Quando Os Predios Comecaram A Cair - Mauro Paz
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Mauro Paz
Parte 1
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Autor
Créditos
Parte 1
1
Bebi demais. Tive uma noite horrível. Meu nariz não parava de
escorrer por conta do pó vindo da rua. Para piorar, de madrugada
ele apareceu. Na guarda da cama. Parado. Com roupa escura. Rosto
turvo. Olhava para mim em silêncio. Tentei me mover, o corpo não
respondeu. Ele tocou meus pés com a mão fria. O ar não chegava
aos pulmões. Quem estava atrás daquela sombra? Quando o meu
braço direito me obedeceu, acendi a lâmpada de cabeceira.
12
Sempre tive certeza de que espíritos não existiam. Assim que fui
morar no edifício João Ramalho, isso mudou. Na primeira noite, eu
lia as notícias sentado na sala quando senti o corpo inteiro arrepiar.
Era como se alguém estivesse atrás de mim. Uma presença pesada.
Insistente. Liguei a televisão. Deixei num desses programas de
humor lamentáveis de canal aberto. Levei uns minutos para
relaxar. Depois disso, toda vez que eu ia à cozinha, a pele
arrepiava. Então vieram os sonhos. Uma vez em que dormi no sofá,
ele surgiu como uma nuvem preta. Vagou sobre os móveis. Sentou
ao meu lado. Na manhã seguinte, eu não sabia distinguir se tinha
sido um sonho ou verdade. Perguntei ao Erik, o porteiro, se
alguém morreu no apartamento. Ele preferiu não comentar. Disse
que o Adriano sabia melhor da história. Acontece que o Adriano, o
ex-policial que administrava o prédio, não era dado a conversas
com moradores. Depois de acertar o aluguel, a única vez que
conversei com Adriano foi num encontro no elevador.
— Olha o que fizeram com o vagabundo — Adriano me
mostrou um vídeo no celular.
Numa sala fechada, nos fundos de um supermercado, dois
seguranças estalavam um chicote nas costas nuas de um
adolescente. O garoto chorava. Implorava pelo fim da tortura.
Adriano ria. Disse que os seguranças pegaram o guri com um
pacote de bolacha embaixo da blusa. Por essa lembrança, deixei o
assunto da assombração quieto. Talvez fosse alguém que Adriano
matou. Talvez fosse piração da minha cabeça estragada. Que mal
um espírito podia me fazer? Li num site que incensos eram bons
para espantar esse tipo de energia. Bad vibes. Comprei uma caixa
de um hippie na rua. Os incensos fediam um pouco, mas
adiantaram. Meu colega de apartamento passou uns meses sem se
manifestar. O filho da mãe ressurgiu logo que tudo ficou torto.
13
À tarde, abri o PetWalker para ver quais dos amigos peludos iriam
passear. Meu cadastro estava bloqueado. Tinha um aviso para
entrar em contato com a administração do app. O garoto que
atendeu disse que recebi uma reclamação gravíssima de um
usuário. Por isso, eu ficaria três dias de gancho. Agradeci pela
péssima notícia e desliguei.
Fui ao prédio da Flávia e toquei o interfone. Disse que tive um
problema na conta do app. Podia passear com Paçoca e receber em
dinheiro por fora. A ruiva respondeu que não se sentia confortável.
Ainda inventou a desculpa de que raramente tinha dinheiro vivo
em casa. Eu disse que entendia. Daria conta de resolver o mal-
entendido.
Os outros donos de cachorros fariam o mesmo. Eles sabiam que
ninguém era cortado do aplicativo por nada. Voltei para casa.
Liguei de novo para o estúdio de balé na esperança de outra pessoa
atender. Pelo jeito, a recepcionista que falou comigo de manhã
fazia turno integral. Desliguei sem dizer nada.
18
1. Mude o cabelo;
2. Use óculos comuns ou de sol;
3. Use maquiagem;
4. Mude a sua postura;
5. Use acessórios;
6. Aparente uma idade diferente;
7. Desenvolva uma nova persona.
Foi a primeira vez que vi alguém morrer. Ou se matar. Não sei bem
se considero suicídio. Tecnicamente foi. Naquela situação, talvez
eu fizesse a mesma escolha. O fato é que Cléber Figueira Lopes
pulou por vontade própria. O prédio tombado desabou por
completo vinte minutos mais tarde. Estimam que trinta e oito
pessoas não saíram a tempo. Por sorte o edifício maior foi
completamente evacuado. De qualquer forma, o terminal de
ônibus teve de ser realocado duas quadras para baixo. Bombeiros
de bairros distantes engrossaram a busca pelos corpos. O ar do
centro piorou ainda mais. Depois desse dia, algumas pessoas
passaram a usar máscaras respiratórias nas ruas.
