junori36,+REV 4.+As+cartas+no+Anatômico+jocoso+ (1755) Pdfa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 20

ODISSEIA ISSN: 1983-2435

As cartas no Anatômico jocoso (1755), de Frei Lucas de Santa


Catarina
The letters in Anatômico jocoso (1755), by Frei Lucas de Santa
Catarina

Valnikson Viana de Oliveira *


[email protected]
Universidade Federal da Paraíba

Socorro de Fátima Pacífico Barbosa **


[email protected]
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma análise das
missivas contidas no tomo II do periódico português Anatômico jocoso (1755),
atribuído a Frei Lucas de Santa Catarina. Este trabalho também busca lançar luz
sobre os modos de composição epistolar nos periódicos jocosos portugueses, em
seu diálogo com a correspondência jornalística e periódica e com a prática cotidiana
de urbanidade dos escritores de cartas (MIRANDA; LISBOA, 2011). Para tal, foi feito
um levantamento dos principais temas contidos nas cartas, além da presença de
composições em verso, revelando aspectos interessantes sobre algumas práticas de
leitura e de escrita no século XVIII português. Ademais, considerando o que afirma
D. F. Mckenzie (2004) sobre o fato de novos suportes criarem novos gêneros, este
artigo também visa contribuir com os estudos da história da literatura e dos gêneros
literários, particularmente no que tange à sua origem, à sua fusão ou ao seu
desaparecimento, quando de sua publicação em suportes diversos. Como resultado,
percebemos que o nosso corpus demonstra o papel da epístola como gênero
literário e retórico proeminente, apresentando expressiva crítica a comportamentos
sociais, além de trazer a própria sátira à retórica e à poética por meio do tratamento
jocoso oferecido aos vários modelos de carta presentes nos manuais e secretários,
revelando artimanhas de composição e adaptação ao suporte folheto.
PALAVRAS-CHAVE: Anatômico jocoso. Cartas. Século XVIII. Frei Lucas de Santa
Catarina.

ABSTRACT: This article aims to present an analysis of missives contained in tome II


of the Portuguese jocular periodical Anatômico jocoso (1755), attributed to Frei
Lucas de Santa Catarina. This work also seeks to shed light on the modes of

*
Mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e aluno de Doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da mesma instituição, vinculado à área de Literatura, Teoria e
Crítica.
**
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL) da mesma instituição. Bolsista de produtividade e pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 53


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

epistolary composition in Portuguese jocular journals, in their dialogue with


journalistic and periodic correspondence, and with the daily practice of letter writers'
urbanity (MIRANDA, LISBOA, 2011). For such purpose, a survey of the main themes
contained in the letters was conducted, as well as a rendering of the presence of
compositions in verse, revealing interesting aspects about some practices of reading
and writing in 18th century Portugal. In addition, taking into account what D. F.
Mckenzie (2004) affirms regarding the fact that new media creates new genres, this
article aims to contribute to the studies of the history of literature and literary genres,
particularly with regards of their origin, their merger or their disappearance when
published throughout various media. As a result, we realize that our corpus
demonstrates the role of the epistle as a prominent literary and rhetorical genre,
presenting significant criticism of social behavior and bringing their own satire on
rhetoric and poetics through the jocular treatment offered to various models of letter
in the manuals and secretaries, revealing tricks of composition and adaptation to the
leaflet support.
KEYWORDS: Anatômico jocoso. Letters. 18th Century. Frei Lucas de Santa
Catarina.

Introdução - Anatômico jocoso nos quadros do Antigo Regime de Portugal

Em meados do século XVIII, circularam pela corte portuguesa os folhetos


jocosos, caracterizados pelo seu caráter “burlesco, satírico, erótico e jocoso”
(RODRIGUES, 1983, p. 71). Entre os principais títulos encontram-se Pinto
renascido, empenado e desempenado: primeiro voo (1732), de Tomás Pinto
Brandão, Folheto de Ambas Lisboas (1730-1731) e a coletânea objeto desse artigo,
Anatômico jocoso, atribuída a Frei Lucas de Santa Catarina 1. Sobre essa coletânea,
Inocêncio Francisco da Silva, no Dicionário bibliográfico português (1858), afirma:
Esta coleção saiu primeiro em dois volumes in 4º, dizendo-se coligida
e publicada pelo Dr. Pantaleão d'Escarçai Ramos; a que o ajuntaram
depois 3º, 4º e 5º em nome Fr. Francisco Rey de Abreu Mata
Zeferino, que se tem como pseudônimo de Fr. Lucas. [...] O que não
tem dúvida é, que do 1º tomo se fez segunda edição, copiosamente
aumentada, e se não me engano, também vi reimpresso o segundo.
As peças contidas nos cinco tomos pertencem a vários autores;
porém grande parte delas é indubitavelmente de Fr. Lucas de Santa
Catarina, pois como suas as tenho e vi todas coligidas e citadas em

1
Segundo Rodrigues (1983), Frei Lucas de Santa Catarina nasceu em Lisboa, em 1660, filho de
Pascoa de Mesa e de Manoel de Andrade Barreto, cantor da Capela Real. Professou a Ordem dos
Pregadores, no Real Convento de Benfica, em 20 de abril de 1680. Há dúvidas se teria efetuado os
seus estudos no Convento de Benfica, onde teria se dedicado ao estudo da História Eclesiástica e
Secular. Da vasta bibliografia elencada por Inocêncio Francisco da Silva (1858), no Dicionário
Bibliográfico Português, interessa as obras que podem ser catalogadas como não oficiais (Academia
Real de História, da qual fazia parte) ou religiosas (o frei era dominicano). Nesse rol, além de
Anatômico jocoso, tem-se o Parnaso jocoseiro, com 592 páginas não numeradas, que consta de
farsas, loas, entremeses etc., sendo as principais: “Das regateiras e malsins”, “Do exame das
danças”, “Dos bichos”, “Dos Ofícios”, “Jardim de Apolo”, “O carro de Faetonte” e “O Polifemo”.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 54
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

outros volumes manuscritos de miscelâneas daqueles tempos


(SILVA, 1858, p. 203).

