Portugal Na Epocha de D João V

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WIDENER

HN YZVW O
AULINO FERREIRA
ENCADERNADOR
.N.DA TRINDADE
126 128 25.on
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633.5

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EX LIBRIS

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Ad. LOUREIRO

HARVARD COLLEGE

LIBRARY
BIBLIOTHECA DE LIVROS UTEIS

VIII

PORTUGAL

NA

EPOCHA DE D. JOÃO V
BIBLIOTHECA DE LIVROS UTEIS

OBRAS PUBLICADAS
I- Hygiene da alma, pelo barão de Feuchtersleben,
professor na faculdade de medicina de Vienna e antigo mi-
nistro da instrucção publica na Austria, traducção de Ra-
malho Ortigão, 1 vol., 3.ª edição, precedida d'um vasto pro-
logo do traductor, br. 500 rs.

II - Moral para todos, por Adam Franck, professor


no collegio de França, traducção do dr. Candido de Figuei-
redo, 1 vol. br. 600 rs .

III e IV- Historia da civilisação na Europa,


desde a queda do imperio romano até á revolução france-
za, por mr. Guizot, versão do marquez de Sousa Holstein,
2 vol. br. com estampas, 1000 rs.

V - Feira dos anexins da lingua portugueza,


obra posthuma de D. Francisco Manuel de Mello, agora
dada à luz pela primeira vez. Edição dirigida e revista por
Innocencio Francisco da Silva, 1 vol. br. 500 rs.

VI - Verdades economicas, ou a riqueza ao alcance


de todos, traducção de Miguel Augusto da Silva; contém os
seguintes opusculos : -A sciencia do bom homem Ricardo,
por Franklin. Conselhos para fazer fortuna, por Franklin.
O que se vê e o que se não vê, por Frederico Bastiat.-
O que é a economia industrial, por José Garnier.—Petição
dos fabricantes de canderas, lampadas, candeeiros, etc., con-
tra a concorrencia estrangeira, por Bastiat.-O testamento
de Felix Ricardo, por Marthon de la Cour.-O credito po-
pular, por Baudrillart, 1 vol. br. 500 rs.

VII -Astronomia pittoresca, por Duarte Sampayo,


official da armada; 1 grosso volume, adornado de grande
numero de gravuras, e acompanhado d'um planispherio ce-
leste, e de dois mappas supplementares das constellações
boreaes e austraes, br. 1000 rs.

VIII-Portugal na epocha de D. João V, por


Manuel Bernandes Branco, i vol. br. 600 rs.
Manuel Bernardes Branco

PORTUGAL

ΝΑ

EPOCHA DE D. JOÃO V

pho aing
Aroe Louv

LISBOA

Livraria de ANTONIO MARIA PEREIRA-Editor

50 - Rua Augusta -- 52

1885
Part 633.5

HARVARD COLLEGE LIBRARY


COUNT OF SANTA EULALIA
COLLECTION
GIFT OF
JOHN B. STETSON, Jai

AUG 14 1924

TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA

Beco dos Apostolos, 11-LISBOA


PROLOGO

.Enfin D. Juan V ne forme des


desirs, ne conçoit des projets qui
ne tendent tous qu'à l'honneur de la
nation.
La Cléde: Histoire de Portugal,
vol. VIII, pag. 537 .

Ao assumir a direcção dos negocios d'este paiz, o mar-


quez de Pombal, o grande reformador, achou-se no meio
que o longo reinado de D. João V, com todos os seus de-
feitos e todas as suas virtudes , havia creado. É por isso
que me parece indispensavel, para bem se apreciar o va-
lor e a opportunidade das reformas operadas por aquelle
ministro, fazer- se a historia verdadeira e imparcial do
reinado de D. João V. Affigura- se-me que essa historia
ainda está por escrever, e por isso resolvi eu tambem,
amantissimo dos estudos historicos, acarretar algumas
pedras com o fim de ajudar, quanto coubésse nas minhas
forças, o architecto que se resolvesse a erigir tal edificio.
Horrorisam-me as calumnias historicas. O marquez de
Pombal não era tão santo como querem seus ingenuos
admiradores, nem tão cruel como dizem seus implacaveis
inimigos. Era um homem do seu tempo. Deveria forço-
samente ser influenciado pelos usos e costumes da sua
epocha, quer bons, quer máus.
VI PROLOGO

Que ia, porém, reformar o paiz, e jamais o poderia fa-


zer sem ser rigorosissimo, porque tinha clero, nobreza,
e,-permitta - se -me que diga tambem—o povo, fanatico até
ao excesso, contra elle. Tinha tão sómente a seu favor
el-rei D. José
Era muito; mas n'aquelle tempo , em que o clero e no-
breza, eram as classes que verdadeiramente dominavam
isso era insufficiente, sem o indispensavel acompa-
nhamento d'um esquadrão de carrascos.
Quem desejar escrever conscienciosamente ácerca de
D. João V, deve estudar a fundo o viver fanatico do povo
portuguez d'aquella epocha, e deve tambem fazer algum
estudo no viver dos outros povos durante o reinado do mo-
narcha que tanto fez , ou para fallar com mais rigor his-
torico, que mais trabalhou para que a fama com o seu cla-
rim apregoasse nos mais distantes e occultos logares do
globo o nome da nossa querida nação. Rei verdadeira-
mente amantissimo de tudo quanto era glorioso para Por-
tugal, emprehendeu e levou a cabo muitas obras grandio-
sas, convencido de que assim o nome portuguez echoaria
triumphantemente nas mais remotas regiões.
Os seus defeitos são os defeitos do seu tempo. Sejamos
justos se eu houver de biographar um individuo do se-
culo XIV, por exemplo, não devo ir comparal- o com um
Napoleão, que viveu cinco seculos depois , mas sim com
um contemporaneo. Para se apreciar imparcialmente, é
indispensavel que o historiador estude a fundo os costu
mes e o viver até mesmo domnestico da epocha, ácerca da
qual escreve, e sem isto não ha justiça possivel. Entre o
seculo em que vivemos e aquelle em que viveu D. João
Ve o marquez de Pombal, ha um abysmo incommensu-
ravel. Entre o anno de 1884 em que escrevo estas linhas ,
e aquelle em que, por exemplo, nasceu D. João VI, exis-
te outro abysmo.
Ainda sou do tempo da fôrca permanentemente arma-
da no caes do Tojo : e do terço cantado em côro nas ruas
da cidade ; e de se beijar a mão a qualquer padre que
passasse junto de nós ; e das resas depois do jantar; e do
agua-vae ao anoitecer, nas ruas de Lisboa . Tambem ain-
PROLOGO VIE

da sou do tempo em que os professores tinham estudos


solidos e profundos.
Hoje o homem que não póde ganhar a vida n'outro
qualquer mister, intitula-se professor, e vae ensinar. No
tempo de D. João V exigiam-se-lhe habilitações , aliás
não o deixavam intitular- se professor. O mestre desmo-
ralisador da mocidade não era admittido ao ensino: hoje
ha exemplo de professores expulsos de lyceus, terem sido
readmittidos, dando - se lhes-- talvez para os premiarem,—
cadeiras vitalicias. N'outro tempo não se passava certi-
dões de approvação senão áquelles individuos que na
realidade tinham feito exame. Hoje temos dezenas de in-
dividuos, que na realidade os não fizeram , mas que teem
certidões de approvação, como se os houvessem feito .
Antigamente, isto é, em tempo de D João V, D. José
e mesmo no de D. Maria I, para as disciplinas de que
não havia no paiz bons professores, mandavam- se con-
tractar ao estrangeiro. Hoje entende-se que os professo-
res de Humanidades não necessitam saber.
Vae para trinta annos que em Portugal as cadeiras de
instrucção secundaria são dadas tão sómente por empe-
nhos ! A posteridade não ha de acreditar una tal asser-
ção, mas para nós, os que vivemos actualmente, ella é
infelizmente uma triste verdade.
Os que nasceram no principio do seculo actual sabem
quão venerados eram ainda n'essa epocha os professo-
res. Os que vivem hoje sabem perfeitamente quanto essa
classe se tem desprestigiado aos olhos dos estudantes e
de todo o publico, resultado das suas proprias culpas.
Em sunma, o ensino no tempo d'el-rei D. João V era
uma cousa séria, e são quasi innumeraveis os portugue-
zes distinctos nas lettras, tanto em Portugal como no
estrangeiro. Então, encontravam- se compatriotas nossos
fazendo observações astronomicas, tanto na Tartaria, co-
mo em Pekin, e n'outros muitos pontos. Então, um gran-
de numero de portuguezes estavam ensinando nas uni-
versidades estrangeiras. Então, muitissimos compendios
feitos por portuguezes, eram espontaneamente adoptados
nos outros paizes para o ensino ! Hoje, porém , o homem
VIII PROLOGO

estudioso pratica uma verdadeira loucura consumindo


annos na elaboração d'um bom compendio, embora d'ahi
advenha honra para o paiz, pois o livro não lhe será
adoptado, se n'isso não houver lucro para um ou outro
professor, commerciante de compendios.
A narrativa d'estes factos pertence, porém, áquelles
que escreverem ácerca dos tempos que vão correndo, e
não a mim que escrevo relativamente a D. João V.
Taes costumes não eram proprios d'este reinado, e só in-
cidentemente n'elles toquei, para fazer sentir o contras-
te que n'estes pontos se observa entre aquella epocha e
a nossa.
Não deixarei porém de fazer votos para que haja em
Portugal um governo energico que, antepondo a quaes-
quer outros negocios, a Instrucção Secundaria, trate de
a reformar seriamente, não se deixando dominar por in-
teresses e considerações pessoaes, e valendo - se do con-
curso dos homens competentes para os quaes não ha mys-
terios em taes assumptos, de modo que os estudos assen,
tem em base solida, e os estrangeiros em vez de met-
terem a ridiculo os nossos trabalhos, os exaltem, estudem
e engrandeçam, como succedia na épocha que vou histo-
riar.

Lisboa, dezembro de 1884.


MANUEL BERNARDES BRANCO
4 .

dia 19 de outubro de 1739 ficará


sempre notavel, tanto nos annaes lit-
terarios de Portugal, como nos an-
naes cruentos da nefanda inquisição !
N'esse dia, um dos mais bellos e gentis espi-
ritos, a quem o solo brazileiro dera o berço , im-
pellido pelas crepitantes lavaredas de uma fo-
gueira inquisitorial, fôra elevado ás regiões aereas ,
participando assim da mesma sorte que tinha ca-
bido a tantos e tantos illustres varões, que, do-
tados com o condão da intelligencia, tinham tido
a desdita de haverem nascido n'um paiz de fa-
naticos e de intolerantes!
1
2 PORTUGAL

Um tal dia fôra anciosamente desejado , tanto


pelo povo de Lisboa, como pelo das povoações
circumvisinhas e distantes . Foram contadas com
impaciencia as semanas, os dias e as horas , tão
demoradas no seu curso , que iam faltando para
essa occasião, em que o povo de Lisboa e do
paiz inteiro tinha de assistir uma vez mais a esse
espectaculo tão predilecto e tão querido do povo
portuguez , ou para melhor dizer, dos fanaticos
e hypocritas d'aquelles tempos , em que parece
se não pensava nem discorria.
Vestuarios garridos e deslumbrantes haviam
sido destinados para se estreiarem em tão santo
dia. As reclusas do Senhor , essas santas esposas
do Cordeiro Immaculado , na linguagem d'aquel-
les tempos, impacientes haviam feito promessas
aos Santos da sua devoção, para que as deixas-
sem chegar a esse dia, em que a Divindade ia
ser vingada mais uma vez dos ultrages feitos dia-
riamente por aquella geração reproba, que insis-
tia emperrada em não comer carne de porco e
em continuar sempre na pratica dos preceitos de
Moysés .
Reprobos immundos , perseguidos em todos os
paizes, sem rei nem reino, mas que odiavam os
filhos da Egreja Catholica ! Reprobos malditos
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 3

que a occultas, e em toda a parte cumpriam


os preceitos da sua lei ! Reprobos mofentos , tão
odiados de Deus , que até junto d'elles não se po-
dia estar, pois impestavam os logares com o fe-
tido pestilente que seus corpos exhalavam ! ¹
Explendidas promessas haviam sido feitas para
que não chovesse, ao Senhor dos Passos de
S. Domingos , ao da Graça , á Virgem Madre de
Deus , ao Beato Antonio de Xabregas, aos San-
tos da Egreja da Annunciada, e ao Padre Santo
Antonio . Que déssem elles dia de sol para ainda
mais uma vez se gosar d'esse brilhante especta-
culo , nem todos os annos visto, mas agora muito
mais appetecivel, porque o Judeu , isto é, o Anto-
nio José da Silva, esse homem tão popular e co-
nhecido não só em Lisboa, mas até no paiz in-
teiro, ia dentro em pouco apparecer n'um auto
de fé conjunctamente com sua mãe sexagenaria,
e com sua mulher Leonor Maria de Carvalho , de
27 annos de edade !
Infelizmente para as almas piedosas d'aquelles
tempos, alguns annos consecutivos ás vezes se

1 Era crença geral que os Judeus deitavam de si um


fetido insupportavel. Veja CATALDO SICULO, Opera, Olisi-
pone, 1500 ; e as Voyages do P. Labat, vol. II, pag. 134, etc.
PORTUGAL

passavam , sem haver um auto de fé, falta esta


que redundava em detrimento da santa Religião ,
e em prejuizo das arcas e dos cofres da santa
Inquisição . Alguns havia que asseveravam , tendo
visto um auto de fé, nada mais appetecerem, e
seus desejos, quaes os do velho Simeão , estarem
plenamente satisfeitos ! E satisfeitos de tal modo,
que logo depois o Senhor os poderia levar para
a sua divina presença ! Outros havia , porém, in-
comparavelmente mais felizes : eram aquelles a
quem o Senhor tinha permittido mais do que uma
vez terem assistido em sua vida á tão edificante
acto ! Oh ! Como era delicioso ver aquelles mal-
vados Judeus, aquelles avarentos , aquelles enga-
nadores dos Christãos , aquelles mofinos , estorce-
rem-se por alguns minutos , e depois serem redu-
zidos a torresmos ! 2 E as caretas e tregeitos que
elles faziam sobre as chammas ! ...

2 «Devo advertir aos estrangeiros que forem a Por-


tugal , e quizerem assistir a esta cerimonia, que devem
andar com a maior prudencia no dia do Auto de Fé,
de modo que nada façam, ou digam, que possa escanda-
lisar a superstição dos portuguezes.
E' difficil que um estrangeiro passe por entre a chus-
ma de que as ruas estão apinhadas, sem que as pessoas
do povo baixo deixem de resmungar por entre os dentes
injurias que significam em geral: Que bem ficava uma
NA EPOCHA DE D. JOÃO V

Agora, porém, os familiares do Santo Officio


tinham andado açodados , e, (graças ás denuncias,
ás quaes todos eram obrigados , quer fossem .da-
das pelo filho contra o pae, quer pela esposa
contra o marido , pois tudo isto não só era licito ,
mas até mesmo obrigatório n'aquelles tempos ,
para maior gloria de Deus 3) os carceres da In-.
quisição achavam se bem povoados de presos , e
lá iam uns 58 figurar n'esse auto, entre os quaes
se encontravam para morrerem um pae e uma .

carocha a este hereje! Proferem de ordinario mil maldi-


ções contra os desgraçados , que vão morrer, e , se vêem
algum espectador tristonho, não deixam de lhe dizer :
Está triste por levarem seus irmãos a queimar na foguei-
ra !-MÉMOIRES INSTRUCTIFS POUR UN VOYAGEUR DANS LES DI-
VERS ÉTATS DE L'EUROPE. Amsterdam, 1738 .
3 Pode-se affoutamente asseverar que o fanatismo e a
inquisição foram os maximos motores da decadencia dos
portuguezes nas regiões orientaes. Um arcebispo de Gôa
teve o arrojo de mandar queimar o rei d'Ormuz, o qual
tinha ido áquella cidade! O viajante Pyrard de Laval,
diz nas suas Viagens impressas em Gôa, que seria impos-
sivel dizer que numero de pessoas aquella inquisição fa-
zia morrer diariamente.
Os estrangeiros, porém, ainda assim não estavam tão
arriscados a cahir debaixo das garras da inquisição
como os nacionaes. E eis a razão por que as prédicas
diurnas e nocturnas poucos proselytos grangeavam. A in-
quisição vigiava principalmente os actos dos catholicos,
era a mantenedora e zeladora da fé. No em tanto não ha-
via que fiar e o medico francez Dellon é um triste exem-
plo.
6 PORTUGAL

filha, tendo de ouvir antes o sermão do afamado


orador fr . Manuel da Silveira . Não é pois para
admirar que houvessem sido offerecidas grandes
quantias com muita antecipação para se obter
um logar, mau que fosse, nas hospedarias e al-
bergues da cidade, nos sitios d'onde se podesse
disfructar o espectaculo . Muitos, porém, apesar
das exorbitantes quantias offerecidas , viram-se
obrigados a passar ao relento a noite anterior ao
espectaculoso dia, ou, quando extraordinaria-

«Haverá difficuldade, diz elle nas suas Viagens, impres-


sas em Colonia no anno de 1711 , em acreditar que uma
cidade, cujos arrabaldes são tão bellos , contenha em
seu ambito com que causar admiração aos que a vêem.
Com effeito, apesar de seus dominadores se acharem em
decadencia pelos prejuizos soffridos, superiores a tudo
que se possa imaginar , e do commercio já não ser nem a
sombra do que foi n'outro tempo, Goa ainda é uma das
mais bellas e mais sumptuosas cidades do Oriente. »>
Dellon foi estabelecer- se em Damão, e aqui foi denun-
ciado á inquisição por um visinho, e immediatamente
preso. As causas apparentes da prisão eram simples sus-
peitas de heresia. Mas a causa verdadeira fôra, segun-
do diz o auctor, o desejo que o governador da cidade tinha
de o vêr d'ali para fóra, cheio de ciumes da affeição que
Dellon mostrava a uma dama a quem o governador fa-
zia a côrte.
O pobre viajante padeceu horrorosamente, e por vezes
se quiz suicidar .
Não havia comida determinada para os presos (conta
elle) ; os magistrados descançavam na caridade das pes-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 7

mente muito felizes, debaixo dos alpendres ou


nos pateos das egrejas e dos mosteiros . Os gene-
ros indispensaveis á vida , de encontro ás estivas ,
haviam subido extraordinariamente de preço, e
as leis ainda mais uma vez haviam sido despre-
sadas . Não só porém as pessoas que não tinham
podido obter logar nas hospedarias , ( e não pou-
cas eram estas então) perdiam a noite; as damas,
tanto as da mais alta aristocracia, como aquellas
que brilhavam na sociedade elegante, não ti-
nham dormido en camas mais macias . Ataviadas
com suas mais donairosas e deslumbrantes galas
feitas na França, na Inglaterra , na Italia e em
Flandres, depois de longas horas ao toucador,

soas que os quizessem socorrer ; e, como apenas havia


duas pessoas na cidade que lhes remettiam comida regu-
larmente duas vezes por semana, não recebiam na maior
parte dos dias coisa alguma, e viam- se reduzidos a uma
miseria digna de lastima. Alguns dos que viviam na sa-
la pequena, chegavam a ponto de procurarem a subsis-
tencia em seus proprios excrementos . Contaram me que
alguns annos antes, tendo os portuguezes aprisionado 50
corsarios malabares, e tendo - os encerrado n'esta mesma
prisão, passaram tão grande fome, que uns quarenta,
cheios de furor, se estrangularam com os seus proprios
turbantes .>>
Dellon sahiu finalmente ao cabo d'um longo captiveiro
mas reduzido ao extremo da miseria, pois a inquisição
lhe confiscara todos os seus haveres!
8 PORTUGAL

achavam- se com seus elegantes penteados entre-


laçados de modo tal que o mais leve toque dei-
taria a perder um trabalho de longuissimas ho-
ras . E , alem d'isso , era mister procurar com
antecipação d'algumas horas logar nas janellas ,
das quaes pendiam riquissimas colchas e cóber-
tas de damasco . O prestito era magestoso e bri-
lhantissimo, e nada havia que se podesse deixar
de ver. A chegada da tropa, a passagem das
cadeirinhas dos numerosos magnates , dos ministros
estrangeiros e do corpo diplomatico , que todos ,
todos estes concorriam, pois a festa, (ou masca-
rada, como lhe chama um estrangeiro), era func-
ção luzida a mais não poder, e em pompa e
magestade talvez só comparavel com a de Cor-
pus Christi ... Mas talvez não , porquanto um
auto de fé era mais interessante e edificativo para
as almas piedosas e timoratas d'aquelle tempo .
Abbreviemos, porém : Antonio José fora con-
demnado á morte, pois a sentença resava- rela-
xado em carne, morto, queimado como convicto ,
negativo e relapso . Tinha já sido levado para o
oratorio, e de lá saira para a grande festança no
templo de S. Domingos. Aqui entrou ao aclarar
a manhã do dia 18 de outubro de 1739. A egreja
estava esplendidamente armada, mas apinhada
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 9

de povo a mais não poder ser. O cardeal inqui-


sidor-mór D. Nuno da Cunha e os conselheiros
achavam-se na sua tribuna, deslumbrantes de
magestade e de riqueza . Nem tudo porém poude
ser acabado n'este dia!
Assim que o inquisidor mór appareceu no adro
do templo , dobraram os sinos, e logo a procissão
principiou a caminhar . Tudo aquillo era admira-
vel. O standarte do Santo Officio, os dominica-
nos, os inquisidores, as estatuas dos hebreus au-
sentes, as carochas , os sambenitos , os diabos
pintados , os caixotes com os ossos d'aquelles que
tinham morrido nas torturas ...
A agonia, porém, d'Antonio José tinha de pro-
longar-se, pois só foi a morrer no dia seguinte !
Mataram aquelle grande genio , do qual diz
Fernandes Pinheiro , que ninguem se approximou
mais de Aristophanes pela originalidade da in-
venção , acrimonia em satyrisar os ridiculos na-
cionaes , facilidade no dialogo, e perfeição na pin-
tura dos caracteres .
Manes do grande comico , estaes vingados! To- :
dos á porfia vos exaltam e engrandecem, ao passo
que todos unanimemente vituperam e mettem a
ridiculo esses governos imbecis e fanaticos , que
davam liberdade aos barbaros inquisidores para
10 PORTUGAL

queimarem n'uma fogueira o sangue de um rei


de Hespanha, ou para tirarem do caixão o cada-
ver de um D. João IV de Portugal, por não te-
rem estes dois monarchas os corações empeder-
nidos á vista das torturas dos padecentes quando
se achavam sobre as fogueiras, onde ás vezes os
tormentos eram prolongados de proposito !
Mas era sorte ! O theatro portuguez tinha de
ser em todas as epochas perseguido ou despre-
sado n'este paiz !

