O Estranho

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP – Brasil – Catalogação

na Fonte

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Targas, Benicio

O estranho / Benicio Targas - 1. ed. - Belo Horizonte, MG: Ed. Koinonia,


2019.
152 p.; 21 cm.
Inclui índice
1. Literatura brasileira. I. Targas, Benicio. II. Título.

CDD: 869.1

ISBN 978-85-5990-161-0

___________________________________________________________

O Estranho

© 2019 de Benicio Targas

1ª Edição: Novembro de 2019

Editor-Chefe: Rones Farias Filho


Organização: Janaína Lourenço
Capa: Deivs Mello

Todos os direitos reservados por;

EDITORA KOINONIA
Rua Lindolfo de Azevedo, 1793 - Jd. América
Belo Horizonte - MG - CEP 30421-428
TEL: (31) 3657-5799
www.editorakoinonia.com.br

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ou forma, seja mecânico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em banco de
dados sem a expressa autorização do autor.
1.

Mataram a filha do cabeleireiro. O pôr do sol chegava ao fim e eu estava num


bar, uma rua acima do ocorrido, apenas ouvi o disparo. O bairro inteiro entrou
num silêncio instantâneo, então esperei alguns murmúrios ecoarem nas esquinas.
Pedi mais uma dose de conhaque e virei rapidamente, indo direto pro meu velho
Voyage, fiel e companheiro de trabalho. Sintonizei a frequência da polícia e nada.
No bairro do Jardim São Luís não é comum haver denúncias, o rádio é mero
capricho para trabalhar por aqui. Você tinha que ter faro e já escutava nas ruas que
um homicídio tinha acontecido há instantes. É impressionante! A língua humana
é tão rápida quanto a energia elétrica, atinge um raio de quilômetros em minutos.
Manobrei o carro e segui o fluxo, o mais rápido que pude.
Fui obrigado a estacionar na entrada da rua, pois havia uma porção de urubus
carniceiros buscando novidades para fofocarem e se gabarem de que estavam
presentes quando o crime ocorrera. Mostrei meu distintivo para abrir caminho,
naquele momento eu vi alguns rostos familiares e olhares de desdém. Fui criado
numa favela perto dali, minha infância foi nesse bairro turbulento, mas segui um
caminho bem oposto do que a maioria ali optou, alguns me achavam traidor das
minhas origens por ter entrado pra polícia.
Comecei a gritar pedindo para todos se afastarem do local da ocorrência... A
garota tinha vinte e dois anos de idade, seu corpo estava esticado e grande parte
dele estava sobre o asfalto em frente à sorveteria da dona Celinda. Ela vestia uma
regata branca, um mini short jeans - estava sobre uma poça de sangue.
Quando chegar minha hora, espero estar vestindo uma bermuda bem folgada, vou
morrer satisfeito - é como uma espécie de céu pra mim, espero realmente estar usando uma
bermuda na minha vez. Sei que não é relevante, mas não pude deixar de pensar nisso
quando vi o corpo.
Quando vi o velho João ajoelhado, chorando sobre os seios da menina, soube
quem era a vítima: Angélica. Chorava copiosamente sobre sua filha que não tinha
mais brilho nos olhos. O tiro foi à queima roupa, tinha sido uma execução, havia
um rombo em sua cabeça e miolos espalhados pelo chão.
Em instantes os PM’s chegariam pra terminar o resto do trabalho e eu apenas
sairia fora; não me envolvo em casos desta vizinhança há tempos, faço vista grossa,
é muito pessoal pra mim e isto poderia afetar meu trabalho - entretanto, por
hábito de detetive, comecei a fazer algumas perguntas e quase perdi minha
paciência. Pura perda de tempo, pois ninguém nunca falou nada e não seria hoje
que isso mudaria.
O olhar da garota pinicava minha mente, senti a obrigação de entender o que
tinha acontecido, e esta era uma sensação que eu pensava ter esquecido... Foi
então que tive um lampejo e lembrei-me da velha ranzinza que sempre fumava seu
cigarro sossegadamente na janela do sexto andar, num conjunto habitacional do
outro lado da rua - a velha poderia ter visto o homicídio... Ela era os olhos dessas
ruas. Olhei para o alto e a velha ainda estava lá na janela; o tempo às vezes é bem
severo, porém a cada trago ela parecia estar num deleite das mil maravilhas.
Tive a impressão que ela estava ali há algum tempo, não custava nada checar e
bater um papo. Esperei um pouco pra mídia chegar e eu expressar o meu amor
sincero por eles... Iriam começar o protocolo sensacionalista em busca do furo
perfeito, mas eles não chegaram e isso era muito estranho. Detesto jornais e odeio
em dobro os jornalistas, eles tornam meu trabalho impuro.
Algumas lembranças reapareceram, de quando visitava minha finada avó e
passava sempre pra cortar o cabelo, via a pequena menina Angélica e pensava
comigo:
-“Essa vai dar trabalho! Tomara que não se envolva com gente errada.”
Nem com execuções rolando a céu aberto, nosso bairro conseguia chamar
alguma atenção. Após o término da coleta de evidências, esvaziaram a cena do
crime e a vida de todos continuou; não se isola áreas em uma periferia, era
necessário apenas uma esponja, água e sabão para limpar o sangue e estaria tudo
novinho em folha.
A vantagem de se tornar um homem frio com o tempo, é que um banho
gelado se torna uma tarefa mais fácil.
Minha casinha ficava na rua particular, próxima ao CENESP, talvez a única rua
segura de São Luís pra se morar - nunca pareceu tão aconchegante. Não posso me
esquecer da Vila das Cores, um condomínio aqui do bairro, chique... Nunca
conheci ninguém que morasse lá, mas minha teoria é que todos os moradores
mentem sobre pertencerem ao bairro, talvez seja vergonha ou medo da vizinhança.
Minha gata Debra está ronronando e roçando na minha perna, é sempre
carinhosa quando chego. Tomei algumas cervejas na tentativa frustrada de me
derrubar, mas nessa noite eu não consegui pregar o olho.
2.

Fiquei pensando na porra do assassinato...


Na delegacia, todos estavam receosos, ninguém queria pegar este caso, tinham
medo do que encontrariam, ainda mais pelo silêncio das ruas.
- “Ninguém entregou um suspeito, todos falaram coisas inconclusivas...”,
afirmou um dos policiais cuidadosamente.
- “Identificaram que a arma disparada foi de calibre 38...”, concluiu.
Era tudo que tínhamos. Fazia sentido um três oitão simples ter feito o trabalho,
era o mais comum na região.
Após algumas ligações, o delegado Frank decidiu deixar o caso em segundo
plano, dizendo que tínhamos outras prioridades para resolver. Notei certo descaso
com o crime, é bem provável que haja envolvimento de drogas e pessoas influentes
com contatos fortes, o bastante para nos manter longe de qualquer investigação;
além do mais, quem se importa com aquela gente? Fazem parte da nossa economia
e são representadas por letras: D, E e alguns C’s.
O tráfico é vantajoso para os políticos e autoridades civis da região, e em
compensação, os bandidos ganham passe livre para montarem suas leis dentro de
cada beco; todos saem ganhando, menos o povo.
Decidi resolver sozinho esta merda, seria um trabalho extraoficial.
O último caso que eu tinha resolvido foi o falsificador de cartões - era um dono
de padaria dentro da favela mesmo, durou bastante tempo... Odiava o lugar!
Quando eu era criança, comendo um pão, mastiguei uma bituca de cigarro, talvez
por isso o meu gosto pela nicotina; minha mãe fez um barraco!
Muita gente boa e trabalhadora tinha seus cartões clonados, por isso sempre
tive o pé atrás com Damião (ele carregava um escorpião no bolso)... Até que um
dia consegui descobrir todo o esquema - a padaria continuaria, porém o dono
estaria na cadeia - o prendi pessoalmente.
Voltei à cena do crime e tudo estava normalizado. Os bares estavam lotados
com os vagabundos habituais; era possível ver alguns rastros de sangue bem seco,
até mesmo os malditos esfregões não tinham conseguido limpar toda a sujeira.
O salão do velho João ficava na mesma rua do incidente, e para minha
surpresa, estava aberto; as contas a pagar nunca ficam de luto.
Entrei furtivamente e quase ninguém me notou... Minhas roupas estavam
velhas e desgastadas, mas apenas me preocupava em sempre estar com um belo par
de botas. Ao fundo do salão tinha um grande quadro com a foto de suas quatro
filhas - a mais velha era perfeita! Angélica foi uma das mulheres mais lindas que eu
já tinha visto. Lembro o barulho que ela causava ao passar por essas ruas com um
vestido curto, valorizando suas lindas e torneadas pernas; seus seios eram
acentuados pelo decote em “v”.
Todos ali no bairro a desejavam ou já desejaram uma mulher como ela... Nesse
momento não estava mais no alcance de ninguém, afinal, estava morta... Enfim,
são apenas devaneios de um detetive... Eu estava decidido a descobrir o que tinha
acontecido.
Tentei uma abordagem mais discreta:
- “Seu João, o senhor tem um minutinho?”, perguntei ponderadamente.
No momento, uma criança estava sendo tosada. Olhou pra mim,
reconhecendo-me, e colocou a tesoura na estante, abaixo do espelho. Seu rosto
estava um pouco inchado, com olhos avermelhados - ele não estava tendo dias
fáceis.
- “O que você quer?”, João me perguntou rispidamente.
Eu esperava uma reação similar, seu João nunca gostou de policiais, pois
passou um bom tempo cozinhando na cadeia; além disso, ele fazia parte do meu fã
clube, em que sou Judas - e todos eles nazarenos frustrados. Mas sempre lidei bem
com esse tipo de sentimento, enquanto dizem que traí minhas origens, acredito
que tenho sido fiel ao meu sobrenome: Silva.
Sem contar que eu estava cortando meu cabelo há meses no Salão do Brunão,
moleque novo, mas que cortava bem, roubando a maioria dos clientes do velho.
Os dois eram rivais no bairro.
Comentei com o velho que estava tentando descobrir mais detalhes, porém,
sem sucesso. Suas retribuições eram somente expressões de desprezo.
- “Não tem mais nada pra resolver, ela já morreu!” – João disse, cruelmente.
Engoli em seco as palavras daquele velho homem e perguntei com cautela:
- “Ela tava namorando?”
Seu João ficou ainda mais irritado e respondeu irado:
- “Porra, Wagner, você tem estado tão ocupado na sua casinha particular que
esqueceu como funcionam as coisas por aqui?”
Fiquei em silêncio, então ele completou:
- “Ele tava com a minha filha!”
Não foi fácil digerir aquela informação, o buraco era bem mais embaixo do que
eu imaginava.
Saí do salão como entrei, silencioso como um predador.
3.

Numa tentativa frustrada de entender Deus, tentei perguntar por que ele
somente assiste tudo lá de cima, mas ele não me respondeu. Deve ter rido de mim,
pela minha ousadia em tentar perguntar algo.
Ela estava envolvida com Joel, mas quase ninguém sabe o nome verdadeiro
dele. No São Luís, todos o conhecem como Estranho. Tudo que esse nome se
envolve acaba em tragédia - quem ousaria matar a namorada dele, além dele
mesmo?
Jamais imaginei confrontá-lo ou sequer fazer perguntas, as principais
comunidades do bairro são controladas por ele e o mais engraçado é que eu
estudei com esse cara na oitava série - ele já tinha repetido três vezes, sempre o
evitei, pois quase todos me diziam que ele não era um bom sujeito - e estavam
todos certos.
As parcerias do Estranho provavelmente iam além de vielas e becos, haviam
policiais e políticos envolvidos em seus negócios do tráfico. Se me dessem um
mapa, eu poderia riscar cada biqueira que existe por aqui, mas não posso fazer
nada... Se eu quiser continuar vivo, a última coisa que eu devo fazer é investigá-lo.
Agora, com certeza, o mais sensato era desistir do caso, mas sempre fui um
homem curioso; é uma característica que levarei para o túmulo.
Comecei a pensar nas perguntas sobre o caso:
- “O Estranho matou Angélica?”
- “Foi algum capacho?”
- “Existem inimigos que poderiam matá-la para atingi-lo?”
- “Quais os motivos?”
O começo é sempre um breu total, chega a dar vontade de desistir, mas eu
sabia que iria descobrir algo. A sorveteria estava fechada, então fui logo para o
conjunto habitacional vermelho, perto do local do crime, trocar um lero com a
velha.
Na entrada do condomínio tinham alguns adolescentes fumando maconha.
Para aqueles garotos, eu era como o vento e nem se incomodaram com a minha
presença - era a realidade deles.
Subi vários lances de escada e as numerações dos apartamentos não tinham
ordem ou padrão. Ao chegar ao apartamento “65”, da velha, eu estava fatigado ao
extremo (o cigarro estava acabando comigo) - retomei o fôlego e toquei a
campainha. Haviam algumas plantas penduradas ao teto com correntes, a porta
estava velha e tinha um portão com grades. Segurança nunca é demais... Esperei
mais alguns segundos e toquei novamente a campainha, pude escutar latidos desta
vez...
- “Mas que porra!” - eu balbuciei.
Detesto cachorros! Não é nada pessoal, mas tenho péssimas experiências
envolvendo caninos. Não me iludo, sei que os cães ainda são amigos melhores do
que qualquer humano, mas Debra cumpria bem a função de amigo do homem.
Foi uma recepção calorosa, a velha abriu apenas a porta atrás da grade. Suas
pálpebras estavam encolhidas como se tentasse me reconhecer e havia um cigarro
em sua boca quase no fim. Talvez haja alguém mais velha nesse mundo, mas
certamente ela receberia o segundo lugar na disputa. Possuía uma voz que soava
como um resmungo bem afetado pelos árduos anos de nicotina - então me
perguntou:
- “O que quer, jovem?”
- “Boa tarde, senhora! Sou detetive!” - Respondi mostrando o distintivo.
A velha me olhava ainda como se tivesse se esforçando pra enxergar direito...
Abrindo o portão, resmungou:
- “Você é aquele garoto... O Wellington!” – afirmou, tossindo bastante.
- “Na verdade é Wagner, senhora!” - acrescentei.
- “Dá no mesmo!” - Ela respondeu desdenhando, cheia de pigarro na voz.
A velha então me convidou para entrar - o cômodo tinha um cheiro estranho,
não consegui definir bem o que era. Ela esbarrou num de seus armários a
caminho da sala... À esquerda tinha uma pequena lavanderia, e pude escutar um
cachorro lá dentro, arranhando um pequeno portão que era revestido por uma
rede de alumínio. Ela pediu pra eu ficar à vontade - logo fui me aconchegando
num sofá velho.
Sentando numa poltrona, a senhora me disse entusiasmada:
- “Eu me lembro da sua vó, Wellington... Adorava me contar uma fofoca.”
Apenas sorri e perguntei:
- “Sabe o dia do assassinato da filha do cabeleireiro?” Ela riu forçadamente e
disse com indiferença:
- “Claro que sei! Só falam disso...”, acendendo um novo cigarro, ela
acrescentou...
- “Me falaram que ela era uma vagabunda completa... Aliás, meu neto já deve
ter fodido com ela! É assim que os jovens dizem hoje, né? Fodido?”
A velha já estava numa fase em que não se preocupa mais com a opinião dos
outros, era curta e grossa - pensava e falava sem medo.
- “Você viu algo no dia do assassinato? Você tem uma janela bem grande, acho
que consigo ver até minha antiga casa daqui...”, perguntei descontraidamente.
Rindo naturalmente, a velha já tinha terminado outro cigarro e me respondeu
pegando seu maço numa pequena estante na parede:
- “Eu até poderia ter visto, mas já não enxergo direito há um tempo...”
Quando eu estava partindo, ao cruzar a porta, a velha segurou forte meus
ombros e falou:
- “Cuidado, jovem! Gente curiosa não vive muito aqui...”
Olhei para o seu rosto que estava com um sorriso amarelo - bateu a porta na
minha cara. Senti um calafrio, mas fazia sentido o que ela me contou sobre sua
visão, pois mal conseguia olhar diretamente para onde eu estava. A essa altura
devia apenas enxergar os seus cigarros ou então os encontrava por pura intuição.
A velha pelo menos me disse onde o seu neto morava - que era o apartamento
“43” deste mesmo prédio - o nome dele era Vinicius. Não ia perder a viagem por
nada, e quem sabe o moleque não desembuchava algo relevante.
Desci apenas dois andares e dessa vez bati na porta com cautela, não queria
assustar ninguém. Uma mulher belíssima me recebeu - já era bem vivida, mas
ainda assim tinha um lindo rosto... Seu corpo mantinha lindas curvas, apesar de
leves excessos localizados. Comecei olhando de baixo pra cima, não pude me
conter. A mulher ficou constrangida - então aproveitei para perguntar enquanto
mostrava o distintivo:
- “Eu sou policial, me chamo Wagner e gostaria de fazer umas perguntas para o
Vinicius... Ele está aí?”
A mulher surpresa, me respondeu:
- “Meu filho fez algo?”
Acalmando a situação, expliquei que eram apenas algumas perguntas, nada
muito sério. Os seus cabelos eram longos e tingidos de loiro - seus seios eram
fartos e com uma leve caída - ela era a perfeição única de um artista. Enquanto me
explicava que seu filho era um menino bom, eu não conseguia tirar os olhos de
seus seios.
Vinicius tinha apenas quinze anos... Será que a velha estava falando sério sobre
seu neto ter se envolvido com Angélica? Provavelmente ela curtia novinhos.
Precisava falar com o moleque, urgente.
A mãe do garoto se chamava Tábata - e ela me garantiu que seu filho estaria em
casa mais tarde... Agradeci o tempo concedido e falei que voltaria no dia
seguinte... Fiquei pensando o resto do dia nela, fiquei excitado, ela era nora
daquela velha e seu marido morreu fazendo um assalto há uns quatro anos - eu
nunca o conheci, mas esse é o fim de muitos homens... Mortos por homens de
farda.
A estaca ainda era zero, Joel parecia ser o centro de tudo na minha mente...
Entretanto, eu precisava de bons motivos e barganhas para entrar nos becos, senão
o próximo velório seria o meu.
Fui para o banho e bati uma punheta pensando na Tábata... Quando terminei,
fiquei deprimido. Fazia tempo que eu não tinha uma foda decente...
Saindo do banheiro, minha gatinha Debra ficou me encarando - provável que o
pote de ração estivesse vazio, mas seu olhar inquisidor me fez lembrar uma velha
amiga jornalista (longa história).
Vesti uma bermuda, abri uma cerveja e percebi que nunca tinha me sentido tão
obstinado em resolver um caso - talvez eu tivesse encontrado o passaporte para a
redenção aos céus.
4.

Chovia bastante, as ruas estavam escuras e essa escuridão sempre vinha


acompanhada de perigo. Seus olhos precisam estar bem abertos, pois um detalhe
ignorado será sua passagem para o inferno. Beatriz estaria aqui em breve após a
ligação que fiz ontem à noite, ela deve estar pensando que inventei algum pretexto
para revê-la. Pedi para me encontrar na Paróquia do Igrejão, à noite. Tínhamos
nos conhecido ali mesmo, num casamento de amigos em comum e desde então eu
nunca mais tinha pisado numa igreja.
A missa começaria em uma hora e teríamos tempo suficiente para conversar.
Ela se atrasou um pouco, eu estava exalando álcool, tinha passado o dia bebendo e
jogando sinuca; sorrateiramente ela chegou, sentando ao meu lado no último
banco da igreja - quase me assustei, mas é impossível isso acontecer, pois ela
continuava tão linda quanto da última vez - com seus trejeitos de observadora.
Senti falta do passado, nossa, o quão cabeça dura ainda sou... Mas duvido muito
que ela sinta falta também, afinal, eu sou e sempre serei um babaca.
Apenas o padre estava na paróquia, nos ignorou por completo, e também
parecia ocupado demais... Provavelmente elaborando um novo roteiro para seus
fiéis ou então qual próximo posto de gasolina ele iria descomungar. O último
posto explodiu - outra longa história.
- “Você está ótimo!” - Beatriz afirmou ironicamente.
Apenas ri enquanto discordava, balançando a cabeça... Ela também continuava
sarcástica e com o humor depreciativo - então no mesmo tom, ela acrescentou:
- “Até estranhei quando me ligou, deve estar precisando mesmo! Como foi que
nos chamou há dois anos, naquele caso de estupro?”
- “Jornalistas são pragas amaldiçoadas!”, respondi com desdém.
- “Você sabe que eu não falava de você, certo?”, complementei.
Beatriz tinha personalidade forte e não suportava a minha opinião sobre sua
profissão. Lógico que eu não a enquadrava nessa escória.
- “Aquele caso quase custou meu emprego, Bia.”
- “Você sabe estragar as coisas muito bem, sozinho! Do que você precisa?”
Ela não parava de balançar a perna, estava com pressa e incomodada com a
minha presença.
- “Só não vai me chamar para ver outro filme coreano no cinema, pelo amor de
Deus!” – Acrescentou com deboche.
- “Sem cinemas desta vez.”
Expliquei sobre o assassinato de Angélica, disse que as informações foram
abafadas, nenhum jornal falou nada e a polícia fez descaso - comentei também
sobre o Estranho.
- “O que você quer eu faça? O delegado é seu amigo, devia falar com ele...”
- “Sabe que não é simples assim!” Ela suspirou:
- “Tá, esse Estranho aí, sabe o nome dele?”
- “Joel, mas não sei o sobrenome...” – Respondi ofegante.
- “Não vai ser fácil, Wagner... É bem alta a chance de ter muita sujeira
envolvendo pessoas que você conhece.”
- “Sim, sei.” – Respondi seco.
Nunca é fácil.
- “Tá disposto mesmo?” – Ela alertou.
- “Sim, mas apenas pesquise, e o que você descobrir fale somente comigo. Você
entendeu, Beatriz?” – Afirmei em tom brando, olhando seriamente nos seus olhos.
Suspirando novamente, ela olhou para baixo e concordou. Já sabia que ela ia
tornar o caso para si, mas Beatriz nunca me deixou na mão, era uma das poucas
pessoas que eu podia confiar...
É como dizem por aí, já havíamos comido um saco de sal juntos...
Dividi mais algumas informações que eu sabia... Ele havia estudado comigo e
repetiu três vezes a mesma série - não devia haver muitos com esse perfil. A escola
era o Marechal Bernardo, antigamente considerada umas das melhores da região
em ensino, mas decaiu juntamente com os alunos.
Naquela época o Estranho era o único com um histórico perturbador - os
meninos contavam histórias de quando ele enfiou um lápis na cabeça do zelador
em outro colégio, nunca soube se era verdade, mas jamais desconfio de histórias,
sempre há aspectos verdadeiros em alguma parte delas... Se for uma verdade, este
ocorrido ajudaria a descobrir mais sobre ele.
Na despedida abracei-a bem apertado, ela retribuiu com um carinho singular
que somente ela possuía dentre as mulheres desse mundo miserável. Levantando-
se do banco para ir embora, olhou para mim com a guarda abaixada desta vez e
disse sorrindo:
- “Da próxima vez que nos virmos, toma um banho antes... Sabe? Não vai te
fazer mal!”
Apenas ri e fiquei observando-a até onde minhas vistas alcançavam, até que ela
sumira por completo.
O plano era voltar direto para o bar, uma cadeira vazia me aguardava... Ainda
pude ver Beatriz saindo num Range Rover verde fosco... Pelo visto o jornalismo
dava mais dinheiro do que investigação criminal. Eu até tentei continuar na igreja
por mais alguns minutos e quis lembrar-me de como era fazer uma prece... O
problema é que eu nunca fui bom nisso, minha mãezinha que era. O padre me
olhava com desdém, fumava igual uma caipora e se achava santo... Mas não me
abalava, sabia que ia encontrá-lo no inferno... Então saí da paróquia, e enquanto
eu cruzava o portão da igreja, o carrinho de pipoca estava na porta a todo vapor -
era somente por isso que eu gostava de ir à missa. Fiéis passavam, notei mais
olhares, e desta vez eram de pena - como se eu carregasse uma placa dizendo:
“CONDENADO”.
Esperei o motor do meu Voyage aquecer e fui pra bem longe dali..
5.