Suicídios são muito comuns no mercado financeiro. Em cinco
anos, perdi três colegas. Ao contrário do que as pessoas pensam,
nunca vi alguém do mercado se matar por perder milhões em
ações. Sobrevivemos a muitas crises. Meus colegas se mataram por
depressão e estresse.
O caso que mais me pegou foi o de Cristina. Aconteceu em
2019, um dos melhores anos da Bovespa. Trinta por cento de
valorização. Cristina era analista sênior do mercado de alimentos,
mãe de uma menina de dois anos. Pulou do heliponto do prédio da
corretora. Sabe-se lá como ela chegou ao alto do edifício. Recebi a
notícia por uma mensagem de texto de JP. Quando olhei pela janela
do escritório, os médicos carregavam o que sobrou do corpo para a
ambulância. Nunca fui grande amigo de Cristina. Isso me deixou
culpado à beça. Nos dávamos bem dentro do que se espera de
colegas de trabalho. Cristina vestia calças sociais pretas, largas,
com camisas de seda coloridas. Combinações horríveis. Sorria
sempre sem mostrar os dentes. Parecia boa gente. Chegava cedo ao
escritório, saía tarde. Carregava na testa: tomo tarja preta. Num
almoço perguntei qual remédio Cristina usava. Queria comparar
efeitos colaterais com o antidepressivo que eu tomava na época.
Cristina desconversou. Às vezes pular de um prédio parece mais
fácil do que conversar com alguém sobre nossos problemas.
6
Olá, Georgia. Tudo bem por aí? Sei que a gente não tem nada sério
e tal. Você é “a mina que transa comigo terças e quintas e vai
embora”. Mas eu queria entender por que você sumiu. Encontrar
você às terças e quintas era uma das últimas alegrias que eu tinha.
Se me conhecesse melhor, você entenderia. Digo, você nem sabe o
que vivi até parar nesse prédio do centro. Ou meu nome
verdadeiro. Eu não sei quase nada sobre você. Descobri sem
querer que você dança balé. Faz muito tempo? Entre todas as
lacunas, o que me fode mais a cabeça é não entender por que você
desapareceu. É conviver com a incerteza. Será que fiz algo tosco?
Ou falei alguma coisa errada? Talvez você tenha outra pessoa? Ou
engatou um namoro? Ou está trabalhando demais? Ou, o mais
provável, só enjoou desse cara velho? Tenho me sentido um
merda, um maluco. Não imaginava que a essa altura da vida ia
apanhar de uma paixão. Por um lado é bom, me faz sentir vivo. No
meio de toda essa loucura dos prédios caindo, às vezes penso que o
pior aconteceu com você. Espero que não. Por favor, mande um
sinal. Mensagem recebida e não lida.
13
Nunca desejei ter filhos até o dia em que Luiza nasceu. A menina
cresceu com os traços da mãe, mas grudada em mim. Eu gostava
de chegar do trabalho mais cedo e deitar no tapete da sala para
Luiza subir com os pezinhos no meu peito e fazer dezenas de
perguntas fantasiosas. Aos cinco anos, Luiza aprendeu a escrever
meu nome. Foi a primeira palavra que ela escreveu.
Ensinei Luiza a andar de bicicleta na calçada em frente ao
prédio. Tinha sete anos. Tirei a primeira rodinha. Deu tudo certo.
Depois de eu tirar a segunda, ela pedalou firme por alguns metros.
Então vacilou no equilíbrio e caiu de boca no chão. Quebrou um
dente. Por sorte, era um dente de leite. O dentista remendou com
resina. O dente levou ainda quase um ano para cair.
Luiza entrou na puberdade e seguimos amigos. Distantes, mas
amigos. O pai de uma pré-adolescente não passa de um motorista
equipado com um cartão de crédito. Entre eu levar ou trazer Luiza
de algum lugar, ela me atualizava dos enroscos com as amigas da
escola. Na praia, a gente caminhava por horas, na maior parte do
tempo sem falar nada. Quando ela chegou aos treze anos, minha
cabeça andava bem fodida. Por mais que eu quisesse ser pai, não
tinha muito o que oferecer. Logo em seguida, saí de casa.