«As peças de Antonio José, diz o escriptor prussiano


Wolf, teem um comico tão vigoroso, tantas idéas pican-
tes e engenhosas, que ainda hoje interessam aos leitores
portuguezes e até aos estrangeiros . ( Le Brésil Littéraire,
Berlin, 1863).
« Le génie comique et bisarre d'Antonio José ne se
soumit à aucune loi, on eût dit même qu'il se plairait à
les enfreindre. Malgré l'imperfection de son talent, ses
pièces ont été trop nombreuses et trop gaies pour qu'on
se contente de le mentionner» (Ferdinand Denis, Histoire
de la Littérature Brésilienne) .

Este escriptor no seu Theatro Estrangeiro tam-


bem traduziu para francez o D. Quixote, de An-
tonio José. E Sismondi fallando do pobre Judeu
tece-lhe elogios , e exclama :

C Une vraie gaieté, mais une gaieté populaire animait


pour la première fois la scène portugaise: on sentait de
la verve, et dans les sujets et dans le style: de 1730 à
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 11

1740 le public se portait en foule au spectacle, et la na-


tion semblait sur le point de fonder son théâtre, lorsque
le juif fut brulé, et le spectacle tomba. » -« Regénérateur
du théâtre portugais tombé en decadence ! » exclama Er-
nest David, no seu livro Les opéras du Juif A. J. da Sil-
va, publicado em 1880 .

Grande poeta! Grande comico! Teu nome pas-


sou á posteridade, sympathico e applaudido, tan-
to na prosa como no verso, tanto nas composi-
ções theatraes, como no romance ! Camillo Castello
Branco sempre que a ti se refere faz derramar
lagrimas a todos quantos teem coração para se
sensibilisarem com os infortunios dos martyres
das sciencias e das lettras . E os nomes de teus
carrascos, e de teus verdugos sejam para todo o
sempre amaldiçoados e anathematisados ! Malva-
dos que em todos os tempos declararam guerra
á intelligencia , e quizeram reduzir o genero hu-
mano a automatos impensantes !
Estás vingado grande poeta ; e quem te vin-
gará a ti condignamente, ó Francisco Xavier de
Oliveira, a ti que eras um dos poucos pensa-
dores d'aquella epocha ! Queimaram -te em esta-
tua no mesmo auto de Fé , em que o demente
Malagrida perdeu a vida, e por isso exclamaste
quando te levavam a noticia : Que nunca tinhas
sentido tanto frio como n'esse dia ! » Não zomba-
12 PORTUGAL

rias assim, se te não houvesses refugiado em


paiz estrangeiro . Teus escriptos publicados por
occasião do terremoto de Lisboa despertaram as
iras da Inquisição . Pozeste-te a salvo fugindo
para os paizes estrangeiros, nos quaes havia li- .
berdade de escrever, e de pensar. Mas perdendo
todos teus haveres, dentro em pouco te viste re-
duzido ao extremo da miseria !
E quão grande não foi o numero d'aquelles
desventurados que n'este paiz foram alvo dos fu-
rores da Inquisição , com o cavalleiro d'Oliveira

4 Eis alguns trechos dos mais frisantes :


« Os mysticos são capazes de crer em tudo, e alguns
têm sido tão loucos que dizem que o sol deve luzir, e
apparecer constantemente todos os sabbados, porque a
egreja determinou , e consagrou este dia á Virgem Nossa
Senhora... «Carta de 20 de julho de 1736 a Mr. de M ***
«Deus é o que é. Nós não sabemos o que elle póde,
ainda quando sabemos que póde tudo. Este tudo encer-
ra alguma coisa que vossa paternidade não sabe dizer o
que é. Para o saber creia vossa paternidade o que crê
a gente de bem, e confesse que Deus não sómente póde
salvar aos que fallam no diabo, mas aos que fallam com
elle. Como cuida o padre fr. Henrique que eu lhe falla-
ria, e lhe escreveria, se não tivesse esta certeza, e se não
estivesse n'esta esperança? Persuadir a mademoiselle
Antonieta que não diga que o Diabo vos leve, n'isso faz
vossa paternidade a sua obrigação, porém enchel- a de
escrupulos, dizendo-lhe que Deus a não póde salvar,
n'isso não mostra vossa paternidade o seu juizo. Elle é
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 13 .

e o pobre Judeu, « o mais desventurado e talen-


' toso homem que a religião de S. Domingos ma-
tou» segundo a phrase de Camillo Castello
Branco ! Damião de Goes ! José Anastacio da
Cunha ! Ribeiro Sanches ! Antonio Vieyra! An-
tonio Vieira Transtagano ! Bartholomeu Lourenço
de Gusmão ! Bernardo José de Abrantes e Cas-
tro ! Antonio Homem, esse pobre lente de Coim-
bra ! Francisco Manuel do Nascimento , a quem
todos os bens foram confiscados , tendo de se re-
fugiar na França , reduzido ao extremo de penu-
ria, embora cantado por Lamartine, e comme-

tal que se pode dizer que o Diabo vos leve; porém, eu


não digo outra coisa senão que Deus me guarde de vos-
sa paternidade por muitos annos .» Carta de 25 de agosto
de 1736 , a fr. Henrique sobre as pragas..
«Frade que frequenta a côrte por seu gosto, que pas-
seia em carroça por exercicio, que falta aos votos por
' politica, que governa o mundo por theologia, que trata
os grandes por decoro, que communica as damas por ci-
vilidade, que se enche de furor. contra os donaires e de
meiguice por quem os traz: que contende com os seus
companheiros, que ameaça e se vinga dos seculares, e
persegue a muitos d'elles correndo atraz de suas mulhe-
res, tudo isto é ser frade como fr. Henrique, e sendo um
homem assim peor do que o diabo, vós bem sabeis que
se o diabo póde ser frade, não póde nem poderá ser já-
• mais religioso, À vista da minha rasão, fazei -me justiça'
e deixae-me em paz; e á vista do merecimento do frade,
fazei-lhe tambem justiça, dizendo - lhe como eu digo, va-
de retro Satana ! (Idem, de 6 de setembro de 1736.)
14 PORTUGAL

morado por Sané, e por outros distinctissimos


escriptores estrangeiros .
Só n'um auto de fé em 1667 sahiram 237 pes-
soas, entre as quaes 2 raparigas de 15 annos , 5
de 16 , 6 de 17 , 3 de 18, e outras de 19, 20 e
21 annos !
E no emtanto lemos as seguintes palavras na
Historia da vida do papa Ganganelli :

«Os papas para se não apartarem da moderação Evan-


gelica, fecham os olhos aos delictos que não teem outro
principio senão a imprudencia e o prejuizo, e os quaes
não obstante, ainda em alguns paizes se castigam com
muita aspereza. Do mesmo modo se pode dizer em ver-
dade que a Cidade em que são menos inquietadas as pes-
soas por negocios de Religião é a Capital do Mundo
Christão : n'ella se respira aquella doçura, aquella paz de
que o Supremo Legislador nos deu exemplo; n'ella só se
conhece o meio da persuasão !

De modo que temos a Inquisição em Roma in-


comparavelmente mais branda do que em Por-
tugal !
II

Uma curiosa figura d'essa epocha é a do ce-


lebre e popular frade xabregano, fr . João de
Nossa Senhora, vulgo o poeta de Xabregas . Per-
mitta-se-nos a este respeito extractar o que d'elle
nos diz Ribeiro Guimarães no Summario, recom-
mendando porém ao leitor, que mais a fundo
quizer conhecer a interessante biographia do ce-
lebre frade poeta, que leia a sua Vida escripta
por fr. Jeronymo de Belem e publicada em Lis-
boa, em 1743:

Fr. João de Nossa Senhora todos os dias percorria as


ruas de Lisboa com uma imagem da Virgem que elle
chamava a Senhora Pequenina, em contraposição de ou-
tra que era de mais de tamanho natural. Todos conhe-
ciam o frade, uns lhe chamavam o poeta de Xabregas ,
14 PORTUGAL

morado por Sané, e por outros distinctissimos


escriptores estrangeiros .
Só n'um auto de fé em 1667 sahiram 237 pes-
soas, entre as quaes 2 raparigas de 15 annos, 5
de 16, 6 de 17 , 3 de 18 , e outras de 19 , 20 e
21 annos !
E no emtanto lemos as seguintes palavras na
Historia da vida do papa Ganganelli :

«Os papas para se não apartarem da moderação Evan-


gelica, fecham os olhos aos delictos que não teem outro
principio senão a imprudencia e o prejuizo, e os quaes
não obstante, ainda em alguns paizes se castigam com
muita aspereza. Do mesmo modo se pode dizer em ver-
dade que a Cidade em que são menos inquietadas as pes-
soas por negocios de Religião é a Capital do Mundo
Christão: n'ella se respira aquella doçura, aquella paz de
que o Supremo Legislador nos deu exemplo; n'ella só se
conhece o meio da persuasão !

De modo que temos a Inquisição em Roma in-


comparavelmente mais branda do que em Por-
tugal !
II

Uma curiosa figura d'essa epocha é a do ce-


lebre e popular frade xabregano, fr . João de
Nossa Senhora, vulgo o poeta de Xabregas . Per-
mitta-se-nos a este respeito extractar o que d'elle
nos diz Ribeiro Guimarães no Summario, recom-
mendando porém ao leitor, que mais a fundo
quizer conhecer a interessante biographia do ce-
lebre frade poeta, que leia a sua Vida escripta
por fr . Jeronymo de Belem e publicada em Lis-
boa, em 1743:

Fr. João de Nossa Senhora todos os dias percorria as


ruas de Lisboa com uma imagem da Virgem que elle
chamava a Senhora Pequenina, em contraposição de ou-
tra que era de mais de tamanho natural. Todos conhe-
ciam o frade, uns lhe chamavam o poeta de Xabregas ,
16 PORTUGAL

porque, mesmo nas ruas poetava, e muitas vezes respon-


dia em quadras e decimas ás perguntas que lhe faziam.
Seguia- o sempre uma turba- multa de rapazes e de mu-
lheres , e, se muitos o ouviam com attenção, outros lhe
dirigiam chufas . A cada canto prégava um sermão, e sof-
fria com paciencia os dicterios, e ás vezes insultos e gar-
galhadas com que o acompanhavam.
Quando havia grandes reuniões de povo, ou pelo en-
trudo, sahia com a sua Senhora Pequenina a prégar, e,
com uma pertinacia digna de melhor causa, vociferava
contra os desvarios do tempo, inculcando sempre o culto
á Senhora Mãe dos Homens . Onde via uma rixa , logo
lá apparecia, procurando distrahir os bulhentos com suas
prédicas.
Teve dias de prégar doze sermões, nas egrejas e nas
ruas, porque era muito procurado, por ter fama de excel-
lente prégador; chamavam-lhe o prégador Marianno , por-
que o culto da Virgem era o principal assumpto de todos
os seus discursos.
Fr. João era tambem um agitador . Tinha grandes pen-
samentos para commover o povo, e attrahil - o por artes
engenhosas as suas prédicas. Mandou fazer uma imagem
de Santa Barbara , e no dia em que foi collocada no seu
altar, prégou elle; mas antes fez annunciar o sermão por
editaes publicos, d'este modo : Trovão de Santa Barbara
sobre toda a cidade de Lisboa, na egreja de Xabregas.
Causou isto grande agitação , mas d'outra vez foi o caso
mais serio.
Tinha de prégar o sermão annual da mesma Santa, e
assim o fez annunciar por cartazes impressos : Esmola que
se dá no dia de Santa Barbara no real convento de Santa
Maria de Jesus de Xabregas, da ordem de S. Francisco
e depois concluia assim : « Venham cedo, que das dez ho-
ras até ao meio dia, pouco mais ou menos, se hão de re-
partir as esmolas » .,
Isto causou uma revolução em Lisboa. Entendeu o
povo que era esmola pecuniaria, e logo começaram os
empenhos para a alcançar. O povo andava alvorotado,
não se fallava n'outra cousa, e a noticia do caso chegou
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 17

ao paço, mas desfigurada. El - rei D. João V, ou os seus


ministros aterraram- se, e chegaram a persuadir- se de
que o povo, vendo- se logrado, faria alguma desfeita aos
frades, a qual quizeram prevenir, e para isso se poz a
tropa em armas, e foi collocar- se nas immediações de
Xabregas.
Era immenso o borborinho do povo, e não pouca a
vociferação contra o engano que se fizéra á pobreza. Mas ,
emfim, o frade prégou do pulpito, deu satisfação sobre o
engano, e os ouvintes applaudiram-n'o, excepto uma mu-
lher, a qual procurou o frade para lhe arrancar as barbas.
Se fr. João para muitos era um enthusiasta, um visio-
nario, um beato ridiculo, para muitos era todavia um
santo, e piamente acreditavam que o poeta de Xabregas
tinha o poder de fazer milagres. Elle era o director espi-
ritual de muitas pessoas de alta categoria, estava rela-
cionado com as familias mais ilustres, que já n'esse
tempo íam esquecendo as tradições gloriosas dos seus
maiores , entretendo-se com ridiculas beatices e com-
bates de toiros.
Depois da morte de fr. João, espalhou-se o boato que
tinha morrido com cheiro de santidade, e á egreja correu
grande multidão, e tanta era a fé que havia em fr. João,
que lhe foram cortando pedaços da mortalha, os quaes
disputavam com gana, a ponto de o deixarem nu.

Este homem embirrava com as touradas tanto


6
quanto era possivel . N'uma occasião (já em
1755) houve umas tardes de touros no Rocio : e
o frade, querendo desviar o povo de concorrer

5 RIBEIRO GUIMARÃES : Summar o de varia historia,


vol . I , pag. 178.
6 Id . id. pag. 175.
2
18 PORTUGAL

a esse divertimento, foi prégar na egreja da Vi-


ctoria. Q povo, porém, antes quiz ir para os tou-
ros, do que ir escutar as prédicas de fr . João,
que despeitado, escreveu estas quadras :

No Rocio se faz festa,


Na Victoria prégação;
Pouca gente assiste n'esta,
Mas n'aquella multidão.

Trez mezes divertimento


Bem se poderá escusar;
Tanto rir, tanto folgar,
Póde parar em tristeza.
Na doutrina de Maria ,
Tenha Lisboa certeza ;
Que toda a sua alegria
Ha de parar em tristeza.

Houve quem visse em taes versos a prophecia


do terremoto de 1755 , e como aconteceu outras
vezes que fr. João se expressasse de modo que
os successos pareciam tornar propheticos os seus
versos e ditos, alguns lhe chamavam propheta,
e elle dizia— « não sou propheta , mas poeta . »

Outra curiosa figura d'esta epocha é a do padre


frei- Antonio das Chagas . Natural da villa da
Vidigueira, seguiu primitivamente a vida mili-
tar, entregando-se aos appetites e sensualidades .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 19

A leitura, porém d'algumas obras de Frei Luiz


de Granada, fez com que mudasse de vida, e se
arrependesse dos seus desvarios , tornando- se um
monge á imitação dos que seculos antes habita-
ram os desertos da Thebaida. Esta conversão
não foi porém muito duravel. Voltou novamente
aos antigos desvarios , chegando mesmo a pra-
ticar crimes , dos quaes teve de ajustar as contas
com as justiças. Segunda vez porém se arrepen-
deu, convertendo- se, e essa segunda conversão
foi uma conversão valente, verdadeira , heroica .
Tomou ordens , e depois quando a rapasiada o
encontrava na rua, gritava-lhe : O' fr . Antonio
queremos um sermão ! E fr. Antonio immediata-
mente parava, e lhes fazia um sermão ; e n'este
fadario andava desde manhã até à noute . E
adquiriu tal fama que nos diz o auctor da sua
vida :

Sahiam a recebel- o povos inteiros , acompanhavam-


no turbas pelos caminhos , como a Christo pelos desertos :
em suas entradas nas freguezias repicavam os sinos,
como nas maiores festas, e de festa eram todos os dias
que elle se detinha n'ellas, prégando, confessando, ensi-
nando a doutrina Christã e oração mental, fazendo pa-
zes, alcançando perdões e outros serviços de Deus; por-
que nos taes dias não havia quem trabalhasse mais que
pelo ouvir e se confessar : cerravam- se as lojas, não se
abriam as tendas, apenas apparecia gente nas praças,
ficavam sem moradores as casas; e sendo casa de todos
20⭑ PORTUGAL

a egreja, quando por não caber gente n'ella (como mui-


tas vezes acontecia) fazia fr. Antonio egreja de seus
adros, dos campos, e praças publicas, em que prégava.
N'este lugar o entoavam Santo, n'aquelle Fradinho san-
to, n'outro o nosso Santo Antonio, nos mais era acclama-
do S. Paulo de Portugal. E passando esta devoção de
palavras ás mãos, lhe cortavam pedaços do habito, lhe
guardavam os cabellos, lhe furtavam as alparcas, lhe
tomavam contas e registros, fazendo de tudo reliquias.
Concorria Deus para este applauso e veneração do seu
servo fazendo signaes no ceu, e castigando os que lhe
faltavam ao respeito na terra. » (pag. 67.)

O mesmo livro conta que prégando elle em


Beja, foi vista no céu , em pleno dia, uma estrella
muito brilhante, e que o mesmo succedeu em
Barcellos , n'outra occasião em que prégava a um
auditorio de 12000 pessoas .

Outro grande servo e amigo de Deus vivia por


aquelles tempos, e que nas virtudes andava a
par do padre Chagas. Era o padre Balthasar da
Encarnação , missionario apostolico e fundador
dos monges do Senhor Jesus da Boa-Morte . Era
natural de Serpa, e aprendera o officio de sapa-
teiro . Veiu estabelecer- se em Lisboa , onde, dotado
de um genio colerico, ardente e bellicoso , não
sabendo soffrer os impetos e furias da arrebatada
mocidade, todo se entregou a uma desordenada
e licenciosa vida.
Arrependeu-se, porém, e foi fazer vida de pe-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 21

nitente para as covas sitas ao pé de Montemor-


o-Novo. Mais tarde deram-lhe as ordens de sa-
cerdote, e foi tão fallado pelos seus feitos como
o padre Chagas . Este, porém, foi mais feliz pois
encontrou escriptor que muito mais por miudo
narrou suas acções, e até mesmo seus milagres ,
que eram numerosissimos . 7
De todos estes milagres, das touradas , e de
tudo quanto se passava quer no paiz , quer fóra,
podia o publico ter prompto conhecimento por
meio dos cegos que pelas ruas andavam a ven-
der as relações e noticias .
Havia uma irmandade exclusivamente com-
posta de homens cegos, 8 sob a invocação do
Menino Jesus, a qual teve sua séde na freguezia
de S. George, e depois na de S. Martinho : a
esta irmandade pertencia o exclusivo « da venda
de folhinhas , historias, relações , reportorios , co-
medias portuguezas e castelhanas , autos e livros
usados » como se lê no cap. 2.º do Compromisso

i Vida do P. Balthazar da Encarnação , Lisboa, 1760


8 Esta irmandade dos cegos papelistas (assim os cha-
mavam) data de 1604. O ultimo cego papelista da irman-
dade foi Manuel Marques da Silva, e falleceu em 1863 .
Os cafés eram raros e n'esses não entrava gente de
gravata lavada.
22 PORTUGAL

da mesma Irmandade. 9 Com o seu moço ou o


seu cão apregoavam os papeis noticiosos pelas
ruas , e tinham armarios ou tendas de livros usa-
dos com os folhetos novos a cavallo em barbantes.

«Nossos avós, diz o sr. Silva Tullio, 10 eram tão ami-


gos de noticias como nós outros, e se lh'as sonegavam por
falta de liberdade de imprensa , iam para o Alto de San-
ta Catharina, Sequeiro das Chagas, Cotovia, Villa Ver-
de, Arcos do Rocio, Adro de S. Domingos , Caracol
do Carmo, Jogo da Pella, Campo de Santa Barbara,
Largo da Graça, Penha de França, Taboleiro da Sé, Ar-
co das Pazes, Côrte Real, Remolares, e outros paradei-
ros, onde se abria praça de novidades para os licitantes
que a horas certas ali concorriam permutando os noti-
cias do reino, e as estrangeiras pelas gazetas que mui-
tos levavam na algibeira. »

Mas nem todos os cegos vendiam gazetas e re-


portorios . Um houve que era litterato e academico
anonymo de Lisboa . 11 Francisco Joseph Freire foi
quem lhe escreveu o panegyrico , e por este sa-
bemos que o poeta cego nascera em Lisboa a 19
de agosto de 1680, e falleceu a 9 de dezembro
de 1744, jazendo ainda hoje na egreja da En-
carnação , em Lisboa . Escrevia com facilidade
tanto em latim como em portuguez .

9 RIBEIRO GUIMARAES : Summario, vol . IV pag. 57.


10 No Brinde do Diario de Noticias de 1866.
11 Colleção de algumas obras posthumas de Joseph de
Sousa, cego desde o berço. Lisboa, 1746.
III

São innumeras as corversões , e innumeros os


milagres, de que nos fazem menção os livros
mysticos, os sermonarios , as biographias, as chro-
nicas, e os agiologios , genero de trabalhos litte-
rarios os mais bem recebidos pelos piedosos e
credulos christãos do reinado de D. João V. É
mister porém confessar que não deixavam estes
de se mostrarem agradecidos, consumindo mui-
tos milhares de mil cruzados annualmente em
cyrios, arraiaes , festas d'egreja, outeiros ou abba-
dessados, danças, touradas, e representações thea-
traes, mesmo dentro das egrejas e dos conventos ,
em honra de Deus, da Virgem, e de santos e
santas, até mesmo imaginarios .
24 PORTUGAL

Que os milagres eram quasi diarios , não


soffre duvida, á vista do que os escriptores
d'aquelle tempo deixaram narrado em seus livros .
A Vida da madre Maria d'Assumpção, é uma
serie não interrompida de prodigios .
Eis alguns, escolhidos ao acaso :

Sendo ainda pequenina, disse-lhe o confessor pergun-


tasse a Nosso Senhor quando havia de vir el- rei D. Se-
bastião. Perguntou , e respondeu- lhe que já era chegado
o tempo d'essa felicidade, e que seria tal dia.
Com o desejo de que aprendesse as linguas estrangei-
ras lhe trouxe o pae para este fim um livro, dizendo - lhe
que lhe tinha assalariado um mestre para este ensino.
Mas quiz Deus que continuando ella no costume de ler
as vidas dos Santos, encontrasse na de S. Jeronymo um
documento, para se abster d'esta curiosidade. Chegou
áquelle successo que o mesmo Santo escreve de si,
quando foi apresentado no tribunal de Deus, e castigado
por gostar muito da lição de Cicero, e reflectindo ella
n'este castigo, se poz a cuidar: «Que quando a um Santo,
que era doutor da Egreja, e a quem énecessario o seu saber
para a declaração das escripturas, se lhe fazia aquelle en-
cargo, que se lhe faria a ella em aprender linguas , sem mais
utilidade que gastar mal o tempo !» Com esta reflexão se
despediu do livro, dizendo a seu pae que lhe agradecia
muito o cuidado, mas que ella se não considerava capaz
para este ensino .

