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AFUÁ: A CIDADE-PALAFITA.

TERRITÓRIO E ESPAÇO PÚBLICO


ENTRE ÁGUAS.

JACY SOARES CORRÊA NETO – Graduando do Curso de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Federal do Amapá
[email protected]

JOSÉ MARCELO MEDEIROS – Docente do Curso de Arquitetura e


Urbanismo da Universidade Federal do Amapá e Doutorando do PPG-
FAU/UnB
[email protected]

Considerações iniciais
Estudos acerca do processo de urbanização brasileiro desmistificam o discurso de
que a Amazônia expõe-se apenas como floresta. Esta região rica em biodiversidade, também é
palco de tramas urbanas, o que exprime também a condição de urbano a este espaço, tal qual é
evidenciado pelas cidades que o compõem. As redes urbanas das cidades amazônicas tornam-
se cada vez mais presentes na discussão sobre o espaço urbano, o que permite a criação e
formulação de estudos a fim de analisar os problemas urbanos, assim como, das
potencialidades e peculiaridades decorrentes das relações sociais neste território (Becker,
2005).
A urbanização brasileira, caracteriza-se pelo processo acelerado e tardio da
transformação dos espaços urbanos (Santos, 1993). De modo peculiar, na Amazônia os
grandes projetos aliados à intervenção do Estado nas formulações de políticas estatais de
incentivo à produção e ocupação relacionados às grandes empresas, foram responsáveis pelo
crescimento demasiado, formação e urbanização de várias cidades amazônicas (Porto, 2007).
O crescimento demográfico e urbano das cidades da Amazônia brasileira, segundo
Porto (2007) a nível regional cresceu de 37,4% para 69,9% entre os anos de 1960 a 2000. A
urbanização acelerada decorrente desse período promoveu uma urbanização precária e sem
precedentes na maioria dos casos, fato que implica diretamente na qualidade dos espaços que
compõem os centros urbanos. Dessa forma, estes espaços que promovem a interação e
conflito da população e das forças sociais, tais quais são denominados de espaços públicos,

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derivam inúmeras discussões no mundo contemporâneo e têm se tornado grandes desafios
para o planejamento urbano e ciências afins.
Nesse contexto, o objeto de estudo pesquisado tange aos espaços públicos da orla
da cidade ribeirinha de Afuá, situada no Estado do Pará, Arquipélago do Marajó. Esta que tem
suas origens ligadas ao período colonial e forte relação com o rio, se diferencia do modelo de
estruturação de urbe tradicional em função de sua peculiar apropriação do espaço, já que
consiste em quase sua totalidade uma “cidade-palafita”.

Abordagens e noções sobre Território

É indubitável pensar que o mundo ao qual (des)conhecemos torna-se a cada dia


mais urbano. As transformações nele ocorridas são decorrentes cada vez mais de sua
complexidade, das tramas resultantes das diversas apropriações mediante as relações sociais
no espaço, dentre as quais criam e recriam formas e representações ao qual chamamos de
Cidade.
O espaço geográfico, ao qual logicamente as cidades também fazem parte,possui
destaque em Santos (2006, p. 39) como “um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas
como o quadro único no qual a história se dá”. Para este autor, esses sistemas interagem entre
si e em função dessa interação o espaço se dinamiza e/ou é dinamizado e, consequentemente,
se transforma. Isto ocorre tanto pela maneira como “os sistemas de objetos condicionam a
forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos
novos ou se realiza sobre objetos preexistentes” (Id., 2006, p. 39).
Por sua vez Raffestin (1993), aborda o espaço numa perspectiva propínqua da
materialidade, o espaço é tido como a “prisão original” dos homens e mulheres, portanto, um
ente predecessor ao território. Estas abordagens de espaço se diferenciam em função das
diversas apropriações fundamentadas nas qualidades das relações socioespaciais.
Consoante com as preocupações de Saquet (2010) que enfatiza a necessidade da
elaboração de estudos que considerem abordagens territoriais que atendam simultaneamente
articulações e/ou interações “existentes entre as dimensões sociais do território, em unidade
entre si e com a natureza exterior ao homem, o processo histórico e a multiescalariedade de
dinâmicas territoriais (Saquet, 2010, p.13)”, propõe-se uma análise dos espaços públicos sob o
prisma do território, estes que são comumente caracterizados pelos usos coletivos que neles

