem e
se relacionam, tem uma vida pessoal e familiar, uma história, um convívio de
vida e um futuro […] A evolução da infância como categoria social foi
delineada, primeiro, como o reconhecimento, a definição, o desenvolvimento
e a avaliação da criança e, subsequentemente, de acordo com as invenções
dos adultos para facilitar seu desenvolvimento.

Assim sendo, ao nos depararmos com esses dois espaços de contradição, é que
vamos descortinar nossa caminhada, uma viagem cheia de imaginários, de
representações, de expressões do cotidiano, que deverão ser mediadas pelos
pressupostos de várias Ciências Humanas e Sociais, buscando uma análise que não se
cristalize na visão hegemônica e homogeneizadora de mundo, e que se aproxime do
universo indígena, conferindo reconhecimento social.
Logo, reconhecer esse universo próprio dos Sateré-Mawé é poder adentrar aos
seus mundos cotidianos, a vida como elemento contextualmente situado, como afirmam
Berger e Luckmann (1985, p. 36).

O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa
pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de
sentido que imprimem as suas vidas, mas é um mundo que se origina no

11
Perrenoud (1995) afirma que, idealmente, o ofício de aluno incita-os a trabalhar para aprender. Na
realidade, pede-se também às crianças e adolescentes que trabalhem para estarem ocupados, para
transformarem textos, exercícios, problemas verificáveis, para serem avaliados, para contribuírem para o
bom funcionamento didático, para tranquilizarem professores e pais. Convidamo-los a seguir rotinas e
regras que visam otimizar as aprendizagens e o desenvolvimento intelectual, mas, às vezes, mais
prosaicamente, impomos-lhes a manutenção do silêncio, da ordem e da disciplina, para se facilitar a
coexistência pacífica dentro de um espaço fechado, para assegurar o cumprimento dos programas, a
melhor utilização dos recursos, a autoridade do professor.
12
Sacristán (2005, p.p. 11 e 12), em suas críticas ao modelo escolarizante, afirma que “O aluno é uma
construção social inventada pelos adultos ao longo da experiência histórica, porque são os adultos (pais,
professores, cuidadores, legisladores ou autores de teorias sobre a psicologia do desenvolvimento), que
têm o poder de organizar a vida dos não-adultos. Sem que isso possa ser evitado, representamos os
menores como seres escolarizados de pouca idade”.
17

pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por
eles.

Desta maneira, intencionalmente e provocado pelas parcas pesquisas no país,


principalmente, na Região Amazônica, sobre as crianças indígenas nas cidades, suas
infâncias e as políticas e instituições destinadas a atendê-las, que traduzimos na escrita
as ausências que se configuravam como angústias intelectuais, e que na verdade são
compartilhadas, cada dia mais, por um grupo de questionadores13 do modelo
hegemônico de infância. Estes os que defendem essa visão linear, nos seus discursos,
idealizaram um mundo para as crianças que as fez se tornarem peças de contos de fadas
onde o final feliz aparece sempre determinado e o mundo da vida cotidiana, reaparece
enquadrado em uma moldura sem problemas sociais.
Nesta perspectiva, a escola, mesmo diante de todas as transformações ocorridas
nas últimas décadas, ainda se aponta como a instituição inventada pela modernidade que
se propõe a padronização, ou seja, a alcançar o ideal de homogeneidade, onde poucos
serão premiados e a maioria ficará à margem do sucesso. Acreditarmos que outros
espaços educativos possam contribuir para rever esse modelo, por isso esta tese
apresenta indicações nesse sentido, seguindo, entre outros, a perspectiva teórica de
Santos (2007, p. 06).

Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambiguidade e


a complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição,
síncrome com muita coisa que está além ou aquém dele, mas
descompassado em relação a tudo o que o habita.

Esta afirmação do autor aponta em direção a discursos que, por longos anos,
prestaram-se a criticar a escola, mas pouco fizeram para modificá-la. Entendemos que é
preciso olhar a história e verificar como essa instituição tem se portado diante dos anos
e como muita coisa precisa ser feita para que uma mudança de fato aconteça. No caso
das populações indígenas, no que pese todo um aparato de estudos favoráveis à
construção e consolidação de uma educação escolar indígena, é necessário ainda
estarmos atentos e cautelosos para que qualquer projeto educativo tenha a sua
participação e aconteça em conjunto com suas representações e os setores da sociedade
civil.

13
Professores, pesquisadores, estudantes, membros das comunidades indígenas e da sociedade civil entre
outros.
18

A educação, para os povos indígenas, não se realiza em uma única


instituição, mas pela ação e pelo envolvimento de toda comunidade. Ocorre
em tempos e espaços cotidianos, por meio de pedagogias próprias e diversas,
que garantem tanto a reprodução quanto a recriação da identidade, da
tradição, dos saberes, dos valores, dos padrões de comportamento e de
relacionamento, na dinâmica própria de cada cultura. Contrariando essa
lógica, a escola se impõe na realidade indígena como um grande desafio.
(OUTROS 500, 2001, p. 182).

Este trabalho, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário-CIME,


OUTROS 500, traz uma rica contribuição acerca da produção do conhecimento sobre os
povos indígenas do Brasil, principalmente por destacar a visão que nasce de um
conjunto de vivências e experiências oriundas das próprias comunidades indígenas, ao
demonstrar extrema importância ao movimento contra-hegemônico sobre a visão
preconceituosa que se forjou no país a respeito desses povos. Afirmam os autores que
“O relógio legítimo é outro. De areia, de pranto, de sangue. Também de sonho, de luta,
de dança” (Idem, p.10).
Foi pensando neste movimento/desafio que procuramos deter nossas análises no
diálogo intenso que transita entre o conhecimento e a realidade do povo Sateré-Mawé.
Mais desafiador ainda foi vislumbrar um processo de compreensão da infância das
crianças Sateré-Mawé, tomando-se por base um aparato teórico que buscou na
epistemologia ocidental grande parte de sua fundamentação, mas sem considerá-la
como um pote fechado, ou seja, uma verdade absoluta e inquestionável e sim uma
campo de saberes interdisciplinares.
Propomos esse diálogo e esperamos que ele seja profícuo. Assim buscamos a
lógica do conhecimento científico enquanto possibilidade de interface com diversas
áreas do saber que proclamam a condição da criança enquanto agente social, e constitui
a premissa fundamental para desdobrarmos nossas análises na consideração de uma
visão crítica, aberta e interdisciplinar de conhecimento científico.
Neste sentido, para Marchi; Sarmento (2008, p. 24):

Na verdade, é na contínua vigilância sobre essas consequências que uma


sociologia crítica se pode comprometer com um conhecimento orientado para
a emancipação social. È aqui que a renovação potenciada no campo de
estudos da SI pela plena assunção de um paradigma crítico pode encontrar as
condições para fecundar a reflexividade social sobre a infância com um
conhecimento que não seja excludente, mas antes enunciador de renovadas
possibilidades de vida para verdadeiramente todas as crianças.
19

Com este intuito cabe iniciar, nesta primeira discussão proposta, a elucidação
acerca do conceito de socialização que foi fundamental, no processo das análises, para o
entendimento das diversas formas de organização e ressignificação que as crianças
Sateré-Mawé desenvolveram tanto no cotidiano da comunidade quanto nas suas
relações no espaço escolar.
Os conceitos clássicos de socialização aparecem no bojo do movimento
sociológico moderno, tendo como expoente a obra de Durkheim, que trata da
socialização como uma relação entre dois fatores essenciais o social e o psicológico.
Dubar (2005, p. 11), ao analisar a obra desse precursor, enfatiza que na perspectiva do
autor a socialização se pauta na transmissão coercitiva e repressiva de valores morais
emanados de uma geração para outra. Porém, sua crítica defende um conceito oposto
em que a socialização é um elo entre gerações distintas que deve se pautar na
reciprocidade.
Na tentativa de aproximar o conceito de socialização ao nosso objeto de
pesquisa, vamos enveredar no estudo da socialização sob o foco da Sociologia da
Infância, pois entendemos que, a partir da visão estabelecida nos seus referenciais mais
atuais, ela comporta a possibilidade de enxergarmos o modus operandi que permeia a
realidade vivida pelas crianças Sateré-Mawé. Assim para James; Prout (2000, p. 10):

Dentro da teoria de socialização tradicional e os estudos sociológicos da


infância anteriores ao final dos anos 70, a caixa negra da “criança” manteve-
se firmemente fechada. As crianças eram vistas para serem simplesmente
oprimidas pelos meios dentro dos quais se encontravam. O que o paradigma
emergente dentro da etnografia da criança começou a fazer foi forçar a sua
tampa, deixando-nos ver as crianças como possuidoras de agência individual,
como actores sociais competentes e intérpretes do mundo. E o que o
argumento descrito neste capítulo nos pode permitir no futuro é retirar
totalmente a tampa: examinar a variedade de formas de compromissos que as
crianças têm com as hierarquias e fronteiras do grupo em que estão inseridas
e como o seu conhecimento dessas estruturas e fronteiras se transforma em
estratégias de acção que elas usam – algumas vezes eficazmente, outras não –
para se localizarem dentro dos grupos sociais.

Nas indicações destes autores, romper com o pensamento hegemônico, oriundo


da perspectiva tradicional, exige uma atitude científica rigorosa que se assenta, além da
coragem, na busca de ferramentas conceituais capazes de contribuir para que o debate
20

entre uma perspectiva tradicional e uma perspectiva crítica não se apresente como um
duelo entre “gigantes e anões”.
É preciso que, na condição de pesquisadores que questionam este espaço
determinado pelo sistema de poder, possamos assinalar com categorias teóricas claras e
coerentes, que sustentem e permitam dar visibilidade, àqueles agentes que foram
esquecidos e escamoteados do centro das discussões e questões sociais – neste caso as
crianças indígenas nas cidades – e que tais questões possam vir à tona, pois “não é mais
o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como a
fundamentação e renovação dos fundamentos” (FOUCAULT, 2007. p. 06.).
A invisibilidade das crianças indígenas, especificamente as crianças Sateré-
Mawé, nas escolas e inclusive nas pesquisas, motivou este estudo pela inquietação que
essas ausências acarretam para o entendimento das formas de socialização e
organização desse grupo social das crianças e logo, para a definição de outras práticas
educativas que possam surgir, dada a inversão dessa condição de obscuridade.
Desta maneira, esta investigação justifica-se pela pouca produção de pesquisas
acadêmicas com as crianças indígenas nas cidades, tanto no campo das Ciências Sociais,
quanto nas Ciências Humanas. Já no início deste trabalho de pesquisa, apontou-se como
um grande desafio a ser enfrentado, a construção de referenciais específicos para a
análise desse processo.
Por outro lado, justifica-se pelo caráter político, surgido da própria negação da
condição de ser indígena, presente em elementos da legislação e em um viés
conservador também na literatura científica. Nesse contexto de estudo, os povos que não
estão em seus espaços tradicionais, ou seja, nas aldeias, são caracterizados como
resultantes de um processo de exclusão, logo, os Sateré-Mawé “urbanos” estariam no
bojo dessa questão.
Ser indígena pressupõe estar nas aldeias? Os povos que deixaram seus lócus de
origem deixaram de ser indígenas? Uma criança que nasceu na cidade, mas é filha de
pais indígenas e criada em um processo de preservação de suas tradições perde a
condição de fazer parte da etnia? As crianças Sateré-Mawé produzem uma cultura
infantil que pode ser caracterizada como uma cultura infantil indígena? Qual o papel da
escola no processo de sustentação e/ou negação da condição étnica desses povos?
Essas e muitas outras questões devem ser debatidas e fazer parte das discussões
dos campos de pesquisa que lidam com a temática, pois, para Barreto e Almeida (2007,
p. 10), “Os que não conseguiram tal feito, ficaram perdidos no interior de um voo
21

comedido, aprisionados nas correntes de um universo definido pelas regras do jogo


oficial [...]”. Logo, esta tese defende as crianças Sateré-Mawé do grupo pesquisado,
como crianças indígenas que vivem na cidade, mas que mantém sua condição étnica,
contrapondo-se às lógicas de negação e aculturação.
Tais situações são explicitadas por Santos (2007, p. 07), que fornece subsídios
para enveredarmos por essas trilhas um tanto desconhecidas, que trazem no seu bojo
todo o peso de um grupo social e de uma cultura pretensamente apagada pelas vozes
que dominaram e ainda dominam os nossos tempos, mas que está viva e intensa nos
cotidianos dos diversos grupos indígenas. Desta forma, questiona o autor:

Há alguma relação entre a ciência e a virtude? Há alguma razão de peso para


substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que
partilhamos com os homens e mulheres de nossa sociedade pelo
conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?

Assim, na contramão de alguns discursos instituídos como verdadeiros, estamos


– todos aqueles que acreditam na infância socialmente em construção e que se revitaliza
nos múltiplos contextos sociais– compondo um campo de estudos14, cuja produção
epistemológica, caminha para um fértil espaço de pesquisas e a constatação de que as
crianças produzem conhecimentos, lógicas, culturas, saberes, enfim vidas próprias que
devem ser vistas, ouvidas e, cada vez mais, visibilizadas e não no desaparecimento da
infância15.
No âmbito desse debate, Sarmento (2007, p.p. 43-44) instiga a enveredarmos por
tais questões quando afirma que:

O que pretendemos destacar, sobretudo, são os aspectos epistemológicos que


se encontram em jogo na investigação dos mundos sociais da infância e
contrapor ao entendimento das crianças como objetos de conhecimento
social, a perspectiva das crianças como sujeitos do conhecimento; aos
procedimentos analíticos e interpretativos que rasuram ou esvaziam de
conteúdo as interpretações das crianças sobre seus mundos de vida,
procedimentos que permitem uma efectiva escuta da voz das crianças, no
quadro de uma reflexividade metodológica que recusa o etnocentrismo
adultocêntrico.

14
Refere-se aqui, principalmente aos “Novos Estudos Sociais da Infância”.
15
Neil (1999).
22

Essa reflexividade metodológica indicada pelo autor considera que as crianças


não são somente o futuro, como se decantou por muito tempo – principalmente na
discussão da sociologia moderna que criou processos contínuos de dicotomias – elas
são o hoje, pois foi sob essa afirmação do futuro que se construiu todo um processo de
negação da pluralidade dos tempos da infância. E é, certamente, sob essa contra-
afirmação do hoje, da criança como agente social, um ser de direitos, que onde houver
quem acredite nesses referenciais, o quebra-cabeça estará montado. Não é mais um
amontoado de peças soltas, e sim, um campo fortemente fundamentado, capaz,
inclusive, de resistir aos domínios impostos pela pretensa ciência da verdade e pelos
“novos sacerdotes do poder”, que vão “[...] ocupar posição de relevo no sistema de
poder, passando então a proteger a ordem sagrada [...]” (Bourdieu, 2004, p, IV).
Neste sentido, para Prout (2004, p. 4):

A Sociologia moderna reflecte esta tendência geral, sendo marcada pela


proliferação de tais dicotomias, as quais, por sua vez, dividem a realidade
social em tópicos distintos: estrutura versus acção [agency]; local versus
global; identidade versus diferença; continuidade versus mudança... e etc.
Mas, face a sociedades que se tornaram marcadamente desordenadas e
transbordantes em fenómenos mistos, híbridos, complexos, impuros,
ambivalentes, inconstantes, líquidos e em rede, a teoria social foi obrigada a
procurar novos termos de análise. Independentemente dos termos elaborados,
todos eles tentaram veicular a ideia de que a separação pela qual a
modernidade lutou já não era adequada para a tarefa de perceber a vida social
contemporânea.

A partir dessas afirmações de Prout e de outros autores com os quais


dialogamos nesta tese, foi possível refletir sobre esse tempo-espaço16 que se constitui à
luz do universo tão singular e da mesma forma tão plural desse povo indígena, que nas
suas expressões do cotidiano – entre elas a linguagem, os usos e costumes – mostraram
diversas formas de compreender a infância e acreditar nela como forma temporalmente
contextualizada, que garante hoje a continuidade para sua existência, transmitindo-lhes
seus valores históricos na crença de manterem-se vivos como Sateré-Mawé.
Aqui se reflete de forma muito efetiva o sentido da etnicidade que os envolve,
pois, apesar de estarem na cidade e conviverem com diversos elementos da cultura que

16
Giddens (1991) faz uma distinção entre tempo e espaço e tempo-espaço, para o autor, a primeira escrita
representa o processo de separação desses elementos forjados no bojo das contradições emergentes por
um grupo de teorias da modernidade, enquanto que a segunda escrita pode configurar um processo de
reaproximação desses elementos fundamentais para compreensão da vida em sociedade.
23

os rodeia, esse povo indígena mantém vivo o sentimento de pertença ao seu grupo de
origem, mesmo com traços culturais que se modificaram.
A esse respeito, Cunha (1986, p. 101) afirma que:

A construção da identidade étnica extraí assim, da chamada tradição,


elementos culturais que, sob a aparência de serem idênticos a si mesmos,
ocultam o fato essencial de que, fora do todo em que foram criados, seu
sentido se alterou. Em outras palavras, a etnicidade faz da tradição
ideologia, ao fazer passar o outro pelo mesmo; e faz da tradição um mito na
medida em que os elementos culturais que se tornaram ‘outros’ pelo rearanjo
e simplificação a que foram submetidos, precisamente para se tornarem
diacríticos, se encontram por isso mesmo sobrecarregados de sentido.
Extraídos de seu contexto original, eles adquirem significações que
transboram das primitivas.

Assim, as questões cotidianas que envolvem a vida das crianças transitam nesse
espaço de fronteiras onde se encontram presentes elementos da tradição e da renovação
da mesma, ora pela reprodução, ora pela ressignificação dos diversos saberes que
envolvem e são envolvidos no limiar desses dois mundos.
Não uma reprodução17 despida do contexto atual e das nuances que compõem
essa realidade, mas um prolongamento da vida na aldeia dentro de um outro espaço,
buscando fragmentos para garantir não só que a cultura e a tradição permaneçam vivas,
mas também que elas possam dialogar com os valores da sociedade circundante.
Pode ser visto como um “entre-lugar”18, mas que se efetiva como lugar de
garantias e acima de tudo de sobrevivência para os Sateré-Mawé que moram na cidade,
continuando a ser um povo indígena que consegue se manter, como já afirmado, pelo
sentimento de pertencimento ao seu grupo, pela etnicidade que se apresenta de várias
maneiras, seja pela linguagem, pelos mitos e pelas suas crenças a partir de outras formas
de se organizar em grupo que permitem a transição entre o saber tradicional e o saber
oriundo do espaço urbano, sem perder a essência da sua condição de povo indígena.

17
Na perspectiva da reprodução interpretativa (CORSARO, 1997, p.2), “[...] a qual eu propus como uma
alternativa ao termo socialização, tentei fazer uma ponte entre o fosso micro-macro, salientando a agência
das crianças na sua produção e participação nas suas próprias e únicas culturas de pares. Estas culturas de
pares resultam da apropriação criativa que as crianças efectuam da informação do mundo adulto para
endereçarem os seus próprios interesses enquanto grupo de pares. Por outro lado, de acordo com a noção
de reprodução, eu argumento que as crianças não apenas internalizam a sociedade e a cultura, mas estão
também a contribuir activamente para a reprodução e mudança cultural. Esta ênfase na reprodução
também implica que as crianças, são, pela sua participação efectiva na sociedade, constrangidas pela
estrutura social existente e pela reprodução social.”.
18
Bhabha (2005)
24

Assim, longe dos grandes debates sobre as teorias do direito que tratam dos
pluralismos jurídicos e sobre as relações entre conceitos normativos da
ciência jurídica e conceitos empíricos das ciências sociais, estamos diante de
realidades localizadas e processos sociais com diferentes modalidades de
afirmação étnica e com a consolidação de suas respectivas territorialidades
especificas. A interpretação do sentido profundo desta força mobilizadora
desafiante e desta dinâmica de autoconsciência cultural parece voltar-se
principalmente para as expressões de identidade (ALMEIDA, 2007, p. 15).

À luz dos referenciais produzidos nacional e internacionalmente e das pesquisas


que realizamos no decorrer desses últimos quatro anos – buscamos compor os múltiplos
e diversos olhares que constituem esse contexto, sobre as crianças indígenas nas
cidades, em específico a infância das crianças Sateré-Mawé. Pois, ao mesmo tempo em
que essa infância é olhada pelas ciências e, em muitos casos, negada por ela, não perde
os elementos do cotidiano, suas expressões, seus jeitos de ser, como nos disse Taíza (12
anos) “Nós estamos na cidade, mas não deixamos de ser Sateré-Mawé…”.
Assim, imbuídos por esse objetivo, caminhamos nessa estrada sinuosa, com pés
firmes, que nos apoiaram e não nos permitiram desistir diante dos diversos percalços
existentes, que por vezes foram dolorosos, porém houve alento nas diversas situações
vividas entre as crianças, principalmente como esta, exposta por Raquel (09 anos):
“[…] uma vez me tacaram uma pedra e me disseram que lugar de índio é no mato”.

Passeios por ruas paralelas ainda mais estreitas, ou desvios mais amplos,
também não causam muito dano, pois não esperamos encontrar progresso ao
fim de uma estrada reta, onde se anda incansavelmente para frente, e sim
através de caminhos sinuosos e improvisados, onde o resultado aparece onde
tem que aparecer. (GEERTZ, 2001, P. 14).

Desta maneira, cada um dos cinco capítulos que compõem a tese afirma e
confirma que não estamos sós, ao contrário, estamos juntos com as crianças Sateré-
Mawé, seu povo e muitas outras crianças (como num grande puxirum19) que, pelas suas
vozes, estão fazendo ecoar o trabalho de muitos pesquisadores por esse mundo afora. É
como se, ao invés de um pequeno grupo de idealistas defendendo suas utopias
irrealizáveis, estivéssemos munidos de muitos instrumentais teóricos para enfrentar as
dificuldades que estão postas. Esperamos então, neste sentido, com esta tese, contribuir
com esse movimento.

19
Para os povos indígenas, o puxirum representa o encontro, a união, o espaço coletivo...
25
26

TRAJETÓRIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: TRILHAS


20
2. C APÍTULO I:

CONSTRUIDAS E EM CONSTRUÇÃO

Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social enquanto


elementos de conhecimento e de comunicação.
(BOURDIEU, 2007, p. 10)

O objetivo deste capítulo é discutir os caminhos percorridos durante a realização


da pesquisa e da construção da tese, tendo como questões norteadoras as trajetórias
teórico-metodológicas, que foram utilizadas durante o processo, e uma série de questões
que compuseram nossas escolhas e outras que ainda precisam ser debatidas neste campo
de pesquisa que exige um grande esforço para buscarmos as ferramentas necessárias
para dar conta de toda a especificidade presente na realidade das crianças indígenas que
moram nas cidades.
Buscamos estabelecer um movimento de partilhar com outros campos do
conhecimento de advogam a perspectiva da infância e das crianças como agentes
sociais, sem perder o foco central da tese que se assenta no campo pedagógico, pois a
mesma se caracteriza como um estudo da área da educação, apesar de termos todo um
estudo interdisciplinar que nos possibilitou um maior aprofundamento acerca da vida
das crianças, tanto na comunidade, quanto nas escolas.

2.1 As escolhas, os pressupostos e os objetivos deste trabalho

“[...] considerar a participação das crianças na investigação, é mais um passo para a


construção de um espaço de cidadania da infância, um espaço onde a criança está

20
Créditos: foto tirada pelo pesquisador na comunidade. Crianças Sateré-Mawé.
27

presente ou faz parte da mesma, mas para além do mais, um espaço onde a sua acção é
tida em conta e é indispensável para o desenvolvimento da investigação.”

(SOARES, 2006, pp. 28-29)

Adentrar no campo dos estudos da infância foi, no decorrer da nossa trajetória


acadêmica, uma difícil escolha, uma vez que essa caminhada na área da educação se
deu, primeiramente, pela inserção no curso de Magistério em nível médio, no ano de
1987 – de forma bastante tímida – e mais, fortemente, na graduação em Pedagogia, no
ano de 1992 e, logo em seguida, pela experiência como docente nos anos iniciais do
ensino fundamental e na educação infantil. Foram tempos de muitas angústias, cercadas
de indefinições e uma série de questionamentos. A inquietude tomou conta, desde
aquele momento e, felizmente, fez com que buscasse conhecer e compreender melhor
essa área da educação e prosseguir no caminho.
Santos (2007, p. 08), ao falar dos encontros com o inusitado, destaca a
importância de nos sentirmos frágeis diante de processos novos que inquietam e nos
fazem enfrentar os desafios desses dilemas do não saber. Assim, explica o autor:

[...] instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais


estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder;
admitimos mesmo, noutros momentos, que essa sensação de perda seja
apenas a cortina de medo atrás da qual as novas abundâncias da nossa vida
individual e colectiva. Mas mesmo aí volta a perplexidade de não sabermos
o que abundará em nós nessa abundância.

Desta maneira, o estudo e a inserção no contexto das crianças indígenas


começaram, não pela certeza de saber o que se estava fazendo, mas pela dúvida e pelas
incertezas do não saber, pois uma outra situação se pôs diante do caminho que
estávamos trilhando, um novo jogo de saberes e não saberes começaram a imbricar a
relação de maneira, a princípio, um tanto elucidativa e contraditória, o que nos remeteu
a refletirmos sobre as análises de Berger e Luckmann (1985, p.p. 38-39).

[...] tenho consciência em que o mundo consiste em múltiplas realidades.


Quando passo de uma realidade a outra, experimento a transição como uma
espécie de choque. Este choque deve ser entendido como causado pelo
deslocamento da atenção acarretado pela transição [...] A realidade da vida
cotidiana, porém, não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça
fenômenos que não estão presentes.
28

Foi basicamente assim que começou o trabalho com as crianças indígenas, como
um desafio em tentar compreender as dúvidas da docência universitária no Estado do
Amazonas, em pleno desenvolvimento de um trabalho de pesquisa com um grupo de
alunos da graduação21 nas periferias da cidade de Manaus, quando nos deparamos com
duas comunidades indígenas dentro da cidade. Se deste momento já tínhamos um
grande desafio em tentar compreender as diversas nuances da infância dos meios
populares dos bairros que estavam sendo pesquisados22, um abismo surgiu para nós
quando nos vimos diante desses grupos de crianças indígenas.
Essas crianças, da etnia Ticuna e Sateré-Mawé, além da pobreza que era
característica comum de todas as demais crianças que faziam parte da pesquisa,
apresentavam, e ao mesmo tempo, representavam uma realidade que desconhecíamos–
apesar de estarmos na região com a maior população indígena do país – pois sequer
tínhamos ideia da existência das mesmas e de muitas outras na cidade de Manaus, e
muito menos como encarar essa situação de tripla exclusão: ser criança, ser pobre e ser
indígena.
Neste sentido, segundo Bourdieu (2007, p. 31):

Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de


uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela é fora das suas
relações com o todo […]. Isto terá como consequência que quase sempre nos
acharemos expostos à alternativa da análise intensiva de uma fração do
objeto praticamente apreensível e da análise extensiva do objeto verdadeiro.

Assim, foi a partir desses momentos inusitados que se tornou necessário tomar
uma atitude diante da situação que estávamos nos deparando, surgindo primeiramente a
vontade e, consequentemente, a possibilidade de começarmos a enxergar esse grupo de
crianças que estava tão próximo de nós, e ao mesmo tempo tão distante pelos processos
de invisibilização construídos pela sociedade e reforçados por nós mesmos, membros da
academia.

21
Refere-se aqui ao trabalho docente no âmbito da disciplina Fundamentos da Educação Infantil nos anos
de 2003 e 2004, disciplina esta que compunha o currículo do Curso Normal Superior da Universidade do
Estado do Amazonas, fazendo parte do elenco de componentes que visavam a formação do professor da
Educação Infantil. Desde 2007, a universidade não oferece mais esse curso e passou a ofertar à
comunidade estudantil do Amazonas o curso de Pedagogia, mantendo o enfoque para a formação de
docentes.
22
A pesquisa de cunho exploratório consistiu em fazer uma articulação entre os temas discutidos em sala
de aula e os diversos contextos que envolvem a realidade das crianças na cidade de Manaus, privilegiando
um contato dos acadêmicos aos bairros mais pobres da cidade a partir de uma imersão aos diversos
mundos das infâncias locais, sem a intenção de ir nas escolas e sim observar o cotidiano das crianças.
29

Condição alimentada pelo desconhecimento e descaso com essa realidade tão


premente em nossa cidade de Manaus, mas que, pela ignorância, ou ainda pelos
processos de “branqueamento”23, havia sido apagada das nossas formas de compreender
e conceber a infância, apesar de acreditarmos que estávamos trabalhando com a
dimensão plural do termo e de sua constituição no contexto local.
Esse impacto também se deu com a língua dessas comunidades e, segundo Silva
(2007, p. 68), com muitas outras comunidades indígenas pelo fato de se ignorar os
processos linguísticos próprios desses povos. Neste processo de ajustamento da língua,
para a autora, “O não falar não foi uma decisão, mas uma imposição. Essa imposição
acompanhou todas as etapas do processo de territorialização linguística a que foram
submetidos os diferentes povos indígenas”. (Grifo nosso).
Neste sentido, segundo Elias (1994, p. 05):

A estrutura das línguas é determinada pela sua função social como meio de
comunicação. Podemos admitir que todas as sociedades humanas partilham
entre si um fundo comum de experiências e, portanto, de conhecimentos.
Por isso, podemos verificar que algumas sociedades possuem representações
simbólicas de tipos de conhecimentos que estão ausentes em outras
sociedades.

Nosso desconhecimento deu-se no bojo dos processos de “imposição” dos quais


acabamos presos. Assim, o olhar representou aquele que não vê o outro e põe, a nós
mesmos, como a referência das referências, ou seja, a criança é branca ou negra, rica ou
pobre e faz parte do nosso mundo urbano. É importante salientar também que
estávamos completamente determinados por uma visão teórica que só concebia a
diferença sob a ótica da divisão das classes sociais.
Essas ausências da “não-consciência”24 sobre os processos linguísticos e, logo,
sociais e culturais com o grupo dos Sateré-Mawé, que se mostravam como
incompreensíveis, representou um temor quanto ao estreitamento das nossas relações
com eles. No entanto, aos poucos fomos construindo nossas possibilidades de diálogos e
de aprendizagens desses elementos, que se configuraram como fundamentais no
processo da inserção no contexto, abrindo-nos novos caminhos. Para Elias (2004, p. 03),
esse elo que foi sendo estabelecido, representa que “A localização plena de um fato no

23
Termo usado na literatura que estuda o processo de destribalização dos povos indígenas e de imposição
da perda de sua cultura para reproduzir a cultura do povo que os estava explorando, neste caso os
chamados povos brancos. (SILVA, 2007)
24
Expressão utilizada por Santos (1989, p. 32 e 33) para designar o “princípio da não-consciência” que se
opõe ao “êxito da vigilância epistemológica”.
30

espaço não é possível a menos que ela esteja acompanhada de sua localização no
tempo”, ou seja, nossa imersão de fato no cotidiano da comunidade e das crianças.
Logo, a escolha de adentrar neste lócus de pesquisa25, com as crianças indígenas
e mais especificamente com as crianças Sateré-Mawé, deu-se pela descoberta que foi
sendo acompanhada pelo desconhecido, ou seja, por questões da vida cotidiana e por
fundamentos teóricos que precisávamos conhecer.
Temores que nos fragilizaram, impondo inseguranças, principalmente pela
forma como nossa pesquisa seria encarada pelos diversos segmentos acadêmicos – em
nosso caso as linhas de pesquisa do programa de iniciação científica e de pós-graduação
da Escola Normal Superior/Universidade do Estado do Amazonas – que, pelos seus
processos próprios de reconhecimento dos “saberes instituídos”26, acabaram por criar
uma lógica da racionalidade científica27, que definiu como legítimo aquilo que a área
considera relevante e consensualmente aceito pelos seus membros.
Assim, conforme Bourdieu (2007), a identidade possui uma força mobilizadora
excepcional capaz de provocar rupturas drásticas nos mecanismos de dominação já
cristalizados, o que pode, no caso das pesquisas com os povos indígenas que vivem na
cidade, gerar processos próprios de ressignificação dos modos de compreender e viver a
realidade e se contrapor ao modelo hegemônico de fazer pesquisa.
Desta maneira, a transgressão nesses momentos de busca por novos nichos
acabou por nos revelar, e neste sentido desvelar, a necessidade de rupturas com as
formas pré-concebidas de fazer ciência28, e, propor novos caminhos e outras
possibilidades de adentrar em espaços pouco convencionais e que requereram, além de
uma “vigilância epistemológica”29, uma capacidade de “escavação”30 que foi permitindo

25
Em pesquisa anterior, financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Universidade do Estado do
Amazonas (2004/2005), realizamos um trabalho denominado “Geografia da Infância Indígena em
Manaus” que se encontra nos relatórios finais do projeto, onde conseguimos mapear a quantidade de
crianças indígenas na cidade e, a partir deste mapeamento, fizemos a escolha de trabalhar com as crianças
Sateré-Mawé. No subtítulo que chamamos de “Percursos e Percalços da Pesquisa” onde tratamos das
questões metodológicas, aprofundaremos melhor esta questão.
26
Bourdieu (2004).
27
“O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica
do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais.
Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade
se estende às ciências sociais emergentes [...] Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é
também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de
conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios...” (SANTOS, 2007, p. 10).
28
Numa perspectiva tradicional.
29
Bourdieu (2007, p. 58). “A objetivação da relação do sociólogo com o seu objecto é, como se vê bem
neste caso, a condição de ruptura com a propensão para investir no objecto, que está sem dúvida na
origem do seu interesse pelo objecto. É preciso, de certo modo, ter-se renunciado à tentação de se servir
da ciência para intervir no objecto, para se estar em estado de operar numa objectivação que não seja a
31

descobrir discursos “não-ditos”31 e outras práticas que estavam escamoteadas por


processos de subalternização.
Assim, para Foucault (2007, p. 24):

[…] é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se
tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las das
sombras onde reinaram. E ao invés de deixá-la ter valor espontaneamente,
aceitar tratar apenas, por questões de cuidado com o método e em primeira
instância, de uma população de acontecimentos dispersos.

Passamos então, nas indicações de Foucault, primeiramente, a encarar o desafio


do novo e a buscar, nos diversos campos das Ciências Humanas e Sociais, outros
sentidos para compreender o terreno e tentar, ao entrar nele, encontrar maneiras de, em
um movimento de aproximação cada vez mais constante, articular saberes
aparentemente tão opostos, pela razão ocidental, propondo novas possibilidades –
entendidas por Santos (2008) por “Epistemologias do Sul”32 – e criando um canal de
linguagem “relacional”33 no qual uma dimensão da “poiesis”34 norteou os passos que
começávamos a dar, ainda meio que desequilibrados, mas que foram fundamentais para
chegarmos junto às crianças, seus pais e às lideranças das comunidades.
Começamos primeiramente pela tentativa de constituição de um grupo de
pesquisa na Universidade do Estado do Amazonas no ano de 200535, intitulado “As
crianças e os jovens no Amazonas: imaginários, representações históricas e problemas

simples visão redutora e parcial que se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a visão
global que se tem um jogo passível de ser apreendido como tal porque se saiu dele”.
30
“Uma historia que não seria escansão, mas devir: que não seria jogo de relações, mas dinamismo
interno; que não seria sistema, mas árduo trabalho de liberdade; que não seria forma, mas esforço
incessante de uma consciência em se romper e em tentar readquirir o domínio de si própria, até as
profundezas de suas condições”. (FOUCAULT, 2007, p 15).
31
Foucault (2005).
32
Este termo aparece de forma clara na revista intitulada “Epistemologias do Sul”. Ver Santos (2008)..
33
Bourdieu (2007).
34
De origem grega, o termo nos remete a uma forma de conceber a realidade e a escrita com um tom
poético, que agrega valores míticos e do cotidiano, visando dar mais suavidade a “dureza” da escrita e
análises científicas. (BARTHES, 2003).
35
O grupo teve em sua constituição original a presença de 04 professores e 08 alunos do curso Normal
Superior da Universidade do Estado do Amazonas e foi dividido em 4 linhas de investigação, na qual eu e
mais duas alunas ficamos coordenando o projeto “Geografia da infância indígena em Manaus: onde estão
as crianças?”, que resultou, ao final da primeira etapa, em um mapeamento do número de crianças e onde
estavam localizadas dentro das zonas da cidade. Este dado será bem discutido no capitulo I da tese. É
importante reforçar que o grupo se constituiu à margem do programa oficial da instituição, pois não
fomos aceitos em nenhumas das linhas de pesquisa já constituídas, e como não tínhamos nenhum
professor doutor, não podíamos propor a criação de outra linha. Logo o trabalho se deu pela iniciativa
própria do grupo, mas sem aprovação e reconhecimento das instâncias institucionais, o que culminou com
a dissolução do mesmo no ano de 2006.
32

educacionais da atualidade”, que, mesmo diante de uma série de dificuldades, entre as


quais a falta de financiamento, conseguimos caminhar com o trabalho, ainda que de
maneira precária.
De um dos resultados obtidos no primeiro ano, surgiu a ideia de construção do
projeto de doutoramento, que, após a identificação da grande concentração de crianças
indígenas na cidade de Manaus, objetivava, em parceria, em um segundo momento, com
o projeto do grupo, ir a campo e tentar conhecer como essas crianças viviam em seus
grupos étnicos e – no espaço urbano – construíam ou (des)construíam os elementos
tradicionais de seus povos, transformando-os ou não em suas culturas infantis.
O segundo momento que o grupo de pesquisa havia planejado não ocorreu
devido à paralisação do trabalho, já que esse se encontrava desativado desde o inicio do
ano de 2006. A efetivação do trabalho de pesquisa somente teve continuidade a partir do
desenvolvimento desta investigação no curso de doutoramento. Desta maneira, não mais
com uma vinculação ao grupo de origem, mas sim ao PPGE/CED/UFSC, e os
resultados são apresentados e discutidos no decorrer desta tese.
Assim, foi a partir da entrada no doutoramento do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2006 e, da inserção
no Núcleo de Estudos e Pesquisas na Educação da Pequena Infância - NUPEIN, que se
deu a concretização do trabalho, pois passamos a ter apoio institucional e,
principalmente, o reconhecimento da necessidade de conhecermos mais profundamente
a realidade das crianças Sateré-Mawé.
O processo de orientação, que se deu nos primeiros momentos do curso, no ano
de 2006, foi fundamental para delinearmos como seria conduzida a pesquisa. O
acompanhamento no decorrer de todo o trabalho consolidou os objetivos que fomos
definindo ao longo das reuniões de orientação e em cada momento de discutirmos o
andamento da pesquisa, das análises e da construção da tese.
Durante as orientações fomos delineando de forma detalhada como se daria a
pesquisa. Primeiramente fizemos um longo estudo teórico-metodológico, para só então
começarmos a estabelecer a escolha dos lugares da pesquisa, da etnia, dos sujeitos, do
tempo e da forma como seria a abordagem e a inserção junto às crianças, pois nas
indicações de Corsaro (2002, p. 114):

[...] as crianças começam a vida como seres sociais inseridos numa rede social
já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e da linguagem em
33

interacção com outros, constroem os seus mundos sociais, ou seja


‘microprocessos’ que envolvem [...] um complexo produtivo-reprodutivo.

Esse era então o primeiro pressuposto e, diante dele, outros foram surgindo e se
modificando no decorrer da pesquisa, considerando que para Graue e Walsh (2003) os
investigadores precisam enfrentar o desafio de aprenderem a descobrir, pois,
principalmente quando se trabalha com crianças essa premissa é ainda mais
fundamental. O cotidiano infantil é cheio de dúvidas, e a nossa “(in)capacidade” criativa
enquanto adultos, precisa abrir-se a esse universo de possibilidades, pois se acreditamos
que já sabemos o que queremos quando vamos realizar uma pesquisa com crianças, não
vale a pena sequer começar, já que o convívio com elas é tão cheio de fantasias e
realidades próprias, que nós adultos jamais poderíamos imaginar sem pararmos para
ouvi-las e escutá-las. Assim, os autores nos indagam para a seguinte reflexão:

Estudar as crianças – para que? Eis a nossa resposta: Para descobrir mais.
Descobrir sempre mais, porque, se o não fizermos, alguém acabará por
inventar. De facto, provavelmente já alguém começou a inventar, e o que é
inventado afecta a vida das crianças; afecta o modo como as crianças são
vistas e as decisões que se tomam a seu respeito. O que é descoberto desafia
as imagens dominantes. O que é inventado perpetua-as. (Idem, p. 12)

Diante disso, os objetivos foram sendo redefinidos gradativamente à medida que


a pesquisa foi ganhando materialidade e os percursos para a inserção nos espaços das
crianças Sateré-Mawé revelaram de forma mais evidente aonde queríamos e poderíamos
chegar. Os objetivos aqui elencados representam aqueles que conseguimos concretizar
no decorrer da pesquisa, por isso resolvemos não trazê-los em forma de verbos no
infinitivo, mas sim em forma de substantivos sendo detalhados no decorrer dos
capítulos seguintes da tese. Logo, o que buscamos realizar para melhor compreender o
mundo social das crianças Sateré-Mawé, pode ser assim visualizado:

 Conhecimento dos modos de vida e as relações sociais e educativas das


crianças Sateré-Mawé da área urbana da cidade de Manaus, a partir de seus
pontos de vista.
 Contextualização da trajetória da produção acadêmica sobre a infância
indígena no Brasil, buscando compreender os caminhos que estão sendo
construídos acerca desta temática de pesquisa.
34

 Análise das imagens e conceitos sociais das crianças (vozes infantis), buscando
compreender como estes agentes sociais pensam e concebem o mundo e a
escola.
 Resgate dos elementos culturais sobre a infância Sateré-Mawé, nos registros
históricos do Estado, da literatura da área e principalmente no cotidiano das
crianças na comunidade pesquisada.
 Reconhecimento de como as propostas curriculares, os projetos, os planos de
ensino e os professores das duas escolas urbanas pesquisadas consideram a
presenças das crianças Sateré-Mawé.
 Identificação dos processos de inserção escolar das crianças Sateré-Mawé, de
04 a 12 anos, e quais as estratégias sociais36 são construídas por elas no
processo de socialização.

Não há dúvidas que, para alcançarmos tais objetivos, houve uma série de
contradições que se ergueu e foi fundamental para chegarmos aos processos de análises
que nortearam a investigação e a escrita deste texto. Em momento algum objetivamos
apagar tais contradições, pois, se acaso o fizéssemos, estaríamos também, apagando
todo o processo que se descortinou nos momentos da pesquisa e da vida cotidiana das
crianças.
É fundamental deixarmos evidenciado que as premissas de dar voz às crianças e
entendê-las como agentes sociais não nos eximiu, em momento algum, da condição de
pesquisadores, muito menos do compromisso ético e epistemológico. Muito pelo
contrário, reforçou-se cada vez mais, para concretizar o que havíamos proposto. Para
tanto, as contribuições dos estudos e análises de Campos (2008, p. 41), foram
fundamentais neste caminhar.

A vontade de tornar a criança protagonista da pesquisa não deve levar o


pesquisador ou a pesquisadora a se apagar enquanto pessoa que detém um
conhecimento […] Neste sentido, é preciso saber relacionar as respostas das
crianças ao meio ambiente ao qual vivem e seu cotidiano.

36
No sentido do que Alisson James e Alan Prout (1990), pesquisadores ingleses, têm afirmado que é
essencial prestar atenção à possibilidade de as crianças se posicionarem de forma flexível e
estrategicamente dentro de determinados contextos sociais e de, através do foco nas crianças como
competentes, aprender mais sobre as maneiras como a sociedade e a “estrutura social” constrangem a
experiência social e são, elas próprias, produzidas e transformadas pela ação social de seus membros.
(Rocha, 2007).
35

Logo, os diversos processos vividos durante a pesquisa foram extremamente


fundamentais, aliados às incansáveis leituras feitas e às discussões, que abriram cada
vez mais nosso entendimento e deram suporte para redefinirmos as possibilidades de
compreensão do cotidiano das crianças Sateré-Mawé e de suas relações com a escola.
Pois para Rocha (2008, p.44), “Temos muito que aprender e conhecer sobre as crianças
tratadas no plural […] e temos muito a debater sobre as orientações teórico-
metodológicas, quando se trata de pesquisa com crianças”. É exatamente isso que nos
propomos a fazer no título seguinte.

2.2 Os percursos e percalços da pesquisa: apontando desafios e


revelando caminhos

“A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão…, é


ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação.”

( BENJAMIM, 2007, p.121)

A temática indígena tem sido muito discutida, pesquisada e evidenciada nas


últimas décadas37, em especial nas áreas de Educação e de Sociologia, influenciadas
pela relevância dada ao assunto no campo da Antropologia. Seguindo esse caminho de
crescimento, não há como negar que outras áreas do conhecimento, também, passaram a
ter uma preocupação mais efetiva com a questão, o que resulta em um crescimento
significativo das produções acadêmicas e na conferência de uma maior visibilidade para
os povos indígenas. Contudo, o estudo acerca das crianças não tem merecido o mesmo
destaque. Essa trajetória não se caracteriza somente com as crianças indígenas, mas com
as crianças como um todo, principalmente, aquelas sujeitas a situações de risco e
exclusão sociais, o que tem representado um caminhar lento frente às pesquisas com os
adultos.
Porém é inegável que, no Brasil, muitos trabalhos significativos38 foram
realizados nos últimos anos e apontam prospectivas, no mínimo, animadoras sobre esses

37
Fernandes (1979); Meliá (1979); Brandão (1981); Laraia (1986); Carneiro da Cunha (1987); Junqueira
(1991); Capacla (1995); D'angelis e Veiga (1997); Silva (1998); Carvalho, (1998); Silva e Grupione
(1998); Weigel (2000); Silva e Ferreira (2001); Freire (2000, 2004); Arguelo (2002); Nascimento (2004);
IBASE (2004); Veiga e Ferreira (2005), entre outros.
38
Martins (1993); Nunes (1997); Freitas (1997); Silva, Macedo e Nunes (2002); Freitas (2002); Faria,
Demartini e Prado (2002); Nunes, (2003); Veiga e D’angelis, (2003); Cohn (2005); Nascimento (2005);
Del Priori (2006), entre outros.
36

pequenos agentes sociais e suas presenças na literatura especializada e em espaços onde


foram por muito tempo silenciados, a exemplo das Ciências Humanas e Sociais, como
argumenta Quintero (2002, p. 105):

É possível reafirmar que no campo das Ciências Humanas e Sociais os estudos


sobre a criança e a infância não têm merecido, por parte dos pesquisadores, ao
longo de todo este século, uma atenção mais regular e sistemática. Ao que tudo
indica, há ainda, resistência por parte dos cientistas sociais em aceitar o
testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável.

Sob o foco desta argumentação, partimos do pressuposto de que a criança


Sateré-Mawé é um ser histórico e, por isso, enveredamos nossos olhares ao
reconhecimento desta condição social de agente39. Essa possibilidade, para Silva,
Macedo e Nunes (2002, p. 15), apesar das questões balizadas pelo trabalho do
historiador francês Philippe Áries: A História Social da Criança e da Família
(1962:1981), das propostas surgidas na década de 1970 e do crescimento dos debates na
década de 1980, a sedimentação de fato deste espaço de pesquisa ganha relevância a
partir de 1994, influenciada pelo movimento europeu da Antropologia, em especial da
Etnografia, que “[...] inaugura em definitivo um espaço de investigação científica,
legitimando-o como de vital importância para as crianças e para a reflexão atual que se
faz no seio das ciências sociais e da educação”.
Fundamentados nos estudos da antropóloga Allison James e do sociólogo Alan
Prout, de 1990, explicitaremos, a seguir, seis princípios40 destacados pelos autores, que
têm sido utilizados para orientar a consolidação de um novo paradigma para o estudo da
infância e que muito contribuíram, tanto teórico quanto metodologicamente, para os
“Novos Estudos Sociais da Infância”:

1. A infância deve ser entendida como construção social, fornecendo assim


um quadro interpretativo para os primeiros anos da vida humana. A infância,
por oposição à imaturidade biológica, nem é uma característica natural nem
universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente específico
estrutural e cultural das várias sociedades.

39
Nossa opção metodológica considera as crianças como agentes sociais e coaduna com outras
concepções que compreendem a infância no dinamismo da construção da vida em sociedade. Porém, não
compreendemos que os diversos termos ou categorias analíticas utilizadas para designar as crianças são
sinônimos, apesar de utilizarmos autores que trabalham com definições como sujeitos históricos, atores
sociais ou protagonistas.
40
Optamos em utilizar a tradução, do inglês para o português, contida no texto de Silva, Macedo e Nunes
(2002, p. 18), logo os seis itens são uma reprodução literal do texto das autoras.
37

2. A infância deve ser considerada como variável de análise social, tal como
gênero, classe ou etnicidade, pois estudos comparativos revelam mais uma
variedade de “infâncias” do que um fenômeno único e universal.
3. As relações sociais e a cultura das crianças são merecedoras de estudos
em si mesmas, independente da perspectiva e dos interesses dos adultos.
4. As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de
sua própria vida social, na dos que as rodeiam, e na sociedade na qual vivem.
As crianças não são apenas sujeitos passivos de estruturas e processos
sociais.
5. A etnografia é um método particularmente útil ao estudo da infância.
Permite à criança participação e voz mais direta na produção de dados
sociológicos do que normalmente é possível por meio das pesquisas
experimentais.
6. A infância é um fenômeno em relação ao qual uma dupla hermenêutica das
ciências sociais está presente, ou seja, a proclamação do novo paradigma da
sociologia da infância também deve incluir e responder ao processo de
reconstrução da infância na sociedade.

Valendo-nos desses princípios, fomos impulsionados a enveredar no espaço da


pesquisa, que teve na abordagem qualitativa, a partir de um estudo do tipo etnográfico,
um processo de objetivação participante41, e na análise documental, suas opções
metodológicas, pois para chegarmos aos objetivos que havíamos proposto no projeto de
tese e no caso específico do estudo com as crianças da comunidade indígena dos Sateré-
Mawé e suas relações com a escola, elas se apresentaram como bases fundamentais para
que pudéssemos dar conta, tanto da inserção nos contextos da pesquisa quanto dos
procedimentos de análise42.
O uso da abordagem etnográfica e ainda da objetivação participante, deram-nos
suporte para superarmos muitos obstáculos e adentrarmos de maneira mais aprofundada
nos cotidianos das crianças Sateré-Mawé, na sua comunidade e nos diversos espaços
onde estas transitavam. Assim, segundo Cohn (2005, p. 10), “usando-se da etnografia,
um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas fazem e ouvir delas o
que têm a dizer sobre o mundo”.
Nesta linha de investigação, para Bourdieu (2007, p. 51), “o trabalho de
objetivação incide neste caso sobre um objeto muito particular” o que em nossa
pesquisa foi fundamental esse reconhecimento para compreendermos os diversos
elementos constitutivos da infância das crianças Sateré-Mawé. Assim participar,
efetivamente, da diversidade dessa realidade é na indicação do autor (idem, p. 52)

41
Segundo Bourdieu (2007, p. 51) é preciso não confundir objetivação participante com observação
participante. Para o autor a primeira representa de fato uma imersão no cotidiano da realidade por meio da
pesquisa e a segunda representa “uma – falsa – participação num grupo estranho”.
42
Conforme Caria (2002).
38

“conferir a si mesmo os meios de reintroduzir na análise a consciência dos pressupostos


e dos preconceitos, associados ao ponto de vista local e localizado daquele que constrói
o espaço dos pontos de vista”.
Porém, na escola, fizemos uma observação voltada para a forma como os
professores lidavam com as crianças e recolhemos alguns documentos da escola para
fazermos as análises. Estas opções metodológicas foram fundamentais para que se
chegasse as crianças em seus espaços sociais na comunidade, e, somente, após oito
meses de convívio intensivo é que passamos a frequentar as escolas para acompanhá-
las.
A pesquisa de campo configurou-se como uma possibilidade de suma
importância, através da recolha das vozes, imagens, desenhos, brincadeiras e diálogos
com as crianças, por que pudemos, gradativamente, acompanhar as nuances dos seus
mundos infantis e as formas próprias de construírem suas culturas da infância. Esses
momentos de convívio com as crianças nos proporcionaram caminhar por diversas
possibilidades de (re)conhecê-las e acompanhar os movimentos que se estabeleciam
entre as fronteiras visíveis entre o espaço urbano e a vida na comunidade,
principalmente pelo resgate da cultura tradicional dos Sateré-Mawé frente ao processo
de adaptação e a reprodução dos modos de viver circundantes que a cidade tem como
característicos e próprios.
Já nas escolas, essas relações não se deram da mesma maneira, tivemos muitas
dificuldades em adentrar nesse espaço, principalmente, em conseguir acompanhar as
crianças, uma vez que os diversos membros das mesmas, como veremos no decorrer dos
capítulos III E IV – que tratam especificamente da relação com a escola – tendem a
trabalhar para que as crianças sejam levadas a seguir a ordem imposta pelo ambiente
escolar, que define os comportamentos, padroniza as condutas, as formas de se
expressarem, de se vestirem e a maneira de responderem às exigências postas como
legítimas.
Por tais motivos e entre outros, é que se fez necessária uma ampla revisão de
literatura, que apontou tanto para a reformulação do projeto de pesquisa quanto na
elaboração dos instrumentos de “geração de dados”43. Somente após o amadurecimento

43
A utilização deste termo é uma apropriação da obra de Graue & Walsh (2003, p.115). Os autores
preferem o termo geração de dados a recolha de dados, pois, segundo eles, “Os dados não estão aí a nossa
espera, quais maçãs nas árvores prontas a serem colhidas. A aquisição de dados é um processo muito
activo, criativo e de improvisação”.
39

e definições das questões norteadoras e das trocas de experiências no processo de


orientação é que fomos a campo.

