O Estranho
O Estranho
O Estranho
na Fonte
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Targas, Benicio
CDD: 869.1
ISBN 978-85-5990-161-0
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O Estranho
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1.
Numa tentativa frustrada de entender Deus, tentei perguntar por que ele
somente assiste tudo lá de cima, mas ele não me respondeu. Deve ter rido de mim,
pela minha ousadia em tentar perguntar algo.
Ela estava envolvida com Joel, mas quase ninguém sabe o nome verdadeiro
dele. No São Luís, todos o conhecem como Estranho. Tudo que esse nome se
envolve acaba em tragédia - quem ousaria matar a namorada dele, além dele
mesmo?
Jamais imaginei confrontá-lo ou sequer fazer perguntas, as principais
comunidades do bairro são controladas por ele e o mais engraçado é que eu
estudei com esse cara na oitava série - ele já tinha repetido três vezes, sempre o
evitei, pois quase todos me diziam que ele não era um bom sujeito - e estavam
todos certos.
As parcerias do Estranho provavelmente iam além de vielas e becos, haviam
policiais e políticos envolvidos em seus negócios do tráfico. Se me dessem um
mapa, eu poderia riscar cada biqueira que existe por aqui, mas não posso fazer
nada... Se eu quiser continuar vivo, a última coisa que eu devo fazer é investigá-lo.
Agora, com certeza, o mais sensato era desistir do caso, mas sempre fui um
homem curioso; é uma característica que levarei para o túmulo.
Comecei a pensar nas perguntas sobre o caso:
- “O Estranho matou Angélica?”
- “Foi algum capacho?”
- “Existem inimigos que poderiam matá-la para atingi-lo?”
- “Quais os motivos?”
O começo é sempre um breu total, chega a dar vontade de desistir, mas eu
sabia que iria descobrir algo. A sorveteria estava fechada, então fui logo para o
conjunto habitacional vermelho, perto do local do crime, trocar um lero com a
velha.
Na entrada do condomínio tinham alguns adolescentes fumando maconha.
Para aqueles garotos, eu era como o vento e nem se incomodaram com a minha
presença - era a realidade deles.
Subi vários lances de escada e as numerações dos apartamentos não tinham
ordem ou padrão. Ao chegar ao apartamento “65”, da velha, eu estava fatigado ao
extremo (o cigarro estava acabando comigo) - retomei o fôlego e toquei a
campainha. Haviam algumas plantas penduradas ao teto com correntes, a porta
estava velha e tinha um portão com grades. Segurança nunca é demais... Esperei
mais alguns segundos e toquei novamente a campainha, pude escutar latidos desta
vez...
- “Mas que porra!” - eu balbuciei.
Detesto cachorros! Não é nada pessoal, mas tenho péssimas experiências
envolvendo caninos. Não me iludo, sei que os cães ainda são amigos melhores do
que qualquer humano, mas Debra cumpria bem a função de amigo do homem.
Foi uma recepção calorosa, a velha abriu apenas a porta atrás da grade. Suas
pálpebras estavam encolhidas como se tentasse me reconhecer e havia um cigarro
em sua boca quase no fim. Talvez haja alguém mais velha nesse mundo, mas
certamente ela receberia o segundo lugar na disputa. Possuía uma voz que soava
como um resmungo bem afetado pelos árduos anos de nicotina - então me
perguntou:
- “O que quer, jovem?”
- “Boa tarde, senhora! Sou detetive!” - Respondi mostrando o distintivo.
A velha me olhava ainda como se tivesse se esforçando pra enxergar direito...
Abrindo o portão, resmungou:
- “Você é aquele garoto... O Wellington!” – afirmou, tossindo bastante.
- “Na verdade é Wagner, senhora!” - acrescentei.
- “Dá no mesmo!” - Ela respondeu desdenhando, cheia de pigarro na voz.
A velha então me convidou para entrar - o cômodo tinha um cheiro estranho,
não consegui definir bem o que era. Ela esbarrou num de seus armários a
caminho da sala... À esquerda tinha uma pequena lavanderia, e pude escutar um
cachorro lá dentro, arranhando um pequeno portão que era revestido por uma
rede de alumínio. Ela pediu pra eu ficar à vontade - logo fui me aconchegando
num sofá velho.
Sentando numa poltrona, a senhora me disse entusiasmada:
- “Eu me lembro da sua vó, Wellington... Adorava me contar uma fofoca.”
Apenas sorri e perguntei:
- “Sabe o dia do assassinato da filha do cabeleireiro?” Ela riu forçadamente e
disse com indiferença:
- “Claro que sei! Só falam disso...”, acendendo um novo cigarro, ela
acrescentou...
- “Me falaram que ela era uma vagabunda completa... Aliás, meu neto já deve
ter fodido com ela! É assim que os jovens dizem hoje, né? Fodido?”
A velha já estava numa fase em que não se preocupa mais com a opinião dos
outros, era curta e grossa - pensava e falava sem medo.
- “Você viu algo no dia do assassinato? Você tem uma janela bem grande, acho
que consigo ver até minha antiga casa daqui...”, perguntei descontraidamente.
Rindo naturalmente, a velha já tinha terminado outro cigarro e me respondeu
pegando seu maço numa pequena estante na parede:
- “Eu até poderia ter visto, mas já não enxergo direito há um tempo...”
Quando eu estava partindo, ao cruzar a porta, a velha segurou forte meus
ombros e falou:
- “Cuidado, jovem! Gente curiosa não vive muito aqui...”
Olhei para o seu rosto que estava com um sorriso amarelo - bateu a porta na
minha cara. Senti um calafrio, mas fazia sentido o que ela me contou sobre sua
visão, pois mal conseguia olhar diretamente para onde eu estava. A essa altura
devia apenas enxergar os seus cigarros ou então os encontrava por pura intuição.
A velha pelo menos me disse onde o seu neto morava - que era o apartamento
“43” deste mesmo prédio - o nome dele era Vinicius. Não ia perder a viagem por
nada, e quem sabe o moleque não desembuchava algo relevante.
Desci apenas dois andares e dessa vez bati na porta com cautela, não queria
assustar ninguém. Uma mulher belíssima me recebeu - já era bem vivida, mas
ainda assim tinha um lindo rosto... Seu corpo mantinha lindas curvas, apesar de
leves excessos localizados. Comecei olhando de baixo pra cima, não pude me
conter. A mulher ficou constrangida - então aproveitei para perguntar enquanto
mostrava o distintivo:
- “Eu sou policial, me chamo Wagner e gostaria de fazer umas perguntas para o
Vinicius... Ele está aí?”
A mulher surpresa, me respondeu:
- “Meu filho fez algo?”
Acalmando a situação, expliquei que eram apenas algumas perguntas, nada
muito sério. Os seus cabelos eram longos e tingidos de loiro - seus seios eram
fartos e com uma leve caída - ela era a perfeição única de um artista. Enquanto me
explicava que seu filho era um menino bom, eu não conseguia tirar os olhos de
seus seios.
Vinicius tinha apenas quinze anos... Será que a velha estava falando sério sobre
seu neto ter se envolvido com Angélica? Provavelmente ela curtia novinhos.
Precisava falar com o moleque, urgente.
A mãe do garoto se chamava Tábata - e ela me garantiu que seu filho estaria em
casa mais tarde... Agradeci o tempo concedido e falei que voltaria no dia
seguinte... Fiquei pensando o resto do dia nela, fiquei excitado, ela era nora
daquela velha e seu marido morreu fazendo um assalto há uns quatro anos - eu
nunca o conheci, mas esse é o fim de muitos homens... Mortos por homens de
farda.
A estaca ainda era zero, Joel parecia ser o centro de tudo na minha mente...
Entretanto, eu precisava de bons motivos e barganhas para entrar nos becos, senão
o próximo velório seria o meu.
Fui para o banho e bati uma punheta pensando na Tábata... Quando terminei,
fiquei deprimido. Fazia tempo que eu não tinha uma foda decente...
Saindo do banheiro, minha gatinha Debra ficou me encarando - provável que o
pote de ração estivesse vazio, mas seu olhar inquisidor me fez lembrar uma velha
amiga jornalista (longa história).
Vesti uma bermuda, abri uma cerveja e percebi que nunca tinha me sentido tão
obstinado em resolver um caso - talvez eu tivesse encontrado o passaporte para a
redenção aos céus.
4.
A ressaca física me atormentava na manhã seguinte, mas não existe nada pior
do que a ressaca moral - é uma vozinha estridente de um homem pequenino
vivendo dentro da sua cabeça, lhe dizendo coisas que fazem você se sentir um lixo,
fazendo você perceber que está destruindo sua própria vida.
O delegado Frank me chamou cedinho para a sua sala...
- “Wagner, que porra você tava fazendo nos últimos dias?”
- “Meu trabalho!” - respondi sarcástico.
- “Seu trabalho porra nenhuma! Você tá é bebendo e fazendo perguntas sobre a
filha do cabeleireiro!”
O delegado ficava puto por qualquer coisa, principalmente quando não
acatavam suas instruções - pelo jeito ele queria que eu fizesse vista grossa.
Enquanto ele gritava, sua enorme barriga esbarrava na mesa - não falei uma
palavra, então ele exclamou:
- “Mano, é melhor você esquecer isso, alguma vez eu já deixei você se foder
nesse departamento?”
- “Não.” – Respondi seco.
- “Vai por mim, deixa essa merda pra lá... Teve um assalto na Avenida Maria
Coelho, em um depósito, vai lá com o novato e depois tira uma folguinha...
Esquece essa porra, beleza?”
Não respondi.
- “Porra, Wagner! Tu sabe que é meu parceiro! Não me fode, deixa que eu
resolvo as coisas. Beleza?”
Assenti com a cabeça - ele não gostou da minha reação.
Pelo visto eu estava cutucando o cocô no lugar certinho, pois se Frank sabia
das minhas visitinhas ao bairro, no mínimo existe alguém me observando... Será
que é o Joel?
Cresci nas ruas com o Frank, é meu amigo de infância, mas nossos caminhos
foram se separando ao longo dos anos... Quanto maior o cargo na polícia, maior é
a complexidade e os riscos. Você fica até o pescoço nos esquemas, mas acredito
que ele não me trairia.
Sempre me mantive afastado desse tipo de problema, mas não sou cauteloso,
pensava obsessivamente no que havia motivado aquele assassinato e quem o tinha
feito. Partindo da hipótese que foi o Estranho, poderia ter sido por traição ou
ciúmes? Se fosse isso, provavelmente encontraríamos dois corpos.
Existe a possibilidade de Angélica ter descoberto algo, mas tinha que ser muito
importante pra envolver a polícia e não sair nos jornais. Para isso deve existir
alguém bem influente na jogada.
Os únicos de São Luís que conseguiriam tal feito, seriam os membros da
família Rocha. São cascas grossas, de posses e muitos comércios no bairro. São
bem tradicionais - eles possuem uma padaria, um açougue, uma financiadora de
crédito e ainda um deles é vereador.
Dizem que o vereador vai ganhar até uma porra de uma rua com seu nome,
bem próximo da padaria, entre a Rua Jonas Camisa Nova e a Yoshimara
Minamoto. Apesar de eu não ver nenhuma conexão, confio muito no meu
instinto após longos anos de experiência.
Meu pressentimento apitava fortemente, mas eu não tinha certeza de nada.