Segundo Rodrigues (1983, p. 95), os folhetos do Anatômico jocoso foram


recolhidos e publicados em Lisboa entre 1775 e 1778, em um compêndio
encadernado de edição completamente licenciada pela censura. Essa publicação de
papeis alheios, em maioria anônimos, usa uma assinatura pseudónima: Padre Fr.
Francisco de Abreu Mata Zeferino. Esta prática de ocultação do nome é frequente
na obra de Frei Lucas, sobretudo nos seus escritos mais ousados (RODRIGUES,
1983). Tal ação se deve, muito provavelmente, ao fato de esta veia cômica bater de
frente com a sua posição de cardeal da Igreja. A compilação dos folhetos apresenta
três tomos, com o primeiro constando de obras diversas, o segundo de cartas e o
terceiro de gêneros teatrais (loas, entremezes e comédias).

Figura 1: Frontispício do segundo tomo do compêndio de folhetos de Anatômico jocoso.

Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional de Portugal.

Para esse artigo 2, foi considerado tão somente o segundo tomo, constituído
por oitenta e três cartas 3.

2
O presente estudo originou-se do Projeto de Iniciação Científica - PIBIC Ler e escrever nos folhetos
periódicos lusos dos séculos XVIII e XIX, com plano de trabalho centrado na análise das cartas do
periódico português Anatômico jocoso. A pesquisa foi premiada no XX Encontro Nacional de Iniciação
Científica - ENIC, realizado em novembro de 2014, na Universidade Federal da Paraíba - UFPB,
tendo o seu relatório final incluído em edição especial da série Iniciados, publicação em e-book da
referida instituição com foco em trabalhos de destaque acadêmico.
3
No decorrer da pesquisa, identificamos a presença de duas missivas além das oitenta e uma
indicadas no INDEX da coleção. Uma é referenciada como anexo e a outra é simplesmente suprimida
do guia apontado no início do tomo. Foi a partir disso que observamos uma possível relação

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 55


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

É preciso, contudo, compreender alguns aspectos da carta, ou da


correspondência, no quadro da cultura escrita do século XVIII, sobejamente no seu
aspecto de noticiar, de exercer as funções próprias ao jornal. A principal delas tem
origem na imprensa inglesa, no seu célebre periódico The Spectator, editado por
Richard Steele e Joseph Addisson, que circulou entre março de 1711 e dezembro de
1712. Tal jornal inovou ao permitir que seus leitores escrevessem para a sua
plataforma, além de seus editores usarem esse suporte para publicar ensaios,
notícias etc.
O Anatômico jocoso é, portanto, a tradução do que Rocha (1985, p. 25)
chama “de artificio que consiste em ‘fingir’ a forma epistolar” prática de todos os
tempos, mas que se acentuou e “foi banalizada com o advento do jornalismo”. Essa
posição que defendemos vai de encontro à de Alfaro (1994, p. 11), que, em estudo
dos mais importantes sobre a obra, toma as cartas como produtos reais e
“autênticos” e não como objetos ficcionais: “O epíteto ‘menor’ é impróprio para os
autores das cartas do Anatômico que seguramente, ao escreverem a uma freira ou a
um amigo, não tinham em mente a edição com que a posteridade os havia de
brindar” 4.
Contudo, devido ao sucesso dessa prática “na promoção de um ideal de
sociabilidade polida”, a correspondência de seus supostos leitores foi uma
característica importante da publicação, com essas cartas podendo ou não,
ocasionalmente, ser escritas pelos próprios editores (KUIPER, 2018, s/p.). Nesse

distribucional entre as cartas relacionadas a elementos da estrutura dos textos e a sua temática, o
que pode ter motivado tal situação. A Carta XXI De piques, com rebuço de pêsames, por certa
mudança, com resposta a ela (MATA ZEFERINO, 1755, p. 203-211) une duas missivas em seu
interior. A carta Resposta (MATA ZEFERINO, 1755, p. 206-211) aparece anexada à carta que
reponta, sendo assim indicada no INDEX. Contudo, notamos que a missiva que antecede este caso,
a Carta XX Em que o Autor se desculpa com certas Religiosas de ter faltado, e acusa o que terão
dele dito (MATA ZEFERINO, 1755, p. 194-202), também apresenta esta estrutura que compreende
uma resposta ao texto primário. A carta traz, inicialmente, diversos comentários possivelmente
proferidos por algumas freiras (referenciadas como flores), reclamando da ausência do autor da
primeira carta, sendo respondidas logo depois com a justificação da falta. Com a leitura do texto,
percebemos que estas falas foram na verdade possivelmente idealizadas pelo próprio autor desta,
não constituindo realmente duas missivas, mas uma só dividida em duas partes: as possíveis reações
das freiras em relação ao desaparecimento do autor e a resposta/justificativa deste a tais reações. Já
a carta Ao mesmo Senhor Enviado (MATA ZEFERINO, 1755, p. 359-362) pode ter sido confundida
com as duas outras que a antecedem, a Carta XXXXVII e a Carta XXXXVIII, já que as três
apresentam o mesmo título. O organizador acabou por indicar no índice apenas duas dessas cartas
homônimas.
4
Essa opinião é parcialmente desconstruída na nota de rodapé nº 9, do capítulo II, na qual o autor
afirma: “Com base na teoria que defendemos no Capítulo I deste trabalho (Cf. p. 37), julgamos poder
atribuir a Frei Lucas grande parte das cartas que têm por tema a comida. No entanto, algumas das
cartas freiráticas/antifreiráticas devem também ser do dominicano” (ALFARO, 1994, p. 153).

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 56
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

sentido, também vale salientar que a epístola não deve ser confundida com uma
carta comum:
[...] pois não se destina à simples comunicação de factos de natureza
pessoal ou familiar, aproximando-se mais da crónica histórica que
procura relatar acontecimentos do passado. A utilização do termo
alarga-se, depois, a todo o tipo de correspondência privada ou oficial,
literária ou filosófica, religiosa ou política [...] (CEIA, 2014, s/p.).

O segundo tomo de Anatômico jocoso consta de um Prólogo no qual se faz


menção a uma quarta parte, apresentando mais gêneros teatrais, como entradas,
farsas e comédias, e a uma quinta parte, apresentando obras poéticas. Tais
volumes, infelizmente, não foram encontrados nos acervos históricos consultados.
Em tal prefácio, o suposto organizador relata aos “curiosos leitores” que retirou as
obras ali editadas de “duas gavetas velhas”, de onde somente saiam para se
“sacudirem do pó e o despertarem o riso, pérolas escondidas que o faziam
companhia nas horas de tristeza há meia dúzia de anos”, não se esquecendo de
expor o seu propósito moral:
[...] me determinei a dar à luz estas crianças sem conhecidos pais,
vendo com quanta diferença foram criadas, que com aquilo mesmo,
que recreia os sentidos, vai repreendendo os costumes. [...] fui logo
revolvendo as gavetas, sacando os cadernos, fazendo cinco Tomos
de quarto, e todos volumosos, de que fiz cinco montes [...] e em
todos eles, além do divertimento, terás com que enfeites as tuas
Livrarias; com elas te poderás divertir, sem o escrúpulo de que em
todas encontres coisa, que se opunha à pureza da Fé, nem à
bondade dos costumes. Os maus muitas vezes os verás castigando
com os ditos jocosos; mas por isto tem mais de graça, quanto mais
castiga a culpa: a sua mesma variedade te fará mais saborosa à
mesa; regala-te com ela, e por último pratinho me aceita a
sempiterno Vale (MATA ZEFERINO, 1755, s/p).