2.2.1 Conviver com as crianças

Durante oito meses passamos a conviver, diariamente, com as crianças na


comunidade, acompanhando as diversas atividades que desenvolviam. Como elas
estudavam no horário da tarde, a pesquisa acontecia sempre pela manhã. Chegávamos
por volta das 08h e ficávamos até as 12h. Esse horário correspondia aos dias de segunda
a sexta-feira. No sábado ou no domingo só íamos à comunidade quando havia algum
tipo de atividade coletiva realizada por eles, neste caso tanto adultos quanto crianças,
além de acompanharmos outras atividades externas como feiras de artesanato,
apresentações de danças tradicionais e eventos realizados pelas organizações
indigenistas.
Para que a pesquisa tomasse um foco em que pudéssemos envolver as
instituições que tratam da questão indígena em Manaus, elaboramos um documento que
foi encaminhado para seus representantes como forma de tomarem conhecimento do
trabalho e se pronunciarem acerca de como poderiam ajudar. As instituições foram as
seguintes, e a resposta de cada uma ou a não resposta será explicitada.
FUNAI (Fundação Nacional do Índio) - Não enviou resposta escrita, apenas nos
deu um telefonema feito pela secretária do presidente local, que se dispôs a nos ajudar
no contato com a comunidade, caso fosse necessário, e para outros assuntos que
viéssemos a precisar.
FEPI (Fundação Estadual de Política Indígena) - Enviou um documento escrito,
convidando para uma reunião com seu presidente. Na reunião, foi lido o projeto de
pesquisa e explicadas as dimensões gerais de como este seria efetivado. A instituição
solicitou que procurássemos a liderança da comunidade para fazer o contato inicial e se
colocou a nossa inteira disposição para contribuir com a pesquisa. Para eles os povos
indígenas não precisam de autorização externa para definir suas ações, essa ainda é uma
visão muito presa à concepção de tutela, condenada pela instituição.
COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) -
Não respondeu nosso documento, mas, no processo de desenvolvimento da pesquisa,
estivemos algumas vezes na sede da instituição em Manaus, pois, como a mesma dispõe
de uma assessoria jurídica, participamos de algumas reuniões com a advogada e a
40

coordenadora local, pois estávamos junto com os Sateré-Mawé, elaborando o Estatuto


da Associação que eles criaram e contribuindo no processo de legitimação tanto junto
aos órgãos quanto aos documentos de cunho legal. O apoio da COIAB se restringiu a
nos ajudar neste processo junto à organização do novo estatuto da Associação que foi
aprovado em junho de 2007, mas, desde 2001, já existia com o nome de WAYKIHU. A
consolidação dessa associação representa um grande instrumento de luta sendo de
fundamental importância na luta por seus direitos e na solidificação da organização da
comunidade para suas conquistas.
UPIM (União dos Povos Indígenas de Manaus) - Essa instituição havia acabado
de ser criada e ainda estava em processo de regularização. Sua função é articular os
povos indígenas que vivem na cidade de Manaus e lutar pelos seus direitos. Dela
também não recebemos nenhuma resposta escrita, porém conseguimos conversar com o
presidente-fundador, que se mostrou bastante favorável ao projeto e, apesar de ainda
estarem em fase de organização, colocou-se a nossa disposição para discutirmos o
projeto e também sugeriu que a via de contato com a comunidade seria pelas lideranças.
Inclusive reforçando que os povos indígenas que vivem na cidade não aceitam a ideia de
tutela, ou seja, segundo o presidente são os próprios membros da comunidade que
devem decidir sobre o que se deve ou não fazer nos seus espaços, inclusive as
pesquisas.
Após tais informações, elaboramos outro documento direcionado às lideranças
das duas comunidades onde pretendíamos realizar o trabalho, pois assim estava previsto
no projeto de tese. A comunidade dos Ticuna, no bairro Cidade de Deus, e a
comunidade dos Sateré-Mawé, no bairro da Redenção.
A primeira comunidade visitada foi a dos Ticuna. Comunidade localizada na
Zona Leste da cidade de Manaus, no Bairro Cidade de Deus. Na segunda-feira, dia 09
de janeiro de 2007, fomos até o local, conversamos com um representante das
lideranças e entregamos o documento de solicitação para que pudéssemos realizar a
pesquisa. O representante pediu que voltássemos no sábado, dia 13 de janeiro de 2007,
pois, como faz parte da tradição da comunidade, o sábado é o dia em que os membros se
reúnem para discutir questões pertinentes a sua organização.
Ao chegarmos no dia marcado, fomos recebidos pelo representante da
comunidade, que logo foi dizendo que não autorizaria a realização da pesquisa, pois
muitas pessoas já tinham ido para lá fazer trabalhos similares e nenhum resultado ou
contribuição para eles era dado. Então a comunidade havia decidido não mais receber
41

pessoas de fora para realizar qualquer tipo de contato com as crianças e mesmo com os
adultos, a não ser que houvesse algum benefício concreto para a comunidade. Ele,
assim, nos disse: “só aceitamos que entrem na nossa comunidade quando nos
garantirem vagas nas universidades, em cursos […]. Muitos já vieram aqui e nada foi
feito em favor do nosso povo”44.
Essa situação reflete, em parte, o processo de exploração que esse povo indígena
passou durante muito tempo, o que lhe fez criar estratégias de afastamento da presença
de pessoas não índias na comunidade, principalmente no contato com as crianças, e
também caracteriza a necessidade que a comunidade tem em conseguir melhorias para
sua gente, o que pode representar um movimento de valoração das suas culturas, no
sentido de só permitir que outras pessoas tenham acesso a elas quando derem algo em
troca.
Partimos então para a segunda comunidade, os Sateré-Mawé. Comunidade
situada na zona Centro-Oeste da cidade de Manaus, nas proximidades do conjunto
Santos Dumont, bairro da Redenção. Na quarta-feira, dia 17 de janeiro de 2007, fomos
recebidos pelo líder da comunidade o Cacique Manoel Luiz Gil da Silva, que leu o
documento e pediu que voltássemos dois dias depois, ou seja, na sexta-feira, dia 19 de
janeiro de 2007, para conversarmos com os membros da comunidade e explicássemos o
nosso trabalho.
Assim o fizemos. Dessa vez, tivemos espaço para fazer uma breve apresentação
do projeto e de como pretendia desenvolver o trabalho com as crianças. Os membros da
comunidade nos acolheram muito bem e ainda se puseram à disposição, apenas pedindo
que os ajudasse em assuntos que eles precisassem, pois por lá também já haviam
passado muitas pessoas e poucos tinham contribuído, mas para eles era sempre
importante que as pessoas pudessem saber da existência da comunidade e o quanto eles
lutam para se manter no local.
Após a reunião que autorizou a realização da pesquisa, marcamos o início do
trabalho para a segunda-feira seguinte, mais precisamente no dia 22 de janeiro de 2007.
Quando voltamos, foi entregue um outro documento pedindo autorização de cada um
dos pais, pois a autorização das lideranças já havia sido concedida. Começamos então o
convívio com eles, primeiramente os pais, pois antes de chegar às crianças procuramos
conhecer a comunidade, a forma como eles vivem, suas condições e principalmente

44
Como não houve autorização para realização do trabalho, resolvemos não utilizar o nome do
informante, respeitando a decisão da comunidade.
42

alguns elementos de sua cultura para que pudéssemos ter uma base mais próxima do
cotidiano até chegarmos às crianças.
Depois de uma semana na comunidade, observando e convivendo com os pais,
começamos então a compartilhar os espaços que as crianças transitavam. Neste primeiro
momento não utilizamos nenhum instrumento de pesquisa, apenas nos apresentamos a
elas e perguntamos se podíamos assistir suas brincadeiras. Essa atividade representou
nosso primeiro contato com elas. Após uma semana inteira apenas observando,
solicitamos aos pais e ao cacique que reunissem todas as crianças para conversarmos
com elas.
O cacique fez a apresentação, em seguida explicamos sobre o projeto e o que
faríamos na comunidade, perguntamos se elas gostariam de participar da pesquisa e se
poderíamos participar com elas das brincadeiras e outras atividades realizadas. As
crianças ficaram caladas e apenas balançaram a cabeça num gesto positivo. Afinal,
estavam lidando com um momento estranho que acabara de adentrar na comunidade,
apesar de todos os contatos que já havia desenvolvido com o cacique e com seus pais.
Uma das meninas, Taíza, de 12 anos perguntou: “O que o senhor vai fazer com a
gente?”. Respondeu-se que estávamos fazendo uma pesquisa que fazia parte de estudos
– assim como elas também fazem os seus estudos – e que elas iriam ajudar neste
trabalho. Ela respondeu: “Vamos estudar também? Então eu quero participar sim, eu
gosto muito de estudar, ainda mais se for aqui na comunidade…”, em seguida outras
crianças também responderam que gostariam de participar, o que foi de extrema
importância, pois não queríamos apenas a autorização dos adultos, mas as delas
principalmente.
Apesar dos critérios para participação na pesquisa se deterem ao estudo com
crianças entre 04 e 12 anos de idade que frequentavam escolas públicas regulares na
cidade, o que se caracterizou por um total de 12 crianças, o número de participantes nas
atividades foi bem maior, chegando, por vezes, a 20 crianças, pois os menores de 04
anos também participavam, principalmente por se tratarem de brincadeiras e outros
momentos que faziam parte do cotidiano delas.
Para Kramer (2002), não só os adultos devem permitir a participação das
crianças nas pesquisas, mas elas mesmas têm que autorizar sua participação, afinal,
partimos do pressuposto de que as crianças são agentes sociais e, como tais, merecem
esse reconhecimento.
Nesta mesma linha de fundamentação, afirma Ferreira (2002, p.165) que:
43

Reciprocamente, torna-se pertinente dar conta, nos diferentes papéis que as


crianças assumem frente ao investigador e nos usos sociais que deles fazem,
do modo como as «fraquezas» socialmente atribuídas se tornam forças
capazes de gerar perplexidades.

Assim, nos primeiros dias procuramos acompanhar as atividades sem o uso dos
instrumentos formais de “geração de dados”, seguindo as indicações de Ferreira (2002).
No entendimento dessa autora, os adultos devem ultrapassar alguns “rituais transitórios”
para serem aceitos no mundo das crianças, pois, na base de ingresso no universo das
suas realidades, encontram-se:

[...] relações e interacções sociais entre adulto e crianças e entre estas últimas,
onde poderes, racionalidades e subjectividades, aferindo-se em permanência,
(re)constroem reflexivamente sentidos partilhados do que «ali se está a fazer»,
assim é preciso entrar cuidadosamente no terreno (Idem, p. 150).

Tais indicações foram fundamentais para começarmos de fato a pesquisa usando


nossos instrumentos, pois, no momento em que começamos a utilizá-los, já
dispúnhamos de certa confiança por parte das crianças, o que nos ajudou, inclusive, a
explicar que a câmera fotográfica, o gravador, a filmadora, o caderno de campo, os
desenhos e os roteiros de entrevistas (diálogos) estavam sendo usados para que
pudéssemos conhecê-las melhor e que elas próprias poderiam utilizar esses
instrumentos e observar tudo que fizéssemos com eles, o que acontecia sempre após o
término da utilização dos mesmos. As falas gravadas eram ouvidas por todas elas e as
fotos e imagens eram observadas uma a uma, além de fazermos a leitura das
informações que havíamos anotado no caderno de campo.
Elas ouviam as gravações, viam as fotos, selecionavam os desenhos e para todas
essas atividades sentavam-se juntamente conosco para escolherem aquelas que mais
gostavam. Riam uma dos desenhos e das fotos das outras e principalmente das
gravações das músicas que cantavam e das falas onde se expressavam. Na maioria das
vezes excluíam aquelas que não gostavam e ressignificavam os seus próprios desenhos
dando novos sentidos àquilo que haviam falado, mas sempre preservando o momento da
realização45. Eram situações em que, de fato, elas se posicionavam e escolhiam, às
vezes meio tímidas olhavam e diziam: “pode mudar isso, dizer de outro jeito…?”

45
Esse foi um cuidado de cunho metodológico, para não perdermos a questão contextual, por isso a
necessidade de revisitar todo o material sempre, mas quando não era possível fazê-lo todo dia, fazíamos,
pelo menos, três vezes na semana.
44

(Raquel, 09 anos). Deixávamos sempre todas elas à vontade para fazerem as alterações
e escolhas que achassem necessárias.
Além desses momentos, as brincadeiras foram de fundamental importância, pois
eram situações ora de re-criação do imaginário da cultura de seu povo, entrelaçadas com
o cotidiano da comunidade circundante, ora brincadeiras aprendidas na escola e cheias
de regras, que elas, na maioria das vezes, mudavam os sentidos e davam características
próprias dadas as suas condições de realização. No capítulo II trataremos e exporemos
de forma mais aprofundada esses momentos de riquíssima fonte de conhecimentos, de
apropriação e interpretação dos universos circundantes.
Essa postura de pesquisa ajuda o pesquisador a entrar, na visão de Caria (2002,
p. 12), “[...] dentro do contexto em análise, apesar de não se transformar em autóctone”,
o que se refletiu nas atitudes das crianças frente aos nossos objetivos e a forma como
elas participaram cada dia mais efetivamente na condição de agentes.
Logo, para Mayall (2005, p. 138):

[...] trabalhar com crianças [...], poderá fornecer contextos especialmente


valiosos para recolha de dados, contextos que poderiam levar a informações
detalhadas e a revelações de conhecimento geralmente não conhecido pelos
adultos.

Neste sentido, os estudos da Sociologia, da História, da Pedagogia e da


Antropologia Geral e da Infância46 serviram de bases teóricas para as análises da
realidade que serão explicitadas ao longo do presente texto. A utilização dessas áreas,
de maneira interdisciplinar, alicerçou o levantamento das condições teóricas acerca dos
conceitos de infância e culturas infantis, que foram triangulados às vozes das crianças,
no intuito da construção das categorias que explicitaram as representações de infância
indígena e de cultura infantil indígena a partir do micro-contexto no qual as crianças
Sateré-Mawé estão inseridas, revelando-se o que elas pensam sobre a sua infância,
como elas constroem seus olhares sobre o jeito de ser Sateré-Mawé e como as
imposições da realidade (no seu contexto social e escolar) interferem ou modificam suas
culturas enquanto indígenas.

46
Geertz (1989 e 2001); Hall (1997); Pinto e Sarmento (1997); Nunes (1997); Ferreira (2000);
Montandon (2001); Corsaro (2002); Bourdieu (1979, 1982, 2003 e 2004); Iturra (2002); Cohn (2005);
Sacrintan (2000, 2005), entre muitos outros. No item 1.3 desta introdução discorreremos com mais
detalhes essas áreas do conhecimento, as categorias que utilizamos nas análises e os autores de referência.
45

Diante de tais situações, os muitos estudos que fizemos da obra de Bourdieu,


foram fundamentais na compreensão e analise da realidade das crianças. Para este autor
(2003, p. 27):

O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de


vista, princípio de uma visão assumida a partir de um ponto situado no espaço
social, de uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteúdo pela
posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a realidade
primeira e última já que comanda até as representações que os agentes
sociais podem ter dele (Grifo nosso).

Desta maneira, nossas análises transitam num terreno bastante íngreme, o espaço
social das crianças indígenas nas cidades, o que nos colocou diante de uma temática
cheia de contradições e mesmo controvérsias. Todavia, o convívio com as crianças e os
demais membros da comunidade e o tempo em que estivemos juntos, principalmente
com elas, nos fortaleceu, tanto no enfrentamento dos desafios, como na busca de
argumentos para compreender esse lugar de fronteiras e as diversas críticas e rejeições
construídas quer no campo das ciências, quer no campo das relações entre os povos
indígenas “urbanos” e as entidades indigenistas e, principalmente, a exclusão dos
diversos membros da sociedade em aceitar sua condição de Sateré-Mawé, mesmo
distante de seu lócus de origem. Essa problemática foi assim expressa por um dos
moradores da comunidade:

“Um japonês sai do Japão e não deixa de ser japonês. Por que nós, quando saímos de
nossa aldeia, deixamos de ser índios? Eu não me sinto menos Sateré-Mawé do que os
meus parentes que moram na aldeia, eu falo a língua dos ‘brancos’ com eles e a nossa
língua entre nós...” (Marivaldo, 37 anos).

Neste sentido, para Bhabha (2005, p. 20):

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de


passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação
de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação – singular e coletiva – que dão
início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.
46

2.2.2 A escola, lugar de quem?

Diferentemente do processo de adentramento no contexto da comunidade,


chegarmos até as duas escolas que havíamos planejado no projeto de tese foi bem mais
complicado do que pensávamos. Fomos fazer uma visita informal nas mesmas para falar
sobre a pesquisa e os diretores não nos permitiram a realização do trabalho caso não
obtivéssemos autorização das secretarias tanto Estadual quanto Municipal de Educação,
pois, segundo eles, os dirigentes municipais não lhes dão autonomia para decidir tais
questões que precisam ser definidas e controladas pelas secretarias.
No mês de setembro, elaboramos dois documentos: um endereçado ao Secretário
Estadual de Educação e outro ao Secretário Municipal de Educação, explicando o teor
do trabalho que pretendíamos realizar e pedindo autorização para observarmos a relação
das crianças Sateré-Mawé com os professores, fazermos reuniões e entrevistas com eles
e ainda ter acesso aos documentos das escolas (Projeto Político Pedagógico, Regimento
Interno das escolas, Planos de Curso e de Aula dos professores e Livros Didáticos, entre
outros). Os documentos foram protocolados nas duas secretarias no dia 20 de setembro
de 2007.
Um dia após a entrega dos documentos, recebemos um telefonema da chefe de
gabinete do Secretário Municipal de Educação, que pediu a presença no Departamento
de Educação Escolar Indígena, pois o Secretário havia autorizado a realização da
pesquisa e teria encaminhado o documento a este setor para preparar os devidos
encaminhamentos e contatos com a escola. Na segunda-feira, dia 25 de setembro de
2007, fomos até ao departamento e conversamos com a coordenadora e os membros da
equipe sobre o trabalho.
A coordenadora desse departamento preparou o documento de encaminhamento
ao diretor, autorizando a realização de todos os objetivos previstos para a pesquisa.
Além disso, ela forneceu um documento escrito que demonstrava os dados gerais da
educação indígena no município e o projeto que estava sendo desenvolvido pelo
departamento para implementação da política da rede municipal, inclusive a contratação
de professores das comunidades urbanas para trabalharem com as crianças as questões
referentes à língua, aos costumes e tradições de cada etnia, que no caso, inicialmente,
foram 12.47

47
Em julho de 2007, o projeto foi implementado, e na comunidade Sateré-Mawé um professor membro
da própria comunidade foi designado para trabalhar com as crianças. Este professor tem recebido
47

Já na terça-feira, dia 26 de setembro de 2007, fomos até a Escola Municipal, no


turno vespertino, sendo recebidos pela diretora que, ao ler o documento, imediatamente
mudou a visão da visita anterior e autorizou que realizássemos o trabalho que
desejávamos. Fez uma reunião com os professores e funcionários da escola e apresentou
a todos, permitindo que fizesse uma apresentação geral do projeto. Disponibilizou o
projeto político pedagógico, os planos de curso dos professores, e informou que a escola
não possui regimento interno e nem utiliza livros didáticos, mas trabalha com diversos
materiais para o contato dos alunos com a leitura e a escrita. Neste caso, resolvemos
utilizar esse material para a análise documental. Essas análises fazem parte dos
capítulos III e IV.
A escola está localizada no Conjunto Santos Dumont, Bairro da Redenção, e fica
bem próxima da comunidade. Nos turnos da manhã e da tarde a mesma só atua com
Educação Infantil, atendendo crianças de 04 a 05 anos (essa faixa etária de atendimento
começou no início de 2007, devido à lei 11.114/2005). Por isso, ela é considerada um
CEMEI – Centro Municipal de Educação Infantil. É um espaço bastante pequeno,
possuindo apenas 05 salas de aula que atendem, cada uma, 25 crianças por turno. Do
total de crianças matriculadas, constatamos várias crianças indígenas de diversas etnias,
mas como o objetivo da pesquisa estava focado nas crianças Sateré-Mawé, fizemos o
trabalho apenas em duas salas, uma de primeiro período (04 anos), que atendia uma
criança, e uma do segundo período (05 anos), que atendia mais duas crianças Sateré, ou
seja, três crianças estudavam, naquele momento, na escola.
Como havia dois professores em cada sala, fizemos duas reuniões coletivas, e
depois uma entrevista aberta com cada um deles. Na verdade, para desmistificar a ideia
de um instrumento pré-estabelecido, resolvemos fazer um diálogo com os professores e
neles fomos inserindo as questões que havíamos organizado no nosso planejamento
geral da pesquisa. Os professores foram bastante receptivos e não criaram obstáculos
para participar, tanto das reuniões quanto dos diálogos. No entanto, ficaram um pouco
mais preocupados no momento das observações nas salas de aula, pois, segundo eles,
todas as vezes que pessoas estranhas entram nas salas para realizar algum tipo de
trabalho “… tiram a concentração dos alunos”.
Passamos três semanas na escola e as observações se deram a partir da segunda
semana, ou seja, cinco dias de acompanhamento dos trabalhos dos professores em cada

constantemente um processo de capacitação pedagógica dos técnicos do departamento. O trabalho tem


sido bastante proveitoso e rendido bons frutos.
48

sala, tendo como foco a relação dos mesmos com as crianças Sateré-Mawé. Por se tratar
de uma instituição de Educação Infantil, sentimos uma relação mais próxima dos
professores com as crianças e delas com as demais crianças da sala, bem diferente do
que constatamos na escola de Ensino Fundamental.
Já se passavam 15 dias e não havíamos recebido nenhuma resposta da Secretaria
Estadual de Educação sobre o documento que enviamos. Como já estávamos realizando
o trabalho na escola municipal, deixemos que o mesmo fosse concluído e, em seguida,
fomos até a sede da secretaria para saber dos trâmites do documento. Fomos informados
que o mesmo ainda estava em processo de análise por parte dos departamentos
competentes e assim que tivessem resposta iriam entrar em contato. Depois de muitos
telefonemas dados e até uma conversa com a subsecretária de educação, recebemos um
telefonema da chefe de gabinete que pediu que fossemos buscar o documento de
autorização.
Diferentemente da secretaria municipal, na estadual não houve encaminhamento
a nenhum setor responsável, apenas entregaram um ofício encaminhado à escola,
fazendo ressalvas quanto à utilização da documentação, ficando a mesma pendente de
autorização do diretor. Os demais pedidos foram acatados e, diante de tal situação, o
trabalho foi iniciado. Dada a demora da autorização, a ida para a escola estadual só se
deu no dia 05 de novembro de 2007, fato que causou alguns prejuízos ao trabalho, pois
a escola estava se preparando para concluir o ano letivo até o dia 25 de novembro, já
que iria entrar em reforma.
Ao chegarmos para entregar o documento para a direção, a primeira surpresa foi
deparar com outra pessoa a frente da escola, pois o diretor anterior havia sido
exonerado. A nova diretora havia assumido o cargo há menos de uma semana e ainda
estava se familiarizando com o trabalho da instituição. Apesar disso, foi bastante
solícita e se pôs à disposição em nos ajudar, mesmo diante do seu desconhecimento da
existência de crianças indígenas estudando na escola.
Ela, assim, nos afirmou: “Eu desconheço que a escola atenda crianças indígenas
e muito menos ainda como o trabalho é realizado com elas, mas procurarei me inteirar
para lhe ajudar na sua pesquisa e você poderá me ajudar também” (Diretora Joana).
A Escola Estadual também se localiza no bairro da Redenção, mas fica um
pouco mais distante da comunidade. Possui 14 salas de aula e uma estrutura bem
precária de funcionamento. Por isso a informação que as aulas estavam sendo
adiantadas para que a mesma entrasse em reforma. Nesta escola acompanhamos 09
49

crianças, duas na primeira série, duas na segunda, três na terceira e duas na quarta.
Foram ao todo quatro salas de aula e quatro professores.
A escola não possuía, à época da realização da pesquisa, Projeto Político
Pedagógico nem regimento escolar próprio, logo os documentos que pudemos utilizar
foram apenas os planos de curso dos professores, os livros didáticos e aproveitamos
alguns cartazes informativos que estavam pregados na escola para servirem também de
informações para nossas análises, pelo conteúdo dos mesmos.
Neste sentido, sentimos a necessidade, após o início do processo de análise, de
fazermos uma nova visita a escola. Esta se deu no mês de julho de 2009, após o exame
de qualificação, pois os dados que tínhamos até aquele momento deixavam algumas
lacunas nas nossas análises. Então fizemos essa segunda participação no ambiente da
escola que já possuía o projeto pedagógico e outros documentos que nos foram cedidos
para utilizarmos na complementação das análises.
Devido ao apressamento do calendário escolar, não tivemos muito espaço na
escola para realizar mais detalhadamente a pesquisa. Fizemos uma reunião geral com os
quatro professores e a diretora para explicar as linhas gerais do projeto e ouvir deles
como poderíamos organizar tanto a ida às salas quanto os nossos diálogos individuais.
Resolvemos, primeiramente, começar com a observação das salas, por sugestão dos
próprios professores, pois logo os alunos seriam liberados em função do término do ano
letivo. Como se tratavam de quatro salas de aula, a observação havia sido prevista para
cinco dias em cada uma, como assim o fizemos na escola municipal, mas devido ao
pouco tempo e a maior quantidade de salas, tivemos que fazer duas observações em
cada uma delas.
Após as observações, realizamos os diálogos (entrevistas abertas) com os
professores individualmente. Todos eles se mostraram mais resistentes em todo o
processo e, no ato das conversas, detinham-se quase sempre a expor os problemas
enfrentados na sala de aula, os problemas da escola, a falta de apoio e principalmente as
precárias condições de trabalho. Era preciso que retornássemos às questões que
envolviam o trabalho com as crianças Sateré-Mawé para não perdermos o foco da
pesquisa. Mesmo assim, houve uma certa negativa dos mesmos em relatar as situações
de forma mais detalhada. As respostas foram bem curtas e sem muitos detalhes.
Após o término da pesquisa nas escolas, começamos o processo de seleção dos
conteúdos obtidos tanto nos diálogos quanto nas observações e também a seleção das
50

partes dos documentos para as análises. Um grande processo de contradição se ergueu


diante de nós ao contemplarmos o mosaico, agora com todas as peças montadas.
Se até então tínhamos uma grande quantidade de experiências vividas junto às
crianças na comunidade, os diversos fatos ocorridos nas escolas apontaram para um
caminho contrário, pois falar da presença das crianças indígenas nas mesmas,
principalmente na de ensino fundamental, é buscar desvelar no que “não-está-dito”48, ou
seja, os diversos processos escamoteados tanto nos discursos quanto nos documentos.
Há um grande subterfúgio por parte dos membros da escola para se protegerem e ao
mesmo tempo apontarem nas crianças indígenas as problemáticas vivenciadas.
Apesar de muitos discursos democráticos, participativos e que defendem a
educação como um direito de todos, não há uma ação de aceitação das diferenças e
abertura para diversas possibilidades – na realidade escolar observada – pois, a prática
pedagógica aponta-se completamente contrária a isso. Muitas vezes o próprio discurso
dos professores retrata estes processos de forma preconceituosa e discriminatória e os
documentos, por sua vez, reafirmam muito mais um mundo idealizado, cheio de
verdadeiros chavões sociais, mas omitem a presença das crianças indígenas, ampliando
o processo de invisibilização das mesmas, como aprofundaremos no capítulo III.
Correndo muitos riscos de derrapagens, resolvemos assumir essa possibilidade
de compreensão e de construção de uma visão como cosmovisão49, e uma representação
de mundo sob a ótica das crianças Sateré-Mawé. Mesmo diante de todo esse arsenal
pedagógico que impõe padrões ou, pior, que buscou apagar a presença das crianças, são
elas que nos deram os testemunhos fundamentais para esse processo que descortinamos
e que chamamos de (des)encontros. Afinal, a escola é lugar de quem? Então ouçamos
no decorrer da tese o que elas têm a nos dizer e explicar.

2.3 Dialogando com diversas fontes: criando possibilidades de


integração
“A infância não é mais uma etapa infelizmente inevitável, mas um período
necessário e que produz resultados felizes. Não é mais um tempo demasiado
longo, que é preciso tentar encurtar, mas um tempo demasiado curto, que
seria necessário poder alongar para prolongar a criatividade humana.”

(CHARLOT, 1986, p. 127)

48
Foucault (2007)
49
Termo apropriado do texto de Nascimento (2005).
51

Quando buscamos, ou mesmo tentamos compreender, a infância e as crianças


indígenas, temos a certeza de que um olhar que se prenda a uma área específica do
conhecimento, não nos dará, ou dará de maneira focal, a possibilidade de adentrarmos
de forma mais aprofundada nesse universo tão denso e cheio de possibilidades, e ao
mesmo tempo de lacunas. Os estudos que utilizamos como fontes desta tese
demonstraram, exatamente, essa afirmação. Tivemos que estabelecer um profícuo
diálogo interdisciplinar que nos permitiu, ao focalizar diversos campos, integrá-los para
que pudéssemos buscar elementos que nos possibilitaram visualizar de forma mais clara
o universo desse grupo social da infância, ou seja, as crianças Sateré-Mawé.
Assim, ter a possibilidade de enveredar por este caminho contribuiu para a
revisão tanto de nossa visão de mundo sobre as crianças como também dos nossos
pressupostos teóricos sobre a temática da infância, e serviu como alerta para a
necessidade de podermos dialogar de forma interdisciplinar com diversas áreas do
conhecimento.
Para Sarmento e Gouveia (2008, p. 09):

Os estudos da infância são, nas suas dimensões interdisciplinares, um campo


de estudo em pleno progresso e desenvolvimento. A partir do olhar da
sociologia, da história, da antropologia, da psicologia, etc., e tomando como
foco a infância como categoria social do tipo geracional, têm-se vindo a
desenvolver trabalhos de pesquisa que procuram resgatar a infância como
objeto de conhecimento, nas suas múltiplas articulações com as diversas
esferas, categorias e estruturas da sociedade.

Os estudos históricos, sociológicos, antropológicos e pedagógicos, quando


olhados de maneira isolada, podem intencionar uma fragmentação da visão de infância e
estarem presos aos seus próprios princípios. Porém, ao serem compreendidos de modo a
nos possibilitar visualizar o nosso sujeito/objeto de pesquisa, foram essenciais para que
os pontos de convergências e as contradições, ao mesmo tempo, garantissem a
constituição de uma fundamentação mais densa e aprofundada, permitindo que os
saberes científicos estudados pudessem dialogar com os saberes do dia-a-dia da
comunidade Sateré-Mawé e com os diversos jeitos de ver e compreender o mundo sob o
ponto de vista das crianças.
Neste processo partimos da inversão do que convencionalmente se faz ao
realizar uma pesquisa. Ao invés de primeiramente definirmos as categorias de análise
52

para depois irmos a campo50, deixamos que os indícios coletados durante a pesquisa
definissem as categorias e a partir dessa definição pudéssemos ir construindo os
argumentos buscando as suas bases nesses campos do saber e nas experiências
vivenciadas junto às crianças.
As reflexões de Foucault (2007, p. 31) nos ajudaram a compreender e compor
esse movimento inverso, mas de extrema relevância no sentido da determinação das
nossas proposituras e da defesa das crianças como agentes sociais, e, no caso das
crianças Sateré-Mawé, como agentes sociais que pensam e concebem o mundo de forma
diferente, ou seja, a partir da expressão de suas culturas.

Não se busca sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um


outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui
qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um
lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a tal análise
poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no
que se diz em nenhuma outra parte?

Assim, a singularidade dos processos sociais e culturais provenientes dos


cotidianos dos Sateré-Mawé e os inúmeros jeitos de compreender o mundo, oriundos
das visões geradas pelas crianças, foram fundamentais no processo de interlocução dos
saberes teóricos e empíricos que consolidaram nossa pesquisa e afirmaram nossas
análises.
Desta maneira, no intuito de construir um quadro de referências gerais no qual
esses campos do saber se constituíram nas nossas análises, vamos abordar de forma
sintética os conceitos centrais utilizados, elencando para tanto alguns autores de
referência e as questões mais relevantes relacionadas à categoria teórica, que se veicula
de forma particular com a infância Sateré-Mawé. Evidente que no decorrer das análises
que compõem o conjunto da tese, tais questões aparecem de forma integradas e mais
aprofundadas, não se refletindo apenas nos destaques aqui expostos.
Do campo da História, buscamos a contextualização, a apropriação dos
conceitos e principalmente a compreensão do sentido espaço-temporal para cada
momento vivenciado. Não nos prendemos em uma reprodução de elementos que se
perpetuam como hegemônicos, mas naqueles que muitas vezes foram obscurecidos e

50
Não queremos afirmar com isso que não houve um planejamento prévio da pesquisa. O que foi definido
tanto no projeto de tese, quanto no instrumento de pesquisa que chamamos de “planejamento geral”,
porém o concebemos como aberto e flexível de tal ponto que nos permitiu que as categorias empíricas de
análise, surgissem no decorrer da pesquisa.
53

apagados dos modos de viver das nossas sociedades, principalmente os fenômenos


relacionados a infância indígena.
Fomos beber na história da infância, da família e da escolarização, sem as quais
jamais conseguiríamos chegar ao momento atual e às crianças Sateré-Mawé. Fizemos
uma viagem pela Amazônia, buscando compreender o movimento drástico e predador
de dizimação dos povos indígenas e os percursos que obrigaram muitos desses povos a
saírem das suas aldeias e chegarem às cidades.
Para Gouvea (2008, p. 105):

A Nova História, no resgate de fontes primárias diversas, permitiu recuperar


os discursos e práticas desses atores historicamente “excluídos”. No caso das
crianças, a singularidade dos seus espaços de inserção, formas de expressão e
participação social demandaram uma reflexão sobre as condições
metodológicas de pesquisa sobre tal sujeito.

Estudamos o movimento migratório (aldeia/cidade) que fez surgir do seio da


mais tenra tradição indígena, proveniente dos primeiros habitantes das terras
amazônidas, a tentativa de dissolução da mesma, sua “excomunhão” e todo um processo
de “branqueamento” dos costumes dos povos autóctones. Mas também fez brotar a
resistência, a capacidade de querer sobreviver e deixar um rastro de memória que até
hoje ainda ecoa na infinitude dessas terras. Um encontro – que no bojo do movimento
predatório representou um desencontro – da alma, do espírito, da língua, das tradições,
etc., e que na busca por novos rumos se fez peça viva, cultura presente de um povo que
uma outra história tentou apagar. Assim, nas análises de Oliveira (2006, p. 09):

Encontrar o verdadeiro rumo significa ler as muitas e heterogêneas


mensagens deixadas por inúmeras pessoas que por ali passaram. Experiências
e sugestões que não decorrem de uma viagem do espírito por solidões
abissais, mas de marcas materiais e humanas, com um pé modelado no barro,
um galho quebrado, vestígios concretos de uma ação intencional e
significativa de alguém que nos precedeu.

A Antropologia nos legou um aporte fundamental para compreendermos de


forma mais clara a cultura, os simbolismos, o sentimento de pertença, presente na
identidade étnica dos Sateré-Mawé. Fez também, enveredarmos pela valiosa
possibilidade de ouvir as linguagens e as diversas facetas que norteiam a vida dos povos
indígenas. Construiu um corpo teórico para fundamentar as pesquisas com as crianças
54

nas sociedades indígenas, dando maior visibilidade a esses agentes sociais e chamando
para esse contexto as outras áreas das Ciências Sociais e Humanas.
Em seus estudos, Gomes (2008, p. 82) explica que:

A antropologia chega, ao final dessas três últimas décadas, à tematização da


criança e/ou infância como campo de estudo específico. Superada a ideia que
a infância ou as crianças se tornassem meros objetos de investigação, o que
veio se evidenciando foi a necessidade de permitir – e promover – que as
crianças tomassem lugar de sujeitos nas investigações, ou seja, que fossem
consideradas enquanto atores sociais, produtores de sentido, plenos
participantes das práticas sociais nas quais se encontram envolvidos.

E ainda segunda a autora (Idem):

Tal proposta poderia soar como um prolongamento da orientação que


privilegia a agência dos sujeitos face a determinação das estruturas; ou ainda
a necessidade de dar voz aos silenciados, aos excluídos da análise – e da
própria cena social. Em linha com tais pressupostos, no entanto, tal
perspectiva traz questões novas para as Ciências Sociais e Humanas quando
se propõe a investigar com mais atenção essa especial e onipresente
característica dos grupos humanos – as diferentes formas de convivência
prolongada que os “pequenos” da espécie mantêm com seu grupo – e o que
ela nos revela sobre as crianças e sobre a cultura de seu próprio grupo.

Os estudos de cunho etnográfico fizeram-nos ir até as crianças para num


convívio prolongado e direto aprendermos a aprender o que elas nos dizem. Apartaram
as distâncias que por muito tempo separaram adultos de crianças e nos permitiram ir
mais além da mera descrição da realidade. Vivenciar de forma coletiva, compreender
por outros modos de vida, neste caso das crianças Sateré-Mawé, como se constitui o
cotidiano da cena social e que relações mais específicas surgem do dia-a-dia.
Buscando um detalhamento maior da ação da Antropologia para os estudos com
as crianças indígenas, recorremos a trabalhos como a tese de doutoramento em
Antropologia, de Ângela Nunes, de 2003, na qual a autora trabalha a importância de se
pensar uma Antropologia da Infância e os cuidados que devem ser estabelecidos no
campo da pesquisa. Assim para a autora:

[…] uma questão metodológica básica e fundamental em torno da qual a


própria antropologia da infância se tem debatido, a saber, a nossa relação de
alteridade com a criança, enquanto cientistas, mas, antes de tudo o mais,
enquanto adultos. Na verdade, não basta que estejamos com crianças o dia
inteiro ou todos os dias do ano. É a qualidade da relação com elas
estabelecida, como e o que fazemos com elas, ou a coragem de não fazer
nada e permitir, a nós mesmos, que a criança se manifeste como lhe aprouver
[…] é uma questão que tem a ver com os princípios e a ética do
relacionamento com o outro que a criança é. (NUNES, 2003, p.p. 26 e 27).
55

Pelos olhares atentos da Sociologia, enveredamos nos estudos da questão


geracional, da socialização, das manifestações de poder que massificam a situação das
crianças e apontam para uma prática social ainda muito calcada numa relação autoritária
e adultocentrada. Prioritariamente, esses estudos nos permitiram enveredar no campo da
contra-hegemonia e na consolidação de outros espaços de socialização onde a criança
ganha estatuto próprio.
Segundo Bourdieu (2003, p. 27), “Os campos são os lugares das relações de
força que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se
orienta ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento”,
por isso, o estudo com as crianças Sateré-Mawé emerge dessa contradição, que ao
mesmo tempo lhes impõe um corpo de práticas sociais e cria possibilidades de viverem
elementos próprios de suas culturas.
Porém, para Marchi (2007, p.p. 24 e 25), precisamos compreender que os
processos que envolvem o entendimento da infância como construção social, e das
crianças como agentes sociais, ainda encontram barreiras tanto teórico-metodológicas
quanto práticas e necessitam de todo um processo de “vigilância epistemológica”51, que
nos garanta a “fuga à passividade empirista”52, que por vezes faz do pesquisador presa
de sua própria ação.

Portanto, erigir um novo paradigma para o seu estudo sociológico implica


envolver-se no duplo processo de sua desconstrução/reconstrução
contemporânea. A posição estratégica da sociologia na reflexividade da
modernidade pela “reentrada subversiva” do discurso científico nos contextos
que analisa (Giddens, 1991), não nos permite esquecer o envolvimento ativo
dos cientistas sociais, mas também dos pedagogos, psicólogos, na construção
daquilo que a infância foi, é e será no contexto social.

Neste sentido, os variados e muitos estudos da Sociologia da Infância foram de


vital importância na construção de nossos fundamentos, principalmente no tocante à
participação que envolve a produção de culturas pelas crianças ou culturas infantis e, no

51
Bourdieu (2007).
52
Esta pretensa legitimidade dos pesquisadores que, com a melhor das “boas intenções”, procuram
defender uma causa que consideram da maior justiça, tem frequentemente como efeito, a substituição e,
no limite, a negação dos próprios atores, nas palavras e ações à sua maneira. Falar em nome das crianças
ou da infância é arrogar-nos um conhecimento ilimitado e acabado de causa. Assim, corremos sempre o
risco de encerrá-las em nossa perspectiva adulta. (MARCHI, 2007, p. 24).
56

caso, as culturas das crianças Sateré-Mawé, que articulam toda uma relação de
socialização e (re)produção do seu espaço social.
Segundo Sarmento (2008, p. 19):

Ao incorporar na sua agenda teórica e prática a interpretação das condições


atuais de vida das crianças, a Sociologia da infância insere-se decisivamente
na construção da reflexividade contemporânea sobre a realidade social. É por
isso que, na verdade, ao estudar a infância, não é apenas com as crianças que
a disciplina se ocupa: é, com efeito, a totalidade da realidade social o que
ocupa a Sociologia da Infância. Que as crianças constituem uma porta de
entrada fundamental para a compreensão dessa realidade é o que é,
porventura, novo e inesperado no desenvolvimento dessa recente disciplina.

Sendo uma porta de entrada, como nos afirma Sarmento (2008), a infância ganha
materialidade social, ou seja, seu estudo deve privilegiar o saber das crianças nas suas
múltiplas formas, o que nos possibilitou enveredar em vários elementos do cotidiano
Sateré-Mawé, pelas suas atividades cotidianas e pelo universo da sociedade urbana na
qual vivem tendo como parâmetros alguns modelos sociais definidos pelas escolas e
ressignificados por elas.
Dentre os diversos aspectos observados no bojo da pesquisa e as indicações
teóricas tanto da Sociologia da Infância quanto da própria Sociologia Geral, também
nos chamou atenção às indicações de Santos (2007) sobre a Sociologia das Ausências,
pois, de fato, nem sempre pela via da expressão dos agentes sociais conseguimos captar
nuances da realidade que por diversos motivos encontram-se ofuscados pelo “Habitus”53
que determina o que e como as coisas devem aparecer a nós. Mas o latente, o
aparentemente inexistente, opera fortemente na determinação da vida cotidiana,
principalmente no caso das crianças Sateré-Mawé – pela via da violência simbólica54 –
que recebem essa carga de negação por parte da escola e, como vivenciado em muitos
momentos, não externalizam situações que as inferiorizam e agem diretamente na
consolidação da reprodução do modelo dominante, como explicitado por Bourdieu
(2007, p. 231):

53
A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como
sistema simbólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções desta cultura não podem ser
deduzidas de qualquer princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por
nenhuma espécie de relação interna com a ‘natureza das coisas’ ou com uma ‘natureza humana’
(MICELI, 2004, p. XXVI).
54
“A ação pedagógica, que perpetua a violência simbólica através de duas dimensões arbitrárias: o
conteúdo da mensagem transmitida e o poder que instaura a relação pedagógica exercido por
autoritarismo. A autoridade pedagógica que visasse destruir a violência simbólica destruiria a si própria,
pois se trata do poder que legitima a violência simbólica. (BOURDIEU, 2001, p. 220)
57

A violência simbólica como constrangimento pelo corpo. Para que a


dominação simbólica funcione é necessário que os dominados tenham
incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes os apreendem;
que a submissão não seja um ato de consciência susceptível de ser
compreendido na lógica do constrangimento ou na lógica do consentimento

As contribuições da Pedagogia, não só foram fundamentais no entendimento e


análise das práticas escolares, mas, nos permitiram compreender o sentido mais amplo
do ato de educar, associado principalmente às relações estabelecidas na comunidade.
Toda ação social, para os Sateré, é um ato educativo, pois as crianças aprendem no dia-
a-dia os valores da sua etnia, os modos de compreender o mundo pelos diversos
sistemas simbólicos vivenciados. Seja pelo ato de vislumbrar a natureza, de reverendar
o ritual da Tucandeira55, principal rito de passagem desse povo, ou pelos demais modos
de buscarem garantir sua sobrevivência neste espaço desafiador, a cidade.
Ao buscarmos a pedagogia como mais uma base para nos fundamentar, não
tínhamos dúvidas que as escolhas deveriam partir de uma pedagogia crítica, pois a ideia
da existência de uma única forma de entender essa área, considerada como uma das
ciências da educação, nem sempre concebeu, ou ainda concebe, a criança na sua
condição de agente. Esse encontro com o saber pedagógico que advoga pela criança,
ainda, principalmente na dimensão da ação educativa, encontra muitas barreiras, mas
apresenta profícuas bases para deflagrarmos o movimento contrário.
Para Arroyo (2008, p. 119):

[…] a pedagogia vai ao encontro da infância com seus imaginários e suas


verdades. Verdades que condicionam sua existência, seu pensar e fazer
pedagógicos. Nem sempre experiências e verdades da infância caminham
juntas, nem se alimentam mutuamente. As verdades prévias que a pedagogia
se aproximou da infância alimentaram mais seu pensamento do que as
experiências da infância.

Ainda nas análises do autor (Idem, p. 120):

Podemos começar reconhecendo que a infância está sendo o território onde


se encontram a pedagogia e as várias ciências. As interrogações que a
infância coloca repercutem nos diversos campos do conhecimento. Por aí
passam tentativas de aproximações entre a pedagogia e a história, a
antropologia, a sociologia, a psicologia sociocultural […] Aproximações que
revelam dificuldades e logros nessa empreitada comum do conhecimento e

55
No capítulo II aprofundaremos bem a questão deste ritual e a visão das crianças sobre ele.
58

do trato da infância. As ciências interrogam a pedagogia sobre suas verdades


e esta não deixa de trazer interrogações para as verdades das ciências.

Num movimento de assumir, juntamente com as crianças Sateré-Mawé, sua


identidade de indígenas, usamos o aporte da pedagogia que questiona a transformação
da criança em aluno atribuindo-lhe um ofício, no qual as regras postas pelos adultos e,
logo pela sociedade hegemônica, tendem a invisibilizar suas características impondo
uma padronização dos seus atos e funções no ambiente escolar, e logo, social.
Um jogo de regras pré-estabelecidas que dita quem permanece aceito no jogo
oficial da qual a escola é sua corte. Assim, entender esse ato pedagógico foi navegar em
águas turbulentas, pois os banzeiros desses rios densos e ferozes acabavam por excluir
elementos da cultura do povo Sateré-Mawé, presentes na ação das crianças, o que
acabava por enquadrá-las nas culturas escolar e da escola.
Neste sentido, nos alerta Perrenoud (2005, p. 17) que:

Os alunos partilham – como os prisioneiros, os militares, alguns indivíduos


internados ou os trabalhadores mais desqualificados – a condição daqueles
que não têm, para se defenderem contra o poder da instituição, e de seus
chefes directos, mais nenhuns outros meios que não sejam a astúcia, a
subserviência, o fingimento. Pensar, antes de mais, em ultrapassar a situação,
em adoptar as estratégias que garantam a sobrevivência e uma certa
tranquilidade, é humano. Mas o exercício intensivo do ofício de aluno pode
também produzir efeitos perversos: trabalhar só para a nota, construir uma
relação utilitarista com o saber, com o trabalho, com o outro.

Diante de tais dilemas, expostos pelas diversas áreas estudadas, é que fomos
construindo, a partir dos elementos da pesquisa, um olhar ou um conjunto de olhares
que não nos prendesse a certos determinismos e contribuísse para que nossas análises
pudessem absorver esses múltiplos e diversos elementos, tanto das ciências quanto das
experiências, ecoados aqui pelas vozes das crianças Sateré-Mawé. Um coro que muitas
vezes não foi ouvido, mas que nestas páginas ganharam um eco de amplitude acústica,
capaz de movimentar contradições e fazer emanar do fundo de alguns fossos um corpo
de razões que foram, no seio da nossa sociedade etnocêntrica, desqualificadas e
ocultadas.

Porque a experiência tem o seu necessário correlato não no conhecimento,


mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto, e hoje ninguém mais
parece dispor de autoridade suficiente para garantir uma experiência, e se
dela dispõe, nem ao menos o aflora a ideia de fundamentar em uma
experiência própria da autoridade. Ao contrário, o que caracteriza o tempo
presente é que toda autoridade tem o seu fundamento “inexperienciável”, e
59

ninguém admitiria aceitar como válida a autoridade cujo único título de


legitimação fosse a experiência. (A recusa das razões da experiência da parte
dos movimentos juvenis é prova eloquente disso). (AGAMBEN, 2005, p.
23).

Nossa crença, de acordo com as indicações desse autor, em uma razão que se
paute na experiência é fundamental para o entendimento da realidade atual, e
principalmente da infância, e convoca os diversos estudos que realizamos para
fundamentar essa nossa assertiva. Não conseguimos compreender um campo do saber
científico que despreze a vida cotidiana e que não veja no homem/criança, o agente
pleno das ações sociais. Logo, os diversos discursos que se contrapõem a essa visão de
homem e de mundo vão aqui ser refutados e, pelos profícuos diálogos estabelecidos
entre a Antropologia, a Sociologia, a História e a Pedagogia, buscamos confirmar a tese
da criança Sateré-Mawé enquanto agente social. Não só da pesquisa, mas da história,
das suas práticas sociais que demarcam seus jeitos de viver a infância.
Assim, para Rocha (1998, p. 48)

Inicialmente, tomemos como pressuposto que a infância não é uma só, ou


seja, as crianças não vivem a infância de forma homogênea ou uniforme em
nenhum dos seus aspectos: econômico, social ou cultural. Se podemos
concordar que o que identifica a criança é o fato de constituir-se num ser
humano de pouca idade, podemos também afirmar que a forma como ela
vive este momento será determinada por condições sociais, por tempos e
espaços sociais próprios de cada contexto. A infância como categoria social,
não é única e estável, sofre permanentes mudanças relacionadas à inserção
concreta da criança na história e no meio social. Esse processo resulta em
permanentes transformações também no âmbito conceitual e nas ideias que a
sociedade constrói acerca da responsabilidade sobre a inserção de novos
sujeitos.