A ressaca física me atormentava na manhã seguinte, mas não existe nada pior
do que a ressaca moral - é uma vozinha estridente de um homem pequenino
vivendo dentro da sua cabeça, lhe dizendo coisas que fazem você se sentir um lixo,
fazendo você perceber que está destruindo sua própria vida.
O delegado Frank me chamou cedinho para a sua sala...
- “Wagner, que porra você tava fazendo nos últimos dias?”
- “Meu trabalho!” - respondi sarcástico.
- “Seu trabalho porra nenhuma! Você tá é bebendo e fazendo perguntas sobre a
filha do cabeleireiro!”
O delegado ficava puto por qualquer coisa, principalmente quando não
acatavam suas instruções - pelo jeito ele queria que eu fizesse vista grossa.
Enquanto ele gritava, sua enorme barriga esbarrava na mesa - não falei uma
palavra, então ele exclamou:
- “Mano, é melhor você esquecer isso, alguma vez eu já deixei você se foder
nesse departamento?”
- “Não.” – Respondi seco.
- “Vai por mim, deixa essa merda pra lá... Teve um assalto na Avenida Maria
Coelho, em um depósito, vai lá com o novato e depois tira uma folguinha...
Esquece essa porra, beleza?”
Não respondi.
- “Porra, Wagner! Tu sabe que é meu parceiro! Não me fode, deixa que eu
resolvo as coisas. Beleza?”
Assenti com a cabeça - ele não gostou da minha reação.
Pelo visto eu estava cutucando o cocô no lugar certinho, pois se Frank sabia
das minhas visitinhas ao bairro, no mínimo existe alguém me observando... Será
que é o Joel?
Cresci nas ruas com o Frank, é meu amigo de infância, mas nossos caminhos
foram se separando ao longo dos anos... Quanto maior o cargo na polícia, maior é
a complexidade e os riscos. Você fica até o pescoço nos esquemas, mas acredito
que ele não me trairia.
Sempre me mantive afastado desse tipo de problema, mas não sou cauteloso,
pensava obsessivamente no que havia motivado aquele assassinato e quem o tinha
feito. Partindo da hipótese que foi o Estranho, poderia ter sido por traição ou
ciúmes? Se fosse isso, provavelmente encontraríamos dois corpos.
Existe a possibilidade de Angélica ter descoberto algo, mas tinha que ser muito
importante pra envolver a polícia e não sair nos jornais. Para isso deve existir
alguém bem influente na jogada.
Os únicos de São Luís que conseguiriam tal feito, seriam os membros da
família Rocha. São cascas grossas, de posses e muitos comércios no bairro. São
bem tradicionais - eles possuem uma padaria, um açougue, uma financiadora de
crédito e ainda um deles é vereador.
Dizem que o vereador vai ganhar até uma porra de uma rua com seu nome,
bem próximo da padaria, entre a Rua Jonas Camisa Nova e a Yoshimara
Minamoto. Apesar de eu não ver nenhuma conexão, confio muito no meu
instinto após longos anos de experiência.
Meu pressentimento apitava fortemente, mas eu não tinha certeza de nada.
Conectar os pontos é algo que exige dedicação e paciência. Minha única certeza
era de que não teria uma noite de sono decente enquanto não resolvesse esse
caso...
6.

Escrevi os nomes dos possíveis envolvidos num rótulo velho de uísque:


* Frank
* Joel (Estranho)
* Vinicius
* João
* Família Rocha
Reli o relatório da perícia com as poucas evidências do local do crime, não
tinha nada para ser aproveitado - mas guardei uma foto da vítima comigo. O caso
já tinha sido arquivado... Foi o crime que desistiram de solucionar mais rápido da
história.
Estava perto de completar uma semana desde o assassinato, então fui até o
depósito (onde havia ocorrido o assalto) com o Cristiano (detetive novato). Para
mim o rapaz não fedia e nem cheirava, mas fomos analisar o homicídio no recinto
relatado. A vítima era um dos assaltantes... O outro conseguiu fugir levando
consigo quinhentos reais em notas baixas. Agradeci ao oficial Fábio, policial
militar que atendeu o chamado mais cedo e ficou esperando por nós durante um
longo tempo até aparecermos.
Conversei com o dono do estabelecimento e deixei o novato cuidar do resto.
Nenhum civil se feriu. Fingia analisar o corpo morto, mas meus pensamentos
estavam distantes... Eu precisava tentar falar com o Vinicius, pois aproveitaria
também para dar uma espiada em sua mãe.
Voltando para delegacia, Cristiano me chamou para comermos alguma coisa -
o garoto é novo e quer causar uma boa impressão para veteranos como eu.
Entendo perfeitamente sobre politicagem, mas reconheço que ele tem um futuro
promissor.
Aproveitei para unir o útil ao agradável e levei o novato na padaria Tradição,
próximo ao nosso Distrito policial, fica na Rua Jonas Camisa Nova. Quem sabe eu
não encontre alguma migalha por lá. O açougue também ficava na mesma rua,
umas duas quadras dali. A padaria funcionava vinte e quatro horas, faça chuva ou
faça sol... Não importava nem mesmo o feriado do dia do trabalhador - a
escravidão foi abolida, mas foi substituída por outro nome: “sobrevivência”.
O x-bacon que eles fazem é sem dúvida o melhor da região, apesar de eu não
resistir a um misto-quente, que é quase uma ereção a cada mordida.
Acomodamo-nos em uma das mesas próximas à janela, pois eu gosto de estar
sempre atento aos movimentos das ruas. O garçom me olhava de uma forma
estranha, veio em minha direção me medindo dos pés à cabeça, não fiquei à
vontade, porém preferi acreditar que não passava de uma má impressão minha.
Pedi o bendito misto-quente acompanhado de um café, Cristiano pediu um suco
de laranja e um lanche integral com queijo branco e peito de peru.
- “É isso que vocês comem agora?”, perguntei desdenhando.
- “Preciso manter a forma parceiro, nunca se sabe quando vou precisar correr
pela minha vida!”, respondeu bem humorado.
- “É garoto... São os novos tempos... Mas você está perdendo o que tem de
melhor nesta vida!”, afirmei melancolicamente.
O garoto tinha boa aparência, havia acabado de se formar e já era a porra de
um detetive. Seu pai era aposentado pelo exército e conhecia bons contatos para
encaixar seu filho num escalão privilegiado, mas ele não tem ideia do buraco que
veio parar.
“Não pude deixar de notar os ânimos alterados com o chefe, hoje mais cedo, o
que tá rolando?”, Cristiano perguntou despretensiosamente.
- “Tá rolando porra nenhuma, novato.”
- “Desculpa aí.”
- “Caras como você não se importam com quem mora aqui no bairro, você em
breve será transferido para um bairro mais chique.” – Concluí com uma risada
sarcástica.
- “Você não sabe nada sobre mim, parceiro... Era sobre o assassinato recente,
certo?”
- “Como você sabe?” – Indaguei.
- “Ouvi nos corredores!”
- “Certo, era sobre isso mesmo!”
- “Você tem alguma pista quente?”
- “Não tenho!”, respondi enquanto terminava meu café.
Eu carregava uma foto de Angélica comigo e entreguei nas mãos do garoto. Ele
parecia ter caráter, era como olhar para um retrato meu de muito tempo atrás, e
para minha surpresa, o filho da puta conhecia ela de vista.
- “Eu vi essa guria faz duas semanas, quando fui fazer a entrevista no DP.”
- “Quê?”, perguntei surpreso, exaltando um pouco a voz.
- “Sim, certeza que a vi. Não se vê uma moça tão linda assim todos os dias... Ela
estava no banco de espera.”
- “Porra, novato! Você não ia inventar uma mentira dessa pra me agradar? Ia?”
- “Claro que não, porra! Certeza que era essa menina!”
- “É garoto, a coisa parece ser mais feia do que eu imaginava...”
- “Sei que sou novo, mas quero te ajudar nesse caso, Wagner.”
- “Já foi arquivado!”
- “Não importa.” – ele respondeu.
- “Pra mim esse é o certo a se fazer!” – completou obstinado. Mais uma vez me
vi naquele detetive e respondi cabisbaixo:
- “É garoto... É a coisa certa a se fazer!”
7.

A visita de Angélica na delegacia dias antes de ser assassinada me intrigou,


precisava confirmar se o Cristiano estava certo mesmo, pois se for verdade, Frank
sabe muito mais do que imagino. Fiquei mais eufórico, precisava ir checar no DP.
Chegando à recepção, olhei os registros de entrada e saída das últimas
semanas. Realmente tinha nos visitado - suponho que tinha intenções de efetuar
uma denúncia, mas ficou apenas com a intenção, pois por algum motivo que
desconheço, Angélica foi embora quinze minutos depois de chegar na delegacia -
talvez alguém tenha a convencido de ir embora, impedindo seja lá o que ela ia
fazer..
A denúncia poderia ser de agressão? Ameaças? Não sei ao certo, mas enquanto
Beatriz não me trouxer nenhuma novidade, estou atirando no escuro, trabalhando
com suposições... Não posso mais adiar a visita nos predinhos, preciso de detalhes
e algo me diz que desta vez vou encontrar.
O condomínio continuava tão desagradável quanto da última vez... Os mesmos
garotos estavam fumando maconha, parecia até um déjà vu... Mas eles eram assim,
fumavam o tempo todo.
Cheguei ao apartamento da Tábata e desta vez pensei que ninguém atenderia...
Fui insistente, até que um adolescente abriu a porta... Esbocei o meu melhor
sorriso e disse:
- “E aí, jovem... Sua mãe está em casa?”
Vinicius ficou desconfortável, pude perceber pelo seu olhar desconfiado. Era
minha chance de descobrir o que esse moleque sabia. Tábata me recebeu, estava
bem mais à vontade do que na minha visita anterior - usava uma camisola enorme,
bem folgada, provavelmente estava deitada antes de eu chegar. Segui o conselho de
Beatriz, tinha tomado um longo banho antes de ir. O moleque estava de cabeça
baixa, sentado ao meu lado. Fiquei quieto por alguns minutos, seria necessário
manipulá-lo de alguma forma, sendo assim, comecei a contar uma história:
- “Sabe... Quando eu era um pouco mais novo que você, eu entendia um
pouquinho sobre o mundo real... Eu não tinha a noção que as manchas roxas que
surgiam em minha mãe, eram algo fora do normal.” – disse serenamente.
Eu consegui fomentar a curiosidade dele - e aproveitei também para quebrar o
clima silencioso, interrompendo meu relato e olhando em direção à cozinha:
- “Tábata!”
- “Oi, quer algo?” – respondeu ainda da cozinha.
- “Um copo d’água, por gentileza.”
- “Como eu estava dizendo...” Ele continuava fisgado, aguardando o desfecho
do meu drama...
- “Eu descobri que as manchas roxas eram culpa do meu pai, que a espancava
todas às noites quando chegava bêbado.”
- “E aí?” – perguntou rapidamente.
- “Eu não fiz nada!”
Pairou um silêncio constrangedor.
- “Algumas pessoas queriam ajudar minha mãe, me faziam perguntas, mas eu
ficava sempre calado.” - acrescentei.
O silêncio foi interrompido com os passos de Tábata se aproximando com a
água...
- “Eu podia ter feito algo, mas hoje levo flores para ela, todos os anos no seu
aniversário, lá no Cemitério das Laranjas!”
Continuei calmo e sereno... Antigamente eu não conseguia falar facilmente
sobre a minha mãe. Tomei a água numa golada só e perguntei num tom
intimidador, sussurrando apenas para o garoto ouvir:
- “Você sabe que sua mãe corre perigo aqui, não sabe?” Ele sabe sobre você e a
Angélica! Não quer fazer algo a respeito?” - blefei com o garoto!
Vinicius ficou pálido... O fisguei, ele sabia de algo... Mas apesar do meu poder
de persuasão, ele não abria a boca, ficava me encarando com olhos de peixe, um
tipo de olhar que não suporto! Senti vontade de esfregar a cara dele no asfalto,
pois percebi que ele não falaria.
Me deixou de mãos atadas e puto de raiva! Esse maconheiro não quis abrir o
bico.
Agradeci a sua mãe por me receber novamente... Quando eu estava saindo do
condomínio, senti um calafrio, mas ignorei, não tinha alternativa para aquela
noite - somente um plano: ir direto para o bar e encher a cara enquanto aguardo
uma ligação de uma jornalista.
8.

Virando minha quarta dose no bar do Firmino, me sentia entediado - ele


lavava os poucos pratos sujos. Tocava uma música suave no ambiente - apenas
instrumental.
Haviam uns gatos pingados por lá... Senti um leve frio na barriga. Era uma
noite agradável e fresca, os últimos dias estavam mais frios.
A mesa de sinuca estava belíssima sem ninguém usufruindo de seu vigor.
Algum tempo depois olhei para a porta e um homem alto e bastante magro
entrou, usava uma regata vermelha, era possível ver os ossos das suas clavículas
desenhadas na pele, seu rosto era familiar, tinha uma expressão sinistra -
juntamente com os cabelos bagunçados.
Tinha uma blusa velha cinza amarrada na cintura com um nó frouxo - percebi
que haviam dois revólveres na cintura e aquele moletom era puro disfarce.
Sutilmente coloquei minha mão na coxa como se estivesse coçando.
Olhei diretamente nos olhos do homem e o reconheci, meu corpo congelou
por completo. Lentamente ele se aproximou, meio corcunda com um jeans bem
surrado, mas sua presença era imponente. Não movi um músculo. Minha mão
esquerda continuou no copo e a outra na perna. Sentou ao meu lado e pediu o
mesmo que eu bebia, fiquei atentamente observando seus movimentos. Notei que
todos tinham sumido do bar. Logo na entrada dois sujeitos estavam parados.
Será que era o meu fim? Finalmente eu o incomodei e ele veio pessoalmente
acabar comigo.
- “Quanto quer pra esquecer o que aconteceu com a vagabunda?” – sua voz era
grave, muito rouca, e ele olhava fixamente para o teto enquanto falava.
- “Não sei do que você tá falando, Joel!” - respondi calmamente.
Imediatamente ele virou para mim fixando seus olhos diretamente nos meus,
minhas pernas tremeram na hora. Quase ninguém sabe o nome dele, muito
menos a sua aparência.
- “Na verdade, Wagner... Hoje estou lhe retribuindo um favor...”
O Estranho também é bom de memória.
Uma vez o ajudei numa briga na escola, ele estava apanhando de três caras -
nunca curti injustiça, mesmo sabendo de sua fama, intervi - e pelo jeito, ele não
gosta de dever favores...
- “Você não me deve nada e eu não lhe devo nada.” – respondi liquidando o
último gole.
Tirei minha arma da cintura e coloquei no balcão, pedindo mais uma dose de
conhaque e torcendo que a bebida viesse acompanhada de sorte.
Tentei bancar o durão, mas temia qual seria seu próximo passo.
- “Certo... Você acha que eu não conheço todas as pessoas que você falou nos
últimos dias?”
Joel pareceu não dar a mínima para a arma no balcão, me olhava como se eu
não oferecesse perigo algum, então afirmei bem humorado:
- “Você fala até bem pra quem mora na favela, hein! Impressionante!”
O silêncio voltou a reinar naquele bar.
O Estranho levantou da cadeira puto comigo! Sem fazer um barulho sequer,
acompanhei os seus movimentos até a saída, pegando seu celular para fazer uma
ligação... Seus homens sumiram juntamente com ele. Claramente foi o primeiro
aviso oficial para encerrar a minha investigação.
Eu estava suando frio. Fiquei com medo das consequências do meu último
comentário. Aguardei a próxima hora bebendo e com o receio de que algo
aconteceria... Mas certamente continuar vivo naquela noite, foi muita sorte da
minha parte! Não sabia até quando isso duraria...
Estou no caminho certo, pois ele não costuma dar as caras desse jeito, fiquei
preocupado com a Beatriz, ele disse que sabia sobre todo mundo, mas acho que
ele não sabe dela, poderia ser um blefe, mas não tive tempo de pensar mais nada.
Meu telefone tocou. Era o Cristiano.
- “Que manda, novato?”
- “Tem um chamado aqui, acho que devíamos ir ver.”
- “Aonde? Porra!” - Pensei instantaneamente na Beatriz. Nunca me perdoaria se
algo acontecesse.
- “Na rua dos condomínios... Já tô quase chegando...”
- “Me espera antes de verificar, beleza?” - falei exaltado.
- “Ok!” – Cristiano respondeu.
Cheguei rápido. Era no condomínio que a velha e a Tábata moravam, minha
vista estava um pouco embaçada por causa da canosa, mas eu ainda estava na
jogada. Subi com cautela juntamente com o novato, o ocorrido era dentro do
apartamento “65”, um PM já estava no local, era o mesmo que estava no assalto
do depósito: Fábio. Aqui deve ser a região de atuação dele, e havia também mais
alguns xeretas que espiavam nos corredores, olhei para as escadas e a velha estava
chorando fumando um de seus cigarros. A queixa era de arrombamento e os
vizinhos escutaram dois disparos.
O cheiro de merda de cachorro misturado com cigarro estava insuportável no
apartamento, parecia impregnar até os meus pensamentos.
Entrei na cozinha e o cachorrinho da velhinha estava morto estirado no chão.
Quem entra na porra de um apartamento só pra matar um cachorro
inofensivo?
Tudo isso parecia coisa do Estranho, mandou matar o cachorro pra me dar
outro aviso?
Pior que a coitada da velha não sabe de porra nenhuma. É um maldito
desgraçado.
A boa notícia é que provavelmente ele deve pensar que a minha segunda visita
tenha sido para ver a velha novamente, não deve suspeitar do Vinícius... Assim
espero.
Conversei com a velha pra ver se ela tinha alguma novidade, mas ela não
conseguia nem falar, tadinha, o cachorrinho era sua única companhia. Saiu para
comprar cigarro, retornou e perdeu seu melhor amigo. Se ela estivesse em casa,
poderia ter sido ela.
Pensei na minha gatinha Debra, os seres humanos superam seus limites todos
os dias, fiquei bem triste pela Velha, me coloquei no lugar dela.
Quando eu estava partindo, notei que o Fábio me encarava demais, senti um
desconforto, estava começando a ficar com o pé atrás, ele tem atendido rápido
demais os chamados do bairro, fiquei encucado, mas agora precisava de um
descanso.
Eu estava podre por dentro, uma noite de sono decente vai resolver essa
questão.
Às vezes eu entendo porque as pessoas desistem de tudo, é um caminho bem
mais fácil do que viver nesse mundão, eu mesmo penso em desistir o tempo todo,
mas em contra partida sinto que ainda tenho alguma pendência com esse mundo.
9.