«No primeiro dia, depois de ter satisfeito ás obrigações


do officio e cuidados da caridade em ajuntar as sobras do
comer para os pobres, quando já todas estavam reparti- "
das, entrou na cozinha a madre rodeira, pedindo - lhe as
sopinhas do Menino Jesus . Ficou pasmada, porque igno-
rava o que aquella Santa Communidade entendia por es-
NA EPOCHA DE D. João v 25

te termo. E perguntando - o a outra religiosa, respondeu


esta que todos os dias vinha áquella portaria um meni-
no filho de uma visinha muito pobre, à quem soccorriam
com a esmola, que do que se repartia aos outros , se re-
servava em um tigellinha.
Gostando da explicação tomou a nova cozinheira muito
por sua conta preparar logo a esmola, para que o meni-
no não chorasse a falta. E compondo com pressa umas
sopinhas, as levou á religiosa para que ella lh'as désse .
Não ficou sem premio esta caridade; porque estando de
tarde em oração , achou dentro da sua alma um menino
Jesus com muita graça assentado no seu coração , com
uma tigellinha no regaço, d'onde comia muito gostoso.
Atrevi-me (escreve a freira) a dizer- lhe: Meu amor e meu
Senhor, tambem V. Magestade come ? Quer- me convidar?
Respondeu-ine: Como as sopinhas que tu me fizeste.
Estando um dia em Prima, sentiu a sua alma os effei-
tos e socego, que lhe annunciavam a communicação inte-
rior de Deus. Manifestou - se-lhe o Senhor no aspecto
muito amavel, mas nas insignias guerreiro; trazia na
mão uma lança pequena. E alvoroçada com esta repre-
sentação lhe disse : Meu amor, vindes da guerra? Para
quem é esse dardo? E dizendo -lhe o Senhor que era para
o seu coração, lhe respondeu ella que esse era seu; mas
que se por estar em seu poder, o queria, de novo lh'o
entregava. Penetrou - lhe pois o coração com a lança ;
a cujo golpe acudiu em lugar de sangue tanta for-
ça de amor, que cuidou que acabava à vida nas suas
mãos.»>

Tudo isto vem no referido livro , d'onde trans-


crevemos estes trechos ."
Cascaes tambem viu um outro milagre 12 n'uma

12 Veja- se : Relação do milagre que Deus obrou nas vi-


sinhanças da villa de Cascaes, etc. Lisboa 1754.
22 PORTUGAL

da mesma Irmandade. 9 Com o seu moço ou o


seu cão apregoavam os papeis noticiosos pelas
ruas, e tinham armarios ou tendas de livros usa-
dos com os folhetos novos a cavallo em barbantes.
«Nossos avós, diz o sr. Silva Tullio, 10 eram tão ami-
gos de noticias como nós outros , e se lh'as sonegavam por
falta de liberdade de imprensa , iam para o Alto de San-
ta Catharina, Sequeiro das Chagas, Cotovia, Villa Ver-
de, Arcos do Rocio, Adro de S. Domingos, Caracol
do Carmo, Jogo da Pella, Campo de Santa Barbara,
Largo da Graça, Penha de França, Taboleiro da Sé, Ar-
co das Pazes, Côrte Real, Remolares , e outros paradei-
ros, onde se abria praça de novidades para os licitantes
que a horas certas ali concorriam permutando os noti-
cias do reino, e as estrangeiras pelas gazetas que mui-
tos levavam na algibeira. »>

Mas nem todos os cegos vendiam gazetas e re-


portorios . Um houve que era litterato e academico
anonymo de Lisboa . 11 Francisco Joseph Freire foi
quem lhe escreveu o panegyrico , e por este sa-
bemos que o poeta cego nascera em Lisboa a 19
de agosto de 1680, e falleceu a 9 de dezembro
de 1744, jazendo ainda hoje na egreja da En-
carnação , em Lisboa . Escrevia com facilidade
tanto em latim como em portuguez .

9 RIBEIRO GUIMARÃES : Summario, vol. IV pag. 57.


10 No Brinde do Diario de Noticias de 1866.
11 Colleção de algumas obras posthumas de Joseph de
Sousa, cego desde o berço. Lisboa, 1746.
III

São innumeras as corversões, e innumeros os


milagres, de que nos fazem menção os livros
mysticos, os sermonarios, as biographias, as chro-
nicas , e os agiologios, genero de trabalhos litte-
rarios os mais bem recebidos pelos piedosos e
credulos christãos do reinado de D. João V. É
mister porém confessar que não deixavam estes
de se mostrarem agradecidos , consumindo mui-
tos milhares de mil cruzados annualmente em
cyrios, arraiaes , festas d'egreja, outeiros ou abba-
dessados, danças , touradas , e representações thea-
traes , mesmo dentro das egrejas e dos conventos ,
em honra de Deus, da Virgem, e de santos e
santas , até mesmo imaginarios.
24 PORTUGAL

Que os milagres eram quasi diarios , não


soffre duvida , á vista do que os escriptores
d'aquelle tempo deixaram narrado em seus livros .
A Vida da madre Maria d'Assumpção, é uma
serie não interrompida de prodigios .
Eis alguns , escolhidos ao acaso :

Sendo ainda pequenina, disse-lhe o confessor pergun-


tasse a Nosso Senhor quando havia de vir el- rei D. Se-
bastião. Perguntou , e respondeu- lhe que já era chegado
o tempo d'essa felicidade, e que seria tal dia.
Com o desejo de que aprendesse as linguas estrangei-
ras lhe trouxe o pae para este fim um livro, dizendo - lhe
que lhe tinha assalariado um mestre para este ensino.
Mas quiz Deus que continuando ella no costume de ler
as vidas dos Santos , encontrasse na de S. Jeronymo um
documento, para se abster d'esta curiosidade. Chegou
áquelle successo que o mesmo Santo escreve de si,
quando foi apresentado no tribunal de Deus, e castigado
por gostar muito da lição de Cicero, e reflectindo ella
n'este castigo, se poz a cuidar : « Que quando a um Santo,
que era doutor da Egreja, e a quem énecessario o seu saber
para a declaração das escripturas , se lhe fazia aquelle en-
cargo, que se lhe faria a ella em aprender linguas, sem mais
utilidade que gastar mal o tempo !» Com esta reflexão se
despediu do livro, dizendo a seu pae que lhe agradecia
muito o cuidado, mas que ella se não considerava capaz
para este ensino.

«No primeiro dia, depois de ter satisfeito ás obrigações


do officio e cuidados da caridade em ajuntar as sobras do
comer para os pobres, quando já todas estavam reparti-
das, entrou na cozinha a madre rodeira, pedindo- lhe as
sopinhas do Menino Jesus . Ficou pasmada, porque igno-
rava o que aquella Santa Communidade entendia por es-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 25

te termo. E perguntando - o a outra religiosa, respondeu


esta que todos os dias vinha áquella portaria um meni-
no filho de uma visinha muito pobre, à quem soccorriam
com a esmola, que do que se repartia aos outros , se re-
servava em um tigellinha.
Gostando da explicação tomou a nova cozinheira muito
por sua conta preparar logo a esmola, para que o meni-
no não chorasse a falta. E compondo com pressa umas
sopinhas, as levou á religiosa para que ella lh'as désse .
Não ficou sem premio esta caridade; porque estando de
tarde em oração , achou dentro da sua alma um menino
Jesus com muita graça assentado no seu coração, com
uma tigellinha no regaço, d'onde comia muito gostoso.
Atrevi-me (escreve a freira) a dizer-lhe: Meu amor e meu
Senhor, tambem V. Magestade come? Quer-me convidar?
Respondeu-ine: Como as sopinhas que tu me fizeste.
Estando um dia em Prima, sentiu a sua alma os effei-
tos e socego, que lhe annunciavam a communicação inte-
rior de Deus . Manifestou-se- lhe o Senhor no aspecto
muito amavel, mas nas insignias guerreiro; trazia na
mão uma lança pequena. E alvoroçada com esta repre-
sentação lhe disse : Meu amor, vindes da guerra? Para
quem é esse dardo? E dizendo-lhe o Senhor que era para
o seu coração, lhe respondeu ella que esse era seu; mas
que se por estar em seu poder, o queria, de novo lh'o
entregava. Penetrou -lhe pois o coração com a lança ;
a cujo golpe acudiu em lugar de sangue tanta for-
ça de amor, que cuidou que acabava à vida nas suas
mãos.»

Tudo isto vem no referido livro , d'onde trans-


crevemos estes trechos ."
Cascaes tambem viu um outro milagre 12 n'uma

12 Veja- se : Relação do milagre que Deus obrou nas vi-


sinhanças da villa de Cascaes, etc. Lisboa 1754.
26 PORTUGAL

dama que jazia prostrada pela doença havia al-


guns annos : e recorrendo com fé viva a uma
imagem de S. Francisco de Paula que lhe apre-
sentaram , e pedindo uma bacia, despejou da boc-
ca uma grande quantidade de bichos e recuperou
a saude .
Na povoação de Lourosa, bispado de Coimbra,
succedeu o seguinte milagre, narrado por um
contemporaneo 13. Um padre mettido no caixão
oito dias depois de morto, ao lançarem -lhe terra,
a sacudiu de si , e se achou ao outro dia, com
uma das mãos de fóra , e a cera apezar de ter
ardido muito não teve diminuição !
Um anno antes tambem Nossa Senhora da Pe-
nha de França 14 tinha praticado em Lisboa um
grande milagre a um pobre lavrador que possuia
uma pequena fazenda proximo d'aquelle convento .
Não havia agua n'essa quinta . Chamados os ve-
dores, declararam formalmente que era inutil ten-
tar encontral-a, porque não havia probabilidade
alguma de colher resultado de tal pesquiza. A mu-

13 JOSÉ CLAUDIO : Relação de um caso notavel que acon-


teceu na Villa de Lourosa , Lisboa 1754.
14 Verdadeira relação do grande milagre que fez a Se-
nhora da Penha de França, etc. Lisboa 1753.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 27

lher do lavrador era muito devota da Senhora da


Penha de França . Pede-lhe fervorosamente para
que lhe faça o milagre de fazer brotar uma nas-
cente n'aquelle terreno , que pela falta d'agua não
produzia quasi nada . E ao outro dia apparece- lhes
não uma simples nascente , mas um verdadeiro re-
gato de excellente agua !
A madre Soror Thereza Juliana de S. Boaven-
tura religiosa do mosteiro de Santa Clara de Lis-
boa foi uma das freiras mais afamadas em cheiro
de santidade durante o reinado d'el-rei D. João V.
Tinha soffrido com paciencia heroica os maus
tratamentos d'uma freira sua tia durante o tempo
que viveu no mosteiro de Santa Clara do Porto .
Uma caveira lhe havia fallado no palacio do mar-
quez de Gouveia , e quando já no mosteiro da
mesma Santa de Lisboa, aconteceu-lhe um caso
mui notavel . « Uma noite estando no coro em
oração, como costumava, duas companheiras , que
presentes estavam, lhe viram sobre um dos hom-
bros um enorme rato : e quando uma d'ellas ia
para enxotal- o , elle desappareceu . Não se póde
negar (diz o seu biographo) que este rato fosse
um demonio, dos que os Mysticos chamam arri-
madiços, pois que no dito coro, por ter sido feito
muito pouco tempo antes e estar sempre pela sua
28 PORTUGAL

continuada assistencia , muito limpo , não se deve


presumir podesse haver ratos . >»
E na verdade parece que o diabo andava en-
tão á redea solta n'aquelle convento fazendo das
suas . O auctor da Vida d'esta freira alonga-se
contando o muito que ella padeceu por querer
que se guardassem e cumprissem os Estatutos da
Ordem. O demonio pretendeu então por meio de
«alterações destruir aquella religiosa observancia
e perfeição que sempre se admirou em toda aquella
communidade. Mas que de ultrages, injurias e
tormentos não padeceu em uma tal lucta ! Basta-
va sem duvida sómente esta em toda a sua vida,
para n'ella mostrar ao mundo os quilates da sua
paciencia, os apices do seu amor, os fundos da
sua humildade, e o exercicio de todas as virtu-
des . Parece que n'este seu combate e resoluta
apparição publica a tão diabolicos intentos , as
mesmas pedras e tijolos do convento, arrancados
pelas mãos de seus contrarios , se levantaram con-
t
tra ella para a apedrejarem e a todas as mais
companheiras do 1 seu partido que a seguiam ! »
Tinha, porém , alma poetica, que bem o paten-
teou nos seus versos , e o seu « Colloquio perante
o presepio do Menino Jesus » é summamente cu-
rioso, sendo ao mesmo tempo um bom e cara-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 29

cteristico specimen da litteratura mystica d'aquella


epocha.
Eis alguns excerptos :

«Meu Menino da minha alma, meu Menino de flores,


meu Menino de prata, meu Menino de ouro, meu Meni-
no de crystal, meu Menino vindo do Ceo. Ai ! que que-
rendo fallar nada sei dizer. Eu não sei o que vos diga;
porque vós sois um feitiço : Vós sois um enleio : Vós sois
um encanto: Vós sois um abysmo; Vós sois um instru-
mento sonoro, que arrebata. Tudo isto sois : e nada d'is-
to sois. Sois uma luz clarissima , e sois uma escuridade
profunda. Ora vá- se lá a gentilidade com os seus Am-
phiões, e os seus Orpheos, que com os seus instrumentos e
com a sua voz encantavam os brutos e os attrahiam: que
vós, meu divino Orpheo, não os encantais : dais sim ins-
tincto para buscarem o que os póde conservar; e arte
para fugir do que os póde destruir . Vá- se com o seu Deus
Favonio, e o seu Deus Jupiter, a cegueira do Gentilis-
mo; um fuzilando raios , outro dispendendo chuva de ou-
ro pela sua amada Flora. Se a antiguidade pintou esta
fingida chimera na sua phantasia: que dissera , se na
verdade vos visse a Vós, meu Deus Menino, meu Favo- .
nio soberano , dispendendo chuva de perolas, por quem
tanto amais ! Que zephyro mais suave do que vós mesmo,
para respirar nos ardores de vossos proprios divinos
raios! Ora vão- se lá os gentios com a sua forja de Vul-
cano, lavrando n'ella muitas settas: que vós na vossa fra-
goa de palhinhas em esse presepio, fazeis mais ardentes
settas, com que suavemente traspassais os corações hu-
manos.
Ah Senhor, e ah meu Deus Menino! muito ignorantes
somos : não sabemos por certo ponderar estes quilates de
finezas : não temos capacidade para tanto : pobrezinhos
dos cabedaes do entendimento. Resta agora, que d'esse
Presepio me deis uma esmola: não queirais sempre ver-
me necessitada, ganindo e carpindo. Porém se assim é vos-
30 PORTUGAL

sa vontade, tambem esta será a minha; nem mais, nem


menos. Por tudo sejais sempre louvado !

Esta madre Soror Thereza Juliana, era uma


das pouquissimas freiras que n'aquelle tempo pos-
suiam alguma instrucção . Não só era versada na
lingua castelhana , e n'este idioma se encontra uma
poesia sua ao Divino Infante de Belem, mas es-
crevia grammaticalmente, e tinha algum conhe-
cimento da Mythologia paga .
Em miudos pormenores entra o Padre Antonio
de Mariz Faria no livro Peregrino curioso da
vida e milagres de S. João Murcos na Cidade de
Braga, impresso em 1721. Quer que seja o João
Marcos de que fallam os Actos dos Apostolos :
que fôra natural da Judea , sendo sua patria ou o
logar da Bethania, ou a grande Jerusalem , onde
seus pais tinham casa : que sua mãe se chamava
Maria, que o Santo era parente de Christo . Os
paes de João Marcos (cita por auctoridade a Mys-
tica Cidade de Deus) eram riquissimos e mui no-
bres, e poderiam então ser senhores de duas
casas: uma na Bethania e a outra em Jerusalem .
Que lhe havia sido revelado pelo proprio Christo
que a ultima ceia do Senhor havia de ser cele-
brada na sua casa. Que era tão rico o pae de
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 31

S. João Marcos que ministrou ao mesmo Senhor


entre outras riquissimas peças « um prato formado
de uma esmeralda inteira de tal grandeza que
n'ella cabia o cordeiro que Christo comeu com os
Apostolos na ceia legal 15.

Não foi menos precioso, (continua o mesmo auctor,)


o Calix, com que o pae de S. João Marcos serviu a Chris-
to n'aquella Cea ; pois dizem que fôra tambem de uma
preciosa pedra a que chamam Agathis.
Mas não só no formal da nobreza e opulencia foi gran-
de a casa de S. João Marcos, mas até no material foi
tão magnifica e sumptuosa que repartindo- se em varias
quadras, a que serviu a Christo no Cenaculo ficava tão
imminente, que a ella se subia por 15 degraus ; era tão
ampla e espaçosa que tinha 50 pés e 30 de largo ; para
a parte do Oriente ficava outra quadra, que ainda seria
mais dilatada, para onde se retirou Maria Santissima com
as devotas mulheres que a acompanhavam, em quanto
Christo celebrou a Cea, e na qual estavam congrega-
das aquellas pessoas, sobre quem desceu o Espirito Santo.
Depois foi S. Barnabé prégar a Religião Christã na
Antiochia levando comsigo o João Marcos. Na Pamphy-
lia separou-se João Marcos de S. Barnabé e encami-
nhou-se para Jerusalem. Mais tarde dirige-se a Chypre,
d'aqui a Epheso, e d'aqui para Roma. Foi martyrisado
na Italia, e seu corpo escondido pelos christãos , e mais
tarde remettido para Braga, 16 onde tem operado estron-
dosos prodigios.

15 Vida de S. João Marcos , pag. 38.


16 Idem pag. 122. Diz a pag. 162 que havia no exer-
cito romano uma legião chamada Gemadecima, « que se
compunha de gallegos e leoneses ; n'essa legião, que cons-
tava de 666600 soldados , não podia deixar de haver mui-
30 PORTUGAL

sa vontade, tambem esta será a minha; nem mais, nem


menos. Por tudo sejais sempre louvado!

Esta madre Soror Thereza Juliana, era uma


das pouquissimas freiras que n'aquelle tempo pos-
suiam alguma instrucção . Não só era versada na
lingua castelhana , e n'este idioma se encontra uma
poesia sua ao Divino Infante de Belem, mas es-
crevia grammaticalmente, e tinha algum conhe-
cimento da Mythologia paga .
Em miudos pormenores entra o Padre Antonio
de Mariz Faria no livro Peregrino curioso da
vida e milagres de S. João Murcos na Cidade de
Braga, impresso em 1721. Quer que seja o João
Marcos de que fallam os Actos dos Apostolos :
que fora natural da Judea , sendo sua patria ou o
logar da Bethania, ou a grande Jerusalem , onde
seus pais tinham casa : que sua mãe se chamava
Maria, que o Santo era parente de Christo . Os
paes de João Marcos (cita por auctoridade a Mys-
tica Cidade de Deus) eram riquissimos e mui no-
1
bres, e poderiam então ser senhores de duas
casas: uma na Bethania e a outra em Jerusalem.
Que lhe havia sido revelado pelo proprio Christo
que a ultima ceia do Senhor havia de ser cele-
brada na sua casa . Que era tão rico o pae de
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 31

S. João Marcos que ministrou ao mesmo Senhor


entre outras riquissimas peças «um prato formado
de uma esmeralda inteira de tal grandeza que
n'ella cabia o cordeiro que Christo comeu com os
Apostolos na ceia legal 15.

Não foi menos precioso, (continua o mesmo auctor,)


o Calix, com que o pae de S. João Marcos serviu a Chris-
to n'aquella Cea; pois dizem que fôra tambem de uma
preciosa pedra a que chamam Agathis.
Mas não só no formal da nobreza e opulencia foi gran-
de a casa de S. João Marcos, mas até no material foi
tão magnifica e sumptuosa que repartindo- se em varias
quadras, a que serviu a Christo no Cenaculo ficava tão
imminente, que a ella se subia por 15 degraus; era tão
ampla e espaçosa que tinha 50 pés e 30 de largo; para
a parte do Oriente ficava outra quadra, que ainda seria
mais dilatada, para onde se retirou Maria Santissima com
as devotas mulheres que a acompanhavam, em quanto
Christo celebrou a Cea, e na qual estavam congrega-
das aquellas pessoas, sobre quem desceu o Espirito Santo.
Depois foi S. Barnabé prégar a Religião Christã na
Antiochia levando comsigo o João Marcos. Na Pamphy-
lia separou-se João Marcos de S. Barnabé e encami-
nhou-se para Jerusalem. Mais tarde dirige- se a Chypre,
d'aqui a Epheso, e d'aqui para Roma. Foi martyrisado
na Italia, e seu corpo escondido pelos christãos , e mais
tarde remettido para Braga, 16 onde tem operado estron-
dosos prodigios.

15 Vida de S. João Marcos , pag. 38.


16 Idem pag. 122. Diz a pag. 162 que havia no exer-
cito romano uma legião chamada Gemadecima, « que se
compunha de gallegos e leoneses; n'essa legião, que cons-
tava de 666600 soldados, não podia deixar de haver mui-
PORTUGAL
888
32 A

Em 1718 mandou o arcebispo D. Rodrigo de


Moura Telles que lhe fizessem grandes festejos ,
por occasião da trasladação, e foram realmente
esplendidas as festas com que a Cidade de Braga
celebrou a trasladação , mas é certo que o Santo
trasladado se mostrou gratissimo a tão deslum-
brantes obsequios . Os milagres eram continuos e
innumeros ; senão vejâmos os seguintes , extrahi-
dos da Vida do Santo :

«Venerava o capitão Manuel Pereira de Araujo, ao


glorioso S. João Marcos, no tumulo, aonde a tradição
sempre disséra que estava seu sagrado corpo . Achou - se
uma tarde pouco antes da trasladação em uma conver-
sação, aonde se affirmava que no dito tumulo estariam
os ossos de algum templario ; e elle esquecendo - se da sua
antiga devoção se deixou vencer da proposta duvida; e
logo lhe sobrevieram no quadril esquerdo umas dores tão
vehementes que lhe impediam o andar. Sem achar allivio
nos remedios que lhe applicou, conheceu ao outro dia,
que a occasião da sua molestia fôra a duvida incauta-
mente formada e pedindo logo da sua janella perdão ao
Santo, protestando com firmeza, estava alli seu sagrado
corpo, antigo objecto da sua devoção, no mesmo instante
o deixaram livres as dôres .»

