MEYRER, M. Quinze de Novembro - Fronteiras Da (In) Tolerância
MEYRER, M. Quinze de Novembro - Fronteiras Da (In) Tolerância
MEYRER, M. Quinze de Novembro - Fronteiras Da (In) Tolerância
Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Montagem ilustração da capa: Fabiana Beltrami da Silva
Imagem da capa: Recortes do jornal O Nacional
Reprodução de tela de Ruth Schneider. Cedida gentilmente pelo
Museu de Artes Visuais Ruth Schneider – Passo Fundo/RS
Revisão: Rui Bender
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Introdução
Fundamentado na metodologia da História Oral2, o artigo apresenta
a pesquisa realizada sobre o espaço ocupado pela rua Quinze de Novembro
e seu entorno na cidade de Passo Fundo/RS nas décadas de 1940 e 1950.
Utilizamos a categoria de análise de Elias (2000) sobre as relações entre
estabelecidos e outsiders, entendendo o espaço estudado como outsider na me-
dida em que ele estava à margem da sociedade reconhecida como legal –
cujas ações dos sujeitos desenvolviam-se dentro das regras jurídica e social-
mente estabelecidas, sobre as quais foram construídos estigmas que atua-
vam como demarcadores sociais. Nesse sentido, era um espaço de fronteira
entre o mundo legal e o ilegal, mas também um lugar onde as fronteiras
sociais eram frequentemente transpostas num determinado equilíbrio ins-
tável entre tolerância e intolerância.
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Professora do Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS.
2
Estamos cientes dos questionamentos que envolvem a história oral, especialmente no que diz
respeito à sua carga de subjetividade. Os relatos, assim, são analisados à luz de referências
bibliográficas sobre o contexto em questão, pois concordamos com Janoti (2010) quando ela
aponta para a necessidade de recorrer a fontes múltiplas, lembrando que o testemunho do
depoente não é apenas um relato do que viu e ouviu, mas uma construção de um determinado
discurso sobre o fato. Além disso, a autora chama a atenção para a necessidade metodológica
de levar em consideração os objetivos do entrevistador, nesse caso o historiador, que domina
todo um aparato teórico que orienta a entrevista e irá influenciar a construção do discurso. A
utilização dessa metodologia aqui liga-se diretamente à questão da memória. Interessa-nos a
elaboração da memória coletiva do grupo, que fundamenta sua identidade. Nesse sentido, o
conjunto de depoimentos e seus significados é entendido na medida em que se refere à mesma
realidade, ou seja, uma realidade comungada por todo o grupo social, adquirindo dessa forma
um significado coletivo.
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Ruth Schneider foi uma artista plástica, natural da cidade de Passo Fundo, cujos trabalhos
ganharam expressão nacional. Entre suas obras destaca-se a coleção que retrata cenas das
memórias de sua infância, entre as quais a série sobre o Cassino da Maroca, que lhe eram
contadas por seu padrasto. Atualmente, parte de suas obras pode ser conhecida no museu que
leva o seu nome na cidade de Passo Fundo: o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider em Passo
Fundo/RS.
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Segundo depoimentos de antigos moradores, a rua inicialmente não ficava no centro, mas
muito próxima do centro. Com a intensificação do desenvolvimento urbano na década de 1950,
ela passou a ser considerada parte da região central da cidade.
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Todos os nomes dos entrevistados foram substituídos por nomes fictícios.
6
Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 10 de dezembro de 2015.
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Segundo diversos depoimentos orais e textos veiculados nos jornais locais, entre 1939 e 1945,
período da Segunda Guerra Mundial, a cidade foi uma rota importante do contrabando de
pneus brasileiros para a Argentina. Muitos cidadãos da cidade teriam enriquecido por conta
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Sra. Maria. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 23/11/2015.
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Idem.
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res para que “honestas” e “perdidas” não se confundisse (p. 26). A autora
afirma que era preciso que as mulheres se conscientizassem de que “sua
natureza primeira era a maternidade. [...] A prostituta passou, então, a sim-
bolizar a alteridade, a mais radial e perigosa” (RAGO, 1991, p. 26) por isso
a necessidade de demarcar o espaço. Não é outra a razão das queixas na
coluna intitulada “O que o povo reclama” do jornal O Nacional de Passo
Fundo: “Moradores das vilas Schell e Luiza protestam contra o alastra-
mento do meretrício para seus bairros, saindo da zona demarcada da rua
Quinze de Novembro” (12/01/1949, p. 2).
A rua Quinze de Novembro com seus cassinos, dancings, bares e pen-
sões era também descrita pela sociedade formal como um lugar de violên-
cia e desordem, adjetivos comumente atribuídos às zonas de prostituição.
A imprensa, enquanto mediadora das relações sociais, reforçava esse ima-
ginário. No caso de Passo Fundo, o jornal O Nacional cumpria efetivamente
esse papel. Nesse sentido, Nascimento (2003) cita a seguinte reportagem
desse jornal:
[...] a rua 15 de Novembro é a “rua da alegria”, o ponto de convergência
obrigatória da malandragem que ali se confunde até alta madrugada. É a
rua 15 de Novembro, sem dúvida alguma, a de mais triste e célebre história
de quantas existem em Passo Fundo. Aí está localizado o meretrício; e todo
o mundo sabe que onde existem meretrizes existe desordem (p. 31).