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prevalecem, além do que são criados e recriados pelas peculiaridades resultantes das
apropriações de grupos sociais e comunidades.
Quanto à perspectiva geral e conceitual de análise a partir do território, temos o
conceito fundamental para distinguir o espaço e território, formulado por Raffestin (1993),
que declara que o território, se forma a partir de uma produção a partir do espaço, portanto, o
território é produto da apropriação realizada por seus atores, a este processo denomina-se de
territorialização. Ainda segundo este autor, ao mesmo tempo que é o território é meio, ele
simultaneamente interage e modifica seus agentes e/ou atores. Raffestin discursa também
sobre o processo de territorialização, em que diz que território “é a prisão que os homens
constroem para si” (Raffestin, 1993, p. 144).
Por sua vez Haesbaert (1995; 1997), Haesbaert e Limonad (1999) apud Haesbaert
(2010) em síntese, agrupam as noções e concepções de território em três vertentes principais,
dentre as quais destacam-se a dimensão política, cultural e econômica. A primeira é referente
as relação de espaço e poder, a segunda à relação simbólico-cultural e, por conseguinte, a
última trata da dimensão oriunda entre economia e espaço.
Em consonância com antropólogo Arturo Escobar (2010), os territórios são
formados também pela diferenciação em distintos âmbitos, teoriza em função de que
“qualquer território é um território da diferença, o que implica uma formação ecológica,
cultural e socialmente única de lugar e região (Escobar, 2010, p. 40) (tradução nossa)”.
Escobar ainda, discursa acerca de modelos de apropriação da natureza, em que estes
constituem-se como um código cultural na apropriação do território consistindo num universo
denso de representações coletivas.
Como proposta de identificação dos territórios constituídos mediante os processos
em que a cultura, a identidade e o cotidiano se fazem presente, Raffestin (2003 apud Saquet
e Briskievicz, 2009) destaca quatro abordagens de territórios, as quais são: o território do
cotidiano, o território das trocas, o território de referência e o território sagrado.
O território do cotidiano consiste, propriamente, no território atual, em que
aspectos como tensão, conflito e distensão são evidenciados pelas territorialidades todos os
dias. No território das trocas as articulações entre economia e espaço são perceptíveis
através da fluidez de mercadorias e pessoas em constante movimento. Já no território de
referência as relações entre a materialidade e imaterialidade, memória individual e/ou coletiva
constituem as principais características dessa abordagem. Enquanto que o território sagrado

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evidencia aspectos relacionados com religião e à política, nas sacralidades e rituais que
promovem a construção da identidade de um território.
Conforme Saquet e Briskievicz (2009) esses territórios possuem interfaces e
sobreposições em função dos atributos relativos às relações efetivadas no cotidiano, isto é, das
diversas e múltiplas territorialidades recorrentes no território, dentre as quais atribuem e
constróem identidades, estas últimas que igualmente influenciam na constituição de
territorialidades.