«Christovão Fernandes, serralheiro, se achava em tão


miseravel estado que pela bocca lançou fluxos de sangue,

tos bracharenses, não só porque Braga n'aquelle tempo


era a cabeça e a cidade mais populosa de toda a Galli-
sa; mas porque os bracharenses eram sem controversia
os mais valerosos de toda a Hespanha. >»
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 33

por mais de quinze dias ; e sendo um dia chamado para


fazer uns bicheiros para a tribuna do glorioso S. João
Marcos, encommendando-se a elle. com grande fé, com
tres golfadas de sangue que lançou, ficou perfeitamente
são da dita queixa.»
• «Adoeceu a Pedro Nogueira, carpinteiro da freguezia
de Lomar, uma anha, que elle e sua mulher estimavam
pela galanteria da côr ; esteve cinco dias sem se levan-
tar, où mover, nem comer a herva que lhe chegavam.
Offereceram- n'a na noite do ultimo dia ao glorioso Santo
se lhe désse saude, e ao amanhecer do seguinte dia se
levantou a anha, foi para o campo e d'ahi para o monte,
sa como d'antes. >>

E' porém, mister que passemos em claro uns


150 milagres narrados na sua Vida, e alguns
d'elles bem engraçados , para fallar de Santa Ur-
sula e das suas onze mil companheiras virgens ,
cujo culto estava ainda mais propagado no paiz
que o de S. João Marcos, e cujos milagres eram
diarios e mui notorios.
Sumptuosas festas lhe faziam no mosteiro de
S. Vicente de Fóra . Em a Universidade de Coim-
bra lhe recitavam uma oração panegyrica . E o
Padre Crombach, citando a dois auctores fidedi-
gnos d'aquelle tempo conta que na occasião em
que el- rei D. Affonso Henriques quiz restaurar
a cidade de Lisboa do dominio dos mouros, aju-
dado por uma armada de cruzados colonienses
que havia chegado ao Tejo , e tendo- se dado o
3
34 PORTUGAL

assalto , elle não lograva o effeito que se espe-


rára : porque (diz um livro relativo ao assum-
pto 17) havia já quatro mezes que durava o com-
bate sem que as armas catholicas esperassem
tirar d'ali mais credito que a porfia ; eis que de
repente desce do Céu esse exercito triumphante das
11 : 000 Virgens no mesmo dia, e apertam o ata-
que, degollando as Virgens vencedoras n'aquelle
dia pelas suas innocentes mãos a 200 : 000 barba-
ros, com o que se consumou a victoria . Ficaram
muitos dos Christãos feridos , e muitos moribun-
dos, e ellas dos feridos trataram como enfermei-
ras, até lhes darem saude, e aos moribundos va-
leram como protectoras, assistindo - lhe n'aquella
hora formidavel , e levando- os em sua companhia
a gosar da immortalidade . Veja agora Portugal ,
e veja Lisboa a fé e o amor, que deve a este suc-
cesso, e o como agradece este beneficio ! »

«E ' tão alta esta devoção (acrescenta o mesmo auctor)


que não ha mal ou enfermidade no mundo a que não
acudam as onze mil virgens : todas valem para tudo, e
muitas d'ellas particularmente para muitas enfermidades.
Para a cabeça, para os olhos , para os dentes, e ainda

17 LUIZ BOTELHO FROES DE FIGUEIREDO: Modo efficacis-


simo de orar para conseguir a poderosa protecção das
Onze MIL VIRGENS, Lisboa 1745.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 35

para conservar o parecer tendes a Santa Cordula: cura


os freneticos, os paralyticos, os aleijados, as pontadas,
as feridas, acode á esterilidade, facilita os partos, re-
medeia todo o genero de febre, e não havendo remedio
para a morte, até aos mortos resuscita. Para os presos ,
para as dores do peito, para os naufragos, para as que-
das, e até para domar os brutos tendes a Santa Cunera.
Para a apoplexia e para a peste tendes a Santa Odila.
E porque não haja mal, a que não acudam as Santas
Virgens, até para sarar dos achaques da mocidade ten-
des a Santa Aurula. A terra do sepulchro das santas
onze mil Virgens afugenta as serpentes e os animaes
venenosos. Finalmente ainda hoje se continua o milagre
da redoma, em que se guarda o sangue do martyrio de
Santa Ursula, o qual no seu dia aviva a côr, ferve e li-
quida- se, tendo obrado incomparaveis prodigios.>>

Na Vida da madre Thereza da Annuncia-


da» , livro publicado em Lisboa em 1763 , con-
ta-se « que estando ella dispondo o necessario
para a festa do dia 11 de abril , desejando fa-
zer uns confeitos para offerecer aos devotos ,
succedeu um grande prodigio . Tendo mandado o
assucar a uma religiosa de outro mosteiro , essa
The respondeu, que fazendo a experiencia acha-
va que o assucar não fazia obra por ser miudo
e inferior. Affligiu-se a serva de Deus , porque o
não tinha de outra qualidade, nem dinheiro para
o comprar e quiz experimentar em pouca quan-
tidade se faria caramelos . Assim que se tomou o
34 PORTUGAL

assalto , elle não lograva o effeito que se espe-


rára : porque (diz um livro relativo ao assum-
pto 17) havia já quatro mezes que durava o com-
bate sem que as armas catholicas esperassem
tirar d'ali mais credito que a porfia ; eis que de
repente desce do Céu esse exercito triumphante das
11 : 000 Virgens no mesmo dia, e apertam o ata-
que, degollando as Virgens vencedoras n'aquelle
dia pelas suas innocentes mãos a 200: 000 barba-
ros , com o que se consumou a victoria . Ficaram
muitos dos Christãos feridos , e muitos moribun-
dos, e ellas dos feridos trataram como enfermei-
ras , até lhes darem saude, e aos moribundos va-
leram como protectoras, assistindo - lhe n'aquella
hora formidavel, e levando- os em sua companhia
a gosar da immortalidade . Veja agora Portugal ,
e veja Lisboa a fé e o amor, que deve a este suc-
cesso, e o como agradece este beneficio ! »

«E' tão alta esta devoção (acrescenta o mesmo auctor)


que não ha mal ou enfermidade no mundo a que não
acudam as onze mil virgens : todas valem para tudo, e
muitas d'ellas particularmente para muitas enfermidades.
Para a cabeça, para os olhos, para os dentes, e ainda

17 LUIZ BOTELHO FROES DE FIGUEIREDO: Modo efficacis-


simo de orar para conseguir a poderosa protecção das
ONZE MIL VIRGENS, Lisboa 1745 .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 35

para conservar o parecer tendes a Santa Cordula: cura


os freneticos, os paralyticos, os aleijados, as pontadas,
as feridas, acode á esterilidade, facilita os partos, re-
medeia todo o genero de febre, e não havendo remedio
para a morte, até aos mortos resuscita. Para os presos ,
para as dores do peito, para os naufragos , para as que-
das, e até para domar os brutos tendes a Santa Cunera.
Para a apoplexia e para a peste tendes a Santa Odila.
E porque não haja mal, a que não acudam as Santas
Virgens, até para sarar dos achaques da mocidade ten-
des a Santa Aurula. A terra do sepulchro das santas
onze mil Virgens afugenta as serpentes e os animaes
venenosos . Finalmente ainda hoje se continua o milagre
da redoma, em que se guarda o sangue do martyrio de
Santa Ursula, o qual no seu dia aviva a côr, ferve e li-
quida-se, tendo obrado incomparaveis prodigios .>>

Na «Vida da madre Thereza da Annuncia-


da » , livro publicado em Lisboa em 1763 , con-
ta-se « que estando ella dispondo o necessario
para a festa do dia 11 de abril , desejando fa-
zer uns confeitos para offerecer aos devotos ,
succedeu um grande prodigio . Tendo mandado o
assucar a uma religiosa de outro mosteiro, essa
The respondeu , que fazendo a experiencia acha-
va que o assucar não fazia obra por ser miudo
e inferior. Affligiu-se a serva de Deus , porque o
não tinha de outra qualidade, nem dinheiro para
o comprar e quiz experimentar em pouca quan-
tidade se faria caramelos . Assim que se tomou o
34 PORTUGAL

assalto , elle não lograva o effeito que se espe-


rára : porque (diz um livro relativo ao assum-
pto 17) havia já quatro mezes que durava o com-
bate sem que as armas catholicas esperassem
tirar d'ali mais credito que a porfia ; eis que de
repente desce do Céu esse exercito triumphante das
11 :000 Virgens no mesmo dia, e apertam o ata-
que, degollando as Virgens vencedoras n'aquelle
dia pelas suas innocentes mãos a 200: 000 barba-
ros, com o que se consumou a victoria . Ficaram
muitos dos Christãos feridos , e muitos moribun-
dos , e ellas dos feridos trataram como enfermei-
ras, até lhes darem saude, e aos moribundos va-
leram como protectoras , assistindo- lhe n'aquella
hora formidavel, e levando -os em sua companhia
a gosar da immortalidade . Veja agora Portugal ,
e veja Lisboa a fé e o amor, que deve a este suc-
cesso, e o como agradece este beneficio ! »

«E' tão alta esta devoção (acrescenta o mesmo auctor)


que não ha mal ou enfermidade no mundo a que não
acudam as onze mil virgens : todas valem para tudo, e
muitas d'ellas particularmente para muitas enfermidades.
Para a cabeça, para os olhos , para os dentes , e ainda

17 LUIZ BOTELHO FROES DE FIGUEIREDO: Modo efficacis-


simo de orar para conseguir a poderosa protecção das
ONZE MIL VIRGENS, Lisboa 1745 .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 35

para conservar o parecer tendes a Santa Cordula : cura


os freneticos, os paralyticos, os aleijados, as pontadas,
as feridas, acode á esterilidade, facilita os partos , re-
medeia todo o genero de febre, e não havendo remedio
para a morte, até aos mortos resuscita. Para os presos,
para as dores do peito, para os naufragos , para as que-
das, e até para domar os brutos tendes a Santa Cunera.
Para a apoplexia e para a peste tendes a Santa Odila.
E porque não haja mal, a que não acudam as Santas
Virgens, até para sarar dos achaques da mocidade ten-
des a Santa Aurula. A terra do sepulchro das santas
onze mil Virgens afugenta as serpentes e os animaes
venenosos . Finalmente ainda hoje se continua o milagre
da redoma, em que se guarda o sangue do martyrio de
Santa Ursula, o qual no seu dia aviva a côr, ferve e li-
quida-se, tendo obrado incomparaveis prodigios. »>

Na ( Vida da madre Thereza da Annuncia-


da» , livro publicado em Lisboa em 1763 , con-
ta-se « que estando ella dispondo o necessario
para a festa do dia 11 de abril, desejando fa-
zer uns confeitos para offerecer aos devotos ,
succedeu um grande prodigio . Tendo mandado o
assucar a uma religiosa de outro mosteiro , essa
The respondeu, que fazendo a experiencia acha-
va que o assucar não fazia obra por ser miudo
e inferior. Affligiu-se a serva de Deus , porque o
não tinha de outra qualidade, nem dinheiro para
o comprar e quiz experimentar em pouca quan-
tidade se faria caramelos . Assim que se tomou o
34 PORTUGAL

assalto , elle não lograva o effeito que se espe-


rára : porque (diz um livro relativo ao assum-
pto 17) havia já quatro mezes que durava o com-
bate sem que as armas catholicas esperassem
tirar d'ali mais credito que a porfia ; eis que de
repente desce do Céu esse exercito triumphante das
11 : 000 Virgens no mesmo dia, e apertam o ata-
que, degollando as Virgens vencedoras n'aquelle
dia pelas suas innocentes mãos a 200:000 barba-
ros, com o que se consumou a victoria . Ficaram
muitos dos Christãos feridos , e muitos moribun-
dos, e ellas dos feridos trataram como enfermei-
ras, até lhes darem saude, e aos moribundos va-
leram como protectoras, assistindo - lhe n'aquella
hora formidavel, e levando - os em sua companhia
a gosar da immortalidade . Veja agora Portugal ,
e veja Lisboa a fé e o amor, que deve a este suc-
cesso, e o como agradece este beneficio ! »

«E' tão alta esta devoção (acrescenta o mesmo auctor)


que não ha mal ou enfermidade no mundo a que não
acudam as onze mil virgens : todas valem para tudo, e
muitas d'ellas particularmente para muitas enfermidades.
Para a cabeça, para os olhos, para os dentes , e ainda

17 LUIZ BOTELHO FROES DE FIGUEIREDO: Modo efficacis-


simo de orar para conseguir a poderosa protecção das
ONZE MIL VIRGENS , Lisboa 1745 .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 35

para conservar o parecer tendes a Santa Cordula: cura


os freneticos, os paralyticos, os aleijados, as pontadas,
as feridas, acode á esterilidade, facilita os partos, re-
medeia todo o genero de febre, e não havendo remedio
para a morte, até aos mortos resuscita. Para os presos,
para as dores do peito, para os naufragos , para as que-
das, e até para domar os brutos tendes a Santa Cunera.
Para a apoplexia e para a peste tendes a Santa Odila.
E porque não haja mal, a que não acudam as Santas
Virgens, até para sarar dos achaques da mocidade ten-
des a Santa Aurula. A terra do sepulchro das santas
onze mil Virgens afugenta as serpentes e os animaes
venenosos . Finalmente ainda hoje se continua o milagre
da redoma, em que se guarda o sangue do martyrio de
Santa Ursula, o qual no seu dia aviva a côr, ferve e li-
quida-se, tendo obrado incomparaveis prodigios.»

Na (( Vida da madre Thereza da Annuncia-


da» , livro publicado em Lisboa em 1763 , con-
ta-se « que estando ella dispondo o necessario
para a festa do dia 11 de abril, desejando fa-
zer uns confeitos para offerecer aos devotos ,
succedeu um grande prodigio . Tendo mandado o
assucar a uma religiosa de outro mosteiro , essa
The respondeu, que fazendo a experiencia acha-
va que o assucar não fazia obra por ser miudo
e inferior. Affligiu-se a serva de Deus, porque o
não tinha de outra qualidade, nem dinheiro para
o comprar e quiz experimentar em pouca quan-
tidade se faria caramelos . Assim que se tomou o
36 PORTUGAL

ponto, abateu tanto, e ficou com a côr tão ama-


rella que parecia resina . N'esta afflicção recor-
reu ao Senhor dizendo : « Vós bem sabeis que não
tenho outro assucar, nem de onde me venha : a
obra não é minha, senão vossa, vós disponde o
que fordes servido . » Acabada a supplica cortou
Thereza uma particula da corda do Senhor, e a
lançou no tacho : e com fé viva ordenou á cria-
da que o puzesse outra vez ao lume . Caso pro-
digioso! Começa o assucar de antes amarello e
abatido, e fazer- se branco como crystal, e tão
subido de ponto que d'elle se fizeram caramellos
de uma tal bondade que jamais se viram iguaes ! A
vista d'este prodigio mandou a serva de Deus á re-
ligiosa do outro convento uma parte da corda da
santa imagem e se repetiu o prodigio , saindo
sempre os confeitos com tal tempera e perfeição
que bem pareciam obra da mão do Todo Pode-
roso» .
E porque não seria assim, se, por estes tem-

pos o Senhor mandava aos fidalgos lhe erigissem


capellas, egrejas e mosteiros, e elles prompta-
mente obedeciam! E por isso, pesada a cera que
servia nas exequias dos varões que morriam com
cheiro de santidade , nenhum desfalque se encon-
trava! Nada havia a pagar ao cerieiro !
IV

Não é possivel fazer a conta aos milhares e


milhares de mil cruzados que na epocha de D.
João V se consumiam annualmente em festividades
religiosas, e no emtanto não havia em Portugal
n'aquelle tempo um só palmo de boa estrada.
Quem vinha do Porto entregava- se á mercê das
ondas n'um hiate, no qual ás vezes gastava um
mez ou tres semanas de viagem , em risco de ser
apanhado pelos piratas que muitas vezes infesta-
vam as costas de Portugal ; ou então vinha por
terra, passando mil inclemencias, exposto a ser
roubado ou pelos ladrões , ou pelos arreeiros e
almocreves , ás vezes peiores do que os proprios
salteadores . Eis porque não é para admirar que
38 PORTUGAL

cada um se acautelasse fazendo testamento antes

de emprehender a jornada.
Mais adiante diremos alguma coisa d'essas
pomposissimas canonisações celebradas em Por-
tugal com tanta frequencia, e nas quaes tantos
milhares de mil cruzados se consumiram !
E apesar de tanta devoção e pompa religiosa,
Ribeiro Guimarães exclama :

«Aquella epocha, qne apparentava de profundamente


religiosa, era ao mesmo tempo profundamente devassa.
Os actos religiosos assim pomposos, eram mais um diver-
timento do que a manifestação da piedade sincera. Epo-
cha de colloquios freiraticos, de aventuras galantes ao
par de muita beatice. »

É bem notorio que D. João V ia passar muitas


noites dentro do convento de Odivellas, onde es-
tava a sua amada . O romance de Rebello da Sil-
va, intitulado Mocidade de D. João V, melhor
nos póde informar a tal respeito . Os aposentos
da freira amante do rei (em Odivellas) são des-
criptos detidamente pelo referido escriptor Ribei-
ro Guimarães , no seu Summario de varia histo-
ria.
Por essa descripção se vê que elles eram ma-
ravilhosos de riqueza e de primores .
O inglez Costigan, n'uma obra que escreveu
68
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 39

ácerca de Portugal não póde dizer peior do que


diz dos costumes e des moralisação do nosso paiz 18
Segundo nos assevera este escriptor, e é confir-
mado por varios outros , os vicios infames eram
vulgarissimos em Portugal, mesmo nas pessoas
da mais alta aristocracia . E os proprios vice - reis
e governadores da India, segundo se vê nas obras
de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, esta-
vam continuainente pedindo ao governo da me-
tropole providencias contra o clero que se acha-
va nas regiões Orientaes, e que em geral era de
costumes mui relaxados, e de crassissima igno-
rancia.

Em um sermão que prégou o celebre D.Raphael


Bluteau na igreja dos Caetanos em 1723 , no mez
de janeiro, lêem- se as seguintes palavras :

Em Lisboa, celeberrimo emporio da Europa, a conve-


niencia do commercio desperta e fomenta a cobiça dos
negociantes. A Lisboa trazem os estrangeiros heterodo-
xos, com suas mercancias, os vicios das suas terras, jun-
tamente com os erros das suas seitas, e publicamente os
professam Em Lisboa a rabulice e maliciosa subtileza
dos litigantes perpetua os pleitos, e com trapaças, colli-
gações ou conluios eternisa inimizades . Em Lisboa, a sua-

18 ARTHUR WILLIAM COSTIGAN : Sketches of Society and


manners in Portugal. London, 2 vol.
40 PORTUGAL

vidade do clima affemina os animos e a delicias illici-


tas os inclina.
Em Lisboa, com os odios inveterados ou com furias
repentinas muita gente se mata e uma das razões das
muitas mortes é que os offendidos, suppondo que a jus-
tiça não castigará aos que os aggravaram, com suas pro-
prias mãos fazem justiça. Em Lisboa por uma folha
de papel a que chamam carta de seguro o mais cruel ho-
micidio se abafa. Em Lisboa qualquer sombra de infide-
lidade no thalamo conjugal afia o punhal para o desaggra-
vo, e o matar mulheres é ponto de honra. Em Lisboa, ne-
gros e villões, quando não tem padrinhos talvez se cas-
tigam: para homens de bem, quando obram mal, raro é
o castigo. Em Lisboa, guardam alguns pontualmente as
festas de Nossa Senhora : nos domingos, que são os dias
do Senhor, sem escrupulo muitos trabalham. Em Lisboa
dizem alguns que no inverno frequentam as egrejas por
que são quentes, e no verão porque são frescas . Em Lis-
boa para certos sujeitos o não pagar dividas é nobreza
e o fazer esmolas é baixeza. Em Lisboa o perdoar aggra-
vos é fraqueza, e o vingar - se d'elles é fidalguia...»

Estas censuras são insuspeitas . Era um padre,


um contemporaneo, um homem distinctissimo .
quem tinha a coragem de as dizer . Ellas dão
uma ideia geral do estado de dissolução e de
anarchia mansa que imperava em Lisboa.
E dentro dos conventos correriam as cousas
melhor?
Nego do modo mais positivo ; apezar das con-
fissões diarias , e de terem as freiras obrigação de
se guiarem pelos dictames dos seus confessores ,
dentro de taes conventos não só reinava a intri-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 41

ga e a ignorancia, mas tambem o vicio e a rela-


xação. Que dentro dos mosteiros tambem havia.
luxo e modas, prova- o um Director Espiritual 19
pois este nos falla em « sapatos picados, rocados,
de seda, de tesum, fivellas de ouro, de prata, e
de pedras preciosas . » O Padre Algarbiense acon-
selha ás freiras que não usem de luvas, nem de
leques , nem de alvaiade na cara, nem de crepes
nos cantos da toalha, nem de alentos descompas-
sados e ridiculos, e diz-lhes que não devem usar
de caudas .
O padre fr. Manuel de S. Luiz na Vida da
madre Francisca do Livramento, grita tambem
contra as estendidas caudas de que as freiras usa-
vam .
As representações theatraes dentro dos con-
ventos eram vulgarissimas, e é ainda o mesmo
Padre Algarbiense quem nos diz:

«Sendo eu de bem pouca idade moravam meus paes em


uma quinta perto de Lisboa. Em um dia era tal o
concurso de coches , seges e liteiras que se povoava a es-
trada. Sabida a causa, eram fidalgos que iam ver uma
comedia a certo convento .

19 Cartas Directivas e Doutrinaes. Respostas de uma


Religiosa Capucha, e reformada, a outra freira que mos-
trava querer reformar-se. Dadas á luz pelo P. Manuel
Velho, Sacerdote Algarbiense. Lisboa, 1730, pag. 54.
42 PORTUGAL

Este mesmo padre ainda exclama a pag . 86 :

É possivel que se vá a um convento , sacrario das es-


posas de Christo a viver mais solta e mais escandalosa-
mente que em casa de seus paes! A honra que tanto zelam
quando seculares, a vão perder quando religiosas ! Oh que
grande razão teria hoje o Senhor se com o azorrague das
mortes repentinas fizera despejar os mosteiros como aos
que vendiam no templo, pois da sua casa fazem casa de
negociação tão indigna, perversa e escandalosa!