Conectar os pontos é algo que exige dedicação e paciência. Minha única certeza
era de que não teria uma noite de sono decente enquanto não resolvesse esse
caso...
6.
Na manhã seguinte, acordei bem cedinho, não dormi praticamente nada, fui
direto para um mecânico da região, em frente à Fundação Julita, a mecânica do
Elvis era tradicional, você podia escutar de longe algum riff de Beatles, Rolling
Stones, às vezes até The Doors, suas costeletas eram um charme junto com seu
rabo de cavalo, colega de longa data, tratava bem minha caranga, paguei duzentos
conto pra ele arrumar um compadre conhecido para passear com meu carro pelo
bairro, passei as rotas, lugares e horas pra parar, sempre de vidros fechados e deixar
na minha casa no anoitecer. Isso deixaria as coisas mais confusas e facilitaria
minha busca por informações sem deixar muitos rastros, ele nunca fazia
perguntas.
Fui a pé pro DP, meu suor fedia a álcool, minha cabeça girava, eu estava mal-
acostumado, Cristiano ainda não havia chegado, não me sentia seguro ali, todos
pareciam estar contra mim.
Ninguém me esperava no trabalho, ainda tinha mais uma semana de folga e
provavelmente minha cara era de algum artista circense otário, os babacas do
escritório riam ou ficavam me encarando, perderam o cu na minha cara.
Desde que saí de todos os esquemas da polícia, passaram a me odiar, o único a
me respeitar e tolerar aqui neste departamento foi o Frank. Chamavam-me de
queridinho do chefe. Isso irritava ainda mais esses merdinhas daqui. Eu era o
último da lista do churrasco da rapaziada.
Frank veio ao longe exibindo suas banhas ridículas, seu olhar prepotente, como
se fosse dono de todos nós e provavelmente era, mas eu o respeitava... Quase
morreu por mim uma vez, quando éramos parceiros.
Janto no Natal com sua família todos os anos, sou padrinho de seu filho mais
velho, mas o que nos distanciou foi a sua determinação em conseguir fazer o que
era necessário para alcançar e manter o poder, diferente de mim que mesmo na
corrupção, possuía meus próprios códigos de conduta, desisti antes que fosse tarde
demais para mim e Frank ainda manteve meu emprego contra a vontade de todos,
desde que eu nunca atrapalhasse nada, mas muitas vezes ser honesto é viver na
sombra da omissão, é ficar calado, tornar-se cego, eu estava cansado de fazer nada,
apesar dos nossos ideais serem completamente diferentes, não posso ser ingrato,
tornei-me detetive graças a ele.
- “Fala, Wagner!”
- “Fala, chefe. Beleza?”
- “Não era pra você tá aqui hoje, porra!”
- “Tô na boa, Frank!”
- “Agora sim, esse é o Wagner que eu gosto! Tá a fim de almoçar hoje?” –
perguntou empolgado.
Aquela empolgação toda costuma vir acompanhada de um convite,
provavelmente algo de bom tinha acontecido, era difícil vê-lo de bom humor.
- “Vamos, chefe!”
- “Boa, Wagner! Como nos velhos tempos!” - afirmou eufórico.
Nunca seria como nos velhos tempos. Nunca. Talvez a sorte esteja do meu lado,
era a minha chance de tentar descobrir alguma coisa. Fomos para a Padaria
Tradição, servia um prato feito honesto, fiquei cismado, mas mantive as
aparências para evitar suspeita, nessa padaria eu precisava pisar em ovos até o
novato trazer algo, se a minha teoria sobre Frank de que ele possivelmente está
envolvido no assassinato, isso significaria que um deslize meu, ele perceberia que
ainda estou até o pescoço no caso.
A padaria estava lotada, vi Frank cumprimentar Luís Rocha discretamente atrás
do balcão (um dos filhos do falecido Roberto, ele estava lá calmo e sereno, não sei
quase nada sobre ele), na verdade ele era bem discreto, cuidava da padaria e do
açougue, diferente de Alberto Rocha, o caçula, que era uma espécie de celebridade
do bairro assim como seu pai foi. O atual “relações públicas” da família.
Dificilmente via o Alberto na região, pois estava sempre envolvido com sua
financiadora de crédito, era um homem de negócios, mas desta vez ele também
estava na padaria com seu terno enxuto e de luxo, Frank parecia íntimo de
Alberto, se cumprimentaram com um beijo no rosto, por algum motivo tive a
impressão de que Luís parecia se incomodar ao ver os dois se cumprimentando,
fiquei na minha, não podia sustentar essa minha impressão baseada no que vi.
O almoço foi até bacana, mas fiquei intrigado, pois Frank nitidamente estava
buscando uma reaproximação. Sentamos próximo à janela, achei curioso o certo
senso de urgência em que Luís ordenava para os garçons nos atenderem, era como
se houvesse compensando algo e quisesse amenizar alguma situação desconfortável
entre eles, não havia como ter certeza, mas era uma intuição muito forte, e eu
sempre dei bola pra esse tipo de sensibilidade, nunca tinha falhado. Aquela
empolgação não estava mais estampada em seu rosto. Frank evitava olhar para
Luís, seu olhar estava perdido na janela, não disse nada consistente, comentou por
cima que queria aposentar da polícia, que estava tentando montar um próprio
negócio. Tentei saber mais sobre, mas ele não cedeu, disse que não gostava de falar
sobre nada que ainda não estava definido, traria má sorte. O resto foi protocolo,
mera casualidade. Comemos. Falamos de futebol, mulheres, e rimos bastante do
passado, mas não descobri bulhufas.
11.
Mais tarde, na minha mesa, havia um bilhete: “Me encontra na rua de trás”.
Deduzi que fosse o Cris, Frank ainda estava trabalhando em sua sala, saí
sorrateiramente, e dei a volta no quarteirão. O cigarro ainda vai me matar, cheguei
ofegante e ele estava me esperando lá na pracinha ao lado do DP, sentado na pista
de skate.
- “Cadê seu carro?” – Cris perguntou surpreso.
- “Eu te disse que ia dar um jeito.”
- “Descobri algumas coisas...” – afirmou me entregando uma foto.
- “Não sei direito a data, mas esta foto é de quando a padaria foi inaugurada!” -
ele acrescentou.
Na foto estava Roberto abraçado com Frank, Delson e logo ao lado Luís e
Alberto. O novato se empolgou enquanto me falava suas descobertas, descobriu
também, que Delson, era um frequentador ativo na favela do Celeste; essa é maior
comunidade do nosso bairro, onde o Estranho costuma se esconder e comandar
tudo.
Havia alguns maconheiros perdidos nos olhando desconfiado da quadrinha,
fingi não vê-los, mas eles podiam ser caguetas, todo cuidado é pouco.
Há uma frequência de eventos beneficentes liderados por ele, além de possuir
várias fotos com os moradores, muitas ruas dos becos foram asfaltadas por ele,
criou até alguns comércios dentro da comunidade, é um político querido por
todos.
Outra informação importante era a obra que estava sendo conduzida. O
projeto era uma nova praça de lazer, utilizaria um terreno abandonado no São
Luís há muitos anos que já tinha sido invadido muitas vezes para construção de
novas casas, mas sempre expulsavam os invasores. Essa praça garantiria sua
reeleição. Sem contar que a Pracinha ao lado do DP era quase uma nova
Cracolândia..
- “Certo, novato! E a conversa com o Baixinho, foi tranquila?” – questionei.
- “Foi sim.” – Cris respondeu evasivo.
- “Mas e essas fotos todas, conseguiu com ele também?”
- “Consegui sim.” – ainda evasivo.
Estranhei, o filho da puta falou com mais alguém e está escondendo.
- “O que mais ele te contou?”
- “Ele falou algo importante sobre o Alberto Rocha, parece que ele tá querendo
ir embora do país e vender a parte dele, mas o Luís parece não aceitar bem isso,
dizem que eles se desentenderam.” – Cris afirmou.
- “Que loucura, será que é verdade mesmo?”
- “É o que as ruas estão comentando.”
- “O Baixinho te garantiu isso?”
- “Sim, Wagner.”
- “E o PM?”
- “Não falou nada sobre ele, mas eu mesmo fiz perguntas pra algumas pessoas
dos prédios e disseram que a viatura dele estava estacionada na rua antes do
disparo, mas não há provas.”
- “Esse filho da puta do Fábio tá devendo, eu sinto isso, não gostei do jeito que
ele me olhou naquele dia.”
O novato tinha feito um bom trabalho, apesar da minha cisma, então ele
completou:
- “Além da financiadora, existe mais um negócio no nome da família Rocha e
possui sócios anônimos, é uma imobiliária, há muitas casas de aluguel associadas
no bairro inteiro, mas não descobri quem toca esse negócio atualmente.”
- “Os filhos da puta tem fonte de dinheiro que não acaba mais”, ponderei.
As coisas estavam cada vez mais complexas.
- “Eu vou falar com a Beatriz e preciso que você siga o Fábio, mas não faça nada
sozinho, qualquer problema me chama.”
Quanto mais você investiga, mais perdido fica, mais detalhes, novas pistas, era
como um desfiladeiro sem fim, nada de desfecho, apenas mais pontas soltas, o
chão parecia estar cada vez mais distante. Não é novidade que o tráfico de drogas
corre livremente pelas ruas e pelas favelas, e eu sei muito bem que uma parte da
grana vai para o Frank, era a única conexão direta com o nosso departamento.
Não queria procurar Beatriz novamente, mas agora ela era minha única alternativa
em descobrir quem cuida da imobiliária, mais sobre a construção da praça e
alguma informação sobre Alberto.
Falei da Beatriz e o novato desviou o olhar.
- “Certo! Qualquer coisa me avise também, Wagner.” – ele respondeu
rapidamente.
- “Fica tranquilo! Sou cobra criada.” – resmunguei.
Tirei o resto do dia de folga, dessa vez fui direto para o Espetinho, lugar de
família, aconchegante, não pode jogar baralho nas mesas, peguei um Uber até lá, o
motorista não falou muito, achei melhor assim.
Tomei um caldo, joguei conversa fora com o dono, sorrisão amarelo, fazia jus
ao ditado que os olhos do dono engordam o porco. Tomei umas geladas, ouvi as
mesmas músicas de sempre, não importava quanto tempo eu ficava sem ir lá, a
sequência da trilha sonora era a mesma, enchi o bucho e fui pra casa na
caminhada.
A primeira coisa que fiz quando cheguei foi abrir a geladeira, peguei uma
latinha bem gelada, liguei a televisão e sentei no sofá, bastou me aconchegar, ouvi
uns miados, alguém estava com fome, levantei praguejando, gata do caralho, come
mais que eu, aproveitei pra pegar mais uma latinha, eu não ia levantar duas vezes.
Como previ, não levantei novamente e apaguei no sofá com a segunda latinha
quase cheia na mão.
12.
Bom ânimo pela manhã nas pessoas devia ser crime. Bom humor de manhã é
doença. Passei a noite podre de bêbado, mas sem pregar os olhos, nem a cana me
derrubou. A privada foi a primeira coisa que eu abracei logo pela manhã, Debra
lambia o próprio cu enquanto eu soltava toda bílis existente no planeta. Tomei um
banho frio para tentar me recompor.
Quando saí de casa, lá estava ela, a minha vizinha, com aquele sorriso
insuportável grudado no rosto, a filha da puta está sempre sorridente. Quanto
maior minha ressaca, mais largo o sorriso dela parece ser. Sempre está na rua pra
me desejar bom dia. Vizinha do caralho. Algo nessa mulher nunca vai fazer
sentido para mim, gosto de enfatizar: meu instinto tem me sustentado há anos,
mas ela não é problema meu.