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
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Eram tempos muito difíceis; inclusive ele tinha que trabalhar armado [pai];
ele tinha dois revólveres por incrível que pareça: um ele usava na cintura e o
outro do lado do caixa, nem era caixa, era tipo umas gavetas, onde guardava
o dinheiro. Então, na época, quase todo mundo andava armado. Noventa
por cento da população tinha um revólver em casa. O pai tinha dois: […]
que ele dizia que era o melhor. Eu me criei vendo aquelas armas, que feliz-
mente ele nunca precisou usar. Se lidava com todo o tipo de pessoas aqui,
vinham pessoas de toda a parte do Brasil por causa do Cassino. Vinham os
bons e vinham os maus também né? Como tinha os bons aqui na cidade,
então tinha que trabalhar prevenido. (Freitas)15
[…] como eu disse antes, minha mãe dizia: as pessoas podiam caminhar na
rua, outros dizem que não, que não dava para descer aqui para baixo que era
só fuzarca e confusão; então o que eu vou te dizer? Eu não sei, não frequen-
tei essa época, não vivi, estou contando o que minha mãe contava, que havia
um respeito; como ela falou isso, eu acredito. (Freitas)16
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.
16
Idem.
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Idem.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/11/2015.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
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Expressão utilizada pelos entrevistados para definir as cafetinas. Donas dos bordéis que tinham
o controle sobre as prostitutas.
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Por isso que diziam que passava uma menina, como eu já vi: passavam duas,
três meninas e elas [donas das casas] saíam na rua e diziam: “ó, isso aqui
não é lugar pra moças. Vocês vão lá por cima, pela outra rua, porque aqui
não é lugar pra vocês, não é lugar pra moças”. Então, eles usavam do respei-
to. E eu vivi aqui, aí no meio deles. Pra lá, pra cá, Dona Olívia, eu ia com-
prar coisas pra ela. A Dona Eupidia, eu ia comprar coisas pra ela. Era as-
sim. Entrava nas casas de todas, sem problema nenhum. (Vitor)21
A mãe sempre dizia que havia um respeito, se transitava aqui como se esti-
vesse transitando em qualquer outro lugar. Respeito que eu digo por parte
das mulheres. Não ficavam ali na sacada largando piada, mexendo com as
pessoas que passavam. Se mantinham no interior de suas casas. Que a gente
às vezes vê em filme ou em outros lugares, que as mulheres ficam nas janelas
chamando homem. Mas diz que aqui não. Ocorria tudo interno. As pessoas
frequentavam o Cassino, tudo bem, as outras que tinham casas que aluga-
vam quartos, mas não havia isso das mulheres estarem nas janelas chaman-
do as pessoas para frequentar o local. (Freitas)22
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.
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das moças bonitas, vistosas, boa aparência e boa conversa. Elas seleciona-
vam nesse sentido, tinham um grau de cultura do médio pra cima, então
quer dizer, ela não era simplesmente uma prostituta. Então lá dentro era
respeitada, o cara ficava aguçado e pagava a ida né? E depois chegavam lá,
pagava a casa, também o quarto. Então virou um negócio realmente e reali-
zou-se, então começou a aparecer concorrência, né? (Giovane)23
Então a Maroca ganhou muito daquela população e ganhou tanto, que ela
tinha um número muito grande de afilhados e afilhadas, que, de acordo com
as Glostoras me comunicaram, que ela fazia questão de presentear. Dizem
que, quando chegavam as datas propícias de presentes, ela sempre tinha um
acervo de coisas de coelhinho da páscoa ou coisas natalinas para dar. [...] E
a Maroca também era muito religiosa; ela sempre colaborava com a festa de
São Miguel e levava as meninas junto, mesmo a contragosto de algumas
madames. (Walter)24
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/11/2015.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 10/12/2015.
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Criminologista positivista italiano do século XIX, cujas ideias tiveram muita influência na
Europa e no Brasil. Associava características físicas aos perfis mentais dos criminosos. Seus
estudos também foram usados para definir as prostitutas na medida em que essas eram
consideradas criminosas.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 03/03/2016.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.
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Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 12/12/2015.
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Considerações finais
Entendemos que a rua Quinze de Novembro em Passo Fundo se mos-
trou um espaço no qual diferentes fronteiras eram frequentemente ultra-
passadas e/ou confrontadas. Fronteiras sociais, de gênero, geográficas e
culturais. Onde as fronteiras são testadas, é também onde elas se reforçam
no próprio jogo de adaptação e transformação que as mantém. Os estigmas
são reafirmados nesse embate constante entre os estabelecidos e os outsiders,
que, em última análise, conforma a permanência dos estigmas em relação
aos grupos de menor poder e prestígio social, e, nesse caso, o estigma se
mantém na atualidade em reação ao próprio espaço geográfico da rua Quinze
na cidade. Essa pesquisa é, em parte, para entender essa questão.
Não sou passo-fundense. Estou na cidade há poucos anos, e quando
cheguei, meu primeiro endereço foi a rua Quinze de Novembro, que, para
mim, era completamente destituída de qualquer significado além do uso,
ou seja, local da minha residência. Situação que começou a mudar à medi-
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Referências
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das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
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