Tambem na Vida da virtuosa madre Maria


Perpetua da Luz , religiosa do convento da Es-
perança em Beja, livro impresso em Lisboa em
1742 , se lê o seguinte:

«Representaram as religiosas, que eram menos aman-


tes da virtude, uma comedia profana com entremezes, e
outros disfarces, onde se envolviam palavras pouco de-
centes , e acções indecorosas : e errou então a prelada, não
só em lhes permittir aquelle escandaloso divertimento ,
mas tambem em consentir que este se celebrasse em um
lugar só dedicado para os louvores de Deus . >>

Este livro tambem relata que no mesmo con-


vento de Beja em uma quarta feira de Cinza, no
refeitorio se apresenta o Divino Esposo á referi-
da madre Maria Perpetua da Luz , mostrando-se
mui queixoso da Communidade , e sobremodo es-
timulado contra a prelada . Fundava- se a ira de
Deus no muito que as religiosas nos dias de En-
trudo se distrahiram ; pois quebrantando o silen-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 43

cio, a modestia, e as leis da Religião , se haviam


esquecido do seu culto, por honrarem n'esses
dias os idolos da gula.
Já, pois, o leitor vê quantas profanidades ,
quantos escandalos, quantas immoralidades havia
nos conventos .
Muitas das representações theatraes que se fa-
zia nos conventos, e em outros estabelecimentos ,
eram em latim. Por occasião da chegada a Por-
tugal de D. Marianna, princeza do Brazil, repre-
sentou a universidade d'Evora com o maximo
esplendor a tragicomedia Luiz e Stanislau 20 No
anno antecedente haviam os professores de Rhe-
torica representado publicamente no Real Colle-
gio das Artes em Coimbra a Concorde Discor-
dia ou a vida de S. Luiz Gonzaga e de S. Sta-
nislau Kostka . Em scena apparecem conjuncta-
mente as divindades pagas.
Porém os jesuitas 21 de Santo Antão em Lisboa.
deslumbraram os espectadores por occasião do

20 Impressa na typographia da Universidade d'Evora


em 1728.
21 Os jesuitas n'aquelle tempo, tanto em Portugal,
como nos paizes estrangeiros , eram os mais afamados
dansarinos. Na Bibliotheca dos Escriptores Jesuitas, por
Augustin e Alois de Backer, veem mencionados varios
bailados celebres, compostos por estes padres .
44 PORTUGAL

casamento de D. João V , representando o S.


Leopoldo austriaco, (impresso em Lisboa, em
1709) . Em 1729 por occasião do casamento de
D. José os jesuitas da mesma casa pozeram em
scena com o maximo esplendor a Lusitaniae
·augmentum victoria coronatum. Em 1739 o dra-
ma tragi-comico S. João Francisco Regis, no Col-
legio das Artes em Coimbra.

Curiosissima é porém a linguagem que se usa-


va nas representações populares, mesmo na pre-
sença das santas imagens. Para que o leitor a
aprecie, apresentamos - lhe os seguintes versos .
As palavras são copiadas d'um livro dado á luz
por um padre, e não só padre mas até mesmo
frade, fr. Francisco Rey de Abreu Matta Zefe-
rino 22. Trata-se d'uma representação dentro de
um templo na festa da Senhora do Cabo , e são
interlocutores: Maranhôa regateira, Carapóta re-
gateira, Periquita regateira, Folosa regateira,
uma atravessadeira, um taberneiro , um almota-
cé, um escrivão , um pinga malsim, um frangalho

22 Tomo III do Anatomico Jocoso, Lisboa, 1758.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 45

malsim, um basofio malsim, e um ferçura mal-


sim .
SAHEM A MARANHOA E A CARAPÓTA

MARANHOA: Quem quer quentes?


САВАРОТА: Quem te ha de
Estrear, que estão fervendo ?
MARACÓTA: Oives mulher? ainda é cedo :
Aqui na Migiricordia.
Entremos a ouvir Missa
CARAPÓTA: Ai ! mãe, não vês a rebôla,
E como vai delambida!
MARACÓTA: Deus a salye minha Antonia.
CARAPÓTA : E que bem se lhe dá ella
Do que succedeu á outra!
MARACÓTA : Quem? á irmã mais pequena
A Francisca?
САВАРОТА: Não; á torta.
MARACÓTA: Ai! mulher, ainda mal ,
O Crelguinho fez - lh'a boa!
A pobrezinha está prenhe?
CARAPÓTA: Ai ! traz a barriga á boca.
MARACÓTA: Não sei que te diga; vamos .
CARAPÓTA: Ouves minha Maranhoa,
Em ellas calçando meias ,
Sapatinhos d'uma sola,
E alpercata arreganhado,
Já tu sabes ...
MARACÓTA: Anda tonta:
Quem quer quentes ?
CARAPÓTA : Ha colherinhas fervendo.

ENTRAM, E SAHEM COMO NA IGREJA

MARACOTA: Ouves tu mulher não chega


Lá nenhum Crelgo á porta?
CARAPOTA: Não mana, não vejo Missa:
46 PORTUGAL

MARACOTA: Pois eu estou-me ralando,


Tomára já ir-me embora,
Que quanto é a Perequita,
Não ha de vender , má oxas !
CARAPOTA: Quer-nos tomar o logar?
Que graça!
MARACOTA: Pois á Falosa!
Trago - lhe boa vontade;
Digo, que se mette em boa.
CARAPOTA : Ella hontem deitou rengo;
Porén a renda da coifa
Em fim não te digo nada.
MARACOTA: Ouves tu ó Carapóta,
Perdoe Deus a sua mãe,
Que está na cabana posta,
E deixa andar sua filha
Sendo pélla dos patolas.
CARAPOTA: Bem está , se a deixa andar
A mãe! ai tona que tona!
Olha, tu sempre é bom ter
Na tenda fructa de mostra.
MARACOTA: Quem conheceu a Ribeira !
A Brites, que mocetona!
CARAPOTA: A das azeitonas?
MARACOTA: Sim
Aquillo só era honra !
Disse nma vez a um baeta ,
Que estava compra não compra ,
«Vá-se embora, não se metta
Meu Anjo nas azeitonas . >>
CARAPOTA: Ella não era casada?
MARACOTA: Não , teve (que a gente moça
Não repara) duas crianças.
CARAPOTA: De quem ?
MARACOTA : Do page:
Só aquillo era mulher.
CARAPOTA: Não teve ella aqui uma historia
De um moço, que lhe ia a casa?
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 47

MARACOTA: Sim , mas isso não fui cousa;


Só a pexa que lhe punham
Era aquillo de ser doida,
Mas o mais assim me faça
Deus ... isto hoje tudo é droga! ...

E em quanto ao resto , tudo no mesmo gosto .


E assim como hoje raro será o individuo que
não esteja filiado em algum partido, assim tam-
bem por aquelles tempos todos cs fidalgos , além
de pertencerem a muitas irmandades e confrarias
estavam filiados n'uma ordem religiosa.
Primeiramente o proprio D. João V, para ex-
pressar a grande devoção que tinha ao Padre S.
Domingos, quiz por sua mão assignar- se no livro
da Ordem por terceiro militar.
A princeza do Brazil D. Marianna Victoria,
as infantas D. Maria Anna e D. Maria Dorothea,
o infante D. Antonio , o infante D. Manuel , a
infanta D. Francisca , o cardeal patriarcha D. Tho-
maz de Almeida, o cardeal e inquisidor geral D.
Nuno da Cunha Athaide, todos receberam o ha-
bito da Ordem de S. Domingos , segundo diz o
escriptor dominicano Frei Antonio da Assump-
ção, na sua obra « Gloriosos trabalhos do Hercu-
les da Igreja, S. Domingos de Gusmão» , pu-
blicada em 1767 .
46 PORTUGAL

MARACOTA: Pois eu estou-me ralando,


Tomára já ir- me embora,
Que quanto é a Perequita,
Não ha de vender, má oxas !
CARAPOTA: Quer-nos tomar o logar?
Que graça!
MARACOTA: Pois á Falosa!
Trago-lhe boa vontade;
Digo, que se mette em boa.
CARAPOTA : Ella hontem deitou rengo;
Porém a renda da coifa ..
Em fim não te digo nada.
MARACOTA: Ouves tu ó Carapóta,
Perdoe Deus a sua mãe,
Que está na cabana posta,
E deixa andar sua filha
Sendo pélla dos patolas.
CARAPOTA : Bem está, se a deixa andar
A mãe! ai tona que tona!
Olha, tu sempre é bom ter
Na tenda fructa de mostra.
MARACOTA: Quem conheceu a Ribeira!
A Brites, que mocetona !
CARAPOTA: A das azeitonas?
MARACOTA: Sim
Aquillo só era honra!
Disse nma vez a um baeta ,
Que estava compra não compra,
«Vá-se embora, não se metta
Meu Anjo nas azeitonas . »>
CARAPOTA: Ella não era casada?
MARACOTA: Não , teve (que a gente moça
Não repara) duas crianças.
CARAPOTA: De quem?
MARACOTA: Do page :
Só aquillo era mulher.
CARAPOTA: Não teve ella aqui uma historia
De um moço, que lhe ia a casa?
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 47

MARACOTA: Sim, mas isso não fui cousa ;


Só a pexa que lhe punham
Era aquillo de ser doida,
Mas o mais assim me faça
Deus ... isto hoje tudo é droga! ...

+
E em quanto ao resto, tudo no mesmo gosto .
E assim como hoje raro será o individuo que
não esteja filiado em algum partido , assim tam-
bem por aquelles tempos todos os fidalgos , além
de pertencerem a muitas irmandades e confrarias.
estavam filiados n'uma ordem religiosa .
Primeiramente o proprio D. João V, para ex-
pressar a grande devoção que tinha ao Padre S.
Domingos, quiz por sua mào assignar- se no livro
da Ordem por terceiro militar.
A princeza do Brazil D. Marianna Victoria,
as infantas D. Maria Anna e D. Maria Dorothea,
o infante D. Antonio , o infante D. Manuel, a
infanta D. Francisca, o cardeal patriarcha D. Tho-
maz de Almeida, o cardeal e inquisidor geral D.
Nuno da Cunha Athaide, todos receberam o ha-
bito da Ordem de S. Domingos , segundo diz o
escriptor dominicano Frei Antonio da Assump-
ção, na sua obra « Gloriosos trabalhos do Hercu-
les da Igreja, S. Domingos de Gusmão » , pu-
blicada em 1767 .
48 PORTUGAL

E por não fazer catalogo da nobreza, (accrescenta o


mesmo escriptor) digo que as pessoas de maior distin-
cção do reino estão alistadas n'esta sagrada milicia : não
só n'esta Côrte, mas nas terras principaes de Portugal,
sempre o melhor é d'esta veneravel Ordem Terceira, co-
no se vê na cidade do Porto, Vianna, Guimarães, San-
tarem, Elvas, e na cidade da Bahia, para que até nos-
sas conquistas se vissem defendidas por tal milicia ....
V

Procurava-se porém remir todos os vicios á


força de esmolas aos frades e de estrondosas
festas ao Divino . De 1742 a 1744, nos 29 con-
ventos da Ordem de S. Francisco da provincia
de Portugal, receberam-se nas sachristias, esmo-
las no valor de 500:000 cruzados , além das que
se receberam em pão , azeite , vinho , etc. Isto foi
só nos conventos franciscanos da provincia de
Portugal, pois havia os da provincia do Algarve ,
da provincia da Conceição , da Piedade , da So-
ledade, da Arrabida etc.
Vejamos agora a eloquente estatistica dos pre-
sos sustentados pela Misericordia de Lisboa desde
o anno de 1707 em que D. João V foi accla-
4
50 PORTUGAL

mado rei em um sumptuoso theatro feito na


praça do palacio , servindo n'esta occasião de
condestavel o infante D. Francisco seu irmão 23.

Em 1708, 1273 presos, dos quaes 342 degredados e 7


enforcados; em 1710, 953 presos, dos quaes 321 degre-
dados e 7 enforcados ; em 1714, 1448 presos, dos quaes
165 degredados e 7 enforcados; em 1721 , 1987 presos,
dos quaes 384 degredados e 7 enforcados; em 1722, 1897
presos, dos quaes 348 degredados e 4 enforcados ; em
1723, 1127 presos , dos quaes 765 degredados e 3 enfor-
cados ; em 1724, 1887 presos , dos quaes 377 degredados
e 2 enforcados ; em 1727, 956 presos, dos quaes 289 de-
gredados e 6 enforcados ; em 1728, 956 presos, dos quaes
242 degredados e 2 enforcados; em 1729, 987 presos , dos
quacs 255 degredados e 3 enforcados; em 1731 , 1122 pre-
sos, dos quaes 405 degredados e 5 enforcados ; em 1735,
1202 presos, dos quaes 331 degredados e 4 enforcados ;
em 1736, 985 presos, dos quaes 155 degredados e 9 en-
forcados, em 1741 , 2140 presos , dos quaes 185 degreda-
dos e 12 enforcados ; em 1742, 2140 presos , dos quaes 185
degredados e 12 enforcados , relaxados 10.

Tomando- se em conta que no anno de 1743 a


Misericordia de Lisboa dispendeu 1 : 0795505 com
os vestidos dos degredados e de dois enforcados ,
e que n'esta estatistica não estão incluidos os
presos da inquisição , vê-se perfeitamente que era
quasi nulla a efficacia dos milhões de missas e de

23 RIBEIRO GUIMARÃES , Summario de varia Historia ,


vol. III, pag. 129.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 51

sermões e a leitura de novenas , livros mysticos


e vidas de santos , a que toda a gente se dava. 24
Mas que outro resultado se poderia esperar se
as obras não condiziam com as palavras!
Entretanto o que póde servir de attenuante a
tudo isto é que o mesmo succedia lá por fóra :

«Os costumes d'aquelles tempos eram taes na Europa


que as mais virtuosas escrtavain mesmo sobre o theatro
do Vaticano, nas festas publicas e nas representações dos
mysterios na Inglaterra, algumas cousas que as mulhe-
res menos castas se envergonhariam d'ouvir hoje. Os
maiores exemplos de corrupção não só nos costumes, mas
tambem nos habitos são offerecidos pela côrte de Carlos II
de Inglaterra. Para nos convencermos d'este facto, basta
que nos lembremos que este rei ia commungar com cinco
ou seis de seus filhos naturaes (todos duques, e que ti-
véra de diversas mães todas infames) presentes á ceri-
monia. (Lady Morgan, L'Italie, vol. II. )

E pelas cartas do celebre bispo Mr. Flechier,


e pela sua Relação dos Fanaticos, sabemos que
por estes tempos as coisas corriam na França
pouco mais ou menos como em Portugal. A de-
vassidão de Luiz XIV, de todos é conheci e
ninguem ha que desconheça seus amores com
M.me de Maintenon e com varias outras!

24 Chegando o proprio monarcha a mandar imprimir


uma luxuosissima edição da Vida de S. Vicente de Paula,
em Lisboa no anno de 1738, in-folio maximo.
52 PORTUGAL

A familia real passava o seu tempo em festas


religiosas . Para prova transcrevêmos os seguintes
trechos de jornaes da epocha . Da Gazeta An-
nual :

«No dia 1 de janeiro do anno de 1717 visitou


a Rainha N. Senhora a Casa do Noviciado da
Companhia de Jesus com as Serenissimas Infan-
tes D. Maria e D. Francisca, e depois de faze-
rem oração na Igreja passaram á Capella inte-
rior do mesmo noviciado, para ver o presepio
dos noviços , onde um d'elles fez na sua Real
presença um devoto colloquio ao Menino Deus
nascido ; e depois passou ao cubiculo do Reve-
rendo Padre Antonio Stieff, seu confessor, aonde
The tinha sido antecipadamente preparado um
aceado pucaro de agua. »

« El-Rei Nosso Senhor nomeou para conegos


da Sé Patriarchal a Christoval de Mello , prior
de Bucellas ; e a D. Francisco de Menezes, filho
de D. Antonio de Menezes . »

Publicava- se então a Gazeta de Noticias de


sete em sete dias , e como um subsidio para a
historia do viver de Lisboa n'aquella época , va-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 53

mos apresentar ao leitor um ligeiro extracto do


que encontramos de mais caracteristico nos ou-
tros numeros da Gazeta d'esse anno :
« No hospital das creanças expostas entraram
n'este anno de 1716, que ultimamente acabou,
pela roda e porta da casa d'elle 723 crianças ,
que com 708 que já por sua ordem se creavam ,
fazem o numero de 1431 , das quaes falleceram
479.»

Os lentes e mestres de Coimbra fazendo claus-


tro pleno com o seu reitor em 9 de janeiro d'este
anno protestaram e juraram defender a Bulla
Unigenitus e todas as mais de S. Santidade con-
tra quaesquer objecções, e de assim o mandarem
assegurar por escripto á Curia Romana ( Gazeta
de 21 de janeiro).
«A rainha e as infantas visitaram sabbado pas-
sado em publico , e com toda a comitiva, a egreja
das Necessidades , e segunda feira visitaram a
Egreja parochial de S. Paulo em que se cele-
brava a festa da conversão d'este glorioso apos-
tolo. » (Gazeta de 28 de janeiro . )

« Suas magestades e altezas , na quarta feira de
Cinza, depois de acabadas as funcções da Egreja,
viram de tarde da janella do palacio passar a
54 PORTUGAL

procissão dos Terceiros de S. Francisco . (Gazeta


de 11 de fevereiro )
«No sabbado passado fez o senhor D. Thomaz
d'Almeida, patriarcha de, Lisboa, a sua entrada
publica, o que se executou com grande pompa
muita solemnidade. » (Gazeta de 18 de fevereiro . )
«S. M. que Deus guarde logra boa disposição ,
e sexta feira passada viu a procissão da Irman-
dade dos Passos , do palacio do Em.mo sr. car-
deal da Cunha, com a Rainha e Suas Altezas .
(Gazeta de 25 de fevereiro .)
« O sr. patriarcha de Lisboa Occidental atten-
dendo muito ao augmento do culto divino , e aos
efficazes rogos dos religiosos da Ordem de S. João
de Deus, como tambem aos grandes merecimen-
tos d'aquelle glorioso Santo portuguez, houve por
bem mandar que todos os moradores da parochia
de Santos, em que está sito o convento de sua
Ordem, sob pena de obediencia venerem e guar-
dem como dia festivo ao santo o dia 8 de março
em que a Egreja Catholica celebra a festa do
mesmo Santo, abstendo-se de todas as operações
de trabalho . » ( Idem. )

«O patriarcha de Lisboa Occidental deu prin-


cipio na 2.ª feira á visita da sua Diocese na mes-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 55

ma Sé e parochia patriarchal, onde terça feira


crismou a muitas pessoas , fazendo tudo na fórma
do Cerimonial Romano . Hoje continuará o mes-
mo na Igreja de S. Nicolau. Na mesma 2.ª feira
fez a Academia dos Illustrados com grande ma-
gnificencia a leitura do Certame, que propoz em
applauso da erecção da nova Sé Patriarchal, na
presença de uma grande multidão de nobreza, e
de curiosos, sendo juizes das obras dos academi-
cos , os marquezes de Valença , Alegrete e o condo
da Ericeira . »
«A Rainha N. S. foi na 2.ªa feira a Beiem, e
na terça feira visitou todo o convento das reli-
giosas carmelitas descalças da Conceição dos Car-
daes . Hontem principiou a novena de S. Fran-
cisco Xavier, na Casa professa de S. Roque dos
Padres da Companhia . » ( Gazeta de 4 de março . )
«A Rainha N. S. continua na Igreja de S. Ro-
que a novena de S. Francisco Xavier . » (IDEM 11
de março . )
« A Rainha N. S. acabou a novena de S. Fran-
cisco Xavier, e commungou publicamente no dia
da sua festa, na capella mór da Igreja de S. Ro-
. que com a sua familia, e no sabbado visitou a
imagem de N. S.ª das Necessidades . » (IDEM 18
de março .
56 PORTUGAL

« El- Rei nosso Senhor se acha tão restabeleci-


do da sua queixa que poude fazer a devoção de
lavar os pés a 12 pobres quinta feira santa ; e os
senhores infantes fizeram a funcção de adminis-
trar-lhes os pratos da mesa . A Rainha N. S. tam-
bem fez o mesmo a 12 mulheres pobres . Sabbado
esteve na Igreja de N. S. das Necessidades , e
terça feira no convento de S. Bento dos Loyos
em Xabregas . » ( IDEM 1 de abril . )
«A Rainha N. S. continua todos os dias nas
suas devoções : sexta feira esteve na Egreja paro-
chial da Encarnação , onde se celebrou a festa de
S. Francisco de Paula . Sabbado na da Senhora
das Necessidades . Domingo no convento da Con-
ceição de Marvilla , de religiosas Augustinhas des-
calças . Segunda feira no de S. Bento da Saude,
e terça feira na mesma Egreja da Encarnação >»
(IDEM 8 de abril . )
«Em Coimbra se imprimiram as cartas que o
Reitor d'aquella Universidade e toda a faculdade
de Theologia escreveram a S. Santidade sobre a
Constituição Apostolica Unigenitus com o Sensus
da mesma faculdade, e a forma de juramento que
toda a Universidade tomou de se sujeitar á dita
Constituição, e ter por condemnadas as proposi-
ções que n'ella se contém, no mesmo sentido em
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 57

que ellas o foram por S. S. Assignaram este jura-


mento não só o mesmo Reitor, e todos os lentes
da Universidade, mas todos os reitores e lentes
dos 16 Collegios d'aquella Cidade , sendo por todos
84 doutores em Theologia, 12 em Direito Cano-
nico, 10 em Direito Civil , 7 em Medicina , e outros
varios consultores e deputados da mesma Univer-
sidade. » IDEM 6 de maio . (Queira o leitor repa-
rar n'estes algarismos que são eloquentes . )
« El-Rei N. S. veiu sabbado de Pedrouços para
esta cidade, onde assistiu aos dias de festa, e ter-
ça feira de tarde se tornou a recolher a Pedrou-
ços . A Ranha N. S. visitou sabbado a imagem
de N. Senhora da Luz, e no domingo de tarde a
Egreja do Corpo Santo , acompanhada da Senhora
Infanta D. Maria. » (IDEM 20 de abril . )
«El-Rei nosso Senhor veiu sabbado de Pedrou-

ços, e assistiu na sua real capella, onde o patriar-


cha, sen capellão-mór, fez a funcção de dar ordens
a varios ecclesiasticos , o que se executou com
toda a magnificencia, segundo o cerimonial ro
mano . A Rainha N. S. visitou na sexta feira a
Egreja de N. S. da Graça ; no sabbado a de S.
Roque , onde se festejava solemnemente a memo-
ria de S.ta Quiteria , acompanhada das Sr.as Infan-
tas D. Maria e D. Francisca ; e no Domingo viis-
58 PORTUGAL

taram tambem a Egreja da Santissima Trindade .


