Um Mistério Bibliográfico A Historia de Potosí

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Um mistério bibliográfico: a «Historia de Potosi» de Antonio de Acosta

Autor(es): Hanke, Lewis


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL http://hdl.handle.net/10316.2/46864
persistente:
DOI: https://doi.org/10.14195/0870-4147_8_6

Accessed : 8-Apr-2021 17:15:23

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Um mistério bibliográfico: A «Historia de Potosí»
de Antonio de Acosta

É um facto curioso e digno de nota que relativamente poucos


estudos tenham sido feitos acerca das prolongadas e complicadas
relações entre Portugueses e Espanhóis no Novo Mundo.
Embora durante mais de três séculos os povos ibéricos tenham
partilhado uma grande parte do continente americano e durante o
período de 1580-1640 tenham estado unidos sob um mesmo soberano,
os historiadores da actuação espanhola têm prestado pouca atenção
ao Brasil e os estudiosos da história portuguesa raramente têm
utilizado o importante material manuscrito com interesse para eles
existente nos arquivos dos países de língua espanhola i1).
Essa mútua indiferença, no entanto, parece estar a transfor­
mar-se em um mais activo conhecimento e este poderia representar
um importante avanço no sentido de mais profunda compreensão
das duas culturas ibéricas. A participação de Espanhóis nas
extraordinárias conquistas dos bandeirantes (2) e a riqueza de
documentação dos arquivos espanhóis a respeito deste assunto (3),

i1) Alguns contributos recentes: E. J. Burrus, S. J., «Jesuítas portu­


gueses na Nova Espanha (1588-H7I67)», Brotêria, rvn, 2.° semestre (Lis­
boa, 19*53), págs. 547-564; Robert Ricard, Los portugueses em las índias
españolas.
i(2) Cassiano Ricardo, La marcha hacia el oeste (México, 1956). Ver
especialmente o capítulo XIHI: «El elemento español en la interpretación
psicosocial de la bandeira» '(págs. 405-420). Vicente Licinio Cardoso acentua
a salutar e intensa influência de Espanhóis no Brasil em À margem da his­
tória do Brasil '(São Paulo, 19133), págs. i79-101.
i(3) Rosendo Sampaio Garcia, Documentos portugueses no Archivo Gene­
ral de índias (São Paulo, 19154); Astrogildo Rodrigues de Melo, Paulistas
na terceira década do século XVII '(São Paulo, 1954). Ver também Maria
dél Carmen Pescador del Hoyo, Archivo Histórico Nacional. Documentos de
índias. Siglos XV-XIX (Madrid, 1954), pág. 2W.
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assim como as fontes portugueses sobre a actuação espanhola,


começam a ser notados. Manuscritos existentes em São Paulo
revelam, por exemplo, que um famoso sertanista, António da Silva,
morreu perto de Potosi (4) ; uma investigação sistemática nos depó­
sitos de documentos portugueses e nos arquivos brasileiros, de
Belém do Pará a Porto Alegre, é provável que forneça muitas infor­
mações sobre contactos hispano-americanos com o Brasil durante
o período colonial. No entanto, poucos são os historiadores que
iniciaram a exploração deste género de fontes.
Os Portugueses não somente se dirigiram à América espanhola
e aí se ligaram proveitosamente a vários empreendimentos, mas
também escreveram cuidadosas descrições da parte espanhola da
América. Nos princípios do século xvn, um português elaborou
uma breve mas valiosa notícia do Peru e apresentou-a aos Estados
Gerais da Holanda (5). O autor tinha residido durante quinze
anos em Lima e visitado outros lugares do Peru, incluindo Potosi.
Descreve o centro mineiro como tendo 4.000 casas espanholas e
mais de 40.000 trabalhadores índios que vivem em cabanas de colmo,
na orla do aglomerado. Impressionou-o, como à maior parte dos
visitantes, a atmosfera da turbulenta cidade da prata: «Pululaban
en la villa los bravos, jugadores de profesión y demás gente
maleante». Mas não deixou de acrescentar: «Aqui están las
mejores maquinas y artificios que en el mundo nunca se han
feito»» (6).
No entanto, o mais importante escrito portugués sobre a Amé­
rica espanhola era, provavelmente, a Historia de Potosi redigida
por Antonio de Acosta ou Costa. Bartolomé Arsanz Orsúa y Vela,
o potosino do século xvin cuja maciça obra sobre Potosi continua,
infelizmente, inédita, cita largamente o livro que ele considera urna
das principais autoridades na sua extensa história das vicissitudes