3
Olá, Georgia. Não sei se você passou pelo meu prédio essa semana
ou leu alguma notícia. Ele veio abaixo também. Por ironia, foi um
incêndio. Escrevi para avisar que estou bem, apesar de ainda não
entender por que você desapareceu. Espero que esteja segura.
Sinto sua falta. Quem sabe quando toda essa loucura acabar a gente
se encontre de novo. Um beijo. Mensagem recebida e não lida.
6
Eu tentava ser um bom pai até desabar por dentro. Sim, é isso que
o modo de trabalho em cidades como São Paulo faz com você.
Começa aos poucos. Você assina um contrato no qual troca seu
trabalho por um salário, um plano de saúde e um cartão de vale-
refeição que garante o almoço modesto em algum restaurante por
quilo próximo ao escritório. Depois de entregarem o kit de
sobrevivência, encilham você e o levam para uma pista de corrida.
Os demais competidores são os colegas de trabalho. Você convive
cinquenta horas por semana com essas pessoas, o triplo do tempo
que passa com a sua família. Entre colegas, porém, não há amor.
Vocês estão em uma corrida, lembra? Entre colegas só há
desconfiança, inveja e sexo casual. Mesmo nos happy hours e
festas de final de ano, é possível sentir em cada drinque o gosto
tóxico de intrigas. Quem terá o melhor resultado? Quem vai
ganhar o bônus, os prêmios, a promoção? Quem terá as férias mais
caras? Quem bebe o melhor vinho?
Então, quando você percebe, sua vida se resume a torrar
quantidades obscenas de dinheiro e trabalhar. E o trabalho se
resume a uma poça de bosta em que você deseja a morte de todos
ao redor. Pequenos incômodos geram enorme irritação. As luzes
fluorescentes. As bancadas apertadas. O gosto do café. A sensação
de que você nunca entrega o suficiente. Não é bom o suficiente.
Não tem ideias o suficiente. Tudo isso o empurra para baixo a
ponto de você se achar burro, incapaz e paralisado. O trabalho, ou
melhor, a forma como o capitalismo se apossou do trabalho, torna
a sua alma cinza como a cidade, como se você fosse um prédio
velho, cheio de baratas, prestes a ruir.
Eu não acreditava em psicólogos nem em medicamentos que
prometiam felicidade e paz. Depois que me mudei para São Paulo,
toda hora eu escutava alguém falar sobre estresse. A necessidade
de bancar a própria comida desde cedo fez de mim um sujeito
prático. Aquele papo de não aguento a pressão do chefe sempre me
pareceu choradeira de gente criada em apartamento. Eu não tinha
tempo para aquela ladainha, precisava trabalhar. Apesar da amizade
com JP, sabia que haviam me contratado porque eu trabalhava
muito e sem reclamar. Sabia também que, se não rendesse o que o
pai do JP esperava, minha vaga seria ocupada por algum garoto de
sorriso branco que frequentava a piscina do Clube Pinheiros. A
meritocracia paulistana é torta e implacável. Nessa falsa corrida
entre funcionários, os únicos vencedores são os donos das
empresas e os acionistas.
Eu encarava bem o lance de trabalhar até quinze horas por dia.
Pelo menos achava que encarava. Então numa manhã Andressa
pediu para Luiza desligar o tablet e se arrumar para a aula de
francês. Eu conferia as cotações do S&P 500. A gritaria entre as
duas invadia minha cabeça com choques que bloqueavam qualquer
atenção à tela do notebook. A raiva me partiu num rasco.
Arremessei o tablet pela janela do apartamento. Um silêncio
péssimo se estabeleceu. À noite, Andressa disse que era melhor eu
procurar ajuda. Não tolerava nenhum tipo de violência em casa.
Bastava o que viveu com o pai.
Andressa marcou a consulta na psiquiatra. Fui a contragosto. O
consultório ficava num sobrado em Pinheiros. A psiquiatra passava
dos cinquenta anos, vestia roupas largas, bem elegantes. Ofereceu
chá. Agradeci. Durante a sessão, pediu para eu contar por que
estava lá. Contei que Andressa se assustou com um pico de raiva.
Não era nada de mais. Então a psiquiatra entregou para mim uma
lista de sintomas. Lemos juntos. A ideia era eu reconhecer em qual
estágio estava.
