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cada criança singular e das ações preventivas.
Uma luta permanente
para escapar do lugar de saber hierarquizante em relação aos profes- sores e destes com os estudantes e familiares, que ao invés de pro- porcionar conhecimento, conduzem a um descompasso entre aque- le que quer ensinar e aquele que quer aprender. Não há respostas de uma vez por todas, percurso pronto para o outro executar, a questão é o que convida a equipe a pensar o trabalho realizado no cotidiano. Entrar em interlocução com aqueles com quem vamos trabalhar é um desafio a novos arranjos, sejam eles com especialistas e profes- sores, sejam com as crianças e familiares, que possam movimentar a escola no sentido de promover o desenvolvimento de todos os envolvi- dos no trabalho pedagógico. Se nos aproximamos de uma escola para dar solução aos problemas, se aceitamos tal lugar, entramos na trama que amarra o cotidiano nas questões postas. Reduzimos a atenção, a sensibilidade e os ensaios para a criação de um campo argumentativo, território de experimentação de outros possíveis e circulamos no esta- belecido que levou à constituição dos impasses. Uma inserção para mudanças requer nos deslocarmos do lu- gar da eficiência das soluções para problematizar, potencializando outras perguntas e uma formação que deixa de ser da criança para ser de todos, inclusive da(o) psicóloga(o). O trabalho é coletivo e toda escola tem que ser envolvida nesta busca de alternativas, o pro- fessor tem que ser valorizado, os pais necessitam ser ouvidos porque têm muito o que falar sobre a escola e a educação, e a equipe pe- dagógica se constitui em um alicerce para uma prática pedagógica que prime pelo desenvolvimento das potencialidades. Certamente não faremos isso se não ampliarmos nossa cultura educacional, se não procurarmos nos inteirar das polêmicas da formação e se não formos preparados para compreender e viver o cotidiano da escola. As práticas coletivas de produção de subjetividade se apre- sentam para nós como estratégia de interferência no processo edu- cativo, levando em conta que os sujeitos, quando mobilizados, são capazes de transformar realidades, transformando-se a si próprios nesse mesmo processo. Do mesmo modo, podemos dimensionar o conceito de demo- cracia entendendo-o como política pública, ou seja, de interferên-
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cia coletiva, de ação de todos exercida nos movimentos sociais, nas organizações de representação de classes e também no cotidiano de vida e no trabalho, nas instituições sociais, possíveis campos de fermentação das lutas, como é o caso das escolas. Rocha (2001) evidencia que a demanda por psicólogas(os) para o atendimento ou encaminhamento massivo das crianças na escola só se dá quando prepondera a luta por mecanismos de controle:
O especialista só entra em cena quando a escola
se cristaliza em uma pluralidade de leis e abando- na o enfrentamento do coletivo nas suas divergên- cias, enfraquecendo a capacidade de negociação e os vínculos que tecem a rede social. É importan- te perceber que tensões e conflitos estão sempre presentes e representam o investimento dos sujei- tos na vida daquela coletividade, obrigando a lidar com as turbulências que se produzem a cada mo- mento. É do difícil convívio com as inquietações e com as diferenças que a solidariedade se engen- dra como sentido e ação comum que rompem com o isolamento (ROCHA, 2001,p. 213).
Assim, evitando os riscos de reducionismos quando se trata
das discussões que atravessam as políticas públicas, consideramos que a formação e o exercício profissional da(o) psicóloga(o) escolar e educacional que trabalhe a favor de uma participação democráti- ca junto à comunidade escolar, implicam a polêmica da questão da diferença. E, no que tange às dimensões de análise e de luta, Veiga- Neto (2005, p. 58) introduz importantes relações:
[...] diferença não é antônimo de igualdade. Nós
queremos a igualdade, mas ao mesmo tempo nós queremos manter as diferenças. O contrário de di- ferença é a mesmice, o contrário de igualdade é a
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na educação básica 37 desigualdade. Isso pode ser fácil de compreender; mas não é uma coisa simples de executar.