Aproximações sobre Espaço Público

A complexidade da cidade como um sistema que agrega transformações


dinâmicas e intencionalidades muitas vezes contraditórias, traz à tona, um espaço que é palco
de diferentes pontos de vista e distintas classes socioeconômicas. Nesse sentido, este espaço
de lutas de classes è publicamente visualizado e materializado como o espaço público. Por
definição, este espaço é na perspectiva de Borja e Muxi (2003), a própria cidade, em função
da história da cidade ser a mesma de seu espaço público.
Por sua vez, Caldeirón (2009) afirma que o espaço público constitui-se a coluna
vertebral da cidade, em razão de permitir sua organização e unidade. Adiciona que os espaços
públicos são caracterizados pelo convívio e copresença de cidadãos por excelência e por
promoverem a melhoria de qualidade de vida dos habitantes da cidade. Ademais, enfatiza que
através da “criação destes lugares de encontro e socialização, as pessoas de distintas culturas e
condições sócio-econômicas podem apropriar-se da cidade (Caldeirón, 2009, p. 24)”.
Na definição de Alvares, Vainer e Queiroga (2009) o espaço público não
compreende somente os espaços de propriedade pública, relacionados aos bens de uso
coletivo, como as ruas, praças, parques ou edifícios públicos, como também a qualquer lugar
que indique a apropriação pública, tais como em ações realizadas no âmbito da esfera pública.
Nesse contexto, se insere, portanto, o conceito de orla como um espaço público,
em função de “ser definida como unidade geográfica inclusa na zona costeira,delimitada pela
faixa de interface entre a terra firme e do mar” (Brasil, 2006, p. 27), neste caso, a orla
estudada nesta pesquisa não é a fronteira com o mar, mas com o rio, o que constitui também
um corpo d’água.
Já em um contexto contemporâneo em que o crescimento e expansão urbana se
dão de forma desordenada, Pinto (2009) defende que os espaços públicos tem a capacidade de

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permitir a continuação do espaço urbano, no sentido de dar continuidade ao seu
desenvolvimento, além da função de ordenação e estruturação do território. Para esta autora,
os espaços públicos quando bem planejados e vividos pelos habitantes da cidade permitem a
criação de uma coesão territorial, logo, este fator torna mais propício o desenvolvimento do
território com equidade.

Afuá: Veneza Marajoara?

As cidades tradicionais ribeirinhas segundo Lomba e Nobre-Júnior (2013) mesmo


após sua fundação são caracterizadas pela dependência da hidrografia para realização de
diversas atividades, sejam estas vinculadas ao transporte de pessoas como o de mercadorias.
Nesse sentido, destaca-se a cidade ribeirinha de Afuá, localizada no município
homônimo pertencente ao Arquipélago do Marajó no Estado do Pará, como uma cidade que
ergueu sob um território alagadiço por meio de palafitas e estivas em madeira entre os rios
Afuá, Marajózinho e Cajuúna.
A Veneza Marajoara, denominação popular empregada pelos habitantes da cidade
de Afuá em função dos igarapés que transpassam a transpassam e da condição palafítica do
seu território, está sediada próxima da cidade de Macapá, capital do Estado do Amapá, possui
uma área de 8.410,3 km² (IBGE, 2010).

Figura 1 - Localização da cidade de Afuá.

Fonte: Acervo dos autores, 2014.


O município de Afuá teve sua origem aproximadamente no ano de 1845, num
contexto colonial, em que originaram as frequesias. Ao longo dos anos, a ocupação de

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colonos se intensificou apropriada para condições de porto e ponto de paragem de trânsito do
estuário amazônico (IBGE, 2010).
Figura 2 - Vista aérea da cidade de Afuá.

Fonte: Junior Melo, 2014.


A configuração urbana de Afuá tange à seu desenvolvimento durante o período
colonial, o qual norteou sua urbanização, como por exemplo, no desenvolvimento do traçado
e do restante do núcleo tendo como base a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. A
singularidade da cidade de Afuá está no seu modo de apropriação do território, a ocupação
sob o solo de várzea cria um sistema de vias suspensas que ora conectam-se por meio de vias
de madeira ora pelas vias de alvenaria presentes no trecho mais antigo (Lomba e Nobre-
Júnior, 2013; Dias e Silva, 2011).

Figura 3 - Exemplar de arquitetura ribeirinha urbana na cidade de Afuá-PA.

Fonte: Acervo dos autores, 2014.

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Além disso, a arquitetura desempenha um papel muito importante na distinção do
território afuaense, em que há a predominância de casas de madeiras em palafitas. Carvalho
(2013) evidencia as cores marcantes das fachadas e a simplicidade das construções, que em
geral são de apenas um pavimento, formadas por dois ou três quartos, uma sala e cozinha.
Outra característica marcante da habitação afuaense é a presença do vernáculo, a
cozinha por exemplo, é um recinto que abriga uma forte ligação da população ribeirinha com
o rio, possui uma estrutura denominada de “jirau” que se assemelha em função com a pia,
“um local em que se lava o peixe antes de seu preparo para evitar que o cheiro permaneça
dentro da casa (Carvalho, 2013, p.147) (tradução nossa)”.
Figura 4 – Trecho de orla do Rio Afuá.

