Contos Lésbicos Brasileiro

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Paloma Franca Amorim

Carrapatoso

Quando fizeram a piada na roda de samba eu não resisti e postei no meu facebook, minha tia
Ildelena leu e imediatamente o celular disparou aquele barulhozinho indefectível anunciando
uma longa mensagem de áudio que eu só poderia ouvir depois de chegar em casa, ali pra além
da meia-noite, no after da finda batucada, com o álcool batendo na borda do tutano e aquela
alegria produzida um pouco pelas companhias, um pouco pelo repertório de Ivone Lara, um
pouco pela beleza da noite que daquela vez estava precisa em seus contrastes de escuridão e
fiapo de luz saído da lua a carregar no próprio corpo o semi-sorriso do gato de Alice, tão
demasiadamente cínico como o meu coração às três da madrugada.

Aí pus o play no telemóvel e ouvi a voz esganiçada de tia Ildelena, sem complacência alguma,
inquirindo por que a sobrinha, menina feita e bonita, já com trinta e um anos na cara,
professora de adolescentes, escritora das páginas do jornal da província, miss caipira do
Núcleo Pedagógico Integrado de 94 a 97, foi botar pra todo mundo ler que

|Os caminhoneiros estão em greve, mas as caminhoneiras não. Venham pras Sambadas!|

|É a boleia do samba!|

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Onde a sobrinha havia enfiado a cabeça de se chamar de caminhoneira em público? Tia


Ildelena disse que eu nem parecia caminhoneira e de todas as minhas amigas só a Zé mesmo
que era a mais fanchona por causa do corte de cabelo. Pra tia Ildelena eu sou feminina, tenho
um gingado de mulher brasileira estilo vinheta de carnaval. Coitada.

Quando eu apareci com o Iuri em casa aos 16 anos, ela achou o máximo. Já estava de saída
quando chegamos os dois de mãozinhas dadas, tímidos, do cinema. Abraçou o Iuri num
orgulho que só faltou enfiar o moleque nas entranhas por osmose. Os dois até foram embora
juntos porque eu queria mais era ficar um pouco longe dele pra poder conversar a sós com a
minha mãe, precisava contar que eu tava mesmo era a fim de beijar a Carolina.

Tia Ildelena jura de pé junto que eu não sei nada sobre sua história pregressa. Até parece que
ela não conhece a irmã que possuía, minha mãe era uma portadora de fofocas de primeira
grandeza e já me havia contado, ali no início de minha mocidade independente de qualquer
padre miguel, sobre as incursões de tia Ildelena no mundo lésbico.
Narrou aquela vez em que minha avó a mandou pra Belém passar as férias com nossos tios
pentecostalistas e ela fugiu pra casa da prima Joana, essa que também não era santa como a
mulher estampada no vidro da colônia de alfazema que usava para se perfumar toda depois de
velha.

Prima Joana enfiou tia Ildelena em um casarão na Campina onde umas amigas suas moravam
juntas. Minha avó demorou pra aceitar a ideia, mas acabou cedendo depois de calcular os
benefícios do investimento naquela distância necessária da filha que entre as cinco era a de
espírito mais endiabrado.

Anos mais tarde tia Ildelena conheceu o tio Eduardo, diz que se apaixonou, aceitou o
casamento, regulamentou tudo de papel passado em cartório e nunca mais rebuceteio.

Mas nunca vou me esquecer do episódio em que minha avó ligou para saber como estava a
temporada da tia Ildelena no Pará. Ela só atendeu do quarto depois que uma das meninas
sinalizou tratar-se de interurbano. Tia Ildelena respondeu à vovó que andava tudo bem e que
as mulheres todas ali se amavam de tal maneira que até tinham apelidado a casa de
Carrapatoso que - quem mora em Belém sabe - é há décadas a sapataria mais famosa da
cidade.