« Sua Magestade como grão- mestre da Ordem
de Christo, fez terça feira a funcção de armar
cavalleiro na capella do palacio de Pedrouços ao
sr . Infante D. Antonio, a quem logo lançou o
habito da Ordem de Christo o Reverendissimo P.
fr. Fernando de Moraes, dom prior geral d'ella,
em cujas mãos S. A. fez profissão na fórma do
definitorio da mesma Ordem, estando o dito pre-
lado sentado junto ao altar-mór , vestido pontifi-
calmente com capa de asperges, mitra e bago ;
assistiu o senhor infante D. Francisco , que n'este
dia cumpria annos, por cuja razão foi mais fes-
tiva esta solemnidade, a que concorreram os du-
ques , marquezes , condes e mais nobreza da Côrte,
vestidos de gala.
«Por cartas de Roma se tem noticia de haver
apresentado a Sua Santid de o marquez de Fon-
tes, embaixador d'este reino , a declaração da
Universidade de Coimbra sobre a Bulla Unigeni-
tus, e havel-a Sua Santidade recebido com espe-
ciaes demonstrações de gosto , louvando o zelo , e
piedosa resolução com que esta Universidade es-
pontaneamente tomou o dito assento ; admirando
tambem o numero dos doutores, que n'ella assi-
gnaram, sendo que deixaram de o fazer muitos,
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 59

que por ausentes não foram convocados , além dos


doutores canonistas e das mais faculdades, de que
não foram chamados mais que os lentes, deputa-
dos e conselheiros . » (IDEM , 27 de maio. )
« Sabbado passado foram a Rainha N. S. e as
Sr.as Infantas jantar a Pedrouços , com Sua Mages-
tade, e domingo vêr o real Convento da Madre de
Deus , onde tomou habito uma criada sua, condu-
zida pela marqueza de Santa Cruz , aia de Suas
Altezas . » (IDEM 1 de julho . )
«A Rainha N. S. continuando a sua novena das
imagens milagrosas d'esta Cidade, visitou no do-
mingo de tarde a de N. S. da Lembrança na
Igreja do Convento de N. S.ª de Jesus nos Car-
daes, onde tambem se celebrava a festa da Rainha
S.ta Izabel de Portugal . » ( IDEM 8 de julho . )
«Sua Magestade que Deus guarde assistiu dia
de Santo Ignacio de Loyola na Casa Professa dos
Padres da Companhia, onde se celebrou com
grande solemnidade a commemoração do falleci-
mento d'este glorioso Patriarcha, celebrando pon-
tificalmente na sua Igreja o Sr. Patriarcha de
Lisboa Occidental D. Thomaz de Almeida , assis-
tido do seu Cabido . A Igreja se armou com aquella
magnificencia que deixou recommendada a Sere-
nissima Rainha da Grã -Bretanha , com legado es-
60 PORTUGAL

pecial para esta despeza. El- Rei N. S. viu de


uma tribuná toda a solemnidade d'este acto , e fez
aos Religiosos a honra de comer n'este dia no seu
convento . O infante D. Francisco se diverte na
sua quinta de Queluz . » ( IDEM 5 de agosto . )
«A Rainha N. Sr.ª acompanhada da Serenis-
sima Senhora Infanta D. Francisca, foi terça fei-
ra passada á Egreja de S. Roque em publico , a
offerecer ao glorioso Santo Ignacio o novo In-
fante . » (IDEM 2 de setembro).
«El- Rei nosso Senhor esteve a semana passa-
da na villa de Cintra d'onde passou á de Mafra
a vêr um sitio para um convento de Capuchos
Arrabidos que alli quer fundar. Tem- se feito pre-
ces publicas em todos os conventos e egrejas de
esta cidade para implorar o bom successo das
armas Christas na Hungria contra os Infieis . >>
(IDEM 19 de setembro) .
« Quarta feira fez-se uma Procissão solemne
desde a Santa Egreja Patriarchal até á de S. Ro-
que, em acção de graças do bom successo da
Rainha N. S. no nascimento do Infante D. Pe-
dro, e concorreram n'ella todas as religiões e clero
de Lisboa Occidental, e se fez tudo com muita
solemnidade e magnificencia .
«Suas Magestades continuam na assistencia de

1
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 61

Pedrouços , d'onde vieram quinta feira da sema-


na passada, e hontem, a vêr o combate de tou-
ros, com que a Camara d'esta cidade festeja
ao glorioso S.to Antonio seu natural e padroeiro,
assistindo publicamente a este acto na magnifica
tribuna que ha destinada para similhantes func-
ções com toda a familia real . » (IDEM 23 de se-
tembro).
« Suas Magestades vieram de Pedrouços a es-
ta cidade sexta e segunda feira, e viram da sua
real varanda o divertimento dos combates de tou-
ros a pé e a cavallo , com assistencia de Suas Al-
tezas . Os Serenissimos Senhores Infantes D. Fran-
cisco e D. Antonio partiram para o Alemtejo a
divertir-se em uma partida de caça nas coutadas
de Moura e Serpa. Aos moradores de Mourão
fez El- Rei N. S. mercê conceder licença para
que os padres da Congregação de N. Sr. а das
Necessidades de Tomina , pudessem habitar uma
egreja sita no termo d'aquella villa, que já foi
de Religiosos descalços de Santo Agostinho , com
declaração que o numero d'estes não poderá ex-
ceder nunca de doze . » ( IDEM 30 de setembro . )
« Suas Magestades continuam a sua assisten-
cia em Pedrouços, e hontem vieram a Lisboa
vêr o quinto combate de touros , que a Irman-
62 PORTUGAL

dade de N. Sr.ª da Piedade do termo de Alma-


da fez em obsequio da mesma Imagem, e foi o
mantenedor o coronel de cavallaria D. Henri-
que Henriques de Almeida. » (IDEM 7 de outu-
bro).
« O Principe N. Senhor padeceu a semana pas-
sada alguma queixa , a que se applicou o reme-
dio das sangrias, mas ao presente se acha com
muita melhoria . A Rainha N. S.ª veiu de Pedrou-
ços para lhe assis : ir; e terça feira visitou a Egre-
ja de S. Pedro de Alcantara, onde se celebrou
com toda a solemnidade a festa do mesmo Santo . >>
(IDEM 21 de outubro).
« Domingo se celebrou na Egreja de S. Domin-
gos d'esta cidade o Auto de Fé em que se le-
ram as sentenças a quarenta e duas pessoas,
convencidas de varios crimes , e foram relaxados
ao braço secular um homem pertinaz em pro-
posições hereticas , e uma mulher convicta nega-
tiva e pertinaz em Judaismo . » ( IDEM 28 de ou-
tubro).
« El- Rei N. S. partiu domingo para Mafra a
lançar a primeira pedra do templo e convento
que quer edificar n'aquelle sitio para os religio-
sos capuchos da provincia da Arrabida . » ( IDEM 18
de novembro) .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 63

« Sua Magestade que Deus Guarde , foi á villa


de Mafra em 14 d'este mez assistir á benção que
em 17 do mesmo fez o Senhor l'atriarcha, de
benzer, e pôr a primeira pedra nos alicerces da
Egreja de Santo Antonio, que o mesmo Senhor
mandou edificar junto á dita villa, e esta funcção
se executou com grande magnificencia e luzi-
mento. >>
«Quarta feira 24 do corrente veiu a Rainha
N. S com a Senhora Infante D. Francisca , de
Pedrouços jantar ao palacio, e de tarde foi ao
convento da Madre de Deus , da primeira regra
da Ordem de S. Francisco, no qual no domingo
antecedente, dia de N. Senhora da Apresentação,
tinha entrado a tomar o habito a senhora D.
Luiza do Pilar, sua dama , e filha dos senhor es
condes de Assumar, a qual tendo seus paes ajus-
tado o seu casamento, tomou a heroica resolução
de deixar todas as grandezas e conveniencias do
mundo, e dedicar-se sómente a servir a Deus
n'aquelle santuario , movida de uma rara voca-
ção, que tem edificado toda esta côrte , por ser
uma senhora das mais bem dotadas da nobreza e
da fortuna. Sua magestade lhe fez mercê dos des-
pachos que se costumam dar ás damas , para seu
irmão D. Pedro de Almeida , que se acha gover-
64 PORTUGAL

nando as Minas ; e tambem do titulo de conde de


Assumar para desde logo poder usar d'elle . » ( ID .
25 de novembro) .
« A Rainha N. S. acompanhada da serenissima
Infanta D. Francisca, com o seu cortejo de da-
mas e officiaes da casa , assistiu dia de S. Fran-
cisco Xavier na casa professa dos padres da com-
panhia de Jesus , onde se confessaram e recebe-
ram devotamente a sagrada communhão pela
mão do reverendo Padre Antonio Stieff, da
mesma companhia, seu confessor, e ouviram a
missa que celebrou pontificalmente o ill.mo dr.
João da Matta e da Silva, conego da egreja
patriarchal. Sabbado visitou a imagem de Nossa
Senhora das Necessidades, d'onde ao recolher-
se entrou a fazer oração na egreja de Nossa
Senhora do Loreto da nação italiana, onde
estava o Lausperenne . » ( IDEM 9 de dezem-
· bro ) .
A 13 foi a Rainha N. S. ao convento de N. S.
do Bom Successo, das religiosas irlandezas da
ordem de S. Domingos , com as Infantas D. Maria
e D. Francisca e acompanhamento de damas ẹ
cavalheiros da sua côrte, assistir á profissão de
uma religiosa da mesma nação , que com todas
as outras beijou a mão a sua magestade e alte-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 65

zas pela honra que lhe fizeram ao seu mosteiro . »


(ID. 16 de dezembro) .
Eis aqui quasi todas as noticias que a Gazeta
de Lisboa nos dá das occorrencias do paiz no es-
paço de um anno .
As poucas que não mencionei são relativas
á entrada e sahida de navios, á construcção de
alguma embarcação de guerra, a algum incendio
notavel, á nomeação de algum titular, a alguma
batalha em que os portuguezes tivessem entrado ,
e á sessão de alguma academia , mas tudo em
mui curtas palavras .
Encontram-se tambem alguns annuncios curio-
SOS :

« Faz-se aviso a toda a pessoa curiosa que qui-


zer divertir-se com ver executar differentes ha-
bilidades, ligeirezas de mãos e extraordinarias
posturas do corpo , pódem acudir á rua dos
Odreiros das tres horas da tarde em diante ; e
assim mais se faz presente, que havendo alguns
cavalheiros ou outras pessoas particulares , que
quizerem, vão a suas casas fazer as ditas habili-
dades ; mandando-lhe carruagem irão servir os
ditos senhores.
« D. Balthazar Gisbert, chimico valenciano , que
5
66 PORTUGAL

móra ao Arco dos Sete Cotovellos , em casa de D.


Manuel Gonçalves de Mendonça, adverte que ás
pessoas que se acharem enfermas de humor gal-
lico de qualquer das quatro especies , e lhe qui-
zerem applicar remédio, lhes dará um efficacissimo
com methodo suave, em que no espaço de 18
dias , 9 para tomar medicamentos, e 9 para elles
fazerem a sua operação , se acharão effectivamente
livres
«Na rua da Oliveira, do bairro das Olarias , em
casa de Jacques de Uffon, defronte da mesma
oliveira que dá o nome á rua, se applica um re-
medio particular de estufas , na mesma fórma que
em Inglaterra e em França, para todas as pessoas
que se acharem indispostas de estupores , rheu-
matismos , gotta, sciatica , retracção de nervos ,
procedida de feridas ou de fracturas , e tambem
para os indispostos por causa de lhes ticar no cor-
po o azougue que se lhes tirará . »
« Na madrugada de terça feira 13 do corrente
fugiram do convento de Santa Clara de Santarem
uma preta e uma mulatinha, deixando roubadas
as suas senhoras em muita roupa e prata de uso ;
e se suppõe vieram com uns pretos para esta
côrte. Quem tiver noticia d'elles ou d'ellas , se lhe
pede que queira segural-os , e dar parte ao P.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 67

porteiro de S. Francisco da Cidade, ou em San-


tarem ás religiosas do dito convento, e se lhe pa-
garão os gastos e darão alviçaras . E todo o ouri-
ves ou qualquer pessoa a quem se vier vender
prata ou roupa suspeita, se lhe pede a queira se-
gurar até se averiguar, aliás se ha de tirar carta
de excommunhão . »
«Falta um brinco de orelha, que tem por bo-
tão um diamante rosa, no meio um laço com tres
diamantes, e em baixo uma amendoa , ou pin-
gente, com um diamante grande cercado com
dez diamantes : entende- se que empenharia este
brinco um criado do almirante de Portugal, cha-
mado Martinho Ribeiro ou o corretor Bernardo
Lopes, ou outra pessoa ; quem o tiver empenhado
póde ir a casa do porteiro-mór procurar pelo pa-
dre Domingos Pereira, que este tem ordem para
dar a importancia do empenho e seus juros , e
quando não appareça , quer seu dono tirar carta
de excommunhão . »
« Do Senhor de Bayão empenhou Duarte da
Silva corretor , uma fivella de diamantes e umas
arrecadas de diamantes e esmeraldas de consi-
deravel valor, e por se não lembrar aonde fez o
dito empenho , pede a quem tiver as ditas peças
lhe queira declarar, para se lhe pagar o seu prin-
68 PORTUGAL

cipal e seus juros vencidos , e de mais lhe dará


suas alviçaras , e senão se quer tirar carta de
excommunhão . »

Fallêmos agora das magnifice


ntes canonisações
festejadas em Lisboa .
Em 1738 celebrou - se n'esta cidade a festa da
Canonisação de S. Vicente de Paula, « na qual
ostentou Sua Magestade (diz o auctor da Vida
do Santo , impressa em Lisboa no anno de 1779)
em toda a sua magnificencia, a sua piedade e a
sua devoção. Mandou fazer a todo o custo a
Igreja, quanto soffria a brevidade do tempo .
A armação foi a coisa mais rica que se viu, as-
sim como os cortinados, as franjas, as pinturas ,
os cristaes. Tudo era do mais precioso . Princi-
piou esta festividade a 18 de julho , e durou todo
o oitavario, havendo festa e sermão em cada dia.
Sua Magestade e a Familia Real todos os dias
assistiram á festa, estando de manhã até perto
da noite, rogando ao rei dos reis que pela inter-
cessão de S. Vicente de Paula sempre lhes fosse
propicio.
No fim da festa ao sair da portaria, o padre
Jofreu beijou a mão a El- Rei , e lhe rendeu as
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 69

graças por tantos beneficios e honras : então Sua


Magestade, passando de bemfeitor a constituir se
pae da Congregação , removeu todos os obstacu-
los , e deu licença para a fundação .
Logo mandou vir de Italia, França e Catalu-
nha sacerdotes que ensinassem os novos alumnos
portuguezes . Determinou o numero de quarenta
sujeitos , para os quaes assignou rendas, e com-
prou terras contiguas para fazer maior cerca e
mais accommodada . Mandou fazer um risco para
um magnifico edificio ; mas não se effeituou a
obra pela repugnancia dos padres , que amavam
a humildade , e principalmente porque n'esse
tempo foi Sua Magestade assaltado d'aquella ter-
rivel enfermidade, que finalmente lhe tirou a
preciosa vida ; mas comtudo mandou fazer um
grande corredor para n'elle recolher os ordinan-
dos e exercitantes .
Em quanto ao espiritual mandou fazer uma
traducção da vida de S. Vicente 25, e uma ex-
cellente edição d'ella, e tambem mandou fazer
duas edições das Regras da Congregação , uma
em quarto, outra em oitavo . Quando os missio-

25 Á qual já nos referimos na nota 24 .


70 PORTUGAL

narios no anno de 1744 fizeram a primeira mis-


são em Santo Antonio do Tojal , o zelosissimo
Principe mandou celebrar muitas missas pelo seu
bom exito . Tão affeiçoado estava ao Instituto ,
para que se estendesse pelo Reino , que, quando
o Serenissimo Senhor D. José lhe foi beijar a
mão para recolher-se ao seu arcebispado de Bra-
ga, lhe recommendou fundasse lá uma casa da
Missão . Finalmente admira a sua pura intenção ;
pois sendo fundador, e dotador, só de Deus quiz
o premio, porque nem a minima obrigação ou
encargos deixou á Casa.
«A Congregação, para perpetua memoria de
seu amantissimo Pae , não satisfeita com as so-
lemnissimas exequias , que lhe fez, instituiu um
anniversario solemne no dia do seu transito . E
na Casa de S. Lazaro em Pariz , cabeça da Con-
gregação da Missão , está collocado o retrato do
augustissimo monarcha , junto ao do santo patri-
archa Vicente de Paula para perpetuo monumento
e padrão do agradecimento que lhe conserva a
Congregação da Missão . »

« O Oitavario com que a Casa Professa da


Companhia de Jesus de S. Roque solemnisou a
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 71

Canonisação de S. João Francisco Regis, religio-


so professo da mesma Companhia foi um dos
mais celebres que viu a Côrte de Lisboa .
«O augustissimo Rei e Senhor D. João Vo
Pio , o Forte, o Magnanimo, acompanhado do
Principe do Brazil , os Senhores Infantes D. Pe-
dro , e D. Antonio, em todos os oito dias, desde
pela manhã até á noite, encheram com sua sobe-
rana assistencia aquelle Templo e Casa de glo-
ria, a qual quiz em repetidos dias augmentar a '
Augustissima Rainha Senhora Nossa com toda a
Real Comitiva de suas Damas . O Reverendis-
simo Senhor Patriarcha com seu cabido patriar-
chal abriu a porta a toda esta Sagrada Felicida-
de . Concorreram as Sagradas Familias a fazer - se
parciaes nos augmentos da Companhia de Jesus ,
querendo com sua assistencia religiosissima for-
mar ao novo Santo o maior triumpho , e á Mãe ,
de quem era Filho, immortalisar a gloria.
« Chegada, pois a noite coroôu-se de luminarias
o Templo de S. Roque, e cingiu- se d'ellas a casa
toda . As varandas , que cercam o telhado da
Igreja, se ornaram com muitas ordens de luzes ,
variadas em côres differentes , e brilhantes mati-
zes, que puzeram em duvida se era mais bella a
formosura do dia . Nos dois quadros em que ter-
72 PORTUGAL

minam estas varandas , um da parte do relogio,


outro da parte da torre dos sinos , se levantaram
dois corpos pyramidaes que faziam vestidos de
luzes uma rara apparencia . Viam - se pelas mes-
mas varandas a espaços , globos , pyramides e co-
rôas de luminarias, que ficando mais elevadas que
as fileiras de luzes , que corriam mais baixas, for-
mavam um ornato igualmente artificioso e visto-
sissimo.
O frontispicio da Igreja, e suas janellas deram
com a sua vista das muitas luzes, pinturas illu-
minadas , e quartelas graciosissimas , summa re-
creação aos olhos de muita gente, que concorria
áquella praça ou largo , que toma o nome de S.
Roque, cujos visinhos em roda assim illuminaram
suas galerias, como se a festa fosse muito sua :
coisa com que a Companhia de Jesus a todas as
luzes agradecida, se reconhece devedora.
«Acompanharam a S. Roque muitos Conventos ,
e casas particulares da Cidade, assim ao perto,
como ao longe . O religiosissimo Convento da San-
tissima Trindade, não só visinho , mas intimo ,
além das luzes com que todo se revestiu , deu
uma das mais alegres vistas na sua torre ; por-
que adornando-se esta, e augmentando-a com a
nova obra sobre si mesma, deu na variedade das
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 73

côres, e engenhosa disposição das luminarias uma


das mais jocundas apparencias, que se admira-
ram n'esta celebração .
a
O gravissimo Convento de N. S.ª da Graça dos
Reverendissimos Padres de Santo Agostinho, su-
biu n'esta occasião ao maior excesso. Em ne-
nhuma narração cabe , nenhuma ponderação che-
ga a dar a conhecer o disvelo , a industria, a ar-
tificiosa disposição com que se viram d'alli com-
petidas n'aquellas noites as estrellas : não é es-
tranha toda a exuberancia da luz aos filhos ge-
nuinos da maior aguia 26. »

Outros sumptuosissimos festejos foram os da


canonisação de S. Camillo de Lellis, fundador
dos Clerigos Regulares ministros dos enfermos.
Vejamos como os descreve uma publicação da
epocha 27.

26 Voz em Roma e echo em Lisboa, na canonisação


de S. João Francisco Regis,» Lisboa, 1739.
27 « Relação das magnificas festas com que na cidade
de Lisboa foi applaudida a canonisação de S. Camillo
de Lellis, fundador da congregação dos clerigos regula-
res ministros dos enfermos . » Lisboa, 1747.
74 PORTUGAL

« Divulgada pela Europa a canonisação de S.