O tom ficcional do relato do suposto organizador/prefaciador ressalta o teor


ficcional do compêndio, que recolhe uma série de escritos em sua maioria sem
assinatura, que podem ter sido fruto da sua própria criação. Trata-se de mais um
artifício retórico da escrita em periódicos da época, entre as quais predomina a
dissimulatio, que inclui o anonimato, o pseudônimo e os papéis encontrados ao
acaso ou clandestinamente enviados ao(s) autor(es)/editor(es), todas estratégias de
construção discursiva (BARBOSA, 2011).

1 As múltiplas faces da carta nos periódicos jocosos

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 57


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

O gênero epistolar tem sua importância pouco considerada por muitos


historiadores que tendem a ler e a investigar os escritos literários do passado sem
considerar suas apropriações e usos, bem como o momento histórico de sua
publicação e os procedimentos de escrita próprios de cada gênero e suporte
(MCKENZIE, 1999). Este artigo lança luz sobre práticas da escrita epistolar em
periódicos jocosos portugueses do século XVIII. Voltamo-nos, mais especificamente,
à prática escrita dos folhetos jocosos, cuja produção era bastante popular naquele
tempo. Tal suporte, apagado da historiografia da imprensa e da literatura, possuindo
raríssimas pesquisas a seu respeito (RODRIGUES, 1983; ALFARO, 1994; LISBOA,
2011; FERREIRA, 2018), aproximava-se dos periódicos “mais sérios” pela
apropriação de gêneros noticiosos – como epístolas, relações, notícias, além de
narrativas de caso e sonho – e gêneros retórico-poéticos – como máximas,
epigramas, glosas, sonetos, apólogos, enigmas e adivinhações (BARBOSA, 2007).
Além de demonstrar o papel da epístola como gênero literário e retórico
proeminente, até mesmo nos periódicos jocosos, este estudo demonstra a variedade
de modelos que a carta assumia nos folhetos. É preciso, contudo, ressaltar a
liberdade retórica que o estilo jocoso impunha às cartas, como já as caracterizava
Rodrigues Lobo (1992):
As cartas jocosas, ou de galantaria, têm mais campo e liberdade
para se poderem usar nelas alguns termos fora das limitações das
nossas regras, porque, assim em se estenderem mais como em se
sujeitarem menos, ficam desobrigadas das primeiras leis, que são
brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios, propriedade sem
metáforas, pois o termo da graça e galantaria nisso se diferença do
sisudo e pontual, não negando que há alguns que não perdem a
graça nem o siso (LOBO, 1992, p. 101).

Assim, as cartas nos periódicos jocosos não fugiram à prática corrente de


circulação e apropriação dos impressos, que consistia no processo de tradução e
livre adaptação de todos os gêneros de escritos: “os periódicos não só traduziam
livros completos, em excertos incluídos nas respectivas edições semanais ou
mensais, mas também publicavam obras estrangeiras adaptadas de forma mais ou
menos livre, por vezes sem qualquer referência ao autor” (FERREIRA, 2018, p. 239).
Nesse artigo trabalhamos com a hipótese de que os folhetos jocosos no uso que
fizeram da escrita epistolar são um dos elementos fundamentais para a mistura de
alguns gêneros literários, tal como discute Pécora, na formulação dos gêneros que

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 58
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

apresentam “formas mistas”, no caso, em estudo com a fusão de gêneros eruditos


com conteúdo jocoso (2001, p. 14)
Desde o século XIX que a carta deixou de frequentar a lista dos gêneros
literários. Contudo, durante o século XVIII, a prática dessa escrita ia além do que
supõe a concepção com que atualmente concebemos a escrita epistolar. Sua prática
servia a vários propósitos, e estava inscrita nos procedimentos da retórica e seus
usos que distinguiam a carta familiar daquela do homem da corte, o que leva à
combinação de diversas tendências sobre a arte de escrever cartas, reveladas em
inúmeros manuais, com modelos e tipos:

Mesmo do ponto de vista do simples cuidado com os aspectos de


apresentação “externa” – como o tipo de traço, a inclinação ou a
regularidade da letra –, aquilo que vale para um escrito mais
propriamente “oficial” ou de “chancelaria” pode fazer-se presente na
correspondência de cunho privado. E à medida que se vai
avançando no século XVII, a importância reconhecida ao justo
domínio do “artificio”, ou da “aparência” produz numerosos modelos
de cartas “de secretários com os mais variados ornamentos,
conceitos e figuras de ênfase” (LISBOA; MIRANDA, 2011, p. 371-
372).

Um número de Anatômico jocoso inteiramente dedicado às cartas representa


bem a sátira a esse modismo que assolava a cultura escrita de Portugal, cuja prática
foi disseminada por um variado número de manuais ou Secretários 5, sendo o mais
famoso deles o de Candido Lusitano (Francisco José Freire), O Secretário
Português (1745), sem deixar de mencionar o mais antigo, Corte na aldeia (1619),
de Rodrigues Lobo. É preciso esclarecer que a sátira à escrita epistolar é aqui
tomada na acepção que lhe confere Hansen (2003, p. 69):
[...] a sátira não imita supostos “fatos” da empiria, mas encontra a
realidade de seu tempo como sistema simbólico convencional de
preceitos técnicos, verossimilhanças e decoros partilhados por
sujeitos de enunciação, destinatários e públicos empíricos (HANSEN,
2003, p. 69).

Dessa forma, a prática da escrita epistolar envolvia desde assuntos, modelos,


figuras, letras, a “gestos, hábitos e procedimentos” (LISBOA; MIRANDA, 2011, p.