(4) Alice P. Canabrava, O comércio português no Rio do Prata, 1580^1640


(São Paulo, 1'9I44), pág. 139.
f5)/ José 'de la Riva-Agüero, ed., «Descripción anónima del Perú y de
Lima á principios del siglo XiVII compuesta por um judío portugués y dirigida
á los estados de Holanda», Actas y Memorias. ¡Congreso de Historia y Geo­
grafía Hispanoamericana celebrado en Sevilla en abril de 1914 (((Madrid, 1914),
págs. 347-384.
i(6) Ibid., pág. 3177. A informação sobre Potosi eneontra-se ñas
págs. 376-3717.
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da Villa Imperial Ç). Descreve Acosta como um «noble lusitano


que escribía en su idioma» e afirma que a sua obra foi publicada
em português, em Lisboa, cerca de 167i2, e depois o volume foi
traduzido para espanhol pelo andaluz D. Juan Fasquier, que mor­
reu antes de acabar a tarefa, a qual incluía a continuação da His­
toria de Acosta até esse momento. As outras duas histórias frequen­
temente citadas por Orsúa y Vela foram elaboradas pelo capitão
Pedro Méndez e Bartolomé de Dueñas, ambos peruanos, que, do
mesmo modo, não chegaram a concluir os seus trabalhos «por
causa de várias circunstâncias» (8). A história de Acosta era,
por conseguinte, das quatro de que Orsúa y Vela depende larga­
mente, a única levada até ao fim pelo seu autor.
Nenhum exemplar da obra de Acosta foi, até hoje, localizado
e é tão completo o silêncio das bibliografias clássicas a respeito de
Acosta que temos de perguntar se a Historia de Potosi não será
uma mistificação. No entanto, Orsúa y Vela refere-se-lhe com tal
conhecimento e cita com tão grande frequência a sua obra que
parece provável ter Acosta elaborado um volume que nunca foi
impresso ou que só foi publicado numa tão pequena edição que
nenhum exemplar chegou até ao século xx.
Na falta desse exemplar, em manuscrito ou sob a forma de
impresso, temos a Historia de Orsúa y Vela como nossa única fonte
de informação sobre a história de Acosta. Orsúa y Vela declara
que o relato de Acosta se concentrava fundamentalmente à volta das
três «destrucciones» de Potosi: «o derramamento de sangue naquelas
memoráveis guerras dos Vicuñas, a inundação quando rebentou
o dique de Cari-Cari e a depreciação da moeda realizada pelo Pre­
sidente Don Francisco de Nestares Marín» (9).

(7) Algumas idas referências aos textos sobre Acosta são tiradas da
versão impressa de uma pequena 'parte da obra total de Orsúa y Vela, publicada
em Buenos Aires em 19<4I3 péla Fundação Patmo e organizada por Gustavo
Adolfo Otero. Quando os textos citados pertencem a este volume indica-se
o número da página. Quando se encontram em partes inéditas do manus­
crito, cita-se o livro e capítulo.
!(8) Historia de la Villa Imperial de Potosí, págs. 4-5.
(9)( Ibid., pág. 15. Ao longo da margem do Liv. VHI, cap. 1, Orsúa y Vela
pôs esta nota: «Acosta. Hist. de Poitosi intitulada: Las tres destruiciones de
la Villa Imperial de Potosi desde el (Cap. V del (Lib. V hasta el Cap. 52».
Com frequência é indicado o capítulo exacto de Acosta, como neste caso.
A última vez que Acosta é mencionado cita-se o seu Liv. VI, cap. 12.
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A respeito do próprio Acosta, Orsúa y Vela pouco mais diz do