Minha cabeça não anda bem também, esse sintoma é graças a quantidade de
tempo que não fodo, quando se passa muito tempo sem alguém você enlouquece,
mas se passar tempo demais com alguém você também enlouquece.
O Ivan não costuma fechar às quatro da manhã, mas desta vez fechou,
normalmente, a única força que me impulsiona a parar, é o bar fechando, Ivan
fodeu comigo, não conseguia ir embora, algo me impedia, sentia que se saísse de
lá, perderia algo, lembro de dançar com uma coroa de pernas bonitas, não lembro
do rosto dela, acordei sozinho e com as bolas ainda maiores que ontem, com
certeza não aconteceu nada.
O banho foi como entrar numa câmara de reabilitação, fiquei zerado, e então,
decidi ir até a casa de Tábata com as intenções mais sacanas possíveis, desta vez eu
queria mais que o café, eu precisava recuperar minha estima para voltar a todo gás
para o caso quando a Bia me ligasse, o puto do filho não quer abrir a boca, mas eu
quero a boca dela.
Foi necessária somente uma batida na porta, ela rapidamente abriu e ao me
fitar, notei certo contentamento (talvez fosse loucura minha), teus seios
continuavam intactos, exatamente como eu me lembrava, tentei ser educado,
perguntei despretensiosamente sobre o moleque, ele não estava em casa, tinha ido
para a casa de algum amigo jogar videogame, esta é a versão da história que ela
acredita, a minha é que ele deve estar chapando, fumando e se drogando em
algum canto do bairro. Esta é a fórmula de sucesso da maioria dos garotos daqui.
- “Tá bem friozinho, né?” – ela perguntou educadamente.
- “Você não quer tomar um café?”
Estava um frio ferrado mesmo e a chuva persistia. Aceitei o convite, a sala
estava arrumada, porém com um ar melancólico impregnado no ar, ela estava de
pijama, provavelmente sem sutiã, me esforcei ao máximo para disfarçar os olhares,
mas não consegui, fiquei esperando no sofá enquanto ela buscava o café, um
silêncio misterioso pairou. Ela retornou com o café e sentou-se muito próximo a
mim, dei uma conferida disfarçadamente em seu corpo, entretanto seus olhos se
cruzaram com os meus, senti um arrepio na espinha, o contato de nossas energias
no ar foram como faíscas, fiquei tímido e me afastei um pouco para o canto do
sofá e percebi um esboço de sorriso.
- “Como está sendo as coisas por aqui, e a sua sogra?” – perguntei cabisbaixo
entornando de uma vez o café. Tentando quebrar o gelo e o nervosismo, ela
causava pavor em mim, mas eu a queria.
- “Caminhando... Sabe, ela não para de reclamar do cachorrinho, nunca nos
demos bem mesmo, é ela lá e eu aqui.” – respondeu com indiferença.
- “Foi muita maldade...” – levantei enquanto falava e fui direto até a cozinha
para levar a xícara...
- “Não precisa levar, Wagner!” – advertiu.
- “Não esquenta, essa eu faço...” – respondi empolgado, e continuando
perguntei:
- “Sabe que horas seu filho volta?”
Não houve resposta, olhei para trás e Tábata estava entre a sala e a cozinha me
olhando com uma expressão de assassina, parecia querer arrancar meu couro. Se
aproximando em passos de felinos, ela respondeu:
- “Ele vai demorar pra voltar, detetive.”
Em seguida senti que era a hora, andei na direção dela, me agarrou beijando
meus lábios lentamente, deixei a xícara cair no chão, ninguém se importou, em
instantes minhas mãos velozmente assumiram o controle de tudo, a agarrei
bruscamente e a empurrei para o quarto, eu desejava aquele corpo, mas estava
enferrujado pra toda a ladainha antes do coito, pelo visto ela também havia se
cansado e estava sendo prática, naquela tarde cinzenta estávamos transando,
naquele período, esqueci-me de tudo, até mesmo quem eu era. Vislumbrando
aquele corpo experiente banhado de perfumes conservadores de pele e um aroma
único misturado ao nosso ato carnal. Ao final acendi um cigarro satisfeito, é
clichê, eu sei, mas havia séculos que não praticava, eu merecia esse trago.
Continuei deitado por mais algum tempo, enquanto ela me acariciava deitada
sobre meu peitoral, parecia não se importar com as minhas voluptuosidades.
Lembrei-me de Angélica, eu sou um homem experiente e mais uma vez pude
desfrutar o prazer de ter outra mulher em meus braços, ela não terá oportunidade
de sentir algo significativo com outro alguém novamente, se há vida em outro
plano, não deve se comparar ao oxigênio deste planeta imundo, senti-me
entristecido. Vesti minhas roupas, dei-lhe um beijo longo e despedi-me, esta foi
uma visita necessária em minha vida.
14.
O carro do novato era bem arrojado, provavelmente ganhava muito mais que
eu, era um jovem com bastante estudo, mas as ruas me ensinaram muito mais do
que qualquer escola.
Fomos direto para o departamento, estava com um pressentimento, Frank
costumava ficar até tarde trabalhando, seu casamento era falido e o trabalho
sempre foi seu porto seguro. Queria saber se ele estava bem.
Estacionamos na rua da entrada. Desci com a Glock na mão, mandei o Cris
entrar pela frente, dei a volta pelos fundos. Entrei no corredor lentamente, o
silêncio era o dono daquelas paredes, vagarosamente cheguei à porta dos fundos,
tomei um susto da porra quando fui abrir, pois alguém empurrou a porta tão forte
que a pancada me derrubou no chão, consegui disparar uma vez, mas sem
precisão, gritei:
- “Cristiano!”
- “Caralho, Wagner, que porra que tá acontecendo!” - ele chegou assustado com
o disparo.
O suspeito estava dobrando a esquina correndo muito rápido, levantei e saí
correndo em perseguição ao sujeito.
Naquele momento escutei o barulho de um carro dando a partida mais a frente
da rua, eu corri como se minha vida dependesse disso, tentei olhar a placa, mas
não consegui ver nada, cadê meu Voyage numa hora dessas. Retornei esbaforido,
precisava de um cigarro e uma bebida para acalmar meus nervos, provavelmente
suei todo o álcool do meu sangue nesse arranque. Cris estava com cara de velório,
já tinha visto algo lá dentro, entrei na delegacia e fui direto para a sala do chefe,
ele estava debruçado em sua mesa como se estivesse cochilando nos seus dois
braços, mas estava cheio de sangue à sua volta, não encontramos resquícios de bala
na sala, acho que foi esfaqueado até a morte. Senti uma pontada no peito, pensei
nos filhos dele, sabia que eu precisava ir pessoalmente dar a notícia.
O suspeito estava com o rosto coberto, mas consegui ver qual era o carro, um
Celta prata bem velho, apesar da pouca iluminação.
Uma tristeza bateu forte em mim, acendi um cigarro, o novato me
acompanhou nessa...
- “Ontem à tarde vi o delegado saindo da imobiliária e entrou em um carro de
luxo desconhecido...” – Cris afirmou suspirando.
- “Ele tava envolvido de alguma forma e queria me dizer algo... Mas agora não
há mais nada para dizer.” – afirmei soltando a fumaça do cigarro.
- “Ia te contar amanhã...”
- “Mal começou aqui e seu chefe está morto!”
- “Foda!”
- “Resolveu começar a fumar do nada, novato?” – questionei.
Meu gosto por nicotina aumentou quando eu namorava a Beatriz, fuma igual a uma
desgraçada.
- “Hábito recente.” – ele respondeu.
Sei, filho da puta!
- “Entendo se você quiser parar por aqui, você já sabe como termina para quem
continua investigando essa história, eu parei por aqui.” – lamentei.
- “Não! Estamos bem perto!” – Cris esbravejou.
- “Da morte.” – afirmei com um sorriso no rosto.
Esperamos a perícia fazer seu trabalho, respondemos as perguntas habituais,
com o delegado fora de cena, não sei como continuaria nesse jogo, mas eles devem
ter pensando em tudo, eles sabem o que fazem.
Quando a polícia acabou, meu parceiro me levou até a casa de Frank, meu
corpo pesava uma tonelada, quase não consegui levantar o braço para tocar a
campainha, a sua esposa desabou quando viu minha cara de enterro, não
acordamos os garotos, ficamos por horas tentando consolá-la, ela me abraçava
forte e eu não sabia o que dizer, na verdade acho que não há o que dizer numa
hora dessa... Dói muito alguém partir de sua vida sem lhe dar chances de se
despedir, sei bem como é essa sensação.
Só conseguimos ir embora às três da manhã da casa de Frank, pedi pro Cris me
deixar no Muchas, um puteiro respeitável ali na Barão, relutante ele fez o que
pedi, mas quis me acompanhar. Qualquer um hoje pensa que pode ser meu pai.
O segurança já mandou separar minha garrafa de conhaque quando me
avistou. Ninguém mexia comigo, me olhavam feio por saber que eu era da polícia.
O novato estava nitidamente desconfortável com o ambiente, a casa estava cheia,
eu queria apenas continuar bebendo e assistir algumas prostitutas dançando
Sabbra Cadabra no palco.
Coloquei crédito na jukebox, não é todo dia que alguém coloca uma sonzeira de
respeito nesses ambientes. Não queria toques, apenas apreciar. Essa era a minha
forma de colocar a minha cabeça no lugar e absorver a ideia de ter perdido um
amigo. De enfrentar meu luto. Tinha raiva de Frank a maior parte do tempo, mas
o considerava como amigo.
O novato conversava com uma puta chamada Betina, fazia teatro, dizia que
queria ser dubladora, e ali era a forma que ela conseguia pagar a faculdade e ainda
sobrava grana pra fazer outras coisas. O que chamou mais atenção nela foi aquele
olhar promissor, de quem acredita num futuro, Cris também possui um pouco
disso, eu já havia perdido esse olhar há muito tempo.
16.
Você percebe que não é grande coisa quando está sentado na porra da
privada, despejando toda aquela merda e pensando até quando teremos onde
continuar depositando nossa sujeira!
Eu estava atrasado para o velório. Pálido como palmito. Detesto velórios,
diferente dos filmes que sempre chove, o sol ardia feito sal em ferida aberta.
Quando eu cheguei todos olhavam para mim, eu não conseguia mais olhar
diretamente para os olhos da esposa de Frank, me sentia culpado por não ter
salvado a vida dele, não consegui retribuir o favor que devia a ele em vida, talvez
eu tenha a sorte em outra vida, mas é difícil acreditar nisso vivendo em um
mundo tão fodido. Minhas olheiras estavam profundas, eu suava feito pano de
prato no cuscuz que minha tia fazia pelas manhãs.
O vereador Delson estava no velório consolando os entes queridos, Alberto
parecia apático, como se aquela morte fosse uma surpresa para ele, seus olhos
transmitiam medo, talvez ele pensasse que fosse o próximo ou fosse bom com
teatro. Não confiava neles. Luís estava indiferente com o olhar firme, não interagia
com quase ninguém.
Era quase o enterro de uma celebridade, todo mundo conhecia o delegado,
estava lotado de gente, ótimo evento para angariar novos votos. Delson parecia um
animador de palcos, sabia usar bem as palavras, conseguia fazer todos se sentirem à
vontade em sua presença, menos a mim, odeio ainda mais políticos do que
jornalistas.