Fonte: http://www.prefeituradeafua.com.br/, 2014.


Em se tratando da população de Afuá, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística registrou no ano de 2000, 29.505 mil habitantes no município, sendo que 23%
dessa população é urbana o que constitui cerca de 6.787 mil habitantes. Já no censo realizado
em 2010, houve um aumento para 35.042 mil habitantes no município, com uma população
urbana registrada em 9.478 habitantes. Verificou-se, portanto, um crescimento de 18,8% ao
longo de dez anos no que diz respeito à população municipal, enquanto que a população
urbana cresceu quase 40%.
Os autores Lomba e Nobre-Jr (2013) enfatizam a dependência da hidrografia na
relações econômicas e sociais da cidade de Afuá, de maneira especial na relação urbano-rural
materializados pelos mercados (feiras). Além disso, Carvalho (2013) mostra que a cidade
também expõe suas características através do portos, este que ligam a cidade à outras pelo
acesso com rio, assim como pelo meio de transporte empregado, a bicicleta. A cidade de Afuá
é uma cidade totalmente ciclável.
Figura 5 – Ruas em estivas de madeira em Afuá.
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Fonte: acervo dos autores, 2014.

Territorialidades reveladas: aspectos socioterritoriais da orla como espaço


público
As territorialidades como produto, prática, exercício e representação no e do
território advindas das apropriações do espaço podem ser representadas conforme Raffestin
(2003 apud Saquet e Briskievicz, 2009) como formas de identificação dos territórios. Nessa
conjuntura, o autor propõe interpretações do território baseadas em instâncias em que a
cultura e o cotidiano são indispensáveis para tal abordagem. Partindo dessas propostas, as
análises do(s) território(s) neste aspecto tratam de quatro interpretações acerca da relação
sociedade-território, na tentativa de revelação dessas práticas, tais quais destacam-se o
território do cotidiano, o território das trocas, o território de referência e o território sagrado.

O território do cotidiano: entrevistas com a população


Um dos métodos de apreensão do cotidiano dos habitantes de Afuá e de suas
práticas socioterritoriais na orla da cidade, além da observação foi a aplicação de
questionários. A elaboração destes levou em consideração quatro segmentos. O primeiro é
relativo a questões pessoais, relacionado com os dados do entrevistado (nome, idade, sexo,
local de residência bairro e profissão). O segundo acerca do reconhecimento da área, com
perguntas relacionadas aos trechos de permanência na orla, assim como a frequência, horário
e se continuaria a visitar o local de maneira mais frequente caso fosse possível. O terceiro,
concerne à experiência do entrevistado no local (motivos de frequentar a orla, à atividades
que não são comuns no dia a dia e à segurança). E por fim, questões de opinião pessoal
(acerca do que mais gosta e menos gosta na área, possíveis mudanças, importância da área

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para o entrevistado e para a cidade), assim como, sobre elementos que simbolizam a cidade de
Afuá.
Foram aplicados vinte questionários com uma amostra da população de faixa
etária entre 11 a 65 anos de idade, no sentido de obter informações de diferentes pontos de
vista sobre o cotidiano dessa população e da práticas sociais na cidade. Perguntou-se sobre os
trechos que os entrevistados mais permaneciam, dado que estes puderam identificá-los através
da planta da área em questão. Em função disso, elaborou-se um mapa que atribui valor aos
trechos mais frequentados. O trecho 1 conforme os questionários mostrou ser o mais
frequentado, seguido do trecho 3, depois e trecho 4 e, por conseguinte, o trecho 2.
Os motivos de frequentar a área são diversos, tais como, por razão de estudos,
residência, local para as compras, local de trabalho, apreciação da natureza, do rio, encontro
com os amigos, acesso a internet livre, jogo de futebol e fins recreativos.
Figura 6 – Gráficos com informações acerca da frequência e permanência nos trechos da orla de Afuá-
PA.

Fonte: acervo dos autores, 2014.