Fascismo

A gente sabia que por debaixo do manto da santa tinha uma moça como éramos todas:
calcinha, regras, pernas peludas ou raspadas, um par de peitos meio imensos meio pequeninos
demais e uma lambuza de gotejamento nos horários mais inoportunos, o desejo molhado
fugaz e clandestino que se anunciava na fila do caixa da mercearia, no banco da escola ou
numa sessão de cinema em que o mocinho dominava o bandido com um mata-leão e em
seguida olhava para a câmera com as sobrancelhas semiarqueadas e ares notívagos. Ficávamos
em polvorosa, mas sem dizer nada. Julico andava conosco e se dava a fazer coisas que nós
meninas, quase mulheres, fazíamos por hábito ou lição. Penteava durante longos minutos os
cabelos crespos moldando os cachinhos meticulosamente e pintava as unhas com uma
camada de base invisível para não chamar a atenção, mas nós sabíamos secretamente que
Julico queria mesmo era usar a cor vermelha das doidas da zona ou aquele tom de café que
fazia os dedos da professora de literatura ficarem charmosos feito foguetes. Quando a
professora pegava a edição do “Amor de Perdição” do Camilo Castelo Branco, que ela mesma
dizia odiar, era como se suas mãos conferissem um certo charme moderno àquelas imagens e
letras pomposas que precisávamos dissecar matematicamente para realizar com louvor os
exames vestibulares. Eu queria fazer medicina e o Julico sonhava em partir daquela província
de merda para estudar moda em Londres junto a outras bichas maravilhosas cujos nomes
impronunciavelmente anglo-saxões eram ditos por ele com destreza e propriedade. Quando a
professora apanhou do namorado não houve como esconder. Ela surgiu com os olhos
protegidos por enormes óculos escuros e inventou uma história esquisita de que havia sido
atingida por uma caixa de ferro que desabara da estante de livros, mas a Fátima que não
passava de um diabo de fofoqueira, sabia a verdadeira trama porque era prima de segundo
grau da professora e ouvira a mãe ao telefone narrando toda a história. O namorado encheu a
professora de porrada porque ficou sabendo que ela havia se engraçado para os lados de uma
sapatão que cantava no Café Imaginário e, coitado, ele não merecia aquilo, levar chifre de
homem tudo bem, mas de mulher era complicado demais, feria de deixar os brios em carne
viva. Eu e Julico rimos da história até que a professora tirou os óculos e a gente viu o tamanho
do machucado. Não sei, me bateu num lugar que eu não consigo explicar. Depois a gente riu
de novo. Quando o Julico apanhou eu ri de nervoso. Uns rapazes seguiram ele depois do
cursinho e o encurralaram em uma rua estreita do centro, só depois de algum tempo eu
entendi que não podia rir porque o Julico estava morto e eu em luto pelo meu amigo. Mas
quando minha mãe perguntou se eu era sapatão por andar com ele, eu neguei até o fim e para
provar não fui a enterro nenhum, a velório nenhum, a missa nenhuma e rasguei todos os
bilhetinhos que trocamos ao longo dos cinco anos em que estudamos juntos, foi como se eu
passasse uma borracha em todos os meus pecados e por divina providência tivesse a
oportunidade de começar tudo de novo, me dedicar à medicina, andar com umas pessoas
novas mais normais e a gente tem feito uns programas muito legais, eu me sinto bem, feliz e
grata por tudo que deus me concedeu até agora, é muito legal.

[sem título]

admiro pessoas como meu pai que apesar de todo susto por ter perdido o celular no banco do
ônibus, o alcatrão, a dipirona, a dívida no banco que só vai se extinguir dentro de
aproximadamente doze meses, o cansaço físico, o susto com o gato preto, o barulho da
construção na Santa Casa, a crise do petróleo, quarenta anos de psiquiatria na cabeça, tortura
psicológica, perseguição política, a rinite alérgica, unha encravada, sobrancelhas que não
param de crescer e que parecem as de Monteiro Lobato, pelos exacerbados nas fossas nasais,
internações compulsórias, uma filha sapatão, olhos gordurosos, tendência a diabetes, a velhice
estampada nas rugas – certidão da inenarrável beleza que o tempo vinca no rosto -, os sinais
pretinhos que crescem aleatoriamente em suas costas, a esquizofrenia, a morte, o medo, a
polícia matando gente, a cisma da esquerda no país, a optometria não realizada, a sensação da
língua passando na gengiva nua naquela parte da boca onde lhe arrancaram os dentes, o
amargo da impregnação da lamotrigina, a linha da vida arrebentada, a sutura mal feita, a dor

ainda assim são capazes de dizer:

minha filha,

que céu bonito.