O padre começou a falar sobre o quanto o delegado contribuiu para o nosso
bairro. Discurso completamente político, senti muito enjoo, precisava dormir um
pouco, encarei por um momento o vereador, que fingiu não me notar, tirei meu
rabo gordo dali mais cedo que os demais e fui para a minha casa.
No jornal, Delson falou sobre justiça, que iriam pegar o culpado pela morte do
delegado, vomitei de verdade dessa vez, minhas ressacas estavam cada vez mais
agressivas, na sequência do jornal, o Vereador confirmou o início das obras da
praça, que tinham sido finalmente aprovadas, não esperou nem um minuto e ele
já esqueceu a morte de Frank.
Passei o resto da tarde dormindo para recarregar as baterias, tomei um banho
quando acordei, vesti minha melhor roupa, estava deprimido, precisava de novas
pistas.
Era minha última noite de folga, não sabia se manteria meu emprego no DP,
decidi ir direto para a casa de Beatriz, nosso encontro seria na manhã seguinte na
Paróquia, mas eu queria vê-la aquela noite, resolvi antecipar, ela não atendia mais
minhas ligações. Liguei para o Elvis, ele me disse que meu carro tinha tido alguns
probleminhas, por isso não tinha deixado na minha casa, mas que já estava
resolvido. Pedi pra trazer minha caranga pessoalmente, estava com saudade, resolvi
deixar a cautela de lado dessa vez. Liguei o motor e engatei, deixei o Elvis na sua
casa e fui direto para o condomínio do outro lado da ponte.
Bairro bonito que ela morava, o tráfego estava bom, cheguei na portaria, disse
com quem queria falar, notei o porteiro agoniado no telefone, parecia que alguém
estava retrucando com ele, então veio até mim:
- “Ela disse para você aguardar um pouco!”
Não importava quanto tempo demorava para aparecer, sempre pedia para eu
subir no mesmo instante, tinha alguma coisa errada, apesar da cisma, esperei
ansioso até ela aparecer de roupão na portaria, continuava bela, com olhos doces
para mim, mas com uma tristeza em cada desvio de olhar; sem abrir o portão, se
aproximou dizendo:
- “Não era amanhã no Igrejão?”
- “Era sim, mas resolvi lhe fazer uma surpresa...”, respondi.
- “Cansei das suas surpresas!”, afirmou ríspida.
- “Amanhã apareça lá conforme o combinado e te conto o que descobri...”,
concluiu.
Minhas suspeitas então estavam corretas.
Se afastou do portão em direção ao hall do seu prédio, o porteiro assistia de
camarote nossa conversa, lhe faltou o balde de pipoca, avistei ao longe um rosto
familiar indo de encontro a ela também de roupão, era o Cristiano, o filho da
puta tá comendo a Beatriz esse tempo todo, cagou para o que eu falei. No fundo
eu já sabia, mas ao ver, desceu amargo.
Encostei minha cara no portão, fiz questão de que ele visse que eu estava lá,
olhou assustado para mim, ela ficou ainda mais assustada, parecia que o novato
vinha falar comigo e ela não deixou.
Ouvi ela dizer: Eu te falei Cris, não era pra descer!
Ainda bem que ele não veio falar comigo, engoli a seco tudo aquilo, se falasse
com ele, eu o mataria na mesma hora, talvez ele saiba ser um homem melhor que
eu nunca serei, mas mereço tudo isso, eu nunca prestei e nem mesmo a Beatriz
conseguiu esse feito de me transformar em alguém decente o suficiente para ser
digno de uma família comum.
Não ia perder a viagem, nem o banho tomado, fui direto para o apartamento
da Tábata, seus seios estavam do jeito que eu deixei, parecia surpresa com a minha
visita, achou que eu nunca mais voltaria, fodemos a noite inteira, mas aquilo não
preencheu o vazio que eu sentia, no fim a gente só percebe que algo era
importante, quando perdemos, essa é mais uma frase clichê que a vida real faz
questão de esfregar em nossa cara.
17.
Dia deprimente para quem leva uma vida deprimente, mas o que me deprime
mesmo são igrejas, me sinto um extraterrestre dentro de um templo, mas os
olhares inquisidores são ainda pior, não resisti e mostrei o dedo do meio para o
padre, ele não esperava aquilo e saiu puto xingando. Lembrei de quando roubava
os cigarros do padre durante a missa, até hoje ele suspeita de mim, nunca gostei
dele.
Pontualmente às dez da manhã Beatriz apareceu, estava fria, falava somente o
necessário, me mostrou um relatório de bens e posses da família Rocha. Eu ainda
não tinha nada além de uma assinatura de escola que ligasse o Estranho a família
Rocha. Seja lá quais forem os negócios deles, sei que todos estão envolvidos,
inclusive Frank estava.
Retribuí da mesma forma para ela, também conversei friamente, com respostas
secas e curtas, no fundo sentia inveja, o novato estava aproveitando uma
oportunidade com ela que eu não aproveitei. Com o olhar triste nos despedimos,
quando ela já estava ao longe cruzando a entrada, falei:
- “Se cuida!”
- “Você também, Wagner.” – respondeu com tristeza.
O novato tentou me ligar algumas vezes, mas não atendi, continuei minha
sequência de bebedeira por mais alguns dias.
Fui atender um chamado no Jardim Ibirapuera, estava calor, havia moleques
em cada esquina soltando pipa, os postes cheios de linhas chilenas, continuei, até
chegar no campinho sintético em frente à favela. Havia crianças jogando bola,
sorrindo pra lá e pra cá, porém um corpo enfeitava o cenário do lado do campo,
mas os meninos não pareciam notar ou se importar, era só mais um corpo, ou um
a menos.
Apareci no DP logo depois, precisava analisar algumas coisas, e principalmente
pegar meu maço de cigarro de emergência no meu armário, havia muitos
murmúrios, todos me olhavam de rabo de olho, até que alguém chamou:
- “Wagner! Cristiano!”
Fomos chamados para a sala que até então era do Frank, um sujeito chamado
Victor assumiu interinamente o posto, era o primeiro dia dele e pelo visto estava
querendo mostrar trabalho.
- “Tava vendo seu histórico, Wagner, faz um tempinho que você não vem
trabalhar!”
- “Tenho trabalhado bastante nas ruas, senhor, além disso, eu tinha um acordo
com o Frank, de férias atrasadas.”
- “Entendo, mas as coisas vão ter que mudar agora, não posso justificar uma
nova falta ou trabalho nas ruas sem prévio aviso, vou ser cobrado fortemente para
ter um nome pela morte de Frank, só tenho você e o Cristiano, preciso de vocês
aqui.”
- “Certo, delegado, tu é o chefe agora, você que manda!” – respondi.
- “Cristiano, continue fazendo o que tem feito!” – Victor completou.
Filho da puta!
- “Combinado, chefe.” – ele respondeu.
- “Outra coisa, Wagner... A próxima falta vai lhe custar o distintivo.”
- “Ok!” – respondi seco.
Acabou a Gozolândia...
18.
Fazia anos que não tinha uma noite de sono completamente sóbrio, estava
me sentindo relativamente bem, cheguei cedo no DP, bem-humorado, todos até
estranharam meu semblante de bons amigos. Fiz algumas anotações, ainda estava
cabreiro sobre a última noite, mas creio que se soubessem quem era, eu teria
acordado com a boca cheia de formigas hoje. Aquele garotinho me fez bem, me
senti humano novamente.
Estava todo mundo agitado, o Delegado Victor chamou todos os policiais para
fazer um anúncio.
- “Senhores, temos a evidência de quem foi o assassino do delegado Frank, as
digitais foram identificadas na amostra, sabemos também onde o indivíduo está
escondido atualmente, pelo que parece, ele comanda o tráfico do Celeste,
Ibirapuera e Jardim São Luís, todos o conhecem como Estranho.”
Todos ficaram perplexos quando ouviram o apelido de Joel. Ninguém pareceu
acreditar que esse momento chegaria e muito menos eu.
- “Tenho aqui em mãos a ordem para entrar no Celeste para retirarmos ele e
mandarmos para responder pelo crime de assassinato. A má noticia é, pelo visto, o
motivo do delito foi que Frank estava pegando pesado com a grana que tirava dos
negócios do tráfico, os dois estavam se desentendendo muito e infelizmente houve
esse delito, mas não vamos expor essa parte na mídia para não mancharmos a
reputação do falecido.”
Aquilo não fazia sentido para mim, o Estranho jamais faria algo assim pessoalmente e
Frank não era burro para ter esse atrito, estão acobertando e entubando algo nesse caso.
Apesar das minhas desconfianças o que mais me agradava na notícia, era ter
pelo menos o Estranho na cadeia, mesmo sem provar todos os seus crimes.
- “O policial Fábio vai liderar essa operação, vou mandar junto com ele o
detetive Cristiano para acompanhar a batida, tomem cuidado!”
Puta que pariu! Me deixou de fora!
Questionei o novo delegado por não me incluir na operação, me respondeu o
que eu já esperava, por ser amigo da vítima, era muito pessoal para mim e achou
melhor eu ficar de fora dessa, foda-se!
Chamei o novato para fumar um cigarro lá fora, ele aceitou.
- “Toma cuidado, parceiro...”
- “Deu pra se preocupar agora?”
- “Não, novato, mas toma cuidado mesmo, não confio no Fábio, suspeito dele e
você sabe disso.”
- “Pode deixar, Wagner.”
- “Outra coisa, assim que puder, tenta seguir o Alberto, tenho uma fonte de
que ele sabe o motivo de tudo isso que tem rolado.”
A fonte sou eu mesmo.
- “O que você não tá me contando?” – indagou incisivamente,
- “Longa história, novato, mas quero que saiba que não desisti do caso da
Angélica e para mim tudo está conectado com o Estranho, Delson, Luís e
Alberto.”
- “Já vamos pegar o Estranho, vai ser um avanço.”
- “Vai sim, Cris...” – respondi enquanto pisava na bituca do meu cigarro no
chão.
Observei ele voltando para o escritório, fiquei um pouco ali refletindo, apesar
do caso de Angélica ter dado uma bela esfriada, principalmente com a morte do
delegado, aos poucos ninguém se lembrava dos últimos acontecimentos, são tantas
coisas que acontecem na região, além de outros delitos desse mundo cão, que as
pessoas esquecem rápido, não as culpo, já possuem cargas maiores para
suportarem, eu entendo de verdade, cada um faz como pode para seguir em frente,
particularmente, nos meus poucos momentos que consigo dormir, pesadelos estão
me assombrando. Eu vejo todos os mortos que conheci apontando o dedo na
minha cara dizendo que eu podia ter feito algo, principalmente a minha mãe, às
vezes é como se eu pudesse reviver o dia em que ela se foi. A moral da história é
que cada inocente ceifado deixa apenas dor para os entes queridos e para o resto
do mundo vira somente uma estatística no telejornal.
20.
- “Elon Soares foi preso nessa madrugada, acusado de comandar o tráfico nas
favelas do Jardim São Luís e do assassinato do Delegado Frank, o motivo do delito
ao delegado ainda é desconhecido pela polícia, mas indícios de digitais provam
que ele foi o responsável pelo crime, além de comandar diversos assassinatos na
região e lavar o dinheiro do tráfico em comércios ainda não identificados, seu
apelido é conhecido por Estranho.” – completou o âncora do telejornal.