O Diagrama a seguir, traz a organização dos Fundamentos para a constituição


desse campo de estudos e pesquisas com as crianças indígenas, na perspectiva da
interdisciplinaridade, tomando por base a articulação de alguns conceitos centrais e as
categorias de análise que emergiram da realidade estudada, a partir do cotidiano das
crianças Sateré-Mawé.
.
60

REALIDADE URBANA

Cont
A COMUNIDADE SATERÉ

HISTÓRIA Violência
Relações Simbólica
-Contexto;
de Poder -Apropriação;
- Sociedade
Urbana;
C D
CRIANÇAS O A
ANTROPOLOGIA SOCIOLOGIA T S
C SATERÉ-
- Cultura; - Geração; I
U S MAWÉ
- Etnicidade; -Socialização; D C
L A - Simbolismo; - Participação; I R
T T
U E A I
R R N A
PEDAGOGIA
AE O N
- Aluno;
Ç
- Escolarização/ (In)
Preconceito A
Cultura escolar; visibilidade S
- Currículo;

ESCOLAS
P

SISTEMA DE ENSINO
61

Esse diagrama representa uma noção geral das análises contidas na tese, pois sua
organização representa uma visão de totalidade acerca dos elementos da realidade e das
categorias teóricas que fundamentaram nossas discussões tendo a criança Sateré-Mawé
como sujeito/objeto central da pesquisa. Não procederemos a um processo de
explicação geral do mesmo, pois entendemos que isso ocorrerá no contexto da tese. No
entanto, no sentido de identificar melhor as categorias teóricas que nortearam as
análises, faremos uma discussão inicial das mesmas a partir dos conteúdos definidos nas
quatro áreas centrais que nos embasaram. A explicitação desses conceitos, apesar do
organograma vinculá-los a cada uma dessas áreas, nessa discussão serão trabalhados de
forma interdisciplinar, pois entendemos que os mesmos transitam entre elas.
O conceito de Cultura que adotamos no decorrer das análises, a situa como
parte integrante do universo social em sua totalidade. Ela se faz no dia-a-dia e está em
todos os lugares. Segundo Álvaro Vieira Pinto, um dos autores que utilizamos como
referência ao trabalhar com esse conceito:

A cultura é, por conseguinte, coetânea do processo de hominização, não tem


data de nascimento definida nem forma distintiva inicial. A criação da cultura
e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo
processo… (PINTO, 1979, p. 122).

Neste sentido, entender a cultura é entender a história dos homens, não numa
dimensão única e homogênea, mas concebendo-a como dinâmica, heterogênea e
contextualmente localizada. Assim, também, compreendemos a produção de culturas
pelas crianças como um constante processo de ressignificação do contexto ao qual estão
inseridas, construindo formas diferenciadas de linguagem, crenças, valores, que mantém
as características gerais da geração que a antecede, mas deixando marcas próprias diante
dos conhecimentos de mundo já existentes.
Margaret Mead, uma das antropólogas pioneiras em inserir em seus estudos a
categoria cultura para compreender as crianças, nos afirma que: “A história mostra que
continuamente se encontram meios de estabilizar uma cultura num novo
enquadramento” (MEAD, 1970, p. 104). Essa autora adota o termo “culturas da
infância” (Idem, p. 69), afirmando uma dimensão particular e singular na constituição
das crianças.
62

Mais recentemente, no Brasil, os trabalhos de Aracy Lopes, Angela Nunes,


Clarice Cohn e outros antropólogos passaram a dar uma especial ênfase a questão das
culturas produzidas pelas crianças em sociedade indígenas, destacando uma série de
fatores que são fundamentais para se compreender que essas crianças, em muitos
processos transitórios, de um lado preservam a tradição de seus povos, mantendo viva a
cultura indígena, e, de outro lado, constroem estratégias próprias de ressignificação da
tradição incorporando a ela elementos do mundo social da atualidade.
Logo, acreditamos que as crianças indígenas não perdem suas culturas, como foi
decantado por muito tempo pelos defensores das teorias da aculturação, mas transitam
entre esses universos a partir de simbolismos que lhes são próprios. Assim também
percebemos os modos de viver das crianças Sateré-Mawé, que, mais ainda, inserem-se
nessa questão de permanecerem indígenas, mesmo diante de todo o aparato ideológico
presente nos seus contextos.
Neste sentido é fundamental entendermos a dimensão simbólica do
conhecimento produzido pelas crianças. O conceito de Simbolismo é muito marcante
em todas as sociedades e na vida das sociedades indígenas pela forma como
representam e vivem os seus ritos de passagem, que de forma simbólica traduz-se como
um status social essencial para a mudança de posição na estrutura da sociedade. Os
povos indígenas cultuam de forma muito forte esses elementos simbólicos e as crianças
os incorporam dando-lhes formas um tanto expressivas, como vimos com as crianças
Sateré-Mawé, principalmente no Ritual da Tucandeira.
O símbolo, na compreensão de Norbert Elias (1990), é equacionado nas suas
relações com a linguagem, com o conhecimento e com o pensamento, articulando
perspectivas da sociologia, da semiologia e antropologia cultural. Em seu livro, Teoria
Simbólica permite assimilar, por meio de seus instrumentos conceituais, muitas facetas
do pensamento político, com seu modelo interpretativo dinâmico, que se constitui na
percepção das configurações sociais complexas a que se chama de sociedades e as
personalidades dos indivíduos, que permite entender a ideia de evolução e
desenvolvimento social.
No cerne dessas questões encontra-se presente a identidade étnica desse povo
indígena. Assim compreender o sentido da Etnicidade é estabelecer um processo de
análise que não se cristalize na dimensão da cultura como estática, considerando-a como
produto e processo dos diversos condicionantes espaços-temporais que envolvem a vida
das comunidades, mas que garantem sua ligação intensa ao seu grupo de origem, em
63

nosso caso os Sateré-Mawé, pois “o que funda o grupo étnico é a crença subjetiva na
comunidade de origem” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 37).
Assim para esses autores, “... não é o isolamento que cria a consciência de
pertença, mas, ao contrário, a comunicação das diferenças das quais os indivíduos se
apropriam para estabelecer fronteiras étnicas” (Idem, p. 40). Logo, os Sateré-Mawé, não
estão isolados dos demais membros da sociedade que os cerca e as crianças,
aparentemente, dos outros membros da escola. Porém, a condição de se afirmarem
como diferentes lhes garante a possibilidade de manterem vivos os seus sentimentos, os
seus elementos mais enraizados da tradição de seu povo de origem, mesmo com traços
da cultura que se modificaram.
Nesta discussão os estudos de Barth (In: POUTIGNAT; STREIFF-FENART,
1998, p. 195) nos ajudam a dar mais sustentabilidade às análises que estamos
defendendo:

O ponto central [...] torna-se a fronteira étnica que define o grupo e não a
matéria cultural que ela abrange. As fronteiras às quais devemos consagrar
nossa atenção são, é claro, as fronteiras sociais, se bem que elas possam ter
contrapartidas territoriais. Se um grupo conserva sua identidade quando os
membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a
pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão.

A compreensão do conceito de Contexto está extremamente ligada ao conceito


de lugar, pois o contexto é um tempo-espaço historicamente situado. O entendimento
acerca das noções de tempo-espaço e contexto de uma população permite avaliar tanto
as mudanças subjetivas e culturais quanto as mudanças estruturais decorrentes dos
modos de produção.
A ideia de contextualização aparece vinculada à valorização do cotidiano. Os
saberes vividos no dia-a-dia devem manter uma relação intrínseca com as questões
concretas da realidade. Neste caso, tanto com os costumes do povo Sateré-Mawé,
quanto os da realidade social urbana circundante. Neste sentido, o contexto deve
assumir uma definição de mobilização política e estar intrinsecamente ligado ao
conceito de cotidiano. O livro dos autores Maria Elizabeth Graue e Daniel Walsh,
“Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética” traz uma valiosa
contribuição para a discussão do conceito de contexto nas pesquisas etnográficas com
64

crianças, o que foi de fundamental importância no nosso trabalho com as crianças


Sateré-Mawé.
A opção pela utilização do conceito de Apropriação objetivou explicitar os
processos de produção de sentido – entendendo que neste debate, as crianças Sateré-
Mawé produzem forma próprias de compreensão do contexto que as cerca – que
configuram a leitura como criação e baliza as análises das várias interpretações feitas
entre nós e pelas crianças. Chartier (1998, p. 74), refere-se ao conceito sustentando que:

[...] a apropriação tal como a entendemos visa a uma história social dos usos
e interpretações referidos a suas determinações fundamentais e inscritos nas
práticas específicas que os produzem. Dar, assim, atenção às condições e aos
processos que, muito concretamente, conduzem as operações de construção
do sentido (na relação de leitura e nos outros casos também), é reconhecer,
contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as idéias
são descarnadas e, contra os pensamentos do universal, que as categorias
dadas como invariantes, sejam filosóficas ou fenomenológicas, estão por se
construir na descontinuidade das trajetórias históricas.

Na busca pelo entendimento do contexto no qual os Sateré-Mawé estão inseridos


e estabelecem processos relacionais, fez-se necessário estudarmos o conceito de
Sociedade Urbana. Tomando por base as premissas de Fernand Braudel (1990), dois
são os elementos principais do capitalismo, quais sejam: a Moeda e a Cidade,
acarretando novas configurações urbanas.

Convém explicitar, pois, que os temas imbricados na proposição Sociedade


Urbana no contexto contemporâneo são, por um lado, instigantes,
desafiadores e oportunos; por outro ângulo, a tarefa de dissertar sobre cada
um dos elementos “cidade” e “contexto contemporâneo”, constitui
atividade complexa pela natureza multifacetada de cada um deles e, mais
ainda, pelas relações entre eles, configurada aqui como “novas e velhas
questões” e pela cruel permanência da desigualdade social. (VÉRAS, 2003,
p. 81)

Neste sentido, Sarmento (2004, p. 24) afirma que:

As mutações da modernidade têm implicações nas condições de vida das


crianças e no estatuto social da infância. As crianças exprimem fortemente
as mudanças sociais, quer porque as recebem sob a forma de condições
sociais e culturais de existência em transformação, quer porque elas próprias
mudam, enquanto actores sociais contextualmente inseridos. As crianças
também interpretam as mudanças e posicionam-se perante elas.
65

Na discussão sobre Geração, percebemos uma forte tendência a minimização das


questões etárias e a forma de articulação que se dá entre adultos e crianças, buscando
quebrar as distâncias e barreiras que tanto as pôs em lados completamente oposto da
realidade social, o que na realidade das crianças Sateré-Mawé, apresenta-se de forma
muita menos distanciada, pois a relação entre adultos e crianças é bastante dialógica o
que permite uma participação mais intensa das crianças em muitas das ações
desenvolvidas pelos maiores.
Para Sarmento ( 2004, p. 20):

A infância é uma categoria geracional que necessita de ser estudada de


modo a articular os elementos de homogeneidade (características comuns a
todas as crianças, independentemente da sua origem social: estatuto social
como grupo etário dependente dos adultos; estatuto político idêntico com
inibição de direitos eleitorais até aos 16/18 anos; interdições e obrigações
geracionais - proibição de trabalhar, de casar ou de consumir bebidas
alcoólicas e obrigação de frequência escolar; características macro-
estruturais comuns, como a demografia, políticas públicas direccionadas
para as crianças, mercado de produtos para a infância, etc.) com os
elementos de heterogeneidade, inerentes ao facto das crianças serem ...
também desigualmente distribuídas pelas diferentes categoriais sociais
(classe social, género, etnia, subgrupos etários)

O conceito de Socialização exige considerar as crianças enquanto legítimos


agentes no estudo da sociologia, e mais especificamente da Sociologia da Infância,
preocupada com a aplicação de uma vasta área de teorias e conceitos às ações e
experiências das crianças, atitude não praticada pela sociologia tradicional que, com o
intuito de entender a infância, se baseou nos teóricos da psicologia, ou na elaboração de
teorias da socialização. “Como consequência, o estudo das crianças enquanto sujeitos
autónomos ocupou durante muito tempo uma esfera de estudo desviada das atenções da
produção científica sociológica”(SARAMARGO, 2004, p. 12).
Logo, para Sarmento (2005, p. 05):

As condições de vida das crianças necessitam, igualmente, de ser estudadas


considerando a especificidade da infância perante a esfera de produção, a
repartição da riqueza, a organização do poder e a vida em comunidade, em
geral. Os indicadores estatísticos normalmente invisibilizam a infância, por
não tratarem separadamente os grupos geracionais (J Qvortrup). No entanto,
sendo as crianças desigualmente afetadas (considerando a heterogeneidade
da infância), a categoria geracional infância é a que é mais afetada
globalmente por fatores estruturais como a desigualdade social, os conflitos
bélicos, as carências das políticas sociais e os efeitos a curto e longo prazo
dos problemas sociais e ambientais.
66

A Participação infantil é um dos temas mais discutidos nos últimos anos, dada a
premência de constituição de um espaço social e de pesquisa em que as crianças possam
ser agentes, protagonistas, atores, sujeitos e outros termos que contribuiu para lhes
conferir um status de alteridade. Recorremos, também pela grande produção,
principalmente no campo da Sociologia da Infância a um corpo de autores que
procuram advogar por essas condições. Assim, entre os muitos pesquisadores estudados,
neste princípio de discussão destacaremos os trabalhos de Manuela Ferreira, Natália
Fernandes, Catarina Tomás e Manuel Sarmento.

Considerar o cosmopolitismo infantil implica considerar o desenvolvimento


de um conjunto de mudanças, que não são somente mudanças estruturais,
apesar de estas serem fundamentais, mas implica sobretudo a promoção de
mudanças axiológicas, ontológicas e praxiológicas relativamente à forma de
compreender o grupo social das crianças. A definição de utopia de
Boaventura de Sousa Santos, ajuda- nos na “ exploração de novas
possibilidades e vontades humanas pela via da oposição da imaginação à
necessidade do que existe, só porque Sociedades Contemporâneas:
Reflexividade e Acção existe, em nome de algo radicalmente melhor que a
humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar”
(1994:278), propondo para o efeito uma ‘utopia realista’, que não só é
necessária, mas também é urgente, e que passa pela criação de um espaço
social alargado de cidadania, onde seja reconhecido às crianças o direito de
fazer escolhas informadas, a tomar decisões relativas à organização dos seus
quotidianos e a influenciar e/ou partilhar a tomada de decisões dos adultos.
(TOMAS e SOARES, 2004, pp. 03-04).

Ainda referente aos conceitos de participação, socialização e geração, torna-se


fundamental adentrarmos ao estudo de um outro conceito que deve ser discutido no seio
das produções acadêmicas para/com as crianças, neste caso o conceito de Agência. Este
olhar na importância das ações (Agency) colectivas das crianças para produzirem a sua
própria cultura de pares, contribue para reforçar a produção de culturas pelas crianças, e
deve-se segundo Corsaro (1997, p. 03) “muito ao trabalho teórico de Giddens (1984),
Bourdieu (1977) e Qvortrup (1991)”. Segundo o autor: “Todos estes três teóricos têm
oferecido perspectivas da prática social que, apesar de privilegiarem as forças
constrangedoras da estrutura social e da reprodução social, admitem um certo grau de
agência humana”.
Outro autor que traz para esse bojo uma discussão de suma importância é Alan
Prout (2004, p 7) em seu texto “Reconsiderar a Nova Sociologia das Infâncias: para
um estudo interdisciplinar das crianças”. Afirma o ator que:
67

Os estudos das crianças enquanto actores são praticamente a imagem


invertida disto. As infâncias - trata-se de um fenómeno plural e não singular
- são construídas de um modo mais diverso e local através da interacção
contínua entre actores humanos. A vida social torna-se mais imprevisível e
frágil, uma vez que necessita de ser continuamente trabalhada, mantida e
reparada. Apesar de se reconhecerem padrões de larga escala, isto assume
mais a forma de um gesto, pela referência aos recursos e constrangimentos
que é suposto que a estrutura 'lá fora' providencie. Raramente se conhecem
pormenores sobre como isto é conseguido. A acção [agency] das crianças
enquanto actores é frequentemente analisada de forma breve, tida como
característica humana essencial e virtualmente não mediada que não requer
muitas explicações. A verdadeira novidade da abordagem está no facto de
esta considerar que as crianças realmente têm uma determinada acção
[agency] e que a missão do investigador é pôr mãos à obra e tentar descobrir
qual é. Até agora têm sido bem sucedidos.

Assim, as crianças ao entrarem no ambiente da escola, passam a ser vistas como


alunos. Como já afirmamos a invenção do conceito de aluno, trouxe para o campo de
estudos da infância, uma grande carga de atividades pré-estabelecidas pelos adultos,
pois a escola, enquanto instituição intencionalmente organizada deve definir que tipo de
homem pretende formar e para qual sociedade. No entanto, ao situarmos esta questão no
plano da ação escolar historicamente contextualizada, tanto o homem, quanto a
sociedade já estavam definidas por uma visão atrelada ao conceito capitalista de
produtividade para a sociedade burguesa.
Sacristán (2005, p. 20) em seu livro “O aluno como invenção”, aponta-nos um
rico aporte teórico acerca dessa concepção e traz críticas bastante contundentes, das
quais faremos uso no decorrer das nossas análises. Assim para o autor:

Conceitos como aluno ou estudante se referem a realidades tão imediatas em


nossa experiência cotidiana e tão determinantes de nossa visão do presente
que os manejamos sem que nossa atenção os focalize de forma
particularizada. Não costumamos reparar na complexidade que encerram e
como condicionam nossa percepção e nossas atitudes sobre a realidade que
as pessoas representam e para as quais essas categorias são aplicadas.

Na medida em que o aluno é inventado, os processos de Escolarização passam a


fazer uma separação da infância na presença das crianças na escola. Esse modelo
advindo da visão burguesa de escola, sedimentado nas origens do sistema capitalista,
perpetuou-se no modo de organização dos sistemas de ensino e fez as escolas adotarem
esse princípio como homogeneizador da vida das crianças. Buscamos neste sentido, nos
contrapor a esse conceito de escolarização enquanto modelação de condutas e
68

comportamentos e defendemos um processo de escolarização como parte integrante e


indissociável da vida social.
Como nos afirma Perrenoud (1995, p. 28) “A escola também é vida”. Isto
também se reflete no contexto da abordagem da Escola Libertadora de Paulo Freire, que
defende que não se aprende somente na escola, mas todos os lugares são espaços
educativos, principalmente quando trabalhamos com os grupos populares, como é o
caso das crianças Sateré-Mawé.
Neste sentido, emerge o conceito de Cultura Escolar e Cultura da Escola, que
pode ser compreendido, respectivamente, pelo menos de duas maneiras segundo
Forquin (1993):

O conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que selecionados,


organizados, “normalizados” rotinizados, sob efeitos de imperativos de
didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão
deliberada no contexto das escolas. (p. 167).
A escola é também “mundo social”, que tem suas características de vida
próprias, seus ritmos e seus ritos, seu imaginário, seus modos próprios de
regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de
símbolos. (167).

Nossos argumentos são favoráveis à segunda definição defendida pelo autor, a


escola que produz culturas oriundas das relações com cada um dos agentes que a
compõem e na inter-relação do contexto no qual está inserida. Mais do que isso,
defendemos um espaço educativo que deve ser forjado em outros lugares, pois o
conhecimento não está preso aos muros da escola. Porém, é importante salientar que em
nossa pesquisa ficou muito mais presente a primeira concepção expressa pelo autor, ou
seja, a escola enquanto espaço normatizado.
Seguindo ainda a lógica dos dois conceitos acima trabalhados, foi preciso
também nos deter na dimensão do Currículo enquanto elemento fundamental no
processo de escolarização e de constituição da cultura escolar. Os estudos do currículo
constituem uma área muito grande, por isso a escolha dos autores para fundamentar
nossas análises foi um tanto difícil. Por ora, traremos a contribuição de dois autores
nesse campo de inúmeras possibilidades.
Para Sacristán (2000, p. 15), “Quando definimos currículo, estamos descrevendo
a concretização das funções da própria escola e a forma particular de enfocá-las num
momento histórico e social determinado”. Ainda na perspectiva desse autor:
69

As funções que o currículo cumpre como expressão do projeto de cultura e


socialização são realizadas através de seus conteúdos, de seu formato e das
práticas que cria em torno de si. Tudo isso se produz ao mesmo tempo:
conteúdos (culturais ou intelectuais e formativos), códigos pedagógicos e
ações práticas através dos quais se expressam e modelam conteúdos e
formas. (SACRISTÁN, 2000, p. 16).

Tomás Tadeu da Silva, em suas críticas ao modelo de currículo como elemento


de perpetuação da classe dominante e agente de reprodução da cultura
homogeneizadora, enfatiza que:

O currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele se expressa na


linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural
dominante. As crianças das classes dominantes podem facilmente
compreender esse código, pois durante toda sua vida elas estiveram imersas,
o tempo todo, nesse código. [...] Em contraste, para as crianças e jovens das
classes dominadas, esse código é simplesmente indecifrável. (SILVA, 2003,
p. 35).

Desta maneira, os conceitos aqui expostos, são de fundamental importância para


os processos de análise que norteiam as discussões advindas dos saberes indígenas
oriundo das culturas das crianças Sateré-Mawé e as culturas escolar e da escola que,
como procuraremos explicitar de forma mais aprofundada nos capítulos que se seguem,
produzem os (des)encontros que se constituem como a força motriz desta tese e os
resultados que chegamos em nossos diversos processos de análise e na conclusão do
texto realizaram um diálogo em que cada um desses conceitos foi de vital importância
para os resultados alcançados.

2.4 Peças que articulam o nosso mosaico: a organização da tese

“Articular o imaginário com o conhecimento e incorporar as culturas das infâncias na


referenciação das condições e possibilidades das aprendizagens – numa palavra, firmar a
educação no desvelamento do mundo e na construção do saber pelas crianças, assistidas pelos
professores nessa tarefa de que são protagonistas – pode ser também o modo de construir novos
espaços educativos que reinventem a escola pública como a casa das crianças, reencontrando a
sua vocação primordial, isto é, o lugar onde as crianças se constituem, pela acção cultural, em
seres dotados do direito de participação cidadã no espaço colectivo.”

(SARMENTO, 2002, p. 16)


70

Como dissemos no início da introdução, cada momento de construção desta tese


foi como um grande mosaico que ia se montando até conseguirmos visualizar o que, de
fato, nos propúnhamos a fazer, conhecer o modo de vida das Crianças Sateré-Mawé e os
(des)encontros com a “escola do branco”. As peças foram se juntando impulsionadas
por uma articulação entre os diversos saberes estudados. Assim é que nos parece
fundamental trazermos de maneira mais geral as partes que compõem este texto – que
no nosso entender é único e, que nas suas nuances, vai alinhavando as análises e os
resultados que conseguimos chegar.
Após a introdução, na qual buscamos estabelecer as linhas gerais do estudo e
fornecer elementos para uma melhor visualização do seu conjunto, fomos organizando o
trabalho em capítulos, para que os diversos elementos da pesquisa fossem agrupados e
na tentativa de manter entre cada um deles uma articulação central que gira em torno
dos jeitos de viver a infância das crianças Sateré-Mawé.
O primeiro capítulo intitulado TRAJETÓRIAS TEÓRICO-
METODOLÓGICAS: TRILHAS CONSTRUIDAS E EM CONSTRUÇÃO discute
os caminhos percorridos durante a realização da pesquisa e da construção da tese, tendo
como questões norteadoras as trajetórias teórico-metodológicas, que foram utilizadas
durante o processo, e uma série de questões que compuseram nossas escolhas e outras
que ainda precisam ser debatidas neste campo de pesquisa que exige um grande esforço
para buscarmos as ferramentas necessárias para dar conta de toda a especificidade
presente na realidade das crianças indígenas que moram nas cidades.
O segundo capítulo intitulado INFÂNCIAS/CRIANCAS INDÍGENAS NAS
CIDADES: UM CAMPO DE PESQUISA EM CONSTRUÇÃO discute a
constituição do movimento instituído que gerou o trânsito de muitas populações
indígenas entre a aldeia e a cidade, delimitando o estudo à região amazônica e aos
rastros da memória deixados pelos viajantes e remanescentes dos povos indígenas. Em
seguida, faz uma viagem pelo campo acadêmico da área, buscando comprovar a
existência de pesquisas que nos garantem fontes teóricas e empíricas para a
consolidação dos estudos com as crianças indígenas e, buscando situar os trabalhos com
as crianças indígenas nas cidades. Finalmente, focaliza a produção de trabalhos
realizados nos últimos dez anos sobre/e no Amazonas, que aponta uma forte tendência à
consolidação deste espaço de estudos e pesquisas na região.
O terceiro capítulo intitulado A CRIANÇA SATERÉ-MAWÉ NA CIDADE
DE MANAUS: INFÂNCIAS EM ESPAÇOS DE DISPUTA reflete juntamente com
71

as crianças a importância da valorização da cultura Sateré-Mawé através das


brincadeiras, dos desenhos, das músicas e como neste lugar fronteiriço – o espaço
urbano – são construídas estratégias para garantir seus jeitos próprios de ser indígenas,
de viver suas culturas da infância, de ser da etnia Sateré-Mawé e, ainda, de se relacionar
com a cultura indígena e a sociedade urbana circundante. Demonstra a importância de
compreender a infância sob a ótica das crianças e o quanto, a partir desta compreensão,
passamos a respeitar os seus modos de viver a infância. Não daquela criança que se
enquadra nos padrões das sociedades de consumo e que tem no brinquedo industrial e
na mídia a definição da imagem de si mesma. Mas, a visão das próprias crianças Sateré-
Mawé que, ao valorizarem suas culturas indígenas, demonstram o quanto vale a pena
ser diferente num mundo que tanto impõe a padronização.
O quarto capítulo intitulado A ESCOLA PÚBLICA E SUA
REPRESENTAÇÃO ACERCA DA CRIANÇA INDÍGENA discute, a partir da
pesquisa realizada em duas escolas públicas, uma da rede estadual do Amazonas e outra
da rede municipal de Manaus, como se deu o processo de inserção das crianças Sateré-
Mawé nessas instituições, denominadas pelo seu povo como a “escola do branco”, e os
diversos condicionantes desse processo de didatização do saber, que, pelos discursos
dos professores e documentos da escola, invisibiliza esse grupo de crianças e demarca
suas presenças no ambiente escolar pelo preconceito, discriminação e omissão de suas
culturas pela imposição da cultura legitimada pela escola via “violência simbólica”.
O quinto capítulo intitulado OS “LUGARES” ENTRE AS CULTURAS
INFANTIS E OS SABERES DA ESCOLA: OS (DES)ENCONTROS, representa o
cruzamento entre os saberes vividos pelas crianças no cotidiano de sua comunidade e os
saberes instituídos pela escola, destacando os (des)encontros que foram imergindo no
processo da pesquisa e que configuraram a distinção dos lugares das culturas indígenas,
totalmente ausentes desse contexto escolar, e a lógica da existência de uma hierarquia
de saberes que determina que os padrões da vida social são hegemônicos e por tanto
devem ser seguidos. Impõem às crianças Sateré-Mawé o “ofício de aluno”, através da
mistificação da visão etnocêntrica de ciência, e as regula pela via da maquinação
ideológica oprimindo seus jeitos de ser crianças indígenas e estabelecendo um processo
de moldagem para o ofício que lhes é imposto.
Na conclusão, que decidimos também denominar POR UMA EDUCAÇÃO
COM AS CRIANÇAS SATERÉ-MAWÉ, procuramos descortinar uma ampla crítica
ao modelo de escola na qual as crianças Sateré-Mawé estudam, principalmente pela
72

forma opressora e preconceituosa que a mesma se apresenta. Elencamos uma série de


proposituras, que, em nosso entender, são fundamentais para se constituir um espaço
educativo que seja construído na articulação entre os saberes indígenas e suas
necessidades de conhecimento das questões que envolvem a realidade da cidade.
Entendemos e defendemos a escola como um espaço de luta para esse povo indígena e
que as crianças são agentes desse processo. Não apresentamos uma visão a favor da
desescolarização, mas de uma escola, ou melhor, um espaço educativo que possa ser
forjado no bojo do movimento desses povos e que possa servir de templo de conquistas,
de articulações e de aquisição de direitos.
A tese é um convite a nos enveredarmos por esse desafio. Inspiremo-nos em Bertolt
Brecht, em seu “Elogio da Dialética”56, e reafirmemos nossas forças para continuar a
luta.

A injustiça vai por aí com passo firme.


Os tiranos se organizaram para dez mil anos.
O poder assevera: Assim como é deve continuar a ser.
Nenhuma voz senão a voz dos dominantes.
E nos mercados a espoliação fala alto: agora é minha vez.
Já entre os súditos muitos dizem:
o que queremos, nunca alcançaremos.
Quem ainda é vivo, nunca diga: nunca!
O mais firme não é firme.
Assim como é não ficará.
Depois que os dominantes tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem ousa dizer: nunca?
A quem se deve a duração da tirania? A nós.
A quem sua derrubada? Também a nós.
Quem será esmagado, que se levante!
Quem está perdido, que lute!
Quem se apercebeu de sua situação,
Como poderá ser detido?
Os vencidos de hoje serão os vencedores de amanhã.
De nunca saíra: ainda hoje.

56
Campos (1986, p. 150).
73
74

57

INFÂNCIAS/CRIANÇAS INDÍGENAS NAS CIDADES: UM CAMPO DE


3. C APÍTULO II:

PESQUISA EM CONSTRUÇÃO

“Os rios da nossa Amazônia nunca oferecem ao viajante caminhos iguais e totalmente virgens.
Há sempre um canal por onde passam águas caudalosas, praias submersas e rebojos a evitar.
Para olhos não treinados, essa imensa e homogênea massa líquida somente invocaria a cega
potência dos motores importados. Ao navegante calejado, no entanto, oferecem uma miríade
de sinais que precisam ser desvendados.”

(OLIVEIRA, 2006, p. 09)

Este capítulo visa situar o tema de estudo desta tese, qual seja a infância das
crianças indígenas que moram na área urbana, aqui denominadas como crianças
indígenas nas cidades, buscando compreendê-lo a partir do movimento instituído que
gerou o trânsito entre a aldeia e a cidade, tomando-se por base a realidade amazônica e
os “rastros da memória” deixados pelos viajantes e remanescentes dos povos indígenas
que se encontram numa restrita bibliografia e também em espaços públicos (bibliotecas,
museus e institutos de pesquisa) que abrigam um riquíssimo, porém quase deteriorado,
acervo material sobre a história dos povos indígenas e dos processos de exploração na
região.
Em seguida, na intenção de estabelecer um marco dos estudos feitos no país,
traremos uma expressiva quantidade de trabalhos que foram publicados nos últimos
anos do século XX e início do século atual, que nos fornecem subsídios para
acreditarmos na constituição de um campo de investigação científica com as crianças
indígenas e que podem também garantir cada vez mais a possibilidade de consolidação
de um espaço de pesquisa com as crianças indígenas nas cidades.
Finalmente, procuraremos evidenciar a produção de trabalhos realizados nos
últimos dez anos sobre/ e no Amazonas, que aponta uma forte tendência à consolidação
deste espaço de estudos e pesquisas na região, mas que ainda demanda forte

57
Créditos: Foto extraída do site www.portalamazonia.com
75

investimento, tanto das instituições de Ensino Superior, quanto das instituições de


fomento à pesquisa.

3.1 A infância e as crianças indígenas na Amazônia: uma breve


historiografia
“Quando os europeus chegaram à Amazônia já se depararam com a prática, comum entre os
povos autóctones, de usar os prisioneiros de guerras intertribais na realização de
determinadas tarefas e cerimônias. Esta situação foi estrategicamente aproveitada pelos
portugueses e espanhóis, como um dos pretextos para instaurar um amplo processo de
escravidão e exploração dos amazônidas, cujas consequências se mostraram no vergonhoso
extermínio, físico e cultural, então decantado.”

(WEIGEL, 2000, P. 81)

As crianças, desde as primeiras formas de organização social do mundo


moderno, foram “objetos” nas mãos dos adultos que lhes impuseram padrões e
concepções de vida, a partir da definição de modelos58 que abarcaram desde a
maneira de se vestir até o jeito como elas tinham que se comportar diante da
sociedade adulta. A visão “adultocêntrica” prevaleceu hegemônica até bem pouco
tempo e, ainda nos dias de hoje, está muito presente, o que tem sido um entrave na
possibilidade de dar visibilidade ao mundo infantil a partir da visão das próprias
crianças.
Para Sarmento (2006, pp. 62-63):

As razões sociais residem na subalternidade da infância relativamente ao


mundo dos adultos; com efeito, as crianças, durante séculos, foram
representadas prioritariamente como “homúnculos”, seres humanos
miniaturizados que só valia a pena estudar e cuidar pela sua incompletude e
imperfeição. Estes seres sociais ‘em trânsito’ para a vida adulta foram, deste
modo, analisados prioritariamente como objecto do cuidado dos adultos. A
precocidade do estudo das crianças pela medicina, pela psicologia e pela
pedagogia encontra aqui as suas razões de ser: as crianças eram
consideradas, antes de mais, como o destinatário do trabalho dos adultos e o
seu estudo só era considerado enquanto alvo do tratamento, da orientação ou
da acção pedagógica dos mais velhos (cf. Rocha e Ferreira, 1994) e (Rollet e
Morel, 2000). Esta imagem dominante da infância remete as crianças para
um estatuto pré-social: as crianças são ‘invisíveis’ porque não são
consideradas como seres sociais de pleno direito. Não existem porque não
estão lá: no discurso social.

58
Principalmente a partir da concepção burguesa de infância.
76

É a partir de tais constatações, e pela presença sempre soberana do discurso


adultocentrado no mundo das crianças, que iremos, num mergulho teórico bastante
denso, buscar advogar contra a ideia da criança incompleta, um ser que ainda não é, e
precisa, nomeadamente, da ação do adulto para ser representada na sociedade. Nossos
argumentos são contrários a essas afirmações que prevaleceram na história da criança e
da sociedade humana como um todo, mas que têm somado, nos últimos anos, um
significante número de adeptos que, num esforço constante, vêm na contramão dessa
visão construindo, em conjunto com as crianças, outras formas de enxergar os seus
mundos e de compreender os processos próprios de construção das culturas infantis.
Entendida desta maneira, por Sarmento (2002, p. 04):

A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas


infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas
societais atravessadas por relações de classe, de género e de proveniência
étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único
dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a ‘marca’ da
geração torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador
comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e
materiais para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da
infância na produção cultural.

Diante dessa possibilidade, que nomeadamente passa a atribuir às crianças a


condição de agentes sociais, é que vamos situar a presença das crianças indígenas no
cenário das concepções de infância, tomando tanto a visão das ciências que advogam
por essa condição, quanto à própria forma das sociedades indígenas conceberem as suas
crianças e seus jeitos de viver a infância.
Começaremos nossa “viagem” tomando por base alguns conceitos que são
veiculados nas instituições oficiais e que se vinculam aos padrões de legalidade, ou seja,
no bojo das políticas e legislações para a infância. Em seguida, discutiremos o
desenvolvimento do pensamento moderno do “surgimento da infância” até
caracterizarmos a chegada das crianças indígenas nas cidades e as concepções de
infância que operam nesse espaço social, elencando as contradições presentes e/ou
escamoteadas no discurso e na prática da sociedade atual.
Assim, que concepções estão mais presentes no contexto atual e que interferem
diretamente na forma de compreender e pensar o mundo da infância? É possível definir
por critérios etários o mundo infantil ou os mesmos não dão conta desta definição?
77

Viver a infância num mundo cada vez mais multifacetado e pluricultural nos permite
definir um único conceito ou forma de conceber as crianças e suas infâncias?
Poderíamos elencar ainda um número muito maior de questões que dão vazão à
possibilidade de enveredarmos pela multiplicidade das diversas formas de conceber e
compreender a infância na sociedade atual. Comecemos pela visão da Organização
Mundial da Saúde, que define a infância como o período da vida humana compreendido
do nascimento até os 10 anos de idade. As pessoas nessa fase recebem a denominação
de criança.
Ao buscarmos, no dicionário, a definição da palavra criança – que usualmente
acaba sendo a mais veiculada na sociedade – observa-se a seguinte definição: criança é
um "ser humano de pouca idade, menino ou menina; párvulo. Pessoa ingênua, infantil”,
neste caso estando na dependência de outros (Dicionário Aurélio, 1986)59.
O certo é que, no curso da história, as crianças têm sido vistas de diferentes
modos e ocupado diferentes posições, dependendo do valor que as sociedades lhes
atribuem. O historiador francês Philippe Ariés, em sua obra “História Social da criança
e da família”, traça uma trajetória de como a criança vem sendo tratada ao longo dos
séculos. Ressalta, por exemplo, que a infância sempre esteve ligada à ideia de
dependência, assim, a criança, no decorrer da história, vem sendo vista como alguém
com a perspectiva de "vir-a-ser", mas que ainda não o é (ARIÉS, 1981).
Para o Autor (Idem, 1981, p. 42):

A ideia de infância estava ligada à ideia de dependência […]. Só se saía da


infância ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos de
dependência. Essa é a razão pela qual as palavras ligadas à infância iriam
subsistir para designar familiarmente, na língua falada, os homens de baixa
condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total […].

A infância permaneceu no anonimato, na perspectiva de Ariés, até fins do século


XVII. Os pintores e miniaturistas dessa época apresentavam a criança como adultos de
tamanho reduzido, demonstrando a posição que ocupava na sociedade em geral. No
entanto, a indiferença não ocorria apenas no que diz respeito ao que se apresentava nas
imagens, onde as roupas usadas pelas crianças daquela época assemelhavam-se a dos
adultos. A criança era pouco particularizada na vida real, ainda não havia a ideia de
infância. Assim que os recém-nascidos deixavam os cueiros, passavam, então, a ser
vestidos como pequenos adultos ou “adultos em miniatura”.

59
Ferreira (1986, p. 498).
78

A partir do século XVII, a infância passou a ser reconhecida como uma etapa
distinta da vida humana, com características próprias de desenvolvimento e com
necessidades que surgem no bojo da vida das crianças. É nesse momento que a criança
sai do anonimato e começa a ser vista como tendo um mundo próprio diferenciado do
mundo adulto, dando origem a um novo conceito, o da infância (ARIÉS, 1981). Nesse
século, a infância torna-se foco das atenções quando é considerada a idade fundadora da
vida, passando a ser matéria de estudos e observações. Desta forma, aos poucos, a
criança vai assumindo identidade, voz e estatuto legal.
Segundo Rodrigues (1992, p. 122):

A criança perde o anonimato. Transforma-se em “indivíduo”, essa peça tão


relevante para a edificação do nosso modo de vida. Passa a ser sujeito de
direitos e desejos, dotado de importância social até então desconhecida. Em
torno dessa importância organizar-se-á doravante a família, agora dotada de
responsabilidades educacionais e afetivas. Família e escola se aliam em
função deste pequeno ser, que não pode mais ser substituído sem imensa dor;
para o disciplinar e fazer dele uma “criança bem educada” – se quisermos
utilizar uma expressão hoje corrente, mas que não aparece antes do século
XVII.

Porém, há de se considerar uma especificidade na utilização da categoria infância,


quando se refere à criança indígena. Esta constatação fica clara no bojo da literatura
consultada, principalmente a que trata da descoberta/tomada de posse do Novo Mundo,
pois os europeus consideravam toda a espécie indígena como se encontrando em um
estágio da “infância da humanidade”, tomando-se por base uma concepção de
inferioridade – a ideia do primitivo, aquele que não tem civilidade. Desta maneira, a
criança indígena, “a infância da infância” – uma exacerbação do conceito de
inferioridade, o primitivo do primitivo – que receberia cuidados “especiais”, foco das
ações dos eclesiásticos – porta vozes dos exploradores -, que veem nela, a possibilidade
de realizar inscrições perfeitas da cultura ocidental, nessas folhas inteiramente virgens
da cultura indígena em estado bruto, legalmente incentivados pelas autoridades locais60.

A despeito dos debates e das tentativas dos governos das províncias


amazônicas de civilizar os índios através das crianças, percebe-se uma
constante tensão entre civilizar e explorar, pois, nos discursos defendia-se a
integração do índio à sociedade civilizada, preservando sua liberdade, mas na
prática, ocorria a exploração em massa e até a escravização de índios,
inclusive das crianças. […] A escravização das crianças indígenas na região

60
Barreto (2004).
79

parece ter sido prática corrente, pelas referências que aparecem nos escritos
de algumas autoridades (RIZZINI, 2006, p. 159).

A “colonização”, fundada em severos processos de exploração, envolveu todos


os nativos, sem nenhum critério, até os de pouca idade, no mesmo movimento de
extermínio e escravidão. A Carta de Nóbrega a D. João III, Rei de Portugal, datada de
14 de setembro de 1551, tratando “das cousas desta terra”, retrata o cenário conflituoso
que envolvia a população de índios destribalizados. Nóbrega, apoiado nos seus firmes
propósitos de conversão, ao mesmo tempo em que ressalta as medidas adotadas na
catequização, expõe o estado de degradação em que viviam adultos, crianças e jovens,
após o contato com o colonizador.61
Após a expulsão dos jesuítas pelo Marques de Pombal em 1759, pode-se dizer
que, as iniciativas oficiais em relação à criança pobre, particularmente às crianças
indígenas, foram deixadas de lado. Na Amazônia, fundada em atividades
predominantemente extrativas, organizadas em caráter predatório, que não exigiam
qualquer tipo de qualificação para o desempenho dessas atividades, assim, a
preocupação com as crianças foi drasticamente relegada. Tudo que era necessário
conhecer para transformar os recursos naturais em produtos para o mercado
internacional era de conhecimento dos nativos, utilizados indiscriminadamente como
mão-de-obra. Também as crianças indígenas não ficaram de fora, elas foram utilizadas
em todo tipo de trabalho, incluindo o trabalho escravo, após serem capturadas por
ocasião dos “descimentos” e “realdeamentos”62 de suas aldeias originais.

Os diversos povos que, nos primeiros séculos, procuraram dominar a


Amazônia nada teriam conseguido sem recorrer à aliança do índio que tinha
a sabedoria da terra. Era ele que conhecia onde estava e como conseguir o
alimento; movimentava-se em ubás pela superfície das águas; colhia e sabia
onde estava a especiaria com que os europeus abriam os olhos e a cupidez
sobre a nova terra; e era a grande esperança do braço para as lavouras; cedo
trazidas com a introdução de espécies exóticas como a cana de açúcar e o
fumo (BATISTA, 2006, pp. 164-165).

Os investimentos em atividades agrícolas que, de certo modo, estavam mais


predispostos a proliferarem associados aos conglomerados eclesiásticos, fracassaram
diante do preponderante interesse dos colonos que estavam envolvidos com as
atividades comerciais e extrativas. A expulsão dos Jesuítas, em que pese as críticas a

61
Nóbrega (1955, p.p. 98-101).
62
Paiva (2000).
80

eles dirigidas, deixou as crianças indígenas à mercê dos comerciantes que se utilizavam
delas em todas as formas de trabalho, seja no serviço doméstico, na lavoura ou na
construção de obras, não que os mesmos também não o tivessem feito.
Isso não ocorreu só na Amazônia. Arantes (1995), ao traçar o perfil das crianças
no Brasil, demonstra que cada um extraiu das crianças indígenas os mais diversos tipos
de proveitos: não foram poupados nas guerras, nos trabalhos forçados e nem mesmo da
separação materna e paterna para servir aos ideários do “colonizador”.
Os eclesiásticos construíram casas e colégios que abrigavam os filhos dos índios
capturados nos processos de realdeamentos, assim como dos mestiços e dos órfãos
portugueses e brasileiros. Eles foram por mais de 200 anos os “educadores” das crianças
indígenas. O delta do Amazonas foi uma das mais antigas áreas de ocupação. Já nos
primeiros anos do século XVII, ali se instalaram soldados e colonos portugueses,
inicialmente para expulsar os franceses, ingleses e holandeses, depois como núcleos de
ocupação permanente. Esses núcleos encontrariam uma base econômica na exploração
de produtos naturais da floresta amazônica, que tinham mercado certo na Europa e
podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o uso da mão-de-obra indígena,
farta e acessível naqueles primeiros tempos.63

Devido aos descimentos […], os índios foram transferidos para povoados e


vilas, onde trabalhavam como mão de obra nas plantações e no extrativismo
das “drogas do sertão”. Nesta época […], comerciantes brasileiros firmaram
um próspero sistema mercantil com comerciantes venezuelanos. Assim, tanto
no Brasil como na Venezuela, os índios continuavam sendo explorados pelos
regatões e os abusos do sistema levaram-nos a procurar novos refúgios nas
florestas e nas cabeceiras dos rios (FARIA, 2003, p. 24).

Os locais onde esses produtos cresciam foram o condicionante fundamental da


ocupação da Amazônia. Para esta onda de devassamento da floresta e de exploração dos
seus produtos, os índios foram utilizados, de todas as maneiras possíveis, através,
inclusive, de técnicas manhosas, como acostumá-los ao uso de artigos mercantis e
bebidas alcoólicas, cujo fornecimento posterior era condicionado à participação nas
atividades produtivas como mão-de-obra.

Para o missionário-cronista, as resistências que os índios apresentavam a


evangelização eram obra de demônios. Segundo ele raciocinava,
acompanhando o pensamento em voga entre seus pares, os demônios não se

63
Gondin (2007)
81

conformavam em admitir que seu reinado absoluto sobre os índios havia


chegado ao fim. Por isso, atrapalhavam o quanto podiam o labor dos
evangelizadores (UGARTE, 2006, p. 35).

Para mostrar os processos das relações entre índios e civilizados, Ribeiro64


selecionou a Região do Alto Rio Negro. Segundo ele, onde estava configurada uma
fronteira da civilização que começava a estabilizar-se. Ali o conflito aberto entre índios
e civilizados deu lugar ao estabelecimento de um modo de vida que permitia aos grupos
indígenas sobreviventes conservar certos aspectos da sua cultura tradicional,
acomodando-se às exigências da sua condição de populações integradas na economia
regional como produtores e consumidores.
Segundo Faria (2003, p. 41):

O território é composto de mata e rio para explorarem a caça, a pesca e


abrirem plantações de mandioca. Cada povoado é delimitado por marcas
naturais, como curvas de rios, afloramentos rochosos e igarapés. A mata é
repartida entre as diversas famílias nucleares para estabelecerem suas roças.
O território para a caça e pesca não é limitado, podendo cada um pescar onde
quiser, dentro dos limites do povoado. O confinamento dos índios não só
acontece quando são trancafiados em reservas ou áreas indígenas, também
ocorre devido este tipo de colonização que os confinou aos limites impostos
pelos missionários aos povoados.

Diante dessa situação de total supressão das culturas indígenas, um sentimento,


segundo Faria (2003, p. 26), brotou de forma bastante forte entre os nativos.

Como consequência do trágico passado histórico, rebeliões indígenas de


ordens messiânicas surgiram a partir da segunda metade do século XIX. Os
líderes messiânicos utilizavam-se do simbolismo do mito e do ritual para
formularem estratégias de resistência às condições político-econômicas
opressivas impostas pelos chamados civilizados.

Sucintamente, o século XX encontra os índios da Amazônia em condições de vida


semelhantes àquelas do tempo dos descimentos para as missões religiosas e para o
trabalho escravo no Brasil colonial. Ao longo do curso das águas navegáveis, aonde
pudesse chegar uma canoa a remo, as aldeias eram assaltadas, incendiadas e sua
população aliciada. Dessas ações não escapavam as crianças e os jovens. Muitos índios

64
Ribeiro (1979).
82

expulsos de seus territórios perambulavam pela mata, sem paradeiro. Para qualquer lado
que se dirigissem deparavam com grupos de seringueiros prontos para exterminá-los.65
O primeiro ciclo66 é desencadeado pela invasão da floresta por seringueiros que
em poucos anos alteraram quase toda a estrutura do local. Como as árvores eram
abatidas para extrair todo o látex, os mesmos tinham que se mover continuamente em
busca de novos nichos, cobrindo imensas distâncias. Nenhuma tribo, em cujo território
cresciam as árvores, pôde fugir desse processo de quase total extermínio. Um dos
procedimentos mais comuns de domínio dos índios era o sequestro de mulheres e
crianças, dentro da própria maloca, sob a vigilância de um capataz. Deste modo, os
invasores se asseguravam da cooperação dos homens na descoberta e exploração de
novos lugares e se garantiam de abrigo, alimentação e satisfação de seus apetites.
O segundo ciclo iniciou-se quando começaram a escassear os cauchais, obrigando
os invasores a buscarem as terras baixas do vale onde iria engajar-se a novas formas de
produção da borracha, dando algum alento às populações indígenas de altos cursos dos
rios tributários do Amazonas. Era a vez dos seringais situados nas ilhas e terras
marginais, mais próximas dos postos de exportação. Nestas áreas sobreviviam alguns
grupos indígenas já experimentados nos embates com a civilização, remanescentes de
tribos que desde os tempos coloniais já mantinham contatos. Eles “integravam” a
economia regional como fonte de mão-de-obra e como produtores autônomos de peixe
seco, peles de caça, de ovos de tartaruga, de óleos e essências florestais de outros
produtos extrativos. Preservavam, todavia, sua economia tribal de subsistência baseada
na lavoura, na caça, na pesca e na sua autonomia étnica.67
Para o índio, o seringal, e toda a indústria extrativa, representou a morte, a
negação de tudo o que necessitava para viver: ocupava-lhe a terra, dissociava sua
família, dispersando os homens e tomando as mulheres; destruiu a unidade tribal,
sujeitando-a ao domínio de um estranho, incapaz de compreender as suas motivações e
de proporcionar-lhe outras. Enfim, submeteu os índios a um regime de exploração
intensa.

A concepção negativista do modo de vida da população amazônica provinha,


em parte, do intenso desejo de luzes e civilização dos ilustrados que

65
Gondim (2007).
66
Na organização da sociedade amazonense, a historiografia oficial organiza-se em 3 ciclos que são
determinados pelo modelo econômico vigente: a exploração da terra, o ciclo da borracha e o período da
zona franca de Manaus.
67
Faria (2003).
83

escreviam sobre o povo livre, os índios e os escravos, aspiração associada à


concepção corrente, entre agentes da administração oficial, da agricultura
comercial como instrumento de civilização e riqueza das províncias
(RIZZINI, 2006, p.p. 140-141).

A destribalização segue os passos da exploração e intensifica a migração dos


povos indígenas dados os intensos processos de dizimação provenientes dos ataques dos
diversos tipos de exploradores. Primeiramente das terras de origem para outras terras
mais afastadas em busca de refúgio aos ataques, que deixou grande parte dessas
populações em condições de extrema miséria pela falta de alimento. Posteriormente, o
trânsito se deu das aldeias para as cidades produzindo uma concentração nos centros
urbanos e em muitas cidades do interior.

Ao nascer do Amazonas, oito jovens índios aportaram na Cidade da Barra,


capital da nova Província instalada em 1852. As quatro raparigas e os quatro
rapazes chegaram de canoa, conduzidos por um alferes, em comum acordo
com o primeiro administrador provincial, João Batista Figueiredo Tenreiro
Aranha. O diretor de índios do Rio Abacaxis enviou os jovens Mundurucu
para que fossem educados na cidade, nos ofícios apropriados à sua condição
e gênero.
Ao indiozinho após admissão na instituição educacional, junto com a farda e
todos os símbolos de sua nova condição, era-lhes imposta uma nova
identidade, a de aluno ou aprendiz, mesmo não falando o português.
(RIZZINI, 2006, p 134 e p. 142. Grifo nosso).

Assim, a Manaus do século XIX (1858 a 1877) serve de cenário, síntese dos
processos de destribalização/concentração, como pode ser visto no texto de Alves68 que
descreve o ideal de instrução pública nos primeiro anos da Província. Alves, ao analisar
a Casa dos Educandos, internato destinado a promover a educação profissional dos
órfãos e dos desvalidos da Província, tornando-os “úteis” para o mercado local, observa
que quase todas as crianças ali abrigadas, e também os meninos indígenas que
perambulavam pelas ruas da cidade, foram recolhidas e transformadas em trabalhadores.
Em 1872, contava-se cerca de 80 crianças que ficaram sob responsabilidade daquele
instituto.
A respeito do trabalho desenvolvido nesses espaços, Rizzini (2006, p. 137) faz
uma minuciosa pesquisa que resultou em sua tese de doutoramento, e em suas análises
expõe que:

68
Alves (1993/1994)
84

Portanto, nas casas e institutos de educandos, os meninos estavam a salvo do


recrutamento, tendo acesso ao treinamento de um ofício e a uma educação
que ultrapassava o nível elementar. O estudo da música e a atuação na banda
possibilitaram a que meninos pobres abraçassem uma profissão a qual
dificilmente teriam de exercer.