5
Lisboa e Miranda (2011, p. 373) listam alguns desses manuais: Perfeito pedagogo ou arte de educar
a mocidade, em que se dão as regras da polícia e urbanidade cristã, conforme os costumes de
Portugal (1782), de João Rosado de Vila Lobos; Escola política do tratado prático da civilidade
portuguesa (1786), de D. João de Nossa S. da Porta Siqueira; Elementos da civilidade e da decência,
para instrução da mocidade de ambos os sexos (1777), sem alusão a autor.

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 59


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

373) e, por isso, nas cartas jocosas de o Anatômico, o “alvo principal da sua
vituperação são ações que, por ameaçar e destruir a coesão pressuposta no
conceito de “bem comum”, são constituídas como abusos contra naturam, vício
moral, erro político, heresia religiosa, que corrompem os bons usos estabelecidos”
(HANSEN, 2003, p. 71).
Não é à toa que, entre as oito dezenas de cartas, encontram-se quase todos
os tipos de cartas e de sujeitos representados nos modelos dos secretários, em sua
forma jocosa, já identificada nos títulos. Assim, temos a Carta V Que um amigo
escreveu a outro dando-lhe conta das maravilhosas causas, e razões
extraordinárias, que precederam para chegar a seu poder a mais alta, e mui
endeusada Genealogia da Senhora Maria da Gloria (MATA ZEFERINO, 1755, p. 66-
88), a Carta VII Do Autor dando desenganos a um freirático, e explicando que cousa
é o amor (MATA ZEFERINO, 1755, p. 101-105), a Carta XII Em resposta de outra
vinda do Brasil a esta Corte (MATA ZEFERINO, 1755, p. 150-158), Carta XXI De
piques, com rebuço de pêsames, por certas mudanças, com resposta a ela (MATA
ZEFERINO, 1755, p. 203-210), Carta LXXVIII Ou discurso do autor sobre as
impaciências de Cloris em as fortunas de Nize (MATA ZEFERINO, 1755, p. 460-
468), entre outras.
Sem ser necessária a leitura das cartas em si, observa-se que, desde o
índice, o Anatômico jocoso trata de forma jocosa os vários modelos de cartas,
presentes nos manuais e secretários, resumindo-os a três tipos: metafóricas, joco-
sérias e gazetárias. É dessa forma que o segundo tomo de Anatômico jocoso
apresenta algumas cartas que são traduções livres de obras consagradas. Por
exemplo, a “Novela disparatória do gigante sonhado: obra joco-séria para
divertimento de curiosos”, de autoria de Antônio Serrão de Castro, publicada em
1745, pela oficina de Pedro Ferreira 6 , é apropriada e apresentada em forma de
relato, na Carta IX Em que o Autor dá noticia a um amigo da Novela disparatória por
ele composta a rogo de um Cavalheiro, que pediu-lhe a compusesse (MATA
ZEFERINO, 1755, p. 113-133), demonstrando as artimanhas de composição no
suporte folheto, ao mesmo tempo em que apresenta a ampla capacidade de
adaptação e transformação do gênero epistolar e a sua representação social. Dessa

6
Segundo Gomes (1981), a “Novela disparatória do gigante sonhado” circulou em Lisboa no século
XVII, em forma manuscrita, e no século XVIII, em forma impressa, mas sem identificação do autor,
fato ocorrido também com sua produção poética.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 60
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

forma, a nova versão traz modificações linguísticas (como quando se substitui o


verso “Só para que me aquente” por “Só por ser amante quente”) e de conteúdo,
como a inserção de novos versos cantados pelo gigante do título e a nomeação de
personagens anônimos (João Redondo, Maria das Flores, Taralhão, Galhano, Luiz
Cordeiro, Sumecê, Perdoa ao Meco, Arado, Manoel Balão, Catimbão e Tiroliro). A
novela, assim, ganhou transformações para melhor se adaptar ao folheto jocoso e a
seu propósito de entreter os curiosos: “[...] como se conformaria bem um assunto
joco-sério com um estilo grave, sem que o conceito, a hipérbole, e a metáfora lhe
dessem aquela galantaria, e aquele pico, de que necessitam semelhantes
discursos?” (MATA ZEFERINO, 1755, s/p).
É importante observar, ainda no prólogo ao leitor, que o estilo jocoso, por si
só, já faz uma sátira à retórica e à poética, ressaltando sua falta de propósito:
Não tem havido remendão do Parnazo, nem bicho da cozinha da
Retórica, que não vomite todos os dias toda quanta imundice a
acharam nas alcovinhas daqueles bestuntos, e quanta porcaria
encontraram nos caqueiros daqueles cérebros (MATA ZEFERINO,
1755, s/p).

O trecho refere-se ao conteúdo duvidoso dos folhetos, tidos pelo prefaciador


como “malditos papelinhos que só serviam para traques”, constituindo, a seu ver,
“monstruosidades”. Ele afirma que foram raros os que não fossem “frioleira”, os
quais acabou trazendo à luz da publicação quando se viu “magoado das injúrias,
que se faziam a Portugal, tendo um Varão de tanto respeito”. No caso dos folhetos,
o humor jocoso claramente cumpria a função de repreender costumes daquele
tempo, que permaneciam por meio de sua variedade, fazendo-o, através da
“monstruosidade” de misturar estilos, tipos e assuntos das cartas, tão didaticamente
separadas pelos manuais epistolares do tempo.
Percebemos também que muitas das cartas apresentavam gêneros poéticos
em excerto ou completos, no corpo do texto ou em anexo, favorecendo o que viria a
ser o hibridismo de gêneros, o nascimento de uns e a morte de outros (PÉCORA,
2001), cuja segmentação se dará no século XIX, com os românticos. Algumas
dessas composições em verso constituem apropriação da obra de grandes
escritores, conforme já assinalamos, seja por citação, paráfrase ou paródia. A
incorporação de outros escritos em língua portuguesa ou castelhana é algo bem
comum dentro das missivas estudadas. Seguem-se vários provérbios latinos,
pequenas orações, trechos de poesia etc. Há também várias alusões a personagens

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 61


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

da mitologia greco-romana e a grandes escritores da literatura clássica, como


Homero, Virgílio, D. Antonio de Mendonça, Félix Lope de Vega, Luís Vaz de
Camões, Pablo Gonçalves de Andrade e Luis de Góngora y Argote, aparentemente
servindo para endossar o caráter pretensamente erudito do autor dos escritos
jocosos, como no exemplo a seguir:
Nunca Páris experimentará tão cruel fortuna, se não preservará na
ofensa do roubo de Helena; nem Sapho fora rendida das ondas, se
na traição q cometeu, não permanece algum tempo. Diz Homero,
com Virgílio, que a ousadia e ajudada da boa fortuna; mas eu acho,
que pela maior parte e companheira de maior ruina: porque aquele,
que sem fundamento ousado se manifesta, nasce da sua confiança,
e leva esculpida a tragédia da sua ruina (MATA ZEFERINO, 1755, p.
467).