Natalia Borges Polesso


Minha prima está na cidade
Abri a porta do apartamento, vi a luz do banheiro acesa e comecei a discernir um barulho de
chuveiro: entrei em pânico. Minhas colegas de trabalho me olharam, eu olhei de volta para
elas, congelada. Lembrando agora é engraçado, mas na hora foi terrível. Eu só queria fazer
uma janta lá em casa. Apartamento novo, trabalho novo, essas coisas que a gente faz para se
entrosar. Aproveitei que a Bruna estava viajando e decidi convidar o pessoal da firma. É que eu
nunca tinha falado da Bruna para nenhuma das minhas colegas. Eu trabalho num lugar que
não me permite fazer isso. Sei lá, a Bruna é designer, acho que, no meio em que ela circula, é
mais fácil aceitar. Eu vou jantar com os amigos da Bruna, amigos do trabalho. Eles sabem que a
gente é um casal, porque a Bruna não tem problemas com isso. Eu tenho. Quer dizer, já tive
mais, mas agora consigo lidar até bem com essa questão da sexualidade, claro, dentro da
minha cabeça. Não conto para muitas pessoas, tem gente que não precisa saber, não faz
diferença. Por exemplo, as minhas colegas de trabalho não precisam saber, nem a minha
família. Minha família adora a Bruna, eles só acham engraçado ela mora comigo, já que é uma
mulher feita que tem uma carreira relativamente estável, sabe? Acham que ela poderia já
estar casada, morando com um marido bacana. Aí, eles mesmos se desdizem, ah mas hoje em
dia tá assim, pode casar tarde mesmo, primeiro tem que estudar, fazer um pé de meia pra
depois pensar em ter uma família, acho que ela tá certa. Acontece que eu e a Bruna somos
uma família, mas eu demorei para entender que éramos. Foi um dia em que eu fiquei bem
doente e cogitei a possibilidade de passar a noite na casa dos meus pais, e a Bruna ficou puta
comigo, com razão. Aquela era a nossa casa e eu podia me sentir bem e protegida ali, foi assim
que eu comecei a entender. Comecei a entender com cheiros de sopa e pão, banhos quentes e
carinhos e escolhas bobas como a cor dos móveis ou a necessidade de uma cortina, assim
comecei a entender o que era uma família, com louças acumuladas e montes de cabelos que
se perdiam pelo chão, cabelos pretos e compridos, porque eu e a Bruna temos cabelos pretos
e compridos. Minha família estava ali, com louça, gripes, montes de cabelos, cheiros de
comida caseira, café na cama e banhos quentes, com brigas e pedidos de desculpas, carinhos,
amores, cuidados, e era mesmo uma família, até quando ficávamos vendo televisão no
domingo de tarde ou quando levávamos nosso cachorro imaginário para passear no parque.
Não é que não gostamos de bichos, só não queremos ter nenhum no momento, nem eu nem
ela temos tempo ou disposição para um bichinho agora, então temos essa piada de casal
lésbico cool que tem cachorro e leva para passear no parque no domingo de tarde. Levamos a
Frida, nossa cachorra de gênio mexicano para passear no parque e rimos quando jogamos uma
bola imaginária para ela e rimos mais quando damos um biscoito imaginário e quando
deixamos de recolher a merda imaginária que ela faz no canteiro da casa em frente ao nosso
prédio. Mas é tudo muito discreto e essas são as piadas que nós temos e não podemos contar
para outras pessoas, porque é mais estranho do que engraçado, mas é também pelas
estranhezas que as pessoas se unem. Eu amo a Bruna e nunca quis magoá-la e nunca vou
querer. Temos essa combinação de evitar dizer coisas das quais possivelmente nos
arrependeremos mais tarde e nunca, nunca ameaçamos uma a outra com um término de
relação a menos que isso seja mesmo uma possibilidade, alías, mais do que isso, que seja uma
vontade legítima para além daquele momento. Desde que estabelecemos esses acordos, nossa
vida anda tão melhor, temos essa espécie de cumplicidade que nos protege de contar piadas
ruins para as outras pessoas, que nos protege de assumir para os outros que, apesar de lermos
e irmos a exposições, porque isso é meio compulsório no mundo lésbico artsy pseudocult,
pseudointelectual em que vivemos, ainda assistimos programas de televisão como Faustão, Big
Brother, novelas e Honey Boo Boo, dublado, diga-se de passagem, e que finalmente nos
protege da falta de amor do mundo, porque nós duas nos cobrimos, nos acobertamos e nos
namoramos desse jeito simples. E só eu sei como a Bruna pode ser chata quando fica doente e
como fica ansiosa quanto tem que entregar algum projeto, só eu sei que a ansiedade dela faz
seu rosto se encher de espinhas e seu coração disparar durante a noite e nos tira o sono,
porque eu também me preocupo e mesmo que eu diga cem vezes que ela vai conseguir fazer,
só eu sei que ela não vai acreditar, só eu sei. E só ela sabe como eu sou chata com coisas
absolutamente irrelevantes como não sujar o pano de secar a louça, não sentar nas almofadas
do sofá, só ela sabe como eu sou chata com o modo de dobrar as roupas e com a disposição
dos livros nas prateleiras e no banheiro, só ela sabe, mesmo que isso seja normal entre todos
os casais do mundo; de nós duas, só nós sabemos. E o que importa é mesmo pensar que
somos únicas. Mas a vida não é tão fácil nem tão boa que tudo possa ser perfeito sempre; às
vezes, a gente não se entende e, às vezes, ela diz coisas que eu acho que me ofendem e
mesmo que ela diga que não foi por querer ou que não foi aquilo que ela quis dizer, eu
continuo ofendida e magoada e ela sabe que eu preciso de silêncio nesses momentos e eu sei
que ela precisa falar e a gente fica tentando achar uma medida para nossa vida funcionar. Eu
mordo meus lábios e tento dormir e vejo que ela fica aflita porque não queria ter me
magoado, então ela vem me abraçar, tentar falar comigo, mas eu não consigo, e ela sabe que
eu não consigo e é aí que a gente se entende porque a gente sabe uma da outra. Quando sou
eu que faço ou geralmente deixo de fazer algo, e ela se magoa, é igualmente difícil, pelo
mesmo motivo: ela quer falar e eu não consigo, mas a gente tenta conforme a urgência e a
mágoa de cada uma. Até agora tudo tem estado bem, mesmo depois que eu abri aquela porta
com três colegas de trabalho que não tinham a menor ideia de quem era a Bruna e, assim que
ela saiu do banho, de toalha enrolada e disse oi para todas nós, mesmo depois de tê-la
apresentado daquele jeito, as coisas ainda estão dando certo. Eu só queria fazer uma janta
aqui em casa, falei para a Bruna na hora, e ela me olhou cabreira, mas já sabendo do que se
tratava, então ela me disse que tinha chegado antes da viagem porque a feira de produtos
estava chata e ela tinha resolvido voltar. Nesse tempo, minhas colegas estavam paradas ali,
meio sem saber o que estava acontecendo, a Bruna ficou esperando que eu dissesse algo,
explicasse quem eram aquelas pessoas na nossa casa, e eu disse:

Bruna, essas são minhas colegas de trabalho.

Gurias, essa é a Bruna. Minha prima. Ela veio fazer uma prova. Veio fazer o Enem.

A Bruna olhou para as minhas colegas e as cumprimentou como se aquilo de prima e Enem
fosse a mais ordinária verdade e pediu licença para ir estudar. Eu fiquei na cozinha com as
gurias, mas a comida desceu arranhando a noite toda. Depois que elas foram embora, eu fui
falar com a Bruna e ela só me disse que em algum momento aquilo teria que mudar, riu do
absurdo e disse também que a verdade teria sido indolor, talvez, mas não tinha certeza, talvez
estivesse errada. O fato é que continuamos tentando.

_
Cidinha da Silva
Farrina

Era, de longe, a mulher mais alta de quem já havia me aproximado. Estava sentada na
recepção do museu de um jeito bem infantil, as pernas muito abertas e o tronco inclinado e
projetado para frente, como um menino aficionado por videogame.

Só mudava a postura para manusear o celular. Ali denunciava a idade, a geração, era pré-
histórica. Catava milho para digitar qualquer coisa. Apertava as teclas com o indicador. Mordia
o lábio de felicidade quando concluía uma frase ou acertava uma letra maiúscula, e tocava a
tela com aquele jeito de quem ainda se encanta com o milagre das imagens no touchscreen.