O cheiro dentro do carro estava insuportável. Dormi a noite inteira no banco


da frente, havia vômito no passageiro, e uma garrafa de vodca vazia. Não tinha
condições alguma de abrir a garagem e estacionar. Fiquei por ali mesmo. Mais
uma ressaca violenta. Tirei duas semanas de folga do trabalho, desde o dia que
mataram o cachorro da velha. Os dias estavam voando.
Todo mundo saiu ganhando: O Estranho que não me viu mais por aí sendo
curioso, e eu apenas bebi por todos os bares que conheço, foi a minha forma de
dizer que desisti de tudo.
A parte fácil foi conseguir essas férias, troquei ideia com o Frank e ele cedeu
sem pestanejar. É a segunda vez que eu cedo ao vício maldito do álcool por
completo, a primeira vez foi quando minha mãe morreu.
Pelo menos estou sendo o cretino que não se importa com ninguém, é o que a
maioria já pensa de mim. Estou cada dia menos lúcido. Nunca houve justiça em
periferias e não serei eu que a proclamarei nestas ruas imundas. O Estranho
venceu.
Meu corpo estava moído, os vidros do carro estavam totalmente embaçados,
quando dei uma leve esfregada para espiar o mundo, Cristiano estava no portão
cabisbaixo, provavelmente havia tocado a campainha e me aguardava.
O que o novato queria comigo?
Já disse pra ele que desisti dessa merda e que ele deveria fazer o mesmo.
Uma teoria minha: deve existir algo extra-sensorial nas pessoas que sempre as
alertam de que estão sendo observadas.
O filho da mãe virou-se rapidamente olhando para o meu Voyage estacionado,
me agachei instantaneamente. Cretino persistente. Escutei batidas no meu carro
acompanhado de uma voz abafada:
- “Wagner... Wagner... Sei que você tá aí!”
Comecei a girar a manivela para abaixar o vidro, conforme descia, eu preparava
a minha melhor expressão de simpatia.
- “Fala, novato... O que você quer?” – questionei com antipatia.
- “Precisamos conversar...”
O interrompi dizendo seriamente:
- “Calma, calma, me deixa sair daqui primeiro e vamos lá pra dentro!”
Entramos em casa, apesar de ser desorganizada, era pelo menos habitável. Pedi
para ele esperar, eu precisava de um banho, liguei a TV e fui correndo para o
banheiro, vomitei um pouco mais. Foi uma ducha rápida, só para lavar a alma.
Voltei pra sala e chamei Cristiano na cozinha.
- “Quer café?” – perguntei enrubescido.
- “Sim!”
- “É o seguinte, é descafeinado... O preferido da minha mãe e somente em casa
que bebo assim... Um velho hábito.”, afirmei olhando para pia enquanto eu coava
o café distraído.
- “Sem problemas, Wagner!”
Imaginava que apesar de me conhecer há pouco tempo, ele ia começar com
discursos de incentivo pra eu voltar ao trabalho e que não devia desistir de resolver
o caso, ou falaria alguma baboseira de que preciso acreditar sempre no ser
humano, blá e blá, mas me surpreendi com a sua objetividade, me contou algo
preocupante, fiquei tão ocupado com a cachaça que não lembrei que a Beatriz iria
me procurar, demorou tanto que achei que ela havia desistido, porém me
procurou, tinha mais de dez ligações perdidas dela nas últimas duas semanas.
- “Uma amiga sua me procurou esses dias, a jornalista, sabe?”
Apenas assenti com a cabeça.
- “Acabei conversando com ela, fomos almoçar algumas vezes, ela disse ter
vindo aqui, mas ninguém atendeu, então ela me entregou uns arquivos que você
tinha pedido... E como somos parceiros, não vimos problema algum!” – falou
pausadamente.
- “Entendo... O Frank te viu com ela?”
- “Não, ela não foi no DP...”
- “Certo, eu temo pela vida dela, Cristiano, o cachorro da velha foi um sinal...
Aquilo foi culpa minha! Eles estão de olho em mim, e agora com certeza estão em
você.”
- “Eu quero te ajudar nessa, dá uma olhada nesses papéis que ela achou, a
merda parece ser maior do que você pensava!” – afirmou entusiasmado.
Havia uns registros escolares do Joel com notas, faltas e assinaturas de reuniões,
mas nos documentos, os nomes dos seus pais estavam ilegíveis, o máximo que
sabíamos era onde estudou, mas com quem foi criado estava oculto. A única
exceção dos registros daqueles papéis, em uma das reuniões de pais, estava a
assinatura de Roberto Rocha em letras garrafais, nada mais que o patriarca da
família Rocha.
Foi um grande nome do nosso bairro, ajudou na verba da reforma dos colégios
do bairro há dez anos, já foi vereador, sempre esteve envolvido em todos os
projetos da região, teve a causa de sua morte por parada cardíaca e deixou os seus
negócios para os dois filhos gerenciarem, além disso doou uma verba para
financiar a próxima campanha de seu sobrinho Delson Perrupato Rocha, nosso
querido vereador.
Roberto Rocha é quase um ídolo para muita gente aqui no bairro, difícil falar
mal dele sem arrumar alguma confusão.
Beatriz nunca falhou comigo, estas informações reacendiam que o crime tinha
mais conexões do que eu pensava, que porra que você sabia Angélica? Onde a
família Rocha se encaixa com o Estranho? Ter novas perguntas num caso é um
bom recomeço. Preciso encontrar uma chave para conectar tudo.
Despertei novamente.
- “Tem alguma coisa muito errada nisso tudo.” – Cris falou empolgado.
- “Tem sim, novato.”
Sabia que estava sendo observado, mas precisava tomar uma decisão difícil,
seguir meu velho amigo Frank.
- “Tá, Wagner... Começamos por onde então?”
- “Descobre pra mim tudo sobre o vereador, por onde ele tem feito suas visitas,
enquanto vou espiar alguém por alguns dias...”
- “Quem?”
- “Por enquanto, novato, é melhor você não saber...”
- “Mas e o Estranho? Se ele tá te seguindo, vai descobrir, não acha?” –
perguntou afobado, com bastante preocupação.
- “Relaxa, eu tenho um plano para despistá-lo...”
Comecei a calçar minhas lindas botas, vesti um casaco e acrescentei:
- “Preciso de outro favor, novato! Tem um cara na banca de jornal, perto do
supermercado Riviera... A banca fica na praça mesmo, ele sabe muita coisa do
nosso bairro.”
- “Qual o nome dele?”
- “Todo mundo chama ele de Baixinho, mas ele é alto, tá sempre de boné, vai
te olhar feio pra caralho, mas não passa disso.”
- “Beleza. O que eu falo pra ele?”
- “Diz que veio cobrar um favor pra mim, mas é importante que você compre a
porra do jornal e saia com ele, e aí quem souber que você é policial e te ver saindo
de lá, vai pensar que você foi só saber do arrego do jogo do bicho, vão achar
normal você querer fazer parte...”
- “Que porra, hein, Wagner! Você faz parte disso também?”
- “Não é fácil, novato, sobreviver aqui, mas já não faço mais, quero que
pergunte do policial Fábio e sobre os filhos do Roberto Rocha.”
Chovia muito. Cristiano ia embora, então ressaltei segurando em seu braço
abruptamente:
- “Toma cuidado nas ruas... Aqui não é Jardins, é São Luís, os avisos de área de
risco nos Ubers não aparecem à toa.”
- “Certo.”
- “Não confie em ninguém e não procure mais a Beatriz! Não quero envolvê-la
mais nisso, beleza?”
Um silêncio constrangedor pairou no ar, achei esquisito.
- “Estamos entendidos?” – perguntei rispidamente.
Apenas balançou a cabeça concordando, soltei o seu braço e fiquei o
observando entrar no seu carro.
Não gosto quando só balançam a cabeça em resposta, pois quando faço isso,
normalmente é porque não vou seguir o combinado.
A rua estava mal iluminada, teve queda de energia de novo, mas somente nos
postes de luz das ruas. Notei dois garotos suspeitos encostados no muro do outro
lado da minha casa, pareciam me vigiar, fingi não os notar e saquei meu oitão frio,
um deles arregalou os olhos e partiram em passos rápidos, sempre carrego minha
arma fria para emergência.
Entrei no meu carro, dei a partida e fui para o bar do Firmino. Estava fechado.
Um homem decente não pode se embebedar por aqui?
Passei no posto 24 horas no fim da avenida, comprei um fardo de cerveja e
uma garrafa de vodca de sabor kiwi, a vodca foi para me convencer de que estava
pegando leve, nas últimas semanas tinha pegado pesado com pinga.
Havia um Fusca estacionado no posto com uns caras encostados, todos com a
metade da minha idade, me aproximei e um deles tinha traços orientais, cheguei
falando:
- “E aí, Japa! Qual o rolê?”
- “Tem rolê nenhum aqui não, mano!” – respondeu ríspido.
Um rapaz negro, alto, com um black power maneiro, estava de costas, se virou
quando me ouviu, era o Buiú, maconheiro sem vergonha, meu informante na
região, mas ninguém sabia disso, acabaria com a reputação dele. Sabia que o Fusca
era familiar.
- “O que você quer com a gente, tio?” – um baixinho folgado perguntou me
intimidando.
- “Deixa o cara em paz, Catatau!” – Buiú afirmou, afastando ele de mim.
Comecei a rir, e abri uma latinha.
- “Só queria beber uma com vocês!” – afirmei despretensioso. O Buiú
estranhou, mas tinha rabo preso.
- “Eu conheço ele, rapá! Gente fina!”
- “Não gostei da forma que você chegou não, hein, mano!” - Japa afirmou!
- “Releva, brother! Ele tem goró!” – Catatau afirmou.
Não queria arrumar problemas pra aqueles moleques, precisava apenas me
sentir mais novo, tomar umas sem responsabilidade, como nos velhos tempos.
Queria esquecer tudo o que estava rolando. Ri bastante nessa madruga, eram bons
rapazes. Cheguei em casa quase três da manhã, a garrafa que comprei vim
tomando sozinho no caminho.
O dia seguinte seria o dia do arrependimento.
10.

Na manhã seguinte, acordei bem cedinho, não dormi praticamente nada, fui
direto para um mecânico da região, em frente à Fundação Julita, a mecânica do
Elvis era tradicional, você podia escutar de longe algum riff de Beatles, Rolling
Stones, às vezes até The Doors, suas costeletas eram um charme junto com seu
rabo de cavalo, colega de longa data, tratava bem minha caranga, paguei duzentos
conto pra ele arrumar um compadre conhecido para passear com meu carro pelo
bairro, passei as rotas, lugares e horas pra parar, sempre de vidros fechados e deixar
na minha casa no anoitecer. Isso deixaria as coisas mais confusas e facilitaria
minha busca por informações sem deixar muitos rastros, ele nunca fazia
perguntas.
Fui a pé pro DP, meu suor fedia a álcool, minha cabeça girava, eu estava mal-
acostumado, Cristiano ainda não havia chegado, não me sentia seguro ali, todos
pareciam estar contra mim.
Ninguém me esperava no trabalho, ainda tinha mais uma semana de folga e
provavelmente minha cara era de algum artista circense otário, os babacas do
escritório riam ou ficavam me encarando, perderam o cu na minha cara.
Desde que saí de todos os esquemas da polícia, passaram a me odiar, o único a
me respeitar e tolerar aqui neste departamento foi o Frank. Chamavam-me de
queridinho do chefe. Isso irritava ainda mais esses merdinhas daqui. Eu era o
último da lista do churrasco da rapaziada.
Frank veio ao longe exibindo suas banhas ridículas, seu olhar prepotente, como
se fosse dono de todos nós e provavelmente era, mas eu o respeitava... Quase
morreu por mim uma vez, quando éramos parceiros.
Janto no Natal com sua família todos os anos, sou padrinho de seu filho mais
velho, mas o que nos distanciou foi a sua determinação em conseguir fazer o que
era necessário para alcançar e manter o poder, diferente de mim que mesmo na
corrupção, possuía meus próprios códigos de conduta, desisti antes que fosse tarde
demais para mim e Frank ainda manteve meu emprego contra a vontade de todos,
desde que eu nunca atrapalhasse nada, mas muitas vezes ser honesto é viver na
sombra da omissão, é ficar calado, tornar-se cego, eu estava cansado de fazer nada,
apesar dos nossos ideais serem completamente diferentes, não posso ser ingrato,
tornei-me detetive graças a ele.
- “Fala, Wagner!”
- “Fala, chefe. Beleza?”
- “Não era pra você tá aqui hoje, porra!”
- “Tô na boa, Frank!”
- “Agora sim, esse é o Wagner que eu gosto! Tá a fim de almoçar hoje?” –
perguntou empolgado.
Aquela empolgação toda costuma vir acompanhada de um convite,
provavelmente algo de bom tinha acontecido, era difícil vê-lo de bom humor.
- “Vamos, chefe!”
- “Boa, Wagner! Como nos velhos tempos!” - afirmou eufórico.
Nunca seria como nos velhos tempos. Nunca. Talvez a sorte esteja do meu lado,
era a minha chance de tentar descobrir alguma coisa. Fomos para a Padaria
Tradição, servia um prato feito honesto, fiquei cismado, mas mantive as
aparências para evitar suspeita, nessa padaria eu precisava pisar em ovos até o
novato trazer algo, se a minha teoria sobre Frank de que ele possivelmente está
envolvido no assassinato, isso significaria que um deslize meu, ele perceberia que
ainda estou até o pescoço no caso.
A padaria estava lotada, vi Frank cumprimentar Luís Rocha discretamente atrás
do balcão (um dos filhos do falecido Roberto, ele estava lá calmo e sereno, não sei
quase nada sobre ele), na verdade ele era bem discreto, cuidava da padaria e do
açougue, diferente de Alberto Rocha, o caçula, que era uma espécie de celebridade
do bairro assim como seu pai foi. O atual “relações públicas” da família.
Dificilmente via o Alberto na região, pois estava sempre envolvido com sua
financiadora de crédito, era um homem de negócios, mas desta vez ele também
estava na padaria com seu terno enxuto e de luxo, Frank parecia íntimo de
Alberto, se cumprimentaram com um beijo no rosto, por algum motivo tive a
impressão de que Luís parecia se incomodar ao ver os dois se cumprimentando,
fiquei na minha, não podia sustentar essa minha impressão baseada no que vi.
O almoço foi até bacana, mas fiquei intrigado, pois Frank nitidamente estava
buscando uma reaproximação. Sentamos próximo à janela, achei curioso o certo
senso de urgência em que Luís ordenava para os garçons nos atenderem, era como
se houvesse compensando algo e quisesse amenizar alguma situação desconfortável
entre eles, não havia como ter certeza, mas era uma intuição muito forte, e eu
sempre dei bola pra esse tipo de sensibilidade, nunca tinha falhado. Aquela
empolgação não estava mais estampada em seu rosto. Frank evitava olhar para
Luís, seu olhar estava perdido na janela, não disse nada consistente, comentou por
cima que queria aposentar da polícia, que estava tentando montar um próprio
negócio. Tentei saber mais sobre, mas ele não cedeu, disse que não gostava de falar
sobre nada que ainda não estava definido, traria má sorte. O resto foi protocolo,
mera casualidade. Comemos. Falamos de futebol, mulheres, e rimos bastante do
passado, mas não descobri bulhufas.
11.

Mais tarde, na minha mesa, havia um bilhete: “Me encontra na rua de trás”.
Deduzi que fosse o Cris, Frank ainda estava trabalhando em sua sala, saí
sorrateiramente, e dei a volta no quarteirão. O cigarro ainda vai me matar, cheguei
ofegante e ele estava me esperando lá na pracinha ao lado do DP, sentado na pista
de skate.
- “Cadê seu carro?” – Cris perguntou surpreso.
- “Eu te disse que ia dar um jeito.”
- “Descobri algumas coisas...” – afirmou me entregando uma foto.
- “Não sei direito a data, mas esta foto é de quando a padaria foi inaugurada!” -
ele acrescentou.
Na foto estava Roberto abraçado com Frank, Delson e logo ao lado Luís e
Alberto. O novato se empolgou enquanto me falava suas descobertas, descobriu
também, que Delson, era um frequentador ativo na favela do Celeste; essa é maior
comunidade do nosso bairro, onde o Estranho costuma se esconder e comandar
tudo.
Havia alguns maconheiros perdidos nos olhando desconfiado da quadrinha,
fingi não vê-los, mas eles podiam ser caguetas, todo cuidado é pouco.
Há uma frequência de eventos beneficentes liderados por ele, além de possuir
várias fotos com os moradores, muitas ruas dos becos foram asfaltadas por ele,
criou até alguns comércios dentro da comunidade, é um político querido por
todos.
Outra informação importante era a obra que estava sendo conduzida. O
projeto era uma nova praça de lazer, utilizaria um terreno abandonado no São
Luís há muitos anos que já tinha sido invadido muitas vezes para construção de
novas casas, mas sempre expulsavam os invasores. Essa praça garantiria sua
reeleição. Sem contar que a Pracinha ao lado do DP era quase uma nova
Cracolândia..
- “Certo, novato! E a conversa com o Baixinho, foi tranquila?” – questionei.
- “Foi sim.” – Cris respondeu evasivo.
- “Mas e essas fotos todas, conseguiu com ele também?”
- “Consegui sim.” – ainda evasivo.
Estranhei, o filho da puta falou com mais alguém e está escondendo.
- “O que mais ele te contou?”
- “Ele falou algo importante sobre o Alberto Rocha, parece que ele tá querendo
ir embora do país e vender a parte dele, mas o Luís parece não aceitar bem isso,
dizem que eles se desentenderam.” – Cris afirmou.
- “Que loucura, será que é verdade mesmo?”
- “É o que as ruas estão comentando.”
- “O Baixinho te garantiu isso?”
- “Sim, Wagner.”
- “E o PM?”
- “Não falou nada sobre ele, mas eu mesmo fiz perguntas pra algumas pessoas
dos prédios e disseram que a viatura dele estava estacionada na rua antes do
disparo, mas não há provas.”
- “Esse filho da puta do Fábio tá devendo, eu sinto isso, não gostei do jeito que
ele me olhou naquele dia.”
O novato tinha feito um bom trabalho, apesar da minha cisma, então ele
completou:
- “Além da financiadora, existe mais um negócio no nome da família Rocha e
possui sócios anônimos, é uma imobiliária, há muitas casas de aluguel associadas
no bairro inteiro, mas não descobri quem toca esse negócio atualmente.”
- “Os filhos da puta tem fonte de dinheiro que não acaba mais”, ponderei.
As coisas estavam cada vez mais complexas.
- “Eu vou falar com a Beatriz e preciso que você siga o Fábio, mas não faça nada
sozinho, qualquer problema me chama.”
Quanto mais você investiga, mais perdido fica, mais detalhes, novas pistas, era
como um desfiladeiro sem fim, nada de desfecho, apenas mais pontas soltas, o
chão parecia estar cada vez mais distante. Não é novidade que o tráfico de drogas
corre livremente pelas ruas e pelas favelas, e eu sei muito bem que uma parte da
grana vai para o Frank, era a única conexão direta com o nosso departamento.
Não queria procurar Beatriz novamente, mas agora ela era minha única alternativa
em descobrir quem cuida da imobiliária, mais sobre a construção da praça e
alguma informação sobre Alberto.
Falei da Beatriz e o novato desviou o olhar.
- “Certo! Qualquer coisa me avise também, Wagner.” – ele respondeu
rapidamente.
- “Fica tranquilo! Sou cobra criada.” – resmunguei.
Tirei o resto do dia de folga, dessa vez fui direto para o Espetinho, lugar de
família, aconchegante, não pode jogar baralho nas mesas, peguei um Uber até lá, o
motorista não falou muito, achei melhor assim.
Tomei um caldo, joguei conversa fora com o dono, sorrisão amarelo, fazia jus
ao ditado que os olhos do dono engordam o porco. Tomei umas geladas, ouvi as
mesmas músicas de sempre, não importava quanto tempo eu ficava sem ir lá, a
sequência da trilha sonora era a mesma, enchi o bucho e fui pra casa na
caminhada.
A primeira coisa que fiz quando cheguei foi abrir a geladeira, peguei uma
latinha bem gelada, liguei a televisão e sentei no sofá, bastou me aconchegar, ouvi
uns miados, alguém estava com fome, levantei praguejando, gata do caralho, come
mais que eu, aproveitei pra pegar mais uma latinha, eu não ia levantar duas vezes.
Como previ, não levantei novamente e apaguei no sofá com a segunda latinha
quase cheia na mão.
12.

Listei todas as peças que tenho na minha cabeça:


1. Luís cuida da padaria e do açougue;
2. Alberto da Financiadora de Crédito e está querendo vender sua parte;
3. Existe uma imobiliária sendo administrada por alguém que ainda não
sabemos;
4. Delson Perrupato Rocha está cuidando do projeto da Nova Praça;
5. Alguém da família Rocha provavelmente é envolvido com o Estranho, que
teve a lista de reunião de pais assinada pelo falecido Roberto.
6. Angélica foi no DP antes de morrer e o Frank deve saber sobre isso;
7. Vinicius, amigo de Angélica;
Acho que tenho quase todas as peças, mas ainda não consigo descobrir as
entrelinhas. Tirei a Velha das minhas pistas e o PM Fábio é uma questão de eu
não bater com o santo dele, não tenho motivos concretos para incluí-lo na minha
lista... Ainda.
Liguei para Beatriz, a coloquei na mesma página, falei sobre a minha
desconfiança do envolvimento de Frank ser mais grave do que as falcatruas
habituais dele. Tive a sensação de que ela já sabia de tudo, não demonstrou
surpresas.
Meu instinto apitou de novo.
- “Até que você não é tão burrinho!” – ela ironizou.
- “Você continua afiada. Se você vir aqui em casa, eu tomo até um banho!”
- “Não mistura as coisas, Wagner, você já teve sua chance...”
Pisei na bola com ela muitas vezes, acho que ela já me amou um dia, mas com
o tempo percebeu a merda que era estar comigo, mas sei que vai me ajudar, é uma
amiga leal. Pediu alguns dias para investigar novamente, combinamos de nos
encontrar outra vez no Igrejão quando ela terminasse.
Eu tinha alguns dias pra ficar bem bêbado por onde eu quisesse, peguei um
ônibus e logo lembrei porque eu detestava usar o transporte público, quem cria
esses modelos de ônibus provavelmente nunca precisou usar um. Passei no
Terminal João Dias, tem um quiosque com umas meninas muito simpáticas que
vendem o melhor duplo da cidade, com oito conto você saboreia um hambúrguer
decente, bate qualquer uma dessas grandes redes de fast food, e não é preciso ser
palhaço ou rei pra comer, acho que o segredo delas é o carinho que me atendem.
Sempre educadas e sorrindo, atendem a todos assim.
Comprei a ração da Debra, a coitada estava no cio, precisava ser castrada,
emitia ruídos por toda a casa, sosseguei um pouco em casa, tentei ver televisão, era
algum programa idiota, daqueles em que um homem declara amores para sua
amiga de infância. Odeio amores de infância, Televisão sempre foi um tédio.
Então coloquei um filme coreano, onde uma criada tenta enganar outra mulher
para casar com um charlatão, mas elas se apaixonam, achei intrigante, gosto dos
orientais, assisti o filme inteiro bebendo praticamente um engradado de cerveja e
ainda não eram cinco da tarde...
Anoiteceu e parece que as formigas invadiram minha casa, não é possível ficar
parado em nenhum lugar sequer, dizem que ver formigas também pode significar
solidão, vi isso em algum filme, o fato era: as ruas me chamavam, eu podia escutar
ecos soando meu nome, eu tinha que ir para o bar.
Desta vez fui para o bar do Ivan, é bom mudar os horizontes, enjoa olhar pros
mesmos bêbados de costume. Além disso sempre há uma chance de alguma
mulher nova pintar na área. O nome do Ivan era na verdade Ivandoilson, um
homem negro de muita boa índole, tinha o negócio há anos no bairro, não
deixava qualquer um frequentar, respeitado na comunidade, torcedor fanático do
Santos, eu nunca fui de futebol, mas meu pai era corintiano, assistia alguns jogos
para me misturar com a galera aqui da vila.
Sentei numa das mesas de madeira, comecei a beber algumas latinhas, as
músicas eram todas tiradas das cabeças mais pervertidas dos jovens de hoje em dia,
mas dessa vez não me incomodou, eu estava realmente me desligando um pouco
dessa loucura toda chamada mundo... Eu ia beber a noite toda até meu corpo não
aguentar mais ou a noite fazer sentido.
13.