Todavia, ainda verificamos a interessante inserção de gêneros poéticos


possivelmente escritos pelo(s) próprio(s) autor(es) das missivas em doze das oitenta
e três cartas, monstruosidades do ponto de vista da poética. Assim, o levantamento
da autoria desses excertos se deu por meio de um estudo aprofundado de todos os
que são publicados em verso, contidos nas cartas. Verificamos que todos os
gêneros poéticos de autoria reconhecida, geralmente mencionada no interior das
cartas, aparecem em excertos, como no caso da citação a versos de Camões na
Carta LVIII Descrevendo uma função festiva no Convento de Chelas:
[...] Consultemos a Camões neste caso, e recopilemos o fogo no
Comento.

Não faltam ali raios de artifício,


Os trêmulos cometas imitando,
Fazem os fogueteiros seu ofício
Todo o vale de Chelas atroando:
Mostra-se dos marotos o exercício
Os montinhos de pólvora queimado;
Os sinos atilados o ar seriam,
E as laivosas lacaias os tangiam
(MATA ZEFERINO, 1755, p. 390).

Já os gêneros poéticos cuja autoria seria de Fr. Francisco Mata Zeferino/Fr.


Lucas de Santa Catarina, ao contrário dos que citam autores famosos, são
apresentados em totalidade e não em trechos. Apenas a composição em verso
contida na já citada Carta IX, atribuída a Antônio Serrão de Castro, é mostrada em
totalidade, compondo o relato sobre a “novela disparatória do gigante sonhado”.
Identificamos que os “supostos” autores das cartas fazem uso de sonetos, quadras,

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 62
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

décimas e epigramas, com os dois primeiros gêneros aparecendo com maior


frequência dentro das cartas em relação aos outros. A utilização destes gêneros
menores e mais populares pode ter se dado pela sua fácil memorização e cópia. A
Carta X Em que o Autor dá conta do sonho e triunfo de Amor ressuscitado, por
exemplo, é antecipada por quadras, em redondilhas maiores que se espalham por
toda a composição, intercalando a narração:
[...] Que assim havia de ser, para que fosse de todos os quatro
costados tolo: ia esfriando o auditório, ele a soalheira do pandeiro
dizia a letra:
E alegria, e alegria,
Ora viva de amor a companhia,
E todas elas eram boas,
Mas esta festa é melhor que todas.
Seguia-se finalmente Rei Davi o Alvoroço, faltando entres sustos, e
bailando sobressaltos com uma alma e uns pés de mequetrefe; sobre
a gala do aplauso, levava a mascarilha do silêncio (MATA ZEFERINO,
1755, p. 144).

O soneto é uma composição poética formada por quatorze versos distribuídos


em duas quadras e dois tercetos, com utilização predominante do decassílabo
(MOISÉS, 1974). As cartas do tomo II de Anatômico jocoso apresentam diversos
sonetos que fundem os dois tipos de decassílabo indicados por Goldstein (2006, p.
39): o heroico, com ascendência rítmica na sexta e décima sílabas, e o sáfico, com
ascendência na quarta, oitava e décima sílabas poéticas. Estes gêneros poéticos
aparecem geralmente no final das epístolas ou mesmo como anexo, concretizando
um tom de despedida. A maioria representa uma síntese do que foi tratado pelo(s)
autor(es) na carta. O soneto no final da Carta XV Que o Autor escreveu a irmão, e
pai, e desenganado (MATA ZEFERINO, 1755, p. 169-171) é enviado de presente ao
irmão do(s) autor(es) que acaba de se tornar pai. O(s) tio(s) da criança decide(m)
retratar as boas novas na carta em verso e apresentar sua faceta artística ao
parente:
Pariu vossa mulher em terça feira
Tantos de Março, enfim, porque em rigor
Para assistir ao parto de uma flor
Somente o Março pode ser parteira.
Na semana de Ramos lisonjeira
Inspirou a fortuna em seu favor;
Porque em tempos de palmas quis dispor
Que fosses Palmeirim, e ela Palmeira.
Oh grande mês sempre à memoria eterno!
Pois em ti (se hoje sábio o considera
O assombro a que presado de sisudo)

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 63


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

Nasceu o Instante, expirou o Inverno,


Foram-se as Naus, chegou a Primavera,
E pariu Dona Luiza sobre tudo
(MATA ZEFERINO, 1755, p. 170-171).

Algo interessante a se notar é que o jogo de palavras feito pelo(s) eu-lírico(s)


contribui para um maior entendimento da missiva a partir do soneto. É utilizado, no
último verso da segunda estrofe, o termo “Palmeirim”, que significa peregrino,
forasteiro ou estrangeiro, para se referir ao irmão. Até a leitura da poesia, só
poderíamos inferir que o destinatário estava distante da família. O verso traz uma
possível informação que justifica esta ausência: a figura paterna pode pertencer a
alguma estância nômade de trabalho. O uso da palavra “Palmeira” para designar a
cunhada Dona Luiza reforça a construção do(s) autor(es) em lamentar pela
separação familiar, com a mulher presa, enraizada ao seu lar enquanto o
companheiro se encontra distante. Além disso, em toda a construção do gênero
poético há demarcações do tempo, com a criança nascendo numa terça-feira da
“semana de Ramos” no mês de março, trazendo a primavera e acabando com o
inverno. Podemos interpretar que se faz referência de certo modo à longevidade do
período em que o irmão se encontra fora de casa, com a necessidade de mostrar as
datas determinadas.
Além dessa contribuição para a compreensão completa da carta, muitos
gêneros poéticos também são usados como artifício próprio da sátira pretendida
pelo(s) autor(es). A décima é um gênero de estrofe única com dez versos. Moisés
(1974, p. 115) a divide em dois tipos: a décima medieval, muito popular no século
XVI, e a décima clássica ou “espinela” (em homenagem ao seu presumido inventor,
o poeta espanhol do século XVI, Vicente Espinel), formada por uma quadra e uma
sextilha heptassilábicas obedecendo, majoritariamente, ao esquema de rimas
abbaaccddc. O(s) autor(es) da Carta LV Em que se agradecem umas empadas de
rolas. (MATA ZEFERINO, 1755, p. 384), assim como o(s) da Carta LVI Agradecendo
umas empadas de Lampreia. (MATA ZEFERINO, 1755, p. 385-386), faz(em) uso da
décima clássica para agradecer empadas recebidas de amigos, como que
realizando uma troca de favores. Os gêneros poéticos são anexados às missivas
como verdadeiras encomendas. A sátira se faz clara especialmente nas décimas da
Carta LVI, dedicadas “A uma Lampreia recolhida em empadinhas”.