Assim que me viu, sorriu meneou o corpo como quem dissesse: se você está procurando lugar
para se sentar, sente-se aqui. Assenti. A ver o que aquela mulher de longos dreads
avermelhados teria a me dizer.

Dreads criam certa irmandade mundo afora entre pessoas negras que partilham o sentido de
raízes que crescem para o alto e para fora, derramam-se pelos ombros e costas, totalmente
expostas ao sol.

Sentei a seu lado e a cumprimentei. Avaliei que tivesse por volta de sessenta anos. Talvez mais
e o tamanho agigantado lhe emprestasse um ar de adolescente desajeitada. Talvez menos e a
vida tivesse sido muito dura. Era o mais provável.

Farrina era seu nome. Falamos sobre o tempo, ameaçava chover e ela fazia cálculos para a
chuva cair dali a quatro horas, quando planejava já estar dentro de casa. Morava ali no
Brooklyn mesmo. Perto do meu museu predileto que estava em festa. Era primeiro sábado do
mês, dia de entrada gratuita para celebrar a herança negra durante todo o dia.

Conversamos sobre a possível origem do grupo musical que se apresentaria em breve. No


teste de som o canto era rascante, de audível influência árabe. Eu apostei no Norte da África,
ela em New York, porque ali havia gente do mundo todo. Acertei, o conjunto era marroquino.

Havia um Tuareg na banda, aquele foi o mote para conversarmos sobre viagens. Ela mesma
vinha de uma viagem longa. Chegara do Sul há uma semana, fugindo de mais um furacão. Eu
não havia visto notícia sobre furacão algum. Ela riu o riso de quem diz: são tantos furacões e
vendavais no Sul que o Norte dos EUA e o mundo só olham para nós quando precisam de
notícias.

Ela era precisamente de Savannah. Meu deus! Savannah! A terra daquele filme que eu não me
lembrava o nome e por mímica e palavras soltas queria que ela adivinhasse. Dei várias pistas
inúteis. Meu filme era cult, não pertencia ao mundo de Farrina. Mas ela se lembrou de Forrest
Gump e me informou que havia sido filmado lá, em Savanah. Eu não sabia. O filme da minha
memória apagada fizera muito sucesso em 1995, em Washington D.C. A essa altura ela ainda
não morava em New York, me avisou.
Não pude me furtar de olhar para as marcas do tempo violento e da pobreza em seu corpo: as
cáries, a falta de dentes, cortes e pequenas queimaduras ao longo dos braços, a pele
ressecada, sem uso de hidratante naquele princípio de inverno.

Quando você se mudou para New York? Nos anos 1980, ela respondeu. Depois fora para
Savannah e sua família se mantivera lá, no Brooklyn. Estranhei, talvez por desconhecimento
dos fluxos migratórios estadunidenses. Quis perguntar o que a havia levado para o Sul, mas
avaliei que não tínhamos intimidade para tanto. Resolvi esperar para ver se ela fazia alguma
revelação forte, um grande amor, uma volta às raízes negras e agrárias do país, sei lá. Militante
antirracista ela não me parecia ser.

Farrina se levantou para tirar fotos e achei que se eu ficasse de pé minha cabeça encostaria na
cintura dela. É lógico que foi uma especulação exagerada, porque ela precisaria medir três
metros. Na real deveria ter 1,92, no máximo 1,95, não chegava a dois metros. Mas não deixava
de ser gigante, comparada a mim.

Voltou a sentar-se e mexeu no celular, divulgava fotos, aquele exercício comum de publicizar a
intimidade que deixa as pessoas viciadas. Fiquei especulando de que povo africano ela
descenderia. Nada concluí. Quando finalizou a organização das fotos retomamos a conversa
sobre o furacão.

Eles avisaram que a gente deveria deixar as casas dois dias antes do furacão chegar. A
instrução era para fechar tudo e sair. Interessada, perguntei se o governo local dava alguma
ajuda financeira para que os moradores se deslocassem. Muito séria, respondeu que não.
Nenhuma ajuda. Recebiam, sim, uma notificação de que se não abandonassem as casas e algo
lhes acontecesse, seriam multados posteriormente. Como ela tinha parentes em New York
dirigiu até lá e esperava boas condições climáticas para voltar e ver o que havia se dado com a
casa. Nessa hora o olhar dela ficou bem triste, mesmo que tivesse rido para reforçar a ironia
do reencontro com a casa, possivelmente um imóvel público, cedido pelo governo.