1. Compulsão em demonstrar o próprio valor;
2. Incapacidade de se desligar do trabalho;
3. Negação das próprias necessidades, como dormir e praticar
esportes;
4. Fuga de conflitos;
5. Inversão de valores. A família, os momentos de descanso, não
têm importância. O foco único é nos resultados de trabalho;
6. Tornar-se intolerante. Considera os colegas de trabalho
incompetentes. Aumento da agressividade e sarcasmo;
7. Distanciamento da vida social. O trabalho é feito de maneira
automática. A necessidade de relaxar pode levar ao uso de drogas
ou álcool;
8. Mudanças de comportamento. Você troca a alegria pelo
medo e pelo desânimo;
9. Despersonalização. Você não percebe o próprio valor e não
sente empatia com as pessoas ao redor;
10. Vazio interno. O desconforto é preenchido por drogas,
álcool, comida, sexo ou outras compulsões;
11. Depressão. Você sente medo do futuro. A vida não tem
sentido. Sente que está perdido e exausto;
12. Burnout, também conhecido como estafa ou esgotamento.
Há um colapso mental e físico, assim como pensamentos suicidas.
Nem preciso comentar em qual estágio eu estava. Saí do
consultório com a receita de remédios e um atestado que pedia o
meu afastamento temporário do escritório. Ela disse que era
fundamental eu me afastar do ambiente que causava estresse,
tomar os remédios e seguir com a terapia. Meu plano era esconder
o atestado. Andressa correu na frente. Após a consulta, ligou para a
psiquiatra, que comentou sobre o afastamento.
13
O chá de Rudá não fez bem para o meu intestino. Acordei todo
cagado. O edredom que forrava o chão da barraca também. Um
cheiro horrível. Limpei as pernas e a bunda com o edredom.
Embrulhei tudo e coloquei do lado de fora da barraca. Precisava de
um banho. Vesti um short limpo e saí. Não adiantou muita coisa. O
fedor me acompanhava. Mandei uma mensagem de texto para
Luiza. Perguntei se eu podia subir para tomar banho e colocar
umas roupas na máquina de lavar. A resposta veio em poucos
minutos. Luiza disse que estavam de saída para a casa da avó.
Deixou a chave escondida no quadro da mangueira de emergência
e avisou ao porteiro. Quando cruzassem a marginal Tietê na
direção de Santana, mandaria outra mensagem. Levou o tempo de
eu desmontar o acampamento para a mensagem chegar.
O porteiro me reconheceu. Apertou o botão para destravar o
portão de ferro ao lado da guarita. Pediu para eu subir pelo
elevador de serviço por conta da mochila. No fundo eu sabia que
ele queria evitar reclamações dos outros moradores. Ninguém
quer um mendigo fedido na área social do prédio. Há alguns
meses, inclusive, talvez eu mesmo fosse o morador a reclamar se
visse a cena. Fiz a volta para entrar pela garagem. Enquanto
esperava o elevador, senti o intestino corcovear. Eu estava leve e
fraco. Parecia não haver nada dentro de mim, mas o intestino dizia
o contrário.
Encontrei a chave solitária no lugar combinado. O apartamento
estava meio vazio. A televisão, o equipamento de som alemão, as
plantas da sacada. Andressa e Luiza levaram o que cabia no carro e
tinha algum valor. A geladeira, o fogão e a máquina lava e seca
ficaram para trás, para minha sorte. Pagamos uma fortuna por ela.
Quando Andressa mostrou o anúncio no encarte de jornal, não vi
sentido em um aparelho que custava três salários mínimos a mais
do que uma máquina comum só por ter a função secagem.
Especialmente porque o nosso apartamento era servido por uma
arejada área para estender roupas. Coloquei o edredom e as roupas
do corpo dentro da máquina. O ciclo completo que entregava a
roupa seca durava uma hora e meia. Pelado em frente à escotilha
frontal da lavadora, assisti aos tecidos se misturarem com água e
bolhas de sabão. Era um hipnótico balé circular. Naquela
conjuntura, impossível ignorar que eu comeria durante um ano
com o valor daquela máquina lava e seca quinze quilos inox da
Samsung.
Levei essa ideia até o banheiro. No armário embaixo da pia, uma
toalha deixada por Luiza. A água morna da ducha empurrou para o
ralo a sujeira marrom que me encardia a pele. Ensaboei e enxuguei
o corpo duas vezes. Depois do banho, enrolei a toalha na cintura e
voltei à cozinha. Comi duas bananas abandonadas na geladeira.
