Reconhecimento Sem Ética - NANCY FRASER PDF
Reconhecimento Sem Ética - NANCY FRASER PDF
Reconhecimento Sem Ética - NANCY FRASER PDF
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Artigo originalmente publicado na revista Theory, Culture & Society, v. 18, p. 21-42,
2001. Tradução de Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga
Assis, a quem agradecemos. Agradecemos também à revista Theory, Culture & Socie-
ty e à autora a cessão dos direitos de publicação deste artigo.
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Partes deste artigo foram adaptadas e retiradas do meu ensaio, Social Justice in
the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition and Participation (Fraser, 2000a).
Estou agradecida à Tanner Foundation for Human Values pelo apoio a esse traba-
lho; uma versão anterior dele foi apresentada como a Tanner Lecture on Human
Values na Universidade de Stanford, de 30 abril a 2 de maio de 1996. Agradeço a
Elizabeth Anderson e Axel Honneth, por suas atenciosas respostas à conferência,
e a Rainer Forst, por seus comentários questionadores a um rascunho prévio do
presente artigo.
Moralidade ou ética?
Integrar redistribuição e reconhecimento, contudo, não é
uma tarefa fácil. Pelo contrário, executar este projeto signifi-
ca envolver-se imediatamente em um nexo de difíceis ques-
tões filosóficas. Algumas das mais espinhosas dessas questões
concernem à relação entre moralidade e ética, entre o cor-
reto e o bem, entre a justiça e a boa vida. O problema cen-
tral é saber se os paradigmas de justiça usualmente alinha-
dos com a “moralidade” podem dar conta de reivindicações
pelo reconhecimento da diferença – ou se é necessário, ao
contrário, voltar-se para a “ética”.
Permitam-me explicar. É hoje uma prática comum na
filosofia moral distinguir questões de justiça de questões da
boa vida. Interpretando as primeiras como um problema do
que é o “correto” e as segundas como um problema do que
é o “bem”, a maioria dos filósofos alinha a justiça distribu-
Identidade ou status?
O ponto central da minha estratégia é romper com o mode-
lo padrão de reconhecimento, o da “identidade”. Nesse
modelo, o que exige reconhecimento é a identidade cultu-
ral específica de um grupo. O não reconhecimento consiste
na depreciação de tal identidade pela cultura dominante e
o conseqüente dano à subjetividade dos membros do gru-
po. Reparar esse dano significa reivindicar “reconhecimen-
to”. Isso, por sua vez, requer que os membros do grupo se
106 unam a fim de remodelar sua identidade coletiva, por meio
da criação de uma cultura própria auto-afirmativa. Desse
modo, no modelo de reconhecimento da identidade, a polí-
tica de reconhecimento significa “política de identidade”1.
O modelo da identidade é profundamente problemá-
tico. Entendendo o não reconhecimento como um dano à
identidade, ele enfatiza a estrutura psíquica em detrimen-
to das instituições sociais e da interação social. Assim, ele
arrisca substituir a mudança social por formas intrusas de
engenharia da consciência. O modelo agrava esses riscos,
ao posicionar a identidade de grupo como o objeto do reco-
nhecimento. Enfatizando a elaboração e a manifestação de
uma identidade coletiva autêntica, auto-afirmativa e auto-
poiética, ele submete os membros individuais a uma pressão
moral a fim de se conformarem à cultura do grupo. Muitas
1
Para uma maior discussão do modelo de reconhecimento da identidade, veja
Fraser (2000).
2
Para uma crítica mais aprofundada do modelo de identidade, veja Fraser
(2000).
3
Para uma discussão mais ampla do modelo de reconhecimento de status, veja
Fraser (2000a).
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Sou grata a Rainer Forst pela ajuda em formular esse ponto.
5
Como já apontei, o modelo de status evita a psicologização. O que isso significa,
entretanto, requer algum esclarecimento. O modelo não supõe que o falso reco-
nhecimento jamais tenha os efeitos psicológicos descritos por Taylor e Honneth.