Os discursos e as ações que tendem à homogeneização vincu-
ladas às políticas públicas caminham no sentido de equalização do diverso, ou seja, de dar instrumentos para que ele se aproxime do padrão, da norma, deixando as práticas e circunstâncias escolares fora das análises. Veiga-Neto ressalta que qualidade, nessa perspec- tiva, será entendida e avaliada como o esforço ou o interesse “do diferente” em atingir os escolares considerados “normais”, reafir- mando o modelo. Mas o que seria “o diferente”? A princípio podemos dizer que é “o esquisito”, “o aluno especial”, “o que foge muito ao padrão estabelecido”. Nesse caso, denominar o estudante de “o diferente”, dando essência a um corpo, significa que ele escapa às expectati- vas. Todavia, divergindo desse olhar instituído, podemos, ao invés de falar “do esquisito”, falar de esquisitices, e aí estaríamos falando de cada um de nós, de todos nós. Quando a escola é um lugar para qualquer um? Quando a(o) psicóloga(o) pode contribuir para a in- tensificação da luta diária para acolher nossas esquisitices? Quando pode compreender a luta de classes presente na sociedade capita- lista? Fazer diferença na rotina? Tais perguntas não podem sair de cena, pois elas nos auxiliam a sustentar polêmicas e análises sobre a prática pedagógica e também sobre as condições sócio-histórico -institucionais que a circunscreve. A sociedade contemporânea sofreu um encolhimento da orga- nização pública, passando a ser vivida na ampliação do mundo pri- vado. Em muitas escolas, a sala de professores virou um corredor de passagem ou mais uma sala de aula, o tempo do recreio diminuiu, o que significa que os locais e tempos de encontro “fora de controle” estão sendo suprimidos em função da quantidade de estudantes e de aulas, e isso traz efeitos que não podem estar fora de foco. O trabalho nas instituições implica atenção e cuidados, não prioritariamente aos indivíduos, mas às redes interna e externa que os tensionam. Isso, para as(os) psicólogas(os), implica conhecer mais sobre educação, sobre os ciclos, sobre as histórias das lutas por
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mudanças e sobre os modos como essas mudanças ganham forma de leis, as quais, muitas vezes, não são identificadas pelas(os) edu- cadoras(es) como resultado de seus movimentos e reivindicações. Compreender e atuar na complexidade do cotidiano escolar não tem sido tarefa fácil se a criança e o jovem são vistos isoladamente, considerados na qualidade de portadores de diferentes carências e patologias, o que se acentua, nos casos das classes populares, com as questões sobre violência e riscos. Tem-se clareza que nem todos os indivíduos têm acesso aos bens materiais e culturais de forma igualitária em uma sociedade capitalista. Se vivemos mal o espaço público, as misturas, as diferenças, como trabalhar com coletivos, acentuando o caráter público das ações? Público não é ser espectador, mas refere-se à abertura de es- paço polêmico para as práticas, o que implica outro tempo. É tornar público o que se faz, são as trocas que fazem circular ideias e poten- cializam outras práticas. Isso é uma questão para todos os implica- dos com a formação. Diferenças não são características, mas efeitos de diferenciação, envolvendo, portanto, outro modo de pensar e de fazer formação, que fale de movimento, do que vai se modificando no percurso em nós e nas relações a partir de nós (ROCHA, 2008). Se uma primeira questão aponta para a desconstrução dos dualismos que aprisionam, a segunda está na criação permanente de dispositivos para um campo de experimentação, algo que afete, que nos afete, que implique a formação de um comum que se dá por contágio. (PELBART, 2008) Como seria um conselho de classe vivido como uma oficina-dispositivo, um laboratório que avalia os encontros das turmas no bimestre anterior dando as condições para o próximo bimestre? Que circunstâncias locais são necessárias para que isso aconteça? Essa é uma boa pergunta que nos dá o que pen- sar (ROCHA, 2006). O cotidiano de trabalho envolve certo uso do tempo, o currícu- lo, as relações e histórias que aproximam e distanciam escola e co- munidade. A construção de narrativas abre espaço para a produção de conhecimento, aprofundamento teórico- metodológico sobre o que se vive a partir do que se faz. As narrativas podem tomar força, deslocando dos casos problemas às histórias de vida. Porém, a lógi-
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na educação básica 39 ca médica que nos atravessa vem delimitando papéis e funções na efetivação de medidas para as velhas urgências e, que bloqueiam o pensamento, pois requer outro tempo de ação. O que vemos no campo de trabalho na atualidade é que, diante das urgências e da falta de tempo para conversar, as cenas se repetem e a rotina tem sido passar o problema adiante (encaminhamento), culpabilizar (a si próprio, às crianças, aos familiares, ao sistema), lamentar-se (so- frer, adoecer, licenciar-se). Quando a potência de interferir é fragi- lizada traz como efeito a perda do sentido das práticas e a pouca implicação com o processo de trabalho. Os desafios apresentam-se como algo da ordem do inusitado, constituído entre saberes e experiências que emergem no curso da ação. A rotina dá lugar à imprevisibilidade, acolhendo o que não está em nossas expectativas. Sem polêmica não temos como tensio- nar as instituições em jogo. Somos diversos e vivemos situações de forma singular. E o desafio de outro uso do tempo e do espaço que não o da competência entendida como performance, aceleração, produtividade é um arejamento, porque esgarça os limites dos de- terminismos nos situando em um campo de experimentação entre ensinar e aprender, território fértil para a invenção de novas ideias, de outros mundos. Os fundamentos teóricos elaborados na Psicologia, ferramen- ta de trabalho do profissional, juntamente com o conhecimento da rotina da escola, da prática exercida, entre outros fatores, servirão de base para pensar formas de superar determinismos sociais que impedem o entendimento da complexidade que envolve as relações estabelecidas na escola na busca de sua função, a de levar os alunos a se apropriarem dos conhecimentos produzidos pela humanidade. Formar não é moldar o informe, é criar um território favorável à cooperação, à curiosidade, à indagação, à provisoriedade e à per- manente produção de sentidos e apropriação de significados sociais. O que é permanente é a luta pela produção de sentidos que nos faz coletivo e que nos ampara para suportar o provisório, as mudanças necessárias para acolher nossas esquisitices. Desse modo, pensar em mudar a formação não é só trazer mais um recurso tecnológico, é possibilitar a produção de políticas públicas que ponham atenção sobre os efeitos de diferenciação.
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A participação da Psicologia na discussão das contradições, conflitos e paradoxos do sistema escolar hoje vigente é, portanto, vital no momento em que se encontra a escola brasileira, sob o ris- co de continuarmos formando gerações de excluídos, de crianças e jovens que, por não se apropriarem ativamente do conhecimento socialmente produzido, estarão a mercê do processo de produção capitalista. (NENEVE & SOUZA, 2006). Esses são somente alguns pontos para refletirmos sobre o co- tidiano da escola e no próximo item proporemos algumas possibili- dades de intervenção.
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