Ainda segundo a autora (Idem, p. 138):

As administrações amazonenses se preocuparam em incluir os indígenas


entre os beneficiados da ação educacional, embora não constasse haver
demanda por parte da população com relação à educação dos seus filhos na
capital, sob os moldes dos chamados civilizados. Por determinação da
presidência ou até da própria pessoa da autoridade máxima da Província,
familiares e chefes de aldeias tiveram que ser convencidos das vantagens do
sistema educacional proposto e da boa fé dos civilizados com relação as suas
crianças […] Autoridades, tais como presidentes de província, diretores da
instrução pública e visitadores escolares defenderam a criação de asilos para
crianças índias das malocas, de forma a afastá-las do convívio e influência
dos seus grupos de origem.

Assim, muitas das aldeias invadidas vieram para as zonas urbanas e ligam-se às
origens de cidades como Manaus, Parintins, Tefé, Itacoatiara, Autazes, etc. Os povos
remanescentes hoje vivem nas periferias, em precárias condições de vida e há parcas
informações sobre eles.
Os dados do IBGE de 200069 estimam que haja um total de 7.893 pessoas de
diferentes etnias morando nos bairros de Manaus, o que representa 0,6% do total da
população do município. A zona de maior concentração da população indígena está
localizada na Zona Leste, com 22,27% pessoas (1.758); a Zona Norte abriga 21,25%
(1.677) indígenas; a Zona Centro Oeste com 14,94% (1179) habitantes indígenas; a
Zona Centro sul com 14,62% (1.154 habitantes); a Zona Sul com 14,11% (1.114); e,
finalmente, a Zona Oeste com 11,01% (876) habitantes de etnias variadas. Há também
indicações de habitantes indígenas em outras localidades (1,71%) correspondendo a 135
pessoas.
Esses dados não correspondem àqueles apontados pelo Conselho Indigenista
Missionário-CIMI, que indica a existência, já em 1980, de mais de 10.000 índios
vivendo em Manaus. Porém, em nenhuma das fontes apontadas há registros sobre o
número de crianças que habitam a cidade. Se considerarmos que 45,03% dos habitantes
de Manaus estão dentro da faixa de 0 a 19 anos de idade, no Censo de 2000, o total de
crianças e jovens indígenas residente nos bairros de Manaus, a partir da população

69
Extraído do site www.ibge.gov.br
85

indicada pelo IBGE (7.893 em 2000) é de aproximadamente 3.552 pessoas. Já


utilizando os indicadores do Conselho Indigenista Missionário (10.000), as crianças e
jovens indígenas podem somar em torno de 4.500, somente em Manaus.
Cabe finalmente observar que, conforme adverte o Instituto Socioambiental70, os
números sobre a população indígena brasileira não passam de estimativas. Não existem
dados precisos, pois nunca foi realizado um censo indígena de amplitude nacional. Mas,
é consenso o fato de que o Amazonas é o estado brasileiro que possui o maior número
de população indígena, calculado entre 80 a 100.000 índios pertencentes a 70 etnias.
Nesses números não estão incluídos os habitantes indígenas que vivem nas cidades nem
os habitantes que têm origem indígena, o que ainda se torna mais problemático.
Mais recentemente, há uma série de dados sobre a população indígena de Manaus
que se encontram à disposição e que foram produzidos por diversas instituições que
atuam diretamente com os povos indígenas. Esses dados mais atuais – porém sem o
caráter oficial como o censo populacional – demonstram que os dados oficiais do IBGE
de 2000 (dados do último censo), em muito, estão ultrapassados. Isso fica muito claro se
compararmos a progressão da própria população da cidade de Manaus, que pelas
últimas contagens do IBGE cresceu de forma significativa. Em 2000 essa população era
de 1.402.590 e na contagem de 2008 já está em 1.709.010.71
Os dados sobre a população indígena de Manaus variam de acordo com cada
instituição e a metodologia usada para a contagem. Vamos destacar abaixo alguns
desses dados, lembrando, porém, que, oficialmente, são os dados do IBGE que se
caracterizam como fonte oficial para qualquer contagem da população.

(Este gráfico tem como fonte dados da Fiocruz, cruzados com dados sobre a saúde indígena, coletados
pelo IBGE em 2007).

70
Esta Instituição produziu um material intitulado “Povos indígenas no Brasil”. Para aprofundamentos,
buscar o site www.socioambiental.org
71
Dados extraídos do site do IBGE (www.ibge.gov.br).
86

Em relação ao gráfico acima, os dados apontam para a existência de uma


população de aproximadamente 12.500 indígenas vivendo na cidade de Manaus. O
administrador da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no Amazonas, Edgard
Fernandes, alerta para o fato de que o recenseamento desconsiderou que muitos índios
não se declaram como tal, embora se comuniquem em língua nativa e sigam os
costumes de seus ancestrais. Fernandes calcula que, se esses também forem contados, a
população indígena de Manaus poderia chegar a um número de, aproximadamente,
25.000 pessoas. Caso essa estimativa seja verdadeira, Manaus terá se convertido na
72
maior aldeia do país em menos de duas décadas.
Um trabalho que tem merecido destaque no contexto da região é o projeto “Nova
Cartografia Social da Amazônia”, que desde 2005 vem procurando redesenhar a
situação da região, tomando por base um contato direto com as populações dos vários
estados que a compõem. No caso das populações indígenas de Manaus, foi lançado o
fascículo de número 18, que procurou, a partir de um trabalho nas próprias
comunidades, inventariar a situação desses povos, levantando questões referentes ao
número da população, saúde e educação, entre outros.
Neste contexto de números e estimativas, existe uma população real que, em
muitos dos lugares onde habitam, sofre pelo preconceito e principalmente pela ausência
de políticas públicas que possam dar suporte a esses povos indígenas que tanto sofreram
ao serem “expulsos” de suas aldeias e que, ao chegarem à cidade, continuam
encontrando essa onda massificante de sofrimento. Por isso, nosso esforço em conhecer
a realidade de uma dessas comunidades e de suas crianças, para, numa tentativa de
contribuir com a luta desses povos, garantir melhores condições de sobrevivência e o
respeito que nós, os homens brancos, devemos aos donos dessa terra.

3.2 A literatura sobre as crianças indígenas: um panorama das


pesquisas e as contribuições para sedimentação de um campo de
investigação científica
“A ciência social teria cumprido melhor seu objetivo se, fazendo progredir ao mesmo tempo o
conhecimento do mundo social e o conhecimento dos limites desse conhecimento, tivesse
conseguido encorajar e desacreditar a ingênua ilusão no caráter todo-poderoso das ideias,
quer dizer, dos ideólogos, ilusão esta que inspira tão frequentemente a pretensão de falar e de
agir sobre o mundo.”

72
Dados da Revista Veja - 07/05/2008.
87

(BOURDIEU, 1983, p. 41)

Apesar de já haver no Brasil uma produção significativa acerca do Estado da


Arte na temática indígena e um grupo de trabalhos que delineiam seu foco para o estudo
com as crianças indígenas73, sentimos a necessidade de revisitar essas fontes e, num
movimento de ampliação das perspectivas de análises que surgiram nos últimos anos,
deflagrar uma possibilidade de reconhecimento da criança indígena nas cidades como
agente social que também carece de visibilidade por parte das pesquisas e estudos, não
só no campo da Antropologia, mas, e principalmente, numa perspectiva interdisciplinar.
Em nossa revisão da literatura sobre o tema, no que pese o foco de análise nas
crianças de modo mais ampliado e não somente como “peças” de um conjunto maior de
produção, não se pode deixar de dar destaque à obra “Crianças indígenas: ensaios
antropológicos”, organizada por Silva, Macedo e Nunes (2002), na qual realizaram
uma importante coletânea de textos sobre as crianças indígenas. Conforme as autoras,
“Contrariamente, o que parece óbvio e tão fácil de responder, um olhar atento à
literatura produzida sobre as sociedades indígenas no Brasil deixará evidente que assim
não o é” (Idem, p. 11).
Em se tratando das vivências dessas populações e, logo, da infância nos centros
urbanos, uma lacuna ainda maior se aponta para nós. Ainda de acordo com as autoras,
essa questão também representa uma problemática no cenário internacional, como já
apontado nos estudos de Margareth Mead74, antropóloga que marcou história no campo
dos estudos da infância e que “se indagava a propósito do pouco interesse da
antropologia pela infância, em face dos outros temas que tantos avanços tinham
conseguido dentro dessa disciplina” (Idem, p. 12).
Para Nunes (1997, p. 14):

Na verdade, foi o trabalho desta pesquisadora e de seus discípulos que trouxe


a criança para dentro dos limites da reflexão antropológica, conjugada aos
estudos psicológicos sobre personalidade, tão efervescentes e comuns nessa
época. […] Mead não estava satisfeita com essas explicações e introduziu o
fator ‘cultura’ nas investigações que empreendeu, possibilitando uma outra
leitura dos fatos observados. Consegue, entre outras coisas, e com base em

73
No primeiro capítulo de sua dissertação de mestrado, intitulado “A criança na antropologia:
apreciações bibliográficas”, Angela Nunes (1997) traz uma contribuição valiosa para o mapeamento da
produção, destacando que “A criança é incluída em alguns trabalhos antropológicos, porém, raramente
como categoria preponderante na condução das investigações.” (p.37). Outro trabalho que merece
destaque é a introdução do livro “Crianças Indígenas: ensaios antropológicos”, denominada
“contribuições da etnologia brasileira à antropologia da criança”.
74
Silva, Macedo e Nunes (2002).
88

extensa etnografia, demonstrar que conhecer profundamente o período da


infância numa sociedade é fundamental para se conhecer a etapa seguinte – a
adolescência – e o funcionamento geral da sociedade.

Ao definirem os primeiros contornos da trajetória nos estudos sobre as crianças


indígenas, Silva, Macedo e Nunes (2002) observaram e chamaram atenção para a pouca
abrangência dos mesmos nos diversos campos das Ciências Sociais, como já
mencionado anteriormente. A premissa que nos move na construção deste subitem do
capítulo é muito semelhante aos questionamentos levantados pelas autoras à época:
demarcar um grupo de trabalhos científicos, em nível de livros, artigos, dissertações de
mestrado e teses de doutorado, tomando, a princípio, os trabalhos que existem
mapeados em outros textos, como já afirmamos, e aprofundá-los com a produção
efetivada no Brasil, e mais especificamente no Estado do Amazonas, nos últimos dez
anos (1998-2008).
Estas produções são fundamentais para a sedimentação de um campo de pesquisa
com as crianças indígenas, assim como a possibilidade de constituição de um campo de
estudos com as crianças indígenas nas cidades.
Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de estudos sobre o tema da
criança e da infância não deixa de ser a conduta adultocêntrica75. Ela (a criança) foi
sempre vista e estudada, e ainda o é, como receptáculo de ensinamentos em quase todas
as áreas do conhecimento e mais particularmente no campo da educação. Por tais
motivos, vamos descortinar um grupo de estudos que demonstra a possibilidade de
rompimento com essa visão linearmente construída e aponta para uma participação mais
efetiva das crianças. Nesta perspectiva, Soares (2006, p. 38) nos afirma que:

Será através da consideração de dinâmicas [...], acerca da importância da


participação das crianças ou ainda acerca da indispensabilidade de as
considerar actores e co-construtores de conhecimentos acerca de seus
mundos sociais e culturais, que se poderá começar a esbater a exclusão social
da infância, sendo a participação infantil, sem dúvida, um factor decisivo e
poderoso para combater a exclusão dos cidadãos-crianças nos processos de
negociação e tomada de decisão acerca de seus quotidianos.

Faremos, primeiramente, uma breve revisão da literatura que representou um


marco significativo para os primeiros contornos da área e sua visibilidade no cenário

75
Sarmento (2001).
89

atual, para depois nos determos na visualização76 de trabalhos mais recentes e que nos
possibilitam apontar um crescimento significativo das pesquisas com as populações
indígenas em diversos lugares do Brasil, e entre elas aquelas que se ocupam, mais
especificamente, dos estudos com as crianças indígenas e a necessidade de se ampliar –
dada a carência de fontes – esses estudos com as crianças indígenas que vivem nas
cidades.
Assim, comecemos com o ano de 1979, que representou, na conjuntura mundial,
uma conquista para as crianças, pela viabilização política do seu ano internacional,
oriunda de uma situação de insatisfação mundial da condição de vida das populações
mais pobres, que saltava aos olhos de um mundo que decantava a entrada em uma outra
conjuntura, alicerçada no fenômeno da globalização e da tecnologização dos processos
comunicacionais e sociais, mas que abundava em pobreza, fome e miséria.
Rizzini (2002, p. 01) destaca que “os efeitos da globalização são variados e até
mesmo contraditórios”, principalmente se olharmos apenas sob a ótica dos números
produzidos pelas estatísticas mundiais e pelo crescimento das taxas de riqueza nos
diversos países do mundo. Esses indicadores podem nos dar a impressão de que a
condição de vida das populações melhorou significativamente, tomando-se por base o
Produto Interno Bruto-PIB. No entanto, cabe destacar que o enriquecimento de alguns
desses países, e logo de suas “frações de classes”77 mais abastadas, deu-se pelo
empobrecimento em massa das populações.
Nosso país é um caso vivo dessa crescente concentração de riquezas e de
exacerbamento da pobreza, como nos afirma Rizzini (2002, p. 06):

Qualquer introdução sobre o tema das mudanças globais não pode ignorar o
rápido crescimento da desigualdade e seu impacto na vida das crianças e dos
adolescentes. Este crescimento pode estar se acentuando devido ao
fenômeno da globalização. O grau de desigualdade depende em grande parte
da forma como ela é medida, mas pode se constatar uma distância cada vez
maior entre os dez países mais ricos e os dez mais pobres. Enquanto a
pobreza diminui a desigualdade aumenta, ou seja, os ricos ficam cada vez
mais ricos, os pobres apresentam uma mudança comparativamente menos
significativa.

76
Utilizamos essa expressão, pois faremos uma exposição que se objetiva a mostrar um panorama que
situa o estudo do nosso objeto e contribui para a possibilidade de sedimentação de uma área de pesquisa
com as crianças nas cidades.
77
Bourdieu (1982).
90

O Brasil se fez presente neste contexto de comemoração ao ano internacional da


criança, mas a contribuição mais importante a se destacar foi o tom dos estudos, que nos
anos que se seguiram começaram a ganhar mais fôlego e novas perspectivas de uma
ação mais crítica, principalmente no bojo dos movimentos sociais que advogavam a
favor da redemocratização do país.
Este fortalecimento no campo intelectual contribuiu para que se começasse a
disseminar de forma mais efetiva essa vontade política de dar voz ao pensamente que
por anos havia sido reprimido no contexto da ditadura militar, o que culminou com um
movimento de fortalecimento da produção de inúmeras dissertações de mestrado e teses
de doutorado que, pelo esforço e coragem de muitas universidades, grupos de pesquisas
e centros de investigação sobre a temática indígena e da criança indígena, redefiniram
suas formas de pensar essa problemática, que por muito tempo foi tratada
principalmente nos “escritos dos viajantes”, atrelada a uma visão de vigilância e
punição78.
O que pese tal crescimento, ao movimento de ampliação das formas de análise e
entendimento dos diversos modos de vida dessas populações, muitos desses trabalhos
ainda ficaram numa “inoperância acadêmica”79. Porém, é importante destacar que no
bojo de tais mudanças, a legislação brasileira, principalmente com a aprovação da
constituição de 1988, efetivou garantias fundamentais para a sobrevivência de muitas
das populações indígenas no país.
Os anos de 1980 também foram marcados pela criação de inúmeras organizações
não-governamentais que tratavam do tema, convocando a população para um
movimento de proteção à infância. Esses também foram os anos de grande
efervescência social, quando os movimentos populares recrudesceram, denunciando a
política econômica e os abusos cometidos pela ditadura militar contra os direitos
humanos80.
As polêmicas sobre os direitos humanos e o contexto político favoreceram o
aparecimento de inúmeros trabalhos científicos sobre as condições de vida das crianças,
filhas de trabalhadores, e a respeito da questão do abandono. Acompanhando o
movimento político, Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 13) citam um significativo avanço

78
Foucalt (1987).
79
Silva, Macedo e Nunes (2002). As autoras afirmam que muitos desses trabalhos apenas avolumaram os
títulos das bibliotecas, e pouco contribuíram para um debate que se aproximou das práticas junto às
populações indígenas.
80
Laraia (1986).
91

de várias áreas do conhecimento, com novas abordagens sobre a problemática da


infância, o que vai contribuir para trazer a criança indígena para o debate. Assim, para
as autoras:

Foi só no início da década de 80 que tiveram lugar as primeiras reuniões


científicas interdisciplinares e internacionais no âmbito das ciências sociais,
com o objetivo específico de discutir a infância. Em 1982, na London
School of Economics, realizou-se um seminário que reuniu antropólogos,
psicólogos, historiadores e sociólogos, cujo objetivo seria chamar a atenção
para um tema negligenciado, a saber, como as crianças adquirem cultura
dentro da qual são socializadas.

Neste contexto, não podemos deixar de mencionar o trabalho de Alvim e


Valadares, de 1988, “Criança e sociedade no Brasil: uma análise da literatura”,
apresentado na reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais – ANPOCS, cujo tema inclui uma bibliografia sobre a criança no
Brasil. Contudo, o próprio conteúdo do texto nos mostra que o tema da infância ganhou
maior relevância no país, mas o interesse sobre as questões étnicas e, mais
especificamente, sobre as crianças indígenas, ainda se mostrava bastante frágil, pois nas
indicações bibliográficas não se encontrava um único título específico sobre as crianças
das sociedades indígenas81. A crítica ao trabalho das autoras pode incorrer em uma série
de questões, concordamos com Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 17), quando afirmam
que:

Os motivos podem ser vários: ou porque estas não se incluíam na tal infância
pobre que era alvo de preocupações, não constituíram um problema e,
portanto, não mereciam a atenção dos cientistas sociais; ou porque,
simplesmente, pela falta de interesse então existente, pouco ou nada se sabia
sobre as crianças dessas sociedades, ou nada a que valesse a pena dar
destaque.

É importante destacarmos que apesar do não aparecimento no trabalho das


autoras de bibliografias científicas sobre a temática da infância indígena, já havia uma
produção que começava a discutir o modo de vida dessas populações, como é o caso do
texto de Egnon Shaden, “Leituras de Etnologia Brasileira” de 1976.

81
Nunes (1997).
92

Segundo nos expôs Antonella Tassinari82, é de significativa importância


destacarmos a obra de Lux Vidal, que em 1973 defendeu sua tese de doutoramento em
antropologia denominada “Put-Karôt (Xikrin), grupo indígena do Brasil Central", e
apesar de não ser um trabalho efetivo no estudo com as crianças indígenas, é
reconhecida como marco para a consolidação de estudos sobre a temática. Em 1977,
publicou o livro Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira: Os Kauapó-
Xikrin do Rio Catete, que além de ser inspirador para uma série de trabalhos com
crianças de diversas etnias, contribuiu para o surgimento de muitos trabalhos no cenário
da pesquisa, principalmente com a criação do MARI- Grupo de Educação Indígena da
USP.
O MARI ("conhecer", na língua Kayapó) foi, durante muitos anos, importante
presença no cenário nacional, sendo uma das mais atuantes entidades nacionais
preocupadas com a educação dos índios. Criado em 1988, o grupo foi inspirado por
antropólogos e estudantes que abraçaram a causa indígena no final dos anos 70. Foi
formado por pesquisadores, estudantes de pós-graduação, além de colaboradores ligados
a diferentes instituições, e desenvolveu projetos de estudos e assessorias. Com anos de
experiência acumulada em trabalhos de campo, o grupo foi também responsável por um
ambicioso programa de pesquisa na área da educação indígena.
Outro trabalho de Lux Vidal que merece destaque é o livro Grafismo Indígena:
estudos de antropologia estética, publicado em 1994. Este livro reúne 13 artigos sobre
grafismos indígenas, mostrando a imensa riqueza e a grande variedade de suas
manifestações entre os índios no Brasil, que compõem um riquíssimo acervo acerca das
diversas expressões artísticas dos povos indígenas, e como as crianças são peças vivas
desse mosaico. Grande parte das fotografias expostas é de crianças, o que demonstra a
importância das mesmas nas sociedades indígenas.
Em 1979, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos dedicou um número a
uma quantidade de textos consideráveis sobre a infância, um dos quais “A criança
Marubo: educação e cuidados”, de Melatti e Melatti. Também merece destaque o
trabalho de Darcy Ribeiro, “Os índios e a civilização. A integração das populações
indígenas no Brasil moderno.”, de 1979, que vai desencadear uma série de outros
estudos, principalmente pela riqueza de dados que o autor apresenta no decorrer do

82
Na banca de qualificação da tese, na qual foi membro, Tassinari assinalou a importância de incluirmos
neste inventariado o nome de Lux Vidal, por ser, segundo ela, uma mentora intelectual de pesquisadores
que hoje ganham destaque nos estudos com crianças indígenas, como é o caso de Aracy Lopes, Ângela
Nunes, Clarice Cohn, entre outros.
93

texto, apesar das muitas críticas que surgiram posteriormente sob a forma de conceber
as crianças.
Anthony Seeger publicou, em 1980, o livro: “Os Índios e Nós. Estudos sobre
sociedades tribais brasileiras”, onde buscou estabelecer os diversos processos de
contato entre índios e brancos, dando ênfase a uma predominância dos aspectos
voltados à dominação, que envolvia, inclusive, as crianças. João Pacheco de Oliveira
Filho, no livro organizado sobre o tema “Sociedades indígenas e indigenismo no
Brasil”, de 1987, destaca a presença dos movimentos sociais que foram se
consolidando no intuito de lutarem pelas causas indígenas e, logo, das crianças.
Em 1989, Florestan Fernandes publicou, em forma de livro, sua dissertação de
mestrado em Sociologia defendida em 1948: “A organização social Tupinambá”,
fruto da pesquisa realizada sobre uma das maiores nações indígenas do Brasil. Durante
mais de quatro séculos foi vendida a imagem do índio como um homem geneticamente
preguiçoso, nada afeito ao trabalho. A verdade, entretanto, era bem outra. Apesar dos
primeiros cronistas sustentarem a tese da preguiça do índio, eles trabalhavam e muito. O
autor foi pioneiro no trabalho de corrigir esse “erro” histórico, desvelando uma série de
questões acerca da vida, dos costumes, dos ritos e mitos desse povo indígena, apontando
para uma visão que rompe com o exotismo e concebe o povo indígena como produtor
de história, cultura, memória e muito trabalho, fruto das suas tradições.
Os trabalhos de Silvio Coelho dos Santos trazem uma rica contribuição para o
debate acerca das questões indígenas e se apontam como fundamentais para o
enriquecimento dos estudos feitos sobre a temática. Suas principais publicações são: A
integração do índio na sociedade regional (1970); Índios e brancos no sul do Brasil:
a dramática experiência dos Xokleng (1975); Educação e sociedades tribais (1975).
No entanto, é preciso não esquecer a existência de um conjunto de obras
referentes aos estudos da infância83, que pode servir de fontes para a produção de novos
trabalhos e textos, entre outros, na área, e que traz uma grandiosa contribuição para
compor o processo de sedimentação deste campo de pesquisa. Apresentaremos, de
forma delimitada, algumas delas que circulam no panorama nacional e, em seguida,
83
“Ensaios em Antropologia do Poder”, Rodrigues (1992); “O massacre dos Inocentes”, Martins
(1993); “História Social da Criança Abandonada”, Marcílio (1998);” “Do silêncio do lar ao silêncio
escolar: Racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil”, Eliane Cavalleiro (2000);
“Educação jesuítica no Brasil colônia”. In: 500 anos de educação no Brasil, José Maria de Paiva
(2000); “Crianças e Jovens na construção da Cultura”, Castro (2001); “Sociedade e infância no
Brasil” Brasilmar Ferreira Nunes (2003); “História da criança no Brasil”, Del Priore (2006); “Os
sentidos (paradoxais) da infância nas ciências sociais: um estudo de sociologia da infância crítica sobre
a “não-criança” no Brasil”, Rita Machi (2007), entre outros.
94

procuraremos dar maior ênfase em trabalhos que estão mais ligados ao contexto do
Estado do Amazonas, por se tratar, de fato, do nosso campo de abrangência neste
estudo.
No cenário nacional, a produção sobre a temática indígena é bastante densa e
merece todo o reconhecimento, dadas as diversas situações de construção das mesmas84.
Os programas de Pós-graduação nas áreas das Ciências Sociais trazem uma ênfase
maior nos estudos sobre as condições de vida das populações e, um pouco mais
timidamente, os programas na área da Educação, que nos últimos anos têm conseguido
fazer uma discussão que tem ganhado cada vez mais relevância quanto à questão dos
processos educacionais entre esses povos.
Os mesmos são fundamentais para o significativo aumento pelo interesse em
pesquisar os povos indígenas no Brasil em diversas situações. As obras que
selecionamos são apenas uma pequena amostra desse grandioso mosaico construído
pelos pesquisadores brasileiros no contato com as mais diferentes etnias.
Manuela Carneiro da Cunha organizou o livro “História dos índios no Brasil”,
de 1992, que traz uma coletânea de textos sobre diversas etnias, fruto das investigações
realizadas por vários pesquisadores, conseguindo visualizar um pouco do panorama da
diversidade étnica de nosso país, focalizando alguns elementos pertinentes ao estudo da
infância. Em outro texto, intitulado “Imagens de índios do Brasil: o século XVI”, de
1990, a autora traz uma quantidade expressiva de discursos – na perspectiva dos
viajantes – resgatados num amplo processo de pesquisa documental. Segundo suas
críticas, os viajantes assim viam os indígenas brasileiros: “Com o Novo Mundo
descobre-se também uma Nova Humanidade. Resta o problema crucial de inserí-la na
economia divina o que implica inserí-la na genealogia dos povos. Para isso, não há
outra solução senão a da continuidade, senão abrir-lhe um espaço na cosmologia
europeia” (p. 102).
O livro “O Índio e o Mundo do Branco”, de Roberto Cardoso de Oliveira, de
1996, traz para a discussão da temática indígena o conceito de “Fricção Interétnica”, já
que, segundo o autor, “o conhecimento do contato interétnico será alcançado de modo
mais completo se focalizarmos as relações interétnicas enquanto relações de ‘fricção”
(p. 33). O estudo é inovador neste sentido, ao focar nas questões que envolve as
diversas relações que se estabelecem entre índios e brancos e a importância da mediação

84
Ricardo (2000).
95

entre esse saberes, buscando descentralizar o olhar que por tanto tempo se deteve na
visão dos viajantes e considerou os povos nativos sem um corpo de conhecimentos que
merecesse visibilidade própria e valor dentro das discussões sobre a temática.
Sobre a Amazônia, os escritos de Curt Nimuendajú, “Textos Indigenistas”, de
1982, que, tratando da vida indígena nas primeiras décadas do século XX, forneceram
informações sobre o lugar que crianças e jovens ocupavam em diferentes etnias,
particularmente no Amazonas. O livro “A terra dos mil povos: história indígena do
Brasil contada por um índio.”, de Kaka Werá Jecupé, de 1998, traz a perspectiva da
vida dos povos indígenas a partir deles próprios, resgatando elementos fundamentais
presentes na cultura que os torna diferentes.
Ainda neste enfoque, o livro de Theodor Koch-Gruntenber: “Dois anos entre os
indígenas: viagens ao noroeste do Brasil- 1903/1905”, reeditado em 2005, faz uma
densa etnografia, destacando, entre outras coisas, a forma de organização de muitos dos
povos indígenas da região. No mesmo ano foi publicado o livro “História Indígena e
do Indigenismo no Alto Rio Negro”, de Robin M. Wright, que representa um conjunto
de artigos, fruto de mais de 30 anos de pesquisas etnográficas e documentais, que
contribuem para um entendimento da organização dos povos indígenas dessa grande
região e destaca temas como guerras, alianças, profetas, cosmologia e uma intensa
análise da organização social do povo Baniwa.
Um trabalho que merece todo o reconhecimento no contexto desta tese e da
produção indígena sobre a região amazônica é a obra de Manuel Nunes Pereira, um
viajante incansável que escolheu a Amazônia como sua terra e se dedicou plenamente
“[...] por mais de 40 anos, conhecendo seus bichos, peixes e matas, suas gentes – índios
e caboclos –, mitos e histórias [...]”85 e que pesquisou e conviveu por um longo período
com “Os Índios Maués” (2003), tema de um de seus livros e de vital importância para
esta tese, pois nos forneceu um rico aporte sobre a cultura desse povo.
Do ponto de vista educativo, com um olhar interdisciplinar, a criança indígena,
nos meados do século passado e inicio deste século, ganhou destaque em vários livros e
artigos, aqui representados por: “Educação Indígena e Alfabetização”, de Bartomeu
Meliá, de 1979; “Educação e Sociedade Indígena – uma aplicação bilíngue do
método Paulo Freire”, de Isabel Hernandez, de 1981; “O debate sobre a educação
indígena no Brasil (1975-1995)”, de Marta Valéria Capala, de 1995; “A temática

85
Selda Vale da Costa (In: PEREIRA, 2003, p. 9).
96

indígena na escola”, organizada por Silva e Groupioni, de 1995; “Escolas da floresta:


entre o passado oral e o presente letrado”, de Nietta Monte, 1996.
Fazem parte também desta discussão os trabalhos: “Leitura e escrita em escolas
indígenas”, de Wilmar D'angelis e Juracilda Veiga, de 1997; “Educação Indígena”,
Cadernos Cedes 49, de 2000; “Educação e povos indígenas: construindo uma
política nacional de educação escolar indígena”, de Luís Donisete Benzi Gropioni, de
2000; “Povos Indígenas e Tolerância: construindo práticas de respeito e
solidariedade”, organizado por Luís Donisete Benzi Gropioni, Lux Vidal e Roseli
Fischmann, de 2001; “Práticas pedagógicas na escola indígena”, organizado por Silva
e Ferreira, de 2001; “Antropologia, História e Educação: A questão indígena e a
escola”, organizado também por Silva e Ferreira, de 2001; “Escola indígena,
identidade étnica e autonomia”, organizado por Juracilda Veiga e Wilmar D'angelis,
de 2003; “Desafios atuais da Educação Escolar Indígena”, organizado por Juracilda
Veiga e Maria Beatriz Rocha Ferreira, de 2005; “A Criança Indígena: do falar
materno ao falar emprestado”, de Terezinha de Jesus Machado Maher, de 2005;
“Concepções indígenas de infância no Brasil”, de Antonella Tassinari, de 2007.
Ainda neste grupo de trabalho, destacamos "Organização da aprendizagem e
participação das crianças Xacriabá no contexto familiar e comunitário”, de Ana
Maria Rabelo Gomes, de 2008; “A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos
parentes: espaços de sociabilidade infantil”, de Levi Marques Pereira, de 2008;
“Infância, Brincadeira e Cultura”, de Levindo Diniz Carvalho, de 2008; “Relações
de Gênero Entre Crianças Mbyá-Guarani”, de Maria Paula Prates Machado, de
2008; “As Crianças Xacriabá, suas formas de sociabilidade e o aprendizado nas
comunidades de prática”, de Rogério Correia da Silva, de 2008; “Cultura e
Sociedade: ouvindo crianças indígenas através de sua produção artística”, de Sonia
Grubits e Ivam Darralt, de 2008, entre outros.
Esse grupo de trabalhos exemplifica e sedimenta a tendência crescente, desde
1980, dos antropólogos, sociólogos, historiadores e educadores que realizam pesquisas
com povos indígenas, em divulgar, para o público em geral, suas produções oriundas de
diversos tipos de investigações sobre as populações indígenas e, no bojo das mesmas, as
crianças indígenas, destacando suas relações sociais nas aldeias e em outros espaços, e
suas relações e inserções na/com a escola.
Os trabalhos mais recentes, principalmente os de 2008, foram catalogados de dois
eventos de fundamental importância para o crescimento e visibilidade das pesquisas na
97

área. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais


/ANPOCS e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/
ANPED. Faremos uma breve caracterização dessas associações destacando, do seu
contexto mais amplo, o trabalho de dois GTs que, principalmente em 2006, 2007 e
2008, abrigaram uma significativa participação de pesquisas com crianças indígenas.
A APOCS foi fundada em 1977 e já se encontra na sua 33ª Reunião Anual. Em
linhas gerais, a associação “[…] atua na representação e aglutinação dos centros de
pesquisa e programas de pós-graduação que atuam no campo das ciências sociais no
Brasil. A ANPOCS conta com a filiação de centros e programas de pós-graduação que
têm na antropologia, na ciência política e na sociologia seu campo de atuação”86. A
mesma tem sido de vital importância para a edificação do campo das Ciências Sociais e
para o processo de visibilidade de temas que por muito tempo ficaram à margem da
pesquisa científica.
A composição dos Grupos de Trabalho varia de acordo com as propostas
apresentadas a cada dois anos. A organização de um seminário temático em 2007
resultou na criação do GT “Do ponto de vista das crianças: pesquisas recentes em
ciências sociais”, coordenado pelas professoras: Dra. Clarice Cohn (UFSCAR) e Dra.
Antonella Maria Imperatriz Tassinari (UFSC), que teve sua vigência nos anos de 2008 e
2009. Já em 2008 foi apresentada uma sessão específica sobre as crianças indígenas que
contou com quatro trabalhos e um painel.

A proposta do GT é congregar pesquisas recentes nas Ciências Sociais que


têm as crianças como foco e interlocutoras na análise. Seguindo os
pressupostos desta abordagem, que vem se consolidando no campo
acadêmico internacional e ganhando cada vez mais espaço nas Ciências
Sociais no Brasil, pretende-se dar ênfase aos estudos atentos à agência e à
produção de sentidos e conhecimentos das crianças; àqueles que discutem
noções sociais de infância; assim como àqueles que exercitem reflexões
metodológicas e teórico-analíticas sobre a pesquisa com crianças.
Considerando que as crianças são interlocutoras privilegiadas para a
compreensão de certos aspectos da sociedade e da cultura que são obliterados
pelas concepções adultas, o GT pretende contribuir para a consolidação desta
área de pesquisa nas Ciências Sociais. (Ementa do GT, extraída do site
www.anpocs.org.br).

A ANPED foi fundada em 1976 e já se encontra na sua 32ª Reunião Anual. Os


objetivos da associação são: “Buscar o desenvolvimento e a consolidação do ensino de

86
Extraído do histórico da instituição, contido no site www.anpocs.org.br
98

pós-graduação e da pesquisa na área da Educação no país; fomentar a produção de


trabalhos científicos e acadêmicos na área educacional, facilitando também sua difusão
e intercâmbio; estimular as atividades de pós-graduação e pesquisa em educação para
responder às necessidades concretas dos sistemas de ensino, das universidades e das
comunidades locais e regionais, valorizando a cultura nacional e contribuindo para sua
permanente renovação e difusão; promover a participação das comunidades acadêmica e
científica na formulação e desenvolvimento da política educacional do país,
especialmente no tocante à pós-graduação; e promover o intercâmbio e a cooperação
com associações e entidades congêneres”87.
As reuniões anuais têm representado um grande espaço para a elucidação de
temas na área da Educação e para o fortalecimento do debate e da produção acadêmica,
além da intensa participação nos movimentos de discussão das políticas públicas e das
legislações no campo da educação pela via de propostas de projetos e pela consolidação
de fóruns de debates envolvendo, além dos espaços acadêmicos, a sociedade como
parceira.
Em 2006, através de um convênio com a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade/SECAD/MEC, a associação apresentou um projeto
denominado “Educação como Exercício de Diversidade: estudos em campos de
desigualdades sócio-educacionais”. Este projeto aprovou quatro pesquisas na área da
Educação Escolar Indígena. Em 2007, as pesquisas compuseram um livro que teve a
mesma denominação do projeto, sendo que dois trabalhos focalizaram as crianças
indígenas e um deles, as crianças indígenas “urbanas”88.
Os Grupos de Trabalho são permanentes, e para a criação de novos grupos há todo
um processo de discussão para a efetivação dos mesmos. O GT “Educação das
Crianças de 0 a 6 anos” foi criado em 198189 e tem incorporado a discussão na
produção de sentidos e significados acerca dos mundos infantis e das concepções de
crianças e infâncias e suas relações com os espaços educativos. Em relação à Criança
Indígena, ainda é tímida a presença de trabalhos, mas já se visualiza um cenário mais
fértil para tal participação. No ano de 2006 foram apresentados dois trabalhos e em
2008, três, um deles sobre as crianças indígenas nas cidades90.

87
Extraídos do histórico da instituição, contido no site www.anped.org.br
88
A Criança Sateré-Mawé: os ecos de suas vozes. Mubarac Sobrinho (2007c).
89
Para mais aprofundamentos, ver Rocha (2007).
90
“Pra fazer a farinhada muita gente eu vou chamar: contextos lúdicos diversificados e as culturas das
crianças Sateré-Mawé. Mubarac Sobrinho, 2008c. (www.anped.org.br)
99

No bojo das discussões acerca da presença das crianças indígenas nos contextos
das aldeias e nas cidades, consideramos os textos de Nascimento: “Escola indígena:
palco das diferenças”, de 2004; “A cosmovisão e as representações das crianças
Kaiowá-guarani: o antes e o depois da escolarização”, de 2005 e “Entender o Outro
- A criança indígena e a questão da Educação Infantil”91, de 2006, como marcos
constituintes de pesquisas no campo dos estudos com as crianças indígenas, pois o
modo inovador utilizado nos trabalhos traz para o cenário das produções o enfoque dos
processos presentes no contato das mesmas com as escolas, tanto nas aldeias quanto nas
cidades. Neste último texto, os autores deflagram um processo de reflexão que é
fundamental no entendimento dessa relação com a escola infantil.

Ao refletir sobre a implementação de propostas de Educação Escolar Infantil


em terras indígenas surgem questionamentos inquietantes: trata-se de uma
demanda legítima e construída a partir da vivência e dos processos
pedagógicos próprios das famílias envolvidas? Até que ponto a preocupação
dos gestores restringe-se à busca de resultados imediatos, não atentando para
as suas implicações a longo prazo sobre os processos de aprendizagem
próprios de cada povo indígena. Há, ainda, dúvidas sobre a melhor idade para
a criança indígena, no caso a Kaiowá e Guarani, iniciar o processo de
escolarização, além de questionamentos sobre as consequências da iniciativa
na construção da identidade indígena, da organização sócio-cultural e da
socialização primária. (p. 03).

Sem sombra de dúvidas, não poderíamos deixar de trazer para o corpo deste
inventariado que dá suporte as nossas discussões, o livro de Clarice Cohn,
“Antropologia da Criança”, de 2005, que mesmo fugindo à regra de um trabalho com
um grandioso número de laudas, nas suas 58 páginas, primando pela qualidade das
análises e por uma discussão fundamentada tanto num amplo trabalho de revisão de
literatura quanto das suas empreitadas em pesquisas etnográficas com crianças
indígenas, remete-nos a um processo de reflexão que aponta para a perspectiva das
“perguntas difíceis”92 e por tanto não traz uma lista de respostas ou apontamentos. Para
ela, “A antropologia da criança não se limita ao estudo das crianças ‘de lá’, de outras
culturas e sociedades. Como no que diz respeito a diversos outros temas, os
antropólogos têm realizado pesquisas sobre fenômenos e temas próximos do seu meio
social, e com sucesso.” (p.49).
Outro grupo de produções que tem alcançado um espaço destacado neste campo
de pesquisa são as dissertações de mestrado e as teses de doutorado. Esses dados, nem

91
Este último publicado em parceria com Brand e Agulera.
92
Santos (2008).
100

de longe, podem representar a totalidade dessa produção, porém selecionamos, em


nossa revisão de literatura, algumas que foram possíveis de ser catalogadas e outras que
puderam ser lidas e que foram defendidas nos últimos 10 anos (tomando-se por base os
anos de 1997 a 2007).
É o caso da dissertação de mestrado em Antropologia “A sociedade das crianças
A’uwé-xavante: por uma antropologia da criança” e da tese de doutorado em
Antropologia “Brincando de ser criança: contribuições da etnologia indígena
brasileira para a antropologia da infância.”, de Ângela Nunes (1997 e 2003), da tese
de doutorado em Antropologia “Contribuição à História e à Etnografia do baixo
Oiapoque: a composição das famílias Karipuna e a estruturação das redes de
troca.”, de Antonella Tassinari (1998), da tese de doutorado em Sociologia “O apetite
da Antropologia: o sabor antropofágico do saber antropológico. Alteridade e
identidade na cultura Tupinambá”, de Adone Agnolin (1998); da dissertação de
mestrado em Antropologia “A criança indígena: a concepção Xikrin de infância e
aprendizado.”; da tese de doutorado em Antropologia “Relações de Diferença no
Brasil Central: os Mebengokré e seus Outros”, de Clarice Cohn (2000 e 2006); da
dissertação de mestrado em Educação “Encontro das águas: educação e escola no
dinamismo da vida kambeba”; da tese de doutorado em Educação “E por falar em
povos indígenas... Quais narrativas contam em práticas pedagógicas?”, de Iara
Bonin (1999 e 2006); da dissertação de mestrado em Antropologia “Kiringué i Kuery
Guarani: infância, educação e religião entre os Guarani de M´Biguaçu”, de Melissa
Oliveira (2004); da tese de doutorado em Educação “Nhembo’e: enquanto o encanto
permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani”, de Maria
Aparecida Bergamaschi (2005); da tese de doutorado em Educação “A Influência das
Relações Familiares no Ajustamento Escolar da Criança Kaiowá”, de Ariana Rita
Sordi Lino (2006); da dissertação de mestrado em Educação “As crianças e suas
relações com a escola diferenciada dos Pitaguary”, de Flávia Alves de Souza (2007);
da dissertação de mestrado em Antropologia “Aprendendo entre pares: a transmissão
horizontal de saberes entre as crianças indígenas Galibi-Marworno”, de Camila
Codonho (2007); e da dissertação de mestrado em Antropologia “Etnografia da Escola
Indígena Fen´Nó à luz da Noção de Corpo e das Experiências das Crianças
Kaingang e Guarani”, de Hanna Limulja (2007) que trazem uma grande contribuição
para a discussão, principalmente pelo enfoque teórico-metodológico apontado pelos
101

autores, que acentua a perspectiva da criança enquanto sujeito e produtora de culturas,


conhecimentos e jeitos próprios de compreender o mundo.
É preciso não esquecer que há uma produção de pesquisas no Amazonas que trata
das questões referentes às diversas populações indígenas e, consequentemente, irá
abordar, de maneira mais abrangente, os modos de vida das crianças indígenas em
partes dos textos, focalizando questões que vão desde a vida e o cotidiano nas aldeias,
até os distintos processos de escolarização que vêm sendo implementados na região e
que merecem ser fonte de muito trabalho de pesquisa para a compreensão da ação dos
mesmos nas diversas etnias.
Entre os trabalhos, que não somam ainda uma quantidade tão expressiva quanto à
produção nacional, vamos destacar aqueles que nos últimos dez anos (definimos o
período entre 1998 a 2008) foram apresentados tanto nos programas de pós-graduação,
como os que fizeram parte de grupos de pesquisa organizados e vinculados a
instituições da região. É fundamental destacar que os trabalhos aqui apresentados não
representam a totalidade da produção acadêmica sobre o tema, mas, devido à
dificuldade em ter acesso aos mesmos, destacamos aqueles que em nossas leituras e
possibilidades de tê-los como fonte da pesquisa nos foi possível analisar.
Da tese de doutoramento em Educação: “A autonomia como valor e a
articulação de possibilidades: um estudo do movimento dos professores indígenas
do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais”, de Silva,
concebida em 1998 e apresentada de forma sintética pela autora na edição 49, Cadernos
Cedes de 2000, extraímos um dos momentos de suma importância na reflexão
estabelecida pela autora:

O movimento dos professores indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre


articula-se principalmente em seus encontros anuais e surgiu como resposta à
necessidade de refletir sobre problemas comuns vividos pelos professores
indígenas dessas regiões e de encontrar alternativas para uma mudança nos
rumos da educação escolar.
Nesse processo de organização, os encontros anuais representaram momentos
decisivos, nos quais as articulações culturais e políticas tornaram-se
possíveis, e as trocas de experiências e conhecimentos fizeram surgir uma
nova concepção de educação escolar indígena, que respeita os
conhecimentos, as tradições e os costumes de cada povo, valorizando e
fortalecendo a identidade étnica, ao mesmo tempo em que procura passar
conhecimentos necessários para uma melhor relação com a sociedade não-
índia. (p. 67).
102

No prefácio da tese de doutorado em Educação, de Weigel, intitulada “Escola de


Branco em Maloka de Índio”, quando de seu lançamento em livro (2000), Gaudêncio
Frigotto escreve que a obra “se reveste de uma contribuição singular no debate
educacional. Partindo de um estudo concreto das diferentes propostas e perspectivas
educacionais em disputa dos civilizados em relação a um grupo indígena específico – os
Baniwa.” (p. XIII). O trabalho desta autora, além de uma densa e rica fonte de estudos
sobre os indígenas na região amazônica, traz em seu bojo um aporte sobre a relação
entre o processo de escolarização e a vida na aldeia, principalmente para as crianças.
O livro publicado por Freire (2000), intitulado “O saber construído a partir de
nós”, que pela vasta experiência de pesquisas do autor traz um resumo da vida de
algumas comunidades indígenas na região, destaca, principalmente, questões referentes
aos mitos, aos valores e a tradição, pois, segundo ele, estes são fatores essenciais para
manter viva a cultura desses povos, diante de todo o processo histórico de dizimação e o
atual processo de desapropriação de terras e pela falta de consolidação das políticas de
proteção das terras indígenas que se encontram à mercê de “novos” exploradores.
Um trabalho de grande importância para o entendimento da situação dos diversos
povos que compõem a etnia Sateré-Mawé é a publicação do relatório sócio-demográfico
denominado “Sateré-Mawé: retrato de um povo indígena”, sob a organização de Pery
Teixeira, de 2005, com a parceria de várias instituições estaduais e com financiamento
da UNICEF. Um dos aspectos centrais do relatório é a participação dos próprios
indígenas, tanto através de suas instituições representativas quanto dos professores
indígenas e da própria comunidade. Segundo Jecinaldo Cabral, coordenador da
COIAB93:

Este diagnóstico sócio-demográfico vai direcionar a forma pela qual iremos


proteger, fiscalizar e conservar o território sateré, ajudando-nos na gestão de
uma proposta de sustentabilidade para o povo da Terra Indígena Andirá-
Marau. Ajudará também a definir a estrutura básica para a sustentação de
nossas futuras gerações. Fortalecerá nossas práticas de educação indígena
diferenciada, garantindo a permanência de nossos valores tradicionais.
Apontará o caminho para a garantia de uma atenção em saúde, que tenha
qualidade, respeito e espaço para a nossa medicina tradicional e força
espiritual. ( p. 08)

93
Fala extraída do relatório (TEIXEIRA, 2005).
103

O livro “Rastros da Memória: história das populações indígenas na


Amazônia”, organizado por Sampaio e Erthal (2006), é leitura obrigatória a quem se
destina a estudar as populações indígenas da região, e “diz respeito ao crescente diálogo
que História e Antropologia vêm estabelecendo e que, no caso da Amazônia, se
materializam em pesquisas renovadas com ênfase especial para a produção na linha de
história indígena e do indigenismo na região.” (Prefácio). É composto por 10 artigos
frutos de pesquisas de mestrado e doutorado, além de um corpo de anexos documentais
de fundamental importância para o resgate da historiografia-política e do entendimento
das diversas ações que se estabeleceram de forma legal no século XIX.
A Dissertação de Mestrado em Educação, de Freire (2006), pela inovação no
estudo com crianças indígenas “urbanas”, pode ser considerada um marco nos estudos
na área. O trabalho, que tem como tema “A criança indígena na escola urbana: um
desafio intercultural” desvela, e ao mesmo tempo revela toda a força castradora que a
escola regular na cidade de Manaus assume perante as crianças indígenas. Traz o
depoimento de professores sobre a presença deste grupo da infância nas escolas
pesquisadas e constata um total descompromisso dos mesmos e o forte preconceito que
permeia as relações escolares com o grupo das crianças. Por fim, propõe a possibilidade
de construção de uma educação intercultural que possa dar conta de toda a diversidade e
riqueza da região, sem tomar como base o modelo hegemônico burguês.
O texto de Weigel, “Sociedade, Cultura e Educação: uma abordagem
antropológica”, de 2006, “tem o objetivo de apresentar contribuições básicas da
Antropologia, para produzir compreensões e explicações da realidade das crianças
amazônicas, tendo em vista as mudanças que estamos vivendo hoje na nossa região e no
mundo” (p. 41). Pela sua estruturação, o material discute questões referentes à cultura,
diversidade, identidades culturais e educação como ato de cultura, compondo um corpo
de ideias de suma importância para o entendimento das práticas escolares nas
populações indígenas e suas implicações para as crianças.
O texto de Pinheiro, “Reflexões acerca da história da infância na Amazônia”,
de 2006, faz uma abordagem histórica acerca de como a infância na Amazônia foi sendo
vivenciada, destacando os diversos contextos históricos que demarcaram tal
constituição; explicita a importância dos espaços de debate e pesquisa para a área,
apontando a problemática das crianças indígenas e afirmando que “as questões ligadas à
infância são complexas e precisam ser cada vez mais discutidas, estudadas e
aprofundadas…” (p.80).
104

Os textos de Silva: “Direitos e jeitos de ser criança: um olhar sobre a


infância indígena no Rio Uaupés/AM” de 2002, “Cultura e Cidadania: um olhar
sobre a questão indígena hoje”, de 2006, e “Educação como exercício de
diversidade: uma reflexão sobre pesquisas no campo da educação (escolar)
indígena”, de 2007, fazem uma análise tanto do movimento dos docentes indígenas,
quanto das políticas públicas que versam sobre a questão indígena e a importância da
organização dos povos nesse processo de lutas e conquistas, o que envolve a
possibilidade concreta de participação das crianças. Ainda, analisam as pesquisas
realizadas “[…] no campo da educação (escolar) indígena, tomando como foco as
problemáticas e os resultados das quatro pesquisas desenvolvidas no período de
julho/2006 e abril/2007, na vigência da Meta 2 do Projeto “Educação como exercício
de diversidade: estudos e ações em campos de desigualdades sócio educacionais” (p.
133).
A pesquisa – publicada em livro – coordenada por Barreto e Almeida (2007),
intitulada “Crianças e jovens no Amazonas (XVI-XIX): imaginários e
representações históricas”, teve um conjunto de textos de extrema importância pela
diversidade de temáticas abordadas e principalmente por ter conseguido resgatar, em
fontes primárias, a concepção de infância no relato dos viajantes e, nesse material, por
ter identificado a forma como as crianças das diversas etnias indígenas da região eram
tratadas, destacando a crueldade pela qual meninos e meninas nativos eram
escravizados, aliciados, molestados sexualmente e usados nas mais diversas formas de
trabalhos de maneira desumana e cruel.
O trabalho dos professores Valéria Amed das Chagas Costa, Cláudio Gomes da
Victória, Rita Floramar dos Santos Melo e Romy Guimarães Cabral, de 2007, “O
Cotidiano das Escolas Mura: quebrando as armadilhas no dia-a-dia da escola”, faz
parte de um conjunto de projetos da Universidade do Amazonas junto a essa
população indígena e representa um avanço nas pesquisas e na consolidação de
políticas e práticas para/com os povos indígenas, pois se dá na articulação entre a
academia e os próprios Mura. Segundo os autores no texto aqui destacado:

Na concepção Mura, a escola indígena tem função socializadora e política.


Esta função se evidencia no modo como organiza os conteúdos curriculares
e os procedimentos pedagógicos, sempre com a participação de diversas
lideranças indígenas (tuxauas, presidentes de comunidade, Agentes
Indígenas de Saúde) e comunitários, incluindo também não indígenas (em
especial pessoas ligadas às Secretarias de Educação Estadual e Municipal).
105

Na interação entre estes atores, questões como formação continuada,


organização e composição da escola, enquanto espaço de interlocução de
saberes, demarcação e homologação da terra, estimulam o exercício de uma
formação intercultural, dado o contato interétnico.