Bom ânimo pela manhã nas pessoas devia ser crime. Bom humor de manhã é
doença. Passei a noite podre de bêbado, mas sem pregar os olhos, nem a cana me
derrubou. A privada foi a primeira coisa que eu abracei logo pela manhã, Debra
lambia o próprio cu enquanto eu soltava toda bílis existente no planeta. Tomei um
banho frio para tentar me recompor.
Quando saí de casa, lá estava ela, a minha vizinha, com aquele sorriso
insuportável grudado no rosto, a filha da puta está sempre sorridente. Quanto
maior minha ressaca, mais largo o sorriso dela parece ser. Sempre está na rua pra
me desejar bom dia. Vizinha do caralho. Algo nessa mulher nunca vai fazer
sentido para mim, gosto de enfatizar: meu instinto tem me sustentado há anos,
mas ela não é problema meu.
Minha cabeça não anda bem também, esse sintoma é graças a quantidade de
tempo que não fodo, quando se passa muito tempo sem alguém você enlouquece,
mas se passar tempo demais com alguém você também enlouquece.
O Ivan não costuma fechar às quatro da manhã, mas desta vez fechou,
normalmente, a única força que me impulsiona a parar, é o bar fechando, Ivan
fodeu comigo, não conseguia ir embora, algo me impedia, sentia que se saísse de
lá, perderia algo, lembro de dançar com uma coroa de pernas bonitas, não lembro
do rosto dela, acordei sozinho e com as bolas ainda maiores que ontem, com
certeza não aconteceu nada.
O banho foi como entrar numa câmara de reabilitação, fiquei zerado, e então,
decidi ir até a casa de Tábata com as intenções mais sacanas possíveis, desta vez eu
queria mais que o café, eu precisava recuperar minha estima para voltar a todo gás
para o caso quando a Bia me ligasse, o puto do filho não quer abrir a boca, mas eu
quero a boca dela.
Foi necessária somente uma batida na porta, ela rapidamente abriu e ao me
fitar, notei certo contentamento (talvez fosse loucura minha), teus seios
continuavam intactos, exatamente como eu me lembrava, tentei ser educado,
perguntei despretensiosamente sobre o moleque, ele não estava em casa, tinha ido
para a casa de algum amigo jogar videogame, esta é a versão da história que ela
acredita, a minha é que ele deve estar chapando, fumando e se drogando em
algum canto do bairro. Esta é a fórmula de sucesso da maioria dos garotos daqui.
- “Tá bem friozinho, né?” – ela perguntou educadamente.
- “Você não quer tomar um café?”
Estava um frio ferrado mesmo e a chuva persistia. Aceitei o convite, a sala
estava arrumada, porém com um ar melancólico impregnado no ar, ela estava de
pijama, provavelmente sem sutiã, me esforcei ao máximo para disfarçar os olhares,
mas não consegui, fiquei esperando no sofá enquanto ela buscava o café, um
silêncio misterioso pairou. Ela retornou com o café e sentou-se muito próximo a
mim, dei uma conferida disfarçadamente em seu corpo, entretanto seus olhos se
cruzaram com os meus, senti um arrepio na espinha, o contato de nossas energias
no ar foram como faíscas, fiquei tímido e me afastei um pouco para o canto do
sofá e percebi um esboço de sorriso.
- “Como está sendo as coisas por aqui, e a sua sogra?” – perguntei cabisbaixo
entornando de uma vez o café. Tentando quebrar o gelo e o nervosismo, ela
causava pavor em mim, mas eu a queria.
- “Caminhando... Sabe, ela não para de reclamar do cachorrinho, nunca nos
demos bem mesmo, é ela lá e eu aqui.” – respondeu com indiferença.
- “Foi muita maldade...” – levantei enquanto falava e fui direto até a cozinha
para levar a xícara...
- “Não precisa levar, Wagner!” – advertiu.
- “Não esquenta, essa eu faço...” – respondi empolgado, e continuando
perguntei:
- “Sabe que horas seu filho volta?”
Não houve resposta, olhei para trás e Tábata estava entre a sala e a cozinha me
olhando com uma expressão de assassina, parecia querer arrancar meu couro. Se
aproximando em passos de felinos, ela respondeu:
- “Ele vai demorar pra voltar, detetive.”
Em seguida senti que era a hora, andei na direção dela, me agarrou beijando
meus lábios lentamente, deixei a xícara cair no chão, ninguém se importou, em
instantes minhas mãos velozmente assumiram o controle de tudo, a agarrei
bruscamente e a empurrei para o quarto, eu desejava aquele corpo, mas estava
enferrujado pra toda a ladainha antes do coito, pelo visto ela também havia se
cansado e estava sendo prática, naquela tarde cinzenta estávamos transando,
naquele período, esqueci-me de tudo, até mesmo quem eu era. Vislumbrando
aquele corpo experiente banhado de perfumes conservadores de pele e um aroma
único misturado ao nosso ato carnal. Ao final acendi um cigarro satisfeito, é
clichê, eu sei, mas havia séculos que não praticava, eu merecia esse trago.
Continuei deitado por mais algum tempo, enquanto ela me acariciava deitada
sobre meu peitoral, parecia não se importar com as minhas voluptuosidades.
Lembrei-me de Angélica, eu sou um homem experiente e mais uma vez pude
desfrutar o prazer de ter outra mulher em meus braços, ela não terá oportunidade
de sentir algo significativo com outro alguém novamente, se há vida em outro
plano, não deve se comparar ao oxigênio deste planeta imundo, senti-me
entristecido. Vesti minhas roupas, dei-lhe um beijo longo e despedi-me, esta foi
uma visita necessária em minha vida.
14.

Um bom bêbado possui sempre camisas estratégicas para dias de ressaca


violenta, no meu guarda-roupa não faltava, existe uma relação de confiança, você
abre e veste, sem se preocupar em passar, o tecido é bom, você pode somente
acordar, e ir trabalhar.
Os dias estavam difíceis, meu parceiro parecia ocupado, nada da Beatriz me
ligar com alguma novidade. Minha única criatividade para ocupar a mente era
frequentar diferentes bares possíveis do bairro, um deles era o bar Secreto, ficava
na Avenida João Dias, a fachada te enganava, uma grande placa dizia que o espaço
era aulas de Tai Chi Chuan e um salão de manicure. Poucos sabem da existência
desse bar, o dono é amigo do meu falecido pai, que era um beberrão de primeira.
Saí mais cedo do trabalho e fui pra lá.
Tinha um longo corredor até chegar ao salão com um portão com travas, era
nos fundos, lá não havia julgamentos, ninguém além do dono me conhecia, eu era
somente mais um bêbado jogando sinuca, apenas as mesmas famílias
frequentavam o bar Secreto.
Joguei uma partida difícil com um homem bem alto, devia ter uns cem quilos,
cada tacada era feita com muita força, era impiedoso com as bolinhas que
encaçapava no meio, mas eu normalmente não perco, sugeri apostar algumas
cervejas e de repente a partida ficou interessante pra mim. Dentro do Secreto você
não vê a hora passar.
Meu celular tinha três ligações perdidas, uma do delegado Frank, devia estar
puto comigo, quase não dou notícias e apareço somente bêbado. Liguei de volta e
falei que meu carro estava quebrado, ele não chiou, mas estava estranho, parecia
querer me dizer algo, mas não disse.
A outra ligação era do novato, retornei:
- “Descobriu alguma coisa?”
- “Ainda nada!”
- “Então por que me ligou?”
- “Queria te avisar que hoje vou na imobiliária dos Rochas, vê se acho algo ou
um rosto familiar...”
- “Beleza! Me avise se descobrir algo! E o PM?”
- “Nada fora da rotina por enquanto. Vai pro DP amanhã?”
- “Não sei...”
- “Tá no bar?”
- “Você é a minha mulher agora, porra?” – pairou um silêncio, e então desliguei
na cara dele.
Aquele puto tá me escondendo algo.
Não gosto que ninguém questione meus métodos, o caso já estava arquivado
mesmo, não tinha mais pressa para resolvê-lo, estou usufruindo do meu lixo de
luxo enquanto não descubro mais nada.
Mais um dia sacrificado da minha vida, entornei muitas doses, a noite fria
sempre chega estapeando minha pele. Depois passei no bar do Firmino, onde
encontrei o Estranho da última vez, precisava espantar meus demônios com as
músicas que só tinham na jukebox de lá, ninguém me olhava com cara amigável,
mas eu cagava para todos, queria apenas jogar sinuca e arrancar algum dinheiro
daqueles otários. Coloquei Belchior e agora alguns já me achavam um cara legal.
Joguei dez fichas com o dono do bar. Perdi seis vezes. A sorte havia acabado. Cada
vez que eu passo numa mesa de sinuca deixo um pedaço da minha alma. Paguei as
fichas e as doses de conhaque que bebi e fui pra casa.
Quando cheguei ao portão notei que estava entreaberto, algum arrombado se
deu ao trabalho de entrar na minha casa. Fiquei puto, estava tudo fora do lugar,
alguém tinha invadido a porra da minha casa mesmo, mas não estava claro com
quais intenções, de qualquer forma aquilo era um novo aviso. O meu carro não
estava na garagem, então quem entrou sabia que eu não estaria.
O que o Elvis mandou fazer com meu carro hoje?
Fiquei desesperado, liguei imediatamente para o novato, o telefone tocou
constantemente e ninguém atendia aquela porra, insisti tanto, até que alguém
atendeu com voz sonolenta:
- “Alô!”
- “Cris?”
- “Quem mais seria? Você tá me ligando, Wagner.”
- “Graças a Deus!” – afirmei aliviado.
- “O que tá acontecendo? Eu tava dormindo.”
Puta que pariu!
- “Cris, vem pra minha casa com seu carro, urgente!”
- “Sério?”
- “Anda logo, porra! É urgente!”
Meu coração acelerou drasticamente, todo o efeito alcoólico do dia inteiro
passara rapidamente, pensei na segurança de Beatriz, liguei para ela, me atendeu
na mesma hora puta da vida comigo, não consegui dizer nada, ela disse que estava
bem e que estava tentando dormir também, achei ela muito proativa na resposta,
mas fiquei aliviado que ela estava bem, porém uma dor familiar morava no meu
peito, a mesma de quando perdi minha mãe.
Peguei um pente extra da minha arma e esperei Cris com o maior desejo do
mundo de acertar uma jogada no jogo da vida.
15.

O carro do novato era bem arrojado, provavelmente ganhava muito mais que
eu, era um jovem com bastante estudo, mas as ruas me ensinaram muito mais do
que qualquer escola.
Fomos direto para o departamento, estava com um pressentimento, Frank
costumava ficar até tarde trabalhando, seu casamento era falido e o trabalho
sempre foi seu porto seguro. Queria saber se ele estava bem.
Estacionamos na rua da entrada. Desci com a Glock na mão, mandei o Cris
entrar pela frente, dei a volta pelos fundos. Entrei no corredor lentamente, o
silêncio era o dono daquelas paredes, vagarosamente cheguei à porta dos fundos,
tomei um susto da porra quando fui abrir, pois alguém empurrou a porta tão forte
que a pancada me derrubou no chão, consegui disparar uma vez, mas sem
precisão, gritei:
- “Cristiano!”
- “Caralho, Wagner, que porra que tá acontecendo!” - ele chegou assustado com
o disparo.
O suspeito estava dobrando a esquina correndo muito rápido, levantei e saí
correndo em perseguição ao sujeito.
Naquele momento escutei o barulho de um carro dando a partida mais a frente
da rua, eu corri como se minha vida dependesse disso, tentei olhar a placa, mas
não consegui ver nada, cadê meu Voyage numa hora dessas. Retornei esbaforido,
precisava de um cigarro e uma bebida para acalmar meus nervos, provavelmente
suei todo o álcool do meu sangue nesse arranque. Cris estava com cara de velório,
já tinha visto algo lá dentro, entrei na delegacia e fui direto para a sala do chefe,
ele estava debruçado em sua mesa como se estivesse cochilando nos seus dois
braços, mas estava cheio de sangue à sua volta, não encontramos resquícios de bala
na sala, acho que foi esfaqueado até a morte. Senti uma pontada no peito, pensei
nos filhos dele, sabia que eu precisava ir pessoalmente dar a notícia.
O suspeito estava com o rosto coberto, mas consegui ver qual era o carro, um
Celta prata bem velho, apesar da pouca iluminação.
Uma tristeza bateu forte em mim, acendi um cigarro, o novato me
acompanhou nessa...
- “Ontem à tarde vi o delegado saindo da imobiliária e entrou em um carro de
luxo desconhecido...” – Cris afirmou suspirando.
- “Ele tava envolvido de alguma forma e queria me dizer algo... Mas agora não
há mais nada para dizer.” – afirmei soltando a fumaça do cigarro.
- “Ia te contar amanhã...”
- “Mal começou aqui e seu chefe está morto!”
- “Foda!”
- “Resolveu começar a fumar do nada, novato?” – questionei.
Meu gosto por nicotina aumentou quando eu namorava a Beatriz, fuma igual a uma
desgraçada.
- “Hábito recente.” – ele respondeu.
Sei, filho da puta!
- “Entendo se você quiser parar por aqui, você já sabe como termina para quem
continua investigando essa história, eu parei por aqui.” – lamentei.
- “Não! Estamos bem perto!” – Cris esbravejou.
- “Da morte.” – afirmei com um sorriso no rosto.
Esperamos a perícia fazer seu trabalho, respondemos as perguntas habituais,
com o delegado fora de cena, não sei como continuaria nesse jogo, mas eles devem
ter pensando em tudo, eles sabem o que fazem.
Quando a polícia acabou, meu parceiro me levou até a casa de Frank, meu
corpo pesava uma tonelada, quase não consegui levantar o braço para tocar a
campainha, a sua esposa desabou quando viu minha cara de enterro, não
acordamos os garotos, ficamos por horas tentando consolá-la, ela me abraçava
forte e eu não sabia o que dizer, na verdade acho que não há o que dizer numa
hora dessa... Dói muito alguém partir de sua vida sem lhe dar chances de se
despedir, sei bem como é essa sensação.
Só conseguimos ir embora às três da manhã da casa de Frank, pedi pro Cris me
deixar no Muchas, um puteiro respeitável ali na Barão, relutante ele fez o que
pedi, mas quis me acompanhar. Qualquer um hoje pensa que pode ser meu pai.
O segurança já mandou separar minha garrafa de conhaque quando me
avistou. Ninguém mexia comigo, me olhavam feio por saber que eu era da polícia.
O novato estava nitidamente desconfortável com o ambiente, a casa estava cheia,
eu queria apenas continuar bebendo e assistir algumas prostitutas dançando
Sabbra Cadabra no palco.
Coloquei crédito na jukebox, não é todo dia que alguém coloca uma sonzeira de
respeito nesses ambientes. Não queria toques, apenas apreciar. Essa era a minha
forma de colocar a minha cabeça no lugar e absorver a ideia de ter perdido um
amigo. De enfrentar meu luto. Tinha raiva de Frank a maior parte do tempo, mas
o considerava como amigo.
O novato conversava com uma puta chamada Betina, fazia teatro, dizia que
queria ser dubladora, e ali era a forma que ela conseguia pagar a faculdade e ainda
sobrava grana pra fazer outras coisas. O que chamou mais atenção nela foi aquele
olhar promissor, de quem acredita num futuro, Cris também possui um pouco
disso, eu já havia perdido esse olhar há muito tempo.
16.

Você percebe que não é grande coisa quando está sentado na porra da
privada, despejando toda aquela merda e pensando até quando teremos onde
continuar depositando nossa sujeira!
Eu estava atrasado para o velório. Pálido como palmito. Detesto velórios,
diferente dos filmes que sempre chove, o sol ardia feito sal em ferida aberta.
Quando eu cheguei todos olhavam para mim, eu não conseguia mais olhar
diretamente para os olhos da esposa de Frank, me sentia culpado por não ter
salvado a vida dele, não consegui retribuir o favor que devia a ele em vida, talvez
eu tenha a sorte em outra vida, mas é difícil acreditar nisso vivendo em um
mundo tão fodido. Minhas olheiras estavam profundas, eu suava feito pano de
prato no cuscuz que minha tia fazia pelas manhãs.
O vereador Delson estava no velório consolando os entes queridos, Alberto
parecia apático, como se aquela morte fosse uma surpresa para ele, seus olhos
transmitiam medo, talvez ele pensasse que fosse o próximo ou fosse bom com
teatro. Não confiava neles. Luís estava indiferente com o olhar firme, não interagia
com quase ninguém.
Era quase o enterro de uma celebridade, todo mundo conhecia o delegado,
estava lotado de gente, ótimo evento para angariar novos votos. Delson parecia um
animador de palcos, sabia usar bem as palavras, conseguia fazer todos se sentirem à
vontade em sua presença, menos a mim, odeio ainda mais políticos do que
jornalistas.
O padre começou a falar sobre o quanto o delegado contribuiu para o nosso
bairro. Discurso completamente político, senti muito enjoo, precisava dormir um
pouco, encarei por um momento o vereador, que fingiu não me notar, tirei meu
rabo gordo dali mais cedo que os demais e fui para a minha casa.
No jornal, Delson falou sobre justiça, que iriam pegar o culpado pela morte do
delegado, vomitei de verdade dessa vez, minhas ressacas estavam cada vez mais
agressivas, na sequência do jornal, o Vereador confirmou o início das obras da
praça, que tinham sido finalmente aprovadas, não esperou nem um minuto e ele
já esqueceu a morte de Frank.
Passei o resto da tarde dormindo para recarregar as baterias, tomei um banho
quando acordei, vesti minha melhor roupa, estava deprimido, precisava de novas
pistas.
Era minha última noite de folga, não sabia se manteria meu emprego no DP,
decidi ir direto para a casa de Beatriz, nosso encontro seria na manhã seguinte na
Paróquia, mas eu queria vê-la aquela noite, resolvi antecipar, ela não atendia mais
minhas ligações. Liguei para o Elvis, ele me disse que meu carro tinha tido alguns
probleminhas, por isso não tinha deixado na minha casa, mas que já estava
resolvido. Pedi pra trazer minha caranga pessoalmente, estava com saudade, resolvi
deixar a cautela de lado dessa vez. Liguei o motor e engatei, deixei o Elvis na sua
casa e fui direto para o condomínio do outro lado da ponte.
Bairro bonito que ela morava, o tráfego estava bom, cheguei na portaria, disse
com quem queria falar, notei o porteiro agoniado no telefone, parecia que alguém
estava retrucando com ele, então veio até mim:
- “Ela disse para você aguardar um pouco!”
Não importava quanto tempo demorava para aparecer, sempre pedia para eu
subir no mesmo instante, tinha alguma coisa errada, apesar da cisma, esperei
ansioso até ela aparecer de roupão na portaria, continuava bela, com olhos doces
para mim, mas com uma tristeza em cada desvio de olhar; sem abrir o portão, se
aproximou dizendo:
- “Não era amanhã no Igrejão?”
- “Era sim, mas resolvi lhe fazer uma surpresa...”, respondi.
- “Cansei das suas surpresas!”, afirmou ríspida.
- “Amanhã apareça lá conforme o combinado e te conto o que descobri...”,
concluiu.
Minhas suspeitas então estavam corretas.
Se afastou do portão em direção ao hall do seu prédio, o porteiro assistia de
camarote nossa conversa, lhe faltou o balde de pipoca, avistei ao longe um rosto
familiar indo de encontro a ela também de roupão, era o Cristiano, o filho da
puta tá comendo a Beatriz esse tempo todo, cagou para o que eu falei. No fundo
eu já sabia, mas ao ver, desceu amargo.
Encostei minha cara no portão, fiz questão de que ele visse que eu estava lá,
olhou assustado para mim, ela ficou ainda mais assustada, parecia que o novato
vinha falar comigo e ela não deixou.
Ouvi ela dizer: Eu te falei Cris, não era pra descer!
Ainda bem que ele não veio falar comigo, engoli a seco tudo aquilo, se falasse
com ele, eu o mataria na mesma hora, talvez ele saiba ser um homem melhor que
eu nunca serei, mas mereço tudo isso, eu nunca prestei e nem mesmo a Beatriz
conseguiu esse feito de me transformar em alguém decente o suficiente para ser
digno de uma família comum.
Não ia perder a viagem, nem o banho tomado, fui direto para o apartamento
da Tábata, seus seios estavam do jeito que eu deixei, parecia surpresa com a minha
visita, achou que eu nunca mais voltaria, fodemos a noite inteira, mas aquilo não
preencheu o vazio que eu sentia, no fim a gente só percebe que algo era
importante, quando perdemos, essa é mais uma frase clichê que a vida real faz
questão de esfregar em nossa cara.
17.