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 64
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

No que se refere a outro gênero poético: o epigrama, cuja temática é centrada


em pensamentos ligados à tristeza e ao luto, podendo ser formado por mais de uma
estrofe, mas raramente tendendo a estender-se muito (MOISÉS, 1974), também é
possível identificá-lo nas composições. A Carta XXXIX De despique do amante
Lauso Tolo, chamando-lhe a sua Dama Tolo é finalizada por um epigrama que volta
a realçar a tolice de quem a redige:
Assim anda o mundo à roda,
Lauso, se noto advertido
Que ontem foi entendido
E hoje a Tolo se acomoda,
Saiba-se de polo a polo
Vossa mudança, Senhor;
Pois de Tântalo de Amor
Sois hoje de Amor tão Tolo
(MATA ZEFERINO, 1755, p. 321).

O “Lauso Tolo” é comparado à figura mitológica de Tântalo, referida


popularmente como aquele que deseja algo aparentemente próximo, porém
inalcançável, sofrendo por isso.
Ao contrário dos outros gêneros poéticos, a quadra aparece com maior
frequência dentro do corpo do texto, e não no final. Também chamada de
“quadrinha” ou “trova”, constitui uma única estrofe de quatro versos que se
autonomizou como gênero, se tornando muito presente na literatura popular com
temática bem abrangente (MOISÉS, 1974). É composta, especialmente, por versos
heptassílabos. A Carta XXXIII Carta mandadeira, que se mandou por entrudo a certo
Convento em nomes dos Noviços de outro (MATA ZEFERINO, 1755, p. 258-268)
apresenta uma interessante série composta por dezenove quadrinhas simbolizando
diversos alimentos enviados como presente a freiras de um convento:
Este papel leva o presente.

O presente abreviado
Vai, sem que se lhe dê disso,
Sem doces em papeliço,
Sem momos empapelado.

FRANGAS.

Essas quatro franguinhas


Desta casa vão sem falha;
E é que daqui da Batalha
Fogem como são galinhas.

COELHOS.

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 65


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

Este vai por meu conselho,


Que mostrar-lhe a vocês trata,
Que esta nossa casa é mata,
De que pode vir coelho.
[...] (MATA ZEFERINO, 1755, p. 262-263).

O(s) autor(es) da missiva, identificado(s) apenas como noviços de outro


convento, a assinam com pseudônimos e justificam as prendas observando que as
religiosas comem mais com os olhos que com a boca, preferindo assim enviá-las
“onde tudo se pode ler, e nada se chega a mastigar; porque assim ficarão em jejum
os beiços, mas mui fartos os olhos” (MATA ZEFERINO, 1755, p. 260). A lista
extensa de iguarias acentua a sátira à gula das freiras ao mesmo tempo em que
brinca com o amor freirático construído pela conveniência.
O tomo II do Anatômico jocoso, objeto de nossa análise, é constituído por
cartas descritas no Index como curiosas, joco-sérias, metafóricas e gazetárias. É
importante observar que, na denominação dessas cartas, o compêndio já está
fugindo às regras e à tipologia dos manuais de escrever cartas próprias ao seu
tempo. Por exemplo, o já referido Secretário português, ou método de escrever
cartas já previa o gênero misto de cartas, que consistia em dois tipos: as discursivas
e as satíricas ou de desprezo (FREIRE, 1801):
[...] a carta satírica consiste na persuasão Ética; porque o objeto da
sátira são os vícios, e então não é mais que uma repreensão deles:
confesso que há de ser mordaz, porem saiba também v. m. que deve
ser encoberta com tanta dissimulação, como engenho; porque é
detestável toda a mordacidade patente, e despida de agudeza”. [...]
De modo que a sátira não difere da acusação na substancia, senão
no estilo, e por este fundamento se reduz a contextura de tais Cartas
a estes dois pontos que são narração das ações viciosas
dissimuladamente manifestas, e reflexões mordazes e
simuladamente manifestas, e reflexões mordazes, e agudas por meio
de equívocos, apotegma 7 e expressões irônicas, que lisonjeando
repreenderão (FREIRE, 1801, p. 269-270).

7
Frase breve de carácter aforístico, geralmente de alcance universal. O apotegma aparece quase
sempre com linguagem figurativa e na forma de uma máxima ou sentença. Distingue-se do aforismo
e do provérbio por ser mais prático e focalizado; a autoria do apotegma é também, regra geral,
reservada a figuras notáveis da cultura, ao passo que o aforismo e o provérbio podem ter origem
popular. [...] O Padre Manuel Bernardes deixou na sua A Nova Floresta ou Silva de Vários
Apotegmas, e Ditos Sentenciosos Espirituais, e Morais, com Reflexões em que o Útil da Doutrina se
Acompanha com o Vário da Erudição Assim Divina, Como Humana (5 vols., 1706-1728) uma
importante colecção de apotegmas. O Marquês de Maricá ficou célebre pelas suas Máximas,
Pensamentos e Reflexões (1837-43), de onde se regista este apotegma: “A vaidade de muita ciência
é prova de pouco saber.” (CEIA, 2018).

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 66
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

Com a catalogação, pudemos perceber que o critério organizacional adotado


pelo antologista Fr. Francisco de Abreu Mata Zeferino (na verdade Fr. Lucas de
Santa Catarina) não corresponde a nenhuma ordem clara de viés temporal ou
autoral. A seleção das epístolas pode ter sido influenciada por diversos fatores, tais
como a curiosidade individual do organizador, a atenção com o público leitor, uma
ordem censória exterior, o grau de jocosidade, seu efeito didático e moral etc.
Todavia, acreditamos que a disposição das cartas possivelmente foi guiada pela
temática ou por elementos estruturais parecidos. Ademais, é interessante lembrar
que a reunião/apropriação dos folhetos não pode ser vista como parte de
procedimentos editoriais de falsificação, tal como é conhecida e combatida em
nossos dias. Trata-se, segundo Chartier (2012), de uma prática que integrava o
universo da leitura e da palavra impressa da época, sem que isso fosse considerado
crime, visto que ainda não existia a noção de propriedade autoral dos escritores,
com o direito de publicação permanecendo nas mãos de editores, livreiros e
impressores. Para além do seu “valor literário”, os folhetos interessam aos
estudiosos da leitura e da cultura escrita, pois revelam a passagem do mecenato
para o “novo regime literário”, no qual o autor vendia e vivia do que escrevia.