Neste conjunto de trabalhos, foi selecionado também o resultado parcial de nossa


pesquisa junto às crianças Sateré-Mawé, que faz parte do conjunto das análises aqui
propostas no corpo da tese. Esta deu origem a três textos que, de forma introdutória,
contribuíram para os resultados e se apresentaram de suma importância no percurso do
trabalho e para a escrita final da tese, por tratarem especificamente do tema das crianças
indígenas nas cidades.
O primeiro, intitulado “Crianças Indígenas “Urbanas”: aproximações a uma
historiografia na Amazônia” (2007a) tem como objetivo central “[...] propor algumas
reflexões no intuito de poder contribuir para a sedimentação de um campo de pesquisa
sobre as crianças indígenas ‘urbanas’ na Amazônia.” (p. 467).
O segundo, com o tema “O Direito da Criança Sateré-Mawé em Ser Indígena:
vozes que ecoam suas culturas da infância” (2007b) faz uma análise acerca do direito
subjetivo e da possibilidade de ouvir o que as crianças têm a nos dizer sobre “ser criança
indígena na cidade”, reforçando a tese de que “mais do que o direito, enquanto prática
normativa – que sem dúvida é importantíssimo de ser conquistado – elas e seu povo
lutam a cada dia pelo direito social de ser quem são” (p. 1).
O terceiro artigo denomina-se “Brincando de ‘ser’ Sateré-Mawé: contextos
lúdicos diversificados como elementos de construções das culturas infantis” (2008a)
visa desencadear um processo de discussão acerca da “[...] importância de olhar e
compreender a infância sob a ótica das crianças Sateré-Mawé, entendendo que neste
grupo indígena o conceito de infância é bastante distinto dos conceitos veiculados nos
espaços acadêmicos, e o quanto, a partir desta compreensão, passamos a respeitar os
seus modos de viver a criança.” (p.1).
O livro “Estigmatização e Território: mapeamento situacional dos indígenas
em Manaus”, publicado em 2008 e organizado por Alfredo Wagner Berno de Almeida
e Glademir Sales dos Santos, traz uma rica contribuição aos estudos sobre os povos
indígenas na cidade de Manaus e faz parte do projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia. No livro são discutidas questões como as situações de moradia, conflitos e
demografia das várias etnias que moram na cidade, e traz ainda um rico aporte de
depoimentos que foram coletados juntos aos indígenas.
106

Esse conjunto de trabalhos é de vital importância para a compreensão do mundo


indígena e, especialmente, para a sedimentação de um campo de pesquisa sobre as
crianças indígenas no Amazonas, um desafio que se aponta para nós pesquisadores da
região e muitos outros que venham a pesquisar sobre os povos indígenas e,
principalmente, a criança indígena. É mister salientar que não podemos perder o foco de
que, diante de toda essa problemática, a questão das crianças indígenas nas cidades
também merece de nós uma especial atenção tanto no trato das pesquisas, como na
possibilidade de buscarmos dar visibilidade a esses crescentes grupos que se encontram
espalhados na cidade de Manaus e em muitas cidades brasileiras.
Também é importante ressaltar o trabalho de dois Programas de Pós-graduação da
Universidade Federal do Amazonas94, que de forma atuante – dentro de suas
possibilidades de financiamento e formação específica dos seus quadros para a área –,
têm incentivado a produção acadêmica em nível de mestrado e mais recentemente em
nível de doutorado, e em trabalhos de grupo de pesquisas, publicação de revistas
acadêmicas, livros e realização de eventos que visam dar visibilidade aos trabalhos
construídos no bojo desses programas e da sociedade acadêmica amazonense. Não nos
delongaremos na apresentação dos programas, mas apresentaremos as linhas gerais de
sua atuação em nossa região.
O primeiro programa que apresentaremos é o Curso de Mestrado em Educação do
PPGE/FACED/UFAM95 – Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Amazonas – que foi criado em 1986, pela
Resolução 018/86 do CONSUNI, e credenciado pela Portaria nº 39/95 da CAPES/MEC.
Tem como objetivo promover a competência científica no campo da educação,
contribuindo para a formação de docentes e pesquisadores de alto nível. Na última
avaliação do triênio realizada pela CAPES/MEC, o curso obteve nota 4 (quatro). Com
uma proposta de Curso de Mestrado em Educação centrada nas questões e nas
necessidades da Região Amazônica, tem um núcleo temático (Educação, Culturas e
Desafios Amazônicos) que articula quatro linhas de pesquisa e projetos isolados,
disciplinas e dissertação.
O núcleo temático do curso é denominado “Educação, Culturas e Desafios
Amazônicos”. Visa desenvolver a pesquisa e construção de conhecimento numa

94
A definição em abordar apenas esses dois programas no universo da pós-graduação no Amazonas
reside em os mesmos serem os únicos que trabalham nas áreas da Educação e de Ciências Sociais,
apontando-nos uma perspectiva interdisciplinar, como é o próprio foco desta tese.
95
As informações aqui contidas foram extraídas do site do programa www.ppge.faced.ufam.br
107

perspectiva interdisciplinar, tendo como eixo a educação e a diversidade cultural, e,


como força motriz, os desafios amazônicos, articulados ao contexto nacional e
internacional, priorizando: formação e práxis do educador; educação e construção de
identidades amazônicas; educação, políticas públicas e desenvolvimento regional e
história da educação na Região Amazônica, que estão articulados em 4 linhas de
pesquisa e projetos isolados. Durante os seus 23 anos de exixtência (1986 até 2009),
tem uma rica contribuição de trabalhos na temática indígena. Abaixo destacaremos as
dissertações defendidas entre os anos de 1998 a 2008.
 Maria Auxiliadora de Souza Melo defendeu o trabalho “Metamorfoses do
saber Macuxi/Wapichana: memória e identidade”, em 2000;
 Viviane Acunha Barbosa defendeu o trabalho “Corporeidade na educação
comunitária indígena no Amazonas”, em 2002;
 Juan Carlos Penã Márquez defendeu o trabalho “A escola no tempo e no
território Hupah: mudanças no noroeste amazônico”, em 2003;
 Jakeline de Souza defendeu o trabalho “Aprender com os saberes de
diferentes culturas: um diálogo entra maloka Tukano e educação”, em
2003;
 Michelle Carneiro Serão defendeu o trabalho “Cultura material e educação: a
Gestalt na educação Tikuna”, em 2003;
 Giancarlo Stefani defendeu o trabalho “Educação e diálogo interétnico:
ensaiando com o Yauti”, em 2004;
 Leonízia Santiago de Albuquerque defendeu o trabalho “As políticas públicas
para a educação escolar indígena no Amazonas (1989-2003)”, em 2004;
 Raimundo de Jesus Teixeira Barradas defendeu o trabalho “Educação
Yanomami e a ética da alteridade: racionalidade em diálogo”, em 2004;
 Ádria Simone Duarte de Souza defendeu o trabalho “Identidade, educação
escolar indígena e bilinguismo na aldeia Munduruku”, em 2004;
 Lucia Alberta Andrade de Oliveira defendeu o trabalho “Os programas de
educação escolar indígena no Alto Rio Negro - São Gabriel da
Cachoeira/AM (1997-2003)”, em 2005;
 Elciclei Faria dos Santos defendeu o trabalho “Contando histórias de
formação de professores Sateré-Mawé: um estudo a partir da experiência
docente em áreas indígenas”, em 2005;
108

 Romy Guimarães Cabral defendeu o trabalho “Modos de educar: vida


Munduruku e relação gente e natureza na aldeia Kwata/Borba-Amazonas”,
em 2005;
 Ermelinda do Nascimento Salem defendeu o trabalho “Psicologia na formação
de professores(as) indígenas Sateré-Mawé”, em 2006;
 Maria do Céu Bessa Freire defendeu o trabalho “A criança indígena na escola
urbana: desafio intercultural”, em 2006;
 Ignês Tereza Peixoto de Paiva defendeu o trabalho “Clima organizacional e
cultura escolar: uma análise da escola Almirante Tamandaré comunidade
indígena Umariaçu II – município de Tabatinga”, em 2006;
 Cloves Fernando Palmeira Oliveira defendeu o trabalho “Educação e
identidade indígena: um estudo de caso sobre os limites e possibilidades de
educação na (re)construção e reafirmação da identidade Mura”, em 2007;
 Jonildo Viana dos Santos defendeu o trabalho “Diferenças étnicas e o lugar do
índio-descendente na escola em Boa Vista-RR”, em 2007;
 Oclenice Pereira Rosa defendeu o trabalho “Artesanato e educação tradicional
Baniwa: a OIBI (Organização Indígena da Bacia do Içanã) uma maneira
própria de inserção no processo de produção capitalista”, em 2007;
 Thelma Lima da Cunha Marreiro defendeu o trabalho “Projeto político-
pedagógico étnico: educação e cultura Sateré-Mawé”, em 2007;
 Carlos Dinelle Esteves defendeu o trabalho “Prática pedagógica e construção
de identidade Sateré-Mawé: escola Wenteru – ponte entre passado e
presente”, em 2008;
 Rita Floramar dos Santos Melo defendeu o trabalho “A Universidade Federal
do Amazonas e o acesso dos povos indígenas ao ensino superior: desafios da
construção de uma política institucional”, em 2008;
 Noeli das Neves Toledo defendeu o trabalho “Formação e representação
social dos alunos de enfermagem sobre os indígenas”, em 2008;
 Willas Dias da Costa defendeu o trabalho “Escola do Laranjal: processos
educativos em terra indígena no lago Ayapuá e a construção da identidade
Mura na região do Purus”, em 2008;
 Luciana Gomes Vieira Santos defendeu o trabalho “A organização dos
professores indígenas Mura: um estudo de suas origens e do papel por ela
109

desempenhado no processo de transformação da realidade escolar Mura no


município de Altazes (1990-2008)”, em 2008.

O segundo programa escolhido para compor o conjunto de referências deste texto é


o PPGSCA/ICHL/UFAM – Programa de Pós- Graduação em Sociedade e Cultura na
Amazônia, do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do
Amazonas. “O mesmo é nossa resposta a um conjunto de enormes desafios;
compreender a Amazônia é um dos mais relevantes porque implica considerar questões
como as dimensões da sustentabilidade e das especificidades culturais, étnicas,
históricas, econômicas e sociais, em relação às demais regiões brasileiras que catalisa a
atenção mundial por ser uma região decisiva para o equilíbrio ecológico do planeta. Ao
lado das questões ambientais, desenvolvem-se processos econômicos de expressão
mundial que interferem na vida dos grupos étnicos e dos chamados povos tradicionais,
que ocupam territórios milenarmente.”96
A Amazônia exige um modo especial de interpretação que permita relacioná-la
com a ciência, tecnologia e inovação de modo a racionalizar o uso dos recursos naturais
e preservá-la como patrimônio sociocultural e ambiental. O PPGSCA assenta suas
bases numa visão de Universidade amazônica e seus pesquisadores têm premência em
dar respostas aos problemas da região decorrentes de sua ocupação e dos modelos de
desenvolvimento adotados pelo grande capital.
Sua preocupação com os processos socioculturais da Amazônia confirma e define
claramente o propósito e o compromisso do Programa com as questões amazônicas,
assumindo o compromisso com um dos ricos espaços para o estudo da sociodiversidade
com vista à prática da convivência com as diferenças, envolvendo sistemas simbólicos,
formação de territórios, os diversos modos de protagonismo político e de resistência
social, avaliação de políticas públicas e trajetórias institucionais, relações macro e
microfísicas do poder, relações internacionais, relações de gênero e lutas contra as
formas de exclusão e pelo reconhecimento de direitos e garantias individuais e
coletivas. Em relação à temática indígena, os trabalhos apresentados foram os seguintes:
 José Ribamar de Souza Mitoso defendeu o trabalho “Narrativas nativas: o
conto oral do Rio Negro e o conto artístico no Amazonas”, em 2000;

96
Extraído do histórico do curso, contido no site www.ppgsca.ufam.edu.br
110

 Adriana Andrade da Encarnação defendeu o trabalho “Reinvenção das formas


de controle social: um estudo sobre a participação indígena no conselho
municipal de saúde de São Gabriel da Cachoeira”, em 2001;
 Maria Carmem Rezende do Vale defendeu o trabalho “Waimiri Atroari em
festa é Marybana na floresta”, em 2002;
 Marcos Antonio Braga de Freitas defendeu o trabalho “O povo Kokama: um
caso de reafirmação étnica”, em 2002;
 Maria das Graças de Carvalho Barreto defendeu o trabalho “A encruzilhada do
pecado: Ye’pa e o imaginário sexual no Mito Tukano de criação do
mundo”, em 2002;
 Zeina Paula R. do Couto defendeu o trabalho “Jurupari – do mito à
literatura”, em 2003;
 Benedito do espírito Santo Maciel defendeu o trabalho “Identidades como
novas possibilidades: etno-história e afirmação étnica dos Cambeba na
Amazônia Brasileira”, em 2003;
 Inácia Maria Caldas Trindade defendeu o trabalho “Aspectos sociais da
comunicação entre os Sateré-Mawé: um estudo da comunidade de Santa
Maria do Urupadi/Maués-AM”, em 2003;
 Maria do Socorro Pacó de Matos defendeu o trabalho “O olhar das mulheres
Sateré-Mawé sobre o lixo”, em 2003.

Este capítulo representa, para nós, uma possibilidade de sedimentação de um


campo de pesquisas com as crianças indígenas nas cidades, principalmente por apontar
o crescimento da literatura e por definir os contornos centrais para que os estudos com
este grupo social da infância tenham, por parte das ciências sociais e da educação, uma
maior visibilidade e vigilância no trato com as questões teórico-metodológicas que
envolvem as pesquisas e na possibilidade de novas práticas sociais e educativas.
Acreditamos que os esforços dos autores e dos programas aqui citados, cujo
empenho foi crescente nos últimos anos no sentido de estudar a temática indígena e,
logo, as crianças indígenas, são de vital importância para que novos trabalhos possam
aparecer neste cenário. Entendemos que há uma premência na ampliação da discussão
da temática, na qual frentes de pesquisas sejam criadas para dar vazão a esta questão
social que cada vez mais faz parte de nossa realidade atual.
111

Defendemos, principalmente, que no Estado do Amazonas possam ser


desenvolvidas muitas outras pesquisas envolvendo o grandioso número de populações
étnicas que compõem a nossa região e, neste contexto, evidenciar a presença dos grupos
indígenas nas cidades e de suas crianças indígenas.
112
113

97
4. C APITULO III:

AS CRIANÇAS SATERÉ-MAWÉ: INFÂNCIAS EM ESPAÇOS DE DISPUTA

“Nossos tempos são hostis a uma infância afirmativa, resistente, duradoura, e


esse simulacro de experiência é uma das suas armas prediletas. Mas podemos
pensar em outra experiência, a máscara de sonhos incômodos,
imprescindíveis embora irrealizáveis; a que enfrenta sua outra máscara, a
combate, a resiste, a hostiliza; uma experiência amiga da infância.”

(KOHAN, 2003, p. 2004)

Após traçarmos – nas duas primeiras partes – os nortes gerais que conduziram
nossos caminhos na escrita da tese, vamos, agora, enveredar pela vivência que tivemos
juntos com as crianças Sateré-Mawé na comunidade, durante os oito meses de pesquisa
etnográfica, e nesse quase um ano que passamos no convívio construindo uma longa e
promissora possibilidade de “viver juntos”.
Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é adentrar no cotidiano das crianças
Sateré-Mawé, estabelecendo, a partir desse movimento de interação com seus modos de
vida, uma possibilidade de compreensão da forma que essas crianças concebem o
mundo98, partindo das suas brincadeiras, de suas relações de pares em momentos para
cantar, desenhar e partilhar a vida na comunidade.
Destacaremos, para tanto, suas vozes, pois foi através do diálogo que se
descortinou essa gama de experiências que relataremos e analisaremos a seguir,
tomando também como elementos essenciais, os desenhos produzidos pelas crianças,
suas músicas, as fotografias tiradas tanto por nós quanto por elas, considerando todos os
elementos simbólicos que estão presentes no dia-a-dia da comunidade como
possibilidade de revelar aquilo que é veiculado entre os limites da cultura tradicional do
povo Sateré-Mawé e da sociedade urbana circundante.

97
Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade dos Sateré- Mawé.
98
Tanto o vivido pelo seu povo, quanto o espaço urbano.
114

4.1 A comunidade WAYKIHU: um lugar das crianças

“O fenômeno, por sua natureza, ao mesmo tempo revela e oculta a essência. A análise que
permanece na exterioridade recíproca das coisas capta apenas o momento de manifestação
do fenômeno e, ao não referi-lo à essência, isto é, ao processo de sua produção, oculta o
global.”

(CURY, 1992, p. 34)

Ainda que não seja nosso objetivo neste texto uma ampla revisão teórica sobre o
conceito de espaço ou de lugar, gostaríamos de situá-lo em uma dimensão contextual,
tomando as referências do cotidiano das crianças para compreendê-lo, como nos explica
Graue e Walsh (2003, p. 25):

Um contexto é um espaço e um tempo cultural e historicamente situado, um


aqui e agora específico. É o elo de união entre as categorias analíticas dos
acontecimentos macro-sociais e micro-sociais. O contexto é o mundo
apreendido através da interação e o quadro de referência mais imediata para
atores mutuamente envolvidos.

É neste contexto, como já explicitado na introdução da tese, e como forma de


melhor situar a organização do trabalho realizado, que nossa pesquisa se deu em uma
das duas comunidades indígenas da etnia Sateré-Mawé, que ficam localizadas em uma
área “verde”99 no perímetro urbano – zona Centro-Oeste da cidade de Manaus,
Amazonas.
O terreno pertence à Prefeitura Municipal de Manaus, mas já existe um processo
tramitando na Justiça Federal, na Vara que trata das questões indígenas, para
transformá-lo em área indígena. Acompanhamos duas audiências no Ministério Público
Federal, com o procurador responsável pelo caso e, segundo suas afirmações, a justiça
fará o possível para que as terras fiquem sob a posse dos indígenas, pois ele acredita
que, pelo tempo em que os Sateré-Mawé já estão morando no local, contando desde a
primeira casa assentada em 1989100, a legislação vigente será favorável ao pleito.
Um dos grandes problemas enfrentados pelos Sateré-Mawé – por se tratar de um
espaço de “invasão” – é que outras pessoas também já se “assentaram” no local depois

99
Este lugar foi assim denominado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, por se localizar em uma
área de preservação ambiental devido a sua rica flora e por possuir um riacho que corta o terreno na parte
mais baixa.
100
Esse dado faz parte do dossiê realizado pelo Ministério Público Federal, quando do encaminhamento
do processo para a Justiça Federal.
115

da comunidade indígena ter se formado, criando uma série de conflitos entre eles,
principalmente porque os “brancos” não aceitam a forma como os índios se organizam e
a presença dos seus rituais e de suas tradições. Estes conflitos, por várias vezes,
precisaram da intervenção das polícias militar e federal, que têm tentado apaziguar a
situação e tirar os “brancos” que buscam aquelas terras. Porém, enquanto não houver
uma definição jurídica, a situação permanecerá bastante complicada para os índios.
Os Sateré-Mawé101 que moram nas comunidades são oriundos da região do médio
rio Amazonas e habitavam as áreas indígenas do Andirá e do Marau, que foram
demarcadas em 1982 e homologadas em 1986, com 788.528 hectares, entre os estados
do Amazonas e Pará. O processo de migração desta etnia para Manaus, assim como para
outras cidades do interior do estado, deu-se devido uma série de fatores, mas,
principalmente, pela “pretensa ilusão” da busca de melhorias.
Segundo Álvares (2005, p. 02):

É importante salientar que, a partir da década de 1970, intensifica-se


notavelmente o fluxo migratório em direção a Manaus. Em 1981, o
antropólogo Jorge Osvaldo Romano contou 88 Sateré-Mawé vivendo na
periferia dessa cidade. No final da década de 1990, esse número cresceu
significativamente, chegando a algo próximo de 500 Sateré-Mawé,
distribuídos entre diferentes conjuntos habitacionais na zona Oeste de
Manaus. O modo de sustento dessa população urbana está baseado, na
maioria dos casos, na venda de artesanato para turistas.

Foi nesse processo migratório que surgiu a comunidade WAYKIHU (estrela),


que desde 1995 está localizada no bairro da Redenção, na divisa do Conjunto Santos
Dumont com o bairro Hiléia, num terreno bastante íngreme, sob a forma de barranco. A
associação da comunidade foi criada em 2001102, com o intuito de lutar pelos direitos
dos Sateré-Mawé que moram no local. A comunidade possui uma área de,
aproximadamente, 52 metros de frente por 54 metros de fundo, onde residem 14
famílias organizadas em habitações de madeira e alvenaria. Ao todo são 67 pessoas,

101
O primeiro nome - Sateré - quer dizer "lagarta de fogo'', referência ao clã mais importante dentre os
que compõem esta sociedade, aquele que indica tradicionalmente a linha sucessória dos chefes políticos.
O segundo nome - Mawé - quer dizer "papagaio inteligente e curioso'' e não é designação clânica.
(PEREIRA, 2003)
102
“Artigo 1º - A ASSOCIAÇÃO WAYKIHU, fundada em 18 de maio de 2001, é uma associação civil,
de direito privado, sem fins econômicos, que terá duração por tempo indeterminado, sem vinculação com
partidos políticos e com instituições religiosas e públicas, com sede e foro no Município de Manaus,
Estado do Amazonas, na Rua Comandante Norberto Won Gal, nº. 129, Conjunto Santos Dumont, Bairro
Redenção, CEP: 69.049-100”. (Estatuto da Associação).
116

entre crianças e adultos103. A principal atividade é o artesanato, que é comercializado


em barracas situadas na frente da comunidade. As fotos, a seguir, pretendem dar uma
visão e também caracterizar o lugar onde a comunidade está localizada.

(Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade


Sateré-Mawé)

Esta foto procura demonstrar a forma como são feitas as casas que, na sua maioria,
são construídas em madeira, mas há também algumas construções em alvenaria. Uma
característica comum das mesmas é que são praticamente coladas umas às outras, o que
é uma forma organizacional típica dos Sateré-Mawé, inclusive nas aldeias. O espaço
que aparece ao centro é uma das poucas áreas planas que compõem o terreno, que foi
desmatado para a construção das casas. Ao fundo ainda se tem uma área de vegetação
bastante densa e preservada que garante um espaço mais próximo a organização
103
Esses dados foram coletados na própria comunidade no decorrer da pesquisa, ou seja, entre os meses
de janeiro a setembro de 2007, com a colaboração do Cacique Luiz. É importante salientar que existe
outra comunidade Sateré-Mawé, bem ao lado desta onde realizamos a pesquisa, mas, por conflitos entre
eles, estão separados e não mantêm uma relação amigável, o que nos “obrigou”, de certa forma, a fazer a
escolha por uma delas, neste caso a de maior população adulta e infantil. Outro ponto a salientar é que
essa outra comunidade é mais antiga e faz parte do núcleo inicial de migração dos Sateré-Mawé para
Manaus.
117

tradicional nas áreas rurais. Não existe uma infra-estrutura mínima de saneamento
básico, e a energia que é utilizada, por muito tempo foi “puxada” ilegalmente da rua,
fato que foi resolvido pela companhia local de energia elétrica, quando estávamos
concluindo a pesquisa.
A forma das casas serem agrupadas próximas umas as outras, contribui para que
o grupo esteja em constante união. Inclusive muitas vezes o alimento é feito em um
único local e todos os moradores da comunidade participam da refeição coletivamente.
Esta união reflete-se na forma como as crianças se movimentam no espaço, ou seja, elas
estão sempre juntas. Durante todo o período da pesquisa, as crianças demonstraram uma
cultura coletiva extremamente forte, o que consideramos um reflexo da organização das
residências e da própria tradição da etnia.

(Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade


Sateré-Mawé).

Esta segunda foto nos dá uma visão mais clara da “fronteira” da comunidade com o
bairro, separados por uma rua asfaltada e com bastante movimento. Por se tratar de um
domingo, não se visualiza o movimento constante que existe na rua, o que durante a
118

semana é bastante diferente com um forte movimento de pessoas e veículos. Do lado


esquerdo encontra-se o Santos Dumont, conjunto habitacional de classe média, já do
lado direito, as barracas de artesanato construídas nas margens da rua. O calçamento
como pode ser visualizado se encontra bastante deteriorado e não oferece condições
para que as pessoas andem por ele.
As barracas de artesanato representam a porta de entrada para a comunidade e o
principal elemento de ligação com o “mundo dos brancos”. Elas são todas construídas
em madeira e cobertas de palha, bem característico das habitações das aldeias. A relação
com a vizinhança é razoavelmente pacífica, mas com pouco contato entre eles,
reduzindo-se, basicamente, a compra dos artesanatos.

(Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade


Sateré-Mawé).

Nesta outra foto, tentamos visualizar um pouco da forma como a comunidade está
estruturada. Nela aparece o cacique Manoel Luiz e, atrás, o barranco, com espaços que
estão se desmoronando, principalmente no período das chuvas fortes na cidade. Os
Sateré-Mawé, para terem acesso as suas casas, que ficam na parte mais baixa do terreno,
119

utilizam escadas, como esta que aparece bem ao fundo. As mesmas são bastante
íngremes e quando estão molhadas pela chuva ficam quase intransitáveis. Na área,
devido à enorme concentração de lixo, por haver uma lixeira na divisa da comunidade,
há sempre uma grande quantidade de cachorros que acabam também sendo motivo de
preocupação quanto à saúde das crianças.
Segundo o Cacique Luiz, líder da comunidade, a vinda deles para a cidade de
Manaus – na verdade, primeiramente chegou um pequeno grupo e, a partir dele, outros
continuam vindo até hoje – se deu como uma forma de buscar melhorias para as
condições de vida, devido aos fortes problemas enfrentados na aldeia, principalmente
relacionados à alimentação, à saúde e à educação.

“Foi muito difícil nós sairmos da aldeia pra buscar a cidade grande. Mas nós
queríamos que nossos filhos tivessem uma vida que nós não tivemos: educação,
faculdade, pra ajudar os parentes na luta pelos nossos direitos... Se Tupaná não me
levar, eu vou conseguir que meus filhos cheguem lá, mas sem perder a nossa
cultura...”104.

Esses fatos, expressos nas palavras do cacique, são comprovados pelos escritos
das pesquisas de Nunes Pereira (2003), que desde o final da década de 1930 realizava
seus estudos junto a essa etnia. Este pesquisador fez um longo trabalho etnográfico em
algumas das aldeias onde os Sateré-Mawé habitavam e realizou um importante
mapeamento das tradições, dos costumes e das crenças.
Ele destacou também uma série de problemas que eram vivenciados por aquelas
comunidades, relacionados, prioritariamente, às questões de saúde, falta de alimentação,
e, consequentemente, educação, fatores que apareceram a partir do contato com o
“homem branco” e com todo o processo de sedentarização das aldeias que foi imposto
pelo “colonizador”. Assim, afirma Pereira (2003, p. 25):

Diversos fatores – guerras, moléstias, prolongadas estiagens ou calamitosas


inundações – deveriam ter ocorrido para o deslocamento dos índios Maués,
da área geográfica que lhes assinalamos para a atual, onde continuam sua
organização social e econômica, graças à utilidade do principal produto de
sua lavoura – o guaraná. No entanto, não é inaceitável que o movimento
nativista da Cabanagem, principalmente, houvesse empurrado para o recesso
das florestas e orla das campinas, que medeiam entre o Tapajós, o Amazonas

104
Fala extraída das entrevistas e filmagens realizadas com o Cacique Manoel Luiz Gil da Silva.
120

e o Madeira, a tribo pacifica dos Maués, muito embora alguns dos seus
guerreiros ajudassem a legalidade a combatê-la.

Para que pudéssemos estabelecer com esse grupo um relacionamento que


garantisse um espaço mais articulado para realizarmos a pesquisa, foi preciso todo um
tempo de convívio com os adultos, muitas conversas com o cacique e, principalmente, o
envolvimento em diversas situações que faziam parte das suas realidades cotidianas, o
que foi gradativamente abrindo portas para chegarmos às crianças.
Desta forma, nossas idas para a comunidade começaram a delinear mais os
olhares sobre o cotidiano das crianças, e nos permitiram uma aproximação cada vez
maior nos lugares onde as mesmas transitavam, seja nas suas brincadeiras ou em outros
momentos, como ajudar nas atividades de casa e na confecção do artesanato, ou mesmo
nas tarefas escolares, atividades estas que eram realizadas sempre com as mais velhas
ajudando as mais novas.
Nos meses de janeiro, fevereiro, março e abril, primeiros meses da pesquisa de
campo105, o tempo em Manaus é bastante instável, havendo temporais em dias em que a
temperatura chega, aproximadamente, aos 36 graus e o sol parece queimar nossas
cabeças. De uma hora para outra, a chuva começava a cair torrencialmente, mudando
completamente a paisagem da comunidade e as nossas possibilidades de interação com
as crianças.
Nos dias de muita chuva era praticamente impossível fazer qualquer observação
ou participarmos de qualquer atividade, pois o local impossibilitava as crianças de
saírem, obrigando-as, de certa forma, a ficar trancadas em casa, fato que desagradava
bastante à maioria delas, como nos relataram.

“Chuva é ruim, não da pra gente brincar.” (Kely, 04 anos)


“Quando chove muito, o barranco fica liso e nós temos medo de cair. Aí nossa mãe não
deixa nós sairmos de casa.” (Talice, 09 anos)
“Chove muito aqui, aí a gente fica trancada em casa. Eu ‘num’ gosto não.”
(Emille, 05 anos)
“Chuva é bom por que molha as árvores pra elas ‘crescer’, mas não dá prá ‘nós
brincar’ por que fica cheio de barro.” (Raquel, 09 anos)

105
Durante esses quatro meses, fomos quase todos os dias para a comunidade e ficávamos lá,
principalmente no horário da manhã. Mas quando havia muita chuva, costumávamos ir após o tempo
melhorar, o que ocorria normalmente à tarde.
121

“Eu prefiro quando não chove, por que dá pra gente brincar, com a chuva o barranco
fica cheio de barro e muito liso.” (Taíza, 12 anos)

Como o objetivo da pesquisa foi o acompanhamento das atividades nos espaços


coletivos frequentados pelas crianças, resolvemos não utilizar para fins de análise os
espaços de suas casas, apesar de algumas vezes, até em função da chuva, termos nos
abrigado em alguma delas, o que sempre gerava um processo de diálogo entre nós.
Neste caso, com a presença dos mais velhos que sempre estavam por perto. Já nos
espaços coletivos tínhamos uma maior possibilidade para acompanhar e participar das
atividades das crianças sem a presença dos adultos, apesar da presença dos mesmos não
interferirem no desenvolvimento da pesquisa.
É interessante destacar que estas situações ocorreram mais nos primeiros
momentos da pesquisa, quando os pais ainda tinham um certo receio da nossa presença
com as crianças, mesmo demonstrando satisfação. Isso reflete o cotidiano da vida dos
Sateré-Mawé junto à sociedade circundante, pois, como relatado por alguns pais, as
crianças já sofreram agressões por parte de outras pessoas do bairro, o que sempre deixa
os adultos atentos ao contato com outra pessoa que não seja da etnia.
No entanto, com o passar das semanas, essa relação se intensificou, tanto com as
crianças quanto com os adultos, pois fomos muitas vezes solicitados pelos próprios pais
para que acompanhássemos as crianças nas atividades e até para levá-las em atividades
externas que eram promovidas pela escola, por instituições como o CIMI ou a COIAB e
a uma feira em que o grupo de dança das crianças foi participar.
Em contrapartida, nos dias de sol, elas estavam sempre transitando pelas áreas
da comunidade. Nesses dias era comum encontrarmos quase todas elas reunidas,
fazendo o que mais gostam de fazer, como nos disseram, “brincar, correr, cantar...”.
Apesar do espaço para realizarem essas atividades ser bastante íngreme – uma vez que a
estrutura do local dispunha de poucos espaços mais planos, como chamados por eles de
terreiro –, não lhes faltava criatividade para o explorarem.
Desta mesma maneira, Silva, Macedo e Nunes (2002, p.p. 43-44), em seus
estudos, conseguiram destacar a importância de as crianças criarem oportunidades para
realizarem suas atividades, mesmo diante das dificuldades que os espaços provocam.
Cada momento é um novo ato a ser descoberto, o que propicia novas possibilidades de
confrontamento com as condições. Assim, afirmam as autoras:
122

O mundo e seus mistérios vão sendo descobertos aos poucos, em suas


múltiplas e complexas dimensões. Há sempre novos conhecimentos à espera
de ser descobertos e incorporados à experiência de vida de cada um. O
aprendizado parece ser pensado, assim, como algo para toda a vida: a cada
etapa vencida, novos patamares de conhecimentos e de experiências
apresentam-se.

Foi assim que, a cada momento vivido, foram surgindo as inúmeras atividades
acompanhadas no decorrer de nossa estada na comunidade, o que nos aponta duas
questões: uma grande quantidade de alternativas e, ao mesmo tempo, um sentimento de
não poder trazer toda a experiência que foi vivenciada.
Desta maneira, as descrições que procederemos aqui partiram das escolhas feitas
em acordo com as crianças, diante daquilo que para elas e para nós era mais
significativo neste universo de inúmeras possibilidades. Assim, também nossas análises
estão ligadas diretamente com a participação das crianças em todo o processo. Tal
opção é reforçada pela posição de Silva, Barbosa e Kramer (2005, p. 52). Segundo estas
autoras:

É preciso que o pesquisador se coloque no ponto de vista da criança, como se


estivesse vendo tudo pela primeira vez [...]. Isso vai exigir do pesquisador
descentrar seu olhar adulto para poder entender, através das falas das crianças,
os mundos sociais da infância.

Logo, a possibilidade de caminharmos junto com as crianças nesse


(re)conhecimento da comunidade onde elas moram se mostrou como fundamental para
conhecermos melhor suas formas de se conceberem como indígenas e como elas
concebem as outras pessoas que na visão delas “não são indígenas”. Assim, o lugar
onde moram é, para elas, “o nosso lar” (Taiz, 08 anos), um espaço para se realizarem e
ao mesmo tempo realizarem a cultura de seu povo. Elas, diferente de nós, talvez pela
própria condição de vida, demonstram estar felizes com aquele ambiente, o que num
olhar de fora da comunidade (como aconteceu conosco no primeiro contato), dir-se-ia
até que a situação de risco e pobreza é tão grande que ninguém conseguiria viver ali.
Passadas as primeiras impressões, fomos então em busca da visão das crianças
sobre o contexto, pois, se para nós o mesmo parecia impróprio de se viver, para elas, é
na comunidade que podem ter liberdade, prazer em viver, brincar, falar, já que é ali que
se sentem à vontade para viverem a experiência da infância e poderem expressar da sua
maneira o que estar neste espaço representa para elas.
123

“A gente mora aqui nessas casas, são pequenas, mas eu gosto muito daqui,
queriam tirar a gente, minha mãe disse, mas nós não queremos sair não…”
(Larissa, 11 anos).
“Aqui tem um monte de árvores pra nós brincarmos e o terreiro é grande, só não
é bom o barranco quando chove…” (Késia, 10 anos).
“Eu já fui lá na aldeia, mas prefiro morar aqui mesmo, nem sei por que, mas a
gente brinca, canta nossas músicas, faz nossos brinquedos e ainda pode ir pra escola,
lá, às vezes, não é legal, mas tem que ir…” (Taíza, 12 anos).
“Sabe o que é mais legal? É a gente morar nas casas aqui de baixo e também
poder ficar lá em cima nas barracas de artesanato” (Raquel, 09 anos).
“Lá em baixo tem um lago que a gente pode tomar banho, mas às vezes tem gente
branca lá e nós ficamos com medo deles baterem em nós” (Mateus, 07 anos).

Essas outras três fotos que selecionamos juntamente com as crianças foram,
inclusive, algumas tiradas por elas mesmas. Nelas tentamos mostrar, de maneira mais
ilustrativa, seus modos de viver na comunidade e representa, se atentarmos aos seus
olhares, um tom de felicidade em poderem partilhar com as outras crianças das suas
brincadeiras e demais atividades.
Além das falas que foram fundamentais na forma de conhecermos melhor a
comunidade sob o ponto de vista das crianças, o ato de darmos a máquina fotográfica
para que elas tirassem fotografias, representou a possibilidade de demonstrarem os
lugares que mais gostam de estar e como cada lugar na comunidade tem um sentido
especial para elas. Além da novidade em cada um poder manusear um instrumento até
então desconhecido por elas e que possibilitou mais uma maneira de expressão da forma
como concebem a realidade na qual vivem. Acreditamos que as fotografias têm o poder
de mostrar aquilo que, em muitos casos, nossas palavras não poderiam.
124

(Créditos: Foto tirada por Késia (10 anos) uma das meninas que participou da pesquisa
de campo na comunidade Sateré-Mawé.)

Esta foto foi tirada de uma das barracas que é usada para a venda do artesanato e
que as crianças utilizam para brincar de casinha quando não está sendo ocupada pelos
adultos no processo de venda das peças. Fica localizada na parte superior da
comunidade, ou seja, nas margens da rua, por isso, os pais não costumam deixá-las
brincar ali, pois sempre estão passando pessoas de fora da comunidade. Neste dia como
estávamos participando da brincadeira com as crianças, os pais deixaram que elas
ficassem brincando no local.
Ao fundo, estão duas meninas organizando a casinha com os diversos objetos que
dispunham no momento. Das três meninas que se encontram mais à frente, uma delas
está com outra criança no colo, enquanto as outras duas, estão brincando com a única
boneca industrializada que elas possuem. É importante destacar que não há a presença
de nenhum menino no espaço. Késia disse que tirou essa foto, pois é o lugar em que ela
mais gosta de brincar de casinha.
125

(Créditos: Foto tirada por Raquel (09 anos) uma das meninas que participou da pesquisa
de campo na comunidade Sateré-Mawé.)

Esta foto foi tirada por uma das crianças. Nela está visualizado o terreiro que se
encontra na parte da frente da outra comunidade chamada de Y’APYREHYT. As palhas
representam a entrada dessa comunidade vizinha, que tenta caracterizar-se mais com a
aparência de uma aldeia. As crianças estavam cantando várias músicas em Sateré-Mawé
e, para que eu pudesse entendê-las, cantavam também em português. Sempre que
cantavam essas canções, elas pediam para suas mães pintarem os seus rostos, algumas
usavam cocar e outras colares, como maneira de ficarem caracterizadas e melhor
simbolizarem o que estavam cantando, apesar das roupas serem usuais da sociedade
urbana. As músicas eram acompanhadas de gestos que representavam os elementos da
letra e davam todo um significado à representação de ações do trabalho dos Sateré-
Mawé, como no caso da música da Farinhada. As crianças menores transitam na
comunidade de calcinha, fato bastante comum entre elas.
126

(Créditos: Foto tirada por Taíza (12 anos) uma das meninas que participou da pesquisa
de campo na comunidade Sateré-Mawé.)

Esta foto também foi tirada por uma das crianças. Nela vemos uma situação
diferenciada das demais. A menina que se encontra sozinha, próxima aos entulhos nas
laterais da casa, estava chorando, pois queria uma brincadeira e as outras resolveram
não atender ao seu desejo. Ela, então, se deslocou para esse “cantinho”, demonstrando
estar contrariada com a decisão da maioria. A ideia das outras crianças em tirar a foto
foi para tentar trazê-la novamente à brincadeira que estavam realizando. Após tirarem a
foto, mostraram a mesma para a menina, que pediu que fossem tiradas outras fotos e,
em seguida, foi participar das brincadeiras com as demais.
No conjunto das fotos e das falas das crianças, fica evidenciada que a comunidade
representa para elas um lugar de segurança, onde os adultos respeitam suas brincadeiras
– desde que elas não corram riscos –, suas formas de se relacionar com a natureza e com
os diversos objetos que estão presentes nesse “mundo” construído “dentro de outro
mundo”, ou seja, dentro de um bairro na área urbana em uma metrópole de quase dois
milhões de habitantes.
Mas é também um lugar de insegurança, de incertezas, de medos, que, por vezes,
não aparece nas suas falas nem nos seus modos de conviver. Esse “não-dito” foi
127

percebido por nós – no processo de distanciamento –, pois, ao vasculharmos todo o


acervo das falas e das inúmeras observações e descrições que as crianças fizeram,
poderíamos cair no risco da idealização da comunidade, já que, para elas, assim o é.
Talvez, para nós, ainda exista entre eles um “comodismo” grande em aceitar as
coisas, olhadas pelo aspecto da precariedade. Isso para as crianças é algo praticamente
imperceptível e, torna-se mais ligado a um caráter de verdade quando transmitido por
parte dos mais velhos. Ou é o nosso modo – enquanto brancos que vivem dentro de um
padrão de sociedade – de conceber que está equivocado em acreditar que as coisas
nunca estão boas e querermos sempre mais, assim, o “desenho” capitalista de vida em
sociedade pode estar falando mais forte a nós, pois, para Bhabha (2005, p. 29):

A atividade negadora é, de fato, a intervenção do ‘além’ que estabelece uma


fronteira: uma ponte onde o ‘fazer presente’ começa porque capta algo do
espírito de distanciamento que acompanha a re-locação do lar do mundo – o
estranhamento – que é a condição das iniciações extraterritoriais e
interculturais.

Neste sentido, ao buscarmos esse distanciamento teórico, mas sempre próximos


ao contexto e à realidade das crianças, e adentrarmos nossas análises de forma mais
aprofundada – fazendo-se uma “escavação ”106 –, aquilo que aparentemente pareceria
uma perspectiva de “comodismo” a olhos “nus” aponta-se como um “não-dito”,
possibilitando uma releitura crítica que se vislumbra para múltiplos olhares sobre esse
processo, ou seja, “[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja no que
se diz” (CERTEAU, Apud. GHEDEZ, 1997, p. 32).
Na visão de Foucault (1968, p. 83):

Da modalidade política às lentidões características da ‘civilização material’, os


níveis de análise se multiplicam; cada um tem suas rupturas específicas; cada
um comporta um corte que apenas lhe pertence; é, à medida que se desce até
os estratos mais profundos, as escansões se fazem cada vez mais amplas.
(grifo nosso).

Esse foi o grande desafio posto, chegar o mais próximo possível da realidade
cotidiana das crianças na comunidade. Cabe-nos, então, indagar acerca dos nossos
saberes e deixar falar as nossas ausências, pois buscar o olhar do outro é ver em nós a
possibilidade de confrontamento de ideias, de concepções diferentes de mundo, que

106
Termo apropriado de Foucault 2007.
128

podem e devem dialogar, e ter a humildade de acreditar nesses outros olhares,


aprendendo a romper com o paradigma dominante, tanto da ciência quanto da forma de
conceber a realidade, deixando fluir novos saberes que possam nos dizer como é viver
num mundo tão diferente do nosso.
Assim, nesta perspectiva, passamos a compreender os elementos do cotidiano
como essenciais para a organização da comunidade, na perspectiva dos Sateré-Mawé e
nas diversas formas de interpretá-la. Não mais uma supremacia da razão imposta, mas
uma construção de novos modos de enxergar a sociedade e seus indivíduos. Logo,
explica Santos (2007, p. 37) que:

Deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode legitimar


prepotências, mas interpretado pelo conhecimento científico pode estar na
origem de uma nova racionalidade. Uma racionalidade feita de
racionalidades [...] e a língua comum é a expressão sonora dessa alma
comum.

Ao que tudo indica, olhar o comum representa compreender todo um processo de


apagamento da história ao qual esse povo indígena foi submetido e as inúmeras pressões
sociais para fazê-los acreditar que viver nos moldes da cidade seria a forma mais correta
de se adaptarem ao mundo urbano.
Mesmo diante de toda essa pressão, eles conseguiram manter viva sua história,
reconhecendo, acima de tudo, sua condição de serem indígenas, de terem direitos e
serem respeitados por tudo que já viveram e passaram nesses longos anos. Logo, para
Foucault (2005, p. 11), a história sempre vem à tona, e é nesse movimento que nos
colocamos junto aos Sateré-Mawé.

[...] os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos


enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações
sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. Por tanto, os
‘saberes sujeitados’ são blocos de saberes históricos que estavam presentes e
disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica
pôde fazer reaparecer pelos meios, é claro, da erudição.

Deste modo, acreditamos que o cotidiano e as falas das crianças representam


muito mais do que uma simples reprodução das realidades - mesmo sendo influenciadas
tanto pela cultura indígena quanto pela cultura urbana – elas re-significam, reinventam
as coisas e dão um sentido muito peculiar as suas formas de entender o mundo e o lugar
129

onde moram. Isto aponta para a presença das suas culturas infantis indígenas. É sob o
foco dessa afirmação que procuramos, nos diversos momentos vividos junto a elas,
reafirmar nossa tese de que as crianças Sateré-Mawé, mesmo morando na cidade,
apropriaram-se muito fortemente dos elementos da cultura de seu povo, de forma a
expressá-la nas suas atividades cotidianas na comunidade, mas invisibilizá-las no
cotidiano das escolas que estudam, como estratégia de se protegerem.

4.2 Brincando de ser Sateré-Mawé: entre as vozes e os imaginários das


crianças

“A relação entre os símbolos e os objetos que representam não é, necessariamente, idêntica


em todos os casos. No caso da simbolização linguística, esta é diferente daquelas que
encontramos na relação entre os modelos teóricos e os objetos que eles representam.”

(ELIAS, 1994, p. 144)

Cohn (2005, p.30), ao explicitar alguns dos resultados da pesquisa feita com as
crianças Xikrin, faz uma reflexão acerca das formas como as crianças participam e
constroem significados para as relações nas suas sociedades. A autora deixa claro o
quanto é importante, para quem pesquisa com crianças indígenas, entender os processos
próprios de cada etnia. Assim, para ela:

Cada criança criará para si uma rede de relações que não está apenas dada,
mas deve ser colocada em prática e cultivada. Elas não ‘ganham’ ou
‘herdam’ simplesmente uma posição no sistema de relações sociais e
parentesco, mas atuam na criação dessas relações.

Logo, o discurso e a fala da criança Sateré-Mawé constituem elementos


destacados na construção de sua imagem a partir da identificação do seu
posicionamento quanto à sua identidade cotidiana e escolar. A garantia de fala oferecida
às crianças representou um aspecto fundamental e indispensável para a elucidação do
“mundo infantil indígena” e foi, principalmente, um elemento fomentador de processos
de fortalecimento de novas possibilidades de compreensão da realidade na qual esses
agentes sociais estão inseridos.
Neste sentido, para Sarmento (2004, p. 23):
130

O mundo da criança é um mundo heterogêneo, ela está em contato com


várias realidades diferentes, das quais vai aprendendo valores e estratégias
que contribuem para a formação de sua identidade pessoal e social [...] Esta
aprendizagem é eminentemente interativa; antes de tudo o mais, as crianças
aprendem com as outras crianças, nos espaços de partilha comum.
Estabelecem-se desta forma as culturas de pares.

Foi exatamente nesses espaços de partilha que, durante os oito meses da pesquisa
etnográfica que realizamos com as crianças, foram vivenciadas muitas experiências
entre nós e elas, nas quais, muitas vezes, fomos envolvidos diretamente na sua
realização, é claro que quando as crianças assim permitiam e objetivavam nossa
participação. Outras vezes, elas queriam brincar sozinhas e eu apenas as observava, mas
quase sempre elas me chamavam para brincar junto ou participar das atividades que
estavam realizando, o que nos possibilitou uma maior visibilidade das suas formas de
entenderem o mundo.
Para Tomas e Soares (2004, p. 4):

A visibilidade que aqui se defende, pretende sobretudo trazer para a arena


pública uma imagem da infância como um grupo social com direitos,
nomeadamente o direito a ter voz e a intervir nos processos que lhe dizem
respeito.

Essa visibilidade destacada pelas autoras, como já explicitado na introdução da


tese, constitui nossa premissa central e garantiu que as escolhas para composição do
texto fossem sendo delineadas sempre com a participação das crianças. Como se tratou
de um período longo de convivência, a quantidade de brincadeiras que acompanhamos
foi muito extensa. Assim, procuraremos descrever e analisar aqui as situações de
brincadeiras que eram mais corriqueiras entre as crianças, principalmente aquelas que se
relacionavam a questões voltadas à organização da vida na comunidade e na sociedade
circundante, representadas pelo seu imaginário, ora realizando tarefas eminentemente
ligadas às tradições do seu povo, ora vivendo um universo “ficcional” do mundo que as
rodeia ou a forma como é retratado pela escola.
Desta maneira, analisaremos, primeiramente, numa escolha feita juntamente com
as crianças, a brincadeira de casinha (Mêp iát)107, que é uma das mais comuns entre elas
e que parecia ser uma necessidade sua repetição constante, eram muito raras as vezes,
das quais estive presente na comunidade, que elas não estivessem brincando de casinha.

107
Todos os termos em Sateré-Mawé foram extraídos do “Vocabulário Comparativo” (PEREIRA, 2003).
131

Apesar de haver outras brincadeiras, esta era a de maior incidência, principalmente por
retratar a forma de organização da própria comunidade.
As meninas se reuniam, quase sempre, num espaço coberto, usado como oficina
de artesanato, outras vezes iam para as barracas de venda de artesanato ou outros
lugares onde houvesse possibilidade de brincarem, desde que os adultos não estivessem
trabalhando. Então, elas ocupavam o local disponível. Rapidamente iam chegando e já
começavam a brincar. Arrumavam a “casa” com os vários objetos que dispunham ao
seu redor: tijolos e pedaços de madeira viravam bancos, mesas, camas e armários que
eram adornados com folhas, pedrinhas, sementes e tudo que possibilitasse a elas compor
o ambiente.

“Essa aí é a minha
casinha (apontando
para o desenho que
fez), tem um sol perto
dela e umas nuvens.
Tem também um monte
de árvores, pra nós
podermos comer as
frutas, tem o sol
também, por que eu
gosto mais do dia.”
(Talice, 09 anos)

“Nós gostamos de brincar de um monte de coisa, mas casinha é mais legal.”