Faltava ainda uma hora para a lava e seca finalizar o seu
supervalorizado trabalho. Passei uma xícara de café. Deitei no sofá
e escorei a cabeça em uma almofada. Assistia no teto da sala a
flashes do sonho que o chá me provocou. Vinha da área de serviço
o contínuo ranger das polias da lavadora. E se o teto desabasse
naquele instante? Talvez não fosse má ideia. Talvez fosse sorte ou o
caminho natural das coisas. Olhei a tela do celular. Uma mensagem
nova de Luiza.
“Estamos voltando! Esquecemos uma mala de roupas.”
Corri até a área de serviço. A lavadora estava embalada na
centrifugação. Eu revirava o painel digital à procura de um botão
que parasse tudo quando ouvi a chave destrancar a fechadura da
porta principal. Andressa entrou no apartamento sozinha e não
pareceu nada surpresa ao me encontrar seminu na área de serviço.
Ficou parada perto da porta. Não me movi. O que Luiza contou
para Andressa no caminho de volta? Ou há dias Andressa sabia que
eu rondava o bairro?
— O que você quer por aqui? — Andressa seguiu imóvel em
frente à porta.
— Eu estava de saída.
— Como assim “de saída”? Por onde você andou? Quer
enlouquecer a gente também?
Desviei os olhos para a máquina de lavar, que, indiferente ao
mundo, iniciava o ciclo de secagem.
— Eu te procurei até em necrotério. Sabia? — Andressa
continuou. — Sabia que Luiza entrou em depressão? Sabia que ela
tentou se matar?
A imagem de Andressa vestida com uma legging e uma
camiseta velha era familiar e estranha. Duas pontas da minha vida
que se chocavam em curto-circuito.
— Você some por meses. Depois aparece pelado na área de
serviço e não vai dizer nada?
— Eu não queria te ver.
— Não queria? Por que eu sempre fui trouxa e fiquei do seu
lado mesmo quando você estava fodido de licença?
— Eu descobri, Andressa.
— Percebi. E precisava espancar o seu único amigo? O cara que
sempre te ajudou? Há anos eu e você vivíamos um relacionamento
aberto. Não era isso? Nem minha gravidez você respeitou. Eu
queria transar também. Acha que o JP foi o único?
Mantive os olhos na direção da lavadora. As roupas giravam tão
rápido que formavam um vulto branco dentro do tambor de metal.
— Eu fiz o teste — o som da lavadora zumbia nos meus
ouvidos. — Sei que a Luiza não é minha filha. Ela não é minha
filha, porra!
Não ouvi se Andressa disse algo. Eu só escutava o zumbido da
máquina.
— Vocês duas eram o pouco de certo e bonito que eu tinha.
Entende?
Depois de uns segundos calada, Andressa disse que sentia a
minha falta. E a despeito do que ela fez, eu sempre seria o pai de
Luiza. Ouvi os passos de Andressa irem até o quarto e voltarem
acompanhados das rodinhas de uma mala.
— Pode usar o apartamento o quanto precisar — Andressa
disse. — Deixei algum dinheiro no balcão da sala. Se quiser
conversar com calma ou ver a Luiza, sabe onde nos encontrar.
Parte 5
1
Rudá me falou uma coisa que fez todo sentido. Não importava
quantas narrativas surgissem para justificar a queda dos prédios.
Não importava se as pessoas acreditavam na teoria X ou Y e, por
essas crenças, se negassem a deixar os apartamentos. A natureza
não pondera narrativas. A natureza é a narrativa de tudo e a morte,
o ponto-final.
4
Passavam das três horas da tarde. Comi apenas uma banana pela
manhã, a última. Não havia mais comida na mochila. Bati palmas
em frente à barraca de Rudá. Ele dormia de barriga para cima com
uma camiseta sobre o rosto.
— Desculpe te acordar — eu disse. — Tem alguma coisa pra
comer?
— Tem um pouco de capuchinha e taioba, que colhi pela
manhã.
Fora de cogitação comer de novo aquele inço que Rudá catava
nos canteiros e frestas de meio-fio. Experimentei duas vezes.
Quase vomitei.
— Preciso de comida de verdade.
— Para ser comida de verdade não precisa de código de barras.
Sabia?