Figura 2: Primeiras páginas do Index do segundo tomo do compêndio de folhetos de


Anatômico jocoso.

Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional de Portugal.

Em linhas gerais, em relação à autoria das cartas, prevalece o anonimato


(com exceção do caso flagrante do mencionado Antônio Serrão de Castro), prática
comum que se estenderia até o século XIX. Algumas das missivas, como vimos,
vinculam-se a pseudônimos ou nomes alegóricos relacionados ao assunto nelas

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 67


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

tratado. O que chama a atenção é a prática de escrita recorrente e extensiva


também aos periódicos regulares que costumam incluir leitores e escritores forjados
pelo próprio editor do jornal. Faz-se notável, por exemplo, a gama de figuras
clericais apontadas (ou criadas) como autoras das cartas. É o caso dos personagens
cardeais que supostamente teriam escrito a mencionada Carta XXXIII, identificados
da seguinte maneira:
Frei Eu. Frei Frade. Frei Irmão. Frei Desejo da Incarnação. Frei
Umbigo das Saldades. Frei Aquele Daquilo. Frei Não sei que. Frei O
que vocês quiserem. Frei Bugalho do Dezerte. Apelem mais vocês.
Frei Nada. Frei Chafariz de Água suja. Frei Desejo de Bem sei que.
Frei Aquilo de Carvalho. Frei Coisa nenhuma. Frei Isso. Frei Cuco.
Frei Caco. Frei Beco (Este é a cortesia.) Frei Que esqueceu. Frei
Último. Frei Basta (MATA ZEFERINO, 1755, p. 262).

Tais pseudônimos, ressaltados como estratégia retórica de dissimulatio,


afirmam o tom jocoso da missiva, jogando com a importância do cargo religioso,
misturando-o a expressões populares e de duplo sentido, ao mesmo tempo em que
brincam com a estrutura séria do gênero, visto que aparecem em uma seção formal
de assinatura ao final da carta.
Para Costa (2007, p. 126), por outro lado, este anonimato presente nas cartas
é vinculado, muito provavelmente, a questões de censura, que também afetam
diretamente o seu conteúdo e o seu sentido. Algo importante, nesse conjunto de
cartas, diz respeito a presença em duas delas, desse caráter “metalinguístico” – sem
querer ser anacrônico – acerca, exatamente do controle imposto à leitura. A Carta L
Escrita a um amigo (MATA ZEFERINO, 1755, p. 365-368) apresenta justificativas do
possível autor para a censura de um livro posto por ele à publicação, enquanto a
Carta LI A um amigo dando-lhe esta notícia (MATA ZEFERINO, 1755, p. 369-374)
traz o discurso censor do autor em relação à possível deturpação do sistema
religioso e político de Portugal, por um estudante que faz uso de livros proibidos.
Alguns indivíduos conseguiam permissões especiais para ler obras banidas, fugindo
da ilegalidade. No entanto, isso dificultava ainda mais o controle do governo sobre a
circulação destes livros censurados, que acabavam também sendo adquiridos por
alguns “desautorizados” (VILLALTA, 2006). Esta situação é mostrada intimamente
na referida Carta LI, que é possivelmente dirigida a alguma autoridade jurídica
vinculada à censura.
Em relação à tipologia do padrão de escrita das missivas, retomamos o
manual epistolar de Freire (1801), que as divide entre os três gêneros do discurso

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 68
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

retórico: o demonstrativo, com cartas de parabéns, oferecimento, agradecimento,


aviso, discursivas e de louvor; o judicial, com cartas de desculpa ou justificação e
queixa; e o deliberativo, com cartas de pêsames, recomendação, boas festas,
consolação, exortação e conselho. O primeiro, também chamado de epidícto, se
relaciona a considerações de louvor e de censura; o segundo, às funções de
acusação e de defesa; e o terceiro, às atividades de aconselhar e de desaconselhar
pela persuasão (LAUSBERG, 1967).
Como pudemos notar, a maioria dessas cartas analisadas funciona como uma
espécie de “crônica” contaminada por sátira aos vícios, costumes e comportamentos
públicos ou privados de figuras estereotipadas da sociedade do século XVIII
português. Observamos que os temas mais recorrentes nas cartas são o amor
freirático e a gula, com alguns escritos ligados à clausura dos conventos e dos
mosteiros, além do comportamento das mulheres.
O amor freirático foi um tópico muito explorado por diversos escritores
setecentistas. Segundo Hansen (2003, p. 79), o assunto envolve a relação das
freiras com os mais diversos homens que tinham acesso ao claustro, como padres,
frades, vigários, músicos, arquitetos, parentes e outros afidalgados, caracterizados
ridiculamente como presunçosos e tolos. Este amor “não natural” faz embate com a
missão espiritual das noviças e aparece mais como desenganado ou refratado do
que como celebrado, sendo preceito para o humor. As missivas ressaltam as
frustrações de se manter uma relação encerrada sob as grades do convento. São
colocados na posição de Autor o próprio freirático ou algum amigo seu que comenta
sobre o caso amoroso.
As cartas sobre a gula são dominadas por muitas notas de agradecimento a
presentes ou a trocas comerciais. Notamos uma sátira acentuada à gula como vício
dos religiosos. Muitos deles permutavam versos e outros escritos literários, os
chamados “equívocos”, por alimentos de seu gosto, como uma botelha de vinho,
empadas, alface, presunto, etc. As missivas se tornam verdadeiros documentos
sobre as ligações entre o sagrado e profano através da sátira aos hábitos e
costumes dos membros da Igreja.
A representação da mulher encontrada nas cartas vai ao encontro do papel
social do século XVIII, em que nasciam para serem boas filhas, esposas e mães,
sendo submissas durante toda a vida. As damas que fugissem desta natureza
inferior e limitada em relação ao homem eram duramente criticadas. Ademais,

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 69


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

segundo Hansen (1989, p. 331), a partição fundamental da sátira é na verdade a de


“pecado/não pecado”, que se estende a todos os corpos, tanto do sexo feminino
como do masculino. A já referida Carta XXXIX De despique do amante Lauso Tolo,
chamando-lhe a sua Dama Tolo (MATA ZEFERINO, 1755, p. 289-321) é um extenso
relato sobre o adultério. A Dama referenciada, chamada de Amarilis, tem o caso
amoroso secreto exposto pelo próprio amante em um ato de vingança por esta tê-lo
desprezado. Acontece que a carta também apresenta sátira à ação do homem
pecador retratando-o como um bobo desiludido, o “Lauso Tolo”. Temos que, mesmo
com a recorrência de alvo a algumas figuras determinadas, como a mulher e o
freirático, a sátira feita nas cartas se estende aos comportamentos estereotipados
dentro da sociedade portuguesa.