Camillo , a festejaram com a devida pompa em
todas as cidades em que tinham fundações os
filhos do seu Instituto e como por este principio
não tivesse o Santo quem n'este reino de Portu-
gal lhe applaudisse a nova honra da canonisa-
ção ; para que n'elle não ficasse privado da gran-
de gloria, que no céo recebia com similhantes
obsequios, ordenou a grande piedade e real gran-
deza do nosso Augustissimo Rei e Senhor D.
João V se celebrasse n'esta cidade de Lisboa um
festivo Oitavario em applauso da canonisação
do mesmo Santo : como já por similhante mo-
tivo tinha mandado celebrar no anno de 1727
com grande magnificencia dois festivos Oitavarios
na egreja do collegio de Santo Antão dos Padres
da Companhia de Jesus, em obsequio das cano-
nisações de S. Toribio Mogrovejo , arcebispo de
Lima no Peru , e de S. Peregrino Lazziosi da
sagrada ordem dos Servos de Maria , celebradas
pelo papa Benedicto XIII no anno de 1726 .
Para celebrar a canonisação de S. Camillo de
Lellis elegeu à Igreja do hospital real de Todos
os Santos .
E para este fim se mandou adornar com as
mais preciosas alfaias e tapeçarias do real the-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 75

souro. Adornada a egreja chegou finalmente a


tarde do dia 17 de junho do anno de 1747 , em
que se devia dar principio a esta augusta solem-
nidade, cantando- se as primeiras vesperas .
Abertas as portas da egreja á hora competente,
concorreu innumeravel multidão de pessoas de
todas as jerarchias , ás quaes se distribuiram os
logares conforme a ordem, e para impedir toda
a perturbação que podia causar o grande con-
curso , e fazer observar a boa ordem em tudo , se
tinham mandado pôr soldados com baionetas nas
armas, em todas as portas , assim da egreja, e da
trincheira por onde se entrava para a escada,
como nas mais portas interiores do hospital,
dentro na egreja na entrada da Quadratura e
mais divisões, que n'ella se tinham praticado .
Preparado assim tudo o necessario , e accesas
as muitas vellas que ardiam no throno, altares ,
lampadarios e tocheiros, e que fazendo brilhar o
ouro e prata de que abundava a egreja, forma-
vam o mais agradavel e magestoso espectaculo,
entrou por uma das portas principaes da egreja
a communidade dos religiosos eremitas do insigne
habitador dos desertos de S. Paulo , e depois de
fazerem devota oração ao Sacramento da Eucha-
ristia, passaram á sachristia , onde se paramenta-
76 PORTUGAL

ram riquissimamente o prelado e mais ministros


que deviam officiar as vesperas, e tornando para
a egreja, postos na Quadratura, entoou o mesmo
prelado o principio das vesperas , cujos psalmos
e hymno foram cantados no coro por uma harmo-
niosa e sonora musica composta das melhores
vozes portuguezas e italianas, e diversas castas
de instrumentos , como orgào , rebecas , rebecões ,.
clarins, oboés , timbales , flautas, tocados todos
pelos mais insignes professores , que executando
com o maior acerto e sciencia os harmoniosos
preceitos d'esta agradavel arte , juntamente delei-
tavam os sentidos, e arrebatavam os espiritos na
consideração dos ineffaveis gostos , que na egreja
triumphante gosava a bemditissima alma do santo ,
a quem na militante se dedicavam aquelles re-
verentes e alegres cultos. Acabadas as vesperas
se começou a preparar a magnifica illuminação
de toda a face exterior da egreja, que formou
n'aquella noite e nas seguintes do Oitavario , o
assombro da cidade inteira.
«No palacio dos Estaos , onde habitava o car-
deal da Cunha, assistiram á gloriosa solemni-
dade que n'esta tarde se celebrou , el-rei nosso
senhor, e a rainha nossa senhora com toda a
mais familia real. Para maior pompa e para con-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 77

ter no devido respeito o grande concurso, se man-


daram vir dois regimentos de infanteria, e dois
de cavallaria ; dos quaes os de infanteria se for-
maram em duas alas, bordando as ruas por onde
havia de passar o triumpho, começando da fron-
taria da egreja ; e um dos dois de cavallaria se
formou defronte do convento de S. Domingos , e
outro da parte opposta. Estava o pavimento da
praça e ruas coberto de areia e sobre ella muitas
flores que formavam uma vistosa alcatifa.
<< Feitos estes preparativos , e juntas todas as
communidades religiosas que successivamente ti-
nham celebrado os dias do Oitavario, officiou em
pontifical as segundas vesperas o excellentissimo
arcebispo de Lacedemonia com assistencia da sua
illustrissima confraria ; e acabadas as vesperas

entoou o hymno Te- Deum Laudamus, que cantou


no coreto a musica ; concluido o qual se deu
principio á procissão , que se formou do modo
seguinte :
Iam deante dois pares de timbales, e nove cla-
rins tocados pelos trombetas e timbaleiros reaes ,
que levavam vestidas as suas fardaş ricas cober-
tas todas de galões de ouro . Seguia-se logo um
rico pendão de tela de prata, guarnecido de ga-
lões e franjas de ouro, e no meio primorosamente
78 PORTUGAL

bordado um escudo com as armas da religião de


S. Camillo . Levava este pendão o reverendo
padre Francisco Mafer, clerigo regular, ministro
dos enfermos da provincia de Milào, que se achava
n'esta côrte. l'egavam nos quatro cordões do pen-
dão os excellentissimos marquezes de Angeja e
Gouveia, e os excellentissimos condes de Athou-
guia e Taronca . Depois vinham as sete commu-
nidades religiosas com as suas cruzes, pela mesma
ordem com que tinham celebrado os dias da fes-
tividade, levando todos tochas accesas, que se
lhes distribuiram na egreja : e em ultimo logar a
illustrissima confraria dos sacerdotes seculares,
depois da qual se ouvia uma bem ajustada mu-
sica , que cantava os louvores do santo , cuja
imagem vestida de tela preta e ouro , com um
crucifixo de prata na mão, era levada em um
rico andor todo prateado, por dez pessoas , dois
sacerdotes seculares, o prelado e outro religioso
da Ordem de S. Domingos , e os prelados das
outras seis communidades.
De um e outro lado do andor levavam doze
sacerdotes , doze lanternas de prata com vellas
accesas . Poucos passos depois , vinha o excellen-
tissimo arcebispo paramentado com pluvial e mi-
tra, levando aos seus lados ministros tambem
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 79

paramentados, e seguido dos seus capellàes e


mais domesticos .
« Ordenada d'este modo a procissão , deu volta
pelas ruas dos Escudeiros e Odreiros , e entrando
outra vez no Rocio , foi andando pela parte do
poente até ao Paço dos Estaos, onde estavam
suas magestades, e depois voltando para a parte
do nascente entrou pela porta da egreja , onde
juntos todos, e cantadas as costumadas preces,
deu o excellentissimo arcebispo a benção a todos
os assistentes .
Ao mesmo passo que a procissão se recolhia,
se foram formando os regimentos de infanteria,
que estavam bordando as ruas , e chegando- se
depois de algumas evoluções militares , para de-
fronte da egreja , finalisada a funcção deu cada
um d'esses regimentos tres descargas de toda a sua
mosqueteria; depois marcharam para os seus quar-
teis, e o mesmo executaram os de cavallaria, ficando
só os costumados destacamentos para assistirem
na praça no tempo da illuminação , a qual se fez
n'esta ultima noite com a mesma magnificencia e
grandeza do dia antecedente : dando - se com esta
ultima e festiva demonstração de alegria e jubilo,
glorioso fim a toda esta grande e sumptuosa ce-
lebridade .
80 PORTUGAL

« Estiveram primorosamente illuminados em


todas as noites os . conventos e egrejas da Santis-
sima Trindade, de Nossa Senhora do Carmo , de
S. Domingos , de Nossa Senhora de Jesus , do
Santissimo Sacramento dos Padres eremitas de S.
Paulo , de Santo Antonio dos religiosos capuchos,
de S. Pedro d'Alcantara dos padres da provin-
cia da Arrabida, do Espirito Santo dos padres
da congregação do oratorio de S. Filippe Nery:
o de S. Francisco da Cidade na noite de 19 do
mez, e depois nas ultimas duas noites do Oita-
vario e nas noites de 22, e nas duas seguintes
tambem o estiveram o convento de Nossa Senhora
da Graça dos eremitas de Santo Agostinho, e o
collegio de Santo Antão dos padres da Compa-
nhia de Jesus . >> 28

As dispendiosissimas beatificações e canonisa-


ções, as quaes tanto dinheiro faziam passar de
Portugal para Roma, eram tão vulgares no rei-
nado de D. João V, que, tendo já sido beatificada

28 Veja obra já citada.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 81

Santa Joanna princeza de Portugal, e tendo sido


feitas as diligencias necessarias para a beatifica-
ção de D. Affonso Henriques, e do arcebispo de
Braga D. fr. Bartholomeu dos Martyres ; foram
beatificadas tambem as infantas D. Sancha, D.
Thereza e D. Mafalda . Em summa , eram tão
pretendidas e tão procuradas as beatificações e
canonisações para lustre e gloria das povoações ,
das egrejas e das ordens monasticas que o padre
Joseph Pereira Bayão no seu Portugal glorioso e
illustrado diz , fallando com o leitor :
«Vae finalmente a Santa Clara de Villa do Con-
de, onde acharás as freiras actualmente tratando
da beatificação dos senhores D. Affonso Sanches
e sua mulher D. Thereza Martins, filho e nora do
senhor rei Diniz , e fundadores d'aquella casa ,
onde estão obrando prodigios . »
Á vista do exposto , não se admirará o leitor se
lhe asseverarmos que se consumia no paiz um
numero extraordinario de mil cruzados em festas ,
arraiaes, procissões , e em tudo quanto fosse con-
gruente para realçar o culto religioso .

6
V

Os sermonarios abarrotavam e ainda abarrotam


as bibliothecas publicas . Alvaro Leitão , publica-
va os sermões das tardes de quaresma e de toda
a semana santa. D. Raphael Bluteau dedicava
ao grão-duque de Toscana seus sermões impres-
sos em Lisboa. O licenciado Antonio da Silva , na-
tural da Bahia, tambem em Lisboa, dava á luz
os sermões das tardes dos domingos de quares-
ma, prégados na matriz do Recife de Pernambu-
co. E o agostiniano fr . Simão da Graça , tambem
d'esta mesma cidade de Lisboa dava a lume os
sermões prégados na India Oriental. Podia fallar
dos sermões do bispo do Rio de Janeiro , D. fr .
Antonio de Guadalupe, impressos em Lisboa no
84 PORTUGAL

anno de 1749 : nos sermões offerecidos ao infante


D. Antonio pelo padre Antonio de Bettencourt;
mas basta dizer que sobem a milhares os ser-
monarios impressos em Lisboa , Porto , Coimbra,
Goa, Roma e varias outras povoações . É extraor-
dinario o numero das pastoracs , e dos sermões
que no reinado de D. João V se prégaram, e im-
primiram, distinguindo-se até algumas edições
pelo seu luxo e boa impressão .
Rara seria por aquelle tempo a pessoa, em cer-
ta posição social que por occasião da sua morte
não tivesse uma, ou mais do que uma oração fu-
nebre . Teve-a Diogo de Mendonça Côrte Real,
na egreja parochial de Santa Justa de Lisboa :
teve- a fr. Antonio Manoel de Vilhena, grão -mes-
tre de S. João do Hospital na matriz de Campo`
Maior: teve a D. Luiza Simôa de Portugal, con-
dessa de Redondo , recitada por D. José Barbosa
na egreja do Espirito Santo de Lisboa . Teve a o
conde da Calheta Affonso de Vasconcellos, na egre-
ja da Conceição Velha, e tiveram-na milhares e mi-
lhares de pessoas , pois são milhares e milhares as
orações funebres , umas impressas , outras ineditas .
Tambem o numero dos sermões prégados nas pro-
cissões das freiras é extraordinario . Mas citarci
tão sómente, attendendo á brevidade, os sermões
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 85
65

prégados pelo P. D. Raphael Bluteau nas pro-


cissões de D. Violante Maria Caetana de Castro
no convento de Odivellas, o da procissão de duas
irmas no mosteiro de Santa Clara de Lisboa, e
um outro sermão do mesmo genero prégado no
mosteiro do Calvario .
VI

Havia ainda outro espectaculo quasi diario, e


com o qual o povo se deliciava , era ir visitar ás
egrejas os servos de Deus que tinham morrido
com cheiro de santidade .
Em todos os conventos , e mesmo fóra d'elles ,
havia individuos de ambos os sexos que se entre-
gavam á vida mystica , e punham em pratica to-
dos os generos de penitencias , mesmo as mais
absurdas e repugnantes . Estes taes individuos
tinham sempre um grande numero de admirado-
res, e não só eram consultados ácerca das duvi-
das e escrupulos , mas tambem suas orações
eram remuneradas e procuradas com grandes es-
molas . Por occasião da morte de tacs servos de
888 PORTUGAL

Deus , o povo concorria em chusma a despedir-


se do Santo, ou do predestinado, como lhe cha-
mavam, e a invocar sua protecção na presença
de Deus. 19 E as turbas irrompiam tão compa-
ctas dentro do templo em que o defunto estava
exposto á veneração dos fieis , que as sentinellas
eram impellidas pela multidão , o povo estontea-
do calcava, pisava, molestava, promovia desor-
dens e lucta, mas extatico contemplava o rosto do
santo que já estava gosando da visão beatifica .
No dia 19 de abril de 1731 morreu em cheiro
de santidade no convento de S. Francisco de Xa-
bregas, o padre fr . José de Sant'Anna , tendo de
edade 68 annos , e de habito 54. O povo consi-
derava-o como um santo, e o chronista fr . Jero-
nymo de Belem 20 asseverava que depois de morto
parecia ainda vivo, porque ficou todo flexivel seu
cadaver, tão claro e resplandecente, como se não
houvera pagado o tributo devido à morte . Estes
signacs todos foram novo incentivo para os seus
religiosos irmãos , pois amando- o cordealmente em
vida, na sua morte se não podiam apartar da sua

19 Vida justificada, morte preciosa , virtudes e milagres


do P. Fr. José de Santa Anna - Lisboa, 1743.
20 FR. JERONYMO DE BELEM: Vida do P. Fr. José de San-
ta Anna, pag. 190.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 89

vista. Para desafogo da sua saudade se viu en-


tre todos uma santa emulação sobre quem havia
de ficar mais enriquecido com prendas suas : para
este fim se foram constituindo espirituaes herdei-
ros de suas pobres alfaias, querendo todos tudo ,
sem attenderem á qualidade das coisas ; porque
uns, além do que muitos haviam feito ainda em
sua vida, levavam em retalhos o habito ; outros
os sapatos; outros os pares menores , etc. , de sor-
te que sem deixarem prégo em parede, até um
prégo , em que estava pendurada a sua candeia ,
levou certo religioso por não achar já que levar.
Não custou pouco a defender a roupa da ca-
ma ainda pleiteavam os devotos seculares por
entrarem com os religiosos a partilhas , allegan-
do que elles tinham direito aos moveis de seu gran-
de amigo por ficarem com prendas suas; e assim.
pedindo e furtando, ajuntaram o que podiam;
mas com altissima providencia , pelo que depois
succedeu com estes religiosos .
O bordão, com que o servo de Deus andava
pelo convento, e sahia fóra, reservou um religio-
so com muita cautela para mandar a outro, seu
tio, que padecia o achaque de gotta , tendo- o al-
guns dias escondido , emquanto cessavam as gran-
des diligencias, que por elle se fizeram , nascen-
‫د‬

90 PORTUGAL

do d'aqui não poucos sustos e temores, por se-


rem muitos os que desejavam possuil- o .
Um devoto secular não achando já em que pôr
os olhos , teve màos para tirar com o seu espa-
dim um cuvilhete que de uma janella viu na do
servo de Deus ; e levando-o com grande recato
para casa, indo eu depois a elle, me descobriu o
seu furto secreto, que tinha em uma gaveta fe-
chado .
Em casa de outro vi tambem eu um bocado
do lençol, que havia servido na cama do servo de
Deus, mettido em um contador, e conservando
evidentes signaes de immundicie, era suavissimo
o cheiro que lançava .
Alem da porta, por não acharem mais. que ti.
rar, cortaram os seculares alguns fragmentos (que
a tanto chegou a pia devoção dos fieis ) . D'estes
espolios participou a maior, parte d'esta côrte, e
do reino , d'onde eram tantas as supplicas, que
quanto mais se mandava, muito mais se pedia .
Logo que se divulgou a noticia da morte do
servo de Deus foi tanta a gente, que acudio á
egreja a vêr o corpo , e a pedir reliquias , que já
não valia a prevenção de grades , e portas fecha-
das para lhe impedir os excessos e embaraçar
os impulsos . Ali mesmo se lhe cortou grande
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 91

parte do habito , que em bocados iam levando


aquelles que primeiro chegavam ; até que por or-
dem do prelado local se suspendeu esta diligen-
cia, por não ser decente em occasião similhante
tal repartição .
Praticou-se na cella do prelado sobre esta ma-
teria ; e assentando- se que o enterro se não po-
dia fazer de manhã pelo concurso de povo ; que
de tarde ainda seria peior ; por se evitarem de-
sordens , e para satisfazer á devoção dos fieis ;
por conselho de pessoas doutas , prudentes e cn-
tendidas se tomou a providencia de dar parte ao
reverendo cabido da Sé Oriental para que, pa-
recendo conveniente, mandasse fazer o exame
permittido em Direito. Em summa foi tal a mul-
tidão, que já não se podia entrar na egreja ; a
maior parte da gente, sem cuidar no preciso sus-
tento, se refazia de vêr o vencravel cadaver.
Por ordem do reverendo cabido veiu a este
convento o doutor vigario geral com os ministros
competentes para proceder ao exame do cada-
ver, em que se acharam todos aquelles signaes
que conduzem para a boa opinião da virtude de
um servo de Deus ; porque, sendo já passadas
dezeseis horas pouco mais ou menos, se achou
com a mesma flexibilidade, sem bafio, nem mau
92 PORTUGAL

cheiro ; os olhos claros , e tão claros , que abrin-


do-lhe cu o direito , o vi como em elevação , e de-
pois de um breve espaço , por si mesm › se fe-
chou ; as cezuras das sarjas se viam na mesma
forma, em que o ferro as abriu, conservando a
mesma côr ; sendo sangrado por duas vezes , lan-
Çou sangue puro e liquido ; e em todo o cadaver
se admirava um como natural calor : finalmente ,
não tinha mais signal de morte, que o estar des-
animado.
Concluido o exame, vistas e ponderadas todas
as circumstancias d'elle , cresceu de tal sorte a
devoção nas pessoas que se acharam presentes ,
assim ecclesiasticos como seculares , e ainda da
primeira nobreza da côrte, que ali mesmo se via
una santa émulação , desejando cada qual ficar
mais enriquecido com as prendas ou reliquias do
servo de Deus ; porque tendo-lhe sido despido o
habito para se poder satisfazer ás piedosas sup-
plicas de todos, nenhum se accommodava com
pouco .
Com grande consolação notei que tres cava-
lheiros , a quem coube uma grande parte do ha-
bito, contendiam sobre a sua repartição; e para
eu decidir o ponto, me cheguei a elles , e cortan-
do como pude o pedaço , celebrando todos a pro-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 93

videncia, ficou cada um d'elles muito satisfeito


com o que lhe tocou.
No sangue das sangrias se ensoparam muitos
lenços, e para todos houve sangue ; até o cerci-
lho lhe ficou bastantemente reformado, porque um
devoto sacerdote, particular amigo e beneficiado
do servo de Deus, com uma thesoura e com gran-
de disfarce lhe cortou muita parte dos cabellos .
Composto logo o corpo, e com outro habito ves-
tido , terminou o doutor vigario geral , que, para
gloria de Deus, e consolação dos fieis , se expo-
zesse na egrejá até ao dia seguinte , que foi na
quinta -feira.
Era já n'este tempo mais numeroso o concur-
so do povo, que esperando impaciente esta reso- .
lução, apenas sahiu o corpo para a egreja, como
saindo de si e para desafogo da sua devoção , uns
tocavam contas para terem e levarem , tendo-se
prevenido em comprarem n'este dia muitos roza-
rios ; outros com instancia pediam reliquias do ha-
bito, e os que mais não podiam se contentavam
com beijar-lhe as mãos e os pés . Com grande tra-
balho chegaram os religiosos com o esquife á
egreja , pois não havia forças humanas que res-
guardassem.
Quarta feira de tarde, e ainda de noite foi conti-
92 PORTUGAL

cheiro ; os olhos claros, e tão claros , que abrin-


do-lhe cu o direito , o vi como em elevação , e de-
pois de um breve espaço , por si mesm › se fe-
chou ; as cezuras das sarjas se viam na mesma
forma, em que o ferrò as abriu, conservando a
mesma côr ; sendo sangrado por duas vezes , lan-
Çou sangue puro e liquido ; e em todo o cadaver
se admirava um como natural calor : finalmente,
não tinha mais signal de morte, que o estar des-
animado.
Concluido o exame, vistas e ponderadas todas
as circumstancias d'elle , cresceu de tal sorte a
devoção nas pessoas que se acharam presentes,
assim ecclesiasticos como seculares, e ainda da
primeira nobreza da côrte, que ali mesmo se via
una santa émulaçio , desejando cada qual ficar
mais enriquecido com as prendas ou reliquias do
servo de Deus ; porque tendo-lhe sido despido o
habito para se poder satisfazer ás piedosas sup-
plicas de todos, nenhum se accommodava com
pouco .
Com grande consolação notei que tres cava-
lheiros , a quem coube uma grande parte do ha-
bito, contendiam sobre a sua repartição; e para
eu decidir o ponto, me cheguei a elles, e cortan-
do como pude o pedaço , celebrando todos a pro-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 93

videncia, ficou cada um d'elles muito satisfeito


com o que lhe tocou .
No sangue das sangrias se ensoparam muitos
lenços, e para todos houve sangue ; até o cerci-
lho lhe ficou bastantemente reformado, porque um
devoto sacerdote , particular amigo e beneficiado
do servo de Deus , com uma thesoura e com gran-
de disfarce lhe cortou muita parte dos cabellos .
Composto logo o corpo , e com outro habito ves-
tido , terminou o doutor vigario geral , que , para
gloria de Deus , e consolação dos fieis , se expo-
zesse na egreja até ao dia seguinte, que foi na
quinta feira.
Era já n'este tempo mais numeroso o concur-
so do povo, que esperando impaciente esta reso-
lução, apenas sahiu o corpo para a egreja, como
saindo de si e para desafogo da sua devoção , uns
tocavam contas para terem e levarem, tendo -se
prevenido em comprarem n'este dia muitos roza-
rios ; outros com instancia pedíam reliquias do ha-
bito, e os que mais não podiam se contentavam
com beijar-lhe as mãos e os pés. Com grande tra-
balho chegaram os religiosos com o esquife á
egreja , pois não havia forças humanas que o res-
guardassem .
Quarta feira de tarde, e ainda de noite foi conti-
92 PORTUGAL

cheiro ; os olhos claros , e tão claros , que abrin-


do -lhe cu o direito , o vi como em elevação , e de-
pois de um breve espaço, por si mesm › se fe-
chou ; as cezuras das sarjas se viam na mesma
forma, em que o ferrò as abriu, conservando a
mesma côr ; sendo sangrado por duas vezes , lan-
Çou sangue puro e liquido ; e em todo o cadaver
se admirava um como natural calor : finalmente ,
não tinha mais signal de morte, que o estar des-
animado.
Concluido o exame, vistas e ponderadas todas
as circumstancias, d'elle , cresceu de tal sorte a
devoção nas pessoas que se acharam presentes ,
assim ecclesiasticos como seculares , e ainda da
primeira nobreza da côrte, que ali mesmo se via
una santa emulação , desejando cada qual ficar
mais enriquecido com as prendas ou reliquias do
servo de Deus ; porque tendo-lhe sido despido o
habito para se poder satisfazer ás piedosas sup-
plicas de todos , nenhum se accommodava com
pouco .
Com grande consolação notei que tres cava-
lheiros , a quem coube uma grande parte do ha-
bito, contendiam sobre a sua repartição; e para
eu decidir o ponto, me cheguei a elles, e cortan-
do como pude o pedaço , celebrando todos a pro-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 93

videncia, ficou cada um d'elles muito satisfeito


com o que lhe tocou.
No sangue das sangrias se ensoparam muitos
lenços , e para todos houve sangue; até o cerci-
lho lhe ficou bastantemente reformado , porque um
devoto sacerdote , particular amigo e beneficiado
do servo de Deus , com uma thesoura e com gran-
de disfarce lhe cortou muita parte dos cabellos .
Composto logo o corpo, e com outro habito ves-
tido , terminou o doutor vigario geral , que , para
gloria de Deus , e consolação dos fieis , se expo-
zesse na egreja até ao dia seguinte, que foi na
quinta feira.
Era já n'este tempo mais numeroso o concur-
so do povo, que esperando impaciente esta reso-
lução, apenas sahiu o corpo para a egreja, como
saindo de si e para desafogo da sua devoção , uns
tocavam contas para terem e levarem, tendo-se
prevenido em comprarem n'este dia muitos roza-
rios; outros com instancia pediam reliquias do ha-
bito, e os que mais não podiam se contentavam
com beijar-lhe as mãos e os pés . Com grande tra-
balho chegaram os religiosos com o esquife á
egreja, pois não havia forças humanas que o res-
guardassem.
Quarta feira de tarde, e ainda de noite foi conti-
92 PORTUGAL