— O.k. Não quis ofender. Bora comigo? Tenho alguns trocados
ainda.
Rudá se espreguiçou ainda deitado. Rolou uma cambalhota para
sair da barraca.
— Beleza. Minha agenda não está tão ocupada assim.
Desmontamos as barracas e organizamos as mochilas. Depois
que a lanchonete do Odair fechou, cada busca por comida se
tornou uma expedição. O último mercado aberto ficava próximo à
avenida Pacaembu. Descemos até lá. Sem carros nas ruas, o mais
seguro para manter a distância dos prédios era caminhar pelo
asfalto.
— Já reparou que eles estão voltando? — disse Rudá.
— Eles quem?
— Não reparou — Rudá apontou para o alto de uma árvore,
onde dois pássaros enormes de asas pretas e pescoços brancos
pegavam sol. — Carará é o nome deles. Não são só os pássaros que
voltaram. Escutei à noite as pegadas de uma suçuarana.
— Tem onça em São Paulo? — ajeitei a mochila nas costas.
Rudá disse que os animais nunca deixaram São Paulo por
completo. Onças, preguiças, veados e tantas outras espécies
viviam na terra indígena de Tenondé Porã, na reserva do Capivari.
A reserva ligava o extremo sul da cidade, depois de Interlagos, à
faixa de mata atlântica até o litoral. Com a mudança no ritmo da
cidade, os animais sentiam segurança de andar por outros
territórios.
— Você vivia em Tenondé Porã?
— Lá vivem os guaranis. Meu povo é outro.
Perguntei como Rudá acabou na rua.
— E se eu sempre estive na rua?
— Fala sério, Rudá. Qual a tua história?
— Você sentiu fome. Quis ir ao mercado, me convidou e aqui
estou eu caminhando pra comer e, depois, se tudo der certo, voltar
a dormir. Essa é minha história agora.
Não puxei mais assunto. Alguns passos adiante, Rudá parou.
Disse que o homem valoriza demais essa coisa de memória. O que
a gente chama de memória é uma série de histórias editadas de
forma traiçoeira, quase sempre contada pelos vencedores e escrita
por gente vaidosa. Rudá não disse mais nada até chegarmos ao
mercado da avenida Pacaembu. Encontramos a porta de ferro com
cadeado. Um cartaz escrito à mão informava que a loja foi
desativada e a filial mais próxima ficava na avenida Angélica.
Rudá se pendurou na grade da janela lateral para espiar dentro
da loja. Não sobrou nenhum resto de estoque. Tiramos as mochilas
das costas e sentamos junto ao meio-fio. Em frente ao mercado, os
cacos de concreto de um prédio caído obstruíam a rua. Tentei
lembrar como era o prédio. Não surgiu imagem alguma. Lembrei
apenas da praça ao lado dele. Ficava junto a um barranco. Tinha
três níveis o terreno. Na parte mais baixa, próxima à avenida,
ficavam as armações de metal que seguravam os balanços e uma
gangorra.
— A gente tem companhia — Rudá cortou a minha explicação
sobre a praça.
Um grupo de oito cachorros caminhava rápido na nossa direção.
Pequenos, grandes, com diferentes pelagens, e todos com olhares
famintos. Como um policial, o cachorro branco, que mais parecia
uma mistura de rottweiler com labrador, tomou a frente e se
aproximou para me revistar. Farejou minhas mãos e a mochila. Os
companheiros vinham na cola. Cercaram Rudá.
— Fica calmo. Eles já vão — Rudá moveu apenas os olhos.
Um cãozinho invocado de pelo emaranhado mostrou os dentes
para nós. Desatou a latir. Chamava os demais para irem embora. O
pequeno insistiu até que o líder branco o reprimiu com uma
dentada na altura do pescoço. O cãozinho chorou fino e revidou
com uma mordida na orelha do chefe. Como um incêndio, os
outros cães entraram na briga. Levantei assustado e senti uma
fisgada na perna. Não sei qual deles me mordeu. Corria sangue
pela panturrilha. A barra da meia ensopada de vermelho. Usei a
mochila para me proteger de outros ataques. Ganhei distância e
sentei uns metros longe da briga. Rudá catou uma vareta da barraca
e fez a cachorrada correr.
11
capa
Laerte Coutinho e Elisa v. Randow
composição
Jussara Fino
preparação
Leny Cordeiro
revisão
Gabriela Rocha
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN978-65-5692-534-9
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub
CDD B869.3