Conclusão

O ato de escrever cartas é um costume antigo, assim como a sua compilação


e a atração que exerce sobre os leitores. Vemos que o termo “anatômico”, derivado
de “anatomia”, o ramo da biologia que estuda a estrutura e a forma dos elementos
constituintes do corpo humano, resume bem a premissa do periódico aqui estudado.
Unido ao vocábulo “jocoso”, a palavra traz à tona uma verdadeira dissecação, quiçá
uma autópsia da sociedade portuguesa do seu tempo através de textos de natureza
variada, mas sempre ligados pela sátira mordaz aos costumes e atitudes dos tipos
estereotipados (RODRIGUES, 1983).
Excluídos dos manuais de história da literatura, esses folhetos jocosos são
determinantes na compreensão das “monstruosidades” retórico-poéticas, que
culminaram com a ruptura total dos gêneros literários e poéticos no século seguinte.
O fato de as cartas atribuídas a Frei Lucas de Santa Catarina revelar construções
textuais alheias aos manuais e secretários demonstram a sua importância no
processo da escrita literária e ficcional. Elas se constituem como um espaço de
comunicação e valem como criação literária com forte veia satírica de viés
doutrinário, mesmo que tal intenção pedagógica e moralista seja veiculada por meio
de uma lúcida e divertida sátira, sobretudo a componentes da Igreja, que profanam
sua missão espiritual através de pecados.

REFERÊNCIAS

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 70
ODISSEIA ISSN: 1983-2435

ALFARO, J. O jogo das cartas. O lúdico numa antologia epistolar barroca. Lisboa:
Quimera, 1994.

BARBOSA, S. F. P. A escrita epistolar como prosa de ficção: as cartas do jornalista


Miguel Lopes do Sacramento Gama. Revista Desenredo. v. 7, n. 2, 2011. p. 331-
344. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/2406. Acesso em: 6
ago. 2019.

BARBOSA, S. F. P. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto


Alegre: Ed. Nova Prova, 2007.

CEIA, C. E-Dicionário de termos literários. 2014. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.


pt/encyclopedia/apotegma/. Acesso em: 6 ago. 2019.

CHARTIER, R. Cardenio entre Cervantes e Shakespeare: história de uma peça


perdida. Trad. Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
COSTA, A. C. M. Erudição e utilitas na obra de Frei Lucas de Santa Catarina. Porto:
Ed. do autor, 2007.

FERREIRA, J. P. R. Castigar a rir. O humor na imprensa periódica em Portugal


(1797-1835). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2018. Tese de Doutorado.
Disponível em: http://hdl.handle.net/10362/43440. Acesso em: 02 abr. 2019.

FREIRE, F. J. Secretario português ou método de escrever cartas. Lisboa: Tipografia


Rolandiana, 1801.

GOMES, M. J. Os ratos da inquisição - do judeu português Antônio Serrão de


Castro, prefaciado por Camillo Castello Branco. Lisboa: Contexto, 1981.

GOLDSTEIN, N. S. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2006.

HANSEN, J. A. Pedra e cal: freiráticos na sátira luso-brasileira do século XVII. In:


Revista USP. n. 57, 2003. p. 68-85. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
revusp/article/download/33834/36567. Acesso em: 6 ago. 2019.

HANSEN, J. A. Os lugares do lugar. In: HANSEN, J. A. A sátira e o engenho:


Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras,
Secretaria de Estado da Cultura, 1989. p. 305-393.

KUIPER, A. The Spectator: british periodical [1711–1712]. In: Encyclopaedia


britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/the-spectator-british-
periodical -1711-1712. Acesso em: 6 ago. 2019.

LAUSBERG, H. Elementos de retórica literária. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 1967.

LISBOA, J. L. O Anatômico entre os papeis jocosos setecentistas. In: LUSTOSA, I.


(Org.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo
Horizonte: EdUFMG, 2011. p. 392-405.

Odisseia, Natal, RN, v. 4, n. 2, p. 53-72, jul.-dez. 2019 71


DOI 10.21680/1983-2435.2019v4n2ID18271 V. V. Oliveira, S. F. P. Barbosa

LISBOA, J. L. MIRANDA, T. C. P. dos Reis. A cultura escrita nos espaços privados.


In: MATTOSO, J. (Org.). História da vida privada em Portugal. Lisboa: Círculo de
Leitores, Temas e Debates, 2011. p. 334-394.

MATA ZEFERINO, F. R. A. Anatômico jocoso, que em diversas operações manifesta


a ruindade do corpo humano, para emenda do vicioso. Lisboa: Oficina do Doutor
Manoel Alvarez Solano, 1755. v. II.

LOBO, F. R. Corte na aldeia. Introdução, notas e fixação do texto de José Adriano


de Carvalho. Lisboa: Editorial Presença, 1992.

MCKENZIE, D. F. The book as an expressive form. In: MCKENZIE, D. F.


Bibliography and the sociology of texts. Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1999. p. 9-30.

MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.


PÉCORA, A. À guisa do manifesto. In: PÉCORA, A. Máquina de gênero. São Paulo:
Edusp, 2001. p. 3-15.

ROCHA, A. A epistolografia em Portugal. Lisboa: Temas portugueses, Imprensa


Nacional, 1985.

RODRIGUES, G. A. Literatura e sociedade na obra de Frei Lucas de Santa Catarina


(1600 - 1740). Lisboa: Casa da Moeda, 1983.

SILVA, I. F. Dicionário bibliográfico português. Lisboa: Imprensa Nacional: 1858.


Tomo V.

VILLALTA, L. C. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil


(1769-1821). In: DUTRA, E. F. MOLLIER, J. (org.). Política, nação e edição: o lugar
dos impressos na construção da vida política no Brasil, Europa e Américas nos
séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006. p. 111-134.

Recebido em 12/07/2019
Aceito em 20/08/2019
Publicado em 09/09/2019

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 72

Você também pode gostar