cheiro ; os olhos claros, e tão claros , que abrin-


do - lhe cu o direito , o vi como em elevação , e de-
pois de um breve espaço, por si mesm › se fe-
chou ; as cezuras das sarjas se viam na mesma
forma, em que o ferro as abriu, conservando a
mesma côr ; sendo sangrado por duas vezes , lan-
Çou sangue puro e liquido ; e em todo o cadaver
se admirava um como natural calor : finalmente ,
não tinha mais signal de morte, que o estar des-
animado.
Concluido o exame, vistas e ponderadas todas
as circumstancias d'elle , cresceu de tal sorte a
devoção nas pessoas que se acharam presentes ,
assim ecclesiasticos como seculares , e ainda da
primeira nobreza da côrte, que ali mesmo se via
una santa emulação , desejando cada qual ficar
mais enriquecido com as prendas ou reliquias do
servo de Deus ; porque tendo-lhe sido despido o
habito para se poder satisfazer ás piedosas sup-
plicas de todos , nenhum se accommodava com
pouco.
Com grande consolação notei que tres cava-
lheiros, a quem coube uma grande parte do ha-
bito , contendiam sobre a sua repartição; e para
eu decidir o ponto, me cheguei a elles , e cortan-
do como pude o pedaço, celebrando todos a pro-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 93

videncia, ficou cada um d'elles muito satisfeito


com o que lhe tocou.
No sangue das sangrias se ensoparam muitos
lenços , e para todos houve sangue ; até o cerci-
lho lhe ficou bastantemente reformado , porque um

devoto sacerdote , particular amigo e beneficiado


do servo de Deus , com uma thesoura e com gran-
de disfarce lhe cortou muita parte dos cabellos .
Composto logo o corpo, e com outro habito ves-
tido , terminou o doutor vigario geral , que , para
gloria de Deus , e consolação dos fieis , se expo-
zesse na egreja até ao dia seguinte, que foi na
quinta -feira.
Era já n'este tempo mais numeroso o concur-
so do povo, que esperando impaciente esta reso-
lução, apenas sahiu o corpo para a egreja, como
saindo de si e para desafogo da sua devoção, uns
tocavam contas para terem e levarem, tendo-se
prevenido em comprarem n'este dia muitos roza-
rios; outros com instancia pediam reliquias do ha-
bito, e os que mais não podiam se contentavam
com beijar-lhe as mãos e os pés . Com grande tra-
balho chegaram os religiosos com o esquife á
egreja , pois não havia forças humanas que o res-
guardassem .
Quarta feira de tarde, e ainda de noite foi conti-
94 PORTUGAL

nuando em fórma que já dos logares visinhos da


côrte vinha concorrendo gente. Mas para que de
tanto povo junto se não seguisse alguma des-
ordem e indecencia , recolheram os religiosos
corpo na capella do Senhor do Bom Despacho no
claustro, e fechando-o á chave, para que a gente
se retirassc, de cada vez mais se augmentava a
devoção com o interesse de admirarem aquelle
veneravel deposito , sem darem lugar aos reli-
giosos para poderem fechar as portas e se reco-
lherem .
N'esta mesma noite vieram muitas senhoras da
côrte e do convento de Santos, a satisfazerem
seus piedosos desejos, e por mais diligencias que
se fizeram , não era possivel embaraçar o ingres-
so da clausura, pois com as portas abertas entra-
va quem podia, e com ellas fechadas amotina-
vam o convento , e quebravam as campainhas da
portaria. Até que com muito trabalho , sendo já
onze horas da noite se fecharam as portas , fican-
do o corpo na sua mesma capelinha, e corren-
do-lhe ainda sangue das sangrias do exame, do
qual se aproveitaram alguns devotos . Com esta
ainda que laboriosa providencia , poderam des-
afogar-se os religiosos, que já andavam cançadis-
simos, e assim foram ás suas horas a matinas,
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 95

excepto aquelles , que velavam o corpo , pas.


sando a noite inteira sem descanço .
Chegou tambem ao palacio não só a noticia da
morte do servo de Deus , mas a do exame do
seu corpo e do grande concurso ; e todas estas
demonstrações foram incentivo , além do conhe-
cimento, que já em palacio havia das virtudes do
nosso servo de Deus , para commover a piedade
do magnanimo rei D. João V, o qual acompa-
nhado dos serenissimos principes dos Brazis , seu
filho, e do infante D. Antonio , seu irmão , veiu a
este convento de Xabregas na quinta feira se-
guinte pelas duas horas da tarde a visitar seu
corpo ; e sendo as migestades aquellas pessoas ,
que pelo seu respeito e soberania têm sempre, e
em toda a parte , o primeiro logar, não custou
pouco a sua entrada , pela grande multidão da
gente , que attendendo mais á sua devoção do que
aos respeitos humanos, a ninguem guardavam
respeito ; mas rompendo como puderam para che-
gar ao corpo, disse de caminho sua magestade,
que ainda não vira concurso similhante .
Tinham a este tempo os religiosos depositado
o corpo na capella dos Terceiros , que fica no cru-
zeiro da egreja, para melhor commodidade dos
Officios Divinos ; e assim como puderam o foram
:

96 PORTUGAL

repôr na capella maior, fazendo um estreito ca-


minho para que sua magestade e altezas podes-
sem chegar. Chegaram emfim , e postos todos tres
de joelhos depois de adorarem o Sacramento, por
um largo espaço , registraram o corpo ; e depois
de ouvirem toda a relação do exame e da sua
morte, e louvarem as maravilhosas obras de Deus
no corpo d'aquelle seu servo, fazendo e mandan-
do fazer algumas observações por certas pessoas
da sua comitiva , todos lhe beijaram os pés . Aqui
se viu com uma incomparavel ternura e edifica-
ção a humildade mais profunda e de tanto exem-
plo para os circumstantes ; e com esta acção fi-
cou mais viva a fé de todos , sabendo já estes á
imitação d'aquelles reconhecer o quanto é Deus
fiel remunerador das virtudes dos seus servos,
para que á vista de similhantes espectaculos dis-
pertêmos mais e mais a nossa frouxidão .
Logo que sua magestade e altezas se retiraram
do convento, querendo os religiosos proceder á
funcção do enterro, para melhor conseguirem o
que intentavam , tomaram por expediente reco-
lher o corpo do servo de Deus para a sachristia
para que de alguma sorte se socegasse o povo,
que em grande numero ia crescendo . Superflua
providencia, porque saindo da capella maior com
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 97

grande trabalho, e entrando para a sachristia com


muito custo, nem na sachristia, nem na egreja se
davam a conselho os religiosos : na egreja, não ,
porque estando o povo á espera do corpo , não
foi possivel, por mais diligencias que faziam os
religiosos , descerem o esquife dos hombros para
o depositar na capella-mór ; foram sahindo para
o cruzeiro , e encontraram a mesma difficuldade ,
chegaram ao corpo da egreja , e muito menos o
poderam conseguir : sahiram ao adro , e finalmen-
te até á fonte da Samaritana, e cada vez se au-
gmentava mais o concurso de povo , que posto já a
este tempo em duas alas , com muitos maços de
contas, com que se tinham os devotos prevenido ,
atiravam com ellas ao corpo para as tocarem. Aqui,
de cançados e opprimidos os religiosos , largaram
o esquife, e pegando n'elle dois conegos , e alguns
religiosos de fóra, que se achavam no concurso ,
obrigados da necessidade, foram tomando o ca-
minho da Madre de Deus, sem cuidarem para
onde iam, mas seguindo -os alguns religiosos nos-
SOS.
Abertas as portas da egreja da Madre de Deus ,
n'ella se recolheu o corpo ; mas fechando - se ou-
tra vez para impedir o tumulto do povo, ainda
isto não bastou, porque concorrendo algumas se-
7
98 PORTUGAL

nhoras da côrte, e em seu sequito muitas pes-.


soas mais , cresceu em bom numero o concurso
com a santa ambição de venerarem depois de
morto aquelle, com quem tiveram especial devo-
ção em quanto vivo . » 21

Scenas similhantes e comprovativas da credu-


lidade nada illustrada d'aquelles tempos, repe-
tiam-se diariamente .
( Depois que expirou o veneravel padre D. Al-
berto Maria Ambiveri , (diz-nos o seu biographo
D. Thomaz Caetano do Bem), ficou seu cadaver
tão brando e flexivel, como se ainda estivera vi-
vo . Lançava de si um cheiro tão suave, que não
tendo comparação alguma com outro qualquer
dos que exhalam os aromas da terra, se julgou
ser fragrancia extraordinaria , e como do Paraizo .
Divulgada pela cidade a noticia d'estas cir-
cumstancias, não se pode explicar quanto cres-
ceu a dôr e o sentimento por causa da sua mor-
te, no coração de todos .

21 Esta descripção não pode ser mentirosa, pois foi


impressa em epcchas mui proximas ao facto.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 99

Concorreu logo o povo todo , e não só os hu-


mildes e gente ordinaria, mas os grandes e a no-
breza toda para verem e respeitarem o venera-
vel cadaver . Todos respeitosamente beijavam
aquelles veneraveis despojos da humanidade, e
n'elles tocavam as contas por que resavam ; e não
se podiam separar, nem apartar a vista do
cadaver de um seu tão grande bemfeitor. E
não satisfeitos com isto , cada um procurava
haver para si alguma parte d'aquelles mesmos
despojos, e á competencia lhe cortavam alguma
porção , quer dos cabellos, quer dos vestidos ,
quer dos sagrados ornamentos , que tudo de si
exhalava a mesma fragrancia, para comsigo a
trazerem e fazerem estimação , como do mais pre-
cioso thesouro, de sorte que de todo ficaria des-
pojado pela devoção dos fieis , se pelos ministros
da justiça (e foram estes cinco corregedores que
por ordem d'El- Rei vieram assistir n'aquelle dia
ao nosso hospicio para conter e moderar o povo)
não fora refreada a multidão popular, que para
satisfazer a sua devoção quasi tumultuava .
A sua pobre camara bem depressa ficou tam-
bem inteiramente despojada das suas pobres al-
faias, para assim se satisfazer á devoção de pes-
soas de maior qualidade que instantemente as
100 PORTUGAL

pretendiam. A El-Rei tocou o seu tão amado li-


vro da Imitação de Christo , de Thomaz Kempis .
E a rainha quiz para si a imagem do Santo Cru-
cifixo .>>
« Quando falleceu o padre Bartholomeu do Quen-
tal, 22 diz o autor da sua vida , quiz Deus que se
testificasse a santidade de seu servo com o ad-
miravel signal de uma resplandecente estrella
que pelo espaço de uma hora, antes que partisse
d'este mundo , se viu brilhar sobre o seu cubicu-
lo , até que os funebres lamentos dos sinos an-
nunciaram a morte . Ficou o semblante do vene-
ravel padre todo alegre, e representando uma tal
magestade, que os que o vestiam, não se atreve-
ram a despir o corpo para ser lavado . Foi cou-
sa tambem admiravel, que sendo as mãos do ser-
vo de Deus flexiveis para os seus padres , o não
eram para algumas pessoas estranhas que vi-
nham curiosamente para experimentar a flexibi-
lidade .
Divulgada a morte, logo se manifestou a opi-
nião do povo . Começou a concorrer innumeravel

22 Vida do V. P. BARTHOLOMEU do Quental, Fundador da


Congregação do Oratorio nos reinos de Portugal, Lisboa,
1.47.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 101

multidão de pessoas de todas as jerarchias e ida-


des que uniformemente lhe chamavam santo : urs
procuravam devotamente reliquias suas, outros
á contenda lhe beijavam as mãos e os pés , ou-
tros tocavam rosarios no seu corpo, dos quaes
usavam ao depois mais devotamente pelo con-
tacto que tinham tido com o servo . »

É possivel que taes reliquias tivessem muitas


virtudes , mas não a tinham com certeza contra
a corrupção dos costumes , tão grande entre os
seculares , como nos proprios conventos .

«A madre soror Isabel do Menino Jesus , ab .


badessa que foi no mosteiro de Santa Clara de
Portalegre, viu em certa occasião estarem os de-
monios a assar carne feita em pedaços como
gatos esfolados escorreados de fogo . Ficou espan-
tadissima, mas ouviu logo uma voz que lhe dis-
se : Ser aquella carne de sacerdotes que em vi-
da se abrazaram no vicio da luxuria» . Assim
diz ella na sua « Vida » , e parece dar a intender
que o caso se passou em 1736 .
100 PORTUGAL

pretendiam. A El-Rei tocou o seu tão amado li-


vro da Imitação de Christo , de Thomaz Kempis .
E a rainha quiz para si a imagem do Santo Cru-
cifixo . »
« Quando falleceu o padre Bartholomeu do Quen-
tal, 22 diz o autor da sua vida, quiz Deus que se
testificasse a santidade de seu servo com o ad-
miravel signal de uma resplandecente estrella
que pelo espaço de uma hora, antes que partisse
d'este mundo, se viu brilhar sobre o seu cubicu-
lo, até que os funebres lamentos dos sinos an-
nunciaram a morte . Ficou o semblante do vene-
ravel padre todo alegre, e representando uma tal
magestade, que os que o vestiam , não se atreve-
ram a despir o corpo para ser lavado . Foi cou-
sa tambem admiravel, que sendo as mãos do ser-
vo de Deus flexiveis para os seus padres , o não
eram para algumas pessoas estranhas que vi-
nham curiosamente para experimentar a flexibi-
lidade .
Divulgada a morte, logo se manifestou a opi-
nião do povo. Começou a concorrer innumeravel

22 Vida do V. P. BARTHOLOMEU do Quental, Fundador da


Congregação do Oratorio nos reinos de Portugal, Lisboa,
1.47.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 101

multidão de pessoas de todas as jerarchias e ida-


des que uniformemente lhe chamavam santo : urs
procuravam devotamente reliquias suas , outros
á contenda lhe beijavam as mãos e os pés, ou-
tros tocavam rosarios no seu corpo , dos quaes

usavam ao depois mais devotamente pelo con-


tacto que tinham tido com o servo . »

É possivel que taes reliquias tivessem muitas


virtudes, mas não a tinham com certeza contra
a corrupção dos costumes , tão grande entre os
seculares , como nos proprios conventos .

«A madre soror Isabel do Menino Jesus, ab-


badessa que foi no mosteiro de Santa Clara de
Portalegre, viu em certa occasião estarem os de-
monios a assar carne feita em pedaços como
gatos esfolados escorreados de fogo . Ficou espan-
tadissima, mas ouviu logo uma voz que lhe dis-
se : Ser aquella carne de sacerdotes que em vi-
da se abrazaram no vicio da luxuria » . Assim 9
diz ella na sua « Vida» , e parece dar a intender
que o caso se passou em 1736 .
102 PORTUGAL

Eis porque os diabos n'aquelles tempos anda-


vam á redea solta:
«O primeiro assalto , (diz o padre fr. Joseph
Pereira de Sant'Anna na Vida da M. Maria Per-
petua, ) que ao inconsolavel coração da Esposa
de Christo deu o inferno foi na occasião em que ,
bastantemente combatida de pensamentos imper-
tinentes e vãos, buscou ao seu divino Esposo no
côro, para d'alli o poder adorar no Sacramento.
Achando -se, pois , na sua augustissima presença ,
rogando-lhe com fervorosas instancias que de nen-
hum modo a deixasse cahir em tentações, viu ,
e sem engano percebeu uma incomparavel mul-
tidão de diabolicos inimigos, os quaes tomando a
hedionda figura de asquerosos sapos faziam a
possivel diligencia por lhe intimidarem e enfra-
quecerem o animo . Ella , porém , com esforço
maior do que se poderia esperar de um sèxo na-
turalmente timido de similhantes vistas , nem al-
terava o socego nem diminuia a devoção . Nota-
va (muito transitoriamente) que os peçonhentos
bichos davam saltos pelo ar : mas como se ao
subir lhes faltasse o vigor, logo precipitadamen-
te cahiam, e com os seus impuros contactos en-
venenavam o chão ; e d'elle por mais que repe-
tiam as diligencias , nem se podiam apartar mui-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 103

to, nem de todo subir ao alto : até que vencidos


ou injuriados da inesperada resistencia , se fun-
diram no interior da terra. »
Mas a peça mais consideravel entre outras
que os diabos fizeram a soror Magdalena foi que
pegaram do leito em que estava deitada pelos
quatro cantos , e começaram-n'a a levantar tão al-
to que deu com a cabeça no tecto. 23 Entrou tão
grande pavor na pobre religiosa de que a dei-
xassem cahir no chão desde aquella altura, que
começou a gritar que lhe acudissem. Então Rosa
Maria, animada do espirito de Deus mandou aos
demonios que sem damno algum da religiosa
tornassem com o leito ao seu logar. Obedeceram ,
mas bramindo de raiva, deram um tal sopro que
com elle acenderam a candeia que estava apa-
gada em um canto do casarão . »
Mas é bem digno de reparo que se os diabos
frequentavam continuamente os mosteiros, tam-
bem o Menino Jesus revestido de todas as for-
mas n'elles apparecia continuamente !

Cousa vulgarissima era então as filhas , acon-

23 Vida da Veneravel Madre Rosa Maria Serio de Santo


Antonio, priora do mosteiro de S. José Fazano. Lisboa
1744 .
104 PORTUGAL

selhadas e dirigidas pelos confessores, fugirem de


casa de seus decrepitos paes para se encerrarem
dentro d'um convento . A isto chamarei eu uma
feia ingratidão , e ingratidão posta em pratica ha
poucos annos em Aveiro por duas meninas pa-
rentas do celebre José Estevão Coelho de Maga-
lhães . Ingratidão elevada ao requinte ! Assim se
pagam tantas lagrimas, tantas vigilias , tantas an-
cias , tantas sollicitudes ! Desamparar quem nos
deu o ser, para só cuidarmos dos estranhos !
Pois a menina Marianna , filha do conde de Ta-
rouca - João Gomes da Silva, praticou isto
mesmo. 24
Ouvira uma predica em Lisboa , ao frade va-
ratojano fr . Manoel de Deus , e desde então prin-
cipiou a pensar que a vida mais do agrado de

24 Confessava a Dona Marianna, e era seu Director o P.


Paulo Amaro, da extincta Companhia de Jesus. Cuidou
logo D. Marianna em lhe communicar quanto passava.
Era razão que assim o fizesse, porque a elle tocava exa-
minar se era esta legitima vocação de Deus, para, ou con-
firmal- a n'ella, ou desenganal- a: pois estes são os canaes
por onde Deus parece tem determinado dar a conhecer ás
almas a sua vontade; e para este fim assiste aos directores
mui particularmente. A leitura da biographia das freiras
e frades, devia causar a fuga de muitas meninas de casa
de seus paes, pois um tal acto julgava-se uma obra mui
meritoria, e mui do agrado de Deus.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 105

Deus seria a que ella tivesse n'um mosteiro : 5


Para esse fim o mesmo director espiritual a foi
encaminhando , mas julgando- se impossivel obter
licença.
«Andava D. Marianna affligida grandemente
por se vêr tão sem modo de poder largar por
uma vez a casa de seus paes, para ir para a de
seu Senhor ; porque emfim como abrir a porta por
onde só podia escapar-se ? 26 Senão quando, achou
por acaso duas pequenas chaves atadas uma na ou-
tra, como que eram de algumas gavetas, sem que
então nem jamais se soubesse d'onde eram . Oc-
corre-lhe logo se serviriam ellas na porta do
quarto baixo ? Lembrança ao parecer insensata ,
e que só podia vir a quem , porque emprehende
coisa mui difficultosa, tudo julga que lhe póde
servir de a facilitar : até uma pequena chave de
gaveta para abrir uma porta . Foi, com effeito ,
tental- o, e achou que ambas a abriam. Não é ex-
plicavel o quanto ficou D. Marianna contente , por
se vêr com meio de vencer a maior difficuldade,
que encontrava no seu projecto. Mas apenas so-

25 Vida da Madre Marianna Josepha, pag. 87.


26 IDEM pag. 95.
106 PORTUGAL

cegou com este para ella precioso thesouro, quan-


do se viu em termos de o perder. Havia em casa
um doente; era-lhe necessario tomar um reme-
dio , e este devia ir-se buscar ao dito quarto bai-
xo. As chaves d'elle não appareciam então, ape-
sar do recato da condessa . Aqui se viu D. Ma-
rianna em grande aperto e perplexidade. Lem-
brava-se que ella podia remediar o grande in-
commodo, e até prejuizo que fazia ao doente a
perda das chaves do quarto de baixo , dando as suas,
que serviam na porta que ia para elle ; e não o
fazer era mui reprehensivel falta de caridade, e
offendia com isto a Deus, que era o que ella so-
bre tudo temia . Mas se as désse , privava-se do
unico meio que tinha de concluir a empreza, que
era vontade do Senhor que ella commettesse. Pare-
ce que este facto que sobreveio , e que assustou mui-
to a D. Marianna , foi traça da Providencia, para
nos confirmar em que foi o Senhor quem deparou
as chavinhas a sua serva . Porque eram duas, e
ambas serviam na porta: deu D. Marianna uma,
com que se acudiu ao doente, e ficou com a ou-
tra para se servir d'ella na sua fugida . Isto mes-
mo foi necessario que fizesse com arte, para não
dar alguma occasião de suspeita a sua mãe, ven-
do que se achava com chave, que servia no quar-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 107

to baixo . Mas se não houvesse a muito estranha


circumstancia de servirem na porta ambas as cha-
vinhas , malograva- se agora sem duvida a véntu-
ra de as achar e não lhe restava outra espe-
rança .
Vencida a difficuldade de não ter modo de
ebrir a porta, e remediado o perigo de a fazer
maior, cuidou logo em executar seus desejos , e
até em aprazar dia para a fugida . Pareceu- lhe
muito proprio o dia 15 de janeiro , porque sup-
punha com razão que sua mãe sahiria n'elle fóra
a casa do Monteiro - Mór Fernão Telles da Silva,
seu filho, festejar o primeiro anno que fazia o pri-
mogenito d'este, e neto seu. Era elle . Francisco
de Mello, que depois tambem foi monteiro-mór ,
e cuja memoria será sempre saudosa. Persuadi-
da d'isto, como não havia mais opportuna occa-
sião de fugir, do que não estando sua mãe em
casa, determinou fazel-o n'este dia, e assim o par-
ticipou ao padre prior dos Remedios