Que caralho de Elon é esse?
A notícia estava em todos os jornais, Delegado Victor, estava sendo
condecorado por sanar os problemas da nossa comunidade, mas a verdade era que
um homem de família foi incriminado por tráfico e assassinato. O fato de ele
morar na favela não significava que seja bandido, eu sabia que algo estava errado,
mas realmente poucos conhecem ou sabem que o Estranho se chama Joel, se
aproveitaram disso para fazerem uma armação, todos devem estar sorrindo agora,
menos a família do Elon.
A reputação do Estranho no bairro era soberana de fato, porém a veracidade de
alguns fatos era difícil de saber a verdade, havia muitas histórias o envolvendo,
mas no fim ouvir sobre ele me lembrava uma nóia da escola com uma cicatriz
gigantesca no rosto, cada vez que contava a explicação era diferente, mas a cicatriz
era real.
Agora que a pressão por uma prisão não existia mais, rapidamente tudo voltava
ao normal no bairro e no DP, Cristiano estava péssimo, claramente cansado todos
os dias.
Havia passado um mês desde a operação, eu não tinha evoluído com o caso, a
obra da praça havia começado e já estava bem adiantada, diversas obrinhas
pontuais estavam ocorrendo na região, o ano de eleição estava próximo.
Curiosamente o PM Fábio sabia exatamente em qual casa encontrar o suspeito,
o novato me contou detalhes de como foi toda a operação, disse que nunca viu
um trabalho tão fácil, sem retaliação, sem movimento nos becos, os únicos
surpresos com a visita foram o suspeito e sua família que imploraram por
clemência, afirmando que eram trabalhadores. Havia muitas drogas e
aproximadamente 45 mil reais escondidos no quintal, eles pareciam não saber de
nada, para completar, além das digitais, encontraram um Celta Prata abandonado
no beco.
- “Tem cara de armação e bem descarada, Cris.”
- “Sim, não consigo parar de pensar na família.”
Entre centenas de barracos, sabiam qual casa invadir e quem culpar, essa era a
justiça que pessoas honestas encontram.
- “Precisamos continuar agindo, não desista agora.” – afirmei em tom
esperançoso.
- “Isso não combina com você, Wagner.”
- “Eu sei que não, Cris, mas quero uma vez na vida fazer justiça, nem que seja
com as minhas mãos.” – afirmei ainda mais esperançoso.
Chamei ele pro almoço, mas negou... Fui almoçar sozinho. Tenho almoçado
todos os dias na esquina paralela da padaria Tradição, num restaurante chamado
Jardim, fico observando todos que entram e saem, estou bebendo tanto que
devem pensar que eu já desisti, do meu jeitinho, ainda estou nessa.
O resto da tarde voou, continuei acompanhando pela internet todos os
movimentos do vereador, tinha um plano e precisava correr para que estivesse
tudo como eu queria até a data de inauguração da praça. Faltava exatamente um
mês.
21.
Adoro cinemas, mas dessa vez eu não consegui assistir o filme, estava
recebendo uma boa chupada dentro do cinema, não me entenda mal, a culpa é da
Tábata, ela é insaciável, ainda estamos saindo, dessa vez resolvi levá-la para um
desses shoppings, não curto tanto esses lugares, mas achei que devia agradá-la um
pouco. Pegamos um filme desses com um monte de ator desconhecido, e
entramos, no fim ela passou mais tempo me chupando do que assistindo o filme,
e eu nem lembro o nome do filme.
O único problema em namorar a Tábata era o filho dela, eu tinha pego ranço
do moleque, ele não me ajudou e em troca eu comia a mãe dele. Eu estava
pensando em jogar sujo com ele, ninguém mais se importava com as minhas idas
nos predinhos, eu estava sendo prático, entrava na casa dela, ficava algumas horas
e ia embora, Vinicius sempre estava na espreita de olho nos meus movimentos
com aquele olhar insuportável, o que é dele está guardado.
Foi a primeira sexta em anos que fui dormir sóbrio, acordei sábado pela manhã
cedinho, minha casa parecia um lixão, resolvi dar uma geral, mas tomando
cuidado para não pisar na Debra, a filha da puta não parava de se esfregar nas
minhas pernas, eu estava começando a me sentir mais saudável, diminuí o cigarro
e fazia alguns dias que não bebia, porém a mente começa a trabalhar contra você,
tentando criar lógicas e sentidos para beber, mas eu estava me controlando,
percebi que estava começando a ligar melhor os pontos desse caso. Coloquei a
ração da bichana, e após minha limpeza, peguei um oitão raspado que tenho em
casa, para situações especiais, coloquei uma bermuda confortável, e saí de casa
para dar uma volta a pé pelo bairro, eu pretendia visitar a família do Elon, era
ousado descer a favela do Celeste, mas eu precisava entender melhor o que o
Estranho estava tramando.
Liguei para o novato, dessa vez me atendeu:
- “Que você quer, Wagner?”
- “Quanta hostilidade, Cris. Tá por onde?”
- “Tô pra sair de casa, vou no parque com a Beatriz.”
- “Ah, entendi... Descobriu algo do Alberto?”
- “Nada ainda... Acho que vou desistir, seguir em frente...”
- “Você tem razão, novato.” – concluí desligando.
Eu estava preocupado com ele, nem todo mundo aguenta carregar o peso das
maldades que somos obrigados a participar, no fim ele é bem parecido comigo.
Era uma manhã linda de sol, fazia tempo que eu não sabia apreciar, havia
bastante movimento na rua, dia bom pra ir ao parque mesmo ou curtir uma
piscina num clube fino, o clube da maioria aqui se chama SESC e deve tá lotado.
Passei na viela onde Elon morava, cruzei com algumas pessoas, mas ninguém
sequer me notou, se eu descesse mais fundo, ia pensar que eu era só mais um
cliente costumeiro buscando uma dose pro coração. Essa eu passo.
Dei duas boas batidas na porta, uma mulher abriu desconfiada.
- “Você é a esposa do Elon?”, perguntei em tom mais baixo.
A mulher arregalou os olhos nitidamente preocupado, provavelmente estava
pensando que eu faria mal a ela.
- “Eu não falei nada.” – ela respondeu afoita.
- “Calma, moça! Eu só quero conversar!”
A porta continuou entreaberta, os olhos dela entristeceram.
- “Vocês pensam que dinheiro pode substituir meu marido, mas não pode!” –
afirmou com lágrimas nos olhos.
Uma criança estava agarrada aos pés dela, ouvi a confirmação que eu precisava.
- “Desculpa incomodá-la.” – completei.
Voltei pela viela calmamente, um jovem moreno, de boné, camiseta, bermuda e
chinelo descia e estava me encarando, encarei de volta, quando estávamos
próximos de nos cruzar, ele falou em tom hostil:
- “E ae! Cê liga quem aqui?”
Apenas levantei minha camiseta.
Ele viu na hora meu oitão e baixou a bola, parei e esperei ele descer, continuou
me encarando, provavelmente era o olheiro de plantão, assim que o perdi de vista,
saí da viela e fui a pé pro bar do Firmino.
O pessoal do bar estava com saudades, mas não bebi nada, queria somente
extravasar naquela mesinha de sinuca, cada gaveta aberta com as quinze bolinhas,
era uma chance nova de tentar ser vitorioso em alguma coisa dessa vida.
22.
O baque foi grande para mim, não consegui dormir, pensando na gravidez,
será que a família dela ao menos sabia disso? Duvido que eles se importem, mas a
questão maior era a paternidade... peguei meu carro e procurei o bar aberto mais
próximo, não encontrei nenhum...
Os dias que você mais precisa beber são aqueles mais perigosos, é necessário
estar atento pra não fazer uma merda maior que já está acostumado. Não me
sobrou alternativas além do Muchas, uma bebida era tudo que eu conseguia
pensar, não respeitei nem os faróis da avenida, dirigi em alta velocidade fumando
meu cigarro.
A casa estava cheia, havia um festival de prostitutas de várias regiões da Zona
Sul, desta vez não peguei minha garrafa costumeira de conhaque, pedi somente
cervejas e sentei no canto do balcão perto dos televisores, tinha muitas mulheres
lindas, tentei esvaziar minha mente, fiquei olhando para a raba de cada uma delas
dançando, alguns caras me encaravam quando passavam por perto, alguns sentem
o cheiro de um policial de longe, mas eu sou a porra de um detetive, tentei não
encrencar com isso para não estragar meu lazer.
Conforme aumentava a quantidade de cervejas, a hora na madruga voava, às
vezes um lampejo vinha na mente: “amanhã você tem que ir trabalhar! Melhor
parar!” E eu respondia: “relaxa, eu aguento, sou cobra criada!”
Fui pensando menos nisso conforme ficava mais bêbado, então resolvi escolher
uma puta para consagrar minha noite.
No sofá vermelho ao fundo rodeado de muitas mulheres, enquanto o funk
comia solto no ambiente, aquelas luzes de néon que já estavam me deixando
tonto, avistei o novato. Ele tomou um susto quando me viu.
- “Que porra cê tá fazendo aqui, Cris?”, gritei no ouvido dele.
- “Não é da sua conta, Wagner!”
Pelo jeito ele e a Beatriz estavam degringolando a relação, aquela mulher
também não é fácil, eu a conheço bem.
- “Porra, novato, pensei que você tava indo bem, tava começando a torcer por
vocês, fica esperto, ela tem faro pra descobrir esses lugares.”
- “Não me enche, faz o que você achar melhor!”
Uma prostituta se aproximou do Cristiano, seu rosto era familiar, custei a
lembrar, mas era a Betina, da última vez eles conversaram muito e tô vendo que
ela fisgou ele com facilidade.
- “Sai dessa novato, namorar puta é furada, vai por mim!” – adverti.
Deixei ele na dele, certas relações quando quebram dificilmente podem ser
consertadas, eu sempre fui solitário, só me arrependo de não ter tentado
conciliado com minha velha, mas tenho certeza que nós íamos somente brigar
novamente.
Comecei a conversar com uma mulher parruda, era mais alta que eu, tinha
tudo no lugar e bem carnuda, me disse que se chamava Ana Letícia, gosto de
nomes compostos, conversamos sobre trabalho, ela ficou curiosa sobre o que um
detetive de periferia fazia, na cabeça dela não havia muito pra se fazer, quase me
chamou de inútil, mas a bunda dela era grande demais para eu levar a opinião
dela em consideração. Talvez a puta tenha razão, não há muito para se fazer.
Fechamos negócio, fui acertar minha conta no balcão, o quarto era fora do
estabelecimento, ela veio me acompanhando com aquele salto alto, perfume
gostoso, na entrada deparei com o Estranho, acompanhado de mais três
comparsas, olhou diretamente nos meus olhos, fiquei petrificado, fazia sentido
encontrar ele ali, era a melhor casa da nossa região.
- “Que foi, lindo?” – Ana Leticia me perguntou.
Não respondi, fiquei observando ele entrar na casa, dessa vez não me tratou
como ameaça, eu era um simples cenário.
- “Lindo?” – a prostituta insistiu.
- “Desculpe, pensei que era alguém conhecido.”
- “Aquele ali tem dinheiro, sempre aqui essa hora, mas ninguém sabe o nome
dele.”
- “Entendi.”