(Raquel, 09 anos)

“Eu e a Raquel, nós brincamos assim: quando é só coisa de cozinha, a gente bota na
cozinha, aí quando é só coisa de banheiro, a gente bota no banheiro, quando é só coisa
do quarto, a gente bota no quarto, a gente faz cadeira, faz caminha, né, Raquel?”
(Taíza, 12 anos)

“Eu arrumo a casinha pra ‘nós brincar’ de fazer comidinha com as folhas.”
132

(Nándria, 05 anos)

“A brincadeira que eu mais gosto é a de casinha, por que nós arrumamos tudo, os
quartos, a cozinha e também fazemos comida para todo mundo comer.” (Laiz, 8 anos)

“A gente chama os meninos pra brincar também, mas só pra eles serem o pai. Menino
pode brincar também?” (Késia, 10 anos)

“Eu brinco com as meninas aqui, mas eu vejo os meninos daqui de perto, eles não
brincam de casinha com as meninas. Lá na escola disseram que casinha é brincadeira
de menina.” (Mateus, 07 anos)

Começavam quase sempre com a limpeza da casa, depois iam arrumando os


cômodos (dois ou três, assim como em suas moradias, onde muitas delas não possuem
banheiro, que são socializados entre os poucos que existem no lugar) e, por fim, faziam
as comidas para se alimentarem. Para Nunes (In: Silva, Macedo e Nunes, 2002, p. 82),
“... as crianças insistem em repetir tanto o que para nós parece ser sempre igual. Na
verdade, para as crianças nunca é igual. Cada vez que o repetem, elas tentam novas
possibilidades, enfrentam novos desafios, afirmam novos saberes”.
As atividades eram sempre socializadas, não havendo, aparentemente, hierarquia
entre elas, apesar de estarem brincando juntas crianças dos dois aos doze anos de idade.
Um fato que nos chamou bastante atenção é que, na maioria das vezes, somente as
meninas participavam da brincadeira, o que nos parece bastante familiar em nossa
cultura. Nas poucas vezes em que os meninos estavam presentes, era para assumirem a
função do pai.
Na fala de Taíza (12 anos), fica clara a forma de organização da casinha, que na
verdade se expressa pela própria forma de organização de suas casas, o que representa
um traço bastante característico da cultura urbana. Para ela, cada coisa tem seu lugar
programado. Neste sentido, percebemos que, na forma de representar suas moradias, as
crianças se apropriaram da organização das casas no modelo urbano. Já na aldeia, essa
organização é bastante diferente. Compreendemos, então, que a cultura da cidade na
dinâmica da organização de seus lares se sobrepõe à cultura nativa dos Sateré-Mawé.
A fala de Mateus (07 anos) é, ao mesmo tempo, impregnada pela visão
preconceituosa e machista que ele adquiriu na escola e observa no cotidiano ao entorno
da comunidade. Isso fica claro quando ele afirma “Lá na escola disseram que casinha é
brincadeira de menina”, reproduzindo a visão definida pela escola, de que existem
133

brincadeiras que só as meninas podem brincar e outras só para os meninos. Porém, ele
também afirma que gosta de brincar com as meninas, o que caracteriza um elemento
forte da cultura do seu povo, pois na comunidade, apesar de determinadas atividades
serem divididas, o lar é um lugar de todos e, neste sentido, ele tenta romper com o
preconceito advindo do meio urbano e se insere na casinha a partir do modo de viver
presente na cultura de sua etnia.
Outro elemento fortemente marcado na fala das crianças é a divisão das tarefas
quanto ao ato da maternidade. O pai é o provedor e a mãe quem cuida das crianças. Essa
característica é bastante presente no universo da cultura Sateré-Mawé, mas vai sendo
modificada de acordo com o sexo da criança. As crianças reproduzem com bastante
clareza essa função. Na fala de Késia (10 anos) isso fica evidente: “A gente chama os
meninos pra brincar também, mas só pra eles serem o pai”. Na representação da
brincadeira, o sistema social de divisão de funções representa o modus operandi com o
qual a comunidade convive.
Nunes (1997), em sua pesquisa com os A’uwé-Xavante, também observou a
frequência com a qual as crianças, na aldeia, brincavam de casinha e desenvolviam
atividades extremamente importantes para serem incorporadas às suas culturas. Segundo
a autora:

A ‘brincadeira de casinha’ oferece imensas possibilidades de reflexão sobre a


leitura que a criança faz da sua sociedade, desde o grupo doméstico até ao
universo de todas as relações comunitárias, elaborando-as, reformulando-as e
expressando-as, manifestando apreensão de traços culturais através de uma das
práticas mais comuns entre as crianças de todas as culturas e de todas as
épocas. (p.197)

Ainda associada a esta brincadeira, vimos as crianças assumirem papéis


diferenciados na organização da casa, mas as evidências indicam não haver uma forma
determinada, pois, nas várias vezes que as observamos, elas variavam constantemente as
funções. Um desses papéis era o de cuidar das crianças, ou seja, a ideia da maternidade.
Uma das meninas trazia a sua boneca (industrializada) para que pudessem cuidá-la e as
demais, ao pegarem-na no colo, davam-lhe nomes diferentes, sem haver discordância
entres as mesmas para tal situação. Para elas, mesmo a boneca tendo uma dona, no ato
de brincar, cada uma assumia o lugar da mãe, ou seja, a (re)produção ou a
ressignificação do imaginário sobre a maternidade.
134

“Minha filha é a Laíza.” (Nándria, 05 anos)

“A minha é a Taiana, eu dou mamadeira pra ela.” (Talice, 09 anos)

“Eu gosto da minha criança, ela tem o nome igual ao meu... (risos)” (Laiz, 08 anos)

“A gente coloca outros nomes quando não quer botar igual ao nosso, a gente coloca
outro nome de flor, natureza, passarinho.” (Taíza, 12 anos)

(Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade


Sateré-Mawé).

Nesta foto, buscamos mostrar que as brincadeiras socializadas pelas crianças,


por vezes contava com a participação dos adultos. Neste caso demonstrado na foto, as
crianças estavam brincando de casinha e fazendo suas comidas. O cacique mostrou para
elas como preparar o Chibé, comida tradicional dos Sateré-Mawé feita com farinha de
mandioca e misturada com água. As crianças fizeram a mistura e, em seguida, dividiram
entre si o resultado, que foi uma cuia cheia do alimento. Neste sentido, a brincadeira
passou a se misturar com a realidade, pois elas, de fato, prepararam e comeram o
135

resultado de sua ação, o Chibé. Depois continuaram a brincadeira, fazendo outras


comidas imaginárias com uso de folhas e barro.

(Créditos: Foto tirada por Talice (09 anos) uma das meninas que participou da pesquisa
de campo na comunidade Sateré-Mawé.)

Ainda relacionada às brincadeiras, nesta foto vemos as crianças utilizando uma


série de elementos da realidade para comporem o espaço da casinha. A diversidade nos
chamou bastante atenção, pois, além de um gato, elas usavam apitos, peças de
artesanato, uma boneca industrializada, peças do artesanato e uma peruca loira. Elas nos
relataram, ao visualizarem a fotografia, que estavam em festa na sua casa, e quando tem
festa todo mundo participa.
Aqui fica muito claro que as crianças socializavam todos os objetos e ainda
cantavam e se abraçavam para comemorar. Perguntamos também o que estavam
comemorando, eles nos disseram que o nascimento de uma nova criança. Na realidade,
uma criança tinha acabado de nascer na comunidade e a brincadeira era a objetivação do
ato real através dos seus imaginários. Na cultura Sateré-Mawé, o nascimento é um
grande motivo de festa.
136

(Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade


Sateré-Mawé).

Nesta foto, vemos a configuração de dois momentos: a brincadeira de casinha e a


brincadeira de escola. As duas crianças ao fundo estavam desenhando e, segundo elas,
“fazendo a lição” e ensinando a criança mais nova, que se encontra sentada com outra
no colo a falar algumas palavras que elas haviam escrito para representar o desenho. Já
as duas menores, que estão à frente na foto, brincavam de “mamãe e filhinha”. O mais
interessante é que elas discutiam entre si, de forma muita animada, para escolher quem
ia ser a mãe. Depois de alguns minutos, decidiram que ambas seriam as mães e a
boneca, filha das duas. Cada uma deu um nome diferente para a boneca e, mesmo
assim, não houve discordância entre elas. Fica muito evidente como as crianças
constroem suas culturas de pares de forma dialogada.
Neste sentido, para Shaff (1978, p. 97):

O objeto do conhecimento é infinito, quer se trate do objeto considerado


como a totalidade do real ou do objeto percebido como um qualquer dos seus
137

fragmentos e aspectos. Com efeito, tanto o real na sua totalidade como cada
um dos seus fragmentos são infinitos na medida em que é infinita a
quantidade das suas correlações e das suas mutações no tempo.

Outra brincadeira que as crianças faziam– não de forma tão frequente como a de
casinha – , e que representa todo um contexto imaginário e imagético cercado dos
elementos da sociedade circundante, é a brincadeira de ônibus. Esta representa, de
forma muita explícita, a “invasão” da cultura urbana, ressignificada pelas crianças no
ato da brincadeira, mas muito arraigada aos modos de ser da sociedade, situação que
influi para o adensamento dos costumes da cidade na forma de viver a infância dessas
crianças. É a presença do conflito entre o modus operandi dos Sateré-Mawé e da
sociedade urbana, reinventado pela lógica das crianças.
As crianças, para realizarem essa brincadeira, costumavam pegar um banco de
madeira bem comprido, que é utilizado pelos adultos para as reuniões da associação.
Além do banco, são utilizados também um volante velho que elas encontraram no lixo e
um pedaço de pau (madeira) que serve como marcha para o “veículo”. As funções vão
variando de acordo com o número de crianças que brincam e, muitas vezes, pela idade
de quem está brincando. Este fator, por exemplo, não foi observado na brincadeira de
casinha, aqui aparecem de forma mais clara as questões hierárquicas que definem os
papéis sociais.
Logo, para Barth (Apud TASSINARI: In: SILVA E FERREIRA, 2001, P. 65):

[...] o foco no conhecimento articula a cultura de modo que a torna transitiva


na interação entre as pessoas, devido ao seu uso potencial por ambas as partes.
Assim, outros modos de representação e outras questões mais dinâmicas vêm à
tona quando modelamos a cultura nessas modalidades: variação,
posicionamento, prática, troca, reprodução, mudança, criatividade.

Assim, como apontado pelo autor, ocorria na brincadeira a variação das


modalidades, principalmente ligadas ao fator etário (posicionamento) e à capacidade de
inventar (criatividade). Para ser o motorista precisa ser uma das crianças de maior idade
que esteja participando, pois, segundo elas, “quem dirige o ônibus é um homem de
cabelo branco…” (Raquel, 09 anos). O motorista, neste caso, assume um papel de
autoridade, aquele que pode dirigir, comandar, levar os demais, por isso precisa ser
alguém mais velho.
Neste caso, temos presentes duas questões importantes: a primeira ligada às
tradições dos Sateré-Mawé, pois os mais velhos são sempre os que comandam pela sua
138

sabedoria e experiência, é a valorização da vida e da longa caminhada percorrida por


esse ser de mais idade, mas que considera a criança, ouvindo-a e tratando-a com
respeito. A segunda questão é o autoritarismo, um elemento bem comum da sociedade
urbana, onde os adultos são superiores às crianças e possuem autoridade para definir o
que elas devem fazer, eles mandam e as crianças obedecem. Há, neste caso, um choque,
uma contradição ao mesmo tempo latente e presente no processo de constituição das
crianças, e a brincadeira representa esse “lugar de fronteira”.
Essa brincadeira reflete bem a “circularidade”, o “interstício” (BHABHA, 2005),
pois, mesmo não tendo contato direto com outras crianças do bairro, já que elas brincam
sempre entre elas mesmas, suas brincadeiras transitam entre esses dois “mundos”,
108
construindo um “universo simbólico” que se apresenta de forma bastante densa nas
formas como elas lidam com a vida cotidiana dos dois espaços. Ao mesmo tempo,
mantém-se um elemento da cultura tradicional de seu povo e vive-se algo
eminentemente presente na cultura societal urbana.
Assim, para Bhabha (2005, p. 27):

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o ‘novo’ que não


seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia de
novo como ato insurgente de tradição cultural. Essa arte não apenas retoma
o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,
refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a
atuação presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não
da nostalgia, de viver.

Neste sentido, as outras crianças que participam da brincadeira vão atrás como
passageiras. São as menores, aquelas que serão “levadas ao seu destino”. Precisam ser
conduzidas. Ao indagarmos a elas quem já havia andado de ônibus, somente uma das
crianças respondeu afirmativamente, porém, como existe uma parada109 bem na frente
da comunidade, elas observam diariamente a forma como as pessoas pegam o ônibus,
pagam, sentam e vão embora. Elas representam essas funções de forma muito peculiar,
inclusive criando nomes para os lugares onde o ônibus irá parar. Nomes que só existem
nos seus imaginários. O dinheiro, por exemplo, são folhas de árvore e, de acordo com o
tamanho de cada folha, vale mais ou menos valor.

108
Elias (1994).
109
Este termo faz parte da linguagem cotidiana da região amazônica e representa o ponto de ônibus, como
utilizado em outras localidades.
139

“Acho legal brincar de ônibus porque sou mais velha e sempre sou o motorista.”
(Taíza, 12 anos)
“Eu gosto de ser o cobrador, a gente ganha um monte de dinheiro, acho que ele fica
rico por que vai muita gente nesse ônibus.” (Mateus, 07 anos)
“A gente faz o ônibus com aquele banco e também com esse volante que achamos bem
ali perto do barranco grande.” (Késia, 10 anos)
“Às vezes o ônibus tá lotado e a gente tem que esperar um montão, aí eu não gosto, fico
logo com raiva, sabe?” (Laiz, 08 anos)
“Eu ando de ônibus pra um monte de lugar, mas nem sei pra onde…” (Emille, 05 anos)

De acordo com Silva, Macedo e Nunes (2002), as brincadeiras são momentos


fundamentais para compreendermos o universo infantil, pois as crianças sabem coisas
que, muitas vezes, sequer nos passariam pela cabeça. Reforçam as autoras que:

Essas brincadeiras estabelecem entre si uma relação de complementaridade,


refletindo momentos de interiorização e exteriorização, de concentração e de
expansão, de descoberta e de reafirmação, de vivências individuais e coletivas,
por certo necessários a um desenvolvimento equilibrado e pleno. (p. 79)

Pensar esses momentos das brincadeiras como fundamental para a construção de


uma cultura coletiva é, sem dúvida, uma tarefa de importância ímpar, pois as crianças
parecem compreender de forma muito clara a constituição objetiva deste espaço.
Brincar é uma “performance”110 que se remete diretamente às atividades diárias vividas
pelos adultos e possibilita às crianças interferirem nessa realidade de forma dialógica e
relacional111, construindo papéis sociais onde as suas formas de interpretar a realidade,
apresentam-se, inclusive, como expressão de seus questionamentos aos determinismos
frente às suas possibilidades de enfrentamento do mundo.
Assim, para Zumthor (2007, p.31):

A performance se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e


situacional: nesse contexto ela aparece como uma ‘emergência’, um
fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo que encontra lugar. Algo
se criou, atingiu a plenitude e, assim, ultrapassa o curso comum dos
acontecimentos.

110
Zumthor (2007).
111
Bourdieu (2007)
140

Como afirmado pelo autor, algo ultrapassa o rumo cotidiano dos


acontecimentos. Por isso, para os Sateré-Mawé, as crianças são membros ativos da
sociedade, como forma culturalmente definida. Apesar de estarem no espaço urbano –
ou seja, fora de seu meio tradicional – eles compreendem a infância como uma etapa da
vida que se sustenta no convívio coletivo e respeitoso, ou seja, suas brincadeiras, seus
espaços, suas falas, etc. se constituem como processos de educação que acontecem a
qualquer hora e em qualquer lugar, sem a necessidade premente de uma instituição
própria para fazê-la acontecer, como nos afirma Melià (2000, p. 12):

Os povos indígenas sustentaram sua alteridade graças a estratégias próprias,


das quais uma foi precisamente a ação pedagógica. Em outros termos, continua
havendo nesses povos uma educação indígena que permite que o modo de ser
e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas também que essas
sociedades encarem com relativo sucesso situações novas.

É notório que os Sateré-Mawé criaram uma série de estratégias próprias para se


manterem vivos no espaço urbano. Vivos não somente no sentido biológico, mas
principalmente no sentido étnico. O que se configura com a forte presença de uma
educação indígena entre eles e principalmente passada para as crianças, através das
músicas, dos adornos, das peças do artesanato, das lendas, dos rituais e da maneira de
viver.

4.3 O desenho e a música como elementos simbólicos: tons, riscos e


rabiscos da infância

“A experiência de contato é sempre uma experiência de limites e fronteiras. Nas


condições presentes, é a experiência de contato que provoca a discrepância entre as
perguntas fortes e as respostas fracas.”

(SANTOS, 2008, p. 14)

Outros elementos da cultura que as crianças incorporam de forma bastante forte


é a aprendizagem das músicas tradicionais, cantadas pelos adultos e transmitidas a elas
pelas suas mães, e a necessidade do uso dos instrumentos de caça, pesca e dos adornos
para as festas, principalmente os colares que constituem peças do artesanato de seu
povo. Na comunidade, durante suas atividades, eram constantes os momentos em que
elas estavam cantando essas músicas. Como há um número significativo dessas canções
que fazem parte do cotidiano das crianças, faremos a descrição de uma delas, escolhida
141

pelas próprias crianças e procederemos nossas reflexões, compartilhando as


representações que o grupo explicitou através das suas falas.
A música escolhida é chamada pelas crianças de “Fazer a Farinhada”. A letra
que utilizaremos foi descrita por elas mesmas, ora escrevendo, ora cantando - quando
não sabiam como se escrevia certas palavras. Desta maneira, preferimos transcrevê-la
literalmente, a partir do entendimento e da representação delas, sem interferência nossa.

“Pra fazer a farinhada...


Muita gente eu vou chamar... (bis)
Só quem entende de farinha...
Venha peneirar aqui... (bis)
Todo povo de Maués...
Venha peneirar aqui... (bis)
Só quem entende de farinha...
Venha peneirar aqui... ”(bis)

Laiz (08 anos) desenhou várias pessoas juntas ao redor do forno, lugar onde a
farinhada é preparada, além de um barco, onde os Sateré levam a farinha para outras
aldeias da etnia ou para serem vendidas na cidade. Ela ouviu os adultos contando sobre
o comércio da farinha e que seu transporte é feito de barco, já que, na região onde ficam
as aldeias, a única forma de se chegar é pelos rios da região e, logo, os meios de
transporte são os barcos ou as canoas.

“Todo mundo fica ao redor


do formo para que a
farinhada fique boa, minha
mãe conta pra nós que todo
mundo ajuda por isso dá
muita farinha. Olha aí, no
desenho tem um monte de
gente perto do forno pra
fazer a farinha.”(Laíz, 08
anos)
142

A ênfase nesta música se remete bastante a um dos fortes elementos da tradição


e da cultura dos Sateré-Mawé, a produção da farinha de mandioca (Mani), alimento
importantíssimo para eles. São diversas as comidas (Miú) feitas com a farinha, mas,
entre os Sateré-Mawé “urbanos”, e logo, as crianças, o Chibé112 é a mais comum de
todas.
As duas primeiras estrofes da música mostram a importância da organização
coletiva e o quanto é cultivado entre eles o trabalho em grupo, ou seja, o puxirum, o
fazer, o preparar (Eton). Segundo Bernal (2009, p. 89):

Essa maneira de conceber a vida social se torna cotidiana a partir da


solidariedade entre as diferentes famílias que residem numa mesma
comunidade em ocasião dos chamados puxiruns. Trata-se de uma espécie de
institucionalização dos trabalhos coletivos...

As crianças fazem questão de reforçar a ideia de que “muita gente eu vou


chamar...”, não só através da própria música, mas dos gestos que faziam quando
cantavam. Ao serem indagadas sobre a farinhada, elas prontamente nos explicavam:

“A gente faz a farinhada lá no interior (referindo-se à aldeia), a vovó fazia a gente


descascar a mandioca e botarmos no fogo, depois fazia a farinhada.” (Taiza, 12 anos,
a única das crianças que participou de fato da farinhada quando morava na aldeia.)
“É um alimento muito bom.” (Gabriel, 06 anos)
“Farinhada tem que ter muita gente. Se não ‘num’ dá pra fazer.” (Laiz, 08 anos)
“É uma farinha de comer.” (Gabriel, 06 anos)
“A gente come peixe com farinha.” (Mateus, 07 anos)
“A gente compra a farinha por que não tem como fazer a farinhada aqui.”
(Larissa, 11 anos)
“A gente ‘tá’ sempre junto, cantando a música da farinhada, mas nós nunca fizemos.
Mas pra cantar é bom com todas as crianças, minha mãe disse que pra fazer também
todo mundo ajuda.” (Raquel, 09 anos)

Késia (10 anos), ao desenhar sobre a farinhada, trouxe-nos elementos


interessantes. Assim ela nos relatou:

112
Comida feita em uma cuia, onde se mistura água com farinha d’água (Ui) ou a farinha de mandioca
(Mani) grossa, para servir de alimento. Em Sateré-Mawé, chama-se Urgia.
143

“A farinhada é feita de
dia, por isso tem que ter
sol por que se molhar a
farinha com água da
chuva não vai prestar. A
farinha tem que ser bem
sequinha pra ficar
gostosa pra nós podermos
comer com peixe. Acho
que dá prá comer com
tudo.” (Késia, 10 anos).

As falas reforçam os versos da música e a ideia de que todos têm que participar,
pois o resultado desse esforço coletivo é o alimento que será distribuído entre eles. No
entanto, é importante deixar bem claro que para elas o “fazer a farinhada” está ligado ao
imaginário, ou seja, uma construção simbólica, pois na comunidade elas não preparam a
farinhada, lá não existe nem a matéria-prima nem o local apropriado (forno). Mas é
notória a vivacidade que as mesmas expõem quanto à vontade de participar desse
importante ato. Elas, ao cantarem a música, demonstram, por seus gestos, como se
corta, descasca, prepara e todos os demais processos envolvidos na farinhada. Neste
sentido, para Elias (1994, p. 07), “... a construção dos seres humanos exige que seus
produtos culturais sejam específicos da sua própria sociedade”.
Logo, ao reproduzirem essa atividade que é tão peculiar na cultura nativa do
grupo, as crianças a fazem da maneira delas. Assim, percebemos uma mistura de
elementos da realidade que são apresentados a elas pelos relatos dos pais ou dos mais
velhos e, ao mesmo tempo, elas vão dando um tom, a partir de suas culturas infantis, à
forma de interpretar o ato simbólico de fazer a farinhada.
Esses elementos são claramente comprovadores de que os valores étnicos do
grupo estão presentes e se reinventam na forma das culturas das crianças, comprovando
que as mesmas não são meras espectadoras da realidade e, sim, participam efetivamente
da mesma, ressignificando-a.
144

Assim também demonstrou Nunes (In: Silva, Macedo e Nunes, 2002, p. 72), em
sua pesquisa realizada com as crianças A’uwe-Xavante na aldeia:

Ir a todos os lugares, andar atrás desta ou daquela pessoa, ouvir as conversas


dos outros, experimentar fazer de tudo um pouco, distrair-se com isso ou
aquilo são privilégio das crianças e elas os usam com toda a propriedade,
colocando-se a par com o que se passa com todos os da aldeia, bem como
das notícias que chegam de fora. Esta prática é legítima e gera entre as
crianças e os adultos um tipo de relacionamento diferente do que os
segundos estabelecem entre si, sobrepondo-se a uma série de exigências
societárias que, explicitamente, verificam-se em classes de idades
posteriores.

Outra forma que as crianças utilizam para representar a realidade e imprimir a ela
seus jeitos próprios de compreendê-la são os desenhos. A prática dos mesmos, porém,
nas vezes que acompanhamos e participamos de sua elaboração, aparece refletindo, de
maneira transitória, a presença das mesmas nesse “entre-lugar”, o espaço urbano, pois
elas utilizam, na grande maioria dos desenhos, elementos tanto do cotidiano dos Sateré-
Mawé como da realidade urbana que as circunda.
Também percebemos que a realização do riscar, rabiscar, desenhar, tem uma
relação muito intensa com os “deveres de casa” trazidos da escola. Uma vez que a
introdução dessas atividades se deu, prioritariamente, pela inserção das crianças nas
escolas onde estudam, principalmente a escola de educação infantil, na qual é muito
comum a prática de se organizar o fazer pedagógico pelo desenho.
145

“Meu desenho tem um monte de


bicho. Lá na escola a
professora mostrou pra gente
um livro que tinha uns bichos
que eu nunca vi e mandou ‘nós
desenhar’. Eu desenhei um
dinossauro, um elefante, um
porco espinho, uma tartaruga,
um coelho e uma cobra no
capim. Mas eu nem sei o que
são esses bichos, eu só vi
mesmo a tartaruga, que tem
uma aqui na casa da mãe da
Raquel, e cobra que sempre
aparece por aqui, nós já até
matamos uma vez uma bem
grande.” (Mateus, 07 anos)

Influenciado pela imagem dos animais que a escola lhe apresentou, Mateus trouxe
um desenho em que os animais eram, na sua maioria, desconhecidos por ele e, se
analisarmos a partir da especificidade amazonense, a maioria desses animais não faz
parte da nossa realidade. Após a elaboração de seu desenho, pedi que ele fizesse um
relato do por que havia escolhido esses bichos e ele reafirmou o que tinha dito na
primeira fala, “vi no livro lá na escola”, mas também fez questão de afirmar que
desenhou a tartaruga que “mora na casa da Raquel” e que ele gosta de ir lá para brincar
com ela. Falou bastante sobre as cobras que sempre aparecem na comunidade,
principalmente quando o “rio lá de baixo tá cheio”, período em que a vegetação
também fica mais densa e propicia a presença desses bichos.
Mostrei o desenho de Mateus para as outras crianças e perguntei a elas sobre quem
conhecia algum desses animais. Todas falaram da tartaruga e da cobra. E, mais uma vez,
relataram que “sempre aparece cobra por aqui, mas nós não temos mais medo” (Taíza,
12 anos). Fiquei curioso sobre a presença das cobras e se elas não tinham medo mesmo.
146

As crianças começaram a rir de mim, perguntando se eu tinha medo de cobra. Elas


disseram que os mais velhos ensinaram a matar as cobras, “basta pegar um galho com
uma forquilha na ponta e pegar pela cabeça, aí ela morre logo, mas se for muito
grande a gente chama logo nosso pai ou o cacique” (Raquel, 09 anos).
Raquel disse que contou na escola que ela já havia matado uma cobra, mas que os
colegas riram dela e disseram que ela era mentirosa, então resolveu não falar mais das
coisas que vivencia na comunidade. Fato que comprovamos nas visitas à escola: Raquel
parece ser outra criança, pois, se na comunidade e na pesquisa foi uma das que mais
participou das atividades, na escola fica sempre calada, no fundo da sala.
É importante destacar que, em relação a este desenho apresentado acima e o outro
que apresentaremos a seguir, a atividade não foi proposta por nós. As crianças estavam
fazendo os “deveres de casa” e nós somente acompanhávamos. De repente, Laiz (08
anos) falou: “vamos desenhar?” e as outras crianças pararam de fazer o que estavam
fazendo e prontamente concordaram. Nándria (05 anos), com um olhar meio triste,
falou: “mas não temos papel”. Todas ficaram se olhando. Então fomos até a mercearia
da esquina e compramos um pacote de papel ofício, que foi distribuído entre elas.
Nandria pegou uma caixa de lápis de cor que ganhou na escola e distribuiu para todos
desenharem.
De repente, Gabriel (06 anos) perguntou “o que é pra desenhar?”. As outras
crianças olharam, mais uma vez, esperando uma resposta ou talvez um direcionamento.
Respondeu-se “o que vocês quiserem, podem desenhar qualquer coisa”. “Daqui ou da
escola?”, perguntou novamente Gabriel. “Qualquer coisa. O que vocês quiserem
desenhar.” respondeu-se. Então, cada uma foi pegando os papéis e riscando aquilo que
achava melhor. Notamos que no início elas estavam mesmo esperando que definíssemos
o que iriam fazer, mas depois ficaram à vontade.
Um desenho que chamou bastante atenção foi o de Talice (09 anos), pois ela fez
questão de representar várias peças do artesanato que é produzido na comunidade e
vendido pelos seus pais nas barracas. Neste dia, inclusive, estávamos em uma das
barracas. Ela olhava para os colares, pulseiras, brincos e outras peças e ia desenhando-
os no papel. Logo que terminou seu desenho, veio até nós e mostrou o que tinha feito.
Então pedimos que ela contasse ao grupo o que tinha desenhado e o que eram aquelas
coisas tão bonitas. Ela prontamente começou a falar em voz alta o que tinha desenhado,
mostrando para todas as outras crianças a sua arte. E, assim, relatou:
147

“Eu gosto muito de ficar aqui


nas barracas de artesanato,
toda vez que minha mãe vem
vender eu fico com ela e
também fico olhando quando
eles ficam fazendo as coisas.
Minha mãe me ensinou a fazer
uma pulseira, foi essa aqui
(apontando para o último
desenho na parte inferior da
folha). Eu vou dar ela para o
senhor. Eu desenhei também
esses brincos, os colares e
também mais pulseiras, pois eu
gosto mais das pulseiras, olha
como eu tenho três aqui no meu
braço.” (Talice 09 anos).

O desenho de Talice representa o apego ao artesanato e demonstra a vontade e o


prazer da criança em se inserir na atividade que é a base principal de sustentação de sua
comunidade. Ela ainda não vende as peças, pois os pais não deixam as crianças
participarem efetivamente do comércio do artesanato. No entanto, ela faz questão de
estar com sua mãe na hora da venda e costuma presenciar os mais velhos na oficina de
confecção que é montada nos fundos das casas e é onde os adultos passam boa parte do
tempo. Ela já está aprendendo a fazer pequenas peças e se sente feliz com isso.
A apropriação dessa tradição representa um forte laço que a criança possui com a
dimensão étnica de seu povo. A relação entre a geração adulta e as crianças propicia
esse contato direto com elementos fundamentais para que o povo Sateré-Mawé
mantenha viva suas raízes da aldeia, e os Sateré-Mawé que moram na cidade fazem
questão de afirmá-las. A aproximação dessa fronteira entre esses lugares é garantida por
questões práticas como o fazer o artesanato, tanto quanto por questões simbólicas como
é o caso dos rituais.
148

4.4 Jeitos de ser criança Sateré-Mawé: os elementos da cultura frente


aos determinismos sociais urbanos

“A criança aprende experimentando, vivendo o dia a dia da aldeia e, acima de tudo,


acompanhando a vida dos mais velhos, imitando, criando, inventando, sendo que o
ambiente familiar, composto pelo grupo de parentesco, oferece a liberdade e a autonomia
necessárias para esse experimentar e criar infantil.”

(NASCIMENTO, 2006, p. 8)

O conceito de infância que adotaremos aqui não será determinado pelos


preceitos estabelecidos nos campos disciplinares nem pelas determinações jurídicas,
pois, apesar de fazermos referências a estes, nos pautaremos na expressão das próprias
crianças, já que, no bojo das conquistas que se efetivaram nos últimos anos para os
povos indígenas, o próprio direito das crianças também passa a ser de suma
importância.
No entanto, vamos utilizar, além da concepção de infância definida pela tradição
da etnia, as próprias falas das crianças para podermos indicar elementos que possam
representar essa fase da vida. Segundo Cohn (2005, p. 09), “[...] não podemos falar de
crianças de um povo indígena, sem entender como esse povo pensa, o que é ser criança
e sem entender o lugar que elas ocupam naquela sociedade”, e, sob o ponto de vista das
crianças, o que é viver a infância, principalmente por se tratar desse espaço de
fronteiras.

“Ser criança é muito bom, nós podemos correr, brincar, fazer um monte de coisas...”
(Raquel, 09 anos)
“Eu gosto de ser criança, de ser menino, mas quando ‘eu pôr’ as mãos na luva das
tucandeiras, já vou ser homem.” (Gabriel, 7 anos)
“’Num’ sei por que as meninas que moram aqui perto da nossa casa, aquelas que não
são índias, fazem um monte de coisas que nós não fazemos [...] acho que as mães delas
que mandam.” (Taíza, 12 anos)
“É bom ser criança por que a gente não tem que ter filho, só de brincadeira.”
(Talice, 9 anos)

Uma análise mais detalhada que se prenda em determinados trechos das falas
das crianças nos conduzirão ao desvelamento mais específico dessa transição entre os
processos vividos no espaço urbano e os elementos da cultura dos Sateré-Mawé.
149

Educação, neste sentido, é entendida como uma ação que ultrapassa os espaços
escolares e se efetiva como a totalidade das experiências vivenciadas pelas crianças nos
diversos contextos em que convivem.
Um exemplo bem claro dessa situação pode ser visto na fala de Taíza (12 anos),
principalmente quando nos diz: “acho que são as mães delas que mandam”. Com essa
afirmação, aparece muita marcada a relação de poder que se estabelece em nossa
sociedade, onde os adultos determinam o que as crianças têm que fazer. Para os Sateré-
Mawé isso é algo que causa estranheza, pois as crianças costumam fazer o que elas
querem e não o que os outros, mesmo sendo os seus pais, determinam.
São elas que definem como vão brincar, de que vão brincar e a hora que querem
fazer essas e outras atividades. A intervenção dos adultos acontece de forma mais
corriqueira, fazendo parte do cotidiano das relações estabelecidas entre eles, sem
imposições. Eles dialogam com as crianças e procuram definir com elas como se dá a
forma como irão vivenciar as atividades do dia-a-dia.
É importante, porém, destacar que há algumas atividades em que as crianças não
podem participar, pois a tradição define como sendo exclusiva dos adultos. Logo, elas
vivenciam essas atividades de longe, mas as reinventam como maneiras de representá-
las. A forma de concretizar essa relação está no caráter de simbolizar e ressignificar
para poder fazê-las, mas, de fato, elas não participam, é o caso dos rituais e as questões
mais voltadas ao trabalho que gera renda.
Para Bourdieu (2007, p. 10):

Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social


enquanto elementos de conhecimento e de comunicação [...] eles tornam
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é
a condição da integração moral.

Assim, a infância, para as crianças Sateré-Mawé, é um grande universo de


aprendizagens, de liberdade, de escolhas e, sobretudo, de possibilidade de viver as mais
diversas expressões do seu cotidiano. Os pais falam das crianças com um respeito que
nos faz desejar aprender a lidar com o mundo infantil da maneira deles. Elas são, como
113
nos disseram, “artesãs do futuro” , que irão garantir a existência do seu povo. Nas

113
O uso do termo se explica pela confecção do artesanato, que é a principal fonte de sobrevivência do
grupo, assim um artesão do futuro é um adulto promissor.
150

palavras do cacique114: “... uma criança é o nosso maior tesouro, cada parente que
nasce aqui para nós é sinal que Tupaná está nos dando mais vida e alegria, por isso
fazemos muita festa para festejar quando uma das nossas mulheres tem criança”.
Apesar do estado de pobreza pela qual passa a comunidade e das precárias
condições de vida, eles oferecem o que podem às suas crianças, tudo o que eles
possuem é dividido com elas e entre elas, não importa o que seja, mas é preciso que as
crianças possam se alimentar. Vivenciamos algumas situações em que só havia farinha
de mandioca para comer. As mães misturavam com água e faziam o “Chibé” para que
as crianças não passassem fome. Primeiro as crianças comiam e, quando sobrava
alimento, os adultos iam dividindo entre eles.
A infância nesse grupo é cercada dessas questões fronteiriças, pois, ao mesmo
tempo em que os adultos tentam manter a tradição do seu povo indígena, o espaço
circundante é também marcante em suas vidas. A comunidade fica dentro de um bairro
de aproximadamente 10 mil moradores, logo, não pode viver isolada dos diversos
condicionantes do “mundo dos brancos”, como eles assim o denominam. As crianças
reproduzem uma série de situações que elas observam no entorno da comunidade e
principalmente nas práticas a que são submetidas nas escolas, mas sempre as
ressignificando.
Para enveredarmos mais especificamente na concepção de infância para o povo
Sateré-Mawé, é preciso que entendamos a existência de um ritual de transitoriedade,
que demarca de forma muito clara o mundo infantil e o mundo adulto. O ritual da
Tucandeira ou da Tocandira, do qual apenas os curumins (meninos) podem participar,
vai ser, entre outros, o balizador do fim da infância e o começo da preparação para
exercerem papéis sociais que somente os adultos podem exercer, marcando
definitivamente o status e as determinações das posições na sociedade.
Neste sentido, segundo Álvares (2005, p. 04):

O ritual torna explícita a estrutura social, a cristaliza simbolicamente,


expressa o sistema de relações sociais ideal aprovado entre os indivíduos
que participam. Os ritos fazem visíveis as alianças políticas que precisam ser
mostradas para serem simbolizadas, dão significado aos símbolos abstratos.
Através dos ritos as pessoas se sentem parte de uma comunidade política. Os
rituais relacionam o local com o pertencimento a unidades mais amplas,
expressam as relações entre grupos, relacionam tempos míticos com tempos
históricos.

114
Parte desta fala se encontra em uma série de conversas que foram gravadas, tanto em vídeo como em
áudio, com o cacique.
151

Para compreendermos os processos que envolvem a construção da identidade e


das culturas infantis, faz-se necessário adentrar ao modo como o ritual é tratado e em
sua força na estrutura desta sociedade. Apesar de as crianças não participarem, elas
convivem com o poder simbólico115 que o mesmo possui para os Sateré-Mawé, o que as
leva indiretamente a estarem convivendo com os preparativos e com a importância que
o Waumat possui para o seu povo.
Ainda para Álvares (2005, p. 05):

WAUMAT, o ritual da tocandira, pode ser divido em três partes: a preparação;


o ritual propriamente dito; a reintegração num novo status [...]. No caso do
Waumat o período de preparação para os que vão deixar-se ferroar estaria
marcado por uma série de interditos alimentares, espaciais, e outros de caráter
sexual. O interdito separa o iniciado do resto do grupo na preparação para o
ritual, apesar de que na atualidade este período de interdito e tabus alimentares
seja menos rigidamente observado. Durante o ritual propriamente dito, os
jovens introduzem a mão numa luva de fibras onde são inseridas as formigas
tocandiras (paraponera clavata sp), com o ferrão voltado para o interior. Esta
ação é acompanhada por uma série de cantos, ao ritmo do chocalho, e uma
dança da qual participam várias pessoas do grupo. A passagem aconteceria
depois de introduzir a mão vinte vezes e passar por um teste de caça e outro de
purificação, para completar a mudança de status. Apesar de certa flexibilidade
na finalização da série de ferroadas, todas as pessoas sabem quantas vezes o
rapaz botou a mão na luva e sua atitude frente ao desafio.

Logo, sendo o ritual um marco balizador entre a infância e a fase adulta, ele
representa para as crianças a transformação mais forte no seu processo de
desenvolvimento. Para os meninos (Pian), é o período de comprovar sua força às novas
atribuições perante os mais velhos e, principalmente, demonstrar a sua família a
capacidade de enfrentar a dor e superar os obstáculos da vida com saúde, coragem,
honra e outros valores considerados fundamentais a esse povo. Já para as meninas
(Pirin), é o período de esperar pelo marido, de ser escolhida por um dos guerreiros
novos para continuar a tradição da maternidade. Entre elas a idade é mais relacionada à
primeira menstruação, não havendo uma etapa determinada para poderem ser
escolhidas. A partir do ritual começa a separação mais efetiva dos mesmos, que, até
então, convivem diretamente nos diversos espaços da comunidade (PEREIRA, 2003).
Elas assim relataram sobre o ritual:

115
Aprofundamentos em Bourdieu, 2004.
152

“A gente dança três passos pra frente e pra trás, nós só podemos fazer isso.”
(Laiz, 08 anos)
“Eles, os meninos, botam as mãos na luva, tem que ferrar 200 vezes, eu acho que é
assim, né?” (Taíza, 12 anos)
“A gente fica espiando de longe, ouvindo as músicas, por que nós não podemos
participar, o ritual é só para os adultos.” (Raquel, 09 anos)
“Só os meninos maiores podem pôr a mão na luva, a gente não pode por que
ainda é pequeno, mas quando eu for grande eu vou participar pra virar homem
grande também.” (Mateus, 07 anos)

Gabriel, 06 anos, ao falar sobre o ritual,


nos disse que somente os meninos
podem participar e, em seu desenho,
expôs a aldeia (casa), o sol e a lua (pois,
segundo ele, o ritual demora o dia
todo), a luva e as formigas
(Tucandeiras). “Eu, como sou menino,
vou fazer o ritual da Tucandeira, mas
só quando eu tiver maior, ainda sou
pequeno, então não posso participar,
mas eu já vi os outros pondo as mãos
nas luvas. Quando eu for maior quero
logo fazer o ritual”
Entre os Sateré-Mawé “urbanos”, a manutenção desta tradição é condição
fundamental para a preservação de sua condição étnica e cultural116. Eles são enfáticos
em transmitir desde cedo para as crianças a importância deste momento para o seu
povo, e elas o fazem numa dimensão interpretativa117, através do brincar. Viver no
espaço urbano e conviver com as diversas formas de negação e adaptação aos valores da
sociedade circundante leva os adultos a construírem estratégias de mediação entre essas
fronteiras, isso ocorre também com as crianças.
Neste sentido, para Bhabha, (2005, p. 20 e 21):

116
Geertz, 1989.
117
Corsaro, 2002.
153

A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação


complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos
culturais que emergem em momentos de transformação histórica [...]. Os
embates de fronteira acerca da diferença cultural tem tanta possibilidade de
serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de
tradição e modernidade.

Logo, o ritual da Tucandeira, como afirmado por Bhabha, é para os Sateré-


Mawé, um forte elemento histórico que conjuga fatores essenciais para a articulação e a
garantia de poderem viver no espaço urbano e, ao mesmo tempo, manterem vivos os
elementos de sua cultura. O contexto, apesar de todos os indicadores e as dificuldades,
propicia a vivência desse momento que transborda os limites da sociedade circundante e
seus valores, garantindo a socialização, a cultura, o simbolismo, a participação e outros
elementos fundamentais para a dimensão étnica do povo Sateré-Mawé.
Nas palavras do Cacique Luiz, essa importância se torna bastante evidente.

“Nós sabemos separar a água do vinho, o branco tem o carnaval, as festas dele
e nós temos o nosso ritual da Tucandeira. Coloca 250 Tucandeiras no Saripé118 e aí nós
colocamos a mão lá, aí mostrando que nós somos guerreiros, somos felizes, temos
saúde e resistência. É só os homens que têm a condição de meter a mão no Saripé, a
mulher é pra acompanhar o ritual, elas são as nossas parceiras. Pra nós aqui com 13
anos ele já é pescador, caçador, então ele já tá liberado pra enfrentar o ritual”.
(Cacique Manoel Luiz)

Os Sateré-Mawé nos demonstram, de forma bastante consciente, o respeito pela


diversidade, talvez por serem minoria nesse espaço determinado pelas questões da
cidade. Diferentemente de nós, que ainda nos prendemos aos padrões estabelecidos pela
vida urbana, eles concebem uma articulação de saberes que são capazes de ultrapassar
as lógicas de aculturação e de negação e demonstram que a comunicação e a articulação
entre a cultura de seu povo e a cultura do espaço urbano podem dialogar e possibilitar a
preservação tanto da tradição quanto a renovação da mesma a partir de valores que são
apropriados do meio que os cerca, inclusive a escola.
Para nós, essa forma de conceber o diálogo, representou um grande aprendizado,
pois enquanto nos sentirmos os “donos do saber” teremos mais dificuldades de pensar a
sociedade como um espaço multicultural, onde as diferenças devem ser vistas como

118
Luva tecida em palha e adornada de várias maneiras, com penas, pedras e artefatos de artesanato.
154

fundamentais para a garantia de um mundo em que os determinismos possam ser


minimizados e a diversidade possa nos ensinar a conviver melhor.
As crianças são testemunhas claras dessa possibilidade, pois representam, de
forma viva, essa fronteira. Todas nasceram na cidade, mas têm a certeza de serem
Sateré-Mawé e isso foi demonstrado em todos os momentos que vivenciamos durante a
nossa estada com elas, mesmo quando a escola tenta invisibilizá-las e elas próprias
buscam se esconder para se proteger dos preconceitos e da violência simbólica que
acontece fortemente no espaço escolar.
É a partir destas questões que iremos discutir, no capítulo posterior, a presença
da escola urbana na vida das crianças Sateré-Mawé, e como podemos pensar um espaço
educativo em que o diálogo, tão bem articulado na comunidade, possa ser vivenciado
como elemento de aprimoramento e melhoria das práticas educativas escolares e não
escolares destinadas às crianças.

119

(Créditos: Fotos extraídas do site www.portalamazonia.com)

119
Modelos de luvas usadas para a realização do Ritual da Tucandeira. Existe uma variedade delas
dependendo da região e da tribo a qual o povo pertence. Com esse rito, os Sateré-Mawé, estão certos de
poder afastar as doenças e tornar mais forte o corpo e o espírito. (PEREIRA, 2003).
155
156

120
5.

A ESCOLA PÚBLICA E SUA REPRESENTAÇÃO ACERCA DA CRIANÇA


C APITULO IV:

INDÍGENA

“Ao mesmo tempo, as rupturas e contradições sociais, potenciadas e reforçadas


pelo cosmopolitismo contemporâneo, pela formação de sociedades
multiculturais e pela generalização do acesso de públicos socialmente
heterogéneos à escola, encontra nos modelos relativamente estáticos de
socialização da escola condições pouco favoráveis à interação das diferenças
dos alunos, gerando, em contrapartida, possibilidades anómicas que se
tematizam em torno de tópicos como a ‘indisciplina’ ou mesmo a ‘violência nas
escolas.”

(SARMENTO, 2007, p. 18)

O objetivo deste capítulo é discutir, a partir da pesquisa realizada em duas


escolas públicas, uma da rede estadual do Amazonas e outra da rede municipal de
Manaus, como se dá o processo de inserção das crianças Sateré-Mawé nessas
instituições, denominadas pelo seu povo como a “escola do branco”, e os diversos
condicionantes desse processo de didatização do saber, que, pelos discursos dos
professores e pelos documentos da escola, invisibilizam esse grupo de crianças e
demarca suas presenças no ambiente escolar pelo preconceito, discriminação e omissão
de suas culturas pela imposição da cultura legitimada pela escola via “violência
simbólica”.
Procuraremos evidenciar os dados obtidos durante os meses da pesquisa
realizada nas instituições, trazendo a tona os discursos instituídos pelos elementos que
conferem legitimidade a cultura escolar, tanto quanto a fala dos agentes que fazem parte
da realidade da escola, cruzando os mesmos as falas das crianças para podermos

120
Créditos: Foto tirada pelo pesquisador, na comunidade indígena urbana do bairro Puraquequara em
Manaus, durante uma pesquisa realizada em 2005, no âmbito do Projeto de Iniciação Científica da
Universidade do Estado do Amazonas
157

desvelar uma série de maquinações ideológicas presentes nas práticas dessas instituições
e escamoteadas no discurso oficial.

5.1 A criança indígena nos documentos oficiais das escolas:


cultura escolar como elemento de “distinção”

“A escola pública e obrigatória para todos tinha como objetivo central a igualdade
entre as pessoas, o progresso das nações, o desenvolvimento econômico, a justiça
social, a difusão dos conhecimentos em defesa da valorização da razão – e do
conhecimento escolar – como modo de ser e estar no mundo.”

(BARBOSA, 2007, p. 1060)

A escola é hoje uma das instituições mais polêmicas da sociedade mundial atual
o que se reflete também em nosso país. Ela nos angustia e nos confunde, tanto porque
somos bombardeados a todo o momento pelas diversas críticas sociais e, de outro lado,
somos tentados a nos convencer das suas qualidades pelos modelos advindos da
estrutura do sistema de ensino a partir dos discursos instituídos nos documentos oficiais.
A idéia de que a educação escolar possibilitará uma garantia de vida melhor
para o futuro, ainda representa para grande parte da sociedade, talvez a única forma de
buscar melhorias para sua condição de vida. Pondo-se em destaque a escola impõem-se
como o único e soberano ambiente propício a aquisição de bens culturais capazes de
transformar a vida da população dando-lhe novas perspectivas, pelos menos sob a forma
de discurso. Na prática, porém, ainda se tem uma grande distância entre as diversas
realidades sociais e os fazeres – homogeneizados – no dia-a-dia da escola.
Se a escola tem um papel determinante na maioria das vidas da população, qual
importância a mesma exerce na vida das Crianças Indígenas e mais especificamente na
vida das Crianças Sateré-Mawé? Valorizamos uma escola que está no mundo das idéias,
mas, qual dimensão a mesma exerce na cultura e nas tradições dos povos indígenas? No
que tange aos processos de diversidade e multiculturalidade, como tem agido a escola e
como tem sido elaborados os currículos para atender essa realidade tão presente em
nossos dias? A Cultura Escolar e a Cultura da Escola dialogam entre si e contribuem
para a construção de um diálogo intercultural?
Essas questões são fundamentais para compreendermos, ou mesmo
visualizarmos o trabalho pedagógico e os diversos condicionamentos que estão
presentes na prática pedagógica dos agentes da escola e principalmente procurar
158

desvelar como se dá o processo de inserção das Crianças Sateré-Mawé nas duas escolas
pesquisadas.
A visão de que a escola é um palco de múltiplas possibilidades e diferenças, não
se configura como um discurso novo, pois já de muito tempo tem sido ecoado nas
políticas educacionais e na própria ação presente nos seus espaços sociais. No entanto,
esse discurso se dilui na prática, dissolve-se na ação e perde-se num amaranhado de
reproduções autoritárias e homogeneizadoras que acabam presas a velhos costumes e a
organizações pedagógicas que nos remontam as origens clássicas da instituição, pondo-
se contra a inserção em seus espaços de um pensamento crítico.
A esse respeito, explica Santos (2005, p. 16) que:

Vivemos, pois um tempo de transição paradigmática. As nossas sociedades


são intervalares tal como as nossas culturas. Tal como nós próprios [...]
Todo pensamento crítico é centrífugo e subversivo na medida que visa criar
desfamiliarização em relação ao que esta estabelecido e é
convencionalmente aceite como normal virtual inevitável necessário.

Nas definições do autor, passaram os anos, mas os resquícios do paradigma


homogeneizador da sociedade moderna clássica, ainda estão muito presentes na
memória viva, não só dos agentes sociais, mas da própria configuração escolar em
conceber a educação como prática de reprodução e manutenção das estruturas de
dominação e das condutas tipicamente obedientes. Logo, estas indagações propostas por
Santos (2005), são reforçadas por ações educacionais que são vivenciadas dia após dia
nas instituições e que invisibilizam a diversidade e destituem da prática social sua
capacidade de movimento, de contradição entendendo a sociedade e a escola como
espaços de equilíbrio e coesão social121.
Assim, a escola se constitui em local privilegiado para a assimilação de
conteúdos e valores, como também de promessas de uma vida melhor, e, portanto, de
uma boa vaga no mercado de trabalho. Porém, essa escola pensada sob esses moldes,
não conseguiu até os dias de hoje melhorar a situação social do nosso povo. Muito pelo
contrário, pois de um lado, grande parte da população vive na pobreza e miséria,
enquanto de outro, uma minoria que detêm o poder político e econômico torna-se cada
vez mais rica.
Isto, para Freire (2003, p. 94), contribui para que:

121
Durkheim (1980).
159

Tanto mais pobre seja uma nação, mais baixos padrões de vida das classes
inferiores, maior será a pressão dos estratos superiores sobre elas, então
consideradas desprezíveis, inatamente inferiores, na forma de uma casta de
nenhum valor. As diferenças acentuadas no estilo de vida entre aquelas de
cima é as de baixo apresentam-se como psicologicamente necessárias.

Essa desigualdade, na qual Freire nas suas análises sabiamente faz a analogia a
uma condição de casta, é mascarada no discurso da igualdade e atinge de forma mais
crítica ainda as crianças Sateré-Mawé, o que tende a estabelecer sua condição como
algo predestinado ao fracasso e não como uma condição real de existência que
ultrapassa os limites da escola, pois está instituição possui mecanismos muito eficazes
para naturalização dos fatos e da condição das pessoas. Isso é o resultado vivo das
ideologias e políticas que fragmentam cada vez mais os grupos sociais e étnicos. Daí a
dificuldade de reconhecer a escola como um verdadeiro local de transformação social e
um espaço multicultural.
Desta maneira, duvidamos desta escola que está ai posta, desse local que mais
representa um campo de confusões e expectativas mal-dimensionadas, seja por parte de
professores e dirigentes, seja por parte das políticas públicas e, principalmente, pelo
descaso quanto a presença de grupos étnicos nas escolas “regulares”, especificamente
evidenciada em nossa pesquisa em Manaus, e pela total ausência de um planejamento
quanto a forma de atender esse grupo de crianças indígenas que aumenta a cada dia
mais nesses espaços, o que, segundo Lahire (2004, p. 19), acabam por ser culpabilizadas
por não acompanharem os ritmos da escola.

De certo modo, podemos dizer que os casos de “fracassos” escolares são casos
de solidão dos alunos no universo escolar: muito pouco daquilo que
interiorizaram através de coexistência familiar lhes possibilita enfrentar as regras
do jogo escolar (os tipos de orientação cognitiva, os tipos de comportamentos
próprios à escola).

A evidência desse descaso constitui um dos grandes pressupostos desta tese, pois
as escolas pesquisadas quase nada têm feito para mudar essa situação de total
descompromisso com as crianças indígenas, por ser, na visão das próprias escolas, um
problema que vai muito além das suas especificidades122. Diante dessa realidade,
entendemos que esses alunos acabam ficando propositalmente, sozinhos e alheios ao
universo escolar (LAHIRE, 2004).