Sobre as atividades não comuns ao dia-a-dia, eles informaram que em datas


específicas acontecem alguns eventos como o Festival do Camarão e o Círio de Nossa
Senhora da Conceição, assim como outros de pequeno porte.
No que diz respeito ao que “mais se gosta na área”, as respostas dos entrevistados
foram relativas a apreciação da paisagem, da busca da orla como forma de lazer e recreação.
Já no aspecto do que “não se gosta da área”, responderam acerca da iluminação pública, da
poluição sonora, do alcoolismo, da poluição por meio do descarte de lixo.
Além das informações expostas acima, os entrevistados em sua maioria
destacaram a importância da orla para a cidade e para eles próprios, responderam que a orla
serve como ponto de encontro da população, para o acontecimento de eventos na cidade, para

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passeio, como um espaço em que a cultura ribeirinha se manifesta, a porta de entrada da
cidade, um lugar em que há mais liberdade na cidade e onde se tem mais movimento.

O território das trocas: formalidade x informalidade na economia da orla


Os usos e apropriações nos/dos espaços públicos na cidade de Afuá na perspectiva
do território de trocas são evidenciados principalmente pelas relações comerciais ocorridas na
orla da cidade. Ora pela relação de trocas entre o urbano e rural nas relações dos mercados de
carne, pescado e açaí, ora pela articulação regional e local dada pela hidrodinâmica
materializada nos portos e nas viagens ao longo dos rios.
As relações comerciais possuem caráter de ato público e coletivo, em que “é
oportuno reconhecer, que se para o comércio existir é necessário o encontro (Vargas, 2002, p.
2)”, o comprador e o vendedor ao interagirem nessas relações comerciais acabam por
inserirem no espaço práticas sociais que veiculam relações de trocas no território. Ocorre ,
portanto, a partir dessas práticas uma territorialização calcada nas relações supracitadas.
Dessa forma, espaços formais são descritos como espaços planejados, por meio de
ações guiadas por intervenções estatais, enquanto que, os espaços informais, constituem-se
produtos ações “não planejadas” pelo Estado – dado que a não intervenção do Estado
constitui-se uma intervenção –, espaços não privilegiados no planejamento urbano usual
(Politechnika Krakowska, 2006). Nesse sentido, os espaços formais na economia da orla de
Afuá são tangenciais àqueles em que há a intervenção estatal para que suas atividades
aconteçam, neste caso, esses espaços são caracterizados principalmente pelos mercados
municipais ao longo deste espaço público. E a informalidade, ou seja, espaços “não
planejados”, situam-se no entorno ou periferia dos mercados.
Figura 7 - Formalidade e informalidade no território de trocas dos mercados.

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Fonte: Acervo dos Autores, 2014.
A figura acima, mostra basicamente a relação entre o formal e o informal na
economia urbana da orla de Afuá. O movimento de pessoas ocasionado pelo mercado de
carne, que funciona principalmente no período matutino, “atrai” a economia informal de
pequenos vendedores de hortaliças, frutas e de artigos como roupas e utensílios domésticos.
Os quiosques do trapiche municipal iniciam suas atividades em consonância com
o mercado de carne e as estendem até o período noturno, com a comercialização de alimentos.
Contudo, em volta do mesmo há ambulantes que também comercializam esses produtos, mas
de maneira informal, não “enquadrados” pela formalidade do planejamento do município.
Essa relação igualmente ocorre nos mercados de pescado e açaí, nota-se a presença de
feirantes e ambulantes aos arredores destes.
Figura 8 - Formalidade e informalidade no território de trocas dos portos.

Fonte: Acervo dos autores, 2014.

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Por outro lado, há também a relação formal e informal oriunda dos portos. O porto
ou trapiche municipal dispõe de regras que não permitem embarque/desembarque de
mercadorias, funciona apenas como terminal de passageiros, em contrapartida, as
embarcações menores atracam em trapiches não oficiais. O mesmo acontece com os portos
privados e no porto da Igreja Matriz, ao seu redor acumulam-se pequenas embarcações
ribeirinhas que têm dificuldade de atracar em função de não possuírem espaço adequado para
este fim.