Dia deprimente para quem leva uma vida deprimente, mas o que me deprime
mesmo são igrejas, me sinto um extraterrestre dentro de um templo, mas os
olhares inquisidores são ainda pior, não resisti e mostrei o dedo do meio para o
padre, ele não esperava aquilo e saiu puto xingando. Lembrei de quando roubava
os cigarros do padre durante a missa, até hoje ele suspeita de mim, nunca gostei
dele.
Pontualmente às dez da manhã Beatriz apareceu, estava fria, falava somente o
necessário, me mostrou um relatório de bens e posses da família Rocha. Eu ainda
não tinha nada além de uma assinatura de escola que ligasse o Estranho a família
Rocha. Seja lá quais forem os negócios deles, sei que todos estão envolvidos,
inclusive Frank estava.
Retribuí da mesma forma para ela, também conversei friamente, com respostas
secas e curtas, no fundo sentia inveja, o novato estava aproveitando uma
oportunidade com ela que eu não aproveitei. Com o olhar triste nos despedimos,
quando ela já estava ao longe cruzando a entrada, falei:
- “Se cuida!”
- “Você também, Wagner.” – respondeu com tristeza.
O novato tentou me ligar algumas vezes, mas não atendi, continuei minha
sequência de bebedeira por mais alguns dias.
Fui atender um chamado no Jardim Ibirapuera, estava calor, havia moleques
em cada esquina soltando pipa, os postes cheios de linhas chilenas, continuei, até
chegar no campinho sintético em frente à favela. Havia crianças jogando bola,
sorrindo pra lá e pra cá, porém um corpo enfeitava o cenário do lado do campo,
mas os meninos não pareciam notar ou se importar, era só mais um corpo, ou um
a menos.
Apareci no DP logo depois, precisava analisar algumas coisas, e principalmente
pegar meu maço de cigarro de emergência no meu armário, havia muitos
murmúrios, todos me olhavam de rabo de olho, até que alguém chamou:
- “Wagner! Cristiano!”
Fomos chamados para a sala que até então era do Frank, um sujeito chamado
Victor assumiu interinamente o posto, era o primeiro dia dele e pelo visto estava
querendo mostrar trabalho.
- “Tava vendo seu histórico, Wagner, faz um tempinho que você não vem
trabalhar!”
- “Tenho trabalhado bastante nas ruas, senhor, além disso, eu tinha um acordo
com o Frank, de férias atrasadas.”
- “Entendo, mas as coisas vão ter que mudar agora, não posso justificar uma
nova falta ou trabalho nas ruas sem prévio aviso, vou ser cobrado fortemente para
ter um nome pela morte de Frank, só tenho você e o Cristiano, preciso de vocês
aqui.”
- “Certo, delegado, tu é o chefe agora, você que manda!” – respondi.
- “Cristiano, continue fazendo o que tem feito!” – Victor completou.
Filho da puta!
- “Combinado, chefe.” – ele respondeu.
- “Outra coisa, Wagner... A próxima falta vai lhe custar o distintivo.”
- “Ok!” – respondi seco.
Acabou a Gozolândia...
18.

Cristiano estava mudo na mesa dele, eu estava completamente indiferente e


não lhe dirigi sequer uma palavra. As horas no DP passavam lentamente, se
arrastavam pela tarde, pensava somente numa cerveja gelada enquanto colocaria
meus neurônios para pensar.
Li e reli todos os documentos que a Beatriz tinha conseguido, tudo que tinha
matutado ou descoberto, mais a junção do que tinha na investigação, consegui
montar claramente uma hierarquia societária de todos os negócios do nosso
bairro.
Meu novo foco era a obra da praça do vereador, precisava descobrir mais sobre
a grana que estava envolvida, ao acessar algumas fontes, descobri que já tinha data
de inauguração agendada; meu próximo passo era visitar o local da construção.
Peguei meu amigo Voyage, fui direto e reto pela avenida principal Maria
Coelho, subi a rua 2 e dei de cara com o terrenão próximo a uma das favelas mais
perigosas, várias ruas saíam nesse ponto, facilmente podia virar um centrinho
comercial, tinha bastante bares, padaria, mercadinho, sacolão e o terreno estava
cercado com muros azuis, ao redor tudo fervia, já estava anoitecendo, as ruas
pegam fogo por aqui, tanto pro bem, como pro mal.
O movimento estava forte, carros de polícia passavam berrando suas sirenes, os
motoqueiros estourando os escapamentos e assustando os desavisados. Estacionei
meu carro em frente a uma casa qualquer com uma placa dizendo: “não estacione
dia e noite, nem por quinze segundos”. Algumas placas conseguem dizer mais que
um ser humano durante toda uma vida.
Comecei a andar aos arredores da área da construção, procurei alguma brecha,
entrada, não encontrei, um garotinho ficou me observando ao longe de uma
calçada, não me incomodei. Pulei o muro e percebi o quão enferrujado eu estava,
me agachei, fui lentamente para um cômodo que tinha no centro do terreno, uma
espécie de container usado para escritório, havia bastante materiais, mas nada
construído ainda, dois carrões de luxo estavam estacionados lá dentro, fiquei
encostado na parede, olhei rapidamente pela fresta da janela, era Alberto e Delson
conversando, tinha mais dois caras enormes perto da porta, provável que sejam
seguranças dele, fiquei caladinho, minha testa começou a suar muito, senti minha
pressão cair pouco a pouco, devia ser abstinência, os dois conversavam em tom
agressivo, Delson parecia estar bem puto com o Alberto.
- “Eu já tinha te falado que aquele puto queria tomar os negócios da nossa
família, e você tinha que querer vender sua parte.” - Delson gritava.
- “Tudo isso aqui é mais meu do que seu, eu sou filho! Você é só a merda de
um sobrinho.” – Alberto respondeu à altura.
- “É, Alberto, interessante você falar do seu falecido pai, tá com a memória
curta? Eu não vou arriscar, seu irmão tá desconfiando mais do que nunca agora.”
Cadê a porra de um gravador nessas horas?
- “O novo delegado deve abafar em breve esse escândalo do Frank, mas nunca
esqueça, que a culpa foi sua em querer tentar pular fora.” – Delson completou.
Minhas pernas tremiam de nervosismo, não estava acreditando na merda que
estava ouvindo, mas não dava pra conectar uma morte a outra, talvez não
estivessem relacionadas. Olhei para frente e vi o garotinho agachado, chegou tão
sorrateiro que não notei, quase tive ataque do coração.
- “Que porra você tá fazendo aqui, moleque?” – eu sussurrei.
- “Tio, você tem dez reais?”
Meu Deus do céu!
Os dois continuaram conversando lá dentro sobre o dinheiro para acelerar as
obras, enquanto eu revirara meus bolsos tentando não fazer nenhum barulho,
escutei um rosnado atrás de mim, era um cachorro a poucos metros de distância,
tinha cara de poucos amigos, o garoto se escondeu atrás de mim, a conversa
cessou, escutaram o barulho do cachorro, que começou a latir fortemente, pude
ouvir lá de dentro Delson falar:
- “Quem tá aí?”
O cão continuou latindo, eu precisava pensar rápido, olhei adiante em qual
parte do muro eu tinha mais chances de pular rapidamente, então num ato de
desespero levantei o garoto com um braço pela cintura e saquei minha arma, atirei
pra cima e corri como nunca havia corrido em minha vida. Pulei o muro
rapidamente, assustei o cachorro e todos lá dentro com o tiro, consegui sair fora a
tempo de não verem o meu rosto. O moleque estava assustado, fui rápido pro
Voyage, joguei-o no banco do passageiro, engatei e saí de lá o mais rápido que
pude, meu coração estava pulando pela boca, fiquei olhando para trás para ver se
alguém nos seguia e nada. Até que estacionei numa rua menos movimentada.
- “Por que você veio atrás de mim, moleque?”
- “Queria dinheiro, tio.”
- “Qual seu nome?”
- “Pedro.”
- “Quantos anos você tem?”
- “Oito e você ainda não me deu o dinheiro...”
Moleque filho da puta!
- “Onde tá sua mãe?”
- “Minha mãe só chega de manhã...”
Era só o que me faltava, virar babá, dei dez conto pro moleque, levei ele no
Terminal João Dias, comemos um duplo de respeito com o melhor atendimento
do bairro, aquelas meninas eram uma graça, ainda tirei onda dizendo que era meu
sobrinho. Esperei algumas horas e voltei pra próximo da área de construção para
deixar o moleque em casa, já era quase meia noite.
- “Se cuida, guri...”
Era um menino educado, deu sorte que eu não era um louco desvairado, sabe
Deus o que pode acontecer com as crianças que somem daqui, na periferia cada
desaparecimento é pra sempre mesmo.
19.

Fazia anos que não tinha uma noite de sono completamente sóbrio, estava
me sentindo relativamente bem, cheguei cedo no DP, bem-humorado, todos até
estranharam meu semblante de bons amigos. Fiz algumas anotações, ainda estava
cabreiro sobre a última noite, mas creio que se soubessem quem era, eu teria
acordado com a boca cheia de formigas hoje. Aquele garotinho me fez bem, me
senti humano novamente.
Estava todo mundo agitado, o Delegado Victor chamou todos os policiais para
fazer um anúncio.
- “Senhores, temos a evidência de quem foi o assassino do delegado Frank, as
digitais foram identificadas na amostra, sabemos também onde o indivíduo está
escondido atualmente, pelo que parece, ele comanda o tráfico do Celeste,
Ibirapuera e Jardim São Luís, todos o conhecem como Estranho.”
Todos ficaram perplexos quando ouviram o apelido de Joel. Ninguém pareceu
acreditar que esse momento chegaria e muito menos eu.
- “Tenho aqui em mãos a ordem para entrar no Celeste para retirarmos ele e
mandarmos para responder pelo crime de assassinato. A má noticia é, pelo visto, o
motivo do delito foi que Frank estava pegando pesado com a grana que tirava dos
negócios do tráfico, os dois estavam se desentendendo muito e infelizmente houve
esse delito, mas não vamos expor essa parte na mídia para não mancharmos a
reputação do falecido.”
Aquilo não fazia sentido para mim, o Estranho jamais faria algo assim pessoalmente e
Frank não era burro para ter esse atrito, estão acobertando e entubando algo nesse caso.
Apesar das minhas desconfianças o que mais me agradava na notícia, era ter
pelo menos o Estranho na cadeia, mesmo sem provar todos os seus crimes.
- “O policial Fábio vai liderar essa operação, vou mandar junto com ele o
detetive Cristiano para acompanhar a batida, tomem cuidado!”
Puta que pariu! Me deixou de fora!
Questionei o novo delegado por não me incluir na operação, me respondeu o
que eu já esperava, por ser amigo da vítima, era muito pessoal para mim e achou
melhor eu ficar de fora dessa, foda-se!
Chamei o novato para fumar um cigarro lá fora, ele aceitou.
- “Toma cuidado, parceiro...”
- “Deu pra se preocupar agora?”
- “Não, novato, mas toma cuidado mesmo, não confio no Fábio, suspeito dele e
você sabe disso.”
- “Pode deixar, Wagner.”
- “Outra coisa, assim que puder, tenta seguir o Alberto, tenho uma fonte de
que ele sabe o motivo de tudo isso que tem rolado.”
A fonte sou eu mesmo.
- “O que você não tá me contando?” – indagou incisivamente,
- “Longa história, novato, mas quero que saiba que não desisti do caso da
Angélica e para mim tudo está conectado com o Estranho, Delson, Luís e
Alberto.”
- “Já vamos pegar o Estranho, vai ser um avanço.”
- “Vai sim, Cris...” – respondi enquanto pisava na bituca do meu cigarro no
chão.
Observei ele voltando para o escritório, fiquei um pouco ali refletindo, apesar
do caso de Angélica ter dado uma bela esfriada, principalmente com a morte do
delegado, aos poucos ninguém se lembrava dos últimos acontecimentos, são tantas
coisas que acontecem na região, além de outros delitos desse mundo cão, que as
pessoas esquecem rápido, não as culpo, já possuem cargas maiores para
suportarem, eu entendo de verdade, cada um faz como pode para seguir em frente,
particularmente, nos meus poucos momentos que consigo dormir, pesadelos estão
me assombrando. Eu vejo todos os mortos que conheci apontando o dedo na
minha cara dizendo que eu podia ter feito algo, principalmente a minha mãe, às
vezes é como se eu pudesse reviver o dia em que ela se foi. A moral da história é
que cada inocente ceifado deixa apenas dor para os entes queridos e para o resto
do mundo vira somente uma estatística no telejornal.
20.

- “Elon Soares foi preso nessa madrugada, acusado de comandar o tráfico nas
favelas do Jardim São Luís e do assassinato do Delegado Frank, o motivo do delito
ao delegado ainda é desconhecido pela polícia, mas indícios de digitais provam
que ele foi o responsável pelo crime, além de comandar diversos assassinatos na
região e lavar o dinheiro do tráfico em comércios ainda não identificados, seu
apelido é conhecido por Estranho.” – completou o âncora do telejornal.
Que caralho de Elon é esse?
A notícia estava em todos os jornais, Delegado Victor, estava sendo
condecorado por sanar os problemas da nossa comunidade, mas a verdade era que
um homem de família foi incriminado por tráfico e assassinato. O fato de ele
morar na favela não significava que seja bandido, eu sabia que algo estava errado,
mas realmente poucos conhecem ou sabem que o Estranho se chama Joel, se
aproveitaram disso para fazerem uma armação, todos devem estar sorrindo agora,
menos a família do Elon.
A reputação do Estranho no bairro era soberana de fato, porém a veracidade de
alguns fatos era difícil de saber a verdade, havia muitas histórias o envolvendo,
mas no fim ouvir sobre ele me lembrava uma nóia da escola com uma cicatriz
gigantesca no rosto, cada vez que contava a explicação era diferente, mas a cicatriz
era real.
Agora que a pressão por uma prisão não existia mais, rapidamente tudo voltava
ao normal no bairro e no DP, Cristiano estava péssimo, claramente cansado todos
os dias.
Havia passado um mês desde a operação, eu não tinha evoluído com o caso, a
obra da praça havia começado e já estava bem adiantada, diversas obrinhas
pontuais estavam ocorrendo na região, o ano de eleição estava próximo.
Curiosamente o PM Fábio sabia exatamente em qual casa encontrar o suspeito,
o novato me contou detalhes de como foi toda a operação, disse que nunca viu
um trabalho tão fácil, sem retaliação, sem movimento nos becos, os únicos
surpresos com a visita foram o suspeito e sua família que imploraram por
clemência, afirmando que eram trabalhadores. Havia muitas drogas e
aproximadamente 45 mil reais escondidos no quintal, eles pareciam não saber de
nada, para completar, além das digitais, encontraram um Celta Prata abandonado
no beco.
- “Tem cara de armação e bem descarada, Cris.”
- “Sim, não consigo parar de pensar na família.”
Entre centenas de barracos, sabiam qual casa invadir e quem culpar, essa era a
justiça que pessoas honestas encontram.
- “Precisamos continuar agindo, não desista agora.” – afirmei em tom
esperançoso.
- “Isso não combina com você, Wagner.”
- “Eu sei que não, Cris, mas quero uma vez na vida fazer justiça, nem que seja
com as minhas mãos.” – afirmei ainda mais esperançoso.
Chamei ele pro almoço, mas negou... Fui almoçar sozinho. Tenho almoçado
todos os dias na esquina paralela da padaria Tradição, num restaurante chamado
Jardim, fico observando todos que entram e saem, estou bebendo tanto que
devem pensar que eu já desisti, do meu jeitinho, ainda estou nessa.
O resto da tarde voou, continuei acompanhando pela internet todos os
movimentos do vereador, tinha um plano e precisava correr para que estivesse
tudo como eu queria até a data de inauguração da praça. Faltava exatamente um
mês.
21.

Adoro cinemas, mas dessa vez eu não consegui assistir o filme, estava
recebendo uma boa chupada dentro do cinema, não me entenda mal, a culpa é da
Tábata, ela é insaciável, ainda estamos saindo, dessa vez resolvi levá-la para um
desses shoppings, não curto tanto esses lugares, mas achei que devia agradá-la um
pouco. Pegamos um filme desses com um monte de ator desconhecido, e
entramos, no fim ela passou mais tempo me chupando do que assistindo o filme,
e eu nem lembro o nome do filme.
O único problema em namorar a Tábata era o filho dela, eu tinha pego ranço
do moleque, ele não me ajudou e em troca eu comia a mãe dele. Eu estava
pensando em jogar sujo com ele, ninguém mais se importava com as minhas idas
nos predinhos, eu estava sendo prático, entrava na casa dela, ficava algumas horas
e ia embora, Vinicius sempre estava na espreita de olho nos meus movimentos
com aquele olhar insuportável, o que é dele está guardado.
Foi a primeira sexta em anos que fui dormir sóbrio, acordei sábado pela manhã
cedinho, minha casa parecia um lixão, resolvi dar uma geral, mas tomando
cuidado para não pisar na Debra, a filha da puta não parava de se esfregar nas
minhas pernas, eu estava começando a me sentir mais saudável, diminuí o cigarro
e fazia alguns dias que não bebia, porém a mente começa a trabalhar contra você,
tentando criar lógicas e sentidos para beber, mas eu estava me controlando,
percebi que estava começando a ligar melhor os pontos desse caso. Coloquei a
ração da bichana, e após minha limpeza, peguei um oitão raspado que tenho em
casa, para situações especiais, coloquei uma bermuda confortável, e saí de casa
para dar uma volta a pé pelo bairro, eu pretendia visitar a família do Elon, era
ousado descer a favela do Celeste, mas eu precisava entender melhor o que o
Estranho estava tramando.
Liguei para o novato, dessa vez me atendeu:
- “Que você quer, Wagner?”
- “Quanta hostilidade, Cris. Tá por onde?”
- “Tô pra sair de casa, vou no parque com a Beatriz.”
- “Ah, entendi... Descobriu algo do Alberto?”
- “Nada ainda... Acho que vou desistir, seguir em frente...”
- “Você tem razão, novato.” – concluí desligando.
Eu estava preocupado com ele, nem todo mundo aguenta carregar o peso das
maldades que somos obrigados a participar, no fim ele é bem parecido comigo.
Era uma manhã linda de sol, fazia tempo que eu não sabia apreciar, havia
bastante movimento na rua, dia bom pra ir ao parque mesmo ou curtir uma
piscina num clube fino, o clube da maioria aqui se chama SESC e deve tá lotado.
Passei na viela onde Elon morava, cruzei com algumas pessoas, mas ninguém
sequer me notou, se eu descesse mais fundo, ia pensar que eu era só mais um
cliente costumeiro buscando uma dose pro coração. Essa eu passo.
Dei duas boas batidas na porta, uma mulher abriu desconfiada.
- “Você é a esposa do Elon?”, perguntei em tom mais baixo.
A mulher arregalou os olhos nitidamente preocupado, provavelmente estava
pensando que eu faria mal a ela.
- “Eu não falei nada.” – ela respondeu afoita.
- “Calma, moça! Eu só quero conversar!”
A porta continuou entreaberta, os olhos dela entristeceram.
- “Vocês pensam que dinheiro pode substituir meu marido, mas não pode!” –
afirmou com lágrimas nos olhos.
Uma criança estava agarrada aos pés dela, ouvi a confirmação que eu precisava.
- “Desculpa incomodá-la.” – completei.
Voltei pela viela calmamente, um jovem moreno, de boné, camiseta, bermuda e
chinelo descia e estava me encarando, encarei de volta, quando estávamos
próximos de nos cruzar, ele falou em tom hostil:
- “E ae! Cê liga quem aqui?”
Apenas levantei minha camiseta.
Ele viu na hora meu oitão e baixou a bola, parei e esperei ele descer, continuou
me encarando, provavelmente era o olheiro de plantão, assim que o perdi de vista,
saí da viela e fui a pé pro bar do Firmino.
O pessoal do bar estava com saudades, mas não bebi nada, queria somente
extravasar naquela mesinha de sinuca, cada gaveta aberta com as quinze bolinhas,
era uma chance nova de tentar ser vitorioso em alguma coisa dessa vida.
22.