Mas ele sustenta que a condenação do falso reconhecimento não depende da pre-
sença de tais efeitos. Desse modo, o modelo de status dissocia a normatividade das
reivindicações por reconhecimento da psicologia, ampliando, assim, a sua força
normativa. Quando reivindicações por reconhecimento são baseadas em uma te-
oria psicológica das “condições intersubjetivas para a formação da identidade de
modo não distorcido”, como no modelo de Honneth (1995), elas se tornam vulne-
ráveis às vicissitudes daquela teoria; o seu vínculo moral evapora, caso a teoria se
torne falsa. Tratando o reconhecimento como uma questão de status, ao contrário,
o modelo que proponho evita submeter as reivindicações normativas a questões
psicológicas de fato. Pode-se demonstrar que uma sociedade cujas normas insti-
tucionalizadas impedem a paridade de participação é injusta mesmo que ela não
inflija danos psíquicos àqueles que ela subordina.
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Aqui estou assumindo a distinção, agora bastante comum na filosofia moral, en-
tre respeito e estima. De acordo com essa distinção, o respeito é devido universal-
mente a todas as pessoas em virtude de uma humanidade compartilhada; estima,
ao contrário, é conferida diferentemente em função das características específicas,
conquistas ou contribuições das pessoas. Dessa maneira, enquanto a imposição de
respeitar a todos de modo igual é perfeitamente aceitável, a imposição de estimar
a todos de modo igual é paradoxal.
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Esse ponto pode ser também colocado da seguinte forma: embora ninguém te-
nha direito a igual estima social no sentido positivo, todos têm o direito de não
serem desestimados em função de classificações institucionalizadas de grupo que
atacam a sua condição de parceira(o) integral na interação social. Eu devo essa
formulação a Rainer Forst (em conversa pessoal).
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John Rawls, por exemplo, às vezes concebe os bens primários, tais como renda
e emprego, como as bases sociais do auto-respeito, ao mesmo tempo em que fala
de auto-respeito como um bem primário especialmente importante cuja distri-
buição é uma questão de justiça (veja Rawls, 1971: § 67, § 82; 1993: 82, 181, 318
ff.). Ronald Dworkin, igualmente, defende a idéia de igualdade de recursos como
uma expressão distributiva do igual valor moral das pessoas (1981). Amartya Sen
(1985), finalmente, considera tanto o sentido de si quanto a capacidade de apare-
cer em público sem vergonha como importantes para a capacidade de agir, por-
tanto, como incluídos na finalidade de uma abordagem da justiça que celebra a
distribuição igualitária das capacidades básicas.
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A notável exceção de um teórico que procurou encampar questões da cultu-
ra dentro de um modelo distributivo é Will Kymlicka. Kymlicka propõe tratar o
acesso a uma “estrutura cultural intacta” como um bem primário a ser distribuído
de forma justa. Essa abordagem foi talhada para comunidades políticas multina-
118 10
Não fazendo uma redução substantiva, além disso, subsunções puramente ver-
bais são pouco úteis. Pouco se ganha em insistir como um ponto de semântica
que, por exemplo, reconhecimento é, também, um bem a ser distribuído; nem,
inversamente, mantendo como uma questão de definição, que todo padrão distri-
butivo expressa uma matriz de reconhecimento subjacente. Em ambos os casos,
o resultado é uma tautologia. O primeiro torna todo reconhecimento distribui-
ção por definição, enquanto o segundo simplesmente afirma o inverso. Em ne-
nhum caso, os problemas substantivos de integração conceitual foram discutidos.
De fato, tais “reduções” puramente definicionais poderiam realmente servir para
impedir o progresso na solução desses problemas. Criando a aparência enganado-
ra da redução, tais abordagens poderiam tornar difícil ver, sem falar de discutir,
possíveis tensões e conflitos entre demandas por redistribuição e demandas por
reconhecimento.