O território de referência: percepção e memória na orla


Lynch (1997) propõe interpretações e abordagens da cidade a partir da leitura
visual, ou seja, do que chama de imagem da cidade. Essa imagem como classifica, não é
apenas um objeto perceptível, mas produto das transformações estéticas e morfológicas
empregadas por atores sociais em função de razões particulares. O autor destaca a legibilidade
como a capacidade de codificação mental da forma da cidade, "facilidade com qual as partes
podem ser reconhecidas e organizadas numa estrutura coerente (Lynch, 1997, p. 13)". Tal
coerência, é crucial em relação à orientação dos habitantes da cidade, pode ser compreendida
por elementos aos quais o autor, denomina de caminhos, limites, bairros, cruzamentos e
pontos marcantes, as quais classifica como pontos nodais e marcos visuais (Id., 1997). Esses
pontos marcantes são representados por determinados objetos físicos, que maior evidência em
relação à outros, o que implica na localização de determinado sujeito na cidade, isto é,
“desempenham a função constante de símbolo de direção” (Id. 1997, p. 59).
Já os pontos nodais, constituem-se de pontos estratégicos que permitem a entrada
do observador, são focos de atração de movimento, enquanto que os marcos visuais, referem-
se a elementos pontuais as em que observador não adentra, destacados por sua singularidade
no contexto da cidade. Ambos elementos despertam a memória, constituem a “matéria
memorável” (Moura, 2012) através do ambiente construído.
Por sua vez Cullen (1983), propõe estudos por meio da leitura da paisagem
urbana, com destaque ao que chama de visão serial, originada por percepções sequenciais do
espaços urbano, a partir do movimento e da dinâmica do observador. Consiste na
representação em planta e em ilustração percepção de um indivíduo que “vive” a cidade.
Para Moura (2012) essas referências cotidianas do território são possíveis em
função do que denomina de “sinais de memória”, mecanismos com os quais populações se
adaptam à “dinâmica natural do mundo ao passo que se materializa o tempo no espaço”
(Moura, 2012, p. 40). A memória possibilita a criação de referências no território, esta que
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“não seria um patrimônio definitivamente construído, estático, morto; ao contrário ela é viva
porque nunca está acabada” (Id., 2012, p. 26).
Figura 9 - Marcos visuais, pontos visuais e visão serial na orla de Afuá-PA.

Fonte: Acervo dos autores, 2014.


Nesse sentido, por meio das visitas de campo e do referencial teórico mencionado
elaborou-se um diagrama que aglutina as propostas de análise referentes às interpretações de
Lynch (1997) sobre pontos marcantes e de Cullen (1983) sobre visão serial acerca da orla da
cidade de Afuá. Durante o percurso foram elencados os principais pontos que destacam-se no
referido espaço público, o que resultou no diagrama acima.
Além disso, de modo simultâneo aos questionários, duas crianças representaram
através de desenhos a construção de seus territórios de referência, relativos à uma apreensão
afetiva acerca destes. Ambas com onze anos de idade, Ayla Raissa e Jhuly Abdon
cartografaram seus territórios vividos e as referências que possuem no espaço público da orla
da cidade de Afuá.
Ayla Raissa, moradora de Afuá, durante as entrevistas descreveu que gosta de ver
o rio, o pôr do sol, passear e brincar com os amigos, de ir para as festas folclóricas que
acontecem na frente da cidade. Já Jhuly Abdon (que não mora em Afuá, mas passa todas as
suas férias na cidade) relatou que acha divertido ir ver o rio, o movimento das águas, “vendo
aquelas águas pra lá e pra cá”. Gosta de interagir com “ele”, colocando seus pés na água e de
frequentar a Praça da Bandeira.

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Figura 10 - Territórios de referência por Ayla Raissa e Jhuly Abdon, respectivamente.

Fonte: acervo dos autores, 2014.