O quarto era até arrumadinho, entramos e ela foi direto para o chuveiro, fiquei
deitado olhando para o teto, minha bebedeira passou e fui tomado por um sono
fora do comum. Ela voltou com aquele corpo enorme em minha direção.
- “Tá cansadinho? Peraí que você vai melhorar rapidinho.”
No mezanino, ela esticou duas carreiras de cocaína, mandou a primeira e me
ofereceu a outra?
- “Eu sou muitas coisas, mas drogas não é comigo, Ana!” – respondi.
- “Tudo bem.” – respondeu, mandando a segunda.
Levantei e ela ficou de quatro na cama, mas meu coleguinha resolveu não
corresponder, ela tentou de tudo, esforçada, mas não rolou, paguei um quarto pra
chegar e brochar. Minha cabeça estava pensando na vontade que eu tinha em
matar o Joel.
- “Fica tranquilo, lindo! É normal, acontece com qualquer um. A gente pode
conversar.”
- “Podemos sim, Ana, mas eu acho que você vai querer se matar, se ouvir o que
tenho pra falar...”
Pairou um clima desconfortável.
- “Melhor voltar para a casa, vou voltar para beber mais.” Quando estava
saindo, encontrei Cristiano entrando com Betina, era quase cinco da manhã,
aquele puto vai chegar ruim no trabalho também e isso já é um conforto pra mim.
Encostei no balcão e pedi outra cerveja, fiquei observando o Estranho no sofá
se divertindo com um monte de mulheres à sua volta, duas garrafas de uísque, até
porção de batata tinha naquela porra. Esperei pacientemente, bebendo, o sono
estava forte, estava frustrado por não ter conseguido foder, mas eu ia descobrir
aonde o Estranho estava se escondendo.
O sol estava quase amanhecendo, me senti Atlas – condenado por Zeus a
sustentar os céus para sempre - a diferença era que eu carregava o sono de todo
mundo, eles já haviam saído acompanhados com as garotas para o quarto, dei dois
tapinhas no rosto, eu já estava no meu Voyage, esperando eles terminarem a
festinha deles.
Aquela cocaína agora cairia bem, nunca precisei disso antes, não é hora para se
lamentar, olhei pelo retrovisor, eles estavam saindo, aguardei até passarem por
mim, saí lentamente e os segui pela Avenida João Dias, estavam indo sentido
bairro.
Tentei me manter alerta, fui indo na maciota pra não perdê-los de vista e nem
ficar próximo demais para ser notado. O sol estava roubando a cena nos ceús.
Faltando duas quadras para chegar na ponte, eles aceleraram, mas não acho que
eles me viram, o movimento ainda estava vazio, era cedo, quando fui acelerar na
sequência, tive um apagão, minha cabeça foi em queda livre no volante, bateu e
voltou, virei o volante tentando segurar firme, meu carro derrapou e bati no poste
da guia. Minha cabeça bateu de novo, avistei ao longe o carro do Estranho sumindo
na ponte enquanto minha vista embaçava e apaguei de vez.
25.
Fazia tempo que o céu não estava tão azul daquele jeito, meus pés estavam
descalços, senti a areia por entre meus dedos, coqueiros por toda a parte, uma
linda casa de praia atrás de mim, eu estava usando aquela bermuda florida que eu
tanto gosto, mas o trabalho nunca me permitia usar, do meu lado, estava Tábata
sorridente com os bicos dos seios apontado para mim, com certeza aquilo era um
sonho, pois era paraíso demais para mim, se eu tivesse morrido eu estaria numa
plataforma de trem preso numa fila interminável morrendo de calor tentando
fazer uma transferência para o metrô andando como um pinguim, mas sem nunca
conseguir sair de lá.
Definitivamente eu devo estar vivo, mas porque não aproveitar esse lugar
paradisíaco enquanto posso, se eu não morresse essa seria uma boa forma de
aposentar.
Enquanto eu molhava meus pés, comecei ouvir ao longe:
- “Wagner! Wagner!”
Pensei em ignorar a voz, mas pouco a pouco era a única coisa que conseguia
ouvir, minha vista ficou escura e de repente comecei a abrir os olhos e Tábata
estava ao lado do médico, que examinava minhas pupilas com uma lanterna, ela
segurou minhas mãos, estavam quentinhas, senti certo conforto, a chance de eu
ficar em uma maca jogado num corredor de um hospital público sempre foi alta,
mas não era o caso.
O médico disse que eu tive concussões leves, eu estava somente em observação,
no máximo até o dia seguinte pretendia me dar alta, eu não tinha quebrado nada,
porém, eu com certeza estava bem endividado, todas as multas por infração de
bebida alcoólica, mais o estrago na minha caranga, daria uma bela dor de cabeça.
- “Agora, Wagner, você vai tomar sua medicação para dor e logo vem o jantar.
Repouso total! Combinado?” – o médico perguntou - ele era bem simpático.
Tomei os analgésicos, mas na verdade eu me sentia pronto para outra batida, a
dor maior era minha cabeça, mas nada que eu já não tenha sofrido de forma bem
pior. O doutor saiu do quarto, peguei o controle remoto para ver o que tinha de
bom na TV a cabo.
- “Tá se sentindo melhor, bem?” – Tábata perguntou com carinho.
- “Estou sim, amor!”, respondi. Notei a felicidade no rosto dela por eu ter
falado amor.
A Tábata ficou deitada no sofázinho do quarto enquanto eu comia, era
necessário apenas que eu cagasse e eu estaria liberado, mas sobre pressão fica tudo
mais difícil.
Dormi como um bebê, acordei cedinho, me sentindo bem disposto, fui direto
para o banheiro e tudo havia voltado ao normal, minha habilidade em fazer
cagadas estava reabilitada. Antes de chamar o médico, comecei a cutucar a Tábata,
ela despertou estranhando.
- “Não, Wagner, é perigoso!”
- “Perigoso nada, uma rapidinha!” – retruquei.
Ela ficou de lado ali no sofá mesmo, dei quatro bombadas e gozei, estava
exausto. Deitei novamente.
- “Chama o médico para me dar alta, amor!”
Cochilei novamente. Duas horas depois eu despertei assustado, puto por ainda
estar no hospital, para minha surpresa, o novato estava no quarto junto com o
médico e ninguém mais.
- “Você já tá liberado, Wagner!”
- “Obrigado, Doutor!”
Enquanto ele saía da sala, Cristiano falou:
- “Se sentindo melhor?”
- “Pronto pra outra!” – respondeu.
- “O que aconteceu aquela noite?”
- “O Estranho tava no Muchas!”
- “Sério? Você não me falou nada! Sou louco para ver a cara desse desgraçado!”
- “Melhor você não ter visto, Cris.”
- “Fui visitar o Elon no presídio.”
- “E aí?” – questionei atento.
- “Acho que ele vai colaborar, tô ameaçando ele, dizendo que vão apagar com
ele lá dentro, o que no mínimo vai acontecer em algum momento.”
- “Esse cara é o único que pode testemunhar a nosso favor e conseguir algo
consistente para prendermos o Estranho em tribunal.” – ponderei.
- “Sim, Wagner, eu sei, tô tomando cuidado.”
- “E no DP? Falaram algo de mim?”
- “As coisas tão silenciosas por lá, melhor você não se preocupar com isso
agora.” – ele alertou.
Tinha algo que ele não queria me contar...
- “Certo, Cris, o Estranho ainda tá no bairro, preciso descobrir aonde ele tá se
escondendo.”
- “Outra coisa, Wagner, faz mais de quarenta e oito horas que o Alberto está
sumido.”
- “Como assim, novato?” – fiquei surpreso.
- “Encontraram o carro dele num campinho abandonado, com celular, e
ninguém tem notícias dele.”
- “Tão apagando todo mundo nessa porra, deve ter muito dinheiro no meio
para isso tudo.” – concluí.
- “Elon é tudo que temos agora para conseguirmos alguma prisão. Foco nele!” –
acrescentei.
Arrumei meus poucos pertences, encontrei um cartãozinho escrito “Vale um
Drink” no bolso, Cris foi embora, Tábata estava esperando por mim do lado de
fora, me abraçou e saímos daquele hospital.
26.
Não preguei o olho a noite toda, o novato não me atendia de jeito nenhum,
liguei umas vinte e cinco vezes.
Mandei alguns SMS; “cuidado com o Fábio...” Não me retornou!
Às oito da manhã eu estava no condomínio da Beatriz, mas ela também não
estava em casa, mas respondeu que estava trabalhando desde cedo.
Meus olhos estavam vidrados, estava alerta, com o revólver próximo, qualquer
barulho me assustava, sabia que em algum momento alguém viria atrás de mim, já
era meio dia, eu não tinha comido nada ainda.
Minha campainha tocou, lentamente fui ver pela janela, pela graça de Deus era
o Cristiano.
- “Onde você tava, porra?” - perguntei enquanto abria a porta.
- “Ele vai falar, Wagner!”
- “Quem porra?”
- “O Elon, caralho! Passei a noite na prisão negociando com o advogado e ele.”
- “Eu sei onde tá o dinheiro e melhor, sei em qual casa o Estranho de verdade
tá se escondendo!”
- “Se não acharem ele primeiro!” – respondi friamente.
- “O que você quer dizer, Wagner!”
- “Cris, você precisa tomar cuidado, acho que estamos na mira!” – adverti.
Pelo menos sou eu ou ele que está, mas vou guardar pra mim.
- “O que você descobriu?”, Cris questionou.
- “Delson está por trás de tudo, essa merda inteira é só por causa de dinheiro e
bens, até o Joel está sendo usado por aquele político de merda e acho que ele está
na mira também.” – falei com franqueza.
- “Estamos perto, Wagner, com o Elon podemos rastrear a origem do dinheiro,
prendemos o Estranho, Delson, seja quem for...” – Cristiano retrucou.
- “Tenho medo de não ser tão simples.” – avisei.
- “Amanhã o advogado vai entregar o documento com tudo que o Elon sabe, a
proteção pra família dele já está garantida. Talvez a gente descubra até quem
matou o Frank!” – disse empolgado!
- “Certo, Cris, tenha cautela, as coisas tão mais perigosas do que você está
enxergando!” - adverti.
Lavei um pouco o rosto, e fui juntamente com o Cris até a favela do Celeste,
fomos até onde o Elon disse que o Estranho estaria. Descemos a viela com cautela,
tinha algumas crianças jogando bola, ignoraram a gente, descemos algumas
escadas, estávamos em corredores apertados, até que chegamos num portãozinho
velho de madeira, estava entreaberto, saquei meu oitão, Cris estava com uma
Glock, inclusive acho que era a minha, não perdeu tempo e já está usufruindo da
minha suspensão. Tudo ficou silencioso, entramos num barraco, lá dentro estava
uma zona, parecia ter sido recentemente vasculhada, olhamos o próximo cômodo,
pude ver um pé sobressaindo por detrás de uma cama de solteiro velha, me
aproximei devagar para checar e quando olhei, Joel estava com os olhos vidrados e
abertos, com um furo na testa. Era o fim do Estranho, tinha sido assassinado.
- “É ele, Wagner?”
- “É sim.”
- “Merda, merda!” – Cris reclamou.
- “Como enganaram ele nessa história toda, eu não sei, mas acabou pra ele!”
- “Com esse corpo a gente pode fazer alguma coisa, Wagner.” Enquanto eu
vasculhava o resto da casa, Cris chamou a polícia, que lotou a favela juntamente
com a perícia, saí de cena para não arrumar nenhum problema pro Cristiano.