Eu não sabia como continuar a conversa, mas Farrina queria ser ouvida e me falou sobre os
filhos, dois rapazes. O mais novo estudara numa universidade local, mas abandonou o curso,
queria trabalhar, ter o próprio dinheiro e montou um negócio de consertar computadores. O
mais velho era professor. Não perguntei de quê. Queria mesmo saber mais sobre ela, com o
que trabalhava, por exemplo. Devia ser cozinheira ou manejar maçaricos elétricos, coisas que
produzem calor, faíscas e queimam, acidentalmente. Seus braços e mãos eram muito
marcados.

Farrina me perguntou se eu era de New York. Eu ri, porque aquilo só podia ser pergunta de
quem estava se conhecendo mesmo. Sou brasileira e contei isso a ela, que se espantou, oh,
Brasil e fez alguma referência a Salvador e ao Rio de Janeiro, onde tinha acontecido a
Olimpíada. Tentei explicar que eu era de Minas Gerais, desenhei um mapa rudimentar do
Brasil e localizei a terrinha. Depois perguntou o que fazia em NY e respondi que estava ali para
assistir a leitura de uma peça de minha autoria num teatro da cidade. Ela me olhou entre
espantada e feliz. Congratulou-se comigo e disse, é muito bom que a gente faça esse tipo de
coisa também. Eu concordei: é, sim! E a convidei para assistir a leitura. Eu deixaria o nome dela
na portaria, era só pegar o ingresso. Insisti para ela ir. Ela tentaria, mas não senti firmeza.
Fiquei mesmo pensando se ela teria dinheiro para o metrô ou ônibus.

Vi umas pessoas comendo salteñas e o estômago deu sinais de existência. Perguntei se ela
aceitava algo para comer. A princípio respondeu que não e eu disse que a convidava. Então ela
aceitou e recomendou que fosse um hot dog ou qualquer coisa similar. Sugeriu que eu
deixasse minha mochila ao lado dela enquanto comprava a comida. Ai, uma desconhecida.
Contudo já havia uma irmandade dreadlockiana instalada. Peguei a carteira e deixei a bolsa
com o passaporte dentro. Segui o cheiro dos petiscos com o coração apertado.

Chegando à barraca de comida não se tratava de salteña, mas sim de um pastelzinho


caribenho com recheio de carne de boi, única opção. Comprei apenas um para Farrina e voltei
correndo para nosso local de conversa. Ela ainda estava lá, envolvida com o celular.

Entreguei o pastel a ela que agradeceu e perguntou pelo meu. Expliquei que eu não comia
carne vermelha. Ela lamentou e disse que eu deveria pelo menos beber uma Soda. Pensei que
era uma indireta, porque comprei só um negócio para comer e nada para beber, cabeça de
taurina, me levantei perguntando se queria a Soda, podia buscar. Ela segurou meu braço
dizendo que não. Seria para mim mesma, para não ficar com a boca seca. Acreditei, tirei uma
maçã da bolsa e comi para fazer-lhe companhia.

Farrina saboreava o pastel e eu já me corroía de remorso pensando que deveria ter comprado
mais de um, até que ela comentou: sim, esse Patty é do Caribe. Eu sou de lá.

Mais uma surpresa. De onde você é no Caribe? De Trinidad. Oh, Trinidad e Tobago, ilha da
região familiar de Audré Lord! Ela não conhecia. Expliquei que era uma escritora muito
importante, ativista lésbica. Confesso que falei a palavra lésbica bem rápido, pois estava em
dúvida se Farrina era uma dona de casa, cis, bem conservadora, ou uma lésbica antiga que
guarda tudo sobre si muito bem guardado e quem é do meio que leia os códigos e os
interprete. Farrina era uma cebola, isso sim.

Então ela era caribenha, chegara a NY e inadaptada à cidade mudara-se para o Sul dos EUA.
Essa foi a narrativa construída por mim para que suas escolhas fizessem sentido.

Antes de findar o show, Farrina me comunicou que iria embora. Sugeri que esperasse o
término, faltava pouco. Ela foi incisiva, precisava partir antes da chuva.