- “A comunidade do Jardim São Luís agradece ao vereador Delson Perrupato


Rocha por asfaltar as ruas: 5, 2,3, 8 e 9.” – dizia o cartaz pendurado de ponta à
ponta em vários postes do bairro, por onde eu passava tinha uma dessas
espalhadas. Política me dá nojo, uma cesta básica ou um pouco de piche no chão
compra o amor dos moradores.
O sol estava matando, parecia que o Diabo estava andando pela Terra e
esqueceu o fogão do inferno ligado no fogo alto. Pontualmente às nove da manhã
eu já estava em minha mesa trabalhando, o merdinha do Victor estava torcendo
pra eu ter um tropeço, mas eu estava andando na linha, tinha até emagrecido
alguns poucos quilos. Minha estratégia agora era me expor um pouco, Joel estava
sumido depois da prisão do Estranho impostor. Não sabia o que esperar dos seus
próximos passos, mas Delson toda semana participava de vários eventos na
comunidade. Senti que Alberto estava meio apavorado na última conversa que
bisbilhotei, pessoas com medo e raiva costumam falar mais do que gostariam.
Cristiano estava cada dia mais sério, chamei ele para uma conversa privada nos
fundos da delegacia. Ele topou ir.
- “Cris, preciso da sua ajuda!”
- “Tô fora do caso do Wagner, quero só cumprir tempo suficiente nesse aqui
para eu ser transferido logo.”
- “Nossa, novato, cadê aquele seu heroísmo todo?” – perguntei com sarcasmo.
- “Você acha que do dia pra noite, você convence as pessoas que mudou?” –
perguntou com dureza.
- “Não, Cristiano, mas eu preciso de sua ajuda, eu vou invadir o DP à noite,
quero olhar toda a papelada do Frank, eu vi o Victor pondo tudo numa caixa, mas
ele não mandou nada pro arquivo, o que é esquisito. Acho que tem algo lá que
pode nos ajudar.”
- “Certo, vou te ajudar.”
- “Outra coisa, não se sinta culpado pela prisão do Elon, a família dele pode
estar sofrendo, mas ele recebeu um caminhão de dinheiro para assumir que era o
próprio Estranho.” – Completei.
- “Provavelmente ele foi obrigado a aceitar...”
- “Sim, temos que usar ele a nosso favor, pois não deve demorar para acabarem
com ele na prisão.”
- “O que você quer que eu faça então?”
- “Negocia com o Elon, assusta ele primeiro, depois ofereça proteção, se ele
entregar onde está o dinheiro, vamos tentar virar a situação.” – concluí.
Pouco a pouco o escritório foi esvaziando, já tinha anoitecido, restando
somente a ala do batalhão que funciona a noite inteira, mas ninguém de lá acessa
a nossa área. Somente eu e o Delegado ainda permanecíamos.
- “Muito trabalho aí, detetive?”
- “Sempre, chefe...” – respondi descontraído.
Victor parecia que não ia dar uma brecha, entrei na sala dele enquanto ele
estava no banheiro, acho que ele vai demorar, revirei as caixas, olhei documento a
documento e nada, até que vi uma pasta vermelha no fundo de uma das últimas
caixas, ouvi o barulho da descarga no silêncio daquele ambiente, olhei a primeira
página e parecia ter informações importantes, enfiei dentro da calça e voltei
ofegante par minha mesa. Ele passou por mim desconfiado e disse:
- “Tudo bem aí, Wagner, tá nervoso?”
- “Tudo tranquilo, chefe, tava esperando você sair do banheiro, veio uma
barrigada foda de controlar!” – ponderei.
Fiquei vinte minutos no banheiro, eu queria parecer convincente, quando saí
do banheiro ele ainda estava na sala, não me despedi, peguei minhas coisas e fui
direto para casa.
23.

No dia seguinte após algumas voltas, fui novamente visitar a região da


pracinha, dessa vez não queria entrar, as obras estavam bem adiantadas, olhei por
todos os lados até encontrar o Pedrinho. Encostei o carro, os olhinhos dele
pareciam duas bolinhas de gude, garoto esperto, sabia se virar.
- “Quer ganhar cem reais e um celular?” – perguntei.
- “Sim.” – respondeu com os olhos arregalados.
- “Sabe fazer uma ligação certo, guri?”
- “Sei sim, tio!”
Era simples, o garoto vivia pelas ruas, por que a mãe trabalhava muito, então
pedi para ele reparar em quantas pessoas entravam na área de construção da praça,
e se caso um dia ele visse mais de um carrão preto entrando, para me ligar
imediatamente, e assim que isso acontecesse eu daria o dinheiro para ele.
- “Posso confiar em você, garoto?”
- “Sim.”
Pegou o celular e voltou a correr pela calçada, espero que ninguém roube dele.
Eu estava com dificuldades para preencher as horas do dia, quando se bebe
tudo parece mais fácil, tinha umas ligações não atendidas da Tábata, decidi ignorá-
la, era meu dia de trabalho de campo, Victor já deve tá suspeitando de mim, vou
pôr a pasta de volta amanhã sem falta.
Fui para casa, cozinhei um macarrão e fritei alguns bifes, a televisão estava cada
dia pior, fiquei sentado no sofá com a Debra deitadinha do meu lado, aproveitei
para debulhar os arquivos, encontrei vários recibos e notas de valores altos da
imobiliária que o novato investigava, além disso, uma lista dos bens com os nomes
dos sócios. O mais intrigante foi encontrar o nome do Joel junto com todos os
outros nomes, Joel parecia ter direito de toda a fortuna do falecido Roberto,
pensei em descobrir alguma informação sobre o que dizia na herança do velho,
peguei o celular, tocou muitas vezes, mas fui persistente:
- “O que você quer, Wagner?”
- “Beatriz, eu preciso de um último favor!” – implorei ao telefone.
O fato de ela ter me atendido, já havia sido um milagre.
- “Tá! O que é dessa vez?”, ela respondeu se acalmando.
- “Preciso saber se consegue o documento da herança do Roberto Rocha. Acho
que tudo isso tem a ver com a divisão dos bens dele.”
- “Essa vai ser difícil, mas vou ver o que posso fazer.”
Passei o restante da noite fuçando a papelada, até que para minha surpresa,
encontrei o que parecia ser o relatório oficial da perícia do assassinato de Angélica,
ninguém chegou a ver a cor desse documento, somente uma versão genérica,
Frank havia entubado, mas agora estava ali em minhas mãos e dizia que ela estava
grávida quando foi assassinada.
24.

O baque foi grande para mim, não consegui dormir, pensando na gravidez,
será que a família dela ao menos sabia disso? Duvido que eles se importem, mas a
questão maior era a paternidade... peguei meu carro e procurei o bar aberto mais
próximo, não encontrei nenhum...
Os dias que você mais precisa beber são aqueles mais perigosos, é necessário
estar atento pra não fazer uma merda maior que já está acostumado. Não me
sobrou alternativas além do Muchas, uma bebida era tudo que eu conseguia
pensar, não respeitei nem os faróis da avenida, dirigi em alta velocidade fumando
meu cigarro.
A casa estava cheia, havia um festival de prostitutas de várias regiões da Zona
Sul, desta vez não peguei minha garrafa costumeira de conhaque, pedi somente
cervejas e sentei no canto do balcão perto dos televisores, tinha muitas mulheres
lindas, tentei esvaziar minha mente, fiquei olhando para a raba de cada uma delas
dançando, alguns caras me encaravam quando passavam por perto, alguns sentem
o cheiro de um policial de longe, mas eu sou a porra de um detetive, tentei não
encrencar com isso para não estragar meu lazer.
Conforme aumentava a quantidade de cervejas, a hora na madruga voava, às
vezes um lampejo vinha na mente: “amanhã você tem que ir trabalhar! Melhor
parar!” E eu respondia: “relaxa, eu aguento, sou cobra criada!”
Fui pensando menos nisso conforme ficava mais bêbado, então resolvi escolher
uma puta para consagrar minha noite.
No sofá vermelho ao fundo rodeado de muitas mulheres, enquanto o funk
comia solto no ambiente, aquelas luzes de néon que já estavam me deixando
tonto, avistei o novato. Ele tomou um susto quando me viu.
- “Que porra cê tá fazendo aqui, Cris?”, gritei no ouvido dele.
- “Não é da sua conta, Wagner!”
Pelo jeito ele e a Beatriz estavam degringolando a relação, aquela mulher
também não é fácil, eu a conheço bem.
- “Porra, novato, pensei que você tava indo bem, tava começando a torcer por
vocês, fica esperto, ela tem faro pra descobrir esses lugares.”
- “Não me enche, faz o que você achar melhor!”
Uma prostituta se aproximou do Cristiano, seu rosto era familiar, custei a
lembrar, mas era a Betina, da última vez eles conversaram muito e tô vendo que
ela fisgou ele com facilidade.
- “Sai dessa novato, namorar puta é furada, vai por mim!” – adverti.
Deixei ele na dele, certas relações quando quebram dificilmente podem ser
consertadas, eu sempre fui solitário, só me arrependo de não ter tentado
conciliado com minha velha, mas tenho certeza que nós íamos somente brigar
novamente.
Comecei a conversar com uma mulher parruda, era mais alta que eu, tinha
tudo no lugar e bem carnuda, me disse que se chamava Ana Letícia, gosto de
nomes compostos, conversamos sobre trabalho, ela ficou curiosa sobre o que um
detetive de periferia fazia, na cabeça dela não havia muito pra se fazer, quase me
chamou de inútil, mas a bunda dela era grande demais para eu levar a opinião
dela em consideração. Talvez a puta tenha razão, não há muito para se fazer.
Fechamos negócio, fui acertar minha conta no balcão, o quarto era fora do
estabelecimento, ela veio me acompanhando com aquele salto alto, perfume
gostoso, na entrada deparei com o Estranho, acompanhado de mais três
comparsas, olhou diretamente nos meus olhos, fiquei petrificado, fazia sentido
encontrar ele ali, era a melhor casa da nossa região.
- “Que foi, lindo?” – Ana Leticia me perguntou.
Não respondi, fiquei observando ele entrar na casa, dessa vez não me tratou
como ameaça, eu era um simples cenário.
- “Lindo?” – a prostituta insistiu.
- “Desculpe, pensei que era alguém conhecido.”
- “Aquele ali tem dinheiro, sempre aqui essa hora, mas ninguém sabe o nome
dele.”
- “Entendi.”
O quarto era até arrumadinho, entramos e ela foi direto para o chuveiro, fiquei
deitado olhando para o teto, minha bebedeira passou e fui tomado por um sono
fora do comum. Ela voltou com aquele corpo enorme em minha direção.
- “Tá cansadinho? Peraí que você vai melhorar rapidinho.”
No mezanino, ela esticou duas carreiras de cocaína, mandou a primeira e me
ofereceu a outra?
- “Eu sou muitas coisas, mas drogas não é comigo, Ana!” – respondi.
- “Tudo bem.” – respondeu, mandando a segunda.
Levantei e ela ficou de quatro na cama, mas meu coleguinha resolveu não
corresponder, ela tentou de tudo, esforçada, mas não rolou, paguei um quarto pra
chegar e brochar. Minha cabeça estava pensando na vontade que eu tinha em
matar o Joel.
- “Fica tranquilo, lindo! É normal, acontece com qualquer um. A gente pode
conversar.”
- “Podemos sim, Ana, mas eu acho que você vai querer se matar, se ouvir o que
tenho pra falar...”
Pairou um clima desconfortável.
- “Melhor voltar para a casa, vou voltar para beber mais.” Quando estava
saindo, encontrei Cristiano entrando com Betina, era quase cinco da manhã,
aquele puto vai chegar ruim no trabalho também e isso já é um conforto pra mim.
Encostei no balcão e pedi outra cerveja, fiquei observando o Estranho no sofá
se divertindo com um monte de mulheres à sua volta, duas garrafas de uísque, até
porção de batata tinha naquela porra. Esperei pacientemente, bebendo, o sono
estava forte, estava frustrado por não ter conseguido foder, mas eu ia descobrir
aonde o Estranho estava se escondendo.
O sol estava quase amanhecendo, me senti Atlas – condenado por Zeus a
sustentar os céus para sempre - a diferença era que eu carregava o sono de todo
mundo, eles já haviam saído acompanhados com as garotas para o quarto, dei dois
tapinhas no rosto, eu já estava no meu Voyage, esperando eles terminarem a
festinha deles.
Aquela cocaína agora cairia bem, nunca precisei disso antes, não é hora para se
lamentar, olhei pelo retrovisor, eles estavam saindo, aguardei até passarem por
mim, saí lentamente e os segui pela Avenida João Dias, estavam indo sentido
bairro.
Tentei me manter alerta, fui indo na maciota pra não perdê-los de vista e nem
ficar próximo demais para ser notado. O sol estava roubando a cena nos ceús.
Faltando duas quadras para chegar na ponte, eles aceleraram, mas não acho que
eles me viram, o movimento ainda estava vazio, era cedo, quando fui acelerar na
sequência, tive um apagão, minha cabeça foi em queda livre no volante, bateu e
voltou, virei o volante tentando segurar firme, meu carro derrapou e bati no poste
da guia. Minha cabeça bateu de novo, avistei ao longe o carro do Estranho sumindo
na ponte enquanto minha vista embaçava e apaguei de vez.
25.

Fazia tempo que o céu não estava tão azul daquele jeito, meus pés estavam
descalços, senti a areia por entre meus dedos, coqueiros por toda a parte, uma
linda casa de praia atrás de mim, eu estava usando aquela bermuda florida que eu
tanto gosto, mas o trabalho nunca me permitia usar, do meu lado, estava Tábata
sorridente com os bicos dos seios apontado para mim, com certeza aquilo era um
sonho, pois era paraíso demais para mim, se eu tivesse morrido eu estaria numa
plataforma de trem preso numa fila interminável morrendo de calor tentando
fazer uma transferência para o metrô andando como um pinguim, mas sem nunca
conseguir sair de lá.
Definitivamente eu devo estar vivo, mas porque não aproveitar esse lugar
paradisíaco enquanto posso, se eu não morresse essa seria uma boa forma de
aposentar.
Enquanto eu molhava meus pés, comecei ouvir ao longe:
- “Wagner! Wagner!”
Pensei em ignorar a voz, mas pouco a pouco era a única coisa que conseguia
ouvir, minha vista ficou escura e de repente comecei a abrir os olhos e Tábata
estava ao lado do médico, que examinava minhas pupilas com uma lanterna, ela
segurou minhas mãos, estavam quentinhas, senti certo conforto, a chance de eu
ficar em uma maca jogado num corredor de um hospital público sempre foi alta,
mas não era o caso.
O médico disse que eu tive concussões leves, eu estava somente em observação,
no máximo até o dia seguinte pretendia me dar alta, eu não tinha quebrado nada,
porém, eu com certeza estava bem endividado, todas as multas por infração de
bebida alcoólica, mais o estrago na minha caranga, daria uma bela dor de cabeça.
- “Agora, Wagner, você vai tomar sua medicação para dor e logo vem o jantar.
Repouso total! Combinado?” – o médico perguntou - ele era bem simpático.
Tomei os analgésicos, mas na verdade eu me sentia pronto para outra batida, a
dor maior era minha cabeça, mas nada que eu já não tenha sofrido de forma bem
pior. O doutor saiu do quarto, peguei o controle remoto para ver o que tinha de
bom na TV a cabo.
- “Tá se sentindo melhor, bem?” – Tábata perguntou com carinho.
- “Estou sim, amor!”, respondi. Notei a felicidade no rosto dela por eu ter
falado amor.
A Tábata ficou deitada no sofázinho do quarto enquanto eu comia, era
necessário apenas que eu cagasse e eu estaria liberado, mas sobre pressão fica tudo
mais difícil.
Dormi como um bebê, acordei cedinho, me sentindo bem disposto, fui direto
para o banheiro e tudo havia voltado ao normal, minha habilidade em fazer
cagadas estava reabilitada. Antes de chamar o médico, comecei a cutucar a Tábata,
ela despertou estranhando.
- “Não, Wagner, é perigoso!”
- “Perigoso nada, uma rapidinha!” – retruquei.
Ela ficou de lado ali no sofá mesmo, dei quatro bombadas e gozei, estava
exausto. Deitei novamente.
- “Chama o médico para me dar alta, amor!”
Cochilei novamente. Duas horas depois eu despertei assustado, puto por ainda
estar no hospital, para minha surpresa, o novato estava no quarto junto com o
médico e ninguém mais.
- “Você já tá liberado, Wagner!”
- “Obrigado, Doutor!”
Enquanto ele saía da sala, Cristiano falou:
- “Se sentindo melhor?”
- “Pronto pra outra!” – respondeu.
- “O que aconteceu aquela noite?”
- “O Estranho tava no Muchas!”
- “Sério? Você não me falou nada! Sou louco para ver a cara desse desgraçado!”
- “Melhor você não ter visto, Cris.”
- “Fui visitar o Elon no presídio.”
- “E aí?” – questionei atento.
- “Acho que ele vai colaborar, tô ameaçando ele, dizendo que vão apagar com
ele lá dentro, o que no mínimo vai acontecer em algum momento.”
- “Esse cara é o único que pode testemunhar a nosso favor e conseguir algo
consistente para prendermos o Estranho em tribunal.” – ponderei.
- “Sim, Wagner, eu sei, tô tomando cuidado.”
- “E no DP? Falaram algo de mim?”
- “As coisas tão silenciosas por lá, melhor você não se preocupar com isso
agora.” – ele alertou.
Tinha algo que ele não queria me contar...
- “Certo, Cris, o Estranho ainda tá no bairro, preciso descobrir aonde ele tá se
escondendo.”
- “Outra coisa, Wagner, faz mais de quarenta e oito horas que o Alberto está
sumido.”
- “Como assim, novato?” – fiquei surpreso.
- “Encontraram o carro dele num campinho abandonado, com celular, e
ninguém tem notícias dele.”
- “Tão apagando todo mundo nessa porra, deve ter muito dinheiro no meio
para isso tudo.” – concluí.
- “Elon é tudo que temos agora para conseguirmos alguma prisão. Foco nele!” –
acrescentei.
Arrumei meus poucos pertences, encontrei um cartãozinho escrito “Vale um
Drink” no bolso, Cris foi embora, Tábata estava esperando por mim do lado de
fora, me abraçou e saímos daquele hospital.
26.

Eu tinha somente um dia de atestado médico para descansar, eu tava na casa


da Tábata, recebendo comida na boca, trepando quando bem entendia, eu estava
ficando mal acostumado, minha preocupação era com a minha gata, devia estar
desesperada procurando ração pela casa, precisava ir vê-la o quanto antes.
Debrinha estava irritada comigo, me evitando, passei em casa só para alimentá-
la, fui até meu guarda-roupa pegar algumas coisas, pude ver minha coleção de
bermudas, uma delas era florida, último presente da minha mãe, fazia tempo que
eu esperava encontrar uma ocasião para usá-la, mas ainda não tinha encontrado.
Passei no Elvis, pedi aquele favor camarada, retirar meu carro do pátio e arrumá-
lo, entreguei algumas economias pra ele, sabia que podia confiar. Voltei pra
Tábata, aquele apartamento estava tomado pelo cheiro do jantar, por alguns
instantes pensei se era possível eu ter uma vida normal, com uma esposa legal,
chegar em casa com a sensação de dever cumprido, será que um homem precisa de
algo mais além do que isso?
Comi como se fosse a última vez da minha vida, Vinicius claramente se
incomodava com a minha presença, mas não me dirigia a palavra, eu tinha um
plano pra fazer ele falar, mas agora não era o momento.
Fomos pro quarto cedo, assistimos um filme e dessa vez rolou algo mais íntimo
que o carnal entre nós, estava começando a gostar dela de verdade, senti vontade
em retribuir todo aquele carinho, dormimos abraçadinhos e eu nem me lembro
quando foi a última vez que fiz isso.
No dia seguinte levantei animado, tomei um longo banho, me sentia
preparado para voltar ao trabalho, o caso de Angélica poderia ser minha redenção
como ser humano, além de me proporcionar possíveis promoções no trabalho.
Chegando no DP, aqueles putos todos me olhavam e cochichavam, no mínimo
torceram para minha morte no acidente, minha mesa estava intacta, do jeito que
eu deixei, com exceção da minha gaveta, por dentro parecia ter sido revirada,
alguém sentiu falta do arquivo que eu roubei da sala do Delegado. Ainda está na
minha casa.
Cristiano estava com cara de velório pra mim, enquanto eu me organizava,
ouvi me chamarem:
- “Wagner.”
Era o Victor, pelo jeito eu estava fodido. Fui até a sala dele.Fechou a porta e
pediu pra eu sentar.
- “Vou ficar de pé mesmo.” – respondi seco.
- “Certo, detetive.” – afirmou suspirando.
Dava pra ver que ele não suportava minha fuça, pelo jeito ele também tava
enfiado até o talo na corrupção.
- “Tá omitindo algo sobre o que está investigando?”
- “Reporto semanalmente tudo que tenho feito.” – respondi na lata.
- “Infelizmente, Wagner, você estava alcoolizado quando sofreu o acidente,
portanto, entregue seu distintivo e arma. Não posso tolerar esse tipo de coisa.” –
falou com um sorriso amarelo na cara.
- “A corregedoria tá pedindo sua cabeça, tentei negociar, mas você sabe como
funciona essas coisas! Não é nada pessoal!” – continuou.
Sei, não é não, pau no cu!
Continuei em silêncio, senti meus punhos cerrarem naturalmente, mas sabia
que não podia cruzar essa linha.
- “Preciso que deixe seu distintivo e arma na mesa. Sua licença tá suspensa.”
Não pestanejei, tirei o distintivo do bolso, peguei o coldre e a arma e coloquei
na mesa, me virei sem falar uma palavra e saí da sala.
Passei no meu armário, peguei minhas coisas, Cris veio falar comigo, ele já
sabia que eu seria suspenso, mas dessa vez eu entendo o lado dele, complicado me
avisar sobre algo assim, limpei minha mesa rapidamente, queria evitar o olhar de
pena de algumas pessoas, aquilo acabaria ainda mais comigo.
- “Tudo bem com você?” – Cris perguntou.
- “Tudo certo, novato, preciso só de um tempo pra me recompor!” – respondi.
Preciso mesmo é de uma bebida.
- “Eu ainda tô no jogo, novato! Continua seguindo o plano!” – completei.
- “Pode deixar, Wagner.”
Saí, chamei a porra de um Uber, ficar sem carro é uma bosta, desempregado
então nem se fala. Fui direto pro bar do Firmino.
- “Vai de quê hoje, patrão?”
- “Me manda uma dose de conhaque com limão e já me traz uma cerveja.”
Fui na jukebox, queria ouvir algo que me deixasse pra cima, tive que apelar pro
Samba, não era a minha praia, mas sempre tive a impressão que nos bares lotados
tocando esse tipo de música, as pessoas eram as mais animadas do mundo, eu
precisava ser contagiado com aquilo. Em alguma coisa eu devia ter sorte no dia de
hoje, desafiei o Firmino pra algumas fichas, milagrosamente ele aceitou, deve ter
percebido meu desespero e a minha cara de fracassado. Jogamos dez fichas.
Ganhei cinco, ele queria desempatar mas preferi manter assim. Sosseguei numa
mesa e exatamente quando a última música que tinha colocado acabou, meu
celular tocou. Era a Beatriz.
- “Oi.”
- “Meus pêsames pelo trabalho!”
- “Sem problemas! Eu mereço mesmo!” – lamentei.
- “Concordo. Enfim! Verifiquei o que me pediu, vou te mandar no e-mail.”
- “Eu nem lembro sobre o que falamos, Bia.”
- “Porra, Wagner! A herança do Roberto Rocha...”
- “Ah, tá! Eu quase morri depois disso, não tinha como lembrar!”
- “Nem vem com essa, o Cris falou que foi leve.”, respondeu com deboche.
- “Agradeço de coração por mais esse favor, Bia, vou ficar te devendo.”
- “Tudo bem, Wagner, vê se toma mais cuidado nas próximas...”
- “Pode deixar.” – desliguei.
Fui direto pra casa, meio trôpego, não me contive, liguei minha máquina, fui
pesquisar mais sobre aquele documento, chequei os nomes de todos os herdeiros.
Luís era mencionado com partes iguais ao de Alberto, Frank também tinha uma
pequena participação nos negócios, Delson também possuía uma pequena parte,
porém Joel tinha direito a maior fatia, ao olhar os nomes da sua paternidade,
informava que Joel era filho bastardo de Roberto. Por algum motivo desconhecido
o velho deixou a maior parte da sua grana para o Estranho.
27.