Esperei pacientemente o Cristiano sair do local do ocorrido, quando ele
voltou, começamos a discutir os próximos passos.
- “Precisamos alinhar o discurso, Cris.”
- “Quem vamos indiciar?”
- “O vereador Delson.”
- “Como, Wagner? Que provas temos?”
- “O corpo do Estranho, a delação do Elon e uma conversa que eu gravei
recentemente.”
- “Como assim? Onde você conseguiu isso?”
- “Eu te disse que não desisti do caso, eu sou pior que pedra no sapato,
novato!” – brinquei.
- “Além do mais, posso depor como testemunha ocular da conversa!” –
completei.
- “No máximo conseguiríamos prender o Fábio! Não é o suficiente para o
Delson.” – respondeu desconsolado.
- “Se o Elon falar tudo, será!” – ponderei.
- “Trabalha no relatório inteiro e guarda isso aqui a sete chaves!” – falei
enquanto entregava o gravador para o Cris.
- “Certo, Wagner!”
- “Estamos juntos nessa, parceiro!” – falei.
- “Agora vai descansar um pouco.” – concluí.
29.
Passaram somente três dias, eu ainda não consegui ter uma noite de sono
decente, mas o dia havia começado com boas notícias na televisão.
- “O vereador Delson hoje cedo foi convidado a depor em resposta a acusação
de ter sido o responsável de múltiplos assassinatos no bairro do Capão Redondo,
Zona Sul de São Paulo, a polícia afirma haver provas e testemunhas chaves para
ajudar na evolução do caso, o detetive Cristiano Valle é o responsável pela
operação. Em resposta, o vereador falou ao jornal.” – completou a jornalista.
- “A justiça será feita, eu tenho prezado somente o bem pelas pessoas do meu
bairro, em breve tudo isso será somente um mal-entendido.” – ele afirmou.
Tudo que acontece aqui no bairro, sai no jornal como Capão Redondo, é
incrível como a mídia acha que aqui se resume somente a esse nome.
A coisa estava finalmente andando, Fábio também estava sendo procurado,
mas alguém da própria polícia estava ajudando ele a se esconder, com certeza ele
tem algo consigo que o incriminaria por agora, enquanto Luís Rocha, também foi
convidado a depor, mas creio que ele se safa tranquilo dessa.
Apesar do processo judicial ter começado, eu estava preocupado, pois sabia que
eles miravam algum detetive, agora mais do que nunca o novato tinha que estar
atento, seu nome passou na TV, os moradores no mínimo estavam putos com ele,
em frente ao DP, as pessoas se aglomeraram demonstrando apoio ao vereador, a
coisa é meio louca aqui.
Tudo estava indo muito bem com o advogado de Elon, a família dele estava
protegida, tínhamos o dinheiro, porém ele ainda não confirmou quem matou
Frank, Cris estava andando com três policiais, por onde quer que ele fosse, era
melhor prevenir do que remediar.
A vantagem de estar desempregado, é que agora eu desfilava de bermuda por
toda a parte, usufruindo do meu fundo de garantia sem pestanejar, não pensava
mais em futuro, meu futuro era agora. Após uma semana fui no feirão com a
Tábata, comer um pastel e tomar um digno caldo de cana, excelente para curar
ressacas, estava chateada pelo meu sumiço, mas percebi o alivio dela ao ver que eu
estava bem, apesar de todos os últimos acontecimentos.
Recebi uma ligação inesperada durante o almoço:
- “Fala, novato!”
- “O Elon foi morto na cadeia e o advogado dele sumiu!”
- “Como assim, cara? Que porra!”
- “O Fábio deu as caras para depor! Bem conveniente.”
- “Filho da puta!”
- “Que foi, Wagner?” – Tábata questionou!
- “Não é nada!” – respondi para ela!
- “Mantenha a calma, Cris! Vamos pensar numa alternativa, temos a gravação e
eu como testemunha.”
- “Você sabe que eles vão entubar!”
- “Sim!”
Ele tinha razão, a gente não tem mais nada, o corpo de um bandido não vale porra
nenhuma, é um a menos.
Mais tarde naquele mesmo dia, eu estava deitado na cama da Tábata vendo o
jornal com ela, e a matéria dizia: “Vereador Delson é inocentado por insuficiência
de provas”.
- “Como eu disse, tudo não passava de um mal-entendido, e meus planos não
mudaram, a nova praça do bairro vai ser inaugurada o quanto antes para a
comunidade, falta pouco!” – Delson afirmou eufórico para o repórter.
Desliguei a televisão, estávamos sem opção, no fim a justiça só acontece nos
filmes, na vida real, só de estar vivo, já é um motivo para agradecer, transei uma
rapidinha com a Tábata, virei pro outro lado e dormi.
30.
Uma habilidade que a minha mãe tinha, era o dom do mau pressentimento,
sempre sabia quando alguma tragédia iria acontecer, ou se alguém próximo ficaria
mal, sabia até quando a morte estava por vir nas nossas bandas, não quero que
pense que ela era uma espécie de médium, não era nada disso, era somente uma
mulher muito fervorosa com uma sensibilidade tremenda para detectar
acontecimentos ruins, até mesmo a sua própria morte, ela cantou para mim em
uma de nossas últimas discussões, mas eu não dei bola, deixei o orgulho falar mais
alto e nunca nos despedimos.
Às vezes eu creio que tenho esse dom que ela tinha, levantei bem cedo com um
arrepio na espinha, uma dor no peito estranha, quando resolvi checar minhas
ligações perdidas da noite anterior. Uma delas era do Cristiano, as demais eram da
Beatriz.
Tentei ligar para o novato, deu caixa postal direto, em seguida liguei para
Beatriz. Ela estava chorando, perguntei o que tinha acontecido, então ela me
respondeu:
- “O Cristiano está morto, Wagner!”, afirmou soluçando.
Fiquei sem reação, senti meu corpo estremecer, sem dar conta meus olhos
estavam umedecidos, pensei no quão jovem ele ainda era e no futuro promissor
que tinha.
- “Tô aqui para o que você precisar, Beatriz.” – respondi com cautela.
Meu plano era visitar o Luís na padaria, mas agora um vazio enorme habitava
no meu peito, fui para a oficina do Elvis, meu Voyage me esperava novinho em
folha, fui direto para o DP. Alguns colegas me deram condolências
Procurei diretamente o delegado Victor, pedi que me contasse o que havia
acontecido. Ele estava evasivo, senti cheiro de falcatrua só pela respiração dele,
Cristiano provavelmente tentou me avisar de algo ao me ligar, mas o ponto é que
ele não morreu sozinho, o policial Fábio também estava morto.
A historinha que estava sendo contada no DP é que Cristiano encurralou
injustamente um policial e o apunhalou pelas costas, ou seja o agrediu de
surpresa, ninguém sabia como tinha acontecido, mas encontraram os dois mortos
na mesma calçada próximo a um posto de gasolina da Avenida do Terminal João
Dias.
Colocaria minha mão no fogo por Cristiano, sei que no mínimo ele estava
investigando, eu disse para ele me esperar, íamos encontrar outro caminho, mas
agora é tarde demais.
Eu estava indo em velórios demais ultimamente, vai ver essa é uma das sinas de
ficar mais velho, porém não são idosos que tenho visto sendo enterrados.
A família do novato estava lá, consegui ver de relance o pai dele, tinha traços
similares. Lembrei de quando almoçamos a primeira vez e enxerguei ali uma
determinação nele que eu já tive no passado, foi ceifado buscando justiça por
pessoas que nem são do meio dele, posso dizer que aprendi bastante com ele e
apesar das nossas diferenças e desentendimentos, foi um amigo que pude contar
esse tempo todo.
Beatriz estava em prantos, realmente ela gostava dele, me aproximei com
cautela, dei-lhe um longo abraço, foi sincero da minha parte, a respeito muito, me
senti incapaz por não poder fazer nada e, o pior de tudo era que o nome de
Cristiano foi manchado sendo tachado como responsável em querer apagar o
Elon, e transformaram Fabio num herói, quando na verdade era o inverso.
O delegado Victor está até o talo no envolvimento dos esquemas locais com o
vereador, depois do velório eu reuni todas as informações e gravações do caso,
sobre todos os envolvidos nos crimes que ocorreram, entreguei na mão de Beatriz,
pedi pra ela fazer tudo o que pudesse para expor na mídia e acabar com a imagem
dos cuzões dos Rochas.
Sem meu distintivo eu era quase um inútil, deixei a Beatriz em casa que estava
sem condições de dirigir um carro, a abracei novamente, e dessa vez a habilidade
que minha mãe possuía parecia vir à tona, pois percebi que senti que era a última
vez que a veria, então a abracei novamente.
- “Você sempre foi uma amiga e companheira leal!” – falei com timidez.
- “Me perdoe por tudo que fiz, você sempre vai merecer algo melhor!”
Ela não me respondeu, mas ficou cismada com o que eu estava dizendo, dei
um beijo em seu rosto e parti.
Minha próxima parada era a padaria Tradição, com meu oitão na cintura,
precisava das minhas últimas respostas.
Entrei na padaria, tinha poucas pessoas, estava próximo das quatro da tarde.
Luís estava no balcão, me ignorou por completo, fiquei encarando de onde eu
sentei, pedi uma garrafa de cerveja, o garçom também me olhava estranho, nunca
foi com a minha cara esse filho da puta e eu muito menos com a dele.
Com o passar do tempo Luís se incomodou, continuei encarando, bebericando
de golinho e golinho, aquela garrafa duraria um mês inteiro na velocidade que eu
estava ingerindo. Então ele me chamou pra ir ao balcão. Levantei como quem não
deve nada, me aproximei e ele disse cinicamente:
- “Meus sentimentos aí pro seu colega de trabalho! Quer dizer... você nem
distintivo tem! O que faz agora da vida?” – perguntou ironicamente.
- “Eu tenho trabalhado muito em observar os passos de algumas pessoas.” –
respondi em seguida.
Levantei disfarçadamente minha camisa e mostrei minha arma para ele, e
emendei em tom ameaçador:
- “Não tenho mais nada pra perder, então vim aqui dar a letra pra você, tá na
sua mão o que vai acontecer dentro dessa porra de padaria hoje.”
- “Calma, Wagner, você ainda tem a amiguinha repórter!”
- “Eu não posso provar mais nada, nem policial eu sou mais, mas se eu fosse
você eu abria o olho, seu namoradinho continua pegando varias menininhas do
bairro.”
Ele reagiu surpreso com o que eu disse, continuei então no meu blefe.
- “Você acha que Angélica era a única que ele se envolvia?” – questionei.
- “Praticamente todo esse bairro era do meu pai e agora é meu! Não vou dividir
com ninguém! Das minhas relações cuido eu!” – respondeu com o peito inflado.
- “Você manda matar as pessoas sem mais nem menos! Falta pouco pra eu
deixar toda essa riqueza pro seu namoradinho vereador, basta uma bala na sua
cabeça, tenho certeza que vou ser mais rápido que qualquer um desses garçons
bostas que você tem.”
- “Você quer acabar igual aquela vagabundinha detetive?”
- “Você não merece morrer, a cadeia é melhor lugar pra você!”
- “Eu vejo o seu desespero, não tem nada contra mim e agora quer resolver na
bala.”
- “É Luís, pelo menos eu posso ter paz em saber que você mandou matar
Angélica, por que é uma bichinha ciumenta, gananciosa e sem apego familiar
nenhum.”, concluí.