Farrina se foi e quedei pensando, que personagem! Lembrei o nome do filme: Daugthers of the
Dust.

Enquanto ela andava com aquelas roupas gastas, aqueles tênis rotos, aquela pele tão
maltratada, eu me perguntava se a tal casa dos parentes no Brooklyn existia de verdade. No
Sul, mais um furacão passava e deixava intacta a política de descaso e destruição do povo
negro.
DOMINGAS E A CUNHADA

Elas dormem juntas e isso é público, mas ai de quem as declarar amantes. A casa tem apenas
um quarto, cuja porta sempre fica aberta e donde se vê uma cama de casal. Uma trabalha na
feira. Vende abóbora, batata, milho. Tudo colhido de seu pequenino roçado. A outra cuida da
casa e dela também, que fuma muito e tem uma tosse intermitente. O que se conhece da
história das duas é que a primeira, Domingas, parou em Buritizeiro fugindo da seca. Saiu de
Pernambuco em 1942, com dezesseis anos e seguiu o curso do São Francisco até chegar lá. A
cunhada, que pouca gente sabe o nome, diz que saiu de Serra Talhada menos de um ano
depois, atrás do marido que julgou estar com a cunhada, Domingas. Não encontrou o marido,
mas achou Domingas e passaram a viver juntas. Quando Domingas a chama, geme alguma
coisa como “Mindinha”, ou só “Inha”. E é assim que o povo a chama também, nas raras vezes
que se dirige a ela. Tranqüila, calada, não é de conversação com a vizinhança. Quando mais
nova falava-se muito da sua beleza. Pequena, rosto largo e vasta cabeleira preta. Uma bela
índia. Domingas não era bonita, não. Nunca foi. Vida social as duas não tinham. Só a ex-freira
holandesa visitava-as com freqüência. A freira morava com uma amiga e mudava de amiga de
vez em quando. O povo maldava as amizades dela, mas, ao contrário de Domingas, ela não se
importava. Era a única que sabia a história verdadeira e escreveu uma novela para participar
de um concurso na Europa, depois da morte de Domingas e da autorização de Inha, que se
descobriu chamar Arminda. Arminda, aos catorze anos e meio casara-se com Tonho, irmão
mais velho de Domingas. Ele, desde criança, era encantado pelo Cangaço. Quando soube da
morte de Lampião, resolveu ser cangaceiro para vingá-lo. Deixou o casamento recente e
entrou para o bando de Corisco. Lá deixou de ser Tonho para se tornar Cabelinho de Fogo.
Sempre fora desastrado e conseguiu dar um tiro na própria mão, o que lhe custou três dedos.
Abandonou o grupo. Envergonhado, vagou pelos matos sozinho durante meses, antes de
voltar para casa e comunicar à Arminda que se lançaria no mundo, mas sem ela. Tinha pouca
condição para cuidar de si e nenhuma para cuidar dela. E foi embora. Domingas já havia
partido e Arminda se perguntava por que não fora com ela, por que tivera medo de seguir a
única pessoa que cuidara dela na vida. E como a vida de Arminda era esperar, esperava a carta
prometida por Domingas. E a carta chegou. Foi baseada nela, no tesouro de Arminda, que a
freira escreveu a novela. “Minha flor de mandacaru, depois de mês viajando, cheguei a uma
terra onde tem água nos rio. Tem também uns bicho feio, de madeira, que eles chama de
carranca e diz que espaventa espríto ruim dos barco. Minha estrela-guia foi a lembrança
daquela noite de lua cheia que cê dormiu nos meus braço. Grudada. Um bumbo batendo
dentro do seu peito e cê suaaava de medo. Foi o dia mais bunito da minha vida. Teve também
as estrelinha miúda das outra noite que cê fazia que ia, mas saía correndo porque o medo
tomava conta. E o Tonho nunca que voltava, nem deve de tê voltado. Cê num falava mais
comigo e se eu ficasse mais um pouco sem aquela comida, cozinhava os miolo de sofrimento.
Agora cê já sabe onde eu tô. Pega o barco e vem. Domingas.” E assim as duas meninas, uma de
dezenove e a outra de dezesseis, se encontraram em Buritizeiro e viveram juntas por mais de
cinqüenta anos, como irmã do marido fujão e cunhada. E ai de quem dissesse algo diferente.
_

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