Pomba Enamorada Ou Uma História de Amor

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Pomba Enamorada ou Uma História de Amor – Lygia Fagundes Telles

Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e
assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que
vou amar ele para sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos
molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas
bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para esconder a falha do
canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio,
isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras,
tais como, Você é que devia ser a rainha tinha comprado todo os votos, infelizmente não
tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisa a
custo de muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o
dobro para vencer. Não acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença para fumar
lá fora, já estavam dançando o bis da “Valsa dos Miosótis” e estava quente para danar.
Ela deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha enquanto voltavam para casa.
Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele, embora o
procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube veio lhe perguntar
o que tinha perdido. Meu namorado, ela disse rindo, quando ficava nervosa, ria sem
motivo. Mas o Antenor é seu namorado? estranhou o diretor apertando-a com força
enquanto dançavam “Nosotros”. É que ele saiu logo depois da valsa, todo atracado com
uma escurinha de frente única, informou com ar distraído. Um cara legal mas que não
esquentava o rabo em nenhum emprego, no começo do ano era motorista de ônibus, mês
passado era borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava
numa loja de acessórios na Guaianases, quase esquina da General Osório, não sabia o
número mas era fácil de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no
fundo da oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que podia servi-la? Ela
começou a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique, lembra? Ele lembrou
enquanto sacudia a cabeça impressionado, Mas ninguém tem este endereço, porra, como
é que você conseguiu? E levou-a até a porta: tinha um monte assim de serviço, andava
sem tempo para se coçar mas agradecia a visita, deixasse o telefone, tinha aí um lápis?
Não fazia mal, guardava qualquer número, numa hora dessas dava uma ligada, tá? Não
deu. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete velas para as almas mais aflitas e
começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio, isso depois de telefonar
várias vezes só para ouvir a voz dele. No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou
um dia maravilhoso para os nativos de Capricórnio, aproveitando a ausência da dona do
salão de beleza que saíra para pentear uma noiva, telefonou de novo e dessa vez falou,
mas tão baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando
nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho, delicadamente. Só
se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na esquina, e então tentou
novamente justo na hora em que houve uma batida na rua e todo mundo foi espiar na
janela. Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e
convidou-o para ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali
mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo
que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase
desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou apoiando-se na mesa, meio tonta.
Senta, meu bem, deixa eu ligar pra você, ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e
falando com a boca quase colada ao fone: Aqui é o Rôni, coleguinha da princesa, você
sabe, ela não está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela, nada grave, graças
a Deus, mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta, lógico. Em voz baixa, amarrada
(assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema, a gente sente uma coisa, diria o Rôni
mais tarde, revirando os olhos) ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra
oficina porque o patrão estava puto da vida e além disso (a voz foi engrossando) não
podia namorar com ninguém, estava comprometido, se um dia me der na telha, EU
MESMO TELEFONO, certo? Ela que espere, porra. Esperou. Nesses dias de
expectativa, escreveu-lhe catorze cartas, nove sob inspiração romântica e as demais
calcadas no livro Correspondência Erótica, de Glenda Edwin, que o Rôni lhe emprestou
com recomendações. Porque agora, querida, a barra é o sexo, se ele (que voz
maravilhosa!) é Touro, você tem que dar logo, os de Touro falam muito na lua, nos
barquinhos, mas gostam mesmo é de trepar. Assinou Pomba Enamorada, mas na hora de
mandar as cartas, rasgou as eróticas, foram só as outras. Ainda durante esse período
começou pra ele um suéter de tricô verde, linha dupla (o calor do cão, mas nesta cidade,
nunca se sabe) e duas vezes pediu a Rôni que lhe telefonasse disfarçando a voz, como se
fosse o locutor do programa Intimidade no ar, para avisar que em tal e tal horário nobre
a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial. É muito, muito macho,
comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou. E só devido a muita
insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu que não queria ouvir
nenhum bolero do caralho, Diga a ela que viajei, que morri! Na noite em que terminou a
novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao lado de Laurinha, quando depois de tantas
dificuldades venceu o amor verdadeiro, ela enxugou as lágrimas, acabou de fazer a
barra do vestido novo e no dia seguinte, alegando cólicas fortíssimas, saiu mais cedo pra
cercá-lo na saída do serviço. Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e
com o cílio postiço só no olho esquerdo, o do direito já tinha se perdido no aguaceiro.
Ele a puxou pra debaixo do guarda-chuva, disse que estava putíssimo porque o
Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu ponto de ônibus.
Mas a gente podia entrar num cinema, ela convidou, segurando tremente no seu braço,
as lágrimas se confundindo com a chuva. Na Conselheiro Crispiniano, se não estava
enganada, tinha em cartaz um filme muito interessante, ele não gostaria de esperar a
chuva passar num cinema? Nesse momento ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça
funda, duas vezes repetiu, Essa filha da puta de chuva e empurrou-a para o ônibus
estourando de gente e fumaça. Antes, falou bem dentro do seu ouvido que não o
perseguisse mais porque já não estava aguentando, agradecia a camisa, o chaveirinho,
os ovos de Páscoa e a caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava
namorando com outra, Me tire da cabeça, pelo amor de Deus, PELO AMOR DE DEUS!
Na próxima esquina, ela desceu do ônibus, tomou condução no outro lado da rua, foi até
a Igreja dos Enforcados, acendeu mais treze velas e quando chegou em casa pegou o
Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou
que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o menino.
Dormiu banhada em lágrimas, a meia de lã enrolada no pescoço por causa da dor de
garganta, o retratinho de Antenor, três por quatro (que roubou da sua ficha de sócio do
São Paulo Chique), com um galhinho de arruda, debaixo do travesseiro.

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