O que faz um homem podre de rico se sujeitar ao tráfico e as favelas? Existe a


chance de ele desconhecer seus laços sanguíneos e também não fazer ideia dos
bens que tem direito ou gostar da vida que leva, pode ter sido ensinado a viver
assim, mas isso não importa no São Luís, estão ocupados demais pra se preocupar
com o que acontece em um bairro.
A ressaca estava forte, tinha duas ligações perdidas do novato, eu estava me
sentindo sem rumo. Chega certa idade da sua vida, que você não pode se dar ao
luxo de parar pra pensar por mais que um minuto, nosso cérebro gosta de esfregar
na nossa cara todos os fracassos que cometemos na nossa jornada, seu corpo antes
mesmo de você decidir já está desistindo por você, é necessário encontrar forças
sobrenaturais para conseguir pelo menos se manter em pé e eu estava quase
desistindo...
Não abri a janela e nem vi a luz do sol, fiquei morto no sofá, acariciando
Debrinha, vendo filmes antigos e bebendo todos os restos de bebida que ainda
tinha sobrado em casa. Meu telefone tocou novamente, era a Tábata,
provavelmente queria notícias minhas e essa é a parte ruim de ter um
relacionamento, não se pode sumir sem mais nem menos. Ignorei a ligação. Horas
mais tarde o novato me ligou de novo!
- “Que foi?”
- “Onde você tá?”
- “Em casa.”
- “O Alberto foi encontrado morto na Rua dos Porcos.”
- “Caralho!” – respondi surpreso.
- “Trabalhei o dia inteiro no local, fui falar com Elon agora há pouco, me
pareceu mais assustado que o habitual.”
- “Mais do que nunca, Cris, isso tá com cara de “eu quero ficar com a herança
toda pra mim”.”
- “Sim, a Bia me mostrou o documento.”
Fiquei sóbrio com a notícia, o cerco estava fechando.
- “Eu vou atrás do Luís, é o que nos sobrou!”
- “Certo, Wagner, toma cuidado, me chama se precisar de ajuda!”
- “Fica tranquilo... Me responde uma coisa, quem foi que chegou primeiro no
local?”
- “Uma moradora ligou dizendo que viu um carro parado, e quem chegou foi o
Fábio.”
- “Filho da puta, né? Tem o dom pra achar coisa errada nesse bairro, que
coincidência da porra!” – afirmei com desdém.
Vesti um casaco, o tempo estava ameno, pus meu oitão na cintura e saí de casa,
fui a pé para oficina do Elvis, estava fechada, chamei algumas vezes no portão ao
lado. Ele veio atender:
- “E aí, Wagner! Precisa de ajuda?”
- “Preciso de um favorzaço, sei que minha caranga ainda não tá pronta, consegue
me arrumar algum carro velho pra eu ir resolver uns B.O.?”
- “Opa, não é grande coisa, mas te arrumo sim.”
O Elvis abriu a garagem, descemos a rampa, fitei meu Voyage no canto, estava
com saudades de mim. Mais pro fundo havia um Escort 93 bem velho.
- “Tá ruim, mais aguenta umas voltas no bairro, Wagner!”
- “Vai ser esse mesmo! Te devolvo quando?”
- “Quando eu terminar o seu.”
- “Fechado.”
Saí de lá e fui perto da Padaria Tradição, é aberta vinte e quatro horas, mas
quando passei em frente estava fechada com uma placa: “fechada por luto”. Fiquei
dando voltas sem rumo pelo bairro, passei pela favela do Celeste, o movimento
estava normal, a vontade era descer e encontrar o Estranho e pôr fim nele, mas
pelo jeito ele deve ser tão peão quanto eu nesse jogo.
Meu celular começou a tocar, meu corpo todo tremeu, quando vi no visor,
estava escrito: “mãe”, por um instante eu quis acreditar que era ela me ligando
para me xingar, lembrei que dei o celular pro garoto, era o número que ela usava.
- “Tio!”
- “Lembrou de mim, guri?”
- “Sim, entrou um monte de gente na pracinha nova.”
- “Boa, garoto! Vou pra aí agora!”
- “Quero meus cem reais!” – Pedrinho disse com firmeza.
A que ponto chegou essa investigação, estou sendo guiado por um garotinho.
Cheguei em quinze minutos, mas passei no açougue primeiro, a rua desta vez
estava mais movimentada que antes. As obras já tinham evoluído muito mais, o
lançamento estava próximo, o muro estava menor, não era mais lacrado, dava pra
ver de fora, entreguei o dinheiro pro garoto e agradeci.
- “Dessa vez não venha atrás de mim, moleque!” – completei ríspido.
Ele saiu correndo todo alegre com o dinheiro na mão, deixei o celular com ele
também, cumpro minhas promessas.
Dessa vez a dificuldade era ainda menor pra entrar no local, o container ainda
estava no meio, dessa vez além de um carro luxuoso, havia um veículo policial
estacionado, como não gosto de me dar mal com caninos, trouxe comigo um bife
bem cru e suculento, fiquei esperando o cachorro aparecer, antes de começar a
rosnar, ele olhou bem para minhas mãos, estava com fome, me aproximei
lentamente, acariciei a cabeça dele, dessa vez ele não ia me causar mais problemas.
Fiquei completamente soturno, esperando o momento certo para me
aproximar sem ser visto, cheguei ao mesmo ponto estratégico da última vez, fiz o
dever de casa e trouxe um gravador comigo. Olhei rapidamente, Delson estava lá,
Luís também, e para minha surpresa Fábio conversava com eles. Eu praticamente
não respirava, creio que eles não esperam que alguém venha aqui novamente.
- “As coisas tão indo bem, só falta a gente se livrar do Estranho!” – Luís afirmou!
- “Fica tranquilo, ele pensa que estamos juntos nessa com ele, mas vamos
cuidar de tudo não é mesmo, Fábio?” – Delson questionou!
- “Pode deixar, chefe!”
- “Preciso que tudo isso esteja resolvido até o dia da inauguração da praça!”
- “Fica tranquilo, já encomendei tudo!”
- “E aquele detetive? Vamos ter problemas?”
- “Não vamos!” – Fábio completou.
- “Vê se não manda nada pelo celular, não podemos dar um vacilo!” – Delson
falou.
Meu corpo arrepiou, não sabia se falava de mim ou do Cristiano. Continuei
calado sem um suspiro, Fábio, saiu, o acompanhei com o olhar até seu carro, me
mantive escondido até ele sumir da minha vista, os outros dois continuaram lá
dentro, quando olhei novamente pela fresta, estavam se beijando, puta que pariu,
parentesco e homossexualismo na mesma jogada. Assimilei o golpe, mas continuei
firme, os dois pararam de falar e saíram, fiquei esperando até o carro partir
daquele local.
O Estranho, eu e o Cristiano estamos correndo sério risco de vida.
28.

Não preguei o olho a noite toda, o novato não me atendia de jeito nenhum,
liguei umas vinte e cinco vezes.
Mandei alguns SMS; “cuidado com o Fábio...” Não me retornou!
Às oito da manhã eu estava no condomínio da Beatriz, mas ela também não
estava em casa, mas respondeu que estava trabalhando desde cedo.
Meus olhos estavam vidrados, estava alerta, com o revólver próximo, qualquer
barulho me assustava, sabia que em algum momento alguém viria atrás de mim, já
era meio dia, eu não tinha comido nada ainda.
Minha campainha tocou, lentamente fui ver pela janela, pela graça de Deus era
o Cristiano.
- “Onde você tava, porra?” - perguntei enquanto abria a porta.
- “Ele vai falar, Wagner!”
- “Quem porra?”
- “O Elon, caralho! Passei a noite na prisão negociando com o advogado e ele.”
- “Eu sei onde tá o dinheiro e melhor, sei em qual casa o Estranho de verdade
tá se escondendo!”
- “Se não acharem ele primeiro!” – respondi friamente.
- “O que você quer dizer, Wagner!”
- “Cris, você precisa tomar cuidado, acho que estamos na mira!” – adverti.
Pelo menos sou eu ou ele que está, mas vou guardar pra mim.
- “O que você descobriu?”, Cris questionou.
- “Delson está por trás de tudo, essa merda inteira é só por causa de dinheiro e
bens, até o Joel está sendo usado por aquele político de merda e acho que ele está
na mira também.” – falei com franqueza.
- “Estamos perto, Wagner, com o Elon podemos rastrear a origem do dinheiro,
prendemos o Estranho, Delson, seja quem for...” – Cristiano retrucou.
- “Tenho medo de não ser tão simples.” – avisei.
- “Amanhã o advogado vai entregar o documento com tudo que o Elon sabe, a
proteção pra família dele já está garantida. Talvez a gente descubra até quem
matou o Frank!” – disse empolgado!
- “Certo, Cris, tenha cautela, as coisas tão mais perigosas do que você está
enxergando!” - adverti.
Lavei um pouco o rosto, e fui juntamente com o Cris até a favela do Celeste,
fomos até onde o Elon disse que o Estranho estaria. Descemos a viela com cautela,
tinha algumas crianças jogando bola, ignoraram a gente, descemos algumas
escadas, estávamos em corredores apertados, até que chegamos num portãozinho
velho de madeira, estava entreaberto, saquei meu oitão, Cris estava com uma
Glock, inclusive acho que era a minha, não perdeu tempo e já está usufruindo da
minha suspensão. Tudo ficou silencioso, entramos num barraco, lá dentro estava
uma zona, parecia ter sido recentemente vasculhada, olhamos o próximo cômodo,
pude ver um pé sobressaindo por detrás de uma cama de solteiro velha, me
aproximei devagar para checar e quando olhei, Joel estava com os olhos vidrados e
abertos, com um furo na testa. Era o fim do Estranho, tinha sido assassinado.
- “É ele, Wagner?”
- “É sim.”
- “Merda, merda!” – Cris reclamou.
- “Como enganaram ele nessa história toda, eu não sei, mas acabou pra ele!”
- “Com esse corpo a gente pode fazer alguma coisa, Wagner.” Enquanto eu
vasculhava o resto da casa, Cris chamou a polícia, que lotou a favela juntamente
com a perícia, saí de cena para não arrumar nenhum problema pro Cristiano.
Esperei pacientemente o Cristiano sair do local do ocorrido, quando ele
voltou, começamos a discutir os próximos passos.
- “Precisamos alinhar o discurso, Cris.”
- “Quem vamos indiciar?”
- “O vereador Delson.”
- “Como, Wagner? Que provas temos?”
- “O corpo do Estranho, a delação do Elon e uma conversa que eu gravei
recentemente.”
- “Como assim? Onde você conseguiu isso?”
- “Eu te disse que não desisti do caso, eu sou pior que pedra no sapato,
novato!” – brinquei.
- “Além do mais, posso depor como testemunha ocular da conversa!” –
completei.
- “No máximo conseguiríamos prender o Fábio! Não é o suficiente para o
Delson.” – respondeu desconsolado.
- “Se o Elon falar tudo, será!” – ponderei.
- “Trabalha no relatório inteiro e guarda isso aqui a sete chaves!” – falei
enquanto entregava o gravador para o Cris.
- “Certo, Wagner!”
- “Estamos juntos nessa, parceiro!” – falei.
- “Agora vai descansar um pouco.” – concluí.
29.

Passaram somente três dias, eu ainda não consegui ter uma noite de sono
decente, mas o dia havia começado com boas notícias na televisão.
- “O vereador Delson hoje cedo foi convidado a depor em resposta a acusação
de ter sido o responsável de múltiplos assassinatos no bairro do Capão Redondo,
Zona Sul de São Paulo, a polícia afirma haver provas e testemunhas chaves para
ajudar na evolução do caso, o detetive Cristiano Valle é o responsável pela
operação. Em resposta, o vereador falou ao jornal.” – completou a jornalista.
- “A justiça será feita, eu tenho prezado somente o bem pelas pessoas do meu
bairro, em breve tudo isso será somente um mal-entendido.” – ele afirmou.
Tudo que acontece aqui no bairro, sai no jornal como Capão Redondo, é
incrível como a mídia acha que aqui se resume somente a esse nome.
A coisa estava finalmente andando, Fábio também estava sendo procurado,
mas alguém da própria polícia estava ajudando ele a se esconder, com certeza ele
tem algo consigo que o incriminaria por agora, enquanto Luís Rocha, também foi
convidado a depor, mas creio que ele se safa tranquilo dessa.
Apesar do processo judicial ter começado, eu estava preocupado, pois sabia que
eles miravam algum detetive, agora mais do que nunca o novato tinha que estar
atento, seu nome passou na TV, os moradores no mínimo estavam putos com ele,
em frente ao DP, as pessoas se aglomeraram demonstrando apoio ao vereador, a
coisa é meio louca aqui.
Tudo estava indo muito bem com o advogado de Elon, a família dele estava
protegida, tínhamos o dinheiro, porém ele ainda não confirmou quem matou
Frank, Cris estava andando com três policiais, por onde quer que ele fosse, era
melhor prevenir do que remediar.
A vantagem de estar desempregado, é que agora eu desfilava de bermuda por
toda a parte, usufruindo do meu fundo de garantia sem pestanejar, não pensava
mais em futuro, meu futuro era agora. Após uma semana fui no feirão com a
Tábata, comer um pastel e tomar um digno caldo de cana, excelente para curar
ressacas, estava chateada pelo meu sumiço, mas percebi o alivio dela ao ver que eu
estava bem, apesar de todos os últimos acontecimentos.
Recebi uma ligação inesperada durante o almoço:
- “Fala, novato!”
- “O Elon foi morto na cadeia e o advogado dele sumiu!”
- “Como assim, cara? Que porra!”
- “O Fábio deu as caras para depor! Bem conveniente.”
- “Filho da puta!”
- “Que foi, Wagner?” – Tábata questionou!
- “Não é nada!” – respondi para ela!
- “Mantenha a calma, Cris! Vamos pensar numa alternativa, temos a gravação e
eu como testemunha.”
- “Você sabe que eles vão entubar!”
- “Sim!”
Ele tinha razão, a gente não tem mais nada, o corpo de um bandido não vale porra
nenhuma, é um a menos.
Mais tarde naquele mesmo dia, eu estava deitado na cama da Tábata vendo o
jornal com ela, e a matéria dizia: “Vereador Delson é inocentado por insuficiência
de provas”.
- “Como eu disse, tudo não passava de um mal-entendido, e meus planos não
mudaram, a nova praça do bairro vai ser inaugurada o quanto antes para a
comunidade, falta pouco!” – Delson afirmou eufórico para o repórter.
Desliguei a televisão, estávamos sem opção, no fim a justiça só acontece nos
filmes, na vida real, só de estar vivo, já é um motivo para agradecer, transei uma
rapidinha com a Tábata, virei pro outro lado e dormi.
30.

O documento que o advogado possuía continha o nome do autor do


assassinato do Frank, mas ninguém sabe que porra que fizeram com ele, sumiu do
mapa. A morte do Estranho também foi arquivada por falta de provas, na minha
gravação, Luís falou somente: Estranho, e para a justiça ele já estava preso, estou
falando do Elon, nosso bode expiatório, Joel foi somente mais uma vítima de
assassinato assim como Angélica. Já Elon, foi assassinado por outro presidiário
bem violento, o que seria algo normal na cadeia. Descartaram a conexão da
conversa gravada com a morte deles, além de considerarem a possibilidade de não
serem eles no áudio.
Estávamos todos na estaca zero e eu tinha apenas um mero palpite de quem
matou a Angélica e do porque sobrou pra coitada no fim das contas. Tomei um
café reforçado, peguei minhas coisas e saí apressado, no hall do condomínio,
parecia um retrato, os merdinhas maconheiros estavam lá na mesma posição
fumando, meu praticamente enteado estava lá! Cheguei abruptamente no meio
dos moleques.
- “E ae, seus merdinhas!” – com meu oitão na mão.
Alguns deles se dispersaram, somente dois ficaram e um deles era o Vinicius.
- “Que você tá fazendo, Wagner?” Ele perguntou assustado.
- “Você vem comigo guri, agora!” – respondi incisivo apontado o cano pra ele.
- “Minha mãe sabe que porra que cê tá fazendo?”
- “Melhor calar a boca, moleque, pra não sobrar pra ela” – blefei.
Arrastei ele até o carro velho.
- “Entra aí!” – gritei.
- “Você nem é mais policial!” – ele respondeu
- “Por isso que você devia ficar mais preocupado.”
Dei umas voltas com o arrombado, ele estava muito desconfortável, dessa vez ia
fazer esse moleque abrir a boca. Encostei o carro próximo a uma rua sem saída,
com um grande muro, atrás havia torres de energia elétrica.
- “É o seguinte, Vinicius! Eu sei que a Angélica estava grávida!” – afirmei
eloquente.
O moleque ficou branco na hora, ele sempre soube.
- “Eu não sei de nada!” – Vinicius respondeu desesperado.
A mentira dele dessa vez tinha até cheiro, então eu continuei:
- “Já estou preparando o caso da morte dela, você como pai do filho da vítima e
principal suspeito. Como vocês eram amiguinhos e viviam juntos, pelo visto você
tava comendo ela, seu merdinha.”
- “Tá louco, Wagner! Eu não tenho nada a ver com isso!”
- “Agora tem, vou te foder moleque, agora é melhor você abrir o bico!” –
respondi com ignorância, dando um tapão na cabeça do moleque. Meu oitão
seguia friamente apontado pra ele, dessa vez ele começou a chorar.
- “Tá bom, tá bom! Ela tava grávida mesmo, mas não é meu!”
- “Então de quem é, seu merda?” – perguntei abruptamente dando outro tapa
na cabeça dele, ele chorava ainda mais.
- “É do vereador!”
- “Como assim? E o Estranho?”
- “Eu não sei!” – respondeu em prantos!
- “Sabe sim, filho da puta!” – dei outro tapa na cabeça e dessa vez com muito
mais força.
- “Ela nunca namorou o Estranho, andava com ele, por que o Delson não queria
ninguém perto dela.”
- “Entendo, moleque.”
- “Nós nos víamos escondidos, era minha amiga, ela tava com medo, mas não
tinha o que fazer, ela ia abortar, mas o Estranho não acreditou.”
- “A porra do vereador é gay, Vinicius!”
- “Ele gosta de tudo!” – respondeu.
- “Quem ele quiser daqui do bairro, ele tem!”
- “Então ele matou Angélica?” Questionei em tom mais brando.
- “Não sei!”
Ameacei bater novamente, mas desta vez hesitei e perguntei:
- “Não sabe mesmo, moleque?”
- “Sim, foi ele! Eu juro, não sei mais nada.” – respondeu chorando.
- “Você viu?”
- “Sim, eu tava lá na hora, me escondi no muro dos predinhos.”
- “Tá certo, moleque.”
Abri a porta do carro e falei:
- “Vaza daqui!”
- “Mas aqui tá meio longe de casa.”
- “Se vira, moleque! Se tivesse me contado antes, não tava passando por isso.” -
respondi friamente.
Acelerei o carro e saí dali. Estava montando um dossiê de tudo que eu tinha
sobre o caso, gravei a conversa com o Vinicius, apesar dos meus métodos
agressivos, eu estava disposto a pagar pelas consequências, desde que eu fodesse o
vereador.
Passei no Elvis, agradeci pelo Escort, salvou o meu rabo, ele me disse que eu
podia passar lá no dia seguinte pra pegar meu carro.
Fui pra casa, coloquei a Debra no colo e fiquei acariciando sua pele enquanto
ela ronronava, no meu celular havia algumas ligações perdidas, nem olhei quem
era. Acendi um cigarro, lembrei do Alfredo, um velho dono de uma padaria em
frente ao DP, foi o único que vi fazer cara de orgasmo a cada tragada.
Deixei meu revólver ao lado e fiquei pensando nas possibilidades de tudo, o
Estranho era só um capacho, que podia ter seguido um caminho totalmente
diferente, sua imponência no bairro era admirável, seu reinado durou anos,
mesmo sendo marionete do Delson, me pergunto se faria escolhas diferentes, se
soubesse que era filho bastardo com direito a uma herança robusta.
Se Angélica pudesse ter se safado da armadilha que estava presa, ela teria
trilhado um caminho diferente?
Nunca saberei...
31.