No mesmo momento ele bateu forte no balcão, todos olharam, me afastei um
pouco.
- “Sai daqui!” – Luís falou com olhar de ódio em direção a mim.
Saí cabreiro da padaria, todo mundo me olhava, parecia que todos ali estavam
acomunados com ele, às vezes os Rochas pareciam divindades na região, somente
pelos méritos das migalhas que davam para a população.
Não havia como provar nada usando a minha palavra, mas Beatriz é ardilosa,
sei que vai usar tudo que tem ao seu favor, eu só tenho mais um ato pra fazer nisso
tudo, mas depois desse chacoalhão que dei no Luís, eu precisava ficar fora do
radar imediatamente.
Peguei minhas principais roupas em casa, joguei tudo no carro, coloquei a
Debra no banco do passageiro, passamos no mercado, peguei algumas bebidas,
apertei minha gatinha com carinho e a deixei na casa da Tábata, ela não queria
muito papo comigo, estava chateada com a forma que tratei o filho dela, mas fazia
parte do ofício, tentei puxar assunto, mas me respondeu somente seca.
- “Por que você vai deixar sua gata aqui?”
- “Ela vai precisar de um dono, se não for ficar com ela, vai saber a hora de
procurar alguém pra ela.”
- “Como assim, Wagner? O que quer dizer?” – perguntou preocupada.
- “Nada, amor! Até logo!”
Saí. Não gosto de despedidas. Prefiro acreditar que sempre haverá uma nova
chance, mesmo não havendo.
Me hospedei num hotel barato em Santo Amaro, TV a cabo, ar condicionado,
levei as bebidas, eram dias suficientes para eu descansar e ter as minhas tão
sonhadas férias, em vez de areia e coqueiros, seriam chão e paredes, faltavam três
dias para a inauguração da praça, e eu não posso perder esse evento por nada.
32.
Dia bonito para quem ainda acredita que a vida oferece segundas chances,
hoje para mim há somente o destino e estou perto de cumpri-lo. Tomei um banho
gelado daqueles que lava completamente a alma, vesti a minha bermuda favorita,
coloquei uma camisa de manga curta folgada, para a minha alegria o dia prometia
calor intenso.
Fiz o check-out do hotel e tenho certeza que o dono pensou por algum instante
que eu tinha morrido dentro do quarto nos últimos dias, pra sorte dele ninguém
tentou entrar, não teria sido uma cena agradável e minha reação muito menos.
Minha 38 estava carregada.
Tomei um café da manhã reforçado, daqueles americanos, com bacon, ovos
mexidos e até salsicha, tomei suco, café, iogurte e tudo mais que estava incluso,
tirei minha barriga da miséria, por um instante pensei se alguém sentiu a minha
falta ou estava esperando notícias minhas. Acredito que não.
Liguei meu carro, respirei fundo, por um motivo que não sei explicar, meus
olhos se encheram de lágrimas, pensei no quanto desperdicei minha vida com
coisas e pessoas erradas, deixei muita gente importante partir e o pior: não ajudei
quem realmente precisou de mim.
Sou somente um cara esquecível, tão fracassado como o meu pai.
Realmente o sol estava fervendo. Era sábado, para alguns, dia de feijoada ou
dia do descanso, até o mesmo o dia do Senhor, para mim: era só mais um dia.
Fui dirigindo até o São Luís, era dez da manhã, passei no Firmino, o bar estava
abrindo.
- “Wagner?”
- “Fala, Firmino!”
- “Pensei que você tinha vazado daqui, tem gente te procurando cara! O que
você tá fazendo aqui?”
- “Coisa rápida, Firmino! Vim só escutar uma música que só tem aqui!”
- “Entra aí! Vou manter as portas fechadas.”
Pela primeira vez na minha vida eu bebi num bar com as portas abaixadas,
tomei uma dose de conhaque e coloquei Belchior, “Conheço meu lugar” é o nome
da música e dessa vez ela fez todo sentido para mim.
Me despedi do Firmino. Passei no Salão do velho João, fui discreto.
- “O que você quer?” – João questionou.
- “Sua filha estava grávida, e a culpa é do Vereador!”
O velho chorou, claramente não sabia que tinha um neto a caminho, porém
me surpreendeu.
- “Eu sempre soube sobre os Rochas, especialmente o bichinha do Luís, mas
não havia nada que eu pudesse fazer.”
Engoli a seco aquilo, João sabia que o Estranho não era o cabeça do bairro,
mas nunca contou para ninguém.
- “Hoje farei justiça, velho!” – afirmei decidido e então saí do salão, não quis
saber qual foi a reação dele com o que eu havia falado.
O bairro estava movimentado, notei olhares por cada rua que meu Voyage
passava, fui em direção ao local da grande inauguração da praça.
Estava lotando aos poucos, parecia que seria uma quermesse da Salgueiro pelo
alvoroço, a obra ficou maravilhosa, um palanque bonito na região central, onde
ficava o container, uma área exclusiva para treinos musculares, uma quadra de
basquete e futsal, o povo estava alvoroçado, havia muitas barracas servindo
cachorros-quentes, pastéis, refrigerantes, as filas estavam se formando, crianças
com algodão doce por todo o lado, era um festão só, coloquei um boné para
tentar me misturar no meio da multidão, aos poucos eu observava quantos
homens estavam fazendo segurança do ambiente, até o momento eu havia visto
somente dois policiais, porém, o vereador tem sua segurança pessoal.
O comércio no bairro era forte, as igrejas estavam sendo substituídas por
barbearias, restaurantes fazendo hambúrgueres caseiros, bares e mais bares. Apesar
da sujeira, a periferia vem se desenvolvendo cada dia mais, sem contar os
movimentos culturais.
A hora passou rápido, deixei meu carro estacionado um pouco longe do local
da praça, a essa altura, voltar pro meu carro não era boa opção.
Encostei em uma das barracas e fiquei olhando o fluxo, estava abarrotado de
gente, havia pessoas dos bairros vizinhos também, o vereador estava confirmado
para às 14h no palanque, ia falar dos desafios da construção, além dos planos
futuros para o bairro.
- “Wagner? Há quanto tempo!” – escutei uma voz se aproximando.
Puta que pariu!
Pessoas que você normalmente não suporta tem um carinho enorme por você e
faz questão de pôr no jornal que é seu fã, principalmente em lugares públicos. Era
o Eudes, um velho conhecido do bairro, fazia tempo que eu nem ouvia falar nele.
- “Quase não reconheci de boné!”
Esse era o intuito, otário.
- “Como tá a família? Perguntei de cabeça baixa.”
- “Tá todo mundo bem, graças a Deus.”
- “Mande lembranças para a sua esposa.” – afirmei dando um tapinha no
ombro dele e comecei a circular novamente.
Pisando completamente em ovos, minhas mãos começavam a suar, pude ver
Luís chegando para o evento, se ele me visse, seria o fim. Continuei tentando me
misturar entre as pessoas, aproveitei para comer alguns salgadinhos que passavam
por toda a praça, era dia de bonança e fartura para a galera inteira. Dias como
esses são lembrados por muitos anos e é o suficiente para reeleger o Delson
quantas vezes ele conseguisse, infelizmente aqui é somente o térreo da corrupção,
das más práticas.
Um som de microfonia tomou conta, todo mundo ficou alvoraçado e
começaram a se mover em direção ao palanque, esperei firmemente, cruzei os
braços, coloquei um óculos escuro, modelo aviador, para não ficar de cabeça
baixa. Delson subiu no palanque e na sequência o Luís subiu, junto com mais três
homens, eram seguranças, sentaram ao fundo do palanque.
- “É com muito prazer, após um trabalho árduo e um período turbulento no
nosso bairro! Esta obra foi concluída e pode ser finalmente usufruída por vocês
moradores, o sangue e o suor do São Luís!” – Delson falava com entusiasmo.
Todos começaram a bater palmas e a gritar de euforia, assobios por todo o lado
enaltecendo o nosso vereador, enquanto ele falava seu discurso, fui me
aproximando lentamente, esbarrando em alguns sujeitos pelo caminho, mas as
pessoas continuavam agitadas.
- “Sem vocês nada disso seria possível!” – ele completou.
Continuei andando em sua direção, o Vereador começou a chamar algumas
mulheres no palco, todas jovens e moradoras do bairro, já deve tá escolhendo uma
nova namorada.
- “Pra quem diz que nosso bairro não tem mulheres bonitas, olha aqui povo!” –
afirmou empolgado.
O barulho era insuportável, parecia um evento da porra do presidente dos
Estados Unidos, cheguei até a segunda fileira, havia uns cinco seguranças em
volta, rastreei por onde a lacuna entre eles era maior e continuei me aproximando,
até que senti uma mão no meu ombro.
- “Que pressa é essa amigo! Tá demais isso aqui hoje, né?” – Eudes afirmou
empolgado.
- “Agora não é uma boa hora, Eudes!” – respondi ríspido.
Estranhou minha resposta no mesmo momento e tirou a mão de mim, esse
merdinha não pode me atrapalhar numa hora dessas.
Cheguei na primeira fileira e enfiei a mão na cintura pegando oitão, no
instante que estava sacando minha arma ouço um berro:
- “Ele tá armado!” – Eudes gritou apontando o dedo pra mim!
Todo mundo começou a gritar e os seguranças vieram em minha direção! Não
pestanejei olhei nos olhos do Delson que estava se projetando para se esconder
atrás de uma das garotas e disparei três vezes, os dois primeiros acertaram o peito
dele, o terceiro perdeu a direção, pois nesse momento senti minha barriga recolher
e meu peito ardia muito, fui baleado, olhei para ver quem tinha sido, era um dos
seguranças, os demais se jogaram em cima de mim e me desarmaram as pessoas
dispersaram rapidamente, minha vista começou a embaçar, vi Luís em cima de
Delson no chão agonizando cuspindo sangue, essa cena me fez sorrir.
Agora, Luís, a herança é toda sua e de mais ninguém!
Os policiais que estavam no evento se aproximaram, tiraram os seguranças de
cima de mim, um deles começou a chamar a ambulância. Luís veio ensandecido
em minha direção armado, porém foi impedido por um dos policiais. Eu
continuei agonizando de dor no chão, minha camisa estava ensopada de sangue,
mas eu estava feliz por estar vestindo a bermuda que minha mãe me deu de
presente, algo dentro de mim tinha fé de que era o meu passaporte de entrada
para encontrá-la seja onde ela estiver.
Epílogo.
A ideia de escrever essa história surgiu em um bar, ouvindo gente que nem
gosta de ler, mas ama ouvir e contar uma grande história, O Estranho é formado
por vivências da minha infância, uma grande porção de licença poética e uma
série de referências cinematográficas e literárias que fizeram parte da minha
jornada, às vezes quando estou andando pelo Jardim São Luís, tenho a sensação
que verei o Detetive Wagner em algum boteco, apesar de não ser uma história
verídica: na minha cabeça ela é real.
Os principais agradecimentos irão para as pessoas que leram, releram,
opinaram, apoiaram e criticaram de alguma forma este meu primeiro romance ou
novela, não importam as regras.
Nomes em Ordem Alfabética:
Adriana Rodrigues
Bruce Gui
Daniel Sena
Davi Sena
Deivs Mello
Eto Gonçalves
Jaime Filho
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Kauê Sartori
Roger Monteiro
Thaís Souza
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