11
Desde que cunhei a frase em 1995, o termo “paridade” passou a ter um papel
central na política feminista na França. Lá, ele significa a demanda de que as mu-
lheres ocupem um total de 50 por cento das cadeiras no Parlamento e em outros
órgãos representativos. “Paridade” na França, desse modo, significa igualdade de
gênero estritamente numérica na representação política. Para mim, ao contrário,
“paridade” significa a condição de ser um par, de se estar em igual condição com os
outros, de estar partindo do mesmo lugar. Eu deixo em aberto a pergunta de até
que grau ou nível de igualdade é necessário para assegurar tal paridade. Na minha
formulação, além disso, o requerimento moral é que aos membros da sociedade
seja garantida a possibilidade de paridade, se e quando eles escolherem participar
em uma dada atividade ou interação. Não há nenhuma solicitação para que todos
realmente participem em qualquer atividade.
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Afirmo que “pelo menos duas condições devem ser cumpridas” para permitir a
possibilidade de mais do que duas. Tenho em mente especificamente uma possí-
vel terceira classe de obstáculos à paridade participativa que poderia ser chamada
“política”, em oposição à econômica ou cultural. Obstáculos “políticos” à parida-
de participativa incluiriam procedimentos de “tomada de decisão” que sistemati-
camente marginalizam algumas pessoas, mesmo na ausência de má distribuição
e falso reconhecimento, por exemplo, regras eleitorais de distritos uninominais
segundo as quais quem ganha leva todos os votos que negam voz para as quase
permanentes minorias. A injustiça correspondente seria “marginalização política”
ou “exclusão”; o remédio correspondente, “democratização”. Para uma discussão
mais ampla dessa “terceira” dimensão de justiça, veja Fraser (2000a). Para uma
abordagem compreensiva sobre regras eleitorais de distritos uninominais segundo
as quais quem ganha leva todos os votos, veja Guinier (1994).
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É uma questão em aberto o quanto a desigualdade econômica é compatível com
a paridade de participação. Alguma desigualdade desse tipo é inevitável e não
censurável. Mas há um limiar em que as disparidades de recursos se tornam tão
grandes que impedem a paridade participativa. Onde exatamente está esse limiar
é uma questão para maior investigação.
Reconhecendo as particularidades?
Antes de proclamar o sucesso, todavia, devemos analisar a
nossa terceira questão filosófica: a justiça exige o reconhe-
cimento daquilo que é distintivo de indivíduos ou grupos,
além e acima do reconhecimento da nossa humanidade
comum? Se for possível provar que a resposta é positiva,
teremos que revisitar a questão da ética.
Vamos começar apontando que a paridade participativa
é uma norma universalista em dois sentidos. Primeiro, ela
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Afirmo que o remédio pode ser o reconhecimento da diferença, não que o deva ser.
De fato, há outros possíveis remédios para a negação das particularidades, incluindo
a desconstrução dos próprios termos sobre quais as diferenças são atualmente elabo-
radas. Para uma discussão de tais alternativas, veja Fraser (2000a).
15
Tanto Taylor quanto Honneth sustentam essa visão. Veja Taylor (1994) e Hon-
neth (1995).
16
Essa é uma lei permitindo casais que não são casados (gay ou heterossexual) se
registrarem como parceiros co-habitantes com direitos a muitos dos benefícios
previamente reservados para casais casados. Embora isso pretendesse beneficiar
gays e lésbicas, a maioria dos registrantes tem sido casais heterossexuais que não
desejam se casar.
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Deixe-me prevenir qualquer possível desentendimento: eu não tenho qualquer
problema com a visão que atribui valor ético a relacionamentos homossexuais.
Mas ainda insisto que isso não consegue adequadamente fundamentar a reivindi-
cação por reconhecimento em sociedades onde cidadãos têm visões divergentes
da boa vida e discordam entre si a respeito do valor ético de uniões entre pessoas
do mesmo sexo.
20
Para o argumento de um direito básico à justificação na presunção de que se
poderia em princípio aceitar, veja Forst (1999).
Nancy Fraser
é professora de Política na New School for Social Research
e co-editora do periódico Constellations 137
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