Uma habilidade que a minha mãe tinha, era o dom do mau pressentimento,
sempre sabia quando alguma tragédia iria acontecer, ou se alguém próximo ficaria
mal, sabia até quando a morte estava por vir nas nossas bandas, não quero que
pense que ela era uma espécie de médium, não era nada disso, era somente uma
mulher muito fervorosa com uma sensibilidade tremenda para detectar
acontecimentos ruins, até mesmo a sua própria morte, ela cantou para mim em
uma de nossas últimas discussões, mas eu não dei bola, deixei o orgulho falar mais
alto e nunca nos despedimos.
Às vezes eu creio que tenho esse dom que ela tinha, levantei bem cedo com um
arrepio na espinha, uma dor no peito estranha, quando resolvi checar minhas
ligações perdidas da noite anterior. Uma delas era do Cristiano, as demais eram da
Beatriz.
Tentei ligar para o novato, deu caixa postal direto, em seguida liguei para
Beatriz. Ela estava chorando, perguntei o que tinha acontecido, então ela me
respondeu:
- “O Cristiano está morto, Wagner!”, afirmou soluçando.
Fiquei sem reação, senti meu corpo estremecer, sem dar conta meus olhos
estavam umedecidos, pensei no quão jovem ele ainda era e no futuro promissor
que tinha.
- “Tô aqui para o que você precisar, Beatriz.” – respondi com cautela.
Meu plano era visitar o Luís na padaria, mas agora um vazio enorme habitava
no meu peito, fui para a oficina do Elvis, meu Voyage me esperava novinho em
folha, fui direto para o DP. Alguns colegas me deram condolências
Procurei diretamente o delegado Victor, pedi que me contasse o que havia
acontecido. Ele estava evasivo, senti cheiro de falcatrua só pela respiração dele,
Cristiano provavelmente tentou me avisar de algo ao me ligar, mas o ponto é que
ele não morreu sozinho, o policial Fábio também estava morto.
A historinha que estava sendo contada no DP é que Cristiano encurralou
injustamente um policial e o apunhalou pelas costas, ou seja o agrediu de
surpresa, ninguém sabia como tinha acontecido, mas encontraram os dois mortos
na mesma calçada próximo a um posto de gasolina da Avenida do Terminal João
Dias.
Colocaria minha mão no fogo por Cristiano, sei que no mínimo ele estava
investigando, eu disse para ele me esperar, íamos encontrar outro caminho, mas
agora é tarde demais.
Eu estava indo em velórios demais ultimamente, vai ver essa é uma das sinas de
ficar mais velho, porém não são idosos que tenho visto sendo enterrados.
A família do novato estava lá, consegui ver de relance o pai dele, tinha traços
similares. Lembrei de quando almoçamos a primeira vez e enxerguei ali uma
determinação nele que eu já tive no passado, foi ceifado buscando justiça por
pessoas que nem são do meio dele, posso dizer que aprendi bastante com ele e
apesar das nossas diferenças e desentendimentos, foi um amigo que pude contar
esse tempo todo.
Beatriz estava em prantos, realmente ela gostava dele, me aproximei com
cautela, dei-lhe um longo abraço, foi sincero da minha parte, a respeito muito, me
senti incapaz por não poder fazer nada e, o pior de tudo era que o nome de
Cristiano foi manchado sendo tachado como responsável em querer apagar o
Elon, e transformaram Fabio num herói, quando na verdade era o inverso.
O delegado Victor está até o talo no envolvimento dos esquemas locais com o
vereador, depois do velório eu reuni todas as informações e gravações do caso,
sobre todos os envolvidos nos crimes que ocorreram, entreguei na mão de Beatriz,
pedi pra ela fazer tudo o que pudesse para expor na mídia e acabar com a imagem
dos cuzões dos Rochas.
Sem meu distintivo eu era quase um inútil, deixei a Beatriz em casa que estava
sem condições de dirigir um carro, a abracei novamente, e dessa vez a habilidade
que minha mãe possuía parecia vir à tona, pois percebi que senti que era a última
vez que a veria, então a abracei novamente.
- “Você sempre foi uma amiga e companheira leal!” – falei com timidez.
- “Me perdoe por tudo que fiz, você sempre vai merecer algo melhor!”
Ela não me respondeu, mas ficou cismada com o que eu estava dizendo, dei
um beijo em seu rosto e parti.
Minha próxima parada era a padaria Tradição, com meu oitão na cintura,
precisava das minhas últimas respostas.
Entrei na padaria, tinha poucas pessoas, estava próximo das quatro da tarde.
Luís estava no balcão, me ignorou por completo, fiquei encarando de onde eu
sentei, pedi uma garrafa de cerveja, o garçom também me olhava estranho, nunca
foi com a minha cara esse filho da puta e eu muito menos com a dele.
Com o passar do tempo Luís se incomodou, continuei encarando, bebericando
de golinho e golinho, aquela garrafa duraria um mês inteiro na velocidade que eu
estava ingerindo. Então ele me chamou pra ir ao balcão. Levantei como quem não
deve nada, me aproximei e ele disse cinicamente:
- “Meus sentimentos aí pro seu colega de trabalho! Quer dizer... você nem
distintivo tem! O que faz agora da vida?” – perguntou ironicamente.
- “Eu tenho trabalhado muito em observar os passos de algumas pessoas.” –
respondi em seguida.
Levantei disfarçadamente minha camisa e mostrei minha arma para ele, e
emendei em tom ameaçador:
- “Não tenho mais nada pra perder, então vim aqui dar a letra pra você, tá na
sua mão o que vai acontecer dentro dessa porra de padaria hoje.”
- “Calma, Wagner, você ainda tem a amiguinha repórter!”
- “Eu não posso provar mais nada, nem policial eu sou mais, mas se eu fosse
você eu abria o olho, seu namoradinho continua pegando varias menininhas do
bairro.”
Ele reagiu surpreso com o que eu disse, continuei então no meu blefe.
- “Você acha que Angélica era a única que ele se envolvia?” – questionei.
- “Praticamente todo esse bairro era do meu pai e agora é meu! Não vou dividir
com ninguém! Das minhas relações cuido eu!” – respondeu com o peito inflado.
- “Você manda matar as pessoas sem mais nem menos! Falta pouco pra eu
deixar toda essa riqueza pro seu namoradinho vereador, basta uma bala na sua
cabeça, tenho certeza que vou ser mais rápido que qualquer um desses garçons
bostas que você tem.”
- “Você quer acabar igual aquela vagabundinha detetive?”
- “Você não merece morrer, a cadeia é melhor lugar pra você!”
- “Eu vejo o seu desespero, não tem nada contra mim e agora quer resolver na
bala.”
- “É Luís, pelo menos eu posso ter paz em saber que você mandou matar
Angélica, por que é uma bichinha ciumenta, gananciosa e sem apego familiar
nenhum.”, concluí.
No mesmo momento ele bateu forte no balcão, todos olharam, me afastei um
pouco.
- “Sai daqui!” – Luís falou com olhar de ódio em direção a mim.
Saí cabreiro da padaria, todo mundo me olhava, parecia que todos ali estavam
acomunados com ele, às vezes os Rochas pareciam divindades na região, somente
pelos méritos das migalhas que davam para a população.
Não havia como provar nada usando a minha palavra, mas Beatriz é ardilosa,
sei que vai usar tudo que tem ao seu favor, eu só tenho mais um ato pra fazer nisso
tudo, mas depois desse chacoalhão que dei no Luís, eu precisava ficar fora do
radar imediatamente.
Peguei minhas principais roupas em casa, joguei tudo no carro, coloquei a
Debra no banco do passageiro, passamos no mercado, peguei algumas bebidas,
apertei minha gatinha com carinho e a deixei na casa da Tábata, ela não queria
muito papo comigo, estava chateada com a forma que tratei o filho dela, mas fazia
parte do ofício, tentei puxar assunto, mas me respondeu somente seca.
- “Por que você vai deixar sua gata aqui?”
- “Ela vai precisar de um dono, se não for ficar com ela, vai saber a hora de
procurar alguém pra ela.”
- “Como assim, Wagner? O que quer dizer?” – perguntou preocupada.
- “Nada, amor! Até logo!”
Saí. Não gosto de despedidas. Prefiro acreditar que sempre haverá uma nova
chance, mesmo não havendo.
Me hospedei num hotel barato em Santo Amaro, TV a cabo, ar condicionado,
levei as bebidas, eram dias suficientes para eu descansar e ter as minhas tão
sonhadas férias, em vez de areia e coqueiros, seriam chão e paredes, faltavam três
dias para a inauguração da praça, e eu não posso perder esse evento por nada.
32.

Dia bonito para quem ainda acredita que a vida oferece segundas chances,
hoje para mim há somente o destino e estou perto de cumpri-lo. Tomei um banho
gelado daqueles que lava completamente a alma, vesti a minha bermuda favorita,
coloquei uma camisa de manga curta folgada, para a minha alegria o dia prometia
calor intenso.
Fiz o check-out do hotel e tenho certeza que o dono pensou por algum instante
que eu tinha morrido dentro do quarto nos últimos dias, pra sorte dele ninguém
tentou entrar, não teria sido uma cena agradável e minha reação muito menos.
Minha 38 estava carregada.
Tomei um café da manhã reforçado, daqueles americanos, com bacon, ovos
mexidos e até salsicha, tomei suco, café, iogurte e tudo mais que estava incluso,
tirei minha barriga da miséria, por um instante pensei se alguém sentiu a minha
falta ou estava esperando notícias minhas. Acredito que não.
Liguei meu carro, respirei fundo, por um motivo que não sei explicar, meus
olhos se encheram de lágrimas, pensei no quanto desperdicei minha vida com
coisas e pessoas erradas, deixei muita gente importante partir e o pior: não ajudei
quem realmente precisou de mim.
Sou somente um cara esquecível, tão fracassado como o meu pai.
Realmente o sol estava fervendo. Era sábado, para alguns, dia de feijoada ou
dia do descanso, até o mesmo o dia do Senhor, para mim: era só mais um dia.
Fui dirigindo até o São Luís, era dez da manhã, passei no Firmino, o bar estava
abrindo.
- “Wagner?”
- “Fala, Firmino!”
- “Pensei que você tinha vazado daqui, tem gente te procurando cara! O que
você tá fazendo aqui?”
- “Coisa rápida, Firmino! Vim só escutar uma música que só tem aqui!”
- “Entra aí! Vou manter as portas fechadas.”
Pela primeira vez na minha vida eu bebi num bar com as portas abaixadas,
tomei uma dose de conhaque e coloquei Belchior, “Conheço meu lugar” é o nome
da música e dessa vez ela fez todo sentido para mim.
Me despedi do Firmino. Passei no Salão do velho João, fui discreto.
- “O que você quer?” – João questionou.
- “Sua filha estava grávida, e a culpa é do Vereador!”
O velho chorou, claramente não sabia que tinha um neto a caminho, porém
me surpreendeu.
- “Eu sempre soube sobre os Rochas, especialmente o bichinha do Luís, mas
não havia nada que eu pudesse fazer.”
Engoli a seco aquilo, João sabia que o Estranho não era o cabeça do bairro,
mas nunca contou para ninguém.
- “Hoje farei justiça, velho!” – afirmei decidido e então saí do salão, não quis
saber qual foi a reação dele com o que eu havia falado.
O bairro estava movimentado, notei olhares por cada rua que meu Voyage
passava, fui em direção ao local da grande inauguração da praça.
Estava lotando aos poucos, parecia que seria uma quermesse da Salgueiro pelo
alvoroço, a obra ficou maravilhosa, um palanque bonito na região central, onde
ficava o container, uma área exclusiva para treinos musculares, uma quadra de
basquete e futsal, o povo estava alvoroçado, havia muitas barracas servindo
cachorros-quentes, pastéis, refrigerantes, as filas estavam se formando, crianças
com algodão doce por todo o lado, era um festão só, coloquei um boné para
tentar me misturar no meio da multidão, aos poucos eu observava quantos
homens estavam fazendo segurança do ambiente, até o momento eu havia visto
somente dois policiais, porém, o vereador tem sua segurança pessoal.
O comércio no bairro era forte, as igrejas estavam sendo substituídas por
barbearias, restaurantes fazendo hambúrgueres caseiros, bares e mais bares. Apesar
da sujeira, a periferia vem se desenvolvendo cada dia mais, sem contar os
movimentos culturais.
A hora passou rápido, deixei meu carro estacionado um pouco longe do local
da praça, a essa altura, voltar pro meu carro não era boa opção.
Encostei em uma das barracas e fiquei olhando o fluxo, estava abarrotado de
gente, havia pessoas dos bairros vizinhos também, o vereador estava confirmado
para às 14h no palanque, ia falar dos desafios da construção, além dos planos
futuros para o bairro.
- “Wagner? Há quanto tempo!” – escutei uma voz se aproximando.
Puta que pariu!
Pessoas que você normalmente não suporta tem um carinho enorme por você e
faz questão de pôr no jornal que é seu fã, principalmente em lugares públicos. Era
o Eudes, um velho conhecido do bairro, fazia tempo que eu nem ouvia falar nele.
- “Quase não reconheci de boné!”
Esse era o intuito, otário.
- “Como tá a família? Perguntei de cabeça baixa.”
- “Tá todo mundo bem, graças a Deus.”
- “Mande lembranças para a sua esposa.” – afirmei dando um tapinha no
ombro dele e comecei a circular novamente.
Pisando completamente em ovos, minhas mãos começavam a suar, pude ver
Luís chegando para o evento, se ele me visse, seria o fim. Continuei tentando me
misturar entre as pessoas, aproveitei para comer alguns salgadinhos que passavam
por toda a praça, era dia de bonança e fartura para a galera inteira. Dias como
esses são lembrados por muitos anos e é o suficiente para reeleger o Delson
quantas vezes ele conseguisse, infelizmente aqui é somente o térreo da corrupção,
das más práticas.
Um som de microfonia tomou conta, todo mundo ficou alvoraçado e
começaram a se mover em direção ao palanque, esperei firmemente, cruzei os
braços, coloquei um óculos escuro, modelo aviador, para não ficar de cabeça
baixa. Delson subiu no palanque e na sequência o Luís subiu, junto com mais três
homens, eram seguranças, sentaram ao fundo do palanque.
- “É com muito prazer, após um trabalho árduo e um período turbulento no
nosso bairro! Esta obra foi concluída e pode ser finalmente usufruída por vocês
moradores, o sangue e o suor do São Luís!” – Delson falava com entusiasmo.
Todos começaram a bater palmas e a gritar de euforia, assobios por todo o lado
enaltecendo o nosso vereador, enquanto ele falava seu discurso, fui me
aproximando lentamente, esbarrando em alguns sujeitos pelo caminho, mas as
pessoas continuavam agitadas.
- “Sem vocês nada disso seria possível!” – ele completou.
Continuei andando em sua direção, o Vereador começou a chamar algumas
mulheres no palco, todas jovens e moradoras do bairro, já deve tá escolhendo uma
nova namorada.
- “Pra quem diz que nosso bairro não tem mulheres bonitas, olha aqui povo!” –
afirmou empolgado.
O barulho era insuportável, parecia um evento da porra do presidente dos
Estados Unidos, cheguei até a segunda fileira, havia uns cinco seguranças em
volta, rastreei por onde a lacuna entre eles era maior e continuei me aproximando,
até que senti uma mão no meu ombro.
- “Que pressa é essa amigo! Tá demais isso aqui hoje, né?” – Eudes afirmou
empolgado.
- “Agora não é uma boa hora, Eudes!” – respondi ríspido.
Estranhou minha resposta no mesmo momento e tirou a mão de mim, esse
merdinha não pode me atrapalhar numa hora dessas.
Cheguei na primeira fileira e enfiei a mão na cintura pegando oitão, no
instante que estava sacando minha arma ouço um berro:
- “Ele tá armado!” – Eudes gritou apontando o dedo pra mim!
Todo mundo começou a gritar e os seguranças vieram em minha direção! Não
pestanejei olhei nos olhos do Delson que estava se projetando para se esconder
atrás de uma das garotas e disparei três vezes, os dois primeiros acertaram o peito
dele, o terceiro perdeu a direção, pois nesse momento senti minha barriga recolher
e meu peito ardia muito, fui baleado, olhei para ver quem tinha sido, era um dos
seguranças, os demais se jogaram em cima de mim e me desarmaram as pessoas
dispersaram rapidamente, minha vista começou a embaçar, vi Luís em cima de
Delson no chão agonizando cuspindo sangue, essa cena me fez sorrir.
Agora, Luís, a herança é toda sua e de mais ninguém!
Os policiais que estavam no evento se aproximaram, tiraram os seguranças de
cima de mim, um deles começou a chamar a ambulância. Luís veio ensandecido
em minha direção armado, porém foi impedido por um dos policiais. Eu
continuei agonizando de dor no chão, minha camisa estava ensopada de sangue,
mas eu estava feliz por estar vestindo a bermuda que minha mãe me deu de
presente, algo dentro de mim tinha fé de que era o meu passaporte de entrada
para encontrá-la seja onde ela estiver.
Epílogo.

Dificilmente justiça é feita em bairros de periferia, o dinheiro compra a


maioria das coisas, quando isso não é o suficiente, a violência resolve. Nosso
bairro só fica famoso em casos de polêmicas, moradoras do bairro que se envolvem
com jogadores de futebol multimilionários. Chacinas em bares pelas madrugadas,
todos pensam que só bandido está na rua tarde da noite, a carga da sobrevivência
é pesada, cada um resiste da forma que pode.
Utilizei do mesmo remédio deles, a violência, mas ciente das consequências,
fiquei duas semanas em coma no hospital.
Quando acordei havia flores no hospital, uma delas era de Beatriz. Estava
curioso para saber como estavam as ruas esse tempo todo sem mim. Chamei a
enfermeira. Quando ela abriu a porta, notei um policial ao lado, de escolta,
morrer com certeza teria sido a melhor opção.
- “Vou avisar ao médico que você acordou, tem algum contato que queira que
avise?”
- “Tem sim, enfermeira! Avise a Beatriz, ela que mandou essas flores.” –
respondi.
- “Ela veio lhe visitar algumas vezes!”
A enfermeira saiu e tinha lindas pernas, acompanhei até ela fechar a porta.
Fiquei entediado vendo TV a cabo, o médico conversou comigo, disse que teve
algumas complicações na cirurgia, mas no fim com um transplante, tudo fora um
sucesso e em breve eu estaria novo em folha, se não der nenhuma merda nos
resultados da minha cabeça.
Já era de noite, adormeci, acordei com uma voz dentro do quarto.
- “Você é duro na queda mesmo!”
Abri os olhos e era Beatriz, estava em pé, mais bonita do que nunca, porém
dava para notar que o luto ainda batia forte nos seus sentimentos.
- “Como você está?” – perguntei preocupado.
- “Altos e baixos, a vida sempre vai ser assim!”
- “Você vai superar, tu é a mulher mais forte que conheci, mais que muitos
homens!” – afirmei.
Ela riu e completou:
- “Você sabe que vai apodrecer na cadeia saindo do hospital, não sabe?”
- “Sei sim.” – respondi melancólico.
- “Eu vou te ajudar a reduzir essa pena, mas vou precisar da sua ajuda!” – ela
concluiu.
A investigação de Beatriz foi intensa, nesse período de tempo, ela conseguiu
encontrar o advogado de Elon, reuniu todas as provas para acusar devidamente
Luís Rocha que estava impune, Delson morreu no hospital, minha mira ainda
valia de alguma coisa. Vinguei todos: Frank, Cristiano e Angélica...
Fui depor em julgamento contra o Luís, as coisas andaram bem, Beatriz
conseguiu expor na mídia todo o caso sobre a herança do chefe da Família Rocha,
todos os familiares envolvidos e o envolvimento da polícia local com os comércios
e o tráfico do bairro, chamando bastante atenção da prefeitura que queria limpar
essa situação o quanto antes. Não deve ter sido fácil para a esposa de Frank
descobrir o envolvimento do marido e que exatamente isso causou a morte dele.
Luís foi acusado e condenado, mas por causa do dinheiro que tinha, conseguiu
negociar prisão domiciliar, eu fui condenado por homicídio qualificado, mas
Beatriz arrumou um contato para me deixar isolado na prisão, para que eu
sobreviva o tempo da minha pena, um policial como eu não é benquisto por
nenhum dos dois lados. Delegado Victor não foi acusado, porém afastado do
cargo.
Pela primeira vez em anos eu estou com a minha consciência tranquila, cinco
anos passa rapidinho, em breve estarei nas ruas novamente, tenho direito até a
visita íntima, a Tábata continua me satisfazendo mesmo.
Não há mais o Estranho ou o vereador Delson nas ruas, mas os cargos estão
vagos e tenho certeza que alguém irá assumir os seus lugares em breve. Jardim São
Luís é onde eu nasci e fui criado, minhas lembranças vagueiam por muitas vielas
dali, a voz da minha mãe dando conselhos ecoa pelos becos, apesar de todas as
dificuldades, sempre será um lugar que chamarei de lar.
Agradecimentos.

A ideia de escrever essa história surgiu em um bar, ouvindo gente que nem
gosta de ler, mas ama ouvir e contar uma grande história, O Estranho é formado
por vivências da minha infância, uma grande porção de licença poética e uma
série de referências cinematográficas e literárias que fizeram parte da minha
jornada, às vezes quando estou andando pelo Jardim São Luís, tenho a sensação
que verei o Detetive Wagner em algum boteco, apesar de não ser uma história
verídica: na minha cabeça ela é real.
Os principais agradecimentos irão para as pessoas que leram, releram,
opinaram, apoiaram e criticaram de alguma forma este meu primeiro romance ou
novela, não importam as regras.
Nomes em Ordem Alfabética:
Adriana Rodrigues
Bruce Gui
Daniel Sena
Davi Sena
Deivs Mello
Eto Gonçalves
Jaime Filho
Jair Ferreira
Kauê Sartori
Roger Monteiro
Thaís Souza

“Executarei neles grande vingança e os castigarei na minha ira. Então, quando eu


me vingar deles, saberão que eu sou o Senhor.”
Ezequiel 25:17 (Nova Versão Internacional)
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