que ser ele «iPortuguez de nación». Somos informados de que estava
na Villa Imperial só há quatro dias quando lhe chegaram as tristes
novas da morte do rei D. Sebastião em África, ocorrida a 4 de Agosto
de 157*8, de modo que ele chegou, provàvelmente, ao centro da
prata por altura de 1579. Como leal português, intercala na sua
história «una lastimosa exclamasion declarando las virtudes, sumo
valor, y miserable ruina des!be desgraciado Rey; y callando su muerte
concluya con solo dezir, que de embidia el fiero Marte consiguió
el no tener opossitor en el mundo; pero que a su tiempo vol­
veria» (10).
Acosta era claramente um leal potosino, manifestando esse
orgulho pelas maravilhas da Villa Imperial que caracteriza os escri­
tos da maior parte dos que foram levados a descrever a sua fasci­
nante história. Orsúa y Vela considera-o um «verdadeiro
historiador» C11), louva-o como um dos que relatam sucessos tais
como aconteceram, sem acrescentar nem suprimir nada(12), refe­
re-se à sua obra como uma «muy acreditada y agradable Histo­
ria» (13), e, pela constante dependência relativamente ao seu texto,
claramente vê em Acosta uma fonte séria e digna de confiança (14).
Acosta, que parece ter sido testemunha ocular (lõ) de muitos
dos episódios e sucessos incluídos na sua História e que residiu em
Potosi de 1579 até cerca de 1650, porque a sua última referência
é a acontecimentos deste último ano (16), deve ter chegado a Potosi
na juventude e vivido até avançada idade. Isto não é tão surpreen­
dente como parece, porque, a despeito dos rigores da situação de
Potosi nos Andes, a cerca de 15.000 pés acima do nível do mar,
alguns potosinos viveram até idade provecta; Orsúa y Vela men­
ciona um mineiro que viveu 120 anos e era ainda capaz de subir

(iü) Historia de la Villa Imperial de Potosí, Liv. V, cap. 9.


01) Ibid., pág. 341.
02) Ibid., Liv. V, cap. 18.
(13) Ibidpág. 344.
(14) Cfr. ibid,, Liv. VIII, cap. '18, onde Orsúa y Vela adopta o sistema
usado por Acosta de não mencionar os nomes de eclesiásticos em certas circuns­
tancias. No Liv. VIH, cap. 12, louva também a 'pormenoriração de Acosta
e através dele refere-se sempre a Acosta com respeito.
(15) Ibid., Liv. VIII, cap. fr e pág. 89,
'0«) Ibid., Liv. IX, cap. 1.
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ao cume da montanha da prata «uma vez por outra, quando lhe


apetecia».
'Certamente Acosta abrange um mais largo período da história
de Potosi do que Orsúa y Vela sugere anteriormente, se admitir­
mos uma exacta descrição da Historia, porque Acosta regressa ao
princípio da mina em 1545 e inclui na Obra diferentes espécies
de materiais. Reflecte sobre como Potosi recebeu o seu nome (17),
afirma que sobre a cidade caiu saraiva tão grande como ovos de
pomba (18), menciona a riqueza ganha pelos taberneiros X19) e
expõe com grande pormenor o descobrimento de certas pedras
extremamente preciosa® (20). Descreve os terríveis furacões que
devastaram a cidade, narrando as cenas tão vivamente que quase
ouvimos o vento assobiar pelas ruas estreitas e tortuosas de
Potosi (21). Fala do descobrimento de estranhos restos mortais
durante as escavações para a igreja dos Dominicanos (22). Cal­
cula— como a maior parte dos que escreveram sobre Potosi —
quanta prata foi extraída do fundo da montanha e a certa altura
exclama que, se fosse posta toda junta, era em quantidade suficiente
para atingir a mesma altura do próprio Cerro de Potosi (23).
Dá minuciosos pormenores sobre as numerosas e custosas fiestas
que os potosinos organizavam em todas as oportunidades pos­
síveis (24 ) e parece deleitar-se em tomar nota de muita informação
extravagante sôbre as loucuras e fraquezas dos potosinos —■ tal como
o episódio em que dois grupos lutavam, nus da cintura para cima,
durante um dos períodos de intenso frio que Potosi frequentemente
sofria (25).