O território sagrado: a simbologia das festividades e lendas


O território numa perspectiva sagrada, remete principalmente às territorialidades
oriundas das sacralidades que atribuem traços de identidade a determinado território por meio
da religião e da política. Segundo Rosendahl (2009) “o sagrado é perceptível na organização
do espaço, não somente pelos impactos desencadeados pelos devotos no lugar, mas, também,
pela forma essencialmente integrada entre religião e tempo” (Rosendahl, 2009, p.1). Para esta
autora, os fenômenos religiosos marcam também o espaço, mesmo que em diferentes
contextos sócio-espaciais, a partir da simbologia de imagens ou outros símbolos com
significados religiosos. Já Socorro (2010) salienta que há um enfrentamento da academia
elitista em considerar os estudos provenientes das lendas e mitos, em função de se prestigiar
com preponderância o erudito.
Figura 11 - Representação da Cobra-grande em um festival típico de Afuá.

Fonte: http://www.prefeituradeafua.com.br/, 2014.


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Por meio dos questionários perguntou-se aos moradores da cidades sobre o
conhecimento das lendas relacionadas e das festividades com o rio, estes responderam em
maioria, possuírem conhecimento sobre elas, inclusive, citando-as e contando brevemente um
pouco de sua história. Em Afuá essas manifestações do território sagrado se dão
principalmente pelas festividades e lendas recorrentes ao longo da orla da cidade.
Em se tratando das lendas, a mais citada é do Boto que deu nome para a cidade,
de acordo com os entrevistados, muito tempo atrás não se sabia qual nome dar à cidade, então,
nesse momento, um boto veio a superfície do rio, e por seu espiráculo causou um ruído “fuá”,
a partir de então, a cidade começou a se chamar Afuá. Outra lenda tange à Cobra-grande,
segundo os habitantes entrevistados, há uma grande cobra que se esconde embaixo da Igreja
Matriz e, caso a imagem de Maria fosse retirada de seu local, a cobra sairia e sucumbiria a
cidade nas águas.
Com relação às festividades, a mais importante em termos religiosos é a
Festividade de Nossa Senhora da Conceição, pois é a patrona da cidade. É realizada nos
meses de novembro e acontece por meio do círio terrestre (em que há a caminhada com a
imagem aos longo das ruas da cidade), pelo círio fluvial (várias embarcações são
ornamentadas para saudar num percurso entre os rios que circundam a cidade) e pelo círio
aéreo.
Figura 12 - Círio fluvial de Nossa Senhora da Conceição em Afuá.

Fonte:http://missaomarajoafua.blogspot.com.br/, 2014.

Outra festa muito importante é o Festival do Camarão, realizada em função de um


dos produtos mais característicos da economia afuaense, o camarão. Reúne em quatro dias,
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atrações folclóricas e bandas musicais, que promovem a interação da população local com
muitos turistas que procuram lazer no mês de julho.
Figura 13 - Festival do Camarão em Afuá.

Fonte: http://www.prefeituradeafua.com.br/, 2014

Considerações finais

A temática oriunda da territorialização do espaço público de Afuá, recebe devida


relevância quando se considera que os modelos de cidades ribeirinhas – cita-se a
condição/relação rio-várzea-cidade - constituem-se uma parcela importante das cidades que
formam a rede urbana da Amazônia, no sentido de que a compreensão dessa realidade
possibilita o conhecimento das relações socioespaciais e das territorialidades da região.
As análises dos territórios mediante a consideração da cultura e do cotidiano
permitiram o conhecimento das territorialidades presentes nos espaços públicos de Afuá. As
diferentes abordagens percebidas em um mesmo território possibilitam a compreensão da
complexidade das relações socioespaciais da cultura ribeirinha de uma cidade da Amazônia
Setentrional Brasileira.
A interface desses territórios constitui-se como chave para a apropriação e
identificação social, tais quais devem nortear as práticas de planejamento e gestão urbanas,
assim como, aos projetos urbanos voltados para a apropriação do espaço público, a fim de que
os usuários, atores e/ou agentes sociais neles envolvidos sintam-se identificados e
comprometidos com o espaço que os envolve.
Compreender esses processos de apropriação no espaço e território urbanos como
fenômenos espaciais inerentes à articulação das relações sociais, tal como na orla de Afuá,
permite a leitura da cidade em diferentes escalas que, posteriormente, pode subsidiar
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intervenções no âmbito de planos, programas e projetos urbanos a fim de qualificar e
promover o desenvolvimento urbano das cidades.

Referências Bibliográficas

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