Quando Os Predios Comecaram A Cair - Mauro Paz

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Mauro Paz

Quando os prédios começaram a cair


Capa
Folha de Rosto

Parte 1
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Créditos
Parte 1
1

Georgia desapareceu no dia em que o primeiro prédio caiu em São


Paulo. Era uma terça-feira de junho. Apesar do inverno, fazia calor.
A certeza de Georgia aparecer às terças e quintas me deixava
tranquilo. Transávamos um pouco. Acendíamos um baseado. Às
vezes dava tempo para um café. Depois, ela ia embora. Georgia era
tudo que eu tinha. Fazia meses que eu sabia disso, mas naquela
tarde de junho enxerguei de forma nítida. Enquanto Georgia
fumava nua na porta da sacada, Caetano cantava pela caixinha de
som e o ar seco da cidade trazia o cheiro de maconha para dentro
da quitinete, percebi que a minha vida havia se reduzido a esperar
as terças e quintas para morder a bunda daquela mulher vinte anos
mais nova do que eu e me sentir um pouco menos fracassado. Não
desperdicei a oportunidade.
— Sem marcas — Georgia riu. Alcançou o baseado para eu dar
um pega.
Traguei e me estirei no sofá-cama. Olhos fechados. Pau
tombado para o lado. Fiquei ali por uns segundos. Minutos, talvez.
Então os vidros da janela tremeram. A televisão na estante tremeu.
E a voz de Caetano saiu mais tremida do que o normal.
— Subiu uma fumaça estranha no céu — Georgia disse.
Quando abri os olhos, Georgia vestia a calcinha. Telefone na
mão.
— Precisam de mim. Caiu um prédio.
— Você é bombeira? — sentei com as mãos atrás da nuca.
Georgia ignorou a pergunta. Virou de costas e prendeu o fecho
do sutiã. Nem atentei para o fato de que um prédio viera abaixo.
Gostava de ver Georgia se vestir. Havia cumplicidade naquilo.
Pequena, mas havia. Não entendi por que ela precisava sair com
tanta pressa. Devia ser coisa de trabalho. Arrisquei outras
profissões. Enfermeira. Assistente social. Engenheira.
— Aqui eu sou a mina que transa com você e vai embora —
Georgia prendeu os cabelos em um rabo de cavalo.
— Você vem na quinta?
— Eu já faltei alguma?
Georgia terminou de vestir o jeans e logo percebeu o celular
nas minhas mãos. Escondeu o rosto com a bolsa. A foto ficou um
borrão. Georgia me deu um beijo rápido. Disse que voltava na
quinta. Ainda escondida atrás da bolsa, abriu a porta do
apartamento. Antes de sair, mandou um beijo. Na segunda foto,
tive mais sucesso com o foco, não com o enquadramento. Georgia
era apenas um rosto espremido entre o vão da porta e a bolsa.
2

Depois que Georgia saiu, fui até a sacada. O trânsito do centro


estava parado. Sirenes se misturavam a buzinas. Poucas quadras
adiante, uma nuvem cinza nascia dos prédios. Era um cinza
espesso. Pensei em descer. Tive preguiça. No celular, abri o portal
de notícias. A manchete principal anunciava a queda de um prédio
no centro. Cliquei. O prédio se chamava edifício Glória. Nove
andares. Ficava próximo à estação da Luz, na General Osório. A
câmera de segurança pendurada no cruzamento a uns cinquenta
metros de distância registrou o desabamento. O vídeo mostrava
dois motoristas conversando num ponto de táxi. Na calçada em
frente ao prédio, uma mulher com bebê no colo pedia dinheiro.
Assim que uma senhora entregou uns trocados, a base da
construção desmoronou. Uma nuvem de poeira engoliu tudo ao
redor. À medida que as janelas dos andares superiores
despencavam, sumiam em meio ao pó. Mesmo depois de o prédio
cair por completo e os cacos de concreto se amontoarem por todos
os lados da rua, a poeira resistia no ar. Uma nota pequena ao fim da
reportagem dizia que os técnicos da prefeitura estavam no local,
mas ainda era cedo para apontar o motivo da queda. Uma equipe
reforçada de bombeiros buscava por sobreviventes.
Aquela não era a primeira notícia sobre desabamento que eu via
na semana. Dias antes, o telejornal mostrou a queda de um bloco
residencial em Hong Kong. Era um edifício enorme. Mais de vinte
andares. Dezenas de janelinhas empilhadas. O bloco ficava de
frente para outros dois prédios. A foto que vi passava uma sensação
de claustrofobia. Estimava-se que o desastre levara mais de cem
almas. Gente pobre, que o governo nem fez questão de contar com
exatidão.
3

Na semana anterior ao desabamento, passei em frente ao edifício


Glória. O prédio tinha pichações de cima a baixo. Paredes
descascadas. Na porta, um sujeito alto, braços cruzados e óculos
escuros, fiscalizava o movimento. Os traficantes de crack
comandavam a área. Faziam dinheiro com os viciados e não
investiam nada em manutenção. Um ano antes, a marquise do
edifício Glória havia caído. O morador de rua que dormia embaixo
dela morreu na hora. Isso portal nenhum noticiou. Eu evitava
passar pela região da Luz. Você nunca sabe o que um viciado é
capaz de fazer para comprar crack. Além disso, as ruas fediam a
cocô humano. Ou, na melhor das hipóteses, creolina. Não que na
República, onde eu morava, as coisas fossem diferentes. Há
tempos o centro da cidade estava abandonado. Acontece que na
cracolândia rolava um fenômeno ímpar. A região reunia centenas
de dependentes. Eles sentavam em rodas no meio das ruas.
Embrulhados em cobertores, fumavam crack em cachimbos
improvisados com pedaços de alumínio. Alguns vagavam com o
olhar perdido. Todos com ossos pontudos e a pele gasta pela droga.
Havia lixo e tendas por toda parte.
Quando o último prefeito assumiu, disse que a primeira meta
era pôr fim à cracolândia. Primeiro mandou helicópteros. Depois
um batalhão. A polícia usou balas de borracha e bombas de gás
lacrimogêneo. Os usuários contra-atacaram. Atearam fogo nos
montes de lixo. Cenário de guerra. A resistência não teve fôlego.
Logo os policiais avançaram. Apreenderam armas e drogas em
prédios da região. O prefeito concedeu entrevista na semana
seguinte. Disse que a operação fora um sucesso. Menos de três
meses depois, a tribo estava toda de volta às ruas, numa rave
eterna, vinte e quatro horas por dia, fumando crack sem parar.
4

Conheci Georgia num desses aplicativos de relacionamento. JP me


mostrou como funcionava numa tarde no escritório. Baixei muito
tempo depois, quando fui morar sozinho. Precisava de um nome
para o perfil. Escolhi Solano. Escrevi na descrição: “Cara legal
procura alguém para um lance”. Adicionei uma foto que não
mostrava o rosto. Era uma foto de uns três anos antes que tirei sem
camisa no banheiro de casa. Estava uns bons quilos mais magro,
mas ainda refletia o que eu era. Por não mostrar o rosto, todas as
mulheres perguntavam se eu era casado. Ajustei o texto para
“Solteiro legal procura alguém para um lance”. Não adiantou.
Seguiram me perguntando mesmo assim. Num mundo em que as
pessoas tiram mais selfies do que dão bom-dia, um sujeito que não
mostra o rosto sempre é suspeito. Nas primeiras semanas o app foi
divertido. Saí com uma mulher diferente por dia. Logo perdeu a
graça. Todo aquele ritual me deu preguiça. Papinho no chat. Date
num bar. Gastar uma grana com drinques em troca da incerteza de
acabar a noite com sexo bom. Às vezes acontecia pior, a conversa
no bar era tão ruim que nem em sexo a noite terminava.
A última garota com quem saí nas primeiras semanas foi uma
loira grandona de cabelo fino. Era bonita, apesar do rosto marcado
pela acne e dos olhos tristes. Reclamou a noite inteira do ex-
emprego. Sete anos numa empresa têxtil. Entrou como estagiária e
saiu como gerente de marketing. Surtou de tanto trabalhar. Depois
de meses de licença, pediu as contas. Foi a melhor coisa que fez na
vida. Agora estava numa fase zen, me disse. Não pareceu. Acendia
um cigarro atrás do outro. Bebia rápido. Depois de contar que o pai
morreu num acidente de trânsito quanto ela tinha oito anos,
passou a mão por baixo da mesa e alisou a minha virilha. Perguntou
se eu não tinha algo para beber em casa. Peguei o telefone para
pedir um Uber. Ela falou que estava de carro. No caminho, não
parou de falar. Sabia que ninguém mais tinha carro. Era um puta
gasto, mas ela curtia pegar a estrada. Além disso, guardava um
plano para aquele carro. Tive certeza de que ela pretendia se matar
numa curva contra um caminhão. Foi muito estranha a coisa toda
no apartamento. Abrimos umas cervejas. Fumamos um baseado.
Durante a transa, parecia que havia um cadáver embaixo de mim.
A ideia de que ela queria se matar não me saía da cabeça. Nem sei
como fiquei de pau duro.
Depois dessa, dei um tempo no app. Muita gente deprimida por
lá. Eu não sabia se estava tão fodido a ponto de só atrair esse tipo
de mulher ou se o ritmo de trabalho da cidade havia deixado todo
mundo doente. O fato é que começar uma nova conversa me dava
preguiça. Até porque todas as conversas eram iguais. A
rotatividade é tão grande nesses aplicativos que ninguém faz o
menor esforço para parecer interessante. JP tinha paciência para
esse negócio. Toda hora exibia uma garota diferente. JP gostava de
jogar conversa fora. Eu, não. Fiz duas semanas de detox longe de
chats e likes.
Numa tarde de bobeira, abri o app de novo. Na notificação de
crush, Georgia. Vinte e cinco anos. Quase duas décadas mais nova
do que eu. Na foto de perfil, ela estava na praia, com uma blusa
branca e óculos escuros de armação dourada. O vento cobria parte
do rosto com o cabelo, mas deixava espaço para o sorriso
espontâneo. Georgia puxou conversa no chat: “Um lance não é um
romance, certo?”. Achei engraçado. “Ninguém quer romance
aqui”, respondi.
No perfil de Georgia, havia uns álbuns de música destacados.
Todos dos anos 90. Foi por aí que comecei a conversa. Comentei
que era estranho alguém com vinte e poucos anos gostar de tanta
banda antiga. Georgia respondeu que preferia velharia, por isso
tinha dado crush comigo. Ri tão alto que as pessoas da padaria
onde eu tomava um pingado pararam para ver do que se tratava.
Seguimos a conversa sobre bandas. Eu preferia o Unplugged, do
Nirvana. Georgia, o In Utero. Eu, Ok Computer. Georgia, The
Bends. Os dois concordavam que Pearl Jam era chato pra cacete.
Esse assunto rendeu quase dois dias. Quando chamei Georgia para
sair, ela respondeu que estava fora da cidade. Só podia na semana
seguinte. Nesse meio-tempo, falamos cada vez mais. A gente
comentava as situações mais comuns: o meu vizinho que escutava
Wando no volume máximo; o balconista que pediu a identidade de
Georgia para vender um maço de cigarros; o encontro de
terraplanistas que aconteceria no centro da cidade.
Uma semana depois, finalmente marcamos num bar do centro.
Cheguei dez minutos antes. Fazia um calor fodido. Sentei numa
mesa ao fundo do bar e pedi uma cerveja. Vinte minutos depois do
combinado, nada de Georgia. As pessoas me olhavam com pena.
Ou pelo menos eu julgava assim. O mais provável é que ninguém
dava a mínima, mas beber sozinho me deixava constrangido à beça.
Dei o fim da garrafa de cerveja como limite para ir embora.
Georgia apareceu quando o garçom trazia a conta. Pediu desculpa e
abriu um sorriso enorme. Como se fosse dona do bar, levantou o
braço para pedir uma cerveja e outro copo. Mesmo depois de uma
semana de conversa furada no app, eu não fazia ideia do que dizer.
Georgia agora tinha rosto. Um belo rosto com olhos castanhos,
queixo pequeno e lábios finos. Uma mistura de índia com europeu
que resultou num cabelo preto comprido com volume rebelde.
Georgia quebrou o gelo. Perguntou em que galpão abandonado eu
roubaria o rim dela.
— Não sei. Eu só atraio a vítima. Os russos definem o local —
respondi.
O resto da conversa rolou como se a gente se conhecesse havia
uma década. Trinta minutos depois estávamos na minha casa.
Pelados. Eu nunca soube onde Georgia morava, no que trabalhava,
se era casada, nem seu nome verdadeiro. Sabia que apareceria às
cinco da tarde, terças e quintas. Essa rotina durou três meses.
5

Dois dias após a queda do edifício Glória, a nuvem de poeira


resistia sobre o centro da cidade. Era como um nevoeiro.
Dificultava a visão, deixava uma camada de fuligem na lataria dos
carros e fodia a minha rinite. Os escombros bloqueavam a rua.
Bombeiros trabalhavam sem parar na remoção de corpos e
concreto. Para facilitar o trabalho, agentes da prefeitura
interditaram a via com cavaletes. Assim, todos os ônibus que
circulavam por ali passaram a trafegar pela frente do meu prédio, o
que fez do trânsito no centro um inferno permanente. Apesar
desse contratempo, as pessoas seguiam suas vidas. Os carrinhos de
madeira serviam bolo e café ao povo que saía do metrô. Uns caras
pediam grana pra comprar crack. Eu caminhava com cachorros.
Não que amasse pets, foi apenas o jeito que arrumei para fazer
dinheiro. Além disso, a psiquiatra aconselhou contato com animais
depois do último surto de ansiedade. O ideal seriam cavalos.
Pentear crinas dá uma paz incrível. Recomendo. Difícil era
conseguir um cavalo perto do centro de São Paulo. Então me
inscrevi num aplicativo chamado Pet­Walker. Em poucas semanas,
fiz uma clientela razoável entre os hipsters de Santa Cecília e os
abonados de Higienópolis. Cada cachorro rendia trezentos reais
por mês.
Naquela quinta-feira, levei quatro cachorros ao parque Buenos
Aires. Sentei num dos bancos à beira do gramado. Soltei Nino, um
maltês barulhento, e Paçoca para brincarem. Prendi os outros na
perna de ferro do banco. Nino corria em círculos. Paçoca, fora de
forma, tentava acompanhar. Acendi um baseado para ver o tempo
passar. Queria que as cinco horas chegassem logo. Queria Georgia
na minha casa. Queria esquecer por alguns minutos a vida de
merda que eu levava escondido naquele prédio decadente.
6

Enquanto fumava, reparei que Paçoca lembrava Márcia, uma


cachorra que tive na infância. Escolhi o nome em homenagem à
professora que me alfabetizou. Com sete anos, não imaginava que
aquela era uma ideia tosca. Meu pai, o adulto mais próximo, não
fez o menor esforço para me explicar. Assim como Paçoca, Márcia
era uma vira-lata obesa e malhada. Preta e caramelo. Tinha a coluna
arqueada e os caninos saltados para os lados. Parecia uma hiena.
Não sei de onde meu pai tirou aquela desgraça. Talvez em uma
aposta. Meu pai apostava qualquer coisa no boteco. Fórmula 1,
futebol, sinuca, dominó. Perdia quase sempre. Quando ganhava o
prêmio, era algo bizarro como uma samambaia ou um moedor de
carne. É bem provável que Márcia surgiu de uma aposta dessas.
Apesar de feia, era uma cachorra amável. Quando eu saía para jogar
futebol, ela pulava o muro para me seguir. Durante a partida, corria
na beira do campo como se estivesse torcendo. Os garotos do
bairro zoavam, diziam que Márcia era minha namorada. Naquele
tempo, cachorro comia de tudo. Arroz, feijão, carne, qualquer
resto. Deve ser por isso que ela era forte pra cacete. Morreu de
velha, com uns doze anos. Desde aquela época detesto livro e filme
que tenha cachorro na história. Os autores são muito clichês.
Enfiam os bichos no enredo só para arrancar lágrimas do público.
Pode reparar, na maior parte das histórias o cachorro morre ou se
machuca. É apelação pura.
7

Ao contrário de Márcia, Paçoca cresceu num apartamento com


ração balanceada e brinquedos de borracha. Meio mimada.
Desistiu de correr atrás do Nino. Veio na minha direção com a
língua babada. Os outros cães latiram para receber a colega.
Estiquei a mão para acariciar Paçoca atrás do pescoço e prendi o
engate da guia na argola da coleira de couro. Chamei Nino, mas
não adiantou. Ele correu com uma energia sem fim, o filho da puta.
Aproveitei para enviar uma mensagem para Georgia.
“Cinco horas lá em casa?”
Mensagem recebida e não lida. Faltava meia hora para as cinco.
Apaguei a ponta na madeira do banco. Levantei para buscar o
maltês. Endiabrado, o floco de pelo latiu. Saltitou. Correu para trás
de um arbusto. Nino sempre fazia isso. Dei meia-volta e fui na
direção dos outros cachorros. Frida, uma cocker spaniel, foi a
primeira a levantar. Argos, o boxer, o segundo. Deitada, Paçoca
precisou que eu desse um tranco na guia para tomar uma atitude.
Quase no portão do parque, Nino nos alcançou. Prendi a coleira e
comecei a ronda para devolver os cachorros.
A dona da Paçoca era uma artista plástica ruiva de cabeleira
cacheada e peitos grandes. Flávia morava num apartamento
enorme que usava também como ateliê. Ficava próximo à avenida
Angélica. Desceu pra buscar Paçoca e perguntou se eu queria água
ou café. Quase aceitei. Eu gostava do camisetão branco cheio de
tinta respingada que ela vestia. Agradeci e vazei. No caminho,
espiei o telefone algumas vezes. Nenhum sinal de Georgia. Às
vezes ela fazia dessas. Sumia durante a semana, na hora marcada,
aparecia.
Cheguei ao prédio de Nino e toquei o interfone. Dois
caminhões de bombeiro passaram com sirenes ligadas. Toquei o
interfone de novo. Ninguém respondeu. Abri o PetWalker para ver
o número do telefone do dono de Nino. A ligação chamou,
chamou, ninguém atendeu. Enviei uma mensagem de texto:
“Boa tarde, César. Cheguei com o Nino aqui embaixo. Por
favor, pode descer? Tenho um compromisso.”
Fiquei plantado lá embaixo por mais uns minutos. Enviei outra
mensagem. Avisei que entregaria os outros cachorros, voltava em
dez minutos. A dona de Frida morava na mesma quadra. Vivia num
estúdio espelhado e usava um perfume doce, forte à beça. Nos
poucos segundos entre eu entregar a Frida e pegar o dinheiro, o
cheiro colava na roupa. Acho que ela fazia programa. Isso nunca
me importou. Vanda era muito educada e dava uma boa gorjeta. De
volta à calçada, Argos e Nino embestaram com um mendigo que
catava latas na lixeira. Nino só fazia barulho. Argos era forte.
Avançou na direção do mendigo enquanto eu conferia se havia
alguma resposta de Georgia no telefone. O homem ficou pálido.
Perguntei se o cachorro chegou a morder. Ele disse que não.
Fiquei mal com a situação e dei cinco reais como pedido de
desculpas. O dono de Argos era um hipster folgado. Passava o dia
de pijama. Cabelo despenteado. Um bigode horrível. Dizia que era
músico. Quando sentiu o perfume de Vanda na minha roupa,
perguntou se eu havia levado Argos para um puteiro. Deixei que
ele risse sozinho até perceber o papel de trouxa que fazia e pegar a
coleira do cachorro.
Voltei ao prédio de Nino. O dono não respondeu às mensagens,
nem às ligações, nem ao maldito interfone. Faltavam poucos
minutos para as cinco horas. Se Georgia chegasse e eu não
estivesse em casa, provavelmente iria embora. Fiquei puto. Prendi
a guia de Nino na grade do edifício. Dei três passos e Nino desatou
a latir. Coluna ereta. Rabo em pé. Latia como se falasse “Não me
deixa aqui, meu chapa”. Detesto ver bicho sofrer. Antes de chegar
à esquina me arrependi. Dei meia-volta. Soltei a coleira de Nino da
grade e levei ele para minha casa.
8

Cheguei ao prédio passavam dez minutos das cinco. Dagu, um dos


caras que se revezavam na portaria, fez piada quando viu Nino. Ui,
cachorrinho de madame. Ri para não perder a amizade. Subi. Em
casa, enchi um potinho plástico com água e deixei Nino na sacada.
Pelo vidro, ele me assistiu dar uma geral no apartamento. Estiquei
o lençol, o edredom. Alinhei as almofadas e acendi um incenso de
laranjeira. Catei as roupas espalhadas. Levei uma cerveja para o
sofá. Na televisão, a repórter dava as últimas notícias sobre o
desabamento do edifício Glória. Vinte e sete mortos. Oito
desaparecidos. Onze resgatados pelos bombeiros. A reportagem
mostrava também as famílias dos prédios vizinhos. Toda a pequena
quadra foi desocupada. Os engenheiros da Secretaria de Obras
temiam outros desabamentos. Cem famílias removidas para o
ginásio da prefeitura. As investigações sobre o motivo da queda
seguiam em aberto. Havia a denúncia de que o laudo de vistoria
não constava nos arquivos da Secretaria.
Eram cinco e meia e nada de Georgia aparecer. Ela nunca
atrasava. Mandei outra mensagem. Depois de cinco minutos, mais
uma. Respiração pesada. Nem a segunda cerveja deu conta da
ansiedade. Aumentei o volume da televisão. Não que eu estivesse
interessado em ouvir o prefeito se eximir da culpa pela falta de
fiscalização da estrutura do prédio. O som da televisão me fazia
companhia. Fui para a sacada. Fechei um baseado. Ali de cima eu
conseguia ver se Georgia chegasse. Nino pulou pedindo colo.
Senti o celular tremer no bolso. Número não cadastrado.
— Seu filho da puta, ficou maluco? Onde está meu cachorro?
— Boa tarde. Avisei que eu tinha compromisso. Trouxe Nino
pra casa. Está feliz da vida aqui. Fique tranquilo.
O tal do César queria Nino de volta imediatamente. Expliquei
que estava à espera de uma pessoa. Passei o meu endereço. César
respondeu que não pisaria no pulgueiro onde eu morava. Falou que
eu era um bosta, um cretino e todo tipo de insultos que o dono de
uma Mercedes se sente no direito de dizer a um prestador de
serviço que cata o cocô do cachorro dele em troca de meia dúzia de
reais. Depois desse ponto, respirei fundo. Pedi desculpas pelo
desencontro. Disse que à noite entregaria Nino e deixei César
relinchar sozinho.
9

Georgia não apareceu. Oito horas, desci com Nino. Bastante


movimento na Major Sertório. Os entregadores disputavam espaço
na ciclovia. Os botecos cheios. Todos os olhos para o jogo do São
Paulo nas telas das televisões. Cruzei a Amaral Gurgel. Embaixo do
viaduto, um adolescente fotografava o namorado encostado no
grafite de um dos pilares. A brincadeira não durou dois minutos.
Um garoto de bicicleta levou o celular. O casal assistiu sem reação
à bicicleta ganhar distância. Subi a avenida Higienópolis até a
Itacolomi, onde Nino morava. Toquei o interfone. A poeira e o ar
seco irritaram a minha visão. Sentia uma montanha de areia entre
as pálpebras e os olhos. Esfregar não ajudou em nada. Quando
César desceu, eu enxergava embaçado. O cretino nem deu tempo
para eu explicar a situação. Pegou Nino no colo. A cabeça gorda
entalada na camisa quase a ponto de explodir. César disse que eu
era um moleque. Por isso, estava desempregado. Um vizinho
espiou pela janela a gritaria. César falou também que por conta de
bostas como eu o país não avançava. Na Alemanha, absurdos assim
jamais aconteciam. Faria uma denúncia contra mim no aplicativo.
Quase perguntei por que ele não mudava para a Alemanha. Depois
pensei em contar que estava desempregado porque fodi a cabeça
trabalhando com sociopatas como ele. Por último, pensei em
agarrar César pela gravata e esmurrar a cara de sapo dele até cansar
a mão. Mantive a calma. Precisava do dinheiro dos passeios. A
grana andava curta. O aluguel vencia na semana seguinte. Pedi
desculpas mais uma vez e fui embora.
10

Cheguei em casa tenso. Deixei a televisão num filme de suspense


para relaxar. A janela secreta. JP detestava aquele tipo de filme.
Gostava só de umas besteiras cult, tipo cinema iraniano. Nisso a
gente nunca concordou. Se eu fosse escritor ou roteirista,
escreveria algo como o Stephen King. O cara é um gênio. Quem
assistiu O iluminado sabe. Ninguém tem mais livros adaptados para
o cinema do que Stephen King. Além de ganhar uma puta grana,
ele vive de boa. Toca guitarra. Tem uns cachorros estranhos. E não
fica por aí falando abobrinha intelectualoide.
Para o JP o maior escritor de todos os tempos é o Cortázar.
Nunca li nada do Cortázar. JP até me deu de aniversário um
romance do cara. O jogo da amarelinha, um tijolo com quase
quinhentas páginas. Procurei o resumo na internet para o caso de
JP perguntar o que achei do livro. O jogo da amarelinha conta a
história de um cara que vaga por Paris à procura de uma namorada
maluca e divaga sobre a vida. Só o resumo já me deu sono. It é um
livro bom. O cemitério é um livro bom. Quer dizer, imagino que
sejam bons. Só assisti aos filmes. Uma vez li que Stephen King
doava quatro milhões de dólares por ano para bibliotecas,
bombeiros, escolas e organizações que apoiam as artes. O que JP já
apoiou? Porra nenhuma. E ele tem dinheiro pra cacete.
11

Bebi demais. Tive uma noite horrível. Meu nariz não parava de
escorrer por conta do pó vindo da rua. Para piorar, de madrugada
ele apareceu. Na guarda da cama. Parado. Com roupa escura. Rosto
turvo. Olhava para mim em silêncio. Tentei me mover, o corpo não
respondeu. Ele tocou meus pés com a mão fria. O ar não chegava
aos pulmões. Quem estava atrás daquela sombra? Quando o meu
braço direito me obedeceu, acendi a lâmpada de cabeceira.
12

Sempre tive certeza de que espíritos não existiam. Assim que fui
morar no edifício João Ramalho, isso mudou. Na primeira noite, eu
lia as notícias sentado na sala quando senti o corpo inteiro arrepiar.
Era como se alguém estivesse atrás de mim. Uma presença pesada.
Insistente. Liguei a televisão. Deixei num desses programas de
humor lamentáveis de canal aberto. Levei uns minutos para
relaxar. Depois disso, toda vez que eu ia à cozinha, a pele
arrepiava. Então vieram os sonhos. Uma vez em que dormi no sofá,
ele surgiu como uma nuvem preta. Vagou sobre os móveis. Sentou
ao meu lado. Na manhã seguinte, eu não sabia distinguir se tinha
sido um sonho ou verdade. Perguntei ao Erik, o porteiro, se
alguém morreu no apartamento. Ele preferiu não comentar. Disse
que o Adriano sabia melhor da história. Acontece que o Adriano, o
ex-policial que administrava o prédio, não era dado a conversas
com moradores. Depois de acertar o aluguel, a única vez que
conversei com Adriano foi num encontro no elevador.
— Olha o que fizeram com o vagabundo — Adriano me
mostrou um vídeo no celular.
Numa sala fechada, nos fundos de um supermercado, dois
seguranças estalavam um chicote nas costas nuas de um
adolescente. O garoto chorava. Implorava pelo fim da tortura.
Adriano ria. Disse que os seguranças pegaram o guri com um
pacote de bolacha embaixo da blusa. Por essa lembrança, deixei o
assunto da assombração quieto. Talvez fosse alguém que Adriano
matou. Talvez fosse piração da minha cabeça estragada. Que mal
um espírito podia me fazer? Li num site que incensos eram bons
para espantar esse tipo de energia. Bad vibes. Comprei uma caixa
de um hippie na rua. Os incensos fediam um pouco, mas
adiantaram. Meu colega de apartamento passou uns meses sem se
manifestar. O filho da mãe ressurgiu logo que tudo ficou torto.
13