122
Afirmando que lugar de índio é em escola indígena.
160

Buscamos analisar as questões levantadas nas duas escolas de forma articulada,


para que pudéssemos ter uma visão mais próxima do contexto escolar, mas que ao
mesmo tempo, não perdêssemos a totalidade das práticas que são vivenciadas e os
discursos que são impressos tantos nos documentos oficiais, quanto nas falas de alguns
agentes sociais das escolas. É importante destacar que os nomes utilizados para
representar esses agentes, são fictícios, pois os mesmos assim solicitaram durante a
pesquisa. No caso das instituições optamos em identificar as escolas como estadual ou
municipal.
Não procederemos a um processo de caracterização das duas escolas, pois
acreditamos que os dados que expusemos na introdução já são suficientes para uma
visualização da sua organização escolar. É importante destacar também, que nosso
objetivo é analisar os processos de “integração” das crianças Sateré-Mawé nas duas
instituições tendo como foco os (des)encontros entre as culturas infantis e as culturas
das escolas.
Neste sentido, identificar as crianças indígenas matriculadas nas duas escolas de
ensino regular na cidade de Manaus foi uma das dificuldades encontradas durante a
pesquisa nas instituições, pois ao irmos nessas escolas percebemos nas falas dos
agentes, um receio em nos passar informação sobre a presença dessas crianças. Nos
diversos discursos, os agentes da escola afirmam que essa identificação não é possível,
porque uma vez que as crianças ingressam na escola, elas se misturam as outras não
havendo diferenciação por parte do corpo docente e discente ao tratar com esses alunos,
o que foi desmistificado no processo da pesquisa.
Na escola estadual, encontramos um ambiente “hostil” a presença das 09
crianças Sateré-Mawé que lá acompanhamos. Podemos, a grosso modo, comparar a
organização do trabalho pedagógico a um “lugar obscuro”123 principalmente devido a
falta de organização e um grande descaso pelos espaços que na época da pesquisa
encontravam-se bastante deteriorados. Ao entrar na escola, um cartaz que se encontrava
na primeira parede que dá acesso a parte interna da instituição, imprimia como elemento
de boas vindas a seguinte frase “A sabedoria é o maior tesouro de um povo”.
Esta frase representou nosso primeiro contato com o ambiente escolar e nos
deixou curiosos acerca do trabalho realizado. Porém, no decorrer dos dias da pesquisa,
começamos a perceber que a mesma, tratava-se de uma alegoria no contexto escolar, um

123
Kramer (1992).
161

elemento decorativo que se destoava do restante das ações vivenciadas no dia-a-dia,


pois contrariando a ideia da sabedoria como um tesouro do povo, a escola concebe o
conhecimento como algo a ser seguido de forma linear e reproduzido literalmente dos
programas educacionais que são enviados pela secretaria de educação.
Neste sentido, a ausência, no primeiro momento da pesquisa em 2007, de um
Projeto Político Pedagógico e de um Regimento Interno, representou bem a dinâmica
autoritária e nada participativa que a escola adotava na sua organização. E que se
repetiu mesmo depois da elaboração desses documentos quando do nosso retorno a
escola em 2009. Pois os discursos a primeira vista, tendem a enfocar uma prática
participativa e dinâmica, mas logo, se contradizem em si mesmos e são comprovados
nas ações dos agentes presentes na conjuntura da escola.
Antes de começarmos a conversar com as crianças e os professores, a primeira
pessoa que se aproximou foi a bibliotecária da Escola124, que foi logo expondo sua visão
acerca da presença das crianças indígenas. Ela começou afirmando que é importante
receber essas crianças, pois faz parte da formação histórica do nosso povo a presença
dos indígenas. Porém, logo em seguida nos relatou a seguinte situação.

“Tem um menino de lá da comunidade indígena que é uma verdadeira ‘benção’.


Tudo que não presta ele faz. Bate nas crianças, desobedece aos professores, joga os
livros quando vai à biblioteca e no horário do recreio ninguém quer chegar perto dele.
Eu não aguento mais essa situação e ninguém faz nada só por que ele é índio. Acho que
esses índios deveriam estar em outro lugar, na mata, na aldeia, menos na escola
atrapalhando o nosso trabalho”. (Bibliotecária Margarida)

Após sua fala busquei argumentar mais sobre a presença das outras crianças
Sateré-Mawé e até de outras etnias que frequentavam a instituição, porém ela mais uma
vez fez um comentário bastante constrangedor sobre essas crianças. Falando em voz
alta, afirmou:

“Elas tem um mau comportamento e isso é muito negativo para a escola, pois como
não aprendem nada acabam deixando a situação dos professores ruim diante da

124
Que como todos os demais agentes da escola, receberão nomes fictícios.
162

secretaria que quer bons resultados. Sei lá o que eles sabem, as vezes nem entendo o
que falam” ( Bibliotecária Margarida).

Na fala da bibliotecária fica evidente a visão preconceituosa a respeito da


presença das crianças indígenas na escola, pois para ela deveria existir um espaço que
separasse o índio do branco, como se um fosse “contaminar” o outro, sendo preciso
colocá-los em locais totalmente isolados125. O que nos remonta a ideia advinda do
tempo da colonização onde os índios eram vistos como preguiçosos e deveriam se
integrar aos costumes da sociedade da época. Anos se passaram e o pensamento ainda
permanece muito presente entre muitas pessoas, como afirmado pela bibliotecária
No meio da conversa apareceu um funcionário da secretaria da escola, que ao
ouvir o que estávamos conversando reforçou no mesmo tom o que a bibliotecária já
havia afirmado. Ele disse que os professores não suportam quando entram nas salas e
encontram essas crianças nas suas turmas, segundo ele:

“Os professores nos dizem que é uma tortura trabalhar com crianças indígenas,
pois elas são preguiçosas e não aprendem quase nada o que eles ensinam, além de
terem comportamentos muito diferentes daqueles considerados normais para os
alunos”. (Auxiliar Administrativo Pedrinho)

A presença dessas crianças representa o diferente, aquele que se distancia de nós


e ao mesmo tempo nos confere a incapacidade de realizar um trabalho que se paute em
outras possibilidades senão as descritas nos manuais didáticos e nas velhas práticas
educativas e sociais de se comportar na sociedade. O funcionário deixa isso muito claro
em sua fala e ainda reforça que a presença das crianças é um problema para a escola,
não entendendo que talvez o grande problema seja para as crianças Sateré- Mawé.
Na visão de Bourdieu (In: NOGUEIRA e CATANI 1999, p. 175) entender essa
prática representada pelos discursos dos agentes da escola, toma lugar de manutenção
do viver urbano apresentando-se “...com referência ao espaço de disputa [...] que é
possível compreender as estratégias individuais ou coletivas, espontâneas ou
organizadas, que visam a conservar[...] ou até mesmo, transformar para conservar” o

125
Albert e Ramos (2002).
163

que vai permitir que os “estranhos” – neste caso as crianças Sateré-Mawé – possam
gradativamente ser “apagados” sutilmente do contexto da escola.
Nesta mesma linha de pensamento, a pedagoga da escola estadual tem um
discurso que muito se assemelha às falas dos funcionários. Ao ser indagada sobre a
presença das crianças Sateré-Mawé e sobre a possibilidade de socialização entre a
cultura escolar e a cultura que as crianças trazem de sua comunidade indígena, ela assim
nos afirmou:

“Acho mesmo que essas crianças estão sendo prejudicadas e prejudicando o


trabalho dos professores aqui na escola, pois eles não sabem como trabalhar com elas.
Em relação a Cultura é algo bem difícil, pois não dá para aproveitar o que essas
crianças trazem, pois os nossos conteúdos são bem diferentes”(Pedagoga Benta)

As palavras da pedagoga refletem uma formação pedagógica pautada em uma


visão de sociedade em que a diferença causa problemas e, portanto, não deve fazer parte
do cotidiano da escola. Em um tempo em que os movimentos sociais ganharam espaço e
o desafio em articular saberes é a grande sacada de uma prática pedagógica mais ligada
à realidade, constatamos que muitos dos profissionais das instituições concebem a
cultura da escola, como um elemento que, ao invés, de valorizar os saberes que estão
presentes no seio de seus agentes, deve transmitir conteúdos lineares e que fazem parte
de um corpo de verdades acabadas.
Contrapondo-se a essa visão o CIMI, ajuda-nos a refletir sobre essas posturas
ainda tão fortemente presentes no âmbito escolar. Pois:

A imposição da educação escolar, atendendo aos interesses dominantes de


preparação do indivíduo para viver numa sociedade baseada na acumulação
de bens, na competição e no individualismo, se choca diretamente com os
processos pedagógicos próprios dos povos indígenas, os quais visam
fortalecer diferentes formas de organização social, baseadas na
reciprocidade. (OUTROS 500, 2001, p. 182).

Neste sentido, também observamos outros tipos de discursos. As conversas que


tivemos com a pedagoga da escola municipal, foram no sentido contrário ao exposto
anteriormente. Percebemos, inclusive, uma grande vontade em poder contribuir para
que as crianças possam interagir no ambiente escolar. Porém ela nos relatou que é
extremamente difícil, pois a grande maioria dos trabalhadores da escola não aceita um
164

convívio em que as diferenças possam fazer parte da dinâmica escolar e produzir nela
mudanças na forma de reorganizar tanto os conteúdos, quanto as relações existentes na
instituição. Ela assim nos afirmou:

“As crianças indígenas fazem parte de outra cultura e cultura é algo bem
complexo, ampla, mas que eu vejo de forma muito importante para educação, pois é o
que você traz de si, da tua geração, são valores que passam pra você e que você coloca
em prática. É isso que vejo as crianças indígenas na escola, trazendo para nós outras
formas de ver o mundo. No geral, são valores que elas trazem das suas origens,
gerações, regiões. Infelizmente quase ninguém entende esse lado e acabam ignorando
essas crianças” (Pedagoga Emília)

Essa contradição presente nos discursos e nas práticas que ocorrem no espaço
escolar é um elemento que permeia outras práticas de muitas escolas nos dias de hoje
em relação à presença das crianças indígenas126. Essa contradição, que se dá em favor
da homogeneidade e da “preocupação” que a escola tem com as normas, os conteúdos e
a disciplina, acaba sendo justificada e considerada uma lógica naturalizadora mostrando
que sua ação vai à busca por equidade, embora sua “dita” existência caracteriza o
oposto do discurso da justiça e da igualdade e se torna um dos primeiros exemplos da
injusta que se perpetua nesse espaço.
A finalidade dessa ausência de culturas apresenta-se muito evidente nas escolas
pesquisadas, pois as mesmas não trabalham com os conhecimentos que os alunos, sejam
eles indígenas ou não indígenas, trazem das experiências cotidianas vividas nas suas
realidades. As escolas não demonstram nenhuma preocupação com esses saberes, o que
reforça muito mais os desencontros.
Essa concepção preconceituosa que adentrou as escolas, não se faz presente
somente nas mesmas. Ela ganhou maior dimensão no decorrer do tempo moderno e
atualmente, assume uma das formas mais difundidas em que a cultura é uma construção
de identidade, de valores e costumes do povo, numa visão homogênea e se propaga
através dos jornais, revistas, filmes e demais elementos da mídia, sendo reproduzida
pela escola.
Ao trazer para sua discussão essas questões, afirma Hall (2005, p.42), que:

126
Essas questões também foram observadas em outros trabalhos como o de Freire (2005), Nascimento
(2005).
165

O objetivo do ‘poder disciplinar’ consiste em manter ‘as vidas, as atividades,


o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo’, assim com sua saúde
física e moral, suas práticas sexuais e sua família, sob estrito controle e
disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento
especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas
disciplinas das ciências sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir
‘um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil’.

Ao não se adaptar a essa forma de “corpo dócil”127 as crianças Sateré-Mawé e


muitas outras crianças, são concebidas pela escola como incapazes, como aquelas que
não aprendem, não progridem, pois não seguem as regras postas pela cultura escolar, no
seu mais puro sentido de didatização do conhecimento (FORQUIN, 1997). Assim é que
os discursos ganham uma força mobilizadora no espaço da escola que vai
gradativamente invisibilizando as crianças indígenas impondo-lhes a condição de se
enquadrarem ou de serem “banidas” da escola.
Para a diretora e a merendeira, de uma das escolas, esse modelo pedagógico
atrelado ao conceito de cultura compreendido como formador da identidade no sentido
homogeneizador, é o reflexo daquilo que de melhor existe na produção humana através
da leitura, da arte, da história, da ciência natural, ou seja, dos conteúdos escolares. Logo
as crianças Sateré-Mawé não são vistas como agentes sociais capazes de acompanhar o
ritmo da escola. Pois a cultura é para aqueles que possuem conhecimento, coisa que as
crianças não possuem segundo as falas de Maria e Joana:

O importante é ter conhecimentos, por exemplo, um colega seu viaja, pra outro estado,
se alguém perguntar “qual a cultura do seu estado?”, a pessoa se tiver conhecimento
vai falar do nosso boi bumbá. Pelo que estou entendo é assim, é saber qual o folclore
da tua cidade. Já essas crianças indígenas não sabem nada da cidade vão falar de
que?Por isso a pessoa tem que influência de ler e passa pra outros.... (Merendeira
Maria).

Quando se fala de cultura você está abrangendo vários setores, primeiro aqueles
hábitos que as pessoas já trazem da família como obedecer, saber se comportar e
outros, mas o mais importante mesmo é o conhecimento, o aprendizado, o estudo que
aquela pessoa tem pra poder trabalhar, exercer uma função, ou um trabalho dentro de

127
Barros (1999).
166

uma sala de aula ou em qualquer setor, empregando aquilo que aprendeu nos livros,
na escola pois foi lá que ela estudou muitos anos, passou muito tempo na faculdade é
claro, então isso é cultura, o conhecimento. Por isso acho que as crianças indígenas
vão ter dificuldade de aprender, por que os pais delas não sabem o conhecimento que
importa para a sociedade (Diretora Joana).

Esse corpo de visões de mundo ou de compreensões expressos nos discursos da


diretora, das pedagogas e dos outros profissionais que participaram da pesquisa,
objetivam-se em práticas sociais e pedagógicas preconceituosas e seletivas, que tendem
a excluir as crianças Sateré-Mawé das possibilidades de terem uma educação escolar
que lhes propiciem perceber melhor esse espaço de fronteiras na qual vivem. Muito pelo
contrário a escola acaba sendo o grande veículo de perpetuação do preconceito e do
apagamento de suas tradições e modos de viver a infância preservando as dimensões
étnicas de seu povo.
A prática desses agentes que atuam dentro da escola não está dissociada das
suas vivencias sociais, ou seja, ainda prevalece a ideia de que o indígena tem que estar
isolado na mata e continuar vivendo como o “primitivo do primitivo”128. Porém, outra
contradição emerge fortemente no âmbito das duas instituições pesquisadas, pois
quando analisamos os Documentos que caracterizam o “Currículo Oficial” ou como nos
afirma Forquin (1997) a Cultura da Escola, um grande paradoxo se apresenta.
Nestes documentos, a educação deve ocorrer nas diversas relações sociais, nos
diferentes espaços escolares (cantina, cozinha, sala de aula, recepção, biblioteca,
recheio...) e, se articular a vida interna e externa da escola que será capaz de reelaborar
saberes e práticas sociais no intuito de compreender as diferenças culturais129. O
conceito de cultura também possui uma dinâmica de relações contínuas que aponta para
a inter e a multiculturalidade, valorizando as práticas sociais comunitárias, dando-lhes
uma coloração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral da sociedade e das
diversas práticas sociais do povo amazônico.
O Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual (2008) visa formar e
desenvolver um aluno crítico e reflexivo e concebe educação e cultura como elementos
fundamentais para se conseguir tal objetivo. Assim está expresso nos objetivos
específicos do projeto:
128
Andrello (2006).
129
PPPE/Escola Estadual (2008).
167

“Possibilitar ao aluno a construção do conhecimento e o desenvolvimento de


habilidades que o torne capaz de integrar-se na sociedade como sujeito participante,
crítico e criativo”.
“Contribuir para o aprimoramento do educando como pessoa humana, através do
desenvolvimento da autonomia intelectual, pensamento crítico e ético”(p. 05).

Percebemos que a cultura enquanto elemento do cotidiano da escola aponta para


duas vertentes. O conceito de cultura nas práticas educativas é entendido como
construção de identidade para a formação de um indivíduo que faça parte da sociedade
urbano-burguesa atual. Já nos documentos a “A cultura perpassa todas as ações do
cotidiano escolar, seja na influência sobre os seus ritos ou sobre a sua linguagem, seja
na determinação das suas formas de organização e de gestão, seja na constituição dos
sistemas curriculares” (SILVA, 2006, p.204. In: PPPE, 2008, p. 08).
Ela é transmitida nas diversas relações que ocorrem dentro e fora da escola por
meios da ação pedagógica e das ações entre os agentes escolares que vão constituindo
uma dinâmica própria da “cultura escolar”. Este discurso foi observado não só no PPPE,
como também nos planos dos professores, nos projetos da escola e até em muitos dos
livros didáticos. No entanto, a “cultura da escola”, ou seja, aquela que dá vida própria
aos discursos instituídos, vai no sentido contrário eliminando essas dinâmicas e
objetivando a reprodução dos conteúdos escolares.
É importante destacar que quando trouxemos para discussão o PPPE e os demais
documentos, que segundo a direção foram elaborados no coletivo escolar, os discursos
ganham outras formas, parecem travestidos de um poder simbólico didatizante que gera
uma conduta a seguir o que “está-dito” e a afirmar o sentido posto nos documentos
omitindo as práticas cotidianas como discursos “não-ditos”130. “Nesse sentido, a
cidadania, como sínteses de direitos e deveres, constitui-se fundamento da sociedade
democrática. [...] É preciso que cada indivíduo pratique democracia” (PARO, 2001,
p.10). Assim a concepção de cidadania é contraditória em todos os sentidos, pois, tende
ao fortalecimento da desigualdade e da exclusão social. Isso, para Foucault (2007. p.
28), representa que:

Todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um ‘já-dito’; e que


este ‘já-dito’ não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já

130
Foucault (2007).
168

escrito, mas um ‘jamais-dito’, um discurso sem corpo, uma voz tão


silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu
próprio rastro [...] O discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da
presença repressiva do que ele diz; e esse não-dito seria um vazio minado,
do interior, tudo que se diz.

Embora o discurso dos profissionais, em um momento, esteja de acordo com o


que está dito no projeto político-pedagógico, a compreensão de cidadania ao mesmo
tempo, remete-se ao conceito de sua ausência vivenciado em suas práticas. Na realidade
das escolas pesquisadas, as crianças Sateré-Mawé são concebidas como estranhas, como
“peças quebradas” de uma engrenagem que não funciona, pois, a cidadania na escola
não as enxerga ou quando procura fazê-la predomina o preconceito e a discriminação.
Isso se fortalece mais uma vez na fala da diretora e da pedagoga da escola estadual.

“Primeiramente um aluno tem que ter uma aprendizagem de qualidade, para que ele
saia preparado não só para o mercado de trabalho, mas pra qualquer situação que ele
venha enfrentar no dia-a-dia da vida dele, o aluno crítico e participativo que saiba
exercer no momento certo, na hora certa a cidadania. Mas as crianças indígenas vivem
tão diferentes de nós que acho que nem sabem o que é cidadania e muito menos vão ter
boas oportunidades de trabalho” (Diretora Joana).

“Olha só, na verdade eu penso que as crianças demoram muito para responder aos
objetivo do ensino. A escola visa formar cidadãos que integrem a sociedade atual e os
índios não tem condições de fazer isto. Acho mesmo que estão perdendo tempo aqui na
escola. Sei que o PPP fala de diversidade, dialogo intercultural, mas acho que na
prática nada disso funciona não passa de um discurso que está lá no papel” (Pedagoga
Benta).

A escola reforça essa concepção de que o aluno deva se preocupar com o


trabalho e esses valores são difundidos desde a gestão até a prática dos professores. A
cidadania fica apenas nos documentos, nas retóricas e nas ideias dispersas pelo vazio do
discurso instituído. Não basta que a cultura escolar, expressa pelos documentos, afirme
que vivemos num país democrático e que cabe somente ao indivíduo decidir ser cidadão
ou não. Assim para Dallari (1998, p.p. 34-35):
169

A experiência tem demonstrado que adianta muito pouco a lei dizer que todos
são iguais e proibir que umas pessoas sejam tratadas como inferiores às outras se
não for garantida a igualdade de oportunidades para todos desde o nascimento.
Com efeito, quando uns nascem ricos e outros pobres, as oportunidades para uns
e outros são muito diferentes e por isso as pessoas se tornam socialmente
diferentes, desprezando-se a igualdade natural.

Não é possível analisar a escola sem levar em consideração as condições e


características sociais dos alunos. As diversas ações culturais presentes na escola
orientam ou quando não, conduzem os alunos que acabam entrando em conflito com
sua própria cultura, “as desordens e as discordâncias que o afetam enquanto sistema das
relações que une as competências ou as atitudes das diferentes categorias de estudantes
com suas características sociais e escolares” (BOURDIEU, 2002, p.120).
E onde estão a cultura e diferença expressa pelo PPPE? Que coerências são
construídas nos discursos que permanecem no ideal da escola para todos e que se perde
enquanto prática social? As crianças Sateré-Mawé são vistas como o que dentro deste
projeto de escola e sociedade que se contradiz em seus discursos?
O projeto político-pedagógico deve ser entendido como um documento que se
concretiza na fusão entre teoria e prática, sendo a escola o seu lócus de criação, ação e
avaliação. Logo poderia se consolidar como um grande instrumento de autonomia para
os agentes que estão envolvidos no trabalho escolar, o que contribuiria para o trabalho
com as crianças indígenas. Segundo Vasconcellos (2007, p.175) “Temos afirmado [...]
que o Projeto Político-Pedagógico é um caminho de consolidação da autonomia da
escola”. Mas, nos discursos que emergiram da realidade das escolas pesquisadas, essa
autonomia ainda está muito longe de se efetivar e ainda não representa uma união de
forças capaz de dar outro sentido ao fazer pedagógico, o que no caso das crianças
Sateré-Mawé é mais intenso pela via da invisibilidade.
Assim, para Santos (2005, p. 30):

Nesta forma de conhecimento a ignorância é o colonialismo e o


colonialismo é a concepção do outro como objecto e consequentemente o
não reconhecimento do outro como sujeito. [...] é difícil imaginar uma forma
de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade. No entanto
tal dificuldade é um desafio que deve ser enfrentado.

Porém, o enfrentamento desse desafio ainda encontra fortes barreiras, como


ouvimos mais uma vez nas falas da diretora e da pedagoga, que expressam a forma
170

contraditória em se conceber uma educação multicultural e como as crianças Sateré-


Mawé estão completamente alijadas do processo escolar.

“Olha, quando se fala de autonomia pra mim, seria uma liberdade pra você exercer
qualquer coisa, mas quando se fala em autonomia de uma escola, essa palavra não
existe, se existe é entre aspas. Por que tudo que a escola faz você tem que prestar
contas pra as autoridades maiores, com a secretaria, com a coordenadoria então você
não pode fazer nada sozinho nem tomar decisão sozinha se ela não for avaliada, até a
vinda dessas crianças indígenas é algo determinado.” (Diretora Joana).

“Não vejo por esse lado, porque tudo você depende de uma autorização de um
superior, né? propriamente dita, a gente tem alguma, mas não própria, tudo você tem
que ter o aval do superior”( Pedagoga Benta).

A escola, que deveria ser inspirada na frase que abre suas portas, tida como um
espaço democrático de discussão e difusão de saberes, não possui autonomia e muito
menos sensibilidade para o trato com a educação das crianças Sateré-Mawé. Uma das
razões para isso parece ser o fato de que para a escola, mais do que efetivar os
princípios do PPPE, o grande desafio é cumprir as metas que são impostas pelos
programas advindos do sistema de ensino, o que ignora completamente a presença das
crianças indígenas no cenário das escolas regulares.

Neste sentido, para Dubet (1996, p. 32):

O fato de que a escola democrática de massa tenha construído as condições


formais da igualdade meritocrática das oportunidades, sem, entretanto, escapar
da influência das desigualdades sociais, engendrou grandes dificuldades
pedagógicas e certa perda de confiança no papel democrático da escola.

Logo, os documentos das escolas, deveriam nortear as práticas pedagógicas por


uma perspectiva interdisciplinar e multicultural. Mas falta clareza de conhecimentos
sobre a ação escolar que se paute no diálogo de saberes. Isto se agrava na forma de
entender o sentido do trabalho em prol da diferença, uma vez que não há participação,
de fato, na construção dos projetos e das ações por parte de todos os agentes da escola.
É preciso que se pense uma escola que seja capaz de romper com os ditames,
historicamente imposto, pelo sistema de poder que visam a homogeneidade. A grande
171

via proposta por Santos (2005, p. 30), é o rompimento “do monoculturalismo para o
multiculturalismo”, pois “Daí que todo o conhecimento-emancipação tenha uma
vocação multicultural”. O que nas duas escolas é algo completamente ausente,
principalmente no trato com as crianças Sateré-Mawé.

5.2 Os professores e as crianças Sateré-Mawé: uma cultura de


invisibilidade

“Cada indivíduo se aproxima de centenas, e mesmo de milhares de outros, em certos


pontos, e distingue-se deles em outros pontos, no final das contas, cada individuo é
indissociavelmente o produto social de uma infinidade de experiências socializadoras.”

(LAHIRE, 2006, p. 166)

Diferente dos estudantes indígenas que se encontram na base, ou seja, nas aldeias
fora do centro urbano, onde suas línguas e tradições são mantidas e vivenciadas
cotidianamente o ensino é proferido por professores indígenas; no contexto urbano, a
educação escolar é realizada nas escolas regulares, por professores não-indígenas, nas
redes estadual e municipal de ensino.

Esse processo educacional que segue o modelo da “escola dos brancos” tem,
certamente, alterado o modo de sobrevivência e interferido diretamente em muitas
questões culturais que fazem parte do universo desses povos gerando processos de
exclusão. Mesmo diante da resolução nº 11/2001, do Conselho Estadual de Educação,
que traz garantias aos indígenas, independentemente de onde vivam, ao respeito a sua
língua, conhecimentos e tradições próprias, nas escolas essa lei passa completamente
despercebida. Assim estabelece a lei, no seu artigo 14:

O Sistema Estadual de Educação ou o Sistema Municipal de Educação,


quando solicitado, assegurará a Educação Básica à população indígena
desaldeada, garantindo as mesmas, iguais direitos à localização em terras
indígenas. (AMAZONAS, 2001, p. 32)

O contexto pesquisado nas duas escolas públicas na cidade de Manaus revela


que há muita discriminação e preconceito dentro e fora do âmbito escolar. Atribuindo-se
a este fato os estigmas que historicamente, ainda encontram-se enraizados, no
pensamento hegemônico dos não-indígenas, o que fica muito evidente nas falas dos
professores e na forma como os mesmo tratam as crianças Sateré-Mawé.
172

“Eu tenho na minha sala duas crianças Sateré-Mawé, elas até sabem ler um pouco
mais são muito preguiçosas” (Professora Fátima).

“O meu aluno tem até a letra boa, mas quando ta com preguiça, meu Deus do céu, não
faz nada, mas nada mesmo, acho que isso é coisa deles mesmos, esses índios devem ser
todos assim” ( Professora Rosa)

“Acho que a educação que estão tendo lá na comunidade está atrapalhando o


desempenho delas aqui na escola, parece que elas tem mais interesse lá, pois antes era
mais fácil elas aprenderem as lições que eu passava, hoje elas não trazem mais os
trabalhos de casa feitos” ( Professora Margarida)

É neste cenário de discriminação constante, evidenciado nas falas das


professoras, que as relações sociais atingem as crianças Sateré-Mawé, provocando nelas
uma reação de invisibilidade, ou seja, elas preferem ficar solitárias em seus “cantinhos”
do que serem apontadas pelos professores. Quase nunca participam das atividades em
grupo e preferem sentar na última fileira da sala.
Deste modo, estas crianças, enquadradas no ofício de aluno, tornam-se incapazes
de reagir diante das inúmeras situações e problemas que surgem no cotidiano escolar, o
que, de maneira direta, também interfere na forma delas se relacionarem com a
sociedade urbana circundante. Estas situações acabam sendo fundamentais para a baixa
motivação das crianças em irem para as escolas, pois o ponto de partida para
aprendizagem e as experiências vividas, são sempre direcionadas ao cumprimento de
tarefas que em nada se relacionam com a cultura do seu povo131.
A desigualdade estrutural no acesso ao universo escolar impõe a urgência no
enfrentamento dos desafios inerentes a uma sociedade com altos índices de crianças fora
da escola, sejam pertencentes às populações urbanas e rurais, sejam originadas das
comunidades tradicionais indígenas - considerando o ensino diferenciado proposto pela
LDB. Pensando na escola como um espaço multicultural, que se contraponha ao
discurso das professoras, poderíamos, pensar a ação da escola como nos afirma Yúdice
(2004, p. 64), como uma alternativa de melhoria desse preconceito instituído.

Compreender a mobilidade das identidades e seu caráter múltiplo, híbrido e


transitório implica promover práticas discursivas que contemplem uma
linguagem também híbrida, valendo-se de estratégias discursivas que

131
Dalmolin (2004).
173

possam ser ressignificadas em sínteses culturais criativas, singulares, locais,


móveis e provisórias.
\

No entanto, enquanto a escola diferenciada indígena não estiver concretizada


para esses grupos que moram nas zonas urbanas, é importante que se pense em
alternativas para o processo de escolarização das crianças, ou, num amplo movimento
de discussão nos espaços da escola regular, possa-se trabalhar com a heterogeneidade
desses grupos étnicos presentes nas inúmeras escolas da cidade, visando minimizar
situações de segregação, que geram uma condição de inferioridade aos alunos indígenas
frente à supervalorização do capital cultural escolar imposto.
Mas, contrariando a defesa que possamos fazer de que a escola deva repensar
suas práticas educativas e sua visão de mundo, o que verificamos nas duas escolas
pesquisadas é a persistência do processo de reprodução dos conteúdos que
desqualificam as culturas das crianças Sateré-Mawé e intensifica o pensamento
“integracionista e de aculturação”132 em que os povos indígenas devem perder sua
dimensão étnica e se adaptarem completamente aos valores da sociedade urbana.
A escola neste contexto, passa a ser o lugar dos (des)encontros, onde persiste a
visão etnocêntrica de que o saber didatizado, presente nos livros didáticos e nas
propostas curriculares, devem ser seguidos plenamente para que a escola alcance o
patamar de excelência para o qual foi projetada. Isso em pleno século XXI, parece o
rascunho de um modelo de outros séculos, mas se efetiva como prática legítima e
legitimada pelos professores na escola, reforçada pelos seus discursos.

“ Elas não sabem nada, eu acho que confundem a nossa escrita com a língua delas e
isso piorou desde que começaram a ter essas aulas na comunidade, acho mesmo é que
elas deveriam é ficar por lá” (Professora Iris).
“Olhe só o jeito que escrevem, misturam tudo, eu não consigo entender nada. Acho que
ora escrevem em português ora em Sateré. O que eu posso fazer? Para mim nada disso
tem sentido” (Professora Clara).
“Já vieram várias pessoas fazer pesquisa aqui e também umas técnicas da secretaria de
educação falar de educação multicultural, de pluralidade, de diversidade, mas eu quero
ver é na prática o que esse povo ia fazer com essas crianças indígenas que não
aprendem e nem sabem nada. Falar é fácil” (Professora Diva)

132
Encontro de Educação Indígena (1990).
174

O pensamento e o sentimento dos professores em relação as crianças Sateré-


Mawé, está muito ligado a uma visão preconceituosa e de distanciamento. O discurso
pedagógico assume essa postura quando enquadra essas crianças em uma dimensão de
inferioridade. Assim passa a inferir e orientar diretamente a aprendizagem segundo este
conceito de exclusão. Pois os conhecimentos não visam nenhuma troca cultural e muito
menos procuram incluir temas ou questões que envolvam a cultura do povo Sateré-
Mawé durante o processo educativo.
Na história das sociedades que deram origem à escola, ao mesmo tempo em que
a escola produz a infância na sua especificidade, vice-versa, a infância, com a sua
especificidade, requer a escola como espaço social distinto e separado dos espaços
sociais de vida dos adultos133. Em função da estreita relação entre escola e infância,
atestada no estudo do processo de escolarização de diferentes sociedades, torna-se
fundamental procurar compreender como vem se constituindo essa relação em um
grupo indígena que tem se caracterizado por implementar o acesso à escola de forma
ampla e muito incisiva. Compreender essa relação significa, no entanto, focalizar muito
mais que a escola em si; significa debruçar-se sobre o conjunto das práticas culturais do
qual a escola passa a fazer parte e indagar sobre as diferentes articulações que nele se
revelam.
Neste sentido, a escolarização obrigatória mesmo sendo um fenômeno recente
em nossa sociedade, ainda está presa a lógica da escola “única”, a instituição educativa
em que os conhecimentos por ela transmitidos são os legítimos. Por isso, deve ser
analisada como uma estratégia de poder que visa legitimar um tipo de conhecimento,
considerado oficial, em detrimento de outros, os populares, desqualificando assim
outras formas de cultura e de estilos de vida. A escola tem sido a instituição social
central para veicular, de forma homogênea, a cultura considerada “legítima” e para
desconsiderar as culturas “não legítimas”, isto é, não-hegemônicas (Lahire, 2003).
Logo, é preciso, como afirma Nascimento (2006, p. 06) pensar um processo pedagógico
que valorize os elementos da cultura dos povos indígenas. Assim para a autora:

Na perspectiva da pedagogia indígena, a criança aprende experimentando,


vivendo o dia a dia da aldeia e, acima de tudo, acompanhando a vida dos
mais velhos, imitando, criando, inventando, sendo que o ambiente familiar,
composto pelo grupo de parentesco, oferece a liberdade e a autonomia

133
Faria (1999).
175

necessárias para esse experimentar e criar infantil. Essa liberdade engloba o


“acesso aos diferentes lugares e às diferentes pessoas, às várias atividades
domésticas, educacionais e rituais, enfim, a quase tudo o que acontece à sua
volta” (NUNES, 2002, p. 71). As crianças, nos primeiros anos de sua vida,
“vivem uma permissividade quase sem limites, são onipresentes na aldeia e
nas áreas circundantes, e punições quase não acontecem” (idem, p. 72). Essa
“aparente desordem” ou, “ordem vivida de outro modo, imersa num espírito
lúdico, espontâneo e sem compromisso” é que estaria “no cerne de todo o
processo educacional” indígena (idem, p. 72). Liberdade, permissividade e
autonomia, experimentando e participando da realidade concreta do dia-a-
dia, seus conflitos e contradições, estão perfeitamente articuladas com
aprendizagem e responsabilidades na vida, que nas comunidades indígenas
iniciam muito cedo.

Nesta perspectiva, contrariando esse modelo da pedagogia indígena, a


escolarização imposta pelas escolas pesquisadas também pode ser analisada como um
processo de “colonização” pelo qual passam, as crianças Sateré-Mawé e que no bojo
dessa formação, podemos caracterizar como uma grande cultura de invisibilidade, que
em um processo de apagamento das formas de conceber o mundo trazidos pelas
crianças do cotidiano da comunidade, contribui para que o sentimento de pertença ao
seu grupo étnico apareça aos olhos das crianças como uma condição vergonhosa da qual
dever ser “libertadas”.
Para que isso não ocorra, é preciso tirar as crianças da condição de objetos para
deixá-las advir como agentes de sua própria ação e discurso. Significa afirmar que elas
são competentes, capazes de organizar suas vidas e de participar – com suas diferentes
linguagens – nas tomadas de decisões acerca dos temas que lhe dizem respeito.
Acreditamos que isso está muito distante de ocorrem nas escolas pesquisadas e que se
caracteriza fortemente pela ação exercida pela Violência Simbólica.

5.3 A escola dos “brancos”: um construto da Violência Simbólica

“A escola propõe um modelo específico de socialização baseado naquilo que


denominamos até o presente momento de: “A” cultura, “A grande cultura” ou a “alta
cultura”. A alta cultura supõe a existência de uma baixa cultura, isto é, uma cultura
popular ou de massas.”

(BARBOSA, 2007, p. 1073)

A partir das constatações advindas das discussões que efetivamos nos itens
anteriores que compõem este capítulo, buscaremos trazer a tona, a partir da visão dos
agentes da escola e de seus documentos e principalmente pela fala das crianças Sateré-
176

Mawé, a forte presença que a Violência Simbólica tem no espaço escolar e que permeia
as relações e as práticas pedagógicas vivenciadas nas duas escolas.
Essas incursões foram movidas pela possibilidade de conhecer os processos
pedagógicos que foram vivenciados nas duas escolas e como se deu a inserção das
crianças Sateré-Mawé, tendo como foco uma imersão que nos possibilitou compreender
as questões que são produzidas no seio das escolas frente a vida das crianças e de suas
culturas infantis indígenas.
Neste sentido, as práticas pedagógicas vivenciadas foram de encontro a tese de
que a infância se constitui como produção cultural. Contrariamente a essa afirmação, a
infância do grupo de crianças pesquisado, constitui-se, na realidade das escolas, como
reprodução do modelo hegemônico. Pois “[...] pensar as crianças sem tomar em
consideração as situações da vida real é despir de significado tanto as crianças como as
suas acções” (GRAUE & WALSH, 2003, p. 25). É sob esse sentido que a escola
trabalha para “despir” o universo cotidiano dos Sateré-Mawé.
Desta maneira, à medida que fomos dialogando com diversas fontes de
leituras134 e as vozes e imagens135 das crianças compuseram o cenário da pesquisa, o
contexto das discussões foi ganhando um contorno cada vez mais aprofundado e uma
série de desafios foram se pondo no sentido de entender o que fazer com a grande
quantidade de “dados”136 acumulados no processo de ida as escolas. As reflexões de
Miceli (2004, p. LX) ao citar Bourdieu, foram fundamentais no processo de tomada de
compreensão e, logo, decisão.

Os discursos, os ritos e as doutrinas constituem não apenas modalidades


simbólicas de transfiguração da realidade social, mas sobretudo ordenam,
classificam, sistematizam e representam o mundo natural e social em bases
objetivas e nem por isso menos arbitrarias.

Efetivamente, compreender as implicações e efeitos da Violência Simbólica na


infância das crianças Sateré-Mawé, pela ação escolar, deve considerar os distintos
mecanismos formais e informais cujas capacidades geradoras são ilimitadas e operam

134
No sentido interdisciplinar, tendo o campo dos “Novos Estudos Sociais da Infância” como eixo
norteador das investigações e análises.
135
Foram feitas inúmeras atividade com as crianças e tiradas uma grande quantidade de fotografias das
crianças em suas atividades corriqueiras.
136
Como se trata de uma pesquisa onde as falas das crianças são o grande referencial de aproximação
com a realidade, utilizaremos essa expressão sempre entre aspas, por entendermos que o nosso objeto de
pesquisa na verdade é um sujeito social.
177

diretamente na invisibilização dos elementos da cultura desse povo indígena.


Parafraseando Bourdieu, passamos a evidenciar que o uso que se faz dos processos
educacionais depende diretamente da "distribuição" do capital cultural e, por
conseguinte, do acesso à aquisição desse capital, o que transforma o grupo das crianças
Sateré-Mawé, potencialmente inerte no contexto da escola.
Isso quer dizer que, a imposição do processo de ajuste e modelação através dos
sistemas simbólicos, dá-se de um modo aparentemente sutil, mas bastante perceptível,
em que o capital simbólico do grupo é desclassificado e reclassificado segundo os
parâmetros do discurso e da ideologia da cultura escolar, o que com as crianças
indígenas se manifesta de maneira exacerbadamente forte. Pois “Uma vez
descontextualizado, todo o conhecimento é potencialmente absoluto” (SANTOS, 2005,
p. 31).
Neste sentido, para Bourdieu (1999), pensar essa relação arbitrária estabelecida
pela escola quanto a não utilização da linguagem e da cultura tradicional do povo
Sateré-Mawé, representa o grande desafio para compreender essa ação escolar que,
toma por base, a invisibilização dos processos próprios de aprendizagem desse povo
indígena e os jeitos das crianças em expressar os saberes advindos dos seus cotidianos,
tornando-os como “ilegítimos”.
Assim, para Miceli (2004, p. XXVI):

A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo


ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária na medida em que a
estrutura e as funções desta cultura não podem ser deduzidas de qualquer
princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por
nenhuma espécie de relação interna com a ‘natureza das coisas’ ou com uma
‘natureza humana’.

É a partir dessa “teia de relações”137, que foram sendo reveladas e desveladas,


em muitos sentidos, a força que a Violência Simbólica tem na inserção das crianças
Sateré-Mawé e o imponente papel massificador das relações sociais de poder que a
escola imprimi no processo de (des)socialização da infância desse grupo, decantado em
muitas laudas da legislação como sujeitos de direitos, mas objetificados nas práticas
sociais e escolares destinadas a elas.

137
“[...]campo de lutas como sistema de relações objetivas no qual as posições e as tomadas de posição se
definem relacionalmente é que domina ainda as lutas que visam a transformá-lo” (BOURDIEU,1999, p.
175).
178

Para Miceli (Idem. p.LIII), “Bourdieu leva às ultimas conseqüências a imagem


da sociedade como um campo de batalha operando com base na força e no sentido, ou
melhor, dando ênfase à força dos sentidos”. Assim, o poder simbólico que se cristaliza
através dos usos da linguagem, serve para reforçar as formas de poder. Pois este campo
é o palco em que se desenrolam as inúmeras relações que constituem a estrutura social e
desconstituem outras, as diferentes. Logo, as crianças Sateré-Mawé já entram nesse
“campo de batalha” como perdedoras, pois a escola não as enxerga como agentes
capazes de produzir um conhecimento que possa contribuir na efetivação da cultura da
escola.
Antes de entrarmos na discussão e análise propriamente advindas do processo da
pesquisa, buscaremos fundamentar alguns dos conceitos que iluminaram nossas
análises, assumindo o risco de não dar conta de tal tarefa, uma vez que o vasto
referencial produzido por Bourdieu, não se aplica de uma única forma ou em um único
contexto. O que objetivamos é categorizar algumas de suas reflexões, que aqui faremos
nossas, e que serviram de base teórico-metodológica para nossas análises.
Assim, o tema da violência é bastante recorrente na literatura, tendo por muito
tempo tido nas ciências da saúde e mais especificamente na psicologia, seus marcos
balizadores. Porém, o conceito de Violência Simbólica, que utilizamos nesta análise, é
elaborado por Bourdieu para descrever o processo pelo qual a classe que domina
econômica e socialmente se impõe e reproduz seus mecanismos de ação, percepção e
julgamento aos dominados.
O autor parte do princípio de que a cultura é arbitrária, uma vez que não se assenta
numa única realidade, que por sua vez é também arbitrária. Assim, o sistema simbólico
de uma determinada cultura é uma construção social e sua manutenção é fundamental
para a perpetuação de uma determinada sociedade – pelas de suas frações de classes –
através da interiorização da cultura hegemônica e homogênea por todos os membros da
mesma. O que ele vai denominar de “Arbitrário Cultural”138.
A Violência Simbólica se expressa na imposição "legítima" e dissimulada, com a
interiorização da cultura dominante, reproduzindo as diversas relações do mundo. O
dominado não se opõe ao seu dominador, já que não se percebe como vítima desse
processo, ao contrário, o oprimido139 considera sua situação natural e inevitável. Os

138
Bourdieu, 1999.
179

moldes dessa violência se caracterizam não só na ação mental, mas também agem
fortemente na relação corporal determinada pela escola.

A violência simbólica como constrangimento pelo corpo. Para que a


dominação simbólica funcione é necessário que os dominados tenham
incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes os apreendem;
que a submissão não seja um ato de consciência susceptível de ser
compreendido na lógica do constrangimento ou na lógica do consentimento
(BOURDIEU, 2007, p. 231).

Logo, a educação escolar deve estar no centro dessa discussão. Teoricamente,


através da educação o indivíduo poderia tornar-se capaz de distinguir quando está sendo
vítima da Violência Simbólica e constituir-se como um agente social que vá contra a sua
legitimação. Devido à desigualdade da realidade presente, entre outros fatores, os pais
na comunidade Sateré-Mawé são influenciados pelos condicionantes da sociedade
urbana, a acreditarem que a escola representa a melhor possibilidade de suas crianças
conquistarem mais espaço na sociedade dos “brancos”.
Este fator tem reduzindo significativamente a idade para as crianças ingressarem
na escola, situação que foi evidenciada na pesquisa pela presença de 03 crianças Sateré-
Mawé entre 04 e 05 anos, que já estão freqüentando as escolas de educação infantil e,
que precocemente, entram em contato com todo um arsenal ideológico e cultural, que as
distancia da sua condição étnica, conferindo a elas uma condição de inferioridade.
A escola, neste contexto, configura-se como a principal instituição educacional
da sociedade moderna e lamentavelmente não vem educando para formar cidadãos140 e
sim para legitimar o poder simbólico da sociedade urbano-burguesa. Isso no caso das
crianças Sateré-Mawé é extremamente forte pelo processo de negação de seus valores
culturais. Dessa maneira, para Bourdieu (1982, p. 21) é que:

A ação pedagógica escolar que reproduz a cultura dominante está,


contribuindo desse modo pra reproduzir a estrutura das relações de força,
numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a
assegurar-se do monopólio da violência simbólica legitima.

139
Paulo Freire trabalha muito bem esta questão em suas obras, tendo sido ele um dos primeiros a
desenvolver uma “pedagogia dos oprimidos”.
140
No sentido crítico da expressão, distinguindo-se do indivíduo, que é aquele vem ao mundo sem saber
dos sues direitos, ou seja, sem estar no mundo.
180

As crianças Sateré-Mawé não só reconhecem seus professores como


autoridades, como também legitimam e reproduzem os conteúdos que por eles são
transmitidos, recebendo e interiorizando estes como informações reais. Isto garante uma
reprodução cultural e social dos valores da sociedade urbano-burguesa. Assim, a
Violência Simbólica é estabelecida a partir dessa relação hierárquica de poder
arbitrariamente imposta, bem como os papéis exercidos pelas crianças nas atividades da
escola, pois no caso das crianças Sateré-Mawé, estas são completamente alijadas de
participarem das atividades escolares e, como foi constatado na pesquisa, são
invisibilizadas quanto a possibilidade de externarem os elementos de sua cultura.

Logo, os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similar for a
quantidade e a espécie de capitais que detiverem. Em contrapartida, os
agentes estarão mais distantes no campo social quanto mais díspar for o
volume e o tipo de capitais. Assim, pode-se dizer que a riqueza econômica
(capital econômico) e a cultura acumulada (capital cultural) geram
internalizações de disposições (Habitus) que diferenciam os espaços a serem
ocupados pelos homens (AZEVEDO, 2003, p. 08).

Ao focalizarmos o grupo das crianças Sateré-Mawé, constatamos que este


problema é ainda mais presente, pois se uma criança da periferia, por exemplo, tem um
cotidiano muito distante do que é ensinado na escola, as crianças indígenas se
distanciam muito mais ainda. Na escola “diz-se” que é importante estudar para ter uma
profissão, para "ser alguém na vida"141. No entanto, para as crianças Sateré-Mawé, a
concepção de trabalho é completamente diferente desta aplicada na escola, além da
própria forma de conceber o mundo e as relações entre as pessoas. Elas são tratadas na
comunidade como membros ativos que participam das atividades e que têm garantido
seu espaço de brincar e de partilhar as experiências do dia-a-dia com todos os membros.
No bojo da pesquisa de campo foi fundamental ouvirmos as crianças, também no
espaço escolar, para conhecermos a visão delas sobre o fazer pedagógico ao qual estão
submetidas. Essa experiência do cotidiano escolar nos possibilitou compreender que o
universo infantil é complexo, visto que há aspectos sociais diversificados, que
contribuem para uma vivência onde as crianças acabam absorvendo questões que fazem
parte do mundo urbano que contrariam os elementos da cultura de seu povo.

“A professora disse que eu não aprendo porque sou índia e índio é burro”
(Laíz, 08 anos.)

141
Fernandes (1996).
181

“Quando estou na escola parece que as pessoas olham a gente como alguma
coisa ruim, muitas crianças não chegam perto de mim” (Mateus, 07 anos)
“Eu ouvi a secretária falar que os índios não deveriam estar nessa escola aqui e
sim no meio da mata. Mas eu gosto de morar aqui na cidade” (Talice, 09 anos)
“Uma vez eu fui contar que tinha cobra lá perto de casa e a professora disse
que eu era mentirosa e os outros alunos riram de mim” (Raquel, 09 anos)

As crianças demonstram não estarem satisfeitas com a forma de serem tratadas


nas escolas. Mas, pouco expressam essa situação, tanto para os seus pais e, muito
menos, para os professores. Nas conversas que estabeleceram conosco, dada a
intensidade de convívio que já havíamos construídos durante os oito meses de estada na
comunidade, elas nos revelaram uma série de situações que nas observações que
fizemos no cotidiano das escolas ou quando na presença de um funcionário das mesmas,
não era sequer tocada.
A fala da professora ao expressar que Raquel não aprende por que é índia,
representa bem a carga de Violência Simbólica que pesa sobre as crianças nas escolas.
Raquel, que na comunidade desenha, escreve histórias e fala bastante sobre o seu
cotidiano, no espaço escolar apenas observa e muito pouco realiza as “tarefas” escolares
definidas pela professora. Ela sabe escrever bem em português, mas parece não se
satisfazer com a maneira como o conhecimento veiculado na escola chega até ela.
Desta maneira, ao buscarmos o desvelamento dessa moldura imperfeita da
infância – como fez Bourdieu ao criticar fortemente o sistema francês – contribui para
reconhecermos que os problemas sociais não devem pesar sobre as costas das crianças
Sateré-Mawé, culpabilizando-as dos seus “fracassos”142. Há de se perceber os diversos
condicionantes simbólicos que interferem na formação desses agentes sociais, que
impregnados pelo “Habitus”, reiteram a perpetuação dessa sociedade anacrônica e cada
vez mais desigual.

Habitus não é destino. Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as


características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um
sistema de orientação ora consciente ora inconsciente. Habitus como uma
matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas. Embora
controvertida, creio que a teoria do Habitus me habilita apensar o processo

142
Kramer (1992), trabalha essa questão ao criticar o modelo de educação compensatória fortemente
implementado no Brasil no regime militar e que culpava as crianças e suas famílias pelos seus fracassos,
esquivando a escola e o poder público de suas responsabilidades sociais.
182

de constituição das identidades sociais no mundo contemporâneo.


(BOURDIEU, apud SETTON, 2002).

Neste contexto, a partir da realidade pesquisada, podemos afirmar que não existe
um modelo único de infância, nem tão pouco uma única e hegemônica escola capaz de
educá-las, mas diferentes infâncias, resultantes das situações cultural, econômica e
social que imbricam as “micro-estruturas e as macro-estruturas sociais”143 e que
deveriam nortear o trabalho das escolas. Não existe também, um único modelo de
família e os Sateré-Mawé representam muito bem essa realidade diversificada. Assim,
como afirma Smith (In: FREITAS, 2002, p.45): “[...] a família operária existe por seus
membros, em oposição às famílias de classe média e burguesa, que têm sua lógica na
reprodução de valores, no estilo de vida, no consumo orientador”.
Logo, as crianças das classes dominantes ao chegarem à escola estão em
condições de usar o capital cultural e o capital lingüístico escolarmente rentável, visto
que estão familiarizadas com eles em seu grupo social; já dominam, ou podem
facilmente dominá-los. Entretanto, as crianças Sateré-Mawé familiarizadas com sua
linguagem, que é considerada pelo mercado lingüístico como “não-legítima”144, têm
negadas as suas formas de se comunicar com o mundo e são “levadas” a culpabilizarem-
se por seus fracassos, pois o modelo escolar não considera os elementos de sua cultura
como componente da cultura escolar, nem muito menos da cultura da escola. Nestas
situações, apresentam-se claramente casos bem típicos de Violência Simbólica.
A criança Sateré Mawé acaba inculcando essas formas homogêneas de conceber
o mundo o que as leva a almejar profissões que de uma forma ou de outra, acabam
inseridas na relação de poder e produção que a circundam. Bourdieu, afirma que o modo
de educar divide as culturas. Logo, partindo do conceito de que cultura se constitui de
signos e símbolos e que é convencional, arbitrária e estruturada, essa divisão é
constituída da ação social, da qual é indissociável, porém, completamente dependente
dos condicionantes de dominação. A essa ação o autor denomina de “estrutura
estruturada”.145
Sob esse foco a educação escolar, funciona como reprodutora da cultura urbano-
burguesa e da própria estrutura de poder e de submissão imposta na condição étnica das

143
Bourdieu, 1998.
144
Bourdieu, 2001.
145
“... instrumento de comunicação e conhecimento responsável pela forma modal de consenso, qual seja,
o acordo dos significados dos signos e quanto ao significado do mundo”. (MICELLI, 2004, p. VIII).
183

crianças e seu povo indígena. Pode-se dizer que as pessoas que pertencem à classe
dominante ou frações de classes que dominam, possuem poder econômico e político,
logo, têm mais chances de adquirir capital simbólico e capital cultural, já que suas
condições de investir na educação é extremamente maior, enquanto que, para aqueles
pertencentes às frações de classes dominadas, devido às péssimas condições de vida e
outros condicionantes sociais, suas oportunidades de adquirir capital cultural e
simbólico, são mínimas. Portanto, sob tal perspectiva, o discurso da igualdade no
sistema capitalista é praticamente inexistente, ou seja, uma prova viva do poder da
Violência Simbólica.
184
185

146
6. C APÍTULO V

OS LUGARES ENTRE AS CULTURAS INFANTIS E OS SABERES DA


ESCOLA: OS (DES)ENCONTROS

“Não é difícil constatar a extrema desigualdade presente nessa


situação de confronto entre as duas sociedades, entre as duas culturas.
O planejamento de um projeto educacional não poderia ignorar
essa situação.”

(PAULA, 1999, p. 82)

O objetivo deste capítulo é estabelecer, a partir das falas das crianças, o cruzamento
entre os saberes vividos por elas no cotidiano de sua comunidade e os saberes
instituídos pela escola, destacando os (des)encontros que foram emergindo no processo
da pesquisa e que configuraram a distinção dos lugares das culturas indígenas,
totalmente ausentes no contexto escolar, e a lógica da existência de uma hierarquia de
saberes que determina que os padrões da vida social a serem seguidos sejam
hegemônicos.
Sob o foco de tais argumentos, as escolas impõem às crianças Sateré-Mawé o
“ofício de aluno”, através da mistificação da visão etnocêntrica de ciência e seus
processos de regulação, pela via da maquinação ideológica, oprimindo seus jeitos de
serem crianças indígenas e estabelecendo um processo de moldagem para o ofício que
lhes é imposto, negando suas vivências comunitárias e os diversos elementos do seu
grupo étnico afirmando-os como um corpo de conhecimentos ilegítimos.

146
Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade dos Sateré-Mawé.
186

6.1 O rito e o ritmo das crianças na escola.

“[...] um conjunto de saberes sobre a criança, constituída como objeto do


conhecimento é alvo de um conjunto de prescrições atinentes ao desenvolvimento
dentro do que se convenciona como os padrões de ‘normalidade”.

(SARMENTO, 2006, p. 108)

A pluralidade das infâncias precisa ser compreendida em sua conexão com a


pluralidade de socializações humanas. Como demonstra Lahire (2003), somos, desde o
início, seres plurais. Atualmente, esta visão ampliada de identidades sociais e pessoais,
permanentemente construídas, vem sendo aceita por muitos autores que procuram
compreender a infância não como uma noção unitária, mas como uma experiência
social e pessoal, ativamente construída e permanentemente ressignificada.
As crianças Sateré-Mawé não são e não existem como seres abstratos e
generalizáveis. E frases como: “Todas as crianças são imaturas, dependentes, alegres...”
foram tão fortemente ensinadas e repetidas que, até hoje, naturalizamos estas
características nas mesmas. Ao contrário, crianças, em variados tempos e espaços,
viveram a sua experiência da infância de modos muito diferenciados, o que transforma a
infância numa experiência heterogênea.
Neste sentido, uma das mais importantes contribuições das Ciências Sociais e
Humanas é a de fazer emergir, nas crianças, as suas diferentes experiências de infância,
mediadas por variações como: gênero, espaço geográfico, “classe social, grupo de
pertença étnica ou nacional, a religião predominante, o nível de instrução de população
etc.” (SARMENTO, 2007, p. 29). As possibilidades das crianças Sateré-Mawé de
viverem suas infâncias estão profundamente ligadas a estas referências contextuais. E,
apesar dos severos processos de exclusão que os indígenas foram submetidos, as
crianças são capazes de observar, apreender e interpretar rapidamente este tipo de
diferenciação social.
A infância das crianças Sateré-Mawé é, simultaneamente, uma categoria social,
do tipo geracional, constituindo-se como um grupo de agentes sociais, que interpretam e
agem no mundo, principalmente na comunidade em que vivem. “Nessa ação estruturam
e estabelecem padrões culturais. Assim, suas culturas infantis constituem, com efeito, o
mais importante aspecto na diferenciação da infância” (SARMENTO, 2007, p. 36)
187

Compreender como vivem e pensam as crianças Sateré-Mawé, entender suas


culturas, seus modos de ver, de sentir e de agir e escutar seus gostos ou preferências é
uma das formas de poder compreendê-las como grupo humano, que se vincula a um
grupo étnico bem definido, no caso os Sateré-Mawé.
Para isso, é preciso tirar as crianças da condição de objetos, para deixá-las advir
como agentes de sua própria ação e discurso. Isso significa afirmar que elas são
competentes, capazes de organizar suas vidas e de participar – com suas diferentes
linguagens – das tomadas de decisões acerca das questões que lhe dizem respeito e
fazem parte da cultura de seu povo indígena.
147
Como já afirmado por Cohn (2006) , as crianças não sabem menos, elas
sabem outras coisas. As crianças têm um modo ativo de ser e habitar o mundo, elas
atuam na criação de relações sociais, nos processos de aprendizagem e de produção de
conhecimento desde muito pequenas, inseridas diretamente na vida da comunidade. Sua
participação no universo social dos Sateré-Mawé acontece pela observação cotidiana
das atividades dos adultos e pela intensa participação nos diversos momentos sociais
vividos na comunidade, que se torna o grande lócus de aprendizagem para elas, sendo
que cada espaço social é um espaço educativo.
A partir de suas vivências com outras crianças da comunidade e com os adultos,
elas acabam por constituir suas identidades pessoais e sociais, vinculadas às tradições e
costumes de seu povo, o que é fundamental no fortalecimento de sua condição étnica.
Corsaro (1997), ao buscar investigar as culturas da infância, demonstra como o
desenvolvimento das crianças não é algo individual, mas um processo cultural e,
portanto, coletivo, que acontece continuamente através das relações de brincadeira e de
faz-de-conta desenvolvidas por elas. Neste sentido, para o autor:

[...] é nestes microprocessos, envolvendo a interação com as crianças dos


que cuidam delas e com os seus pares, que uma concepção do
desenvolvimento social como um complexo produtivo-reprodutivo se torna
visível [...] Tal apropriação é criativa na medida em que tanto expande a
cultura de pares [...] como simultaneamente contribui para a reprodução da
cultura adulta (CORSARO, 2002, p. 114).

Um aspecto extremamente importante é o de observar que as culturas infantis


não são independentes das culturas adultas, dos meios de comunicação de massa, dos
artefatos que elas utilizam cotidianamente, mas se estruturam de outra maneira.

147
Esta afirmação está na forma literal de citação na conclusão.
188

Sarmento (2006), da mesma forma, ao buscar explicar estes processos de constituição


das culturas infantis, assim os define: a interatividade, a ludicidade, a fantasia do
real e a reiteração. Esses quatro elementos, fundamentais para compreendermos a
constituição das culturas infantis, foram observados nitidamente no cotidiano das
crianças Sateré-Mawé no período em que estivemos com elas na comunidade.
A interatividade representou cada momento de estarem juntas, de
compartilharem suas experiências e de poderem fazer, de suas culturas de pares,
elementos fundamentais para estabelecerem processos relacionais aos costumes e
tradições de seu povo. Ainda nas indicações de Sarmento (idem, p. 117), “esta partilha
de tempos, ações, representações e emoções é necessária para um mais perfeito
entendimento do mundo e faz parte do processo de crescimento”.
A ludicidade constitui-se como elemento fundamental do modo de vida das
crianças Sateré-Mawé, pois brincar é para elas um grande aprendizado que as possibilita
viver e representar o mundo a partir dos seus pontos de vistas e das mais agradáveis
formas de viver a realidade. “Com efeito, a natureza interativa das crianças constitui-se
como um dos primeiros elementos fundamentais das culturas da infância. O brincar é
condição fundamental da aprendizagem e, desde logo, aprendizagem da sociabilidade”
(SARMENTO, 2007, p. 118).
A fantasia do real representa a capacidade criativa e inventiva das crianças
Sateré-Mawé, principalmente representadas pelas formas de ressignificarem as culturas
adultas. Na vivência delas acerca do Ritual da Tucandeira ou das brincadeiras de
casinha, ônibus e nos seus desenhos, percebemos que essas outras realidades “fazem
parte da construção pela criança da sua visão do mundo e da atribuição do significado às
coisas” (Idem, p. 119).
A reiteração representa a capacidade das crianças Sateré-Mawé em definirem
seus próprios modos de compreender o tempo-espaço que as circunda e organizarem
como as suas dinâmicas cotidianas são repetidas, vivenciadas e reinventadas diversas
vezes. “O tempo das crianças é um tempo recursivo, continuamente revestido de novas
possibilidades, um tempo sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido”
(Idem, p. 120).
Logo, nas indicações do autor, as crianças, em seus grupos, produzem culturas, e
a identificação dos processos pelos quais se dá esta produção nos possibilita perceber as
diferentes culturas infantis, o que, no caso das crianças Sateré-Mawé, tem forte relação
com as tradições do seu povo e também sofre influência da sociedade urbana,
189

principalmente pela ação da escola. Porém, suas culturas se forjam mesmo nas suas
relações de pares na comunidade.
Além do papel de agentes no seu contexto social, as crianças também são
importantes no processo histórico de seu povo, pois através de sua participação e ação
contribuem para trazer a novidade para a sociedade. Assim, um outro mundo se abre
para compreendermos as crianças Sateré-Mawé, a partir da produção de um arsenal de
características que lhes são próprias.
Promover um diálogo entre estes mundos e suas culturas é uma saída para poder
repensar o modo como se pode educá-las e também repensar o papel da escola. Neste
sentido, além das culturas infantis, precisamos também refletir sobre a produção cultural
que se faz para as crianças, o que implica pensar os tempos da escola frente aos ritos e
ritmos das crianças Sateré-Mawé.
De acordo com Lahire (2006), é preciso avaliar o processo de socialização de
diferentes maneiras. Isto é, nas indicações do autor, compreender que as crianças
Sateré-Mawé, ao incorporarem as culturas tradicionais de seu povo, também produzem
diferenças culturais a estas, e na relação com as culturas da escola, podem ter
incorporadas nos seus modos de ver o mundo, questões que passam, inclusive, a
desconsiderar e, até mesmo, a excluir os elementos étnicos de seu povo. Eis um dos
perigos da escola para as crianças.
Um exemplo bem marcante dessa interface (negativa) entre as culturas está
relacionado à forma como as crianças compreendem a alteridade das suas ações frente
aos adultos, pois na comunidade elas podem realizar suas atividades sem a definição
arbitrária dos mesmos, o que na escola acontece de forma totalmente diferenciada, pois
seus diversos membros definem regras e situações que as crianças Sateré-Mawé devem
cumprir sem que as mesmas, sequer, saibam do porquê de estarem fazendo tais
atribuições.
Para melhor compreendermos essa distância entre a realidade da comunidade e o
trabalho escolar, elencamos algumas situações expressas pelas crianças e objetivadas
em nossas observações, que representam bem a diferença dos fazeres comunitários e
dos fazeres programados pela escola.
As vivências acompanhadas nas escolas, principalmente relacionadas à forma
das crianças estarem presentes na organização do espaço da sala de aula, ficam
evidenciadas pelo distanciamento das mesmas, tanto dos professores quanto das outras
crianças, como apresentado na observação de campo que se segue:
190

‘Chegamos a uma sala de aula e a professora estava organizando a turma para


realizar um trabalho de escrita. Ela foi direcionando as crianças e criando posições para
cada uma delas. Larissa (11 anos), a única criança indígena que estudava na turma, foi
posta bem num canto, no fundo da sala. A professora fazia as perguntas para os alunos
que iam respondendo da forma como haviam aprendido, mas em momento algum se
reportou à menina Sateré-Mawé, sua atitude era como se a mesma não estivesse
presente na sala de aula. Foi quando resolvemos perguntar à Larissa sobre essa situação.
Ela assim nos relatou:

“Eu sempre sento no fundo da sala, a professora me colocou aqui desde que
descobriu que eu era indígena, acho que ela não gosta de mim, por que não fala quase
nada comigo. Mas eu também não falo com ela, mas gosto dela sim (respondeu meio
amedrontada). Lá na comunidade eu sento junto com as outras crianças pra
brincarmos, pra fazermos um monte de coisas, não gosto de ficar aqui no canto,
sozinha, prefiro quando estou com as crianças de lá da comunidade.”
(Larissa, 11 anos)’

Estas configurações individuais e excludentes são estabelecidas pelos modos de


recepção e tornam-se hoje “majoritárias em todos os grupos sociais, sendo impossível
classificar culturas de grupos ou de classes que compõem a formação social” (Lahire,
2006, p. 154). Não há nada de mais comum e frequente, na sociedade contemporânea,
que a singularização dos indivíduos. Com as crianças Sateré-Mawé este distanciamento
tem ocorrido continuamente nas escolas pesquisadas.
Infelizmente, o contexto das escolas e da comunidade produz ritmos e ritos
diferentes para as crianças Sateré-Mawé, diferentes no sentido da exclusão e do
distanciamento das demais crianças na escola, pois na comunidade esse sentido ganha
um aspecto de coletividade, de união, de estar juntas. Na verdade, a escola produz
tempos e espaços e não tempos-espaços (GIDDENS, 1997), pois fragmenta sua ação e
reproduz o modelo de sociedade em que os indivíduos são moldados a ficarem fixos aos
lugares que irão desempenhar determinados papéis sociais, para os quais as crianças
indígenas não têm espaço e, portanto, devem ser deixadas de lado.
Outra situação, que representou bem esses processos excludentes produzidos
pelas escolas, foi vivenciada durante a realização de um trabalho desenvolvido pela
191

professora da quarta série do ensino fundamental e que procurou identificar, no contexto


da sociedade de consumo, a questão das profissões.
A professora levou para a sala de aula um cartaz contendo uma série de
profissões que devem ser exercidas na sociedade e a importância de cada uma delas.
Depois, pediu que cada criança falasse o que gostaria de “ser quando crescer”, ou seja,
qual profissão gostaria de exercer. As crianças foram fazendo suas exposições.
Quando Taíza (12 anos), em forma de uma história, começou a falar sobre o que
gostaria de ser quando crescer, a professora imediatamente interrompeu a criança e
disse que sua história não tinha nada a ver com o conteúdo que estavam estudando, pois
aquilo que ela relatara era completamente insignificante para a discussão da sala de
aula. A menina assim expressou sua visão acerca de que profissão gostaria de exercer:

“Num lugar bem distante da cidade, viviam muitas pessoas que gostavam de
fazer farinhada feita de mandioca para que todo mundo pudesse comer. Para fazer essa
farinha era preciso que todos ajudassem, quanto mais, melhor, o que daria um monte
de farinha. Eu quero, quando crescer, ser fazedora de farinha, para que ninguém passe
fome”. (Taíza, 12 anos)

Na visão de Taíza, está claramente presente a sua ligação com a tradição de seu
povo na produção da farinha de mandioca. E, como na comunidade as crianças cantam a
música da farinhada corriqueiramente e a farinha representa um de seus principais
alimentos, ela relacionou a profissão à satisfação tanto pessoal quanto coletiva dos
membros de sua comunidade, destacando que comer é um fator fundamental para se
viver bem.
Infelizmente, a atitude da professora foi a de desconsiderar a capacidade criativa
da criança e afirmar que os textos deveriam estar relacionados às profissões que ela
havia definido no início da aula (médico, professor, dentista, policial, juiz, comerciante,
entre outras mais), e que ser “fazedora de farinha” não era profissão nenhuma e que
quem vem para a escola tem que ter uma profissão de verdade. Ela assim se reportou às
crianças:
“Menina você tá brincando comigo? Eu mandei falar de profissão e não ficar
inventando coisa que não tem sentido. Onde já se viu falar que fazedora de farinha é
profissão?! Acho mesmo que você não entende o que eu ensino e quer continuar sendo
192

índia. Presta atenção que você não está na aldeia e que mora na cidade e na cidade
todo mundo tem que ter uma profissão” (Professora Diva).

Logo, a produção cultural das crianças Sateré-Mawé não tem valor legítimo no
ambiente escolar. Na verdade, nem são consideradas como produtoras de culturas, pois
os seus modos de ver o mundo não representam um conhecimento que possa ser
incorporado ao capital cultural trabalhado na escola, o que determina sua condição de
ausência na produção de tempos e espaços escolares, como discutiremos no item a
seguir.

6.2 O saber da cultura Sateré-Mawé e o saber “legítimo” da escola:


onde as fronteiras se distanciam.

“A cultura escolar é descrita como um conjunto de normas que definem conhecimentos


a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão
desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos.”

(JULIA, 2001, p. 09)

A ideia de fronteira, entendida na sua mais forte polissemia, tem oferecido, na


visão de Barth (In: POUTIGNAT; STREIFF-FENART,1998, p. 189), “[...] uma
importância primordial ao fator de que os grupos étnicos são categorias de atribuições e
identificações realizadas pelos próprios atores”. Seguindo a visão deste autor, passamos
a estabelecer as nossas discussões a respeito das noções de fronteiras, que são
fundamentais para o entendimento dos processos culturais que envolvem a vida dos
Sateré-Mawé no espaço urbano.
Sendo assim, as culturas passam a ser percebidas em suas transformações e não
em sua suposta integridade, pois o que as diferencia é o modo como se defrontam e
como se transformam com as distintas realidades. Neste sentido, Barth (Idem, p. 195)
afirma que “[...] a fronteira étnica canaliza a vida social – ela acarreta de um modo
frequente uma organização muito complexa das relações sociais e comportamentais [...]
que se reconheçam limitações na compreensão comum, diferenças de critérios de
julgamento, de valor e de ação...”.
193

No caso da relação entre as culturas escolares e a cultura do povo Sateré-Mawé,


foi constatada, durante a pesquisa de campo, que ao invés de serem concebidas como
fronteiras onde se deveriam estabelecer um diálogo profícuo para se garantir o
sentimento de pertença, as mesmas, principalmente determinadas pela cultura
legitimada pela escola, tendem a conceber as crianças Sateré-Mawé como “tábulas
rasas”, como se elas, ao adentrarem no ambiente escolar, viessem completamente
desprovidas de um saber capaz de ser articulado aos conteúdos da escola, manifestando-
se como exclusão.
Assim, de acordo com Bourdieu (1984), a homogeneidade cultural resulta muito
mais de um processo de criação coletiva e de constituição de um significado coletivo,
do que de fatores determinantes a que usualmente se recorrem para a identificação de
um grupo étnico. Pode-se afirmar, então, que o ato de partilhar uma determinada cultura
é o resultado muito mais da organização de tal grupo.
As crianças na comunidade possuem uma capacidade de criação e recriação das
diversas situações do cotidiano, inclusive ressignificando costumes que somente os
adultos podem realizar, mas que elas os fazem simbolicamente. Como no caso do Ritual
da Tucandeira, que representa todo um contexto de status social e de passagem, que irá
marcar definitivamente o mundo infantil do mundo adulto. Elas o vivenciam
desenhando, cantando, transformando objetos (como sacos plásticos ou de papel) que
estão ao seu redor em luvas e, como maneira de se sentirem presentes nesse momento
tão importante para o seu povo, (re)criam suas próprias canções a partir das músicas que
são utilizadas no período do ritual.
Logo, não lhes falta criatividade e capacidade inventiva, ao contrário, elas muito
sabiamente ressignificam essas funções, transformando-as em culturas infantis. Sabem
desenhar muito bem e ainda contam histórias, falam de situações do cotidiano, escrevem
- às vezes em português, outras vezes em Sateré-Mawé - e procuram fazer de cada
momento vivido um espaço de aprendizagens constantes.
Ao chegarem nas escolas, essas riquíssimas experiências do cotidiano são
desconsideradas, pois como não se enquadram nos conteúdos “legítimos”, não
representam uma possibilidade de serem abordadas ou utilizadas como elementos
contextualizadores de aprendizagens que possam se tornar mais significativas para elas
e ampliar a possibilidade das outras crianças em conhecer a cultura desse povo indígena.
É neste sentido que, para Forquin (1993, p. 166):
194

[...] a razão pedagógica é essencialmente normativa e prescritiva, sua


tentação natural é o universalismo, compreendido aí no que isto pode
comportar por vezes de segurança de si etnocêntrica, sua postulação normal
é uma certa espécie de idealismo prático.

Observamos um trabalho que foi realizado pela professora da segunda série do


ensino fundamental em relação à leitura e escrita de palavras, que representa bem a
visão da escola criticada pelo autor. Nas observações de campo relatadas a seguir fica
bem explicitada a forma preconceituosa presente nas suas práticas.
A professora, como definido no plano de aula, distribuiu uma quantidade de
figuras para as crianças e pediu que as mesmas as identificassem e, logo em seguida,
escrevessem os nomes que representavam cada uma. As duas crianças Sateré-Mawé que
estudavam na série fizeram o que foi solicitado, porém, em algumas das figuras,
escreveram os nomes em Sateré, pois não sabiam escrevê-los em português. A
professora, imediatamente, disse que os nomes estavam errados e que aquelas palavras
não tinham sentido nenhum.
Não houve sequer um diálogo com as crianças para buscar uma compreensão
daquilo que estavam escrevendo. Simplesmente se considerou errado e sem valor para a
escrita convencional da escola. Para tornar a situação ainda mais constrangedora para as
crianças, a professora pegou o caderno onde se encontravam suas escritas e mostrou
para a turma toda como forma de demonstração da incapacidade de acompanhar o
desempenho dos demais alunos. Ela assim relatou sobre a produção das duas crianças:

“Vocês duas aí, não sabem escrever nada, nem sei por que já estão na segunda
série. Esse monte de coisas que rabiscaram no papel não tem sentido nenhum, eu
expliquei que era para escrever o significado de cada figura e esses ‘garranchos’ que
escreveram não servem para nada”. (Professora, Clara)

Além de provocar constrangimento para as crianças, desqualificou


completamente o processo de escrita que as mesmas tinham feito, pois quando fomos
indagar o que estava escrito abaixo de cada figura, elas nos afirmaram terem escrito na
língua da comunidade e depois explicaram o significado em português, que era
exatamente aquilo que as figuras representavam. Essa situação exemplifica bem o
modelo hegemônico que marca a ação pedagógica, que não considera a possibilidade de
195

outras formas de linguagens, senão aquelas que já estão programadas nos planos da
escola.
Evidencia-se com clareza o despreparo e descaso deste professor com o
conhecimento que as crianças Sateré-Mawé trazem da sua experiência cotidiana e dos
saberes adquiridos no seu grupo étnico. Por isso, a prática pedagógica pauta-se na visão
que reforça a exclusão, a discriminação e busca determinar o papel de cada ser/aluno no
contexto da sociedade urbana, como sendo a única referência possível. Um saber
etnocêntrico que cada vez mais se perpetua na ação escolar e que expõe, de forma cruel,
as crianças a processos contínuos de exclusão.
Para Forquin (1993, p. 169):

A desigualdade de resultados e a diferenciação de curso dos diferentes


grupos de crianças dever-se-iam ao fato de que a escola se obstinaria em
querer transmitir uma cultura com valor de distinção e com finalidade
discriminatória, uma cultura desprovida de universalidade, aberta ou
hipocritamente de acordo com os hábitos e valores de grupos sociais
particulares.

A escola deveria representar, para as crianças indígenas, uma grande


possibilidade de aprenderem os conhecimentos necessários para o relacionamento com a
sociedade envolvente, e que garantissem continuar sobrevivendo ao contato, que é cada
vez mais intenso, principalmente por estarem no espaço urbano. No entanto, as escolas
pesquisadas agem de maneira completamente oposta à constituição dessas
possibilidades, contribuindo para a desvalorização da cultura Sateré-Mawé e a
supervalorização da cultura urbana, que visa massificar esses grupos minoritários e
invisibilizá-los.
Outra situação, vivenciada na aula de matemática da professora da terceira série
do ensino fundamental e relatada por uma das crianças Sateré-Mawé, representa bem o
distanciamento que a escola promove entre os saberes. A matemática, na visão da
professora, é uma ciência que possui apenas uma única possibilidade de se chegar a um
resultado.
A professora escreveu no quadro quatro atividades com conteúdos vinculados à
adição, à subtração, à divisão e à multiplicação. Uma das questões tinha o seguinte
enunciado: “Uma passagem de ônibus custa R$ 1,80 (um real e oitenta centavos).
Quanto terão que pagar sete pessoas para se deslocarem de um lugar para outro no
transporte?”
196

A resposta de Larissa (11 anos), que sempre participa na comunidade,


juntamente com as outras crianças, da brincadeira de ônibus, e costuma assumir o papel
da cobradora por ser uma das crianças com maior idade, assim foi elaborada:

“Lá na comunidade, quando a gente brinca de ônibus e eu sou a cobradora,


quanto mais gente tem no ônibus, mais tem que pagar. Como nós não temos dinheiro de
verdade, a gente usa folhas, as pequenas valem pouco e as grandes valem mais. Então,
se são sete pessoas que vão andar no ônibus, elas vão ter que pagar muito. Se fosse só
uma mesmo, bastava uma folha pequena”.

A professora, ao ler a resposta, considerou-a errada, pois a criança não deu o


resultado que ela esperava. Reportando-se à menina de forma bastante autoritária, disse:
“Tá tudo errado, você não sabe nada de matemática. Eu ensinei os números e cadê o
resultado?” (Professora Margarida). Deu um castigo pelo erro e mandou Larissa para
casa, na metade da aula. A menina saiu da sala de aula feliz e foi para sua casa.
Quando chegamos à comunidade, pedimos que Larissa nos mostrasse sua
resposta e comentasse o que tinha escrito. Ela nos disse exatamente o que escreveu na
resposta, quando tem mais gente no ônibus paga-se mais. O que representa uma maneira
lógica de se descrever a questão. Porém, para a professora, o correto era a representação
do resultado em forma de números, ou seja, o valor em reais que seriam gastos pelas
pessoas.
Como para as crianças Sateré-Mawé o contato com dinheiro é praticamente
nenhum, ela não tinha noção de valor, mas conseguiu expressar uma noção de
quantidade perfeita, relacionando-a à brincadeira que vivencia na comunidade e ainda
confirmando a lógica de que quanto mais pessoas, maior o tamanho das folhas e
também a quantidade. Infelizmente, essa lógica não é aceita pela escola e o resultado é o
castigo, que para Larissa foi bem vindo, pois ela voltou mais cedo para sua casa.
Desse modo, podemos perceber que a escola, enquanto “representante” da
sociedade urbana, mantém relações de justaposição ou de integração e também de
exclusão e de conflitos, ou, ainda, marcadas por indiferença ou mesmo por castigos.
Neste caso, para Sacristán (2005, p. 14):

De alguma forma, o discurso pedagógico baseado no conhecimento


científico fez com que realmente se mascarasse a influência das condições
sociais no desenvolvimento dos menores e no tipo de respostas que dão às
197

exigências escolares. A tendência será atribuir as diferenças entre os


indivíduos a características pessoais, tirando a responsabilidade do ambiente
educacional.

Outro ponto a ser destacado é que as culturas não estão em um nível de inter-
relação entre os saberes das escolas e os das comunidades indígenas. Estudos teóricos a
respeito da cultura sugerem que sejam deixadas de lado as definições de cultura
configuradas como sistemas fechados e que, no lugar delas, os conceitos sejam
trabalhados com base em processos de circulação de significados, o que se constitui um
grande desafio para as escolas.
Pensando no contexto amazônico, seria um grande equívoco tratar as culturas
indígenas como se fossem homogêneas e fechadas em si mesmas, sendo apenas
diferenciadas por sua entrada no cenário histórico. Uma das consequências desse
equívoco ocorre quando essa concepção naturalizada de cultura se encaixa com exatidão
na representação do senso comum sobre os índios, que é a de um indivíduo que vive na
selva, utiliza técnicas rudimentares e possui instituições mais primitivas, sendo ele
pouco distanciado da natureza. É, no entanto, essa representação que habita o
imaginário das manifestações artísticas, os estatutos legais, a política indigenista e
mesmo os mecanismos oficiais de proteção e assistência aos índios.
Neste sentido, o fato de muitas etnias virem morar nas cidades tem sido
equivocadamente compreendido como um indicador do desejo dos indígenas de não
conservação de sua condição étnica, deduzindo-se automaticamente a renúncia à
proteção já garantida pela legislação. Essa compreensão não leva em conta toda uma
série de processos históricos de opressão e discriminação e gera espaço para novos tipos
de preconceitos, ainda não devidamente tratados pela legislação brasileira. Em geral, a
tentativa dos indígenas da cidade de fazer valer os seus direitos resulta em tipos
diversos de preconceito e discriminação, que consistem em desqualificar suas
pretensões aos lhes negar a condição de indígenas e, mesmo que haja esse
reconhecimento, sem traduzi-las em garantia dos direitos correspondentes e de práticas
escolares coerentes com seus processos próprios de aprendizagem.
Em se tratando mais especificamente da questão das fronteiras como elementos
capazes de aproximar tais culturas, o que se percebeu nas escolas pesquisadas é a
intensificação da diferença, da construção de mecanismos pedagógicos que excluem
totalmente a possibilidade de um diálogo intercultural, onde os saberes das crianças
198

Sateré-Mawé e os saberes da escola possam ser legitimados como autênticos e capazes


de produzirem novos saberes, que rompam com a visão hegemônica e homogeneizadora
e abram espaço para uma escola de múltiplas possibilidades.
As reflexões de Forquin (1997, p. 173), em relação a essa escola, levam-nos a
pensar também no nosso papel enquanto agentes desse processo.

Isso seria esquecer que, mesmo desencantados, mesmo desenganados, não


podemos nos subtrair à continuidade das gerações e que estamos
determinados a ensinar, estamos determinados a transmitir alguma coisa que
valha para os que nos seguem, não porque achemos que o mundo se tornará
especialmente, por isso, mais feliz, mais justo ou mais sábio, mas muito
simplesmente porque o mundo continua.

Logo, é fundamental que participemos efetivamente desse processo de tomada


de decisão e não fiquemos presos a uma visão que aceite essa configuração de escola,
que encontramos fazendo parte da realidade das crianças Sateré-Mawé, como a única
opção possível, e que por isso devemos nos conformar com esse processo educacional
castrador. Nossas indicações expostas a seguir, na conclusão deste texto, intencionam
contribuir para que mudanças possam acontecer e que venham beneficiar as crianças.
Pois, como afirmou Forquin na citação acima, “o mundo continua” e nós temos uma
grande responsabilidade diante dessas crianças.
199
200

148

POR UMA EDUCAÇÃO COM AS CRIANÇAS SATERÉ-MAWÉ


7. C ONCLUSÃO

“A educação, pensada como um processo contínuo, tem como objetivo socializar os


novos membros e isso é encarado como uma responsabilidade do grupo todo. O respeito
e o incentivo à atitude autônoma do educando caracterizam as ações pedagógicas
necessárias ao êxito do processo.”

(PAULA, 1999, p. 81)

Estudar as sociedades indígenas atuais, do ponto de vista etnográfico, apresenta


grandes dificuldades, particularmente quando se trata também de populações urbanas.
Em Manaus, essa tarefa é particularmente complexa dada a carência de estudos sobre a
temática. Segundo Bernal (2009, p. 31), alguns fatores podem ser elencados nesse
processo.

Em primeiro lugar por causa da falta de dados credíveis, já que, na maioria


dos casos, se tem apenas um número aproximado sem discriminação por
sexo, nem taxas de natalidade, mortalidade ou morbidade,
imigração/emigração, mobilidade, etc. Em segundo lugar, porque a
metodologia de análise demográfica disponível hoje é dificilmente aplicável
a grupos humanos reduzidos, como é o caso para as populações indígenas do
Brasil atual, especificamente tratando-se dos índios urbanizados.

Notadamente, questões como dinâmicas migratórias e formas de


estabelecimentos diferentes marcam o percurso de cada uma das etnias que vieram para
Manaus. Determinados grupos indígenas já contam com mais de três gerações de vida
urbana, como é o caso dos Sateré-Mawé, outros chegaram recentemente. É no contato
com a singularidade de cada povo – através de encontros com pessoas concretas – que

148
Créditos: Foto tirada pelo pesquisador durante a pesquisa de campo na comunidade Sateré-Mawé.
201

se revela o conteúdo da palavra “índio” como categoria analítica, fazendo do panorama


étnico de Manaus um mosaico variado, imensamente rico e interessante.149
Alguns grupos criaram suas próprias organizações, enquanto outros se mantêm
voluntariamente num estado de “desorganização organizada”150, como forma de
resistência, de afirmação e autonomia cultural. Diante das diversas dinâmicas sociais, os
Sateré-Mawé desenvolveram, no decorrer da sua história, a arte do acerto.
Efetivamente, a estrutura social desse povo é fundada essencialmente na cooperação: as
reuniões, o diálogo, a arte da oratória, a elaboração coletiva de trabalhos e a ritualidade,
que colocam em cena esses valores fundamentais, possuem um lugar central na sua
dinâmica social. Neste sentido, para Bernal (2009, p. 89):

Trata-se de uma espécie de institucionalização dos trabalhos coletivos


organizados na ocasião de diversas tarefas agrícolas ou de construção de
casas (em particular os tetos). As famílias mais distantes podem fazer
intercâmbio através desse mecanismo. É por isso que apesar da afirmação
fundamental da unidade do povo, a estrutura de poder entre os Sateré-Mawé
é diversificada e extensa.

Tais razões podem explicar a importância que este povo dá às crianças e como
elas têm um papel fundamental na organização de suas comunidades, participando
efetivamente das atividades cotidianas do grupo e contribuindo para a consolidação da
alteridade étnica desse povo. Logo, trabalhar com as crianças constitui um papel
fundamental para o conhecimento e o reconhecimento da forma de conceber o mundo a
partir do olhar dos adultos e, consequentemente, as ressignificações que são criadas
pelas crianças, principalmente no espaço urbano.
No decorrer de nosso trabalho etnográfico, constatamos que, mesmo diante de
todo um processo de urbanização, imposto pelo contexto da cidade, o grupo dos Sateré-
Mawé foi criando uma série de estratégias para garantir o sentido de pertença ao seu
grupo étnico e deixar fluir nas crianças esse sentido na vida cotidiana da comunidade e
nas relações que eles estabelecem com elas, transmitindo todo um arsenal a partir de sua
“cosmovisão de mundo que represente o Ser Sateré-Mawé”151.
Daí o fato de que o recurso atual às danças e às demonstrações públicas de
rituais e de festas, no mesmo modo que à produção artesanal, não constituiu, nem
unicamente, nem principalmente, uma maneira de sair temporariamente de condições

149
Bernal (2009).
150
Bernal (2009, p. 29).
151
Pereira (2003).
202

econômicas adversas, mas, antes de tudo, uma forma de afirmar e transmitir a


identidade, recriando-a. Temos, no contexto dos Sateré-Mawé “urbanos”, realidades
difíceis de serem interpretadas, uma vez que é a reapropriação coletiva da identidade
que está em jogo, como podemos explicar através de Bourdieu (2007, p. 111): “a
revolução simbólica e os efeitos da intimidação que ela exerce não colocam em jogo ,
como se diz, a conquista ou a reconquista da identidade”.
O que buscamos, de fato, no processo da pesquisa e da escrita da tese, foi uma
aproximação aos contextos cotidianos das crianças Sateré-Mawé, o que nos permitiu
acompanharmos, efetivamente, as vivências de suas situações diárias na comunidade e,
a partir de tais situações, podermos estabelecer todo um processo de comparação às
vivências das escolas que são completamente diferentes aos modos de vida das crianças
na comunidade.
Assim, cantar, brincar, reproduzir o cotidiano dos adultos e ressignificá-lo,
identificar os limites territoriais e sociais que as diferenciam dos demais moradores do
bairro ou dos alunos da escola que estudam, pintar a pele, querer falar a língua que seus
pais falam e estar em pleno processo de aprendizagem, dentre outras vivências
observadas, são elementos presentes na cultura das crianças Sateré-Mawé, que
caracterizam os seus jeitos de viver a infância. Jeitos esses talvez ainda pouco
compreendidos (e incompreendidos) pela cultura dominadora das escolas, mas que, para
elas e seu povo, faz sentido e garante a condição de ser diferente.
A concepção de infância, surgida no bojo da burguesia e alimentada nos ideais
de homogeneização, era, ou ainda é, tida como a imagem perfeita das crianças e sua
condição única de garantir o futuro das gerações. Mas de que gerações estavam falando?
Para qual sociedade futura essa criança estava sendo designada como “agente”, se, no
momento de viver a infância, ela era uma espectadora do mundo adulto? Contrariando a
lógica da sociedade moderna, Charlot (1986, p. 127) descreve que:

A infância não é mais uma etapa infelizmente inevitável, mas um período


necessário e que produz resultados felizes. Não é mais um tempo demasiado
longo, que é preciso tentar encurtar, mas um tempo demasiado curto, que
seria necessário poder alongar para prolongar a criatividade humana.

Do ponto de vista das sociedades indígenas, essa é uma discussão sem sentido,
pois a infância é um tempo-espaço da vida das crianças que deve ser vivido com toda a
intensidade. Os Sateré-Mawé fazem questão de deixar claro, em todas as situações
203

empíricas vivenciadas e na própria tradição desse povo, que é na infância que se forjam
os grandes valores da vida, e é na passagem da mesma para a fase adulta que os
aprendizados irão completar todo um conhecimento que as crianças adquiriram através
da transmissão dos valores pelos mais velhos e que, também, ressignificaram nas suas
construções simbólicas.
Porém, para as crianças do nosso caso em estudo: índias, Sateré-Mawé, que não
vivem na aldeia – espaço tradicional do qual estão bem próximas e ao mesmo tempo
distantes –, mas na cidade, e lá frequentam uma escola urbana do sistema tradicional, a
realidade se constitui de forma diferente destes valores de infância
Querem falar, mas o silêncio petrificou suas vozes; querem ser vistas, mas a
escuridão não permite que sejam enxergadas; querem dizer quem são, mas já estão
determinadas a seguir o curso da História: a dominação. Seria isto uma verdade
inquestionável? Talvez sim, se o processo de dizimação e branqueamento tivesse sido
completado. Mas elas sobreviveram e, na contramão deste genocídio programado, estão
a cada dia mais vivas e presentes no seio de suas comunidades, apesar dos severos
processos de subalternização ainda construídos nas relações sociais, como enfatiza Silva
(2006):

Em síntese, os direitos conquistados são o resultado de muita luta e, para


garanti-los, será preciso um constante exercício da cidadania. Isto significa,
dentre outras questões, fortalecerem seus mecanismos próprios, enquanto
povos diferenciados e, ao mesmo tempo, construírem relações de aliança e
intercâmbio com setores da sociedade e do Estado. Este processo é
extremamente difícil, principalmente dentro do projeto de globalização, de um
mercado cada vez mais competitivo e excludente, da imposição de um
individualismo absolutizado, da burocratização, do sectarismo e da
discriminação. Diante disso, o exercício da cidadania indígena - coletiva e
solidária - parece apenas uma utopia. Porém, quando visto dentro do conjunto
das lutas sociais e da busca de construção de um novo modelo e projeto para o
país, parece ser inspirador e mobilizador.

Desta maneira, o percurso construído para adentrarmos nos espaços das crianças
Sateré-Mawé pode ser caracterizado de duas formas. Uma primeira, comparando-o ao
encontro das águas dos Rios Negro e Solimões152, onde, apesar da aparente harmonia
existente, eles não se misturam E outra, que foi sendo construída na desconstrução da

152
O rio Amazonas é formado do encontro entre os rios Rio Solimões (uma água barrenta) e o Rio Negro
(água escura). A imagem que se vê da superfície é um belíssimo contraste de cores da água dos dois rios e
a instigante visão de um rio que se forma, mas não se mistura. A explicação para o fenômeno que gera
esse belo espetáculo pode estar nos fatores: densidade, temperatura e velocidade, muito diferenciadas
entre os dois rios. (Fonte: www.portalamazonia.com)
204

primeira, ou seja, uma constante possibilidade de partilhar experiências fez com que
adentrássemos nessas águas aparentemente separadas – por uma visão da superfície –
onde se confirmou que rios diferentes, culturas diferentes ou jeitos de compreender o
mundo diferentes podem se misturar, podem dialogar, podem interferir na forma de
pensar, de perceber e de enxergar um ao outro, dando-lhes possibilidades de “com-
viver”, como nos explicita Santos (2008, p. 31):

Os saberes que dialogam, que mutuamente se interpelam, questionam e


avaliam, não o fazem em separado como uma atividade intelectual isolada
de outras atividades sociais. Fazem-no no contexto de práticas sociais
construídas ou a construir, cuja dimensão epistemológica é uma entre outras,
e é dessas práticas que emergem as questões postas aos vários saberes em
presença.

E “com-viver” com Taiz, Larissa, Kely, Talice, Emille, Raquel, Taíza, Nandria,
Laiz, Mateus, Gabriel, Késia, seus pais e os demais membros da comunidade
WAYKIHU representou mais do que um projeto de pesquisa, mais do que a escrita
desta tese. Representou um processo de humanização, de aquisição de valores muitas
vezes desprezados no seio do espaço acadêmico – ostentador de uma condição de
superioridade –, levando-nos a compreender que a vida é uma possibilidade de
enfrentamento de problemas tão complexos que, sem essa experiência, jamais teríamos
sido despertados a olhá-los de frente.
Lutar pelo direito de ser quem são, pela possibilidade de falar sua língua, pela
paixão de estar juntos uns com os outros, pelo prazer de dividir, mesmo sendo muito
pouco, pelo ato incondicional de cuidar e ser cuidado e, principalmente, pelo exercício
constante de ouvir e ser ouvido é um grande exemplo de vida legado a nós pelos Sateré-
Mawé e que, infelizmente, o nosso modelo de escola não conseguiu enxergar.
Assim, para Nascimento (2005, p. 06);

Uma evidência mediada pela oralidade, pelos mitos, pela imitação. Significa
abrir espaço para uma releitura da história, não mais contada só pelos livros,
mas contadas pelos mais velhos, pelos caciques rezadores. Significa, ainda,
produzir novos mapas, novos textos, novos conteúdos. Produção onde todos
(adultos e crianças) entram como autores, pesquisadores, mediadores do
diálogo intercultural.

Podemos, então, após todo esse processo vivido e de aproximação aos modos de
viver produzidos pelas crianças Sateré-Mawé na comunidade, e pelos processos
205

marcadamente excludentes e invisibilizantes presentes nas escolas, que se diz um


espaço para todos, registrar algumas conclusões a que chegamos nessa caminhada, mas
que consideramos também inacabadas pelas contradições presentes na história de nossa
sociedade e da escola pública de nosso tempo.
Tais perspectivas analíticas, que foram construídas e constituídas num amplo
processo de participação e configuração de saberes, possibilitaram, na verdade, mais do
que uma definição, um processo de reflexão compartilhada e sedimentada nos princípios
apreendidos com as crianças, quais sejam: a solidariedade, o respeito e a vontade de
fazer as coisas do seu jeito, o que nos leva a crer que as palavras de Cohn (2005, p 33)
são extremamente pertinentes “... a diferença entre as crianças e os adultos não é
quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa”, sabe de outro
jeito e nós devemos aprender com elas a aprender essa possibilidade de re-criar o
mundo.
Assim, as crianças da comunidade WAYKIHU possuem “um jeito Sateré-Mawé”
(diferente da cultura tradicional) de viver a infância, apesar de toda a carga de
informações que recebem no seu dia-a-dia, principalmente na escola, sendo que esse
“entre-lugar” é o limite entre os costumes e a vida urbana e deveria representar
“processos [...] produzidos na articulação de diferenças culturais” (BHABHA, 2005, p.
20), mas se contrapõe completamente a esse diálogo, o que contribui para que as
crianças, cada dia mais, sintam-se distantes do espaço escolar e queiram viver mais
intensamente a vida da comunidade, como ficou muito evidente em seus depoimentos.
A relação entre os mais velhos e as crianças na comunidade é bastante dinâmica e
aberta. O convívio entre as crianças é algo fundamental, ultrapassando as barreiras
etárias, sendo que elas participam de diversas atividades diárias, havendo um processo
de interação constante, porém com pouca relação econômica, inclusive quando se trata
da confecção do artesanato. Suas brincadeiras são situações fundamentais na construção
das culturas da infância e representam um infinito universo de possibilidades para a
reconstrução do cotidiano social, o que também lhes permite viver a cultura dos adultos
a partir dos seus modos de vida. Conforme Sarmento (2002, p. 03):

O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento


da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece
no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades
desse processo.
206

Seguindo as reflexões do autor, compreendemos que há uma marcante tendência na


comunidade – que pode ser caracterizada como uma estratégia do grupo – no que diz
respeito às relações sociais e, neste sentido, culturais, de se manterem efetivamente
entre as crianças e os mais velhos, com um reduzido contato com as outras crianças do
entorno. É um campo de relações restritas, é um microcosmo relativamente autônomo
no interior do macrocosmo social, que garante, efetivamente, aos Sateré-Mawé
continuarem a ser um povo que valoriza, respeita e vive a condição étnica a que
pertence (BOURDIEU, 2003).
Falar a língua Sateré-Mawé é um fator considerado fundamental na valorização da
cultura. Para isso, desde o mês de junho de 2007, as crianças passaram a ter aulas com
um professor da comunidade sobre a língua, os rituais e as tradições da etnia. Neste
sentido, podemos considerar essa garantia como um fortalecimento dos processos da
educação indígena com o aparato de uma pedagogia que veicula o saber dos “brancos”,
necessários de serem aprendidos, mas que atribui um valor essencial aos elementos da
tradição do seu povo.
Trata-se de uma ação pedagógica autônoma e de caráter de política identitária, ou
seja, de afirmação e re-afirmação da identidade própria, enquanto parte do povo Sateré-
Mawé vive uma situação específica, já que são moradores de uma grande cidade e
enfrentam a problemática da vida urbana, mas ao mesmo tempo desejam manter sua
ligação com os costumes e tradições de seu povo.
Explica Geertz (1989, p. 179) que:

A experiência humana – a vivência real através dos acontecimentos - não é


mera sensação: partindo da percepção mais imediata até o julgamento mais
imediato, ela é uma sensação significativa - uma sensação interpretada, uma
sensação apreendida.

Logo, as expressões do cotidiano vividas pelas crianças Sateré-Mawé na


comunidade se contradizem e se confrontam notoriamente com os “conteúdos”
veiculados nas escolas, o que provoca uma série de contradições sobre os saberes
existentes nesses dois lugares, tendendo a gerar uma cultura que nega os saberes
tradicionais e supostamente legitimam os saberes urbanos como verdadeiros. Porém, na
comunidade, os saberes do povo Sateré-Mawé resistem fortemente a essa modelagem
que a pedagogia escolar tenta imprimir, e conseguem, em muitas situações, garantir com
207

estratégias próprias e com a educação indígena, que as tradições do seu povo estejam
fortemente ligadas à vida das crianças.
Assim, apesar da cultura da infância indígena, cuja linguagem transita entre o dito
da cultura nativa e o dito legitimado socialmente determinado pela escola, estar no cerne
dessa contradição, a pesquisa demonstrou que as crianças, mesmo diante de todo o
aparato ideológico da escola, continuam vivendo intensamente a infância que o povo
Sateré-Mawé concebe e defende como fundamental a suas crianças.
As culturas da infância encontram-se nos limiares das “encruzilhadas”, pois essas
culturas possuem, antes de qualquer coisa, dimensões relacionais, estruturando-se
nessas relações formas e conteúdos representacionais distintos, mas que garantem o
papel fundamental das crianças Sateré-Mawé no seu processo de ressignificação e
reconstrução (PINTO e SARMENTO, 1997).
Na possibilidade de podermos contribuir efetivamente com essa contradição tão
presente entre escola e comunidade, optamos por estabelecer algumas indicações que
têm, como base de sustentação, todo o processo empírico da pesquisa vivenciada com as
crianças, com os demais membros da comunidade e ouvindo os mais velhos,
considerados os grandes sábios do povo Sateré-Mawé.
Talvez nossas proposituras esbarrem na própria lógica do conhecimento acadêmico,
mas ao nos propormos, no início da pesquisa, a ouvir as crianças, compreendendo-as
como agentes sociais, não poderíamos tomar outro caminho, pois se assim o fizéssemos
estaríamos contradizendo todo o corpo de análise que foi construído no interior da tese e
na maneira dos Sateré-Mawé em conceber o mundo.
Neste sentido, acreditamos que a escola urbana de educação infantil e dos anos
iniciais do ensino fundamental não é um privilegiado lócus de aprendizagens que
contribua com o conhecimento das crianças Sateré-Mawé, no sentido de resguardar sua
condição étnica. Ao contrário, nelas se reproduzem o ideal da infância burguesa e se
desqualifica todo o aparato de conhecimento que as crianças possuem.
No sentido que está posto o trabalho pedagógico das escolas pesquisadas, não
visualizamos possibilidades, pelo menos em curto prazo, de melhoria no fazer
educativo, que possam se pautar numa visão aberta ao diálogo com outros saberes no
sentido da concretização de uma pedagogia interdisciplinar, multicultural ou
intercultural. Mas, sim, de um espaço de exclusão, preconceitos e negação das
diferenças, principalmente olhando-se as relações estabelecidas com as crianças Sateré-
Mawé, ou melhor, relações para as crianças.
208

Não queremos aqui afiliar-nos aos defensores da “desescolarização” das populações


indígenas153, mas defendermos uma escola que possa romper com seus próprios vícios e
aprender com os elementos da vida cotidiana que a circunda, a dialogar com os diversos
saberes presentes no universo social que a representam e, mais ainda, uma escola real,
que consiga ultrapassar a dimensão da imaterialidade dos conhecimentos livrescos,
tornando-os peças vivas da história do nosso tempo. Uma história que precisa ser
construída no jogo das diferenças e na capacidade de respeito ao grande mosaico
cultural que forja a realidade da cidade de Manaus e de muitas outras cidades
brasileiras.
Nossas indicações, a partir de tais constatações, vão em direção à própria luta dos
Sateré-Mawé e de outras comunidades indígenas de Manaus, que defendem a
construção de uma educação escolar indígena, ou seja, uma escola em que os
professores sejam indígenas e que os “processos próprios de aprendizagem” de seu
povo sejam reconhecidos como conhecimento capaz de interagir com os conhecimentos
dos “brancos”.
Sabemos que a concretização dessa escola ainda vai demandar um processo de
muita organização e luta por parte dos povos indígenas de Manaus e das diversas
associações que estão engajadas nesta causa. Pensar essa pedagogia indígena representa
compreendê-la no bojo do espaço urbano, pois o que está em discussão não é a escola
indígena, que já há algum tempo vem ganhando espaços nas muitas aldeias pelo país
afora. Evidente que toda experiência acumulada no trabalho destas instituições são
marcos essenciais para se desenhar uma escola indígena na cidade, mas é preciso muito
cuidado para não se deixar cair no fosso das “idealizações localizadas” como nos afirma
Bourdieu (2003).
Outra questão que consideramos fundamental em indicar, é que a presença das
crianças não se restrinja a compor o espaço como alunos, mas entendendo que as
mesmas devam ser parceiras ativas na consolidação desse projeto de escola indígena na
cidade, onde se possa, de fato, compreendê-las como agentes de direitos e competentes
na construção de visões de mundo que possam comportar os seus jeitos de viver a
infância.
Neste sentido, as falas das crianças Sateré-Mawé representaram um riquíssimo
acervo para que pudéssemos chegar à compreensão dos seus jeitos de viver a infância.

153
Feldman-Bianco; Ribeiro (2003).
209

Porém, há ainda um caminho muito longo a se seguir, sendo necessário ultrapassar


determinações metodológicas cristalizadas e compreender, de fato, que a criança
indígena produz um conhecimento sobre si própria e sobre o mundo. Quando
estivermos efetivamente vivenciando essa possibilidade, nossos esforços, e o de muitos
outros pesquisadores citados nesta tese, terão valido a pena.
Aliás, já valem, pois nada mais gratificante do que ouvir o que elas têm a nos dizer.
Nada mais rico do que aprender com elas a olhar o mundo. Nada mais fascinante do que
caminhar pelos seus imaginários. Nada mais instigante do que ter a possibilidade de
chegar a um destino onde o caminho não está dado, precisa ser construído num processo
constante de interações. Aos que se encorajarem nessa “aventura”, o caminho é sem
volta, felizmente, pois ao escutarmos o que elas têm a nos dizer, jamais seremos os
mesmos. Esperamos que esta tese possa trazer contribuições tanto para o campo
acadêmico como para a realidade das crianças. O convite para nos lançarmos a esse
grande desafio está feito.
210
211

154
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