i(17) Ibid., pág. 88,


1(18) Ibid., págs. 413-414.
l(19> Ibid., Liv. VIH, cap. 8.
i(20) Ibid., págs. 212-33; Liv. VII, cap. 16.
t(21) Ibid., págs. 19-20.
i( ) Ibid., pág. 123,
22

'(23) Ibid., págs. 182-183; pág. 188.


i(24) «Escribieron estas Reales fiestas muy largamente 'D. Antonio de
Acosta en su historia Potosina», ibid., Liv. VIII, cap. 9. Ver também pág. 1349.
O autor publicou a descrição (feita por Acosta de uma das mais notáveis
festas em «The 11608 Fiestas in Potosí», Boletín del Instituto Riva-Agüero
(Lima, 19518).
)(25> Ibid., págs. 231-232.
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290 Lewis Hanke

Acosta revela-se um escritor muito religioso, reflectindo fiel­


mente o espírito da sua época, que foi chamada «un siglo piadoso».
Inclui numerosos relatos de milagres, demónios, catástrofes caídas
sobre a oidade pelos pecados dos seus habitantes e exemplos de
grande caridade e também de falta dela (26). Acosta conheceu
um potosino tão piedoso que depois da sua morte foi venerado como
santo; vinte anos apos o enterramento, em 1625, o seu corpo —
garante-nos Acosta como testemunha de vista quando o túmulo
foi aberto —«estaba entero, y tratable, despidiendo de si una
fragrancia admirable; efectos de la gloria que gozaba y goza su
alma» (27). E, naturalmente, Acosta dá muitas informações sobre
os seus amigos Portugueses: como eles lutaram no partido dos
criollos contra os Vascongadas (28), como um morreu numa aven­
tura amorosa um tanto cómica (29), como um médico português viveu
em Potosi (30) e quão nobremente o general Pereyra serviu ai
como corregedor (31 )•
Assim, a Historia de Potosi de Acosta deve ser considerada como
muito mais do que o relato das tres «destrucciones» que sofreu
o centro da prata quando da guerra civil de 1623-1626, a ruptura
do dique de Cari-Cari em 1626, que inundou Potosi, e a depre­
ciação da moeda em 1650, embora estes pontos sejam na verdade
incluídos, como se verá quando o manuscrito de Orsúa y Vela for
finalmente publicado.
Espero que esta breve notícia ajude a despertar interesse entre
bibliotecários e bibliófilos no sentido da descoberta de um exemplar
do que creio ser a primeira historia impressa da Vila Imperial de
Potosi — um volume que se supõe publicado no idioma portugués,
em Lisboa.

Lewis Hanke

<26) Ibid., Liv. VIII, cap. 8; págs. 341-342; 352-354.


í(27) Ibid., Liv. VÍI, cap. 19. Ver também Liv. VI, cap. 20 e Liv. VIII,
cap. 15.
I(28) Ibid., Liv. VI, cap. 12; Liv. VI, cap. 20.
>(29) Ibid., Liv. VIH, cap. 20.
!(30) Ibid., Liv. VII, cap. 8.
l(3i) Ibid., Liv. V, cap. 9.

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