Acordei às cinco da manhã. Ansiedade a mil. Na cidade o silêncio


nunca é completo, nem de madrugada. Cabeça no travesseiro,
olhos fechados, os sons ao redor me cutucavam. Uma moto. Gatos
brigando. Uma sirene. O berro de um bêbado. O cabo do elevador
trabalhando. O apito de ré do caminhão de lixo. Ou apenas ele: o
ronco permanente dos pneus no asfalto, a respiração da cidade.
Aquele barulho grave, constante, pressionava o meu peito com as
duas mãos. Impossível dormir. Fui ao banheiro limpar o nariz com
soro fisiológico. Em seguida, apliquei um spray antialérgico.
Olhava o telefone a cada dois minutos na expectativa de que
Georgia desse sinal de vida. Comecei uma série de exercícios para
jogar energia fora. Depois de completar quarenta anos, a gordura
acumulada na barriga se tornou inevitável e atrapalhava um pouco
os movimentos. A cada dia eu sentia os músculos perderem
tonicidade. Mesmo assim, ainda dava conta de um circuito básico.
Dez flexões. Dez barras. Trinta abdominais. Depois repetia tudo.
Suar esvaziava a cabeça. A psiquiatra recomendou exercícios
físicos, contato com animais e Escitalopram, uma vez ao dia. Eu
não gostava de malhar. JP era obcecado. Me incentivou a procurar
uma academia. Ele levantava de madrugada para pedalar. Percorria
trinta quilômetros. Depois nadava quarenta minutos. Tomava
suplementos e vivia uma rotina regrada para competir em provas
de triatlo. JP sonhava que eu o acompanhasse no treino de bicicleta
pela manhã. Nunca fui. Um pouco por preguiça, outro tanto por
medo de me tornar um alucinado por resultados igual a ele. Eu
malhava o básico, poucas vezes por semana. Depois que a médica
recomendou e percebi o quanto me tranquilizava, aumentei a
frequência.
O circuito de exercícios me ajudou a relaxar. O problema é que,
ao colar a cara no chão para fazer as flexões, respirei mais poeira. A
rinite piorou. Enquanto tomava café, tive um acesso de espirros
tão forte que fiquei tonto, sem ar. A quitinete estava coberta de pó.
Fechei o vidro da janela. Baixei os basculantes do banheiro. Prendi
uma camiseta umedecida ao redor da cabeça, cobrindo o nariz. Só
uma faxina ia me livrar dos espirros.
Atrás da estante da televisão, a poeira acumulada encontrava
fios de cabelo de Georgia. Formava uma pequena bola. Tirei o
excesso de pó com a vassoura. Em seguida, passei um pano com
água e desinfetante. O cheiro de eucalipto abriu as vias nasais. Um
sucesso. Arredei a mesinha auxiliar, a cadeira, o cesto de roupas
sujas. Repeti a operação. Vassoura. Pano. Embaixo do sofá,
encontrei uma mochila caída. Era de náilon, azul-escura. Dentro,
um par de sapatilhas, uma toalha de banho, uma malha de balé e
um nécessaire com xampu, sabonete líquido e um rolo de
esparadrapo. O xampu tinha o perfume dos cabelos de Georgia,
camomila. A malha trazia o bordado do Studio Lenita Soares.
14

Nunca imaginei que Georgia dançasse balé. Mas fazia sentido. Os


braços magros. As pernas fortes. O jeito suave de andar descalça
pelo apartamento. Coluna reta. As pontas dos pés tocavam
primeiro o chão. Os calcanhares sempre leves. A leveza de Georgia
não se limitava ao andar. Estava também em como sentava sobre as
pernas, de lado. Ou como segurava um copo de cerveja. Ou como
cruzava os braços para tirar a blusa. A presença rarefeita de
Georgia era vida pra mim. Eu que julgava a minha vida seca.
Consumida. Exilada num bloco de concreto a cinquenta metros de
altura. Eu, que mais parecia uma assombração, fui tirado para
dançar por aquela mulher que convivia comigo por mensagens de
celular, aparecia para transar quando queria e me dizia a sangue-
frio que não tinha tempo para se apaixonar.
Eu pediria para Georgia dançar. Talvez houvesse espaço na sala
se eu arredasse o sofá e a estante da televisão. Imaginei Georgia
rodopiando. Pés descalços. Cabelo solto. Na caixinha de som, uma
sonata de Mozart. Os braços de Georgia rodavam. Esticavam-se e
contraíam-se em movimentos gentis. Georgia dançava de olhos
fechados. Cada movimento nascia como se ela, a música e a sala
fossem uma coisa só. Eu era apenas espectador.
15

Não sei muito de música clássica. Imaginei Georgia dançando


Mozart porque é o pouco que conheço. Li sobre ele numa revista
enquanto esperava a psiquiatra. Segundo o artigo, Wolfgang
Amadeus Mozart viveu até os trinta e cinco anos. Começou a
escrever para piano e violino com cinco. Compôs mais de
seiscentas músicas. O que faz dele praticamente o Stephen King
da música clássica. Depois reparei que diversos filmes baseados em
livros do King têm na trilha sonora músicas do Mozart. O artigo da
revista falava de uma pesquisa realizada na Universidade da
Califórnia. O estudo do Instituto de Neurobiologia teve como base
trinta e seis alunos. Os alunos, separados em três grupos,
receberam a mesma série de tarefas mentais. Antes de cada tarefa,
o grupo 1 esperou dez minutos em silêncio, o grupo 2 ouviu
instruções de relaxamento e o grupo 3 ouviu Mozart. Nem preciso
contar qual grupo resolveu os problemas mais rápido. Depois
disso, passei a escutar Mozart diariamente. Meus problemas
seguiram iguais. Pelo menos, fiquei mais calmo. Comentei com a
psiquiatra. Talvez ela recomendasse para outros surtados. Afinal
era mais fácil encontrar álbuns do Mozart na internet do que um
cavalo para pentear.
Naquela época, fiquei obcecado por Mozart. Li tudo que
encontrei. Ao contrário de mim, encostado por invalidez, Mozart
foi um modelo de produtividade. Compôs uma média de vinte
obras por ano. Uma ponto seis por mês, durante três décadas. Os
liberais de hoje vibrariam com um cidadão desses. Viveu pouco.
Produziu muito. E não gerou custos previdenciários. Não se sabe
ao certo como Mozart morreu. Eu apostaria que foi de estresse,
estafa e depressão. Leopold, o pai dele, era músico. Violinista.
Trabalhava numa igreja de Salzburgo. Ganhava pouco e viu no filho
de cinco anos uma oportunidade de fazer dinheiro. Na corte de
Viena, o pequeno Wolfgang impressionou os nobres. Um episódio
famoso aconteceu quando ele se apresentou pela primeira vez à
família imperial da Áustria. Com o sucesso Leopold pediu licença
do emprego para viajar com Mozart a tiracolo. Ali começou uma
carreira frenética de apresentações imposta pela disciplina do pai.
Mozart conquistou muita fama. Aceitava encomenda de músicas.
Dava aulas de piano. Não sei se ele era feliz. Provavelmente, não.
Gastava muito com jogos e bebida. Quando Leopold morreu, em
1787, Mozart não compareceu ao enterro. Seria incrível se Stephen
King escrevesse um livro de terror sobre Mozart e o pai.
16

Procurei o Studio Lenita Soares na internet. Ficava no bairro de


Perdizes, a duas quadras do meu antigo prédio. Revirei as fotos que
marcavam o endereço do estúdio. Georgia não aparecia em
nenhuma. Depois de tomar café e o remédio, liguei para o estúdio.
Queria descobrir o nome verdadeiro de Georgia. Atendeu uma
mulher de voz estridente e dicção enrolada. Talvez usasse
aparelho. Inventei uma história maluca de que eu trabalhava em
um restaurante e encontrei a mochila de uma aluna. Queria
devolver. Perguntei para a atendente se ela saberia me dizer o
nome de uma aluna de uns vinte e cinco anos, com pele morena e
cabelo escuro. A descrição não ajudou muito. A mulher respondeu
que havia muitas alunas com aquelas características. De qualquer
forma, não daria informações sobre as alunas por telefone.
Desligou.
17

À tarde, abri o PetWalker para ver quais dos amigos peludos iriam
passear. Meu cadastro estava bloqueado. Tinha um aviso para
entrar em contato com a administração do app. O garoto que
atendeu disse que recebi uma reclamação gravíssima de um
usuário. Por isso, eu ficaria três dias de gancho. Agradeci pela
péssima notícia e desliguei.
Fui ao prédio da Flávia e toquei o interfone. Disse que tive um
problema na conta do app. Podia passear com Paçoca e receber em
dinheiro por fora. A ruiva respondeu que não se sentia confortável.
Ainda inventou a desculpa de que raramente tinha dinheiro vivo
em casa. Eu disse que entendia. Daria conta de resolver o mal-
entendido.
Os outros donos de cachorros fariam o mesmo. Eles sabiam que
ninguém era cortado do aplicativo por nada. Voltei para casa.
Liguei de novo para o estúdio de balé na esperança de outra pessoa
atender. Pelo jeito, a recepcionista que falou comigo de manhã
fazia turno integral. Desliguei sem dizer nada.
18

À noite, procurei a mensagem certa para enviar a Georgia. Escrevi


dois rascunhos. No primeiro, perguntei se estava tudo bem. Disse
que a queda do prédio bagunçou a cidade. O trânsito estava um
inferno. Ela devia estar cheia de trabalho, mas eu sentia falta de ter
ela por perto. Depois de ler algumas vezes, achei cafona à beça. No
segundo rascunho, disse que considerava uma falta de
consideração enorme ela não dar sinal de vida. Falei também que
eu não precisava me sujeitar a uma pessoa sem responsabilidade
emocional. Apaguei. Conforme a ansiedade batia, enviei uma
sequência de mensagens curtas sem pé nem cabeça. Mais ou
menos com trinta minutos de intervalo uma da outra.
“Tudo bem por aí?”
“Você deve estar ocupada, né?”
“Sua mochila do balé está aqui”
“Pode falar?”
“Senti sua falta”
“Fiz alguma coisa?”
“Precisa de ajuda?”
“Vou dormir. Boa noite”
“Se tiver tempo, aparece amanhã”
Tomei banho antes de dormir. Lavei o cabelo com o xampu da
Georgia. Bati uma e levei o cheiro de Georgia para a cama. Difícil
pegar no sono com tanta bosta junta na minha vida. Olhei no
potinho. A maconha estava no final. Era melhor economizar.
Dormi depois de tomar um comprimido de Zolpidem.
19

Um tremor me acordou de madrugada. Durou alguns segundos. As


janelas balançaram. Escutei gritos de pânico. O choro de uma
criança. Pedidos de socorro. O som da sirene dos bombeiros. O
remédio ainda fazia efeito. Lutei para levantar. Dormi de novo.
Quando acordei pela manhã, pensei que o tremor, os gritos e tudo
mais fizessem parte de um sonho bizarro. Não faziam. Outro
prédio foi ao chão. Um que ficava atrás da minha rua, em frente a
uma galeria de lojas. Assim que li a notícia, desci para ver a
bagunça de perto. Os destroços quebraram um canto da fachada da
galeria. Todas as bancas estavam fechadas. Centenas de curiosos
atrás do cordão de isolamento assistiam a cinco trios de bombeiros
que atuavam de forma coordenada na busca por sobreviventes. Em
cada trio, um dos bombeiros gritava “Tem alguém aqui?”.
Enquanto os demais colavam os ouvidos nos restos de concreto na
tentativa de escutar alguma resposta.
O dono da banca de revistas na quadra ao lado tirou os óculos
de leitura para me contar o que sabia. Assim como o edifício
Glória, não havia um motivo específico para a queda. Até o
momento, os bombeiros haviam encontrado cinco sobreviventes e
vinte e três corpos. Moravam mais de oitenta pessoas no prédio de
quinze andares. Boa parte dos moradores dormia quando a
construção veio abaixo.
20

“Prefiro morrer dormindo, como meu avô. E não gritando como os


passageiros do ônibus que ele dirigia.” Meu pai sempre contava
essa piada sem graça. Mestre Carlos, como o chamavam em
Alfenas, brincava com tudo. Meu pai nunca estudou. Aprendeu a
construir casas embaixo do sol. Quando bebia, contava vantagem.
Dizia que construiu mais de cem casas. Era amigo de todos os
peões e bêbados locais. Ganhou o cargo de mestre de obras de Jair
Fraga, um vereador pilantra dono de loteamentos em reservas
ambientais. O negócio dava grana. Minha família teria uma boa
vida se o Mestre Carlos não adorasse jogar e encher a cara. Recebia
na sexta. Sábado acordava devendo.
Lembro pouco da minha mãe. Laíde era uma mulher baixa com
traços indígenas. Usava os cabelos escuros presos. Tinha o abraço
morno. Cheiro de cebola nas mãos. Gritava alto quando Mestre
Carlos pedia dinheiro para dívida de jogo ou conta de bar. Os bate-
bocas aconteciam tarde da noite, hora em que minha mãe chegava
do restaurante onde cozinhava. Eu acordava com os berros. Colava
na cama. Respiração apertada. Nervoso. Cheio de medo de que
aqueles malucos se matassem. O único ponto positivo das brigas é
que naquelas noites minha mãe dormia comigo. Isso até eu
completar cinco anos de idade. A lembrança mais viva que tenho
da infância é a manhã em que minha mãe foi embora. Era sábado.
Meus pais tinham discutido na noite anterior. Minha mãe não
dormiu comigo. De madrugada, escutei um barulho na cozinha.
Levantei descalço no chão frio. Laíde tinha uma sacola de couro
nas mãos. Abaixou para me beijar a testa. Deu um abraço. Cheirou
meu pescoço e mandou eu voltar para a cama. Na manhã seguinte,
meu pai saiu desesperado pela cidade. Fiquei com Clarice, a
vizinha que cuidava de mim durante a semana. Só três dias depois
entendi que minha mãe tinha me deixado para trás. Nunca perdoei
Mestre Carlos.
21

“Sete pessoas sobreviveram. Entre elas, o estudante Saul


Gonçalves, que mandou uma selfie para a família e gravou vídeos
enquanto estava sob os escombros. As imagens inéditas feitas pelo
Saul e a entrevista exclusiva com ele você vê agora.” Foi mais ou
menos assim que o apresentador do Jornal da Noite chamou a
reportagem. Então, entrou em cena o tal Saul Gonçalves, um
jovem com cabelo cacheado de uns vinte e poucos anos. Sentado
na cama do hospital com uma camiseta verde, Saul falava de um
jeito infantilizado. Contou que assistia a uma série na televisão e
conversava com o namorado por mensagem no celular quando
sentiu o prédio tremer. Teve um apagão. Acordou em meio aos
escombros. Levou alguns minutos para entender onde estava.
Então usou o telefone para tirar uma selfie e avisar a família que
estava vivo. Na foto, Saul aparece sorrindo e faz sinal positivo com
o dedão. Uma maquete digital do edifício Marta surgiu na tela. O
desenho tridimensional rotacionava enquanto o repórter
comentava que Saul morava no oitavo andar e sobreviveu por ficar
entre o vão de um pilar de concreto. A porcaria da reportagem
continuou por mais dez minutos. O que a TV não mostrou foram as
barracas que surgiram no largo em frente ao meu prédio. Iglus de
diferentes cores e tamanhos. Dentro, famílias inteiras. Todos
moradores removidos da quadra do edifício Marta. Sem lugar
próximo para acomodar as pessoas, a prefeitura deu a opção de
ficarem em um ginásio a dez quilômetros de distância. Como
muitos trabalhavam próximo ao centro, optaram por acampar. Os
comerciantes da região detestaram a ideia. Chamaram Adriano, o
ex-policial que se intitulava zelador do meu prédio. Ele desceu
acompanhado de cinco capangas. Chegou falando alto. Logo que
ouvi a gritaria, fui para a janela acompanhar. Adriano chutou a
leiteira de uma mulher que cozinhava com um fogareiro de chão.
Disse que o largo não era lugar para desabrigado. Era para darem
meia-volta. Um grupo de homens do acampamento comprou a
briga. Foi soco para todo lado. Adriano, Dagu e os outros caras aqui
do prédio usavam pedaços de pau. Um senhor de cabelo muito
branco tombou com a cabeça sangrando. A confusão acabou
quando Adriano sacou a arma e disparou dois tiros para o alto.
Disse que os acampados tinham até o final da tarde para saírem de
lá.
22

Quando saí de Perdizes, o edifício João Ramalho ofereceu as


condições que eu procurava. Nada de cadastro em banco ou
seguradora, nada de contratos registrados em cartório ou qualquer
documento que denunciasse meu paradeiro. O pagamento
adiantado mais a palavra de Adriano garantiam a transação. Eu
sabia que a milícia comandava o prédio. Não se tratava do único na
região. O esquema era um grande acordo entre especuladores
imobiliários, políticos e policiais sedentos por grana extra. Os
milicianos alugavam apartamentos nos prédios desocupados
caindo aos pedaços. Os políticos fingiam não saber de nada. E os
especuladores esperavam o momento econômico certo para
demolir tudo e subir edifícios maiores. Prédios como o João
Ramalho se proliferaram. Para morar no centro, ou você pagava à
milícia ou aos traficantes que comandavam a região da Luz. A
vantagem de morar num prédio da milícia é que ao menos eles
faziam alguma manutenção. O elevador funcionava. Poucas
lâmpadas dos corredores não acendiam. Lavavam o depósito de
lixo duas vezes por semana. Quase não se viam baratas no prédio.
A desvantagem era que a milícia controlava tudo. Água. Luz. Gás.
Cesta de alimentos. Gato de TV por assinatura. Drogas. Cigarros
falsificados. Você era obrigado a comprar tudo dos milicianos e da
rede associada. Os associados nada mais eram do que todos os
comerciantes dos arredores que, coagidos, pagavam uma taxa
mensal à milícia em troca de segurança. Aos milicianos cabia
também a higienização. Ou seja, enxotar mendigos e viciados para
a região não se tornar um inferno incontrolável como a
cracolândia. Acho que essa era a parte de que a turma do Adriano
mais gostava: bater em morador de rua. Quando alguém do prédio
atrasava o pagamento, Adriano também não economizava
virilidade. Assisti Dagu atirar pela janela todas as roupas de uma
família do nono andar, enquanto, na calçada, Adriano socava o
morador na frente da esposa grávida e da filha de sete anos.
Garotas e mães solo eram tratadas com mais delicadeza. Adriano
zerava a dívida em troca de sexo. Depois comentava pelos
corredores. Um lorde.
23

Eu gostava de imaginar JP em um prédio da milícia. Como ele


reagiria ao perceber o esquema que Adriano mantinha no João
Ramalho? É bem provável que JP não fizesse nada. Como bom
economista, ele opinava sobre tudo e agia muito pouco. Meu ex-
amigo nasceu no Hospital Albert Einstein. Cresceu no Jardim
Europa. Fez secondary school em Londres, economia na USP e MBA
em Yale. O pai o educou para tocar os negócios da família no
mercado financeiro. Na faculdade, JP se tornou marxista. Pelo
menos ele se denominava assim. Eu o classificava de outra forma.
Era apenas um liberal que não sentia prazer em ver pobres
morrerem de fome. Na melhor das hipóteses, um revolucionário
movido a café gourmet que reconhecia o valor de uma temporada
na Europa. Por isso, JP nunca renunciou ao trabalho na financeira
do pai. Quem sou eu pra julgar?
24

A confusão dos milicianos com os acampados atrapalhou o plano


de ir ao estúdio de balé. Voltar a Perdizes era igual a reencontrar o
passado. Vesti uma camiseta GG que boiava em mim. Enterrei um
boné até o meio da testa. Comprei uns óculos escuros cromados na
banca de um camelô. Fui de ônibus. Por sorte, naquela hora da
tarde o transporte público era vazio. O estúdio ficava numa casa
grande próxima à esquina da Monte Alegre com a Turiassu. Da
porta, vi meu antigo prédio. Andei mais rápido. O plano consistia
em entrar no estúdio. Descobrir o nome de Georgia. Voltar para
casa e futricar por mais informações na internet.
Reconheci a voz estridente da recepcionista. A fisionomia da
mulher não combinava em nada com a que imaginei. Ela tinha
olhos ligeiros e dedos curtos com unhas roídas. Era baixa e
troncuda.
— O que seria para o senhor? — a recepcionista abriu um
sorriso planejado. — Sua filha quer dançar?
— Eu liguei ontem. Trabalho num restaurante — reparei que
ela se incomodou com o fato de eu não tirar os óculos escuros. —
Uma aluna…
— Sim, eu lembro — a recepcionista olhou direto por entre os
óculos como se tentasse me decifrar. — No que posso ajudar?
Mostrei a mochila e a malha com o bordado do estúdio. Disse
que, se ela me desse o nome da aluna, eu a encontrava para
devolver a mochila.
— Desculpe, mas eu não sou médium. Todas as alunas usam a
mesma malha — a recepcionista tirou a malha da minha mão para
examinar. — Vamos fazer o seguinte, você deixa a mochila. Eu
coloco um aviso no mural. Caso a dona apareça, digo que o senhor
foi muito prestativo.
— Prefiro entregar em mãos.
— Vai tentar tirar um dinheiro dela?
— Acho que você me entendeu mal.
A recepcionista não quis conversa. Fez sinal para o segurança.
Disse para eu me retirar antes que fosse retirado. O segurança
esticou as sobrancelhas e indicou a porta. Arranquei a malha das
mãos da recepcionista e fui embora.
Na saída do estúdio, cruzei com uma mulher na faixa da idade
de Georgia. Pensei em pedir informação. Reparei o segurança no
meu rastro. Precisava de outra tática. Caminhei para longe. Era
mais seguro pegar o ônibus na Barra Funda. Enquanto andava,
procurava Georgia no rosto de qualquer mulher que passasse. Se
Georgia topasse morar comigo, eu mudaria do centro. Iria para um
lugar decente, longe de Adriano e tudo mais. Talvez alugasse uma
casa de bairro. Casas são ótimas para crianças. Mais espaço.
Contato com a natureza. Não sei de onde eu ia tirar dinheiro para
um filho, mas gostava de especular sobre o assunto. Nunca
comentei com Georgia. Nem sequer perguntei se ela gostava de
criança. Devia gostar. Georgia tinha olhos de mãe.
25

Durante a adolescência, aturei todo tipo de piada sobre mãe.


Cansei de entrar em briga. Volta e meia surgiam boatos sobre o
paradeiro de Laíde. Diziam que foi vista num puteiro de Londrina.
Diziam que casou com um bombeiro para os lados de Sorocaba.
Diziam que foi estuprada e morta por caminhoneiros. Teve até a
história de que minha mãe trabalhava com João de Deus. Dona
Elza, uma costureira sexagenária, operou a catarata com o homem
em Abadiânia. Voltou espalhando essa conversa. Pensei algumas
vezes em procurá-la. Tive medo. O que se diz para uma mãe dez
anos depois de ela abandonar você?
Com catorze anos, arrumei emprego no mercado do seu
Gomes. Eu carregava caixas. Organizava produtos nas estantes.
Marcava preço. Ganhava meio salário mínimo. Boa parte ficava no
próprio mercado para cobrir as compras penduradas por meu pai.
Gomes simpatizava comigo. Foi ele quem me ensinou como fazer
o controle de caixa no caderninho. Peguei gosto pelas finanças.
Guardava dinheiro numa caixa de tênis que ficava dentro do
roupeiro, na prateleira mais alta. Todo mês Mestre Carlos pedia
dinheiro emprestado. Nunca pagou um tostão. Parei de emprestar.
Três meses depois, minhas economias sumiram da caixa. Meu pai
nem fez questão de esconder que pegou o dinheiro para trocar o
radiador do Opala.
— Nunca cobrei nada para você morar aqui. Não custa ajudar
— disse Mestre Carlos.
Catei o banco da cozinha. Parti para cima dele. Acertei no peito
o primeiro golpe. Depois ele tirou o banco de mim. Acertou dois
tapas na minha cara.
Pensei em tacar fogo no Opala. Meu pai amava aquele carro.
Seis cilindros. As sinaleiras eram minúsculas e pontudas. Esse
modelo saiu apenas no ano de 72. Apesar de velho, o Opala do
Mestre Carlos apresentava poucos riscos na lataria vermelha e
preta. Talvez uns arranhões bastassem para me vingar. Talvez mijar
no estofamento. Ou colocar óleo de cozinha no tanque de gasolina.
Eu sabia que uma vingança não seria o final da guerra. Preferi
esfriar a cabeça.
Fiquei uma semana na casa de Júlia, minha primeira namorada.
Toda noite o pai de Júlia mandava indiretas do tipo “Ficou grande
esta família” ou “Come por dois teu namorado, hein, Júlia?”. Voltei
para casa. Não falei mais com meu pai. O dinheiro que eu guardei
depois desse rolo, deixava na casa de Júlia. Juntei o suficiente para
sair da cidade.
Na semana em que peguei o certificado de conclusão do ensino
médio, comprei uma passagem de ônibus sem Júlia saber. Enfiei as
melhores roupas na mochila. Não me despedi de meu pai nem de
ninguém. Acabei o namoro por telefone, quando pisei em São
Paulo. Foi mais triste do que eu planejei na estrada. Júlia era minha
única amiga. Nos conhecemos no primeiro ano do ensino médio,
logo que ela chegou a Alfenas. Fiquei apaixonado pelo sotaque
chiado que ela trouxe do Rio. Júlia se apaixonou sei lá por qual
motivo. Ela tinha certeza de que passaríamos muitos anos juntos.
No orelhão do terminal Tietê, pedi que não me procurasse nem
mandasse cartas. Era melhor. Logo você encontra um cara legal, eu
disse. Coloquei o fone no gancho.
Parte 2
1

Três dias. O tempo de um feriado prolongado. Quem nunca ficou


de pijama em casa durante um feriado inteiro? Em tempos
tranquilos, você desperdiça três dias de vida num piscar de olhos.
Em momentos nervosos, três dias são o suficiente para o mundo
virar de ponta-cabeça.
O que parecia um problema dos prédios do centro de São Paulo,
em três dias ganhou escala global. Nova York. Pequim. Roma.
Madri. Buenos Aires. Todas essas cidades registravam
desabamentos. Vinte e cinco prédios ao todo. No Brasil, Porto
Alegre, Fortaleza e Rio de Janeiro registraram os primeiros casos.
Enquanto o centro de São Paulo somava mais três quedas. O ponto
em comum dos desabamentos é que as edificações tinham mais de
cinco andares.
Apesar de os principais jornais mostrarem que se tratava de um
problema global, o nosso presidente aproveitava a situação para
atacar os adversários políticos, em especial o prefeito de São Paulo.
Numa coletiva, culpou as prefeituras pelas quedas dos prédios.
Apontou o dedo para as câmeras ao falar de corrupção, vista grossa
e falta de fiscalização dos órgãos responsáveis por obras urbanas.
Na verdade, não havia certeza alguma sobre os desabamentos.
Enquanto as teorias se multiplicavam, centenas de famílias foram
removidas das áreas ao redor das ruínas. Em geral, dormiam em
ginásios municipais. Recebiam doações de roupas e comida. Em
São Paulo, os ginásios não davam mais conta. Acampamentos de
desabrigados surgiam em diversos pontos da cidade.
2

Georgia talvez estivesse na linha de frente. Talvez morta. Talvez


não quisesse me encontrar. Vigiar o Studio Lenita Soares era o
único plano disponível. Só não dava para ficar exposto em
Perdizes. Além da alta probabilidade de encontrar algum
conhecido, eu ainda conquistei a antipatia da recepcionista e do
segurança do estúdio. Procurei na internet “como elaborar um
disfarce”. A primeira resposta do buscador era um link do
wikiHow. Cliquei só por diversão. Adoro a forma como o wikiHow
ilustra tutoriais para os temas mais aleatórios. “Como fazer
amigos”, “Como treinar para ser um ninja” e “Como dar um nó na
haste de cereja com a língua”, por exemplo. A melhor parte, depois
das ilustrações, são os passos dos tutoriais. É incrível pensar que
uma pessoa escreveu a sério algo como “Para se adequar ao estilo
dos ninjas, você terá de aprender a agir sem a luz do sol”.
O tutorial sobre disfarces trazia sete passos:

1. Mude o cabelo;
2. Use óculos comuns ou de sol;
3. Use maquiagem;
4. Mude a sua postura;
5. Use acessórios;
6. Aparente uma idade diferente;
7. Desenvolva uma nova persona.

Gostei da primeira dica. Há tempos eu pensava em raspar o cabelo.


Quando fico nervoso além do normal, surgem pequenas bolhas,
machucadinhos, no couro cabeludo. A maior parte próxima à nuca.
São feridinhas. Ardem à beça. Impossível não coçar. Quando você
coça, começa um ciclo infinito. Coça, cria casquinha. Coça, cria
casquinha.
Entre todas as dicas do wikiHow, porém, a última me pareceu a
mais interessante. Criar uma nova persona dava profundidade ao
disfarce. Peguei uma folha de papel em branco e uma caneta. Que
tipo de pessoa não chamaria atenção em frente a um estúdio de
balé? Cogitei um cego vendedor de bilhetes de loteria. O problema
seria desembolsar o valor dos bilhetes. Decidi por um fiscal de
ônibus. Genérico. Não exigia uniforme. Com uma camisa de
manga curta para dentro da calça, óculos escuros e uma prancheta,
estava feito.
Raspei o cabelo com a zero. Só não arrematei com a navalha por
medo de rasgar as feridas. Tirei a barba. Deixei o bigode. Encontrei
um vídeo de Halloween que explicava como usar maquiagem para
parecer mais velho. Muito didático. Anotei os produtos que o
tutorial indicava e fui a uma loja enorme do centro. A vendedora
com cabelo loiro demais me deu uma aula extra sobre os tipos de
maquiagem. Perguntou se era para minha esposa. Tentou empurrar
as mais caras. Contei que eu era viúvo. Desempregado. As
maquiagens eram para uma festa à fantasia da minha filhinha de
cinco anos. A mulher se comoveu. Apresentou as melhores opções
custo/benefício. Em frente ao espelho, estojos de maquiagens
abertos, o tutorial se tornou um pouco mais complicado do que na
primeira vez que assisti. O primeiro passo era lavar bem o rosto
para tirar a oleosidade. Em seguida, apliquei uma camada fina de
base. Gente velha tem aparência mais pálida. Com um lápis
marrom, reforcei as linhas de expressão ao redor da boca, na testa
e nos pés de galinha. Fiz umas olheiras com sombra marrom. Para
fixar, apliquei pó facial em uma esponja. Cobri tudo, rosto e
pescoço. Por fim, joguei água fria no rosto e sequei de leve com
papel-toalha.
Disfarce pronto. Careca. Bigode. Cara de velho. Camisa e
prancheta. Nem me reconheci quando olhei no espelho. Fiz uma
selfie com o celular. Pena não ter um amigo para enviar o antes e
depois.
3

Desci do ônibus dois pontos antes do Studio Lenita Soares. Era


começo da tarde. Aproveitei o trajeto para treinar um jeito de
andar que combinasse com o disfarce. Pés dez para às duas. Barriga
solta para a frente. Parei no ponto de ônibus próximo ao estúdio.
Nem sinal do segurança. O ponto de ônibus não tinha cobertura.
O sol me fazia transpirar pra cacete, o que achei ótimo. As marcas
de suor na roupa eram bons detalhes para o meu personagem.
Quando faltava pouco para uma hora, começou a função com um
grupo de alunas entre oito e dez anos. Os carros dos pais surgiam
numa sequência quase programada. Subiam a calçada rebaixada. A
porta do carona se abria. Uma menininha vestida com malha e
cabelo preso com coque descia. O carro partia depois de uma
buzinadinha. Anotei na prancheta as informações sobre o horário e
a faixa etária da turma. Nesse meio-tempo, uma vendedora
ambulante passou duas vezes oferecendo paçoca. Agradeci na
primeira passada. Expliquei que realmente não tinha dinheiro para
comprar. A mulher resmungou algo como se me amaldiçoasse e foi
embora. Mal sabia ela que a minha vida já era amaldiçoada. Talvez
um feitiço novo cancelasse o anterior, que me perseguia desde que
minha mãe foi embora de Alfenas. A turma das duas horas era de
garotas mais velhas. Quinze anos mais ou menos. Algumas
chegaram com os pais. Outras, caminhando pelas ruas do bairro ou
de ônibus. Sempre que a porta dos ônibus abria, os motoristas
estranhavam a minha presença. Há muito tempo os ônibus eram
rastreados por GPS. O.k., era um disfarce anacrônico, mas ninguém
tirou satisfação. Apenas uma mãe que dirigia um Volvo blindado
não tirava os olhos de mim enquanto a filha desembarcava. Os
vidros do carro eram escurecidos. Não vi detalhes do rosto.
Reparei no volume do cabelo crespo e no queixo apontado na
minha direção. Antes que as adolescentes saíssem, chegou o grupo
de alunas com mais de dezoito anos. Pelo horário e idade, Georgia
dançava com elas. Esperei até quatro e quinze. Georgia não
apareceu. Então entrei no primeiro ônibus rumo ao centro.
4

Ao desembarcar do ônibus no centro, encontrei um prédio caído.


Na verdade, ele não caiu direito. Era um edifício comercial, cheio
de salas com advogados, despachantes, contadores, dentistas e
garotas de programa. Ficava na Brigadeiro Tobias, próximo ao
terminal da praça Pedro Lessa. Quando desci do ônibus, encontrei
o prédio de doze andares inclinado quarenta graus. A estrutura
inteira escorada na construção ao lado, um espigão enorme.
Aconteceu por volta das cinco da tarde. Salas lotadas nos dois
prédios. Acompanhei a movimentação da linha de isolamento feita
pela polícia. O edifício mais alto foi evacuado em menos de quinze
minutos. No prédio tombado, a situação complicou bastante. Os
que trabalhavam nos primeiros andares fugiram pelas escadas de
emergência. Para as pessoas dos andares superiores, a escada
partida ao meio ficou inacessível. Um grupo de bombeiros
estendeu a rede de resgate. Na janela do prédio, uma fila de
pessoas testava o medo antes de pular. Era questão de tempo para
as duas construções desabarem. Cinco escadas laterais foram
apoiadas no prédio. As pessoas ao meu redor começaram a gritar.
Uma senhora apontou para os últimos andares. A cortina de poeira
no ar da cidade dificultava que eu entendesse o que todos olhavam.
Usei a mão como viseira para cobrir a luminosidade. Então vi o
homem de camisa branca apoiado na janela. Ele pulou. O corpo
duro despencou no ar. Braços colados ao tronco. Pernas juntas.
Pendurada pelo ar, a gravata resistia à queda naqueles dois ou três
segundos que duram meses na minha memória.
5

Foi a primeira vez que vi alguém morrer. Ou se matar. Não sei bem
se considero suicídio. Tecnicamente foi. Naquela situação, talvez
eu fizesse a mesma escolha. O fato é que Cléber Figueira Lopes
pulou por vontade própria. O prédio tombado desabou por
completo vinte minutos mais tarde. Estimam que trinta e oito
pessoas não saíram a tempo. Por sorte o edifício maior foi
completamente evacuado. De qualquer forma, o terminal de
ônibus teve de ser realocado duas quadras para baixo. Bombeiros
de bairros distantes engrossaram a busca pelos corpos. O ar do
centro piorou ainda mais. Depois desse dia, algumas pessoas
passaram a usar máscaras respiratórias nas ruas.
Suicídios são muito comuns no mercado financeiro. Em cinco
anos, perdi três colegas. Ao contrário do que as pessoas pensam,
nunca vi alguém do mercado se matar por perder milhões em
ações. Sobrevivemos a muitas crises. Meus colegas se mataram por
depressão e estresse.
O caso que mais me pegou foi o de Cristina. Aconteceu em
2019, um dos melhores anos da Bovespa. Trinta por cento de
valorização. Cristina era analista sênior do mercado de alimentos,
mãe de uma menina de dois anos. Pulou do heliponto do prédio da
corretora. Sabe-se lá como ela chegou ao alto do edifício. Recebi a
notícia por uma mensagem de texto de JP. Quando olhei pela janela
do escritório, os médicos carregavam o que sobrou do corpo para a
ambulância. Nunca fui grande amigo de Cristina. Isso me deixou
culpado à beça. Nos dávamos bem dentro do que se espera de
colegas de trabalho. Cristina vestia calças sociais pretas, largas,
com camisas de seda coloridas. Combinações horríveis. Sorria
sempre sem mostrar os dentes. Parecia boa gente. Chegava cedo ao
escritório, saía tarde. Carregava na testa: tomo tarja preta. Num
almoço perguntei qual remédio Cristina usava. Queria comparar
efeitos colaterais com o antidepressivo que eu tomava na época.
Cristina desconversou. Às vezes pular de um prédio parece mais
fácil do que conversar com alguém sobre nossos problemas.
6

Logo que você começa a tomar Escitalopram, é comum ter


vertigens. Com o decorrer do tempo, isso alivia. Apesar de as
vertigens me atrapalharem no passeio com os cachorros, o pior foi
um sintoma recorrente que os médicos chamam de blunting. Eu
tive bastante. As emoções ficam achatadas. Você não fica triste
nem feliz. Fica indiferente. Aí a dosagem deve ser ajustada ou
combinada com outro medicamento. No meu caso, combinei com
Bupium. Deu certo por um tempo, mas comecei a ficar mal-
humorado, impaciente e mais irritado do que o comum. Preferi o
blunting. A libido também fica instável. Some e volta. O Bupium
ajudou com isso. Ou foi Georgia. Não sei. Quando me esqueço de
tomar Escitalopram, fico mal. Um dia o remédio acabou. Eu não
tinha receita. Fiquei várias horas sem tomar. Tive tremedeira,
vontade de chorar, angústia, tontura, falta de ar. Era noite. A
psiquiatra não atendia o telefone. Eu sentia a morte ao meu lado.
Atravessei a cidade às sete da manhã. O ônibus transbordava de
gente. Esperei a psiquiatra na porta do consultório. Corri com a
receita para a primeira farmácia que encontrei. Depois sentei num
banco de praça e vi a rua ganhar cor de novo. Um ponto positivo
do Escitalopram é que ele dá uma baita levantada. Um dia eu me
sentia um lixo e no outro estava na rua rindo. Um lance bem
interessante do remédio são os sonhos muito reais. Longos.
Parecem filmes coreanos. Sonhei uma noite inteira que estava
penteando a crina de um cavalo preto. A crina era muito comprida,
quase alcançava o chão. Volta e meia o cavalo sorria para mim.
Cogitei que os sonhos com o espírito fossem efeito do remédio. O
problema era sentir a presença dele também acordado.
7

Georgia desaparecida. PetWalker bloqueado. Para completar, a


cena de Cléber Figueira Lopes despencar da janela se repetia sem
parar quando eu fechava os olhos. Cléber com o corpo duro.
Braços colados ao tronco. Pernas juntas. Gravata tremulante. O
barulho seco de Cléber ao encontrar o chão. Fiquei tão tenso que
os músculos do pescoço travaram. Para movimentos laterais, a
cabeça acompanhava o corpo. Eu precisava de maconha para
relaxar. Meu fornecedor era um garoto que passava o dia vestido de
palhaço num farol da avenida Angélica. Para disfarçar, pedia
dinheiro aos motoristas depois de um número desastrado com
bolinhas de tênis. Na verdade, meu amigo tinha os bolsos cheios
de pacotes de maconha e buchas de cocaína. Eu gostava do
arlequim. Ótimo varejista. Sempre saía com piadas do tipo “Bem-
vindo ao McDealer Feliz, o drive-thru mais movimentado da
cidade”. O problema é que, com aquela dor, não dava para
caminhar até Higienópolis. Desci ao térreo à procura de Dagu.
Encontrei Erick na portaria. Sem chance de falar sobre drogas com
ele. Sempre acompanhado por uma edição de bolso da Bíblia, Erick
fazia o tipo miliciano evangélico. Perguntei sobre Dagu. Ele disse
que o viu pela última vez no sentido da garagem.
A iluminação da garagem não funcionava. Pouca luz entrava
pelas janelinhas laterais quase coladas no teto. Encontrei Dagu
perto de um canto cheio de móveis quebrados. Ele arremessava
sacos plásticos para dentro do contêiner de lixo.
— Dormiu na fôrma, meu chapa? — disse Dagu ao me ver
caminhar igual a um robô.
— Tem alguma erva para vender? — mostrei uma nota de
cinquenta reais.
— Qual foi? Nem curto essas paradas — Dagu soltou o saco de
lixo no chão.
— Não quis ofender. É que você tem pinta de negociante. Sabe
de tudo que rola por aqui — ri por dentro. Mais de uma vez
encontrei Dagu fumando na praça cercado por estudantes.
Rosto fechado, ele me encarou. Coçou a barba.
— Seguinte, um amigo de um amigo falou de uma mina que
vende camisetas aqui em frente e também mexe com esses
esquemas — Dagu pegou um saco e arremessou sobre a borda do
contêiner. — Confere lá.
Agradeci. Fiz uma nota mental. Comprar um fardo de cerveja
para Dagu quando eu voltasse a ter algum dinheiro sobrando.
As camisetas estendidas sobre o lençol eram horríveis. Ainda
bem que a vendedora tinha outras fontes de renda. Fiz de conta
que olhava as camisetas.
— Vai alguma aí, irmão? — a mulher levantou da cadeira de
praia e veio em minha direção. Usava uma camiseta regata. Exibia
uma tatuagem torta no antebraço direito. Era o rosto de uma
menina.
— Um amigo falou que você tem coisa melhor que as camisetas
— eu disse.
Mostrei a nota de cinquenta reais e pedi vinte gramas de
maconha. A mulher olhou a nota contra a luz do sol. Pediu um
minuto e desapareceu no meio dos pedestres. Voltou cinco
minutos depois com as buchas de maconha prensada e o troco.
— O amigo aposta? — perguntou a mulher.
— Meu pai apostava — guardei a maconha no bolso.
— Joga por ele — ela pegou um caderninho ao lado da cadeira.
— Dez mangos. Quem acertar o próximo prédio que cai leva
quinhentos.
Ideia tosca. Apostei no prédio da corretora onde eu trabalhei.
8

Três semanas depois de eu chegar a São Paulo e acabar o namoro


com Júlia por telefone, recaí. Escrevi uma carta de cinco páginas.
Contei para Júlia que fiquei as primeiras noites numa pensão
próxima à rodoviária do Tietê. Odete, dona do lugar, me mostrou o
quartinho sem janela. Mobiliado com uma cama de solteiro e uma
cadeira, o quarto custava dez reais por dia e fedia a mijo de gato.
Na primeira noite, tive um ataque de rinite infernal. Mal dormi.
Acordei com o nariz entupido. Garganta fechada. Olhos ardendo.
Cedinho, procurei um telefone público. Peguei a folha de caderno
dobrada que trazia na carteira. Liguei para o número que Lucas
Mariano anotou meses antes, quando foi a Alfenas visitar a família
no Natal. Lucas era três anos mais velho do que eu. Trabalhamos
juntos no mercado do Gomes. Quando terminou o supletivo,
Lucas partiu para São Paulo. Júlia o conhecia bem. A família
Mariano morava ao lado de sua casa. Enquanto Lucas vivia em
Alfenas, eu sentia um pouco de ciúmes. Na carta, gastei uma dúzia
de linhas para contar como Lucas foi receptivo. Marcou de nos
encontrarmos às duas da tarde numa lanchonete perto da estação
da Sé. Enquanto bebia café coado num copo americano, Lucas deu
a ideia de repartirmos o apartamento. O lugar onde ele morava era
pequeno, um quarto apenas. Com jeito, eu caberia, só precisava de
um colchão. Eu não fazia ideia de onde conseguir um colchão, mas
topei na hora. Dormir no chão da sala me pareceu muito melhor do
que morrer asfixiado num quarto de pensão com fedor de mijo de
gato. Ainda na lanchonete, Lucas contou que, logo depois de se
mudar para São Paulo, fez um curso de panificação no Senac. Era
um baita negócio, porque na cidade havia duas padarias em cada
quadra. Dificilmente faltaria emprego. Sugeriu que eu fizesse
também.
Saí da pensão. Na primeira noite no apartamento, descobri que
Lucas roncava pesado. Por sorte, ele levantava às quatro da manhã
para assar a primeira fornada de pão. Eu dormia mais algumas
horas, depois levantava para trabalhar. Lucas descolou para mim
uma vaga como atendente na padaria. O dinheiro era bem melhor
do que o Gomes me pagava no mercadinho. Um salário mínimo
mais as gorjetas. A Padaria Estrela ficava numa esquina do Brás. Eu
chegava às sete horas. Não havia horário de almoço. Uma vez por
dia, quando o movimento afrouxava, eu recheava um pão francês
com o máximo de ingredientes que encontrasse pelo balcão.
Mortadela. Queijo. Tomate. Salame. Manteiga. Enrolava tudo num
guardanapo e levava para os fundos da padaria. Comia em pé.
Levava um copo de guaraná para desembuchar. Seguia no batente
até quatro da tarde, quando o atendente da noite me substituía.
Contei também, na carta para Júlia, que num dia de folga fui ao
parque Ibirapuera, mas voltei cedo porque caiu um temporal. Júlia
nunca me respondeu. De certa maneira, eu não esperava que
respondesse. Escrevi porque, naquele momento, acreditei que a
única pessoa no mundo que se importava com o meu paradeiro era
ela. Se por um lado eu gostava da distância de Alfenas e de Mestre
Carlos, por outro me sentia só. Eu e Lucas pouco nos víamos. Em
seguida à minha chegada, ele engatou um namoro. Sempre que
podia, dormia na casa da Raísa, em Santana. O quartinho no Brás
dobrou de tamanho. Com o tempo, percebi que eu conversava
mais com os clientes que puxavam assunto do que com o Lucas.
Porém, não dava para contar aos clientes sobre os meus planos de
prestar a prova da Fuvest. Nem que juntei dinheiro para comprar
um computador baratex na Santa Efigênia. O lance de ficar
sozinho no apartamento me ajudou a estudar. Por um milagre,
entrei no curso noturno de economia na USP. O listão saiu numa
manhã de janeiro. Chamei dois colegas da padaria para beber.
Douglas e Anelise me arrastaram para um samba na Chácara Santo
Antônio. Enchi a cara de cerveja. Acordei dentro de um ônibus no
Terminal Bandeira.
9

A maior parte das pessoas tem dificuldade em olhar para a


realidade ao redor e pensar soluções compatíveis com um
momento inédito. Em geral, as respostas para novos problemas são
baseadas em parâmetros de um mundo que ficou para trás. Os
medíocres são piores, nem buscam soluções antigas. Preferem
apontar culpados e acreditam que todos os males do mundo são
ameaças diretas a eles.
Quando o presidente da República finalmente fez um
pronunciamento oficial em redes de rádio e televisão sobre as
quedas dos prédios, falou que a história comprovaria a culpa de
prefeitos que trocavam fiscalização por propinas. A população não
deveria se preocupar. Era preciso seguir a vida. O presidente ainda
disse que a imprensa espalhava o caos para enfraquecer sua gestão.
Por ora, o caminho era rezar. Então, entrou no pronunciamento o
bispo Elias, evangélico dono de uma emissora de televisão. Elias
anunciou uma jornada de orações no domingo. A entrada nos
templos custava cinquenta reais por pessoa. O valor arrecadado
seria destinado às famílias desamparadas, disse o bispo.
10

O espírito foi me ver de novo. Eu sonhava com a casa dos meus


pais. Havia cascas e sementes na bancada da pia. Mestre Carlos me
perguntou por que eu comia tanto mamão. Respondi que mamão
ficava gostoso com mel. Então percebi que o rosto de meu pai era
turvo, desfigurado. No momento da descoberta, o sonho se
transportou para a quitinete. Escuro. O espírito, em frente à porta.
Rastejei até aquele borrão escuro. Apoiei as mãos em suas pernas.
Levantei para ver o rosto de perto. O espírito era eu. Envelhecido.
Careca. Risonho. Dentes quebrados. Os olhos negros me
engoliram. E minha voz saiu pela boca dele pra dizer: “Você vai
morrer sozinho”.
11

O sonho me incomodou. Acho que a solidão é uma música de Ray


Charles. Um blues arrastado por um piano velho num bar vazio.
Escuto essa música desde a noite em que minha mãe saiu de casa.
É estranho que, apesar de triste, esse blues me dê certa esperança.
A esperança é o sentimento mais louco inventado pela
humanidade. É simples de entender o nojo, a alegria, o medo, a
tristeza. Agora a esperança é loucura em estado bruto. Só um louco
para cair mil vezes e ainda ter vontade de seguir em frente. Só um
louco para andar sozinho sobre cacos de prédios caídos e não
desistir de tudo.
Mesmo depois de o PetWalker desbloquear meu perfil, não
consegui novos clientes. Era bem provável que o imbecil do César
tivesse espalhado o caso num grupo de Whats­App. Fiquei puto da
vida quando reparei que ninguém me acionava. Fui à padaria
comer carolinas. Carolinas são a felicidade recheada com doce de
leite. Sentei junto ao balcão me sentindo o mais infeliz dos
homens. Então escutei os acordes de Ray Charles. O blues fluía de
dentro da senhora sentada ao meu lado. Cabelo branco bem curto.
Casaco de lã verde. Ela molhava o pão no café com leite e
mastigava devagar. Apesar de ter mais de sessenta anos, era uma
mulher forte, de postura ereta.
Deslizei o pratinho no vidro do balcão. Ofereci as carolinas.
— Doce de leite?
— E tem outra melhor? — eu disse.
A senhora pegou uma. Agradeceu e se apresentou. Iara
comentou que um aluno sempre lhe dava carolinas quando
precisava de nota.
— A senhora dá aula de quê?
— Matemática. Aposentei faz um tempo. Agora dirijo Uber
para levantar um troco.
Eu disse que, se fosse aluno dela, levaria carolinas também. Eu
até tentava resolver as contas, mas nunca tinha certeza dos
resultados. Fazia uma lambança. Iara brincou que, num mundo
onde os prédios caem sem explicação, não dá pra ter certeza de
nada.
— Qual é a sua aposta? Acha que é erro de cálculo estrutural?
— bebi um gole de café.
— É difícil acreditar que tantos engenheiros erraram seus
cálculos, mas pode ser. Teorias tem aos montes. Só sei que
trabalhei por trinta e cinco anos em escola pública. Durante boa
parte desse tempo, paguei as parcelas do apartamento onde
morava. E agora o prédio veio abaixo com o meu Tobias dentro.
Iara me mostrou uma foto do gato cinza na tela do celular.
— Sete vidas, não é o que dizem? Talvez ainda ache o Tobias
por aí — Iara disse.
Perguntei onde ela morava depois que perdeu o apartamento.
Iara contou que dormia no carro alugado. Durante o dia rodava
atrás de corridas do Uber e ria das besteiras que os motoristas
falavam no grupo de WhatsApp. O cretino do ex-marido casou
com uma mulher trinta anos mais nova. Não contava com ele.
Depois de Iara pedir o divórcio, a filha se afastou. Mudou para a
Nova Zelândia. Quase não mandava notícias.
— No meu prédio tem apartamento vago — eu disse.
— Qual prédio?
— No João Ramalho, ali no largo.
— Sei — Iara bebeu o último gole de café. — Prefiro uma
casinha longe do centro. Você devia sair dali.
Meu plano era sair, eu disse. Só tinha uma questão para resolver
antes.
— Em tempos assim, a principal questão é como permanecer
vivo e sem enlouquecer — Iara limpou a boca com um guardanapo
e levantou do banquinho para ir embora.
Pedi ao garçom para embrulhar uma dúzia de carolinas. Dei o
pacote para Iara. Meia hora depois, percebi que eu precisava mais
das carolinas do que ela.
12

Olá, Georgia. Tudo bem por aí? Sei que a gente não tem nada sério
e tal. Você é “a mina que transa comigo terças e quintas e vai
embora”. Mas eu queria entender por que você sumiu. Encontrar
você às terças e quintas era uma das últimas alegrias que eu tinha.
Se me conhecesse melhor, você entenderia. Digo, você nem sabe o
que vivi até parar nesse prédio do centro. Ou meu nome
verdadeiro. Eu não sei quase nada sobre você. Descobri sem
querer que você dança balé. Faz muito tempo? Entre todas as
lacunas, o que me fode mais a cabeça é não entender por que você
desapareceu. É conviver com a incerteza. Será que fiz algo tosco?
Ou falei alguma coisa errada? Talvez você tenha outra pessoa? Ou
engatou um namoro? Ou está trabalhando demais? Ou, o mais
provável, só enjoou desse cara velho? Tenho me sentido um
merda, um maluco. Não imaginava que a essa altura da vida ia
apanhar de uma paixão. Por um lado é bom, me faz sentir vivo. No
meio de toda essa loucura dos prédios caindo, às vezes penso que o
pior aconteceu com você. Espero que não. Por favor, mande um
sinal. Mensagem recebida e não lida.
13

Passei a tarde em frente ao estúdio de balé. Mesmo disfarce, fiscal


de ônibus. A cada hora, grupos de alunas entravam e saíam da casa.
Nenhum sinal de Georgia. Cogitei perguntar para alguma aluna da
turma das quatro da tarde. Atravessei a rua. Enquanto caminhava
na direção do estúdio, reparei que duas mães escoradas nas portas
de um carro me encaravam. Passei reto. É bem provável que
achassem que eu era algum tipo de tarado.
Não voltei mais naquela tarde. Parei em um bar perto da estação
Barra Funda. Escolhi uma das mesas próximas ao freezer. O
encosto de plástico da cadeira balançou quando sentei. Estava
quebrada. Troquei pela cadeira ao lado. O garoto com avental de
garçom levou a cadeira zoada para os fundos do bar. Na volta,
perguntou o que eu queria.
Eu queria sentir o cheiro do cabelo de Georgia. Escorregar
minhas mãos pelas costas dela. Espalhar as roupas pela sala e
acender um baseado enorme depois de a gente transar. Eu queria
pedir para Georgia deixar a cidade comigo. Sem a possibilidade de
ter nada daquilo, pedi a cerveja mais barata.
— Só isso? — o garoto tirou a cerveja do freezer e sacou a
tampa com o abridor que levava no bolso do avental. — A coxinha
acabou de sair.
Aceitei a coxinha. O garoto a entregou em um pires branco.
Trouxe também um vidrinho com pimenta.
— O dono do bar traz da Bahia. É forte pra cacete — o garoto
disse.
Nem senti o gosto da coxinha. Não sentia vontade de comer há
dias. Nem beber. As pessoas caminhavam em câmera lenta no lado
de fora do bar. Meu cérebro exausto não computava muita coisa ao
redor. Escolhi um foco. Na calçada oposta, um morador de rua
vestia shortinho jeans e miniblusa com estampa de onça. Trocava
ideia com um papeleiro sem camisa. O papeleiro não tinha nem
vinte anos. Usava boné com aba para trás. Pedi uma segunda
garrafa de cerveja. A movimentação da dupla estava interessante. O
morador de rua passou um braço pela cintura do papeleiro. A outra
mão enfiou dentro da bermuda. Os dois deitaram no chão da
calçada sobre um amontoado de papelão e sacolas que o morador
de rua fazia de lar. Cobriram-se com um cobertor florido.
Transaram ali mesmo. Formavam um casal bonito. Ignoravam
todos que passavam pelas calçadas. E as pessoas fingiam ignorar os
dois. Quando o papeleiro gozou, beijou a boca do morador de rua.
Depois o abraçou. Os dois ficaram uns dez minutos de barriga para
o céu.
Ergui a mão para pedir uma terceira cerveja e quis chorar.
— As coisas vão melhorar, amigo — o garoto colocou a garrafa
de cerveja na mesa.
Agradeci. Bebi depressa. Odiei aquele garoto por alguns
minutos. O que ele sabia da minha vida? Pensei em chamar para
briga. Talvez fosse libertador levar uma surra dele e dos outros
garçons. Paguei no caixa sem olhar nos olhos do garoto. Quando
atravessei a rua, o morador de rua dormia sozinho. O papeleiro
empurrava a carroça alguns metros adiante.
14

Nenhum prédio caiu no dia seguinte ao grande ciclo de orações


convocado pelo presidente em rede nacional. Uma enxurrada de
fiéis comentava na internet a força das orações. O presidente fez
um novo pronunciamento. Com a mão no ombro do bispo, falou
que o Brasil era uma terra abençoada e que a fé do povo brasileiro
manteria os prédios em pé. Durante toda a fala, o bispo
permaneceu parado como um boneco de cera. Olhos fixos na
câmera. Lábios arqueados para cima na tentativa de formar um
sorriso. O bispo só abriu a boca para dizer o valor arrecadado nos
templos. Quinze milhões de reais. O presidente finalizou com uma
provocação aos prefeitos. Disse que a fé do povo brasileiro é maior
do que a ganância de políticos corruptos que faziam vista grossa
para as condições precárias dos prédios.
15

A corrente de fé promovida pelo presidente e o bispo Elias não


confirmou a sua força. Três prédios caíram na mesma noite: um em
Curitiba, outro em Salvador e o terceiro em São Paulo, dessa vez
na região da Bela Vista.
Nas redes sociais, circulou o vídeo de uma astróloga famosa. A
garota dizia que houve um erro de interpretação do calendário
maia. A data do Apocalipse não seria 21 de dezembro de 2012,
como muitos acreditaram. O fim do mundo na verdade estaria para
acontecer nos próximos meses.
16

MILÍCIA ASSASSINA era o que dizia a pichação na fachada do edifício


João Ramalho. Alguém escreveu de madrugada. Não faço a menor
ideia de como se pendurou para escrever. A pichação vertical
ocupava mais de oito metros na fachada do prédio. Adriano gritava
pelos corredores desde as sete da manhã. Acordou todos os
moradores. Queria vingança, mas antes tratou de apagar o escrito.
Juntou três homens para a função. Dois seguravam o cabo preso
num sistema duvidoso de roldanas enquanto Dagu, pendurado em
frente ao prédio, cobria o escrito com tinta branca.
17

Fiquei nervoso com a gritaria do Adriano. A ansiedade, que nem


deixava eu respirar direito, travou o músculo da mandíbula. Tomei
um relaxante muscular que tinha na gaveta do banheiro. O
remédio amoleceu meu corpo inteiro. Puta sono, zonzeira. Era
uma da tarde. Eu precisava ir ao estúdio de balé. Fiz uma
maquiagem tosca. Enfiei um boné na cabeça. Saí com pressa. No
ônibus, encostei a cabeça na janela. O trepidar do crânio no vidro
me mantinha acordado. Desembarquei no ponto mais próximo ao
estúdio. Dessa vez atravessei a rua. Parei junto de uma árvore, de
onde via as bailarinas saírem. Uma das meninas passou ao meu
lado. Catorze anos ou menos. Chamei-a com um movimento
discreto da mão.
— Ei. Me ajude aqui. Por acaso essa moça faz balé no estúdio?
— mostrei a foto que tirei de Georgia no último dia que nos vimos.
A garota apressou o passo com medo.
O relaxante muscular pesava demais o corpo. Segui escorado na
árvore. Dali eu via bem a movimentação na entrada do estúdio.
Passavam das três horas. Na pequena praça próxima ao ponto de
ônibus, um homem montava uma barraca de dois lugares. Ao lado
da barraca, um saco com seus perten­ces. Tinha demorado para os
acampados chegarem a Perdizes. O homem tinha a franja reta,
igual aos índios dos livros de história. Vestia uma calça de moletom
preta e uma camiseta larga. Tinha mais de cinquenta anos, mas se
movia com disposição para montar a barraca. Escorado na árvore,
eu tentava não dormir. Então ouvi um grito de menina do outro
lado da rua:
— Pai?!
O grito era pra mim. O índio deixou a barraca assustado com o
grito. Outras pessoas na rua olhavam também. A mandíbula
travada mal se movia. Então corri. As pernas moles do relaxante
muscular pisavam em falso. Eu corria sem saber qual seria o
próximo pé a tocar o chão. Corria sem renovar o ar dos pulmões.
Corri o máximo que pude, sem olhar para trás, por duas quadras.
Tropecei em uma laje desnivelada. O calçamento abriu um rasgo
na calça. Esfolei as palmas das mãos. Só dentro do ônibus reparei
no sangue vertendo do joelho.
Parte 3
1

Quando olho para o passado, é como se houvesse outras vidas


dentro da minha vida. São episódios desconexos. A curta infância
com minha mãe, Laíde. A vidinha em Alfenas. O trabalho na
padaria. O mercado financeiro. Eu atuo como protagonista em
todos. Na maior parte das vezes, minha interpre­tação é canastrona.
Pareço um desses idiotas que sempre soltam uma fala inadequada
ou deixam cair alguma coisa. Os cenários e demais personagens
não se repetem. É uma sensação estranha assistir a esses cacos de
memória. Sou um estranho em cena. Alguém descolado de mim
que usa meu corpo em diferentes idades.
Em um desses episódios, tenho trinta anos. Cabelo curto,
raspado ao lado com um topete modelado por pasta. Dirijo com
pressa. Sorriso aberto. Uso terno e gravata. O carro sobe a calçada
rebaixada do Hospital Santa Catarina. Deixo as chaves com o
manobrista. A recepcionista me entrega um adesivo escrito
“acompanhante”. Não espero o elevador. Subo pelas escadas até o
terceiro andar. A porta do quarto está encostada. Quarto 302. O
número gravado na plaquinha de plástico é nítido. Com as costas
dos dedos, bato duas vezes na porta. Entro mesmo sem
responderem. Dentro do quarto 302 o som dos carros na avenida
Paulista desaparece. Bush. Dilma. Bin Laden. A sonda Messenger.
Kate e príncipe William. O voo Air France 447. O PCC. Steve Jobs.
A crise europeia. A prestação do apartamento. O cliente que eu
deixei na sala de espera do escritório. Nada disso existe dentro do
quarto 302. Existe apenas um embrulho miúdo e quentinho no
meu colo. Uma menina com cheiro de talco. Olhos colados. Dedos
curtinhos. De tão bonita, a menina lembra uma música de Tom
Jobim. Luiza.
2

Nunca desejei ter filhos até o dia em que Luiza nasceu. A menina
cresceu com os traços da mãe, mas grudada em mim. Eu gostava
de chegar do trabalho mais cedo e deitar no tapete da sala para
Luiza subir com os pezinhos no meu peito e fazer dezenas de
perguntas fantasiosas. Aos cinco anos, Luiza aprendeu a escrever
meu nome. Foi a primeira palavra que ela escreveu.
Ensinei Luiza a andar de bicicleta na calçada em frente ao
prédio. Tinha sete anos. Tirei a primeira rodinha. Deu tudo certo.
Depois de eu tirar a segunda, ela pedalou firme por alguns metros.
Então vacilou no equilíbrio e caiu de boca no chão. Quebrou um
dente. Por sorte, era um dente de leite. O dentista remendou com
resina. O dente levou ainda quase um ano para cair.
Luiza entrou na puberdade e seguimos amigos. Distantes, mas
amigos. O pai de uma pré-adolescente não passa de um motorista
equipado com um cartão de crédito. Entre eu levar ou trazer Luiza
de algum lugar, ela me atualizava dos enroscos com as amigas da
escola. Na praia, a gente caminhava por horas, na maior parte do
tempo sem falar nada. Quando ela chegou aos treze anos, minha
cabeça andava bem fodida. Por mais que eu quisesse ser pai, não
tinha muito o que oferecer. Logo em seguida, saí de casa.
3

O mundo estava mais bagunçado do que a minha vida. Os prédios


caíam nos cinco continentes. Em São Paulo, o governo montou um
hospital de campanha para atender a alta demanda de
atendimentos. Além dos sobreviventes resgatados em escombros
por bombeiros e voluntários, a poeira de cimento no ar das cidades
fez com que milhares de pessoas desenvolvessem doenças
respiratórias.
Enquanto isso, a comunidade científica mundial investigava o
motivo das quedas dos prédios. O governo da China e a União
Europeia liberaram milhões para universidades e institutos de
pesquisa.
Uma primeira possibilidade não veio de Harvard, nem de
Cambridge, muito menos da Escola de Engenharia da USP. Um
grupo de técnicos da Estação de Análise Sísmica de Arica, no
Norte do Chile, percebeu que a frequência de vibração da crosta
terrestre mudou. Esse tipo de vibração é conhecida há décadas.
Chamam de ruído sísmico. A atividade humana produz o maldito
ruído. Ao que tudo indica, o ruído existe desde que a humanidade
passou de um bilhão de almas. Com o aumento da atividade de
carros, pessoas, aviões e máquinas em geral, o ruído faz o planeta
vibrar na mesma frequência da construção de uma série de
prédios.
Pesquisadores do curso de Engenharia da Universidade de
Stanford defendiam essa hipótese e alertaram que todos os prédios
com mais de sete andares corriam risco de queda. A recomendação
era evacuar os prédios altos em todas as cidades do mundo.
4

Nos Estados Unidos e no Brasil os proprietários de imóveis, hotéis


e fundos imobiliários foram os primeiros a rejeitar a ideia. Depois
ganharam apoio dos comerciantes, que detestavam a possibilidade
do fechamento de suas lojas. Da Universidade de Chicago surgiu
uma pesquisa que relativizava a descoberta dos chilenos. O grupo
de engenheiros americanos defendia que o movimento era fruto de
uma acomodação da camada de magma abaixo das placas
tectônicas. Tratava-se de um fenômeno passageiro ocorrido pela
última vez há quatro bilhões de anos.
Os colunistas de portais de notícias começaram uma guerra de
argumentos. De um lado a turma que cobrava ações efetivas dos
governos para assegurar a evacuação dos prédios e garantir a vida
das pessoas. De outro, os que defendiam a tese de Chicago e a
melhor fiscalização nos prédios. O esvaziamento dos prédios
significaria grandes custos.
Com medo de manchar a imagem com o sangue de milhares de
vítimas, o prefeito de São Paulo defendeu a evacuação temporária
dos prédios altos. Em Brasília, o Congresso se mobilizou para a
aprovação de uma verba emergencial destinada à construção de
casas. O presidente, no entanto, assumiu a narrativa de Chicago.
Defendeu que era cedo para medidas drásticas como evacuar
quadras inteiras em grandes cidades. Era preciso fé em Deus,
calma e seguir a vida com normalidade.
Nas redes, ganhou força a teoria proveniente do Reino Unido
de que a queda dos prédios era ocasionada propositalmente por
uma frequência secreta emitida pelas antenas de telefonia celular
chinesas espalhadas pelo mundo. Depois de algumas antenas
depredadas, as companhias telefônicas publicaram notas de
esclarecimento para comprovar que a tecnologia utilizada nas
antenas era inofensiva às edificações. Não adiantou. Grupos
organizados na internet quebraram a base de antenas nas mais
diversas cidades. A onda durou algumas semanas, depois
desapareceu em meio a novas teorias da conspiração.
5

O acampamento ao redor do meu prédio acumulava mais de


duzentas barracas. Fiz a conta numa noite de insônia. A tensão
entre Adriano e os acampados parecia menor. Pelo menos era o
que eu achava até sair do prédio numa manhã de sábado. O ar
pesado de poeira irritava os olhos. Esbarrei em um pombo que
ciscava os restos de comida ao redor das barracas. O bicho fez um
escândalo horrível e levantou em revoada com outros vinte
pombos. No susto do voo, os filhos da puta cagaram toda a minha
blusa. Fui direto ao banheiro da padaria. Tirei a blusa. Esfreguei
com as pontas dos dedos as partes cagadas. Sentei junto ao balcão.
Ignorei a cara feia do sujeito que reprovou o cheiro de bosta de
pombo. Restavam só quarenta reais na carteira. Pedi para a
garçonete um café e quatro carolinas. Eu precisava de uma forma
de fazer dinheiro. O aluguel vencia em cinco dias. Talvez surgisse
um cliente desavisado no PetWalker. Talvez vender a televisão.
Talvez vender o celular. E se Georgia desse sinal de vida? Essa não
era uma opção.
Perguntei à garçonete se ela conhecia algum lugar onde
comprassem eletrônicos usados. Ela pôs a mão magrinha na
cintura e disse que atrás do terminal de ônibus tinha um tiozinho
que comprava e vendia de tudo. Não lembrava o nome da loja.
Perguntou ao chapeiro, que também não sabia.
A garçonete falava à beça. Puxava papo com todos os clientes.
De tanto ir à padaria, eu já conhecia a figura. Seu nome era Bianca,
mas todo mundo a chamava de Bo, por conta do rosto redondo
igual bolacha. Criava três gatos e detestava o patrão. Quando
trouxe o café, Bo me contou que o prédio onde uma prima morava
caiu. Por sorte, a prima estava no Baile da Marconi.
— Imagina chegar do baile funk e não encontrar o seu prédio?
— Bo deslanchou a falar. — Foi lá para casa dividir o quarto
comigo. Só levou a roupa do corpo. Chora o tempo todo. Minha
mãe juntou umas doações com os vizinhos.
— Ainda bem que ela tem vocês — eu disse.
— Graças a Deus. Domingo a gente vai ao culto agradecer. Só
assim.
Gritos na rua cortaram a conversa.
Eu e metade dos clientes da padaria corremos para a calçada.
No beco ao lado do meu prédio, um homem usava as mãos como
megafone para pedir socorro. Fui um dos primeiros a chegar. Sobre
os sacos de lixo, o corpo de um adolescente. O garoto estava nu e
pintado dos pés ao cabelo com tinta vermelha. Em segundos, uma
pequena multidão de acampados congestionou a entrada do beco
para espiar. Uma senhora reconheceu o garoto.
— É o filho da Kátia — a senhora gritou. — Chama a Kátia.
Chama a Kátia!
Pedi licença para sair do meio do povo. O chamado por Kátia se
multiplicou. Aquela história não ia acabar bem. Corri para o
prédio. A porta estava fechada. Bati três vezes até Dagu abrir. Logo
que entrei começou o quebra-quebra. A multidão de acampados
arremessava pedras e pedaços de paus contra as lojas e
lanchonetes. Vários vidros do meu prédio foram quebrados. A
confusão só acabou com a chegada da tropa de choque, que
dispersou os acampados com bombas de gás lacrimogêneo.
6

Passei o final de semana trancado no apartamento cagado de medo.


O silêncio dos acampados dava a impressão de que uma guerra
civil começaria a qualquer momento. Ficar em casa não me ajudava
muito. O edifício João Ramalho passava de sete andares. Se os
engenheiros de Stanford estivessem certos, havia uma boa
probabilidade de eu acordar soterrado. Para completar, quando eu
fechava os olhos, a cena de Cléber Figueira Lopes despencando da
janela alternava com flashes do corpo do garoto nu jogado sobre os
sacos de lixo. A insônia me venceu. O músculo colado na
mandíbula tensionava tanto que toda a minha cabeça doía. Fiz um
circuito de exercícios para relaxar. Não adiantou muito. O trapézio
enrijeceu ainda mais com as flexões. Passei a noite lendo notícias.
Quanto mais eu lia, menos sono sentia.
7

As principais manchetes dos portais tratavam da campanha


publicitária encomendada pelo presidente à Secretaria de
Comunicação. A campanha para rádio, TV e internet trazia como
mensagem principal “A fé vence o medo”. Os investidores do
mercado imobiliário agradeceram, porém foram os primeiros a
desocupar os prédios onde moravam e trabalhavam. Fugiram para
casas na praia, no interior ou em bairros afastados. Em um dos
sites de notícias, uma reportagem mostrava como os preços das
casas de condomínios aumentaram vinte por cento em uma
semana.
Em outro portal, um vídeo apontava o grande aumento do
número de pessoas em situação de rua. Muitas famílias evacuaram
os prédios por vontade própria. Preferiam acampar em praças e
calçadas a se tornarem estatística. Assim como ao redor do meu
prédio, comerciantes e antigos moradores dos bairros hostilizavam
os acampados por todos os cantos de São Paulo. A prefeitura
demarcava áreas em vão. Barracas surgiam até no gramado do
Ibirapuera, em frente à Assembleia Legislativa. Abaixo do vídeo,
uma pesquisa revelava que cinquenta e quatro por cento da
população sentia medo de trabalhar nos prédios empresariais. Dos
que trabalhavam nesses prédios, oitenta por cento mantinham a
rotina de trabalho apenas para não perderem os empregos.
O volume de mortos era tão grande que o estacionamento
externo do Hospital das Clínicas ficou coberto por corpos
ensacados. As pessoas caminhavam entre os sacos na tentativa de
identificarem seus parentes. Era raro encontrarem sobreviventes
entre os escombros. A maior parte dos que sobreviviam eram
crianças. Os corpos pequenos se adaptavam melhor entre os
blocos de concreto. A prefeitura não sabia o que fazer com os
órfãos. Uma deputada federal entrou com um pedido de
flexibilização das leis de adoção.
8

Tomei dois relaxantes musculares em menos de cinco horas, só


então apaguei. Acordei segunda-feira, quatro da madrugada. A
testa e a mandíbula menos tensas, os músculos do pescoço
também. A boca seca. Os olhos selados por uma remela grossa e
farelenta. Lavei o rosto na pia do banheiro. Depois de tanto tempo
apagado, o mijo saiu cor de gasolina.
Peguei a malha de Georgia dentro da mochila. Se estivesse viva,
era bem provável que Georgia dormisse aquela hora. Imaginei seu
rosto tranquilo e relaxado sobre o travesseiro em algum quarto
escuro da cidade. Estava sozinha? Em casa? Ou mudou para uma
barraca na rua? Bati uma com a malha suada de Georgia colada no
nariz.
9

Dada a escassez de dinheiro, as alternativas para o almoço eram


arroz com ovo ou macarrão ao alho e óleo. Escolhi a primeira
opção. Furei o ovo frito com o garfo para a gema escorrer entre o
arroz.
Como voltar ao estúdio de balé? Nenhum disfarce daria conta
se Luiza aparecesse. Pela primeira vez me senti ridículo naquela
situação. O mundo caindo e eu vigiando um estúdio de balé para
encontrar uma mulher que não estava nem aí para mim. Ou talvez
Georgia só tivesse com muito trabalho. Quem com muito trabalho
vai ao balé enquanto o mundo desaba?
Depois de comer, fui ao terminal de ônibus. Um vendedor de
acessórios para telefone me ajudou a achar o tiozinho que
comprava eletrônicos. A lojinha media uns dez metros quadrados.
Pelas estantes, rádios, televisões, aparelhos de micro-ondas,
pipoqueiras, ventiladores, video games velhos. Atrás do balcão, o
tiozinho comia uma mexerica. Mostrei uma foto da televisão.
— Pago quatrocentos reais — ele cuspiu uma semente de
mexerica na mão.
— Vi na internet por oitocentos também de segunda mão —
guardei o telefone no bolso.
— Anuncia lá então.
O tiozinho assobiou uma sequência de notas. Dos fundos da
loja, veio a resposta de um papagaio cantando “Seu delegado
prenda o Tadeu”.
— A televisão está novinha, controle remoto original, conecta
com a internet — eu disse. — Preciso de pelo menos seiscentos.
— Para a sua idade, não pagam muito por um programa — o
tiozinho riu da própria piada. O papagaio gargalhou também. No
fundo eu achei graça, mas não quis dar intimidade.
— Quinhentos? — dei duas batidinhas no balcão.
O tiozinho separou um gomo da mexerica sem responder.
Raspou o nariz na manga do blusão. O papagaio insistia na música
do Tadeu.
— Faz o seguinte, deixa a televisão aí. Anuncio por setecentos.
Caso venda, seiscentos são seus.
A proposta era melhor do que nada. Eu disse que levaria a TV
logo mais. Na verdade, eu não tinha tanto tempo. O aluguel vencia
em dois dias. Ser espancado pelos garotos de Adriano não me
parecia um bom cenário.
10

Ao atravessar o acampamento em frente ao meu prédio, tive uma


ideia. Talvez não fosse a melhor ideia, mas era uma saída para
vigiar Georgia e não perder alguns dentes.
Despluguei o cabo da televisão da tomada. Guardei o controle
remoto no bolso da calça. A televisão pesava mais do que eu
imaginava. A distância até o terminal de ônibus duplicou. A cada
cem metros, eu parava. Apoiava a base da televisão na coxa para
descansar os braços.
Cheguei à loja. Deixei a televisão e o controle remoto sobre o
balcão.
O tiozinho examinou frente e verso. Analisou se o cabo estava
inteiro. Ligou na tomada. Apertou o botão vermelho do controle
remoto. A repórter do canal de notícias surgiu na tela.
— Quero um adiantamento. Duzentos reais. O senhor desconta
depois.
O tiozinho franziu a testa. Tirou um bolo de notas do bolso.
Contou cento e cinquenta reais. Entregou o dinheiro para mim.
— Anota o telefone aqui. Aviso quando vender — o tiozinho
entregou um bloquinho e uma caneta.
Além do número de telefone, deixei os valores anotados. Preço:
setecentos. Comissão: cento e cinquenta. O tiozinho ofereceu a
mão para eu apertar. Não tive escolha. Era uma mão sebosa com
dedos descamados. Quando virei de costas para ir embora, escutei
o assobio do papagaio. O tiozinho respondeu com a mesma
melodia.
11

Numa loja da Vinte e Cinco de Março, comprei uma barraca do


tipo iglu e um saco de dormir. O vendedor garantiu que não
entrava água no iglu. Minhas experiências com acampamento em
Alfenas me diziam o contrário. Comprei um rolo de silver tape. Em
casa, separei três mudas de roupas. Peguei também uma panela,
talheres, um copo de alumínio, os remédios e o carregador do
celular. Arrumei tudo dentro da mochila de Georgia.
Desci do ônibus no ponto em frente ao estúdio de balé. Fui em
direção à pracinha onde na semana anterior tinha visto o índio
montar sua barraca. Com as pernas esticadas sobre um tapete
trançado à mão, ele tomava sol sem camisa e acompanhava o
movimento da rua. Percebeu eu me aproximar com a mochila nas
costas e o saco com a barraca nas mãos.
Cumprimentei o índio com um aceno de cabeça quando
cheguei à praça.
— Tem espaço para mais um? — eu disse.
O índio apenas ergueu as sobrancelhas como quem diz “fazer o
quê, né?”.
Escolhi um canto no gramado embaixo de uma amoreira.
Encostei a mochila na árvore e comecei a função de montar o iglu.
Encaixei as partes das duas varetas da armação. Elas se cruzaram
por dentro da lona para deixar o iglu em pé. Posicionei a porta da
barraca de maneira que eu tivesse vista para o estúdio de balé.
Depois de fixar as estacas de ferro no chão, reforcei as costuras da
lona com a silver tape. Passei a chama do isqueiro para selar bem e
não correr o risco de acordar embaixo d'água. Iglu montado, levei a
mochila para dentro.
Olhos fechados, o índio dormia ou ignorava minha existência.
Sentei no saco de dormir enrolado. Mesmo com a sombra da
amoreira, o sol fritava a lona da barraca. Pela fresta da porta, eu via
a chegada e a saída de pessoas no balé. Pensei em fechar um
baseado, mas àquela hora da tarde chamaria muita atenção. A
turma das quatro horas entrou. Nada de Georgia. Tomei um
relaxante muscular para aliviar a tensão. Carregar o peso da
mochila para cima e para baixo arregaçou meus ombros.
Desenrolei o saco de dormir. Talvez um cochilo me fizesse bem.
Pernas esticadas, barriga para o teto, comecei uma batalha com a
insônia. O cheiro de resina da lona no sol me embrulhava o
estômago. A cada voz feminina que vinha da rua, eu recebia um
choque no cérebro, como se o rosto de Luiza fosse aparecer na
porta da barraca ou, ainda pior, o rosto de Andressa, minha ex-
mulher.
12

No primeiro dia do curso de economia da USP, eu ainda não


acreditava que havia passado na Fuvest. Eu, um mané de Alfenas,
um peso-pena, sem ninguém no mundo, pardo, empregado de
padaria, estudaria na melhor universidade pública do país. No
primeiro semestre, eu não fazia ideia de quem eram Adam Smith,
Ricardo ou Marx. Escolhi economia porque não queria ser pobre e
fodido como meu pai.
Repartir o dia entre o trabalho e a faculdade era uma bosta. Eu
seguia com o horário na padaria às sete da manhã. Nos intervalos,
contava para os colegas sobre a visão econômica de Platão e como a
teoria de Keynes salvou o Ocidente após a Segunda Guerra.
Ninguém ouvia por mais de cinco minutos. A única que fingia
algum interesse era Anelise, do caixa. Depois do samba na Chácara
Santo Antônio, a gente se pegou algumas vezes. Quatro da tarde,
eu saía da padaria. Dormia uma hora, depois corria para o campus.
Voltava para casa quase meia-noite, um bagaço. Lia no ônibus.
Estudava no final de semana. Por um milagre, passei em Cálculo
Diferencial e Integral I.
Os anos seguintes foram iguais. Apanhei da matemática
enquanto vivia em lua de mel com os clássicos do pensamento
econômico. Acreditei que a economia podia salvar o mundo da
pobreza. Depois me dei conta de que precisava me salvar primeiro.
Fiquei doente na epidemia de H1N1. Amarguei horas de espera no
Hospital das Clínicas. Trinta e nove graus de febre. Náusea. Dor no
corpo. Pensei que fosse morrer sozinho no apartamento.
Uma semana depois de me recuperar, apareceu no mural da
faculdade um anúncio de vagas de estágio num banco. Entre os
benefícios, plano de saúde. Deixei o idealismo de lado e enviei
meu currículo. Na verdade, eu não tinha um currículo. Num
arquivo em branco, escrevi meu nome, idade, escola onde terminei
o ensino médio, o curso de economia na USP e “auxiliar de vendas
na padaria Estrela”. Esse foi o melhor termo que encontrei para
valorizar o trabalho de garçom.
Passou um bom tempo e não tive resposta alguma. Desencanei
e segui a vida. Vez por outra, espiava o mural ou revirava a internet
atrás de uma vaga melhor do que meu posto de atendente. Numa
tarde, quando parei em casa para cochilar, percebi um e-mail novo
na caixa de entrada. O e-mail informava que eu tinha sido pré-
selecionado pelo banco. Havia ainda uma etapa de seleção
presencial.
Vesti uma mesma camisa do Lucas nos três dias de dinâmica de
grupo. Uma psicóloga com sotaque carioca fez os candidatos
sentarem em círculo e testou nossa paciência com atividades que
duravam horas. A maior parte dos estudantes no processo eram
homens, brancos, e faziam de tudo para demonstrar o quanto
amavam o mercado financeiro. Era algo bem nojento de se ver. Eu
seguia firme na minha interpretação de jeca. Cabelo lambido para o
lado, sotaque mineiro e fedendo a gordura da padaria. Só me dei
conta de que carregava o cheiro na tarde em que a psicóloga
perguntou se alguém havia comido na sala. Depois desse episódio,
reparei que as pessoas da faculdade e no transporte público
mantinham certa distância de mim.
O resultado do recrutamento chegou uma semana depois da
dinâmica de grupo. Passei na seleção. O setor de recursos
humanos me escalou para trabalhar numa agência do Itaim Bibi,
perto do largo da Batata. O salário era o dobro do que eu ganhava
na padaria, mais vale-refeição, seguro de vida, vale-transporte e o
bendito plano de saúde.
Eu precisava de roupas para trabalhar. Fui a uma loja do Brás. O
dono era um turco engraçado, cliente da padaria. Comprei três
camisas bancas, uma calça social preta e um sapato de couro de
bico quadrado. Parcelei em dez vezes com entrada para trinta dias,
quando sairia o primeiro salário.
Meu trabalho era basicamente vender empréstimos
consignados para devedores com a corda de outras dívidas no
pescoço. Rodrigo, meu chefe, deu a dica de ligar para pessoas com
mais de sessenta anos. Velhinhos nunca entendem direito as regras
dos empréstimos e sempre querem um dinheiro a mais para
comprar presentes pros netos.
Na mesa ao lado de Rodrigo, sentava Andressa, a estagiária
responsável pela venda de outra bomba: títulos de capitalização.
Ela já estava no banco há um ano quando cheguei. Estudava
administração na PUC. Andressa tinha um nariz estranho e um
sorriso anguloso, sincero. O cabelo muito liso, escorrido, usava
repartido para o lado. Estava longe de ser feia. Também não servia
para dublê de Scarlett Johansson.
No meu primeiro dia, Andressa me chamou para almoçar.
Fomos a um restaurante chamado Casinha da Nena, ficava
próximo ao banco. Gostei do lugar. Servia três opções de prato
feito com direito a um copo de suco aguado pelo valor exato do
vale-refeição. Voltamos lá nos outros dias. Andressa falava à beça.
Achava engraçado meu sotaque mineiro e os comentários que eu
fazia sobre o péssimo gosto do café coado do banco. Eu me sentia
bem com Andressa. Esperava a hora do almoço para ter alguns
minutos com ela. Apesar de descontraída, Andressa mantinha
certa distância profissional. Não falava muito sobre a própria vida.
O terceiro estagiário era JP. Trabalhava com a venda de seguros.
Ninguém na agência gostava de JP. Diziam que havia conseguido o
estágio por ordens do alto escalão. A primeira vez que nos falamos
foi em frente à garrafa térmica do café. Antes mesmo de saber meu
nome, JP perguntou se eu pegava Andressa. Eu disse que não
misturava trabalho com sexo. JP fez uma careta de espanto e disse
que eu deveria repensar o assunto. Ficou espantado quando contei
que também estudava na USP. Perguntou se entrei pelo regime de
cotas. Nem deu tempo de responder, JP emendou um discurso
sobre ser favorável às cotas. Era uma das formas mais eficazes de
promover justiça social no país. Ofereceu carona do banco para a
faculdade. Aceitei. As caronas eram verdadeiros monólogos.
Apenas ele falava. Descobri que a tese dos funcionários da agência
tinha fundamento. O pai de JP era um economista conhecido,
secretário do governador. JP vivia em uma casa no Jardim Europa.
Nos finais de semana, descia de carro com a namorada para
Ubatuba. Não sabia onde ficava Alfenas. Achava que eu era um
tapado por ainda não ter pegado Andressa. Apesar das diferenças,
eu gostava do jeito direto de JP. Antes do fim do semestre, nos
tornamos amigos.
13

Levei dois meses até chamar Andressa para sair. Festa da


faculdade. Ela agradeceu, precisava estudar. Fiquei na dúvida se era
desculpa. Por via das dúvidas, não convidei mais. Num happy hour
com a turma do banco, bebi demais. Andressa se ofereceu para me
acompanhar até o ponto de ônibus. Ficamos pela primeira vez.
Depois desse episódio, trocamos uns amassos na hora do almoço.
A gente cuidava para não ter alguém do banco por perto. Por
algumas semanas eu só pensava em um assunto: comer Andressa.
Não havia a menor chance de levá-la ao pulgueiro onde eu morava.
Raspei uma grana da poupança e chamei ela para um motel que
o JP indicou. Ficava na marginal Pinheiros. Dez minutos de táxi. A
primeira vez foi esquisita. Chegamos lá meio-dia e meia. No valor
do quarto estava incluído o almoço. Fiquei nervoso pra cacete.
Meu pau não subia de jeito nenhum. Eu disse que precisava de um
banho. Andressa se ofereceu para ir comigo. Fingi que não ouvi e
fechei a porta. Abri o chuveiro. Água gelada à beça. Eu não sabia
como funcionava o misturador. Molhei um pouco o corpo, o cabelo
e fiquei em um canto do boxe acariciando meu garoto para ver se
ele ressuscitava. O pau só deu sinal de vida quando o garçom bateu
na porta para entregar o almoço. Saí do banheiro enrolado numa
toalha branca. Andressa só de calcinha sentada na beira da cama lia
mensagens no celular. Ao lado, dois pratos de filé a cavalo.
Transamos desajeitados. Para minha surpresa, a comida do motel
era ótima. Voltamos outras vezes. A moça da recepção nos
chamava pelo nome. Minhas economias não iam aguentar aquele
ritmo. Andressa percebeu. Revezamos o pagamento do motel.
Segundo JP, todos no banco sabiam do nosso caso, inclusive o
analista com quem Andressa saiu por um tempo, Tiago. Essa foi
novidade pra mim. Fiquei puto. Sempre que olhava para Tiago,
imaginava aquele filho da puta alisando a bunda de Andressa. Por
alguns dias, falei com ela só o necessário. Arrumei as desculpas
mais vagas para não sairmos. Até que, num fim de expediente, só
nós dois estávamos na agência. Andressa me enquadrou. Não
entendia por que eu mudei de atitude de uma hora para outra.
— Problemas de família — eu disse.
Andressa não caiu nessa. Pediu detalhes sobre o problemão de
família que me fez ignorá-la por três dias. Olhei bem ao redor para
ver se a agência estava completamente vazia.
— Que porra é essa de você ter saído com o Tiago?
Andressa deu uma gargalhada que ecoou na sala.
— Desculpa por não ser mais virgem. Não sabia que precisava
enviar para você uma lista dos caras com quem já fiquei.
Quando me dei conta da forma como falei, senti um luminoso
escrito “tosco” acender na minha testa.
Andressa parou de rir e mudou de tom. Disse para eu não me
preocupar. Foi um lance rápido. Começou na festa de final de ano e
não resistiu a dois rolês. Tiago era só um coxinha que gostava de
contar vantagem. Antes que eu falasse outra besteira, ela me
convidou para matar aula e jogar sinuca. Meio sem jeito, topei.
A gente se pegou um pouco no bar e acabamos no motel de
sempre. A transa não rolou bem. A imagem de Tiago comendo
Andressa me gerava uma mistura de ciúmes, tesão e frio na barriga.
Acho que ela percebeu. Dentro do táxi, segurou a minha mão e me
chamou para almoçar domingo na sua casa.
A família de Andressa morava em Santana, a poucas quadras do
metrô. Cheguei meia hora antes do combinado. A mãe de
Andressa abriu a porta. Clara era uma versão envelhecida da filha.
Um pouco mais baixa, um tanto mais gorda, com o mesmo sorriso
anguloso.
— Seu garoto chegou, Andressa — Clara gritou para dentro de
casa. Secou as mãos no pano de prato pendurado no ombro e me
cumprimentou com um abraço.
Clara me mostrou o caminho para a sala e desviou em direção à
cozinha, de onde vinha cheiro de feijão com louro. Fui recebido
pelos latidos de um yorkshire com um laço azul entre as orelhas.
— Pode entrar, Marley não morde — ainda de pijama, Andressa
assistia a um desenho com o irmão, um garotinho de oito anos.
Procurei um canto no sofá sem tirar os olhos do cachorro.
Andressa me beijou e disse que em um minuto trocava de roupa.
Fiquei sob os cuidados do irmão. Davi desligou a televisão.
Perguntou se eu jogava video game. Menti que sim. O garoto me
entregou um dos joysticks. Levei uma surra no jogo de futebol.
Andressa voltou antes de eu perder a segunda partida. Convidou
para um pequeno tour. Marley nos acompanhou, ainda
desconfiado da minha presença.
A casa de alvenaria ocupava mais da metade do terreno. Um
piso. Três quartos. A sala. Um banheiro. A cozinha, o último
cômodo. Uma porta ao lado da pia dava para o quintal. Do lado de
fora, numa área coberta atravessada por um fio de estender roupas,
a máquina de lavar e o tanque. O quintal era cheio de plantas. A
árvore mais alta fazia sombra no gramado e abrigava um par de
bromélias. Junto ao muro, ao fundo do terreno, uma sequência de
laranjeiras se enfileirava. Sentamos na rede presa entre duas
goiabeiras. Fazia uma manhã bonita. Céu azul. Não muito quente.
A gente ficou ali de bobeira até a mãe de Andressa chamar para o
almoço.
O caso de trabalho virou namoro. Passei a frequentar a casa de
Andressa todos os finais de semana. Muitas vezes, dormia por lá. O
universo de Andressa me trazia paz. Depois que minha mãe partiu,
aquela era a primeira vez que eu me sentia acolhido. A família de
Andressa estava longe de ser perfeita. O pai abandonou a casa logo
que Davi nasceu. Nunca pagou pensão. Clara sustentava os dois
filhos com o salário curto de professora. E, com o tempo, percebi
que Andressa sentia vergonha da mãe. Escondia dos amigos e dos
colegas do trabalho que Clara trabalhava como professora
municipal. Em compensação, não perdia oportunidade de
comentar sobre o pai médico. Eu achava aquela dinâmica meio
merda, mas era de longe bem melhor do que a minha referência de
família.
Por conta de Andressa esconder a profissão de Clara, eu me
perguntava o quanto podia contar com aquela mina. Essa
percepção mudou na tarde em que me ligaram para informar a
morte de meu pai. Andressa me abraçou no meio da agência. Foi
comigo até Alfenas e resolveu boa parte da burocracia do velório.
Bernardo, um dos pedreiros de confiança de meu pai, contou
que foi uma briga por dívida de jogo. Mestre Carlos levou cinco
facadas no peito. A briga aconteceu no bar do Biru, onde rolava
uma mesa de baralho. O assassino se chamava Tales, era um
pedreiro fodido, com um filho recém-nascido. Há três semanas
meu pai atrasava o pagamento de Tales e outros peões para cobrir
um furo de jogo.
Vendi o Opala de Mestre Carlos por uma pechincha ao dono de
uma loja de usados na entrada da cidade. Pedi a Bernardo para me
levar à casa de Tales. Bernardo disse que não era hora para
vingança. Tales estava fugido, sabe-se lá pra onde. Insisti. Bernardo
dirigiu até a frente da casinha de tijolo não rebocado. Desci
sozinho. Andressa esperou no carro. Bati palmas. Na janela da
frente, apareceu uma mulher raquítica com um bebê no colo.
Perguntei quanto meu pai devia.
— Moço, eu não quero complicação — disse a mulher. — Tales
é um homem bom. Bebeu demais, perdeu a cabeça.
Insisti em saber o valor. Dentro da casa, uma criança apoiou as
mãozinhas na janela para ver meu rosto. Fiquei parado até a
mulher responder.
— Mil e quinhentos reais.
Tirei do bolso o dinheiro da venda do Opala. Contei quinze
notas de cem e entreguei o dinheiro para ela.
Durante o enterro, o vereador Jair Fraga discursou para as vinte
pessoas que cercavam o caixão. Eu queria ir embora daquele lugar
e esquecer a cidade de vez. Andressa não soltou a minha mão.
14

Acordei desnorteado. Não reconheci o teto baixo de lona. Na rua,


carros e ônibus aceleravam com raiva. Precisei de alguns segundos
para entender onde estava. Dormir em uma barraca piorou
bastante a dor nas costas. Abri o zíper da portinha e fui para a rua.
Sentado com as pernas cruzadas e a coluna muito ereta, o índio
bebia chá em uma caneca e comia um sanduíche.
— Bom dia — estiquei a mão. — Nem nos apresentamos.
O índio me cumprimentou com um aperto de mão firme.
— Eu sei quem você é.
— Sabe quem eu sou? — sentei no gramado.
— Sei, mas fique tranquilo — disse o índio. — Você tem uma
caneca? Sobrou chá.
— Obrigado. Prefiro saber quem eu sou — cogitei que o índio
fosse um detetive particular contratado por Andressa ou então
uma espécie de segurança de rua que prestava serviço para o
estúdio de balé.
— Você é apenas um menino índio sem rumo.
— Em cheio, também me chamam de Solano.
— Prazer, Rudá. Desculpe por eu não ter outro sanduíche.
Perguntei se ele sabia de algum lugar para eu carregar o celular,
ir ao banheiro. Rudá disse que costumava ir a uma lanchonete na
rua Itapicuru. Odair, o dono, era gente boa. Emprestava o banheiro
e a tomada sem você comprar nada. Caso fosse muito com a minha
cara, emprestaria até o banheiro dos funcionários nos fundos da
lanchonete, onde dava para tomar banho quente. Pedi para Rudá
olhar a barraca para mim. Enquanto andava, pensei se não seria
melhor levantar acampamento. Perder a barraca não era um bom
negócio.
A lanchonete ficava a menos de duzentos metros do meu antigo
prédio. Era um lugar fuleiro com paredes pintadas com cal e um
luminoso desbotado da Coca-Cola. Destoava da paisagem nouveau
riche do bairro. É bem provável que por isso ignorei a lanchonete
do Odair durante todos os anos em que morei na região.
Quando cheguei, dois homens conversavam numa das mesas de
lata abertas na calçada. O mais gordinho perguntou se eu queria
algo.
— Sai um pingado com misto quente? — eu disse.
— Claro que sai — o gordinho era o próprio Odair. Levantou da
mesa e foi até a porta da lanchonete, de onde gritou o pedido para
alguém na cozinha escondida pelo balcão.
Perguntei onde ficava o banheiro e se podia carregar o celular.
Odair mostrou a portinha próxima ao balcão. Plugou o celular a
uma tomada atrás do jukebox.
O banheiro seguia o padrão de limpeza precário da lanchonete.
Preferi não imaginar a cozinha. Aproveitei a pia para lavar o rosto e
escovar os dentes, que já criavam pelinhos.
O misto quente e o pingado me esperavam numa das mesinhas
de lata.
Da mesa onde conversava com o seu compadre, Odair
perguntou se eu morava há muito tempo no bairro.
— Cheguei ontem — eu disse.
— Não acha o rosto dele familiar, Alberto? — Odair ergueu
uma das sobrancelhas.
Alberto soltou o copo de cerveja na mesa e me encarou por um
tempo. Disse que, na idade dele, usar a pouca memória que restava
para guardar rosto de homem era desperdício.
Entre uma mordida e outra no misto, contei que morava no
centro. Por questão de segurança, a prefeitura me removeu de meu
prédio. Estava acampado na rua por tempo indeterminado. Odair
disse que aconteceu o mesmo com o sobrinho que morava na Luz.
Evacuaram a quadra. O sobrinho e a esposa ficaram sem ter onde
morar. Odair os abrigou. Em troca, davam uma mão na cozinha.
Comentei que, a cada dia, a situação dos prédios dava mais
medo. Talvez o melhor fosse seguir a recomendação dos
pesquisadores e evacuar todos.
— É isso o que aquele bilionário quer — disse Alberto. — Eu te
mandei esse vídeo, Odair. Recebi no grupo. Qual é o nome do véio
comunista?
Odair não lembrava. Então joguei o nome de George Soros na
roda para ver aonde a conversa ia.
— Esse diabo — seguiu Alberto. — Tava tudo no vídeo. Esse
Soros tem derrubado os prédios com uma tecnologia russa para
depois comprar as cidades inteiras a preço de banana. Ele não está
sozinho, não. Parece que tem até ator de Hollywood no esquema.
Eu não arredo pé do meu prédio.
Odair concordou. Disse que logo essa besteira de prédio cair
acabava e um monte de gente ia se arrepender de ter entregado os
apartamentos por uns trocados.
— O senhor tem a lanchonete há um bom tempo, né? — eu
disse.
— Vinte e sete anos é um bom tempo, meu chapa? — Alberto
respondeu por Odair.
— Tempo suficiente para brigar e fazer as pazes uma dúzia de
vezes com pilantras tipo esse aí — Odair deu um soco leve no
braço de Alberto.
— Talvez você conheça uma amiga que dança no estúdio de
balé — bebi um gole do pingado que começava a amornar. —
Desde que o primeiro prédio caiu, não tive notícias dela.
— As meninas do balé não aparecem muito aqui, mas quem
sabe — disse Odair. — Como ela se chama?
Fiz de conta que não ouvi a pergunta. Busquei o celular.
Mostrei a foto torta que tirei de Georgia no último dia em que nos
vimos. Odair contraiu os olhos para examinar a foto. Só aparecia o
rosto entre o vão da porta. Mostrou o celular para o Alberto.
— Parece a filha do Hélio?
— A gostosa? — disse Alberto.
— A que tem idade para ser sua neta — Odair me devolveu o
telefone. — Qual é o nome da sua amiga?
— A turma a chama de Georgia, mas acho que é apelido.
— Puta apelido feio — disse Alberto.
— A filha do Hélio se chama Daniela. Dança desde novinha.
Mudou do bairro faz cinco anos, mas volta e meia passa por aqui.
— Onde o Hélio mora?
— Morava — Alberto faz o sinal da cruz com a mão.
— O prédio do Hélio caiu semana passada. Não encontraram o
corpo.
15

Depois de pagar o lanche, pedi a Odair que avisasse se Daniela


passasse pela lanchonete. Perguntei também onde ficava o prédio
onde Hélio morava. Odair mostrou no mapa do celular. Rua
Minerva, próximo à avenida Sumaré. Pedi para levar o jornal do dia
anterior que estava dobrado sobre o balcão.
Não deu pra chegar perto dos escombros do prédio de Hélio.
Uma viatura policial vigiava a faixa de isolamento uma quadra antes
do prédio. Circulavam por ali apenas bombeiros e os caminhões
carregados de entulhos. Imaginei o corpo leve de Georgia
esmagado por toneladas de concreto. Se Georgia fosse Daniela,
qual a chance de estar no apartamento do pai quando o prédio
caiu?
16

Andar pelo bairro me dava a certeza de que eu seria abordado por


Luiza ou Andressa a qualquer momento. Baixei a aba do boné o
máximo que consegui. Ergui a gola da jaqueta jeans. O que eu diria
se Andressa me encontrasse? Preferia não pensar nessa
possibilidade. Fiquei o resto da manhã na barraca com as notícias
do jornal de Odair.
A matéria da capa falava da briga entre o presidente e os peritos
que defendiam a evacuação dos prédios. No caderno de decoração,
uma apresentadora de TV mostrava a sua cobertura de oitocentos
metros quadrados e dizia que não sairia de casa por nada. Notícias
internacionais. Em Londres, caiu o prédio de um funcionário do
Fundo Monetário Internacional. Dias antes, o jovem fez um post
no qual dizia que as cidades deviam voltar à normalidade para o
bem da economia. O jovem morreu soterrado. O FMI não se
pronunciou.
17

Assim que me formei em economia, o pai do JP fundou a corretora


de valores. JP me convidou para trabalhar com eles. Além dos
benefícios usuais como plano de saúde e vale-refeição, eu receberia
um bônus pelos resultados do fundo de investimento que ajudaria
a administrar. Mesmo sem ter experiência com fundos, topei. Não
havia muitas opções. Era trabalhar com o JP ou rezar para o banco
me efetivar e eu atolar idosos em empréstimos pelo resto da vida.
Com o salário melhor, Andressa e eu alugamos o primeiro
apartamento na Bela Vista. Era pequeno, quarto e sala. A máquina
de lavar ficava no banheiro. No roupeiro, nem cabiam todas as
roupas de Andressa. Doamos duas caixas cheias de calças e blusas
para o bazar da AACD. Nos finais de semana que não passávamos na
cama transando, Andressa dirigia nosso Ford Ka até Santana. Num
desses almoços, ela contou sobre a ideia do casamento para Clara.
Foi uma festa simples. Entre os convidados, a família de Andressa,
dois amigos do banco, JP e a namorada, Elisa. Saímos do cartório e
fomos para um restaurante nos Jardins. JP pagou a conta. Disse que
era presente do seu pai. Passamos cinco dias em Maceió. Na volta,
a vida seguiu bem.
As coisas mudaram três anos mais tarde, quando Andressa
entrou em uma grande consultoria de gestão. O salário era ótimo.
O suficiente para juntarmos com o que ganhei na venda da casa de
Alfenas e financiarmos o apartamento da Bela Vista. O problema
do trabalho na consultoria eram as viagens frequentes. A cada mês,
Andressa passava dez dias fora de casa. Eu não lidava bem com
isso. Anos depois, uma psicóloga me disse que eu projetava o
abandono da minha mãe. Pode ser. O fato é que, na época em que
as viagens começaram, eu entrei em um ciclo bizarro.
Primeiro foi o trabalho em doses cavalares. Mesmo quando
desligava o computador na corretora e ia para casa, não desgrudava
das notícias do mercado. Dia e noite, acompanhava as cotações
pelo mundo, sempre de olho em alguma oportunidade para o
fundo. Era excitante como video game, mas com a vantagem de
cair um monte de grana na minha conta caso eu ganhasse. A
possibilidade de entrar numa concessionária e comprar um Audi à
vista apenas com o bônus que recebi na virada de um trimestre me
fascinava. Era como se o garoto de Alfenas nunca tivesse existido
nesse novo mundo movido por dinheiro e marcas caras.
Em seguida, descobri a cocaína. JP encomendava o pó de um
motoboy que entregava no escritório duas vezes por semana.
Terças e sextas. Quase todos os analistas da corretora cheiravam.
Os papelotes no lixo do banheiro não deixavam dúvidas. O pai de
JP fingia não saber. Mesmo com o país em crise, os resultados iam
bem. Poucos investidores se dão conta de que boa parte do lucro
de uma corretora de investimentos vem das taxas de corretagem.
Tanto faz se a bolsa caiu ou subiu. Cada vez que alguém compra ou
vende um lote de ações, entre três e cinco reais ficam para a
corretora. Multiplique isso pela quantidade de operações diárias de
milhares de correntistas e seja um bilionário feliz.
A cocaína combinava com a ansiedade do mercado. No ciclo de
cheirar, comprar, vender, pulsava uma energia primitiva dentro de
mim. Eu precisava extravasar, e nada mais primitivo do que o sexo.
Começou com a recepcionista. Uma baixinha estrábica com a
bunda dura. A gente transava no intervalo do almoço dentro do
carro ou no final do expediente na escada de emergência do
prédio. Muitas vezes era algo rápido. Eu desabotoava a calça, Bia
levantava a saia e pronto.
18

JP gostava de dizer que Freud criou a psicanálise movido a cocaína.


Confesso que também simpatizava com a ideia. Ter um pensador
do nosso lado trazia certo glamour para a coisa toda. Depois li
numa revista que Freud não criou a psicanálise enquanto usava
cocaína, e sim desiludido com a droga.
Nas rodas de Viena, Freud ouviu sobre o poderoso pó que
aliviava dores. Experimentou em pacientes e se empolgou com os
resultados. Em 1884, publicou um artigo sobre os efeitos da coca e
seus usos terapêuticos. A venda de cocaína era lícita na Áustria.
Freud receitava para casos de histeria, melancolia e prostração
nervosa.
Naquela época, a comunidade médica de Viena via Freud como
charlatão. Não faltavam piadas sobre o método de hipnose. Sem
grana e sem prestígio, ele embarcou na onda da coca também.
Usou muito, de forma compulsiva. Não cheirava, bebia diluída em
água.
Perto de 1890, Freud percebeu que a cocaína mais fodia a sua
vida do que ajudava. Parou de prescrever aos pacientes e também
de consumir. A decepção com as drogas levou Freud a estudar um
tratamento sem medicamentos, baseado na fala. Então nasceu a
psicanálise. Agora convence um viciado que essa é a história
verdadeira.
19

Quando descobri que JP repartia Bia comigo, larguei de mão.


Investi em outra colega recém-chegada à corretora. Gabi era seis
anos mais nova do que eu. Filha de um figurão amigo do pai de JP.
Jogava tênis no Clube Pinheiros. Por segurança, usava um carro
diferente a cada semana. Sempre modelos blindados. Ela estudava
na FGV, primeiro ano do curso de administração. Na corretora,
trabalhava como estagiária do grupo que analisava as ações do
mercado de minério. Tinha um namoradinho pamonha.
A primeira vez que transei com Gabi foi num banheiro de bar.
Era happy hour da firma. Os dois estavam bem altos. Ela deu a
ideia. O banheiro ficava no segundo andar. Tinha pouco
movimento por lá. Quando descemos, peguei um táxi direto para
casa. Gabi usava um perfume seco, muito bom. Provavelmente
comprado em Paris ou Nova York.
No começo, eu achava Gabi uma patricinha tarada. Com o
passar das semanas, saquei que era mais madura do que outras
garotas de dezoito anos. Gostava de fumar maconha antes de
transar. Dissertava sobre política e filosofia. Adorava signos.
Inclusive me encheu a paciência para que eu descobrisse a hora em
que nasci. Revirei a pasta de documentos até achar o registro de
horário na certidão de nascimento. Gabi fez o meu mapa astral.
Disse que eu tinha sol em Áries, lua em Aquário, ascendente em
Libra. Nunca entendi nem quis entender o que diz essa
configuração. Gabi acreditava que nossos mapas batiam, isso
bastava.
Conforme os dias passavam, Gabi e eu deixamos toda discrição
de lado. Voltávamos do almoço juntos. Dávamos perdido na turma
quando saíamos para beber. Trocávamos mensagens de texto a toda
hora. Não importava se eu estava numa reunião ou na cama com
Andressa. Gabi dispensou o namorado. Eu cogitava sair de casa. Só
não sabia como.
Num feriado prolongado de outubro, eu e Andressa descemos
para a casa de praia de JP. Programa de casal. Além de JP e Elisa,
estavam por lá Marília, uma prima fresca do JP, e Álvaro, o marido
que só comia carne kosher. Levei uma quantidade razoável de pó
na mochila. Eu e JP nos revezávamos no banheiro para cheirar.
No fim da tarde, sentamos na varanda, perto da churrasqueira
onde Álvaro preparava o fogo. Andressa contava para JP e Marília
sobre as viagens a trabalho para as usinas elétricas. Eu trocava
mensagens com Gabi.
Elisa trouxe da cozinha uma garrafa de vinho branco. Serviu
uma taça para JP e, em seguida, para Andressa, que recusou.
— Dona Andressa recusando vinho? — disse Elisa. — Temos
uma grávida no grupo?
Tirei os olhos da tela do celular e me deparei com o rosto de
Andressa incandescente.
— Ei! Meu nome está no bico da cegonha? — levantei da
poltrona.
— Parece que sim — disse Andressa. — Talvez seja hora de
acabar com os almoços prolongados.
Fiquei sem reação. Andressa sabia de Gabi. Talvez soubesse de
Bia. Talvez soubesse da cocaína. E eu ia ser pai.
JP propôs um brinde para quebrar o clima.
Na volta para São Paulo, chamei Gabi para um café. Expliquei a
situação e acabei o namoro. Tive medo de Gabi causar alguma
confusão. Não foi o caso. Gabi disse que não esperava outra atitude
de alguém com o ascendente em Libra. Pediu demissão na mesma
semana. Trocou o número de celular e deixou no vácuo todas as
minhas mensagens de arrependimento.
20

O movimento no estúdio de balé diminuía a cada dia. Boa parte das


famílias com grana estavam longe de São Paulo, confortáveis em
casas de praia e sítios. Tornou-se uma cena comum carros
passarem cheios de malas. As empresas de mudança e galpões de
depósito faturavam uma grana. Talvez Georgia esti­vesse longe,
ilhada, no meio do mato. Não fazia muito o estilo dela. Talvez
Georgia fosse mesmo essa tal Daniela.
Perto das onze da noite, enrolei um baseado e saí para dar uma
volta. Na barraca ao lado, Rudá roncava pesado. A rua estava bem
vazia. Nenhum carro. Não havia vivalma. A poeira do ar formava
um nevoeiro londrino, que ganhava um tom esbranquiçado na
altura das lâmpadas dos postes.
Acendi o baseado. Eu vagava como uma alma perdida. Evitei as
ruas com prédios altos. Desci até a avenida Sumaré. Caminhei por
entre as árvores da ciclovia. Apaguei o baseado na tampa da latinha
onde guardei a ponta. Subi pela rua Minerva. Nenhum policial
cuidava da faixa de isolamento ao redor dos escombros do prédio
de Hélio. Fui adiante. Em meio ao nevoeiro, reparei em um
caminhão estacionado. Meia dúzia de peões trocavam insultos e
riam enquanto carregavam a caçamba com entulhos. Fui para o
lado oposto. Eu estava bem chapado. Caminhei com passos leves
sobre os blocos de concreto, com medo de machucar Georgia ou
algum outro soterrado. Junto ao concreto, havia pedaços de sofás,
armários, roupas.
Fiquei de joelhos em frente a uma pilha mais alta de entulho.
Coloquei o ouvido no concreto. O único som que eu ouvia era a
gritaria dos peões no outro lado do terreno. Removi um bloquinho
de tijolo. Depois um abajur retorcido. Um pedaço de madeira.
Conforme retirava, jogava para o lado. Que bosta eu estava
fazendo? Entrei num transe de jogar entulhos para o lado.
Imaginava o corpo de Georgia ali embaixo. Retorcido. Frio.
Estático. Cheguei a um bloco grande. Uma armação de ferro com
mais de um metro e meio. Nas pontas, pedaços de concreto. Era
pesado pra cacete. Arrastei para longe. O bloco rolou pela pilha de
concreto. O barulho chamou a atenção dos peões.
— Quem está aí? — uma silhueta com capacete de obras surgiu
no nevoeiro.
Em segundos, eram três peões ao meu redor.
— Procurando o que aqui, vagabundo? — o peão magrelo
segurava um cano de ferro.
— Deixa o cara — disse o tiozinho de bigode largo. — Veio
achar algo para vender.
— Minha namorada — eu me levantei. — Minha namorada
morava no prédio.
— Cala a boca. Isso era prédio de bacana — disse o peão com
camisa regata verde. — Namorada de mendigo não morava aqui
não.
Senti a barra de ferro nas costas. Em seguida um chute no
joelho direito. Caí sobre os escombros. Protegi a cabeça com as
mãos. Outros cinco chutes me acertaram. O tiozinho do bigode
empurrou os outros dois peões para longe de mim.
— Querem matar o cara?
A chapação passou num instante. Levantei devagar.
— Vaza, vagabundo! — o peão apontou o cano na minha
direção. — Vaza!
— Vai embora — o tiozinho continha os colegas.
Minhas costelas, o antebraço direito e o joelho doíam à beça.
Caminhei o mais rápido que pude para fora da faixa de isolamento.
Depois, reduzi o passo. O caminho mais curto para a barraca
passava em frente ao meu antigo prédio. Parei para acender a ponta
de baseado. As luzes do quarto de Luiza e da sala estavam acesas.
Fiquei ali por alguns minutos na tentativa de ver algum vulto, mas
ninguém passou.
Parte 4
1

Acordei com os olhos grudados. A poeira no ar e o lance de dormir


com a barraca na beira da rua triplicaram a minha produção de
remela. Saí da barraca para lavar os olhos com a água que guardava
numa garrafa PET. As costas e o joelho doíam.
Sentado sobre as pernas cruzadas, Rudá olhava o movimento
minguado da rua.
— Por que o amigo está mancando? — Rudá disse.
— É a idade.
Quando despejei a água nos olhos, a maçã do rosto ardeu.
Descobri um esfolado na altura do nariz. À noite, não havia
percebido. Rudá riu. Disse que a idade me acertou com tudo no
olho. Pedi o fogareiro de Rudá emprestado. Coloquei água para
esquentar na leiteira de alumínio. Depois misturei com café
solúvel na caneca. Ofereci para Rudá.
— Obrigado. Não tomo café.
Preparei um sanduíche com pão, salame e queijo. Quando dei a
primeira mordida, o telefone notificou uma mensagem de texto.
Georgia? Não, era o velho do papagaio avisando que vendeu a
televisão. Eu estava rico. Podia quitar o aluguel e me livrar de outra
surra.
Depois de terminar o café, desmontei o acampamento. Rudá se
ofereceu para cuidar de tudo até eu voltar. Preferi levar as coisas
comigo. Talvez eu dormisse na quitinete.
2

No ônibus para o centro, o cobrador lia no celular e comentava as


notícias com o motorista. Um hotel caiu na China e deixou mais de
duzentas pessoas desaparecidas. Foram presos os responsáveis
pelo incêndio de um prédio no centro da cidade. A notícia que
mais indignou o cobrador era sobre a briga entre o presidente e o
prefeito de São Paulo. A prefeitura ordenou a paralisação de
qualquer obra de empreendimentos com mais de sete andares.
Então começou uma batalha judicial entre os compradores de
apartamentos, que exigiam o dinheiro de volta, e as empreiteiras,
que pediam ajuda ao governo federal. O presidente disse que o
prefeito queria causar pânico e promover populismo e gastança
com a construção de casas populares.
Enquanto o cobrador comentava as notícias, eu tentava
entender por qual rua passávamos. Não reconhecia o trajeto. O
ônibus costurava um caminho improvisado. Desviava das ruas
interditadas. A cidade se tornou um labirinto sem horizonte. O
motorista parava o ônibus a cada esquina para pensar qual direção
tomaria. Nas calçadas e praças, muitas barracas e gente mal
acomodada.
3

Entrei na loja do tiozinho ao som de “Atirei o pau no gato”


interpretado pelo papagaio. O tiozinho me pagou trezentos reais.
Disse que o comprador pediu um desconto. É bem provável que o
velho tenha embolsado o dinheiro, mas tudo bem. Era um milagre
vender uma televisão usada numa cidade onde metade da
população debandou e a outra estava em casa com medo. Juntei o
dinheiro com o restante do valor que levava na mochila e fui em
direção ao edifício João Ramalho. Queria esticar as costas na cama.
Tomar um banho. Beber uma cerveja da geladeira.
Havia poucos pedestres nas ruas. A praça da República estava
tomada de barracas. Três policiais a cavalo faziam a ronda na
tentativa de manter alguma ordem. Quando cheguei ao largo do
edifício João Ramalho, o prédio era uma montanha de cinzas e
brasa. Atrás de uma fita de isolamento que cercava a praça inteira,
bombeiros removiam entulhos e gritavam em busca de
sobreviventes. Os acampados não estavam mais lá, nem Adriano,
nem Dagu, nem o meu apartamento. Bateu uma tontura forte.
Sentei no meio-fio com a mochila nas costas. Respiração pesada. O
coração acelerou. Crise de pânico, há meses eu não tinha uma.
Sentia os pés leves e um medo profundo. A morte se aproximou e
sentou ao meu lado. A vista turva. Pensei que fosse desmaiar. Eu
sabia como a crise funcionava. Era só respirar. Manter a mente
calma. Estava tudo bem. Tudo bem. Fiz um exercício de respiração
que a psiquiatra ensinou. Puxava o ar pelo nariz. Contava até três e
deixava o ar sair pela boca. Tentei rezar um pai-nosso. Não
lembrava como começar.
4

Quando o ritmo do coração normalizou, fui à padaria. Nenhum


chapista ou garçom por lá. O dono atendia no balcão. A filha
adolescente cuidava do caixa. Há dias o padeiro que fazia carolinas
não dava as caras. Pedi um chá de camomila. Perguntei o que
aconteceu com o prédio. O dono da padaria entregou a xícara com
água quente com um saquinho de chá no pires. Disse que sabia
pouco a respeito do incêndio. A filha baixou a cabeça para eu não
puxar assunto.
Sem apartamento e tenso, eu precisava de algum lugar para
deitar. Peguei um ônibus de volta para Perdizes. Mandíbula
travada, controlava a respiração. Busquei a notícia no celular. Fez
sentido o silêncio na padaria.
O garoto morto dias antes tinha um irmão. O irmão do garoto
tinha amigos. Essa turma toda cresceu numa quebrada onde não se
leva desaforo para casa. Quando confirmaram que Adriano
assassinou o garoto, prepararam o plano. Na tarde anterior ao
incêndio, os comerciantes acharam estranho o repentino sumiço
dos acampados do largo. À noite, três focos de incêndio surgiram
em andares distintos. Usaram apartamentos vazios. Espalharam
litros de gasolina levados em garrafas plásticas e buchas de jornal.
Boa parte das famílias deixou o prédio a tempo. Entre as fotos dos
mortos, reconheci Dagu. A reportagem não mencionava Adriano
nem os demais milicianos.
5

Olá, Georgia. Não sei se você passou pelo meu prédio essa semana
ou leu alguma notícia. Ele veio abaixo também. Por ironia, foi um
incêndio. Escrevi para avisar que estou bem, apesar de ainda não
entender por que você desapareceu. Espero que esteja segura.
Sinto sua falta. Quem sabe quando toda essa loucura acabar a gente
se encontre de novo. Um beijo. Mensagem recebida e não lida.
6

Sempre achei vingança coisa de filme. Pelo menos até a tarde em


que fiquei fora de mim e fui ao prédio da corretora. Apesar de estar
afastado do trabalho há dois meses, foi simples conseguir um
crachá de visitante. Fingi que ia ao andar do escritório, desci até o
estacionamento. Encontrei o Volvo de JP parado na vaga de
costume. Esperei por ali. Quando saiu do elevador, JP sorriu
surpreso ao me ver.
— Querido, ia ligar pra você — disse JP. — Bora armar um
churrasco…
Nem deixei ele terminar a frase. Acertei um murro na boca e
outros três que pegaram próximos à orelha. JP caiu zonzo. Peguei a
mochila dele do chão. Golpeei a cabeça de JP até o nariz sangrar e a
carcaça do notebook despedaçar dentro da mochila. JP desmaiou ou
fingiu para não apanhar mais.
No elevador, reparei que havia sangue na minha calça. Um ex-
colega gaiato me viu na saída do prédio. Puxou papo. Eu disse que
precisava buscar Luiza no shopping e passei batido. Desde aquela
tarde, não voltei mais para casa. Não usei mais o cartão de crédito,
nem movimentei minha conta-corrente. Antes de ir ao prédio da
corretora, separei uma boa quantia de dinheiro dentro da mala que
deixei no albergue onde dormi as primeiras noites. Depois
comecei vida nova como morador do edifício João Ramalho.
7

Desci do ônibus no ponto perto do estúdio de balé. A vista turva.


Eu tentava respirar, mas o ar não vinha, como se duas mãos
esmagassem meus pulmões. Precisava deitar. Esquecer por um
instante a imagem do prédio em cinzas. Lembro-me de Rudá
perguntar se estava tudo bem. Lembro-me de tirar a mochila das
costas e dizer que ia montar a barraca. Depois não me lembro de
mais nada.
Acordei deitado sobre o saco de dormir.
— Tudo bem, meu chapa? — disse Rudá, sentado ao lado.
Apoiei os cotovelos no chão para erguer o corpo. Sentei. O
coração batia mais tranquilo. Contei devagar como tudo aconteceu.
O dinheiro pela venda da televisão. O aluguel atrasado. O prédio
caído quando cheguei ao largo. O edifício João Ramalho era uma
montanha de cinzas.
Rudá esboçou um sorriso. Logo voltou à expressão serena
habitual. Não entendi porra nenhuma. Qual era a graça de um
prédio incendiado, gente morta, dezenas de pessoas sem lar? Ele
perguntou se eu estava com fome. Tinha um pacote de bolachas na
mochila.
— Nada de bolacha — eu disse. — Você é meu convidado para
almoçar.
8

Sentamos numa mesa externa da lanchonete do Odair. Pedi uma


cerveja, dois copos e o cardápio. Odair trouxe uma Heineken.
Esfregou a bundinha da garrafa com dois dedos para a cerveja não
congelar. Sacou a tampa.
— Você escolhe — entreguei o cardápio engordurado para
Rudá.
— É namoro? — perguntou Odair ao servir os copos com
cerveja.
Rudá não mostrava os dentes ao sorrir. Disse que o que eu
escolhesse estava bom.
— O.k. — nem abri o cardápio. — O filé à parmigiana serve
dois?
— É na medida para um casal — Odair foi o único a se divertir
com a piada. Anotou o pedido no talão que trazia no bolso e o
levou para a cozinha.
— Por dias melhores — Rudá ofereceu um brinde.
— Por dias melhores.
O primeiro gole em uma cerveja congela os problemas por
alguns segundos. Fazia dias que eu não bebia. Relaxei na cadeira.
Faltava só um baseado ali. É bem provável que Odair ficasse puto
da vida se eu acendesse. Fiquei de boa.
Rudá perguntou se eu sabia o motivo do incêndio no prédio.
Contei o rolo dos milicianos contra os acampados. Antes de
aparecer o garoto morto, dava para sentir a tensão no ar. Adriano
se achava o xerife da área. Tinha apoio dos comerciantes e de
políticos do baixo clero. Do outro lado, um monte de gente sem
casa, fodida, sem nada a perder. Era um palheiro pronto para pegar
fogo.
O filé ocupava uma travessa inteira, banhado em molho de
tomate, com muito queijo derretido por cima. Servia uma família.
A segunda travessa era dividida entre arroz e fritas.
Por dez minutos não se ouviu minha voz nem a de Rudá. Não
sei se o filé realmente estava tão bom assim ou se era porque a
gente não via carne fazia um bom tempo. Pedi para Odair um pão
extra para limpar o molho da travessa.
— Alguma notícia da filha do Hélio? — perguntei.
Odair fingiu que não ouviu a pergunta. Repeti.
— Você gostava da garota? — Odair desviou o olhar.
— Gostava?
— Saiu uma lista no jornal. Daniela estava com o Hélio no
prédio. — Odair prosseguiu. Disse que talvez não fosse a minha
amiga da foto, só parecida com ela. A vista dele estava velha.
Passou o endereço de Camila, amiga de infância de Daniela. Disse
que Camila teria uma foto de Daniela para acabar com a minha
dúvida.
9

Saí da lanchonete e fui direto ao endereço que Odair anotou no


papel. O filé e as fritas saltavam na barriga. Rudá me acompanhou
sem entender bem do que se tratava.
— É sua namorada?
— É uma garota que encontro toda semana. Quer dizer,
encontrava. Quando os prédios começaram a cair, Georgia sumiu
do mapa.
— Georgia? Entendi o Odair dizer outro nome.
— É uma história complicada. A gente se conhecia por nomes
falsos. Terças e quintas, sexo, maconha e só.
— Talvez ela não queira ser encontrada — Rudá disse.
— Ou talvez esteja trabalhando pra socorrer pessoas. Ou talvez
esteja embaixo de um prédio. É tanto talvez que isso tem me
fodido a cabeça. Como se vive com a incerteza, meu amigo?
Rudá entrou num papo filosófico de que acreditava no agora, no
sol, na terra, nas plantas. Sem cabeça para esse tipo de conversa,
liguei a audição seletiva. Concordei com tudo até chegarmos ao
endereço indicado por Odair. Era um salão de beleza com fachada
rosa. Encontramos a porta de ferro trancada sem nenhum sinal de
gente por perto. Bati na porta. Não houve reação no lado de
dentro. Rudá me convenceu a procurar Camila mais tarde. Talvez
fosse horário de almoço. Melhor voltar ao palácio e descansar um
pouco.
Palácio, esse era o nome que Rudá deu à praça onde
acampávamos. Disse que, se reparasse bem, eu veria que o formato
das árvores compunha uma pequena fortificação em U que nos
protegia do vento e do movimento das ruas. Nesse palácio, não
éramos reis, apenas súditos como os pássaros, gambás, formigas,
abelhas. Eu via apenas um grande canteiro com mato à beira de
uma rua asfaltada.
10

Montei a barraca. Deitei no saco de dormir e fechei boa parte do


zíper para me esconder do ar frio da rua. A malha de balé ainda
levava o cheio do suor de Georgia. Achei estranho pensar que
talvez aquele cheiro fosse de uma mulher morta. Abracei a malha
como se abraçasse Georgia. Fechei os olhos para relaxar. Uma série
de flashes se sobrepunham. O edifício João Ramalho caído.
Georgia esmagada entre os escombros. O corpo de Cléber Figueira
Lopes despencando do prédio. O borrão escuro do espírito ao pé
da minha cama. O rosto ensanguentado de JP no chão do
estacionamento. Por mais que meu corpo pedisse descanso, a
cabeça não conseguia dormir. Então ouvi palmas do lado de fora da
barraca. Clap. Clap. Clap. Repetiu a batida. Abri a portinha de lona
e saí. Do lado de fora, Luiza com o aparelho dentário cromado à
mostra e toda a arrogância dos seus catorze anos de idade.
— Sabia que era você aquele dia — Luiza espiou para dentro da
barraca. — Por que fugiu de mim?
Não respondi, e mesmo que fosse dizer algo, não daria tempo.
Luiza me abraçou. Ela estava bem magra e crescida.
— Por que você foi embora? — Luiza escondeu o rosto no meu
ombro.
— A sua mãe não imagina?
— Procuramos você até em cemitério — Luiza desfez o abraço.
— Vocês vão sair da cidade? — minha mão tremia quando
toquei o ombro de Luiza. — As coisas estão perigosas por aqui.
— Volta pra casa. Até sexta mudamos para a casa da vovó. Vem
com a gente.
— Ainda tem roupas minhas no apartamento?
— Nada mudou desde que você sumiu.
— Traz roupas limpas pra mim?
Desde a última vez que vi Georgia, eu não recebia o abraço de
alguém. Era uma constatação ridícula, mas naquele momento o
abraço de Luiza me fez finalmente relaxar um pouco.
— Você não sente minha falta?
— O que você acha? — beijei a testa de Luiza.
— Por que você não volta pra casa? — Luiza espiou mais uma
vez a barraca.
— É complicado, querida. Traz as roupas, depois a gente
conversa.
Luiza insistiu em entender por que eu tinha ido embora. Para
acabar com o assunto, menti que sentia fome. Precisava muito de
algo para comer. Disse que não comentasse com Andressa sobre o
nosso encontro ou eu sumiria de novo. Enquanto Luiza se
distanciava em direção ao apartamento, eu calculava se desmontava
o acampamento e dava no pé ou esperava ela voltar.
11

É estranho acompanhar uma menina crescer. Pelo menos foi


estranho para mim, um garoto sem mãe criado por um mestre de
obras. Luiza era uma criança fofa, sempre acima do peso. Foi para a
escolinha com menos de um ano de idade. Andressa queria voltar
ao trabalho. Até completar dez anos, ela não desgrudava da mãe.
Depois, a relação entre as duas desandou. Andressa queria que
Luiza fosse responsável. Queria que Luiza fizesse tudo o que ela
não fez na infância pobre. Inglês, francês, ginástica olímpica,
natação, curso de programação e o que mais aparecesse em revistas
da moda ou em rodas de conversas entre pais. Luiza só queria ser
uma criança comum. Andar de bicicleta. Jogar bola. Fofocar com os
amigos no telefone. No meio dessa guerra, eu escutava as
reclamações de ambos os lados, além de trabalhar como um cavalo.
12

Eu tentava ser um bom pai até desabar por dentro. Sim, é isso que
o modo de trabalho em cidades como São Paulo faz com você.
Começa aos poucos. Você assina um contrato no qual troca seu
trabalho por um salário, um plano de saúde e um cartão de vale-
refeição que garante o almoço modesto em algum restaurante por
quilo próximo ao escritório. Depois de entregarem o kit de
sobrevivência, encilham você e o levam para uma pista de corrida.
Os demais competidores são os colegas de trabalho. Você convive
cinquenta horas por semana com essas pessoas, o triplo do tempo
que passa com a sua família. Entre colegas, porém, não há amor.
Vocês estão em uma corrida, lembra? Entre colegas só há
desconfiança, inveja e sexo casual. Mesmo nos happy hours e
festas de final de ano, é possível sentir em cada drinque o gosto
tóxico de intrigas. Quem terá o melhor resultado? Quem vai
ganhar o bônus, os prêmios, a promoção? Quem terá as férias mais
caras? Quem bebe o melhor vinho?
Então, quando você percebe, sua vida se resume a torrar
quantidades obscenas de dinheiro e trabalhar. E o trabalho se
resume a uma poça de bosta em que você deseja a morte de todos
ao redor. Pequenos incômodos geram enorme irritação. As luzes
fluorescentes. As bancadas apertadas. O gosto do café. A sensação
de que você nunca entrega o suficiente. Não é bom o suficiente.
Não tem ideias o suficiente. Tudo isso o empurra para baixo a
ponto de você se achar burro, incapaz e paralisado. O trabalho, ou
melhor, a forma como o capitalismo se apossou do trabalho, torna
a sua alma cinza como a cidade, como se você fosse um prédio
velho, cheio de baratas, prestes a ruir.
Eu não acreditava em psicólogos nem em medicamentos que
prometiam felicidade e paz. Depois que me mudei para São Paulo,
toda hora eu escutava alguém falar sobre estresse. A necessidade
de bancar a própria comida desde cedo fez de mim um sujeito
prático. Aquele papo de não aguento a pressão do chefe sempre me
pareceu choradeira de gente criada em apartamento. Eu não tinha
tempo para aquela ladainha, precisava trabalhar. Apesar da amizade
com JP, sabia que haviam me contratado porque eu trabalhava
muito e sem reclamar. Sabia também que, se não rendesse o que o
pai do JP esperava, minha vaga seria ocupada por algum garoto de
sorriso branco que frequentava a piscina do Clube Pinheiros. A
meritocracia paulistana é torta e implacável. Nessa falsa corrida
entre funcionários, os únicos vencedores são os donos das
empresas e os acionistas.
Eu encarava bem o lance de trabalhar até quinze horas por dia.
Pelo menos achava que encarava. Então numa manhã Andressa
pediu para Luiza desligar o tablet e se arrumar para a aula de
francês. Eu conferia as cotações do S&P 500. A gritaria entre as
duas invadia minha cabeça com choques que bloqueavam qualquer
atenção à tela do notebook. A raiva me partiu num rasco.
Arremessei o tablet pela janela do apartamento. Um silêncio
péssimo se estabeleceu. À noite, Andressa disse que era melhor eu
procurar ajuda. Não tolerava nenhum tipo de violência em casa.
Bastava o que viveu com o pai.
Andressa marcou a consulta na psiquiatra. Fui a contragosto. O
consultório ficava num sobrado em Pinheiros. A psiquiatra passava
dos cinquenta anos, vestia roupas largas, bem elegantes. Ofereceu
chá. Agradeci. Durante a sessão, pediu para eu contar por que
estava lá. Contei que Andressa se assustou com um pico de raiva.
Não era nada de mais. Então a psiquiatra entregou para mim uma
lista de sintomas. Lemos juntos. A ideia era eu reconhecer em qual
estágio estava.
1. Compulsão em demonstrar o próprio valor;
2. Incapacidade de se desligar do trabalho;
3. Negação das próprias necessidades, como dormir e praticar
esportes;
4. Fuga de conflitos;
5. Inversão de valores. A família, os momentos de descanso, não
têm importância. O foco único é nos resultados de trabalho;
6. Tornar-se intolerante. Considera os colegas de trabalho
incompetentes. Aumento da agressividade e sarcasmo;
7. Distanciamento da vida social. O trabalho é feito de maneira
automática. A necessidade de relaxar pode levar ao uso de drogas
ou álcool;
8. Mudanças de comportamento. Você troca a alegria pelo
medo e pelo desânimo;
9. Despersonalização. Você não percebe o próprio valor e não
sente empatia com as pessoas ao redor;
10. Vazio interno. O desconforto é preenchido por drogas,
álcool, comida, sexo ou outras compulsões;
11. Depressão. Você sente medo do futuro. A vida não tem
sentido. Sente que está perdido e exausto;
12. Burnout, também conhecido como estafa ou esgotamento.
Há um colapso mental e físico, assim como pensamentos suicidas.
Nem preciso comentar em qual estágio eu estava. Saí do
consultório com a receita de remédios e um atestado que pedia o
meu afastamento temporário do escritório. Ela disse que era
fundamental eu me afastar do ambiente que causava estresse,
tomar os remédios e seguir com a terapia. Meu plano era esconder
o atestado. Andressa correu na frente. Após a consulta, ligou para a
psiquiatra, que comentou sobre o afastamento.
13

Luiza levou uma sacola de roupas limpas e outra com bananas,


maçãs e três pacotes de miojo. Nunca entendi a fascinação dos
adolescentes pelos miojos. Ofereci uma maçã para Rudá, que lia
embaixo da sombra das árvores.
— A guria é a sua cara — Rudá fez um sinal com a mão para
agradecer a maçã.
— A última vez que falaram isso, ela chorou por três dias.
— Eu tinha oito anos de idade e você usava barba — Luiza se
interessou pelo livro de Rudá, O lobo da estepe. Ficaram de papo.
Entrei na barraca para guardar as sacolas. As roupas encheram a
barraca com cheiro de amaciante. Peguei uma camiseta limpa. Meu
sovaco fedia tanto que fiquei com dó de trocar de camiseta.
Perguntei a Luiza se Andressa estava em casa.
— Foi encontrar um cliente em Campinas.
— Será que dá tempo de eu tomar banho?
Luiza disse que Andressa só voltava no final do dia.
Combinaram de empacotar o que levariam para a casa de Santana à
noite.
Pedi para Rudá espiar a barraca e fui com Luiza. Era bom estar
apresentável para falar com a tal Camila. Quem daria informações a
um mendigo? No caminho para o apartamento, percebi como era
ruim a ideia de subir até meu antigo lar.
14

As casas sabem tudo sobre as pessoas. Foi só eu entrar pela porta


da sala que o apartamento me reconheceu. Nem deu bom-dia.
Despejou uma série de objetos e fotos para cobrar uma pesada
fatura do passado. A porta do quarto de Andressa estava aberta. Os
lençóis desarrumados, como de costume. Senti a fragrância de
baunilha do perfume de Andressa no ar. Preferi não entrar.
— Posso usar o seu banheiro? — eu disse.
Luiza pediu um minuto para tirar as calcinhas do boxe. Esperei
no quarto. As paredes estavam pintadas de cinza. Antes eram
verdes. Pintamos juntos num final de semana. Luiza se divertiu,
mas o resultado ficou uma tragédia. Respingou tinta verde pelo
apartamento inteiro. Depois Andressa chamou um pintor para
emparelhar os rodapés e tirar as manchas do teto de gesso.
Tranquei a porta do banheiro. Deixei a água quente do chuveiro
cair sobre mim. Relaxei os ombros e o músculo do pescoço.
Melhor só com uma punheta. Era impossível me masturbar no
banheiro de Luiza. Fiquei uns dez minutos de boca aberta sentindo
os pingos. Depois lavei os tocos de cabelo com o xampu de
Georgia. Aproveitei a espuma para ensaboar o saco, os sovacos.
Esfreguei um calcanhar contra o outro. Soltou uma casca grossa de
poeira. Eu ficaria uma semana embaixo daquele chuveiro. Saí do
banheiro com os dentes escovados e a roupa limpa.
— Vestido assim, vão expulsar você da Associação dos
Moradores de Rua de Perdizes — Luiza disse.
— Empresta a sua cama por dez minutos? — joguei o corpo no
colchão.
— Quero mostrar uma coisa pra você depois — Luiza baixou a
persiana. — Fecho a porta?
— O que você quer mostrar?
— Dorme aí. Mostro depois.
Pluguei o carregador do celular na tomada e configurei o
despertador para tocar em trinta minutos. Apesar do cansaço, não
preguei o olho. A possibilidade de Andressa chegar me deixava
ligado. O travesseiro de Luiza fedia a maconha. Reparei também na
caixa com tarja preta de Escitalopram na mesa de cabeceira. Quem
era eu para pedir satisfações àquela altura do campeonato? Roubei
uns comprimidos. Fui à sala.
Deitada no sofá, Luiza trocava mensagens no telefone. Sentou
quando percebeu a minha presença. Perguntou se o sono havia
passado. Para não explicar que o encontro com ela e a volta ao
apartamento me deixaram ansioso, menti que tinha um
compromisso. Perguntei o que ela queria me mostrar. Luiza trouxe
do escritório um violão com cordas de náilon.
— Convenceu sua mãe a comprar?
— Muita coisa mudou entre nós duas depois que você sumiu.
— Fez aulas?
Luiza disse que aprendera os acordes pela internet. Tocava
algumas músicas com ajuda de cifras e tinha feito uma pra mim.
Sentei na ponta do sofá para escutar. O violão era grande para o
corpo de Luiza. Escorregava da perna de apoio enquanto ela
estudava a formação dos acordes. Depois de alguns pequenos
ensaios desarranjados, anunciou que estava pronta. Luiza trocava
os acordes fora do tempo. Cantava bem desafinada. Talvez
atrapalhada por eu estar ali. Ou porque não levava o menor jeito
pra música mesmo. A letra da canção falava de alguém que havia
partido. Não me lembro bem. As frases se embaralhavam com a
imagem de Luiza compenetrada em acertar a posição dos dedos no
braço do violão. Às vezes, Luiza espiava a minha reação. Era uma
cena bonita. Não havia um novo Mozart ali. Havia a menina que
peguei no colo, agora crescida, seguindo em frente apesar de tudo
que é incerto. A música não chegou ao fim. Luiza escondeu que
chorava. Eu também.
15

Voltei ao salão de beleza da Camila. Ainda fechado. A papelaria em


frente estava aberta. Uma senhora com o cabelo branco muito
comprido e uma saia jeans que cobria os joelhos organizava caixas
de presentes na prateleira. Perguntei se ela conhecia Camila, do
salão. A senhora fungava o ar pelo nariz entre as frases. Disse que
conhecia, sim. Uma piranha. O melhor era eu me afastar. Os
prédios estavam caindo porque existiam pessoas como Camila no
mundo.
— Faz sentido o que você diz. Vim cobrar uma dívida que ela
deixou em aberto no mercado do meu pai — quase acreditei na
mentira. — Pela graça de Deus, meu velho está doente. A senhora
sabe onde eu encontro ela?
A senhora apontou para uma casa de portão azul perto do salão.
Agradeci. Ela disse que oraria pela saúde de meu pai. Saí da
papelaria imaginando, caso Deus existisse, para onde enviaria a
prece pela saúde de alguém falecido. Talvez houvesse no céu uma
seção de orações extraviadas em que as orações recebessem
carimbos do tipo “o destinatário não mora mais no endereço”. Ou
talvez orações relacionadas a tipos como eu, que vão para o
inferno, caíssem na caixa de spam.
16

Toquei a campainha da casa do portão azul. Dentro do pátio, um


pastor-alemão latia sem parar. Estiquei a mão para ele sentir meu
cheiro. Fizemos amizade. Os latidos pararam até um homem
careca vestindo um shorts da Adidas esgarçado aparecer na porta
da casa.
— Boa tarde. Camila está? — falei alto para encobrir os latidos
do cachorro.
— Quem é você?
— Eu preciso falar com a Camila. Disseram que ela mora aqui.
O homem disse para eu esperar um segundo. Entrou na casa
chamando Camila aos gritos. Uns minutos depois apareceu uma
garota de braços magros e cintura larga. Usava um corte de cabelo
estiloso, na altura do ombro, onde trazia a tatuagem de uma
estrela. Chegou perto do portão para perguntar o que eu queria. O
pastor amansou. Balançava o rabo, chamava Camila para brincar.
— Sou um amigo de Daniela — eu disse. — Na verdade, acho
que sou. Talvez você possa me ajudar.
A tal Camila não parecia muito simpática. Pediu para que eu
explicasse que besteira era aquela. Contei a versão mais verdadeira
que pude. Disse que conheci uma garota num app. Saímos uma
série de vezes. Então quando os prédios começaram a cair, ela
sumiu. As únicas pistas que eu tinha eram a malha de balé e a foto
torta no celular. Numa conversa, o Odair comentou que a mulher
da foto parecia Daniela, filha do Hélio. Depois deu o endereço do
salão.
Camila pediu para ver a foto. Passei meu telefone pela grade do
portão.
— Não é a Daniela.
— Você tem certeza?
— Você já pensou que essa garota não está a fim de você? —
Camila me devolveu o telefone.
— Tem alguma foto da Daniela aí? — perguntei.
— Minha amiga era bem-casada. Tinha filho. Não é a Daniela.
Camila se deu conta de que eu não arredaria pé sem ver uma
foto de Daniela. Tirou o celular do bolso. Revirou o álbum de fotos
e mostrou uma imagem em que as duas apareciam de branco em
uma noite de Réveillon. Daniela não era Georgia.
— A cidade parou, as pessoas estão perdendo suas casas —
Camila limpou bem o celular na camiseta para guardar no bolso. —
Não acha ridículo ficar por aí atrás de uma mina que cagou para
você?
17

Apesar da raiva que me subiu durante a conversa, Camila tinha


uma ponta de razão. Para quem olhasse de fora, era bem ridícula a
minha situação. Eu sabia que Georgia era uma fantasia. O anjo em
meio ao fogo. Eu não tinha a menor ideia do que fazer com a
minha vida.
Entrei numa pira de ir ao prédio da financeira. Li no jornal que
as torres da Vila Olímpia foram evacuadas. Seria fácil subir. Eu
poderia morar lá. Montaria minha barraca no heliponto e esperaria
o prédio vir abaixo. Para uma vida sem sentido, me pareceu uma
ideia poética. Eu dentro da minha barraquinha fedida no topo do
monstrengo enquanto a estrutura do prédio tremia. Lá fora o sol se
punha na direção do Morumbi e transformava a água podre do rio
Pinheiros num espelho que refletia a poeira da torre desmoronada
engolir minha vida.
18

Quando a psiquiatra recomendou meu afastamento, não fui ao


escritório entregar o atestado. Avisei a garota do RH por e-mail.
Chamei um motoboy, que entregou o documento. JP me ligou na
mesma manhã. Minha vontade era não atender. Nem tive tempo
de explicar por que não apareci. JP sabia do diagnóstico. Disse para
eu ficar tranquilo, aproveitar o tempo com a família, pôr a cabeça
no lugar. Qualquer ajuda que precisasse, podia contar com ele.
Inclusive a casa de praia estava à disposição. Agradeci.
Nos primeiros dias de afastamento, levei uma coberta para o
sofá e fiz dali um ninho. Não trocava o pijama. Levantava só para
cozinhar. Durante o almoço, Luiza me observava com pena e
puxava assunto. Queria entender por quanto tempo eu ficaria em
casa, como fiquei doente e tudo o mais. Eu não sabia as respostas.
Mudava de assunto. Perguntava sobre as amigas e os garotos. Luiza
se fazia de desentendida. Mudava de assunto também e quem
reinava era o barulho dos talheres na louça.
A presença de Luiza me incomodava. Afastado por invalidez do
trabalho. Dopado de remédios. Jogado no sofá sem a menor ideia
do que faria. Eu queria desaparecer, e não que uma adolescente se
juntasse a mim no meio da tarde para assistir à comédia antiga na
televisão. À noite, a presença de Andressa me incomodava ainda
mais. Aquela mulher cheia de saúde e sensatez esfregava a pele
contra a minha e meu pau não reagia por conta dos remédios.
Eu saía pouco de casa. Ia ao mercado ou à padaria. Encontrava
idosos e desocupados com roupa de academia pelo caminho. O
contato com qualquer pessoa me constrangia. Começou a rolar
uma paranoia contra todos. Eu me sentia julgado. Inútil.
Como se não tivesse problemas suficientes, cismei com
Andressa. Revirava a mala quando ela voltava de viagem. Cheirava
as roupas à procura de algum perfume masculino. Espiava dentro
da bolsa, as anotações no bloco de notas. Levei três dias até
decorar o desenho que desbloqueava o telefone. Numa noite,
quando Andressa entrou no banho, desbloqueei. Preferia nunca ter
visto aquelas mensagens. Levantei da cama. Peguei o carro na
garagem e rodei pela cidade por horas. Então decidi tomar a
estrada até o litoral. Acordei na areia do Guarujá. O sol forte me
atordoava.
19

Rudá apareceu na porta da barraca. Perguntou o que havia de


errado comigo. Desde que voltara à tarde, não dei uma palavra. O
vento da rua bateu no meu rosto. Eu não queria falar da minha
tarde no apartamento, nem da conversa com a tal Camila. Senti
vergonha por ser quem eu era e por sentir o que sentia. A cidade
estava morta e eu em busca de um amor que nunca existiu. Não
respondi a Rudá.
— Tenho algo pra você — disse Rudá e foi até a outra barraca.
Voltou alguns minutos depois com a caneca de alumínio cheia de
um líquido escuro.
— Deixe a Jurema te ajudar.
20

Formigas saíam da minha boca. Eu me sentia exausto. Nascia e


morria ao mesmo tempo. Quase vivo. Quase morto. Quase chão.
Meu corpo leve, de menino. Os cabelos finos balançavam ao vento.
O vento eram os dedos de minha mãe. O vento era o Opala de meu
pai em disparada na estrada. O vento era a cadeira giratória no
escritório. Meu corpo de menino se contorcia no ar. Eu voava
sobre os prédios. A cidade imensa se espalhava em todas as
direções. As luzes acesas me distraíam. As luzes eram os olhos de
Georgia. Os olhos de Laíde. Os olhos de Andressa que se
replicavam no rosto de Luiza. Quem morava naqueles olhos?
Quem vivia naqueles tantos apartamentos? Quantas vidas se
consumiram enclausuradas entre paredes rachadas de prédios que
resistiam à doença do mundo? Eu sentia o coração acelerado e a
resposta de tudo correr nas veias. Sentia a resposta percorrer meu
corpo, mas não via a solução. Eu via apenas o espectro negro ao pé
da minha cama. Ele era o medo. A mentira. A danação. A falta de
amor. A terra a tremer e eu voava com pressa. Queria uma cena,
um desfecho, uma certeza, uma conclusão, mas nada bastava. Nada
explicava. Só chegavam imagens soltas e abandono. Frio na barriga
e abandono. Gosto de cobre e abandono. E uma vontade imensa de
chorar. Formigas se derramavam dos meus olhos. Quis morrer.
Quis viver. Quis uma vida toda sem medo, sem pecado ou sem
perdão. Uma vida na qual eu pudesse me abraçar menino e velho
num encontro final.
21

O chá de Rudá não fez bem para o meu intestino. Acordei todo
cagado. O edredom que forrava o chão da barraca também. Um
cheiro horrível. Limpei as pernas e a bunda com o edredom.
Embrulhei tudo e coloquei do lado de fora da barraca. Precisava de
um banho. Vesti um short limpo e saí. Não adiantou muita coisa. O
fedor me acompanhava. Mandei uma mensagem de texto para
Luiza. Perguntei se eu podia subir para tomar banho e colocar
umas roupas na máquina de lavar. A resposta veio em poucos
minutos. Luiza disse que estavam de saída para a casa da avó.
Deixou a chave escondida no quadro da mangueira de emergência
e avisou ao porteiro. Quando cruzassem a marginal Tietê na
direção de Santana, mandaria outra mensagem. Levou o tempo de
eu desmontar o acampamento para a mensagem chegar.
O porteiro me reconheceu. Apertou o botão para destravar o
portão de ferro ao lado da guarita. Pediu para eu subir pelo
elevador de serviço por conta da mochila. No fundo eu sabia que
ele queria evitar reclamações dos outros moradores. Ninguém
quer um mendigo fedido na área social do prédio. Há alguns
meses, inclusive, talvez eu mesmo fosse o morador a reclamar se
visse a cena. Fiz a volta para entrar pela garagem. Enquanto
esperava o elevador, senti o intestino corcovear. Eu estava leve e
fraco. Parecia não haver nada dentro de mim, mas o intestino dizia
o contrário.
Encontrei a chave solitária no lugar combinado. O apartamento
estava meio vazio. A televisão, o equipamento de som alemão, as
plantas da sacada. Andressa e Luiza levaram o que cabia no carro e
tinha algum valor. A geladeira, o fogão e a máquina lava e seca
ficaram para trás, para minha sorte. Pagamos uma fortuna por ela.
Quando Andressa mostrou o anúncio no encarte de jornal, não vi
sentido em um aparelho que custava três salários mínimos a mais
do que uma máquina comum só por ter a função secagem.
Especialmente porque o nosso apartamento era servido por uma
arejada área para estender roupas. Coloquei o edredom e as roupas
do corpo dentro da máquina. O ciclo completo que entregava a
roupa seca durava uma hora e meia. Pelado em frente à escotilha
frontal da lavadora, assisti aos tecidos se misturarem com água e
bolhas de sabão. Era um hipnótico balé circular. Naquela
conjuntura, impossível ignorar que eu comeria durante um ano
com o valor daquela máquina lava e seca quinze quilos inox da
Samsung.
Levei essa ideia até o banheiro. No armário embaixo da pia, uma
toalha deixada por Luiza. A água morna da ducha empurrou para o
ralo a sujeira marrom que me encardia a pele. Ensaboei e enxuguei
o corpo duas vezes. Depois do banho, enrolei a toalha na cintura e
voltei à cozinha. Comi duas bananas abandonadas na geladeira.
Faltava ainda uma hora para a lava e seca finalizar o seu
supervalorizado trabalho. Passei uma xícara de café. Deitei no sofá
e escorei a cabeça em uma almofada. Assistia no teto da sala a
flashes do sonho que o chá me provocou. Vinha da área de serviço
o contínuo ranger das polias da lavadora. E se o teto desabasse
naquele instante? Talvez não fosse má ideia. Talvez fosse sorte ou o
caminho natural das coisas. Olhei a tela do celular. Uma mensagem
nova de Luiza.
“Estamos voltando! Esquecemos uma mala de roupas.”
Corri até a área de serviço. A lavadora estava embalada na
centrifugação. Eu revirava o painel digital à procura de um botão
que parasse tudo quando ouvi a chave destrancar a fechadura da
porta principal. Andressa entrou no apartamento sozinha e não
pareceu nada surpresa ao me encontrar seminu na área de serviço.
Ficou parada perto da porta. Não me movi. O que Luiza contou
para Andressa no caminho de volta? Ou há dias Andressa sabia que
eu rondava o bairro?
— O que você quer por aqui? — Andressa seguiu imóvel em
frente à porta.
— Eu estava de saída.
— Como assim “de saída”? Por onde você andou? Quer
enlouquecer a gente também?
Desviei os olhos para a máquina de lavar, que, indiferente ao
mundo, iniciava o ciclo de secagem.
— Eu te procurei até em necrotério. Sabia? — Andressa
continuou. — Sabia que Luiza entrou em depressão? Sabia que ela
tentou se matar?
A imagem de Andressa vestida com uma legging e uma
camiseta velha era familiar e estranha. Duas pontas da minha vida
que se chocavam em curto-circuito.
— Você some por meses. Depois aparece pelado na área de
serviço e não vai dizer nada?
— Eu não queria te ver.
— Não queria? Por que eu sempre fui trouxa e fiquei do seu
lado mesmo quando você estava fodido de licença?
— Eu descobri, Andressa.
— Percebi. E precisava espancar o seu único amigo? O cara que
sempre te ajudou? Há anos eu e você vivíamos um relacionamento
aberto. Não era isso? Nem minha gravidez você respeitou. Eu
queria transar também. Acha que o JP foi o único?
Mantive os olhos na direção da lavadora. As roupas giravam tão
rápido que formavam um vulto branco dentro do tambor de metal.
— Eu fiz o teste — o som da lavadora zumbia nos meus
ouvidos. — Sei que a Luiza não é minha filha. Ela não é minha
filha, porra!
Não ouvi se Andressa disse algo. Eu só escutava o zumbido da
máquina.
— Vocês duas eram o pouco de certo e bonito que eu tinha.
Entende?
Depois de uns segundos calada, Andressa disse que sentia a
minha falta. E a despeito do que ela fez, eu sempre seria o pai de
Luiza. Ouvi os passos de Andressa irem até o quarto e voltarem
acompanhados das rodinhas de uma mala.
— Pode usar o apartamento o quanto precisar — Andressa
disse. — Deixei algum dinheiro no balcão da sala. Se quiser
conversar com calma ou ver a Luiza, sabe onde nos encontrar.
Parte 5
1

Não sei quanto tempo se passou desde que encontrei Andressa.


Talvez meio ano. Talvez umas semanas. Só sei que foi o tempo
necessário para a cidade se tornar um túmulo de prédios. Nenhum
dos grandes edifícios resistiu. O Copan, o Edifício Itália, o
Martinelli, todos abaixo. Na avenida Paulista, restaram dois ou três
de pé, pelo que escutei. Parece que o velho edifício da Gazeta foi
um deles. No Itaim, Vila Olímpia e Morumbi, as torres
empresariais vieram todas abaixo e a caliça obstruiu a marginal
Pinheiros, a avenida Faria Lima e a Berrini. Alguns prédios
menores, com cinco ou seis andares, também caíram. O receio de
desabamento que no começo havia sobre os prédios mais altos se
expandiu para os pequenos. O pouco trânsito que restou desviava
pelas ruas internas ainda não obstruídas por escombros. Nessas
ruas, grupos de desabrigados que se juntaram às milícias cobravam
pedágio dos bacanas que tentavam passar. A verdade é que
ninguém com dinheiro ou juízo ficou na cidade. Por aqui ficou só a
miséria. Gente que revirava blocos de concreto à procura de
objetos de valor. Em geral, trocavam o que achavam por comida
nas feiras de rua e em frente aos supermercados que restaram
abertos. Os bombeiros abandonaram as buscas. Não havia como
dar conta de tanto desabamento. Os hospitais mais altos caíram
também. A contagem de vítimas parou. Por questão de segurança,
desligaram a energia elétrica dos bairros mais afetados. À noite, a
lua era a principal fonte de luz. Os olhos se acostumaram com a
escuridão. Quando um carro da polícia passava, os faróis e a sirene
incomodavam a vista. A polícia era a única presença do Estado nas
ruas.
2

Depois de me encontrar com Andressa, não fez mais sentido o


medo de me rastrearem através das movimentações bancárias.
Voltei a usar o cartão. Percebi que ela resgatou algumas aplicações.
Tudo bem, não era um problema. O dinheiro que ganhei no
mercado financeiro garantia minha alimentação por alguns anos.
Difícil era encontrar comida. Ou pior, não ser atacado. Ao redor
dos mercados, o número de pessoas pedindo comida assustava.
Seguranças armados com fuzis defendiam os comércios. Numa
manhã, ao sair da feira de Santa Cecília, dei uma penca de bananas
e um saco de feijão para uma menina de uns nove anos. Em
segundos, eu estava cercado. Distribuí toda a comida que levava na
mochila. E ameacei dar um soco em um homem que grudou na
sacolinha da barraca.
Também na feira de Santa Cecília escutei duas mulheres
comentarem que havia novas cidades em construção. Eram
horizontais, cercadas por muros, como condomínios de luxo
enormes e autossuficientes. Havia hortas, criação de animais,
escolas, shoppings. Essas cidades ficavam em zonas secretas. O
acesso era feito por helicópteros ou pequenos aviões. Não foi difícil
imaginar meus ex-colegas de trabalho disputando um lote desses.
É bem provável que, se a minha vida não tivesse desmoronado, eu
e Andressa compraríamos um lugar desses também.
Ainda não havia consenso sobre a causa da queda dos prédios.
As teses se enredavam entre teorias científicas, notícias falsas e
interesses políticos variados. O presidente da República, por
exemplo, queria o adiamento das eleições por tempo
indeterminado. Militares, evangélicos e uma veterana atriz de
novela o apoiavam. Enquanto isso, o prefeito de São Paulo, pré-
candidato à presidência, queria o pleito a qualquer custo, mesmo
que com voto impresso.
3

Rudá me falou uma coisa que fez todo sentido. Não importava
quantas narrativas surgissem para justificar a queda dos prédios.
Não importava se as pessoas acreditavam na teoria X ou Y e, por
essas crenças, se negassem a deixar os apartamentos. A natureza
não pondera narrativas. A natureza é a narrativa de tudo e a morte,
o ponto-final.
4

Assim como boa parte dos comércios do bairro, o estúdio de balé


fechou. A malha de Georgia não tinha mais o perfume da antiga
dona. De tanto rolar no fundo da mochila, cheirava a poeira da
cidade. Com meu telefone sem bateria e a falta de lugares para
carregá-la, encontrar Georgia se tornou uma possibilidade tão
remota quanto eu me sentir em paz.
5

Não encontrei mais maconha para vender. Também desencanei de


tomar qualquer medicamento com regularidade. Era raro achar
uma farmácia aberta. As poucas ainda não abandonadas estavam
cercadas por seguranças armados, assim como os supermercados.
Sem os remédios, fiquei bem mais fodido do que costumava ser.
Os efeitos da abstinência eram intermitentes. Quando percebia
que estava prestes a entrar em parafuso, deitava com as costas no
chão e puxava o ar pelas narinas até sentir o tórax cheio. Depois,
soltava o ar pela boca. Numa dessas ondas de respirar, reparei
numa amoreira próxima à barraca. E me dei conta de que uma
árvore é um condomínio perfeito. As folhas protegem os animais
que vivem na árvore da chuva e do vento. Os frutos alimentam os
condôminos e os visitantes que voam de passagem. As árvores
conversam através das raízes. Por baixo da terra, uma informa para
a outra sobre fungos, ameaças, umidade do solo. Assim elas criam
uma enorme rede de informação para se manterem vivas. Deitado
embaixo da amoreira, me senti um idiota. Levei mais de quarenta
anos para perceber que uma planta é inteligente à beça, um
sistema perfeito de aproveitamento de recursos. Diferente da
gente, as plantas não desenterram petróleo decomposto por
milhões de anos para gerar energia. Elas seguem as regras do jogo.
Absorvem a luz solar, sintetizam nitrogênio na terra e participam
de um grande ciclo. O homem, não. O homem tenta sempre um
atalho mais produtivo, uma forma de domesticar tudo e todos a seu
serviço. E se acha esperto por isso. Acontece que o esperto nem
sempre é inteligente ou sábio. Sabedoria é um fitoplâncton,
composto de uma célula no fundo de um oceano instável, aprender
a sintetizar energia a partir dos raios solares. Depois, através de
carga genética, esse pontinho microscópico ensinar o mesmo
processo a outros tantos fitoplânctons, de forma que esses seres se
multiplicam tanto que o oxigênio produzido por eles muda a
atmosfera do planeta inteiro. E aqui estamos nós, respirando o
oxigênio que os fitoplânctons produzem misturado com a fumaça
tóxica que nós produzimos.
6

Aprendi esse lance dos fitoplânctons estudando para o vestibular.


Nunca mais esqueci. É engraçado como a memória da gente
funciona. Não lembro em que ano estou, mas me lembro da página
76 do livro de biologia que explicava a formação da atmosfera.
Deve ser pela vontade enorme que eu tinha de cursar uma
faculdade e sair daquele emprego merda na padaria. Atualmente,
não sei se algumas lembranças são mentira ou verdade. Não sei o
que vivi ou inventei. Ou se inventei a lembrança a partir de algo
que vivi ou de um sonho. Talvez não haja diferença.
7

Das lembranças que me aparecem com frequência, a melhor é a de


uma tarde com a Georgia. Faz calor pra cacete. Eu saio do banho
meio molhado e sento em frente ao ventilador. Na televisão, passa
uma reprise de Karatê Kid. Georgia toca a campainha no momento
em que o sr. Miyagi põe Daniel San para polir os carros antigos.
Georgia me beija ainda na porta. O suor sobre o lábio de Georgia
se mistura com as salivas. A gente transa em pé, escorados no
cantinho de parede ao lado da geladeira. Terminamos no sofá
acompanhados pelo som de pancadaria dos Cobra Kai espancando
Daniel San na festa da praia. Georgia pede para tomar uma ducha.
Fecho um baseado que mais parece a tocha olímpica. Acendo
quando ela volta do banho, sem toalha, sem roupa, com o cabelo
molhado. A gente fuma e termina de assistir Daniel LaRusso
triunfar sobre o loirinho da academia Cobra Kai usando o chute do
marreco manco. Quando o filme acaba, a gente coloca um disco do
Gil para tocar. E brisamos pelados no sofá sem nada para fazer a
não ser um passar a mão pelo corpo do outro até a noite chegar.
8

Outra lembrança. É uma viagem de carro para a cachoeira de


Matilde, no Espírito Santo. Luiza tem cerca de sete anos e, durante
as dez horas de viagem, faz as mais diversas perguntas. Desde “por
que o céu é azul?” até “por que as meninas têm vagina?”. Eu e
Andressa nos revezamos para responder. A cada três horas,
paramos em algum posto de gasolina para ir ao banheiro e tomar
café. Num posto, perto de Macaé, no estado do Rio de Janeiro, eu
peço para o frentista completar o tanque com gasolina aditivada.
Na loja de conveniências, Andressa ajuda Luiza a escolher um
salgado. O frentista pergunta se Luiza é minha filha. Respondo que
sim. O sujeito comenta que sou um cara de sorte por ter uma
família bonita assim. No dia seguinte, enquanto aposto corrida
com Luiza para entrar na água gelada da cachoeira, a voz do
frentista se repete: um cara de sorte.
9

Entre todas as lembranças, a que menos arrisco dizer que é


verdadeira se passa no começo da minha adolescência. Eu tenho
doze anos. Meu pai diz que sou quase homem e deci­de me levar a
um forró. Me empresta uma camisa dele. É de manga curta,
vermelha, de um tecido que imita seda. Visto orgulhoso. Toda a
cidade reconhece aquela camisa de Mestre Carlos. No forró, eu
sou assunto logo ao chegar. Depois fico de lado para os adultos
encherem a cara e se esfregarem ao som do trio pé de serra que
toca uma música atrás da outra sem intervalo. Mesmo sozinho
numa mesa do salão, bebendo refrigerante quente, me sinto filho
de meu pai. A camisa vermelha curtida com o perfume de Mestre
Carlos me garante esse lugar. Na volta para casa, meu pai diz que
preciso aprender a dançar ou nunca vou comer uma cocota. É o
mais próximo de um abraço que Mestre Carlos me dá.
10

Passavam das três horas da tarde. Comi apenas uma banana pela
manhã, a última. Não havia mais comida na mochila. Bati palmas
em frente à barraca de Rudá. Ele dormia de barriga para cima com
uma camiseta sobre o rosto.
— Desculpe te acordar — eu disse. — Tem alguma coisa pra
comer?
— Tem um pouco de capuchinha e taioba, que colhi pela
manhã.
Fora de cogitação comer de novo aquele inço que Rudá catava
nos canteiros e frestas de meio-fio. Experimentei duas vezes.
Quase vomitei.
— Preciso de comida de verdade.
— Para ser comida de verdade não precisa de código de barras.
Sabia?
— O.k. Não quis ofender. Bora comigo? Tenho alguns trocados
ainda.
Rudá se espreguiçou ainda deitado. Rolou uma cambalhota para
sair da barraca.
— Beleza. Minha agenda não está tão ocupada assim.
Desmontamos as barracas e organizamos as mochilas. Depois
que a lanchonete do Odair fechou, cada busca por comida se
tornou uma expedição. O último mercado aberto ficava próximo à
avenida Pacaembu. Descemos até lá. Sem carros nas ruas, o mais
seguro para manter a distância dos prédios era caminhar pelo
asfalto.
— Já reparou que eles estão voltando? — disse Rudá.
— Eles quem?
— Não reparou — Rudá apontou para o alto de uma árvore,
onde dois pássaros enormes de asas pretas e pescoços brancos
pegavam sol. — Carará é o nome deles. Não são só os pássaros que
voltaram. Escutei à noite as pegadas de uma suçuarana.
— Tem onça em São Paulo? — ajeitei a mochila nas costas.
Rudá disse que os animais nunca deixaram São Paulo por
completo. Onças, preguiças, veados e tantas outras espécies
viviam na terra indígena de Tenondé Porã, na reserva do Capivari.
A reserva ligava o extremo sul da cidade, depois de Interlagos, à
faixa de mata atlântica até o litoral. Com a mudança no ritmo da
cidade, os animais sentiam segurança de andar por outros
territórios.
— Você vivia em Tenondé Porã?
— Lá vivem os guaranis. Meu povo é outro.
Perguntei como Rudá acabou na rua.
— E se eu sempre estive na rua?
— Fala sério, Rudá. Qual a tua história?
— Você sentiu fome. Quis ir ao mercado, me convidou e aqui
estou eu caminhando pra comer e, depois, se tudo der certo, voltar
a dormir. Essa é minha história agora.
Não puxei mais assunto. Alguns passos adiante, Rudá parou.
Disse que o homem valoriza demais essa coisa de memória. O que
a gente chama de memória é uma série de histórias editadas de
forma traiçoeira, quase sempre contada pelos vencedores e escrita
por gente vaidosa. Rudá não disse mais nada até chegarmos ao
mercado da avenida Pacaembu. Encontramos a porta de ferro com
cadeado. Um cartaz escrito à mão informava que a loja foi
desativada e a filial mais próxima ficava na avenida Angélica.
Rudá se pendurou na grade da janela lateral para espiar dentro
da loja. Não sobrou nenhum resto de estoque. Tiramos as mochilas
das costas e sentamos junto ao meio-fio. Em frente ao mercado, os
cacos de concreto de um prédio caído obstruíam a rua. Tentei
lembrar como era o prédio. Não surgiu imagem alguma. Lembrei
apenas da praça ao lado dele. Ficava junto a um barranco. Tinha
três níveis o terreno. Na parte mais baixa, próxima à avenida,
ficavam as armações de metal que seguravam os balanços e uma
gangorra.
— A gente tem companhia — Rudá cortou a minha explicação
sobre a praça.
Um grupo de oito cachorros caminhava rápido na nossa direção.
Pequenos, grandes, com diferentes pelagens, e todos com olhares
famintos. Como um policial, o cachorro branco, que mais parecia
uma mistura de rottweiler com labrador, tomou a frente e se
aproximou para me revistar. Farejou minhas mãos e a mochila. Os
companheiros vinham na cola. Cercaram Rudá.
— Fica calmo. Eles já vão — Rudá moveu apenas os olhos.
Um cãozinho invocado de pelo emaranhado mostrou os dentes
para nós. Desatou a latir. Chamava os demais para irem embora. O
pequeno insistiu até que o líder branco o reprimiu com uma
dentada na altura do pescoço. O cãozinho chorou fino e revidou
com uma mordida na orelha do chefe. Como um incêndio, os
outros cães entraram na briga. Levantei assustado e senti uma
fisgada na perna. Não sei qual deles me mordeu. Corria sangue
pela panturrilha. A barra da meia ensopada de vermelho. Usei a
mochila para me proteger de outros ataques. Ganhei distância e
sentei uns metros longe da briga. Rudá catou uma vareta da barraca
e fez a cachorrada correr.
11

Amarrei a camiseta ao redor da panturrilha para estancar o sangue.


Eu precisava lavar a mordida. Fazer um curativo. Caminhei com
Rudá até o meu ex-apartamento. Ninguém na portaria. O elevador,
fora de serviço. Subimos pelas escadas. Para não forçar a perna,
apoiei o peso do corpo no ombro de Rudá. Encontrei a chave no
lugar de sempre, o quadro da mangueira de emergência. Fui direto
ao banheiro do corredor. Abri o chuveiro. A água fria descascava o
sangue coagulado. Esfreguei o sabonete até espumar bem. Na
primeira enxaguada, surgiram quatro furos feitos pela mordida.
Dois rasgos fundos ainda sangravam um pouco. Ensaboei por
alguns minutos mais. Fechei o registro do chuveiro e sentei na
tampa da privada para tirar, da primeira gaveta da pia, o kit básico
de remédios que Andressa deixava para Luiza. Peguei uma bisnaga
de Nebacetin e gases para fechar a mordida.
Encontrei Rudá sentado no tapete da sala com as pernas
cruzadas. Perguntou se limpei bem a mordida. Levantei a perna
para ele ver o curativo.
— Você vive mais um pouco — Rudá apontou para a porta da
cozinha. — Deixaram algo pra você.
Sobre o balcão da pia, uma caixa de papelão cheia de
mantimentos. Macarrão, molho de tomate, arroz e uma série de
produtos não perecíveis. Junto à caixa, um envelope com uma carta
de Luiza. Rudá surgiu na porta e interrompeu a leitura.
— Vocês tinham um belo lar aqui — Rudá caminhou até a área
de serviço e parou junto à janela de vidro. A lua cheia destacava a
serra na borda da cidade. Um pouco abaixo da serra, luzes
aglomeradas denunciavam as casas da periferia. Mais próximo de
nós, as janelas de prédios espaçados.
Contei que, desde que saí da casa do meu pai, sempre acreditei
que todos os problemas se resolveriam quando eu comprasse um
lugar pra morar. Não importava o tamanho. Desde que fosse um
canto tranquilo para eu esquecer do mundo.
— Acho que muita gente pensava assim. A casa era o último
refúgio da certeza. Então, os prédios vieram abaixo — disse Rudá.
— Onde tem uma panela?
Mostrei a porta do armário embaixo da pia. Rudá pediu
desculpas pela liberdade, sentia fome. Escolheu uma panela de
inox média. Tirei da caixa um pacote de macarrão e uma lata de
atum. Deixei no canto do balcão de granito. Rudá encheu a panela
com água e pôs no fogão para aquecer. Perguntou por que eu não
estava com a minha filha. Eu enrolei. Disse que, apesar da
decoração cara e dos móveis planejados, era complicada a minha
vida naquele apartamento.
— A vida é mais do que você imagina e menos do que você
gostaria que fosse.
Fiquei alguns segundos em silêncio com aquela frase.
— Se acha tudo tão simples, por que vive sozinho?
— Quem disse que estou sozinho?
Interrompi Rudá. Se ele preferisse, não precisava contar nada,
mas aquela conversa mole sobre “o planeta me faz companhia” não
colava. Rudá deixou o garfo com o qual mexia o macarrão sobre o
tampo da pia.
— Você quer saber por que não vivo com outros índios? É isso?
Fiz sinal de positivo com a cabeça.
Rudá contou que a história do seu povo eu conhecia. Foram
mortos aos poucos. Os brancos queimaram as casas, a escola e a
mata. Cercaram a reserva para plantar soja e construir sítios de
final de semana. Rudá veio com outros mil pancararus de
Pernambuco para a favela do Real Parque, na Zona Sul da cidade.
Alguns anos depois, puseram fogo na favela também. Disse ainda
que, se tivesse a família viva, estaria com eles.
— Queria pensar igual a você, no duro — eu disse. — Talvez
fosse mais fácil se eu não viesse de um lugar onde homens são
educados só para ganhar dinheiro, pagar contas e competir.
Rudá despejou o macarrão na panela sem comentar nada. As
bolhas de água amoleceram os fios de espaguete escorados na
borda de inox. Ajeitei o banquinho de madeira para sentar e
descansar a perna.
— A Luiza não é minha filha — eu disse. — Descobri há pouco
tempo.
— Por isso abandonou sua família?
Perguntei o que Rudá faria se descobrisse que a menina que ele
criou por catorze anos não é sua filha.
— Todo mundo faz merda. Você nunca fez? A menina sente
você como pai. E, apesar do medo, você vê ela como filha. Acho
que vocês deveriam estar juntos, ainda mais num momento louco
igual a esse.
— O.k., vou anotar aqui.
Rudá misturou o atum com o molho de tomate em uma panela
menor e riu da minha falta de argumentos.
12

Fazia quase duas semanas desde que o cachorro havia me atacado.


A carne da panturrilha não inflamou. Cicatrizava bem. Depois do
episódio da mordida, eu carregava comigo uma ripa de madeira
com dois pregos tortos na ponta. Ela impunha respeito. Nenhum
outro cão se aproximou.
Era verão. Durante o dia fazia muito calor e, perto do anoitecer,
caíam bombas de chuva. Por mais que o canteiro fosse alto, a lona
da barraca não dava conta. Infiltrou água sei lá por onde. Além
disso, os galhos arrebentavam com o vento e o peso das gotas. Não
era seguro dormir na praça.
Numa dessas tardes, o vento úmido antecipou que viria água.
Desmontei a barraca e dei um toque em Rudá. Melhor a gente
procurar um abrigo. Ele concordou. Levantou o acampamento
rápido.
— Vi um estacionamento umas quadras lá pra baixo — Rudá
colocou a mochila nas costas. — Não tem prédio colado e pareceu
ter vagas cobertas.
— Abandonado?
— Quantos carros você viu por aqui esta semana? — Rudá
puxou a caminhada.
Pedi para andarmos devagar. A perna ainda doía um pouco.
Passamos por três garotos que caminhavam no sentido contrário.
Um deles carregava um pedaço de pau com o qual cutucava os
companheiros. Acenamos em sinal de paz. Nunca vi os três pela
região. Talvez algum deles tivesse maconha. Não deu tempo de
perguntar.
Chegamos ao estacionamento acompanhados pelos primeiros
pingos de chuva. Espiei pelo vidro da guarita. Vazia. O cadeado do
portão, violado. Como Rudá nunca falou desse lugar antes?
Atravessamos o portão. À direita, havia um Fusca sem rodas e sem
vidros. Deixaram a carcaça escorada em quatro pilhas de tijolos. O
estacionamento era um terreno retangular comprido. Devia medir
uns dez por oito. A cobertura de telhas das vagas acompanhava os
muros. No centro, o espaço de manobra descoberto. Nossos
passos sobre a brita chamaram a atenção de quem ocupava um sedã
verde também depenado ao fundo do estacionamento. Era uma
família. A mãe pôs a cabeça para fora da janela. Gritou para
ficarmos longe. Não queriam confusão. No banco de trás, o pai
segurava uma menininha de quatro ou cinco anos. Nos minutos
seguintes, a menina se esticou para nos ver montar as barracas
embaixo de uma das vagas. O temporal despencou. A luz do sol
sumiu por completo. Rudá deixou um pote plástico na chuva para
captar água limpa. Sentamos no chão na frente das barracas. Os
pingos espessos turvavam a vista. A família no sedã era uma massa
disforme. O vulto da menininha chegou até a beira do telhado e
estendeu a mão para sentir a pressão da água que caía da calha. Os
pais se ajudavam na tentativa de acender uma fogueira. Aquela
menina cresceria num mundo bem diferente do que a gente
conheceu, comentei e atirei uma brita na direção do Fusca.
— Espero que ela tenha a sorte de crescer — disse Rudá.
A menina foi para a chuva. Ensopada, improvisou sua piscina
numa poça.
— Amanhã vou procurar Andressa e Luiza. Vem comigo?
Rudá agradeceu. Pegou o pote cheio de água. Bebeu um gole e
me ofereceu. A água fresca desceu pela garganta. Devolvi o pote
quase vazio. Perguntei qual era o plano de Rudá sozinho pela
cidade.
— Ver a natureza dar conta de tudo — Rudá recolocou o pote
na chuva.
A mãe percebeu a criança na poça. Correu para tirar a filha da
água. A criança não queria sair. Fugiu para longe e fez a mãe se
molhar. Quando a mãe a alcançou, as duas riram. Brincaram um
pouco com a água. Voltaram para a parte coberta de mãos dadas. A
mãe secou a filha com uma toalha. E estendeu as roupas molhadas
próximo à fogueira.
— O que acha de a gente convidar eles para jantar?
Rudá gostou da ideia.
13

Assim que a chuva parou, nos aproximamos da família. Perguntei


se comiam carreteiro com a gente. O pai tomou a frente. Segurava
um sarrafo e mandou a gente ficar longe. A mãe perguntou se a
gente tinha carne. Rudá tirou um pedaço de carne de sol da
mochila. Com um olhar cruzado, o casal acertou o consenso. A
mãe ofereceu um pedaço de linguiça para dar gosto e se
prontificou a cozinhar.
O pai pegou o arroz e a carne das mãos de Rudá. Entregou à
esposa. Nos aproximamos devagar e trocamos apresentações. A
mãe se chamava Martina. A menina, Isadora. O pai, Cláudio.
Sentamos ao redor do fogo. Martina contou que vinham de Santo
Amaro. Ela preparava comida congelada com a irmã. Cláudio
entregava. Numa tarde saíram para comprar ingredientes, o prédio
caiu com a irmã de Martina dentro. Havia três semanas a família
vagava pela cidade.
Quando terminou de preparar o carreteiro, Martina pegou
Isadora no colo e puxou a oração. Agradeceu a comida e pediu
também que Nossa Senhora guiasse a alma da irmã. Depois tirou a
panela do fogareiro e serviu o pratinho de plástico que repartiu
com Isadora. Comemos em silêncio a maior parte do tempo.
Agradeci a Martina pelo carreteiro. Rudá disse para eles ficarem
com o que sobrou.
Eu e Rudá voltamos para as barracas. Uma corrente de vento
forte levava as nuvens para longe e revelava um céu recém-lavado,
sem fumaça, estrelado. Reconheci as Três Marias e o Cruzeiro do
Sul, únicas referências de constelações do meu repertório. De
dentro da barraca, puxei papo com Rudá. Perguntei se não animava
mesmo a ir comigo a Santana. Não recebi resposta. Ou ele dormia
ou se poupou de responder outra vez.
14

Na manhã seguinte, tentei ligar o celular. A ideia era perguntar


para Luiza se estavam em Santana. A bateria zerada. O jeito era
arriscar. Desmontei a barraca. Arrumei a mochila. Fui à porta de
Rudá.
— É hora.
Rudá saiu da barraca com a cara amassada de sono. Estendeu a
mão.
— Foi um prazer, irmão.
Apertei a mão de Rudá.
— Uma pena que você não venha comigo — tirei da carteira a
metade do dinheiro que levava comigo. Entreguei a Rudá. Insisti
até ele aceitar. Rudá colocou o dinheiro no bolso e me deu um
abraço. Desejou boa sorte.
Ganhei distância de Rudá como se esquecesse algo. Conferi.
Mochila. Barraca. Ripa com pregos. Eu levava tudo o que tinha.
Acenei para Isadora, que brincava com as britas do chão do
estacionamento. Sentado numa caixa de madeira, Cláudio assistia à
filha brincar. Agradeceu pelo carreteiro da noite anterior. Martina
ainda dormia. Pedi para Cláudio deixar um abraço. Juntei uma brita
do chão e guardei no bolso da bermuda como recordação.
15

Desci até a avenida Pacaembu. Andei pelo asfalto. As árvores do


canteiro central ganharam a companhia de arbustos e diferentes
espécies de capim. Escombros de prédios obstruíam a entrada do
viaduto próximo a Santa Cecília. Subi nos cacos de prédios caídos.
Contornei por cima do viaduto. No outro lado da Pacaembu,
algumas barracas. Nenhum carro. Um cachorro branco e um
homem de boné farejavam os sacos de lixo à procura de comida.
Nem me viram passar.
De uma forma estranha, o território da cidade renascia para
mim. Essa nova superfície possuía uma geografia sensível a aclives
e declives. O tipo de detalhe que você só percebe quando não está
ilhado no ar condicionado do carro ou dentro de um ônibus com
outras setenta pessoas, todas exaustas depois de um dia
massacrante. Reparei que crescia mato na estação da Barra Funda.
Uma centena de metros adiante, passou uma viatura de polícia
com a sirene ligada. Depois, o silêncio dos meus passos contra o
asfalto.
Próximo à ponte da Casa Verde, uma revoada de maritacas
apontou um pequeno bosque que se formava na rotatória. Com a
pressão do sangue, a panturrilha doía um pouco. Aproveitei a
sombra. Parei para descansar o corpo. A cabeça girava a milhão.
Será que Andressa e Luiza aceitariam o meu retorno? Será que
Luiza me queria mesmo como pai? E JP, por onde andava? E
Georgia? E se Georgia mandasse uma mensagem de texto dizendo
que estava viva, bem, e que sentiu minha falta e queria muito me
ver? O que eu faria? O que Mestre Carlos diria dos prédios caídos?
E minha mãe? Será que os cientistas chilenos estavam certos? Ou
os de Chicago? Ou o calendário maia? Ou o bispo? E se um grupo
de cachorros me atacasse?
Voltei a caminhar. Cruzei a ponte da Casa Verde. Uma família
de capivaras caminhava junto à margem de concreto do rio Tietê.
Na avenida Brás Leme, as raízes das árvores no canteiro central
rachavam o asfalto. Assim como na Pacaembu, o inço crescia forte.
Eu seguia. Levava comigo nenhuma certeza. Um passo atrás do
outro. Um inspirar atrás do outro. Cheguei à casa de Clara, mãe de
Andressa, no fim da manhã. Encontrei as persianas fechadas. O
corredor lateral, onde parávamos o carro, vazio. Descansei a
mochila no chão e bati na porta. Lá dentro, nenhum som de passos
ou conversa. Bati mais uma vez e sentei para esperar. Não havia
ninguém por lá.
16

Lembrei do quintal de Clara. Pulei o muro lateral da casa.


Encontrei alguns pêssegos no pomar e água na torneira do tanque
de lavar roupas. Pluguei o carregador de celular na tomada onde
ligavam a máquina de lavar. Sem energia. A porta dos fundos,
trancada. Revirei os vasos de planta à procura de uma chave
reserva. Olhei também dentro dos potes plásticos na lavanderia.
Não achei chave alguma. Arrombei a porta com um chute que
arrebentou o marco de madeira em dois pedaços pontudos. Clara
ia me encher de osso pela porta quebrada. Paciência. Dentro do
armário da cozinha, alguns restos deixados para trás. Um saco de
café fechado com prendedor de roupa. O saleiro. Saquinhos de
temperos quase vazios. Uma garrafa de óleo de girassol pela
metade. A geladeira e o fogão não estavam mais lá. Abri a caixa de
luz. Não havia energia mesmo. A sala e os quartos sem móveis.
Nenhum pedaço de fita adesiva no chão nem caixas de papelão
vazias. Imaginei os vultos de Clara faxinando a casa antes de sair.
Luiza no carro inconformada com o preciosismo da avó. Andressa
ponderando para Clara que na volta fariam uma boa limpeza. Abri
as janelas para entrar ar fresco. Pelo vazio da casa, parecia uma
mudança definitiva. Não voltariam tão cedo. Foram pra onde? Eu
não fazia a menor ideia.
17

No começo da noite, caiu um puta temporal. Recolhi a barraca do


pátio. Baixei os vidros das janelas e sentei na área coberta da
lavanderia para assistir à chuva. Mesmo com o gramado alto, dava
para perceber que o desnível do pátio empoçava água. Será que
Rudá ficou no estacionamento? Ou procurou outro abrigo?
Martina e Cláudio eram boa gente. Provável que Rudá ainda
estivesse com eles.
Quando o pé-d'água parou, entrei na casa para estudar onde
dormir. O antigo quarto de Davi pareceu a melhor opção. Voltei à
lavanderia para buscar a mochila. O barulho de passos vindo de
trás das árvores me chamou a atenção. O vento passeava nas folhas.
Alternava força e direções. Os galhos acompanhavam o vento num
balé improvisado. Peguei a ripa com os pregos. Olhei alerta por
entre os troncos. Atrás de uma laranjeira, encontrei um par de
olhos grandes. Olhos verdes fixados em mim. Não piscavam. O
bicho não se movia. Parecia um daqueles animais empalhados. Até
que movimentou uma das orelhas e percebi o restante do corpo.
Segurei firme a ripa com os pregos. A luminosidade da lua dourava
o pelo bege que se estendia das costas até o rabo. O rosto sério de
um gato crescido. Os bigodes e a penugem ao redor da boca,
brancos. O corpo maior que o de um cachorro grande. Mais
silencioso também. Rudá chamaria de suçuarana. Para mim, era
uma onça-parda em seu horário de caça. Em Alfenas, diziam que
você nunca encontra uma onça. É a onça que encontra você. Ela
deu três passos lentos. Espiei a distância até a porta. Ao meu
movimento, a onça parou de novo. A cabeça permaneceu inclinada
para a frente, como se a qualquer instante pudesse atacar. E se
atacasse? Eu não tinha mais nada. Nem família, nem Georgia, nem
casa, nem porra nenhuma. Eu nem ao menos sabia se depois de
uma semana teria o que comer. É curioso, ali na frente daquele
animal, eu senti apenas que não queria morrer. A onça era linda.
De uma elegância perfeita. A ideia do seu corpo abatido,
sangrando, me deu calafrio. Ou talvez fosse medo. Não me movi. A
onça armou as patas traseiras, mas permaneceu imóvel. Séria.
Firmei a mão no cabo da ripa sem desencostar a ponta com os
pregos do chão. Os pensamentos se apagaram. Naquele instante,
só existiam os olhos da onça. Era como se fôssemos feitos da
mesma substância. Tivéssemos o mesmo espírito. Ocupássemos o
mesmo lugar. Quando a onça avançou, fui certeiro com os pregos
no pulmão do bicho. O tranco do golpe quase me derrubou.
Acertei mais duas pauladas próximo à cabeça. A onça recuou
atordoada. Mostrava os dentes. Ameacei mais um golpe. A onça
pulou para a borda do muro com a facilidade de quem atravessa a
rua. Sumiu no terreno vizinho.
18

Na manhã seguinte, caminhei de volta a Perdizes. Procurei por


Rudá no estacionamento. Depois no canteiro onde acampávamos e
nas ruas ao redor. Procurei Rudá por dias até entender que estava
sozinho. Nesse momento, não havia mais prédios para desabar.
Nem o meu antigo apartamento resistira. Eu não queria mais saber
de teses para explicar a queda dos prédios. Acho que nenhuma
pessoa que eu encontrei se importa mais com essas teorias, até
porque nada é confiável. O que importa é estar vivo. Mesmo sem
saber até quando. Mesmo sem saber ao certo o porquê. Eu sigo em
frente, talvez pela esperança de encontrar Luiza e Andressa. Talvez
pela ilusão de saber o paradeiro de Georgia ou Rudá. Talvez pela
força inexplicável de escrever neste caderno e esperar que no
futuro alguém descubra que, mesmo sem nada, eu tentei. Não
tenho resposta fechada. Todas as certezas caíram. E me parece que
restou apenas a verdade que sempre resta: a natureza dando conta
de tudo. Indomável, sem cercas, sem juízos. Bela. Para além da
razão humana, por todos os lados. Livre das paredes, dos telhados,
das narrativas e das definições. Fluida e transparente. Uma eterna
tempestade em que a vida brinca de vencer a morte.
Renato Parada

Mauro Paz nasceu em Porto Alegre, em 1981. É autor do romance


Entre lembrar e esquecer (Patuá, finalista do Prêmio São Paulo de
Literatura) e dos volumes de contos Por razões desconhecidas (IEL-
RS, finalista do Prêmio Sesc) e São Paulo — CidadExpressa (Patuá).
© Mauro Paz, 2023

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Laerte Coutinho e Elisa v. Randow
composição
Jussara Fino
preparação
Leny Cordeiro
revisão
Gabriela Rocha
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Paz, Mauro (1981-)


Quando os prédios começaram a cair [recurso eletrônico] / Mauro Paz. — 1. ed. —
São Paulo: Todavia, 2023.
Dados eletrônicos (1 ePub).

ISBN978-65-5692-534-9
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Literatura brasileira. 2. Romance. 3. Ficção contemporânea. I. Título.

CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : Romance B869.3

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
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T. 55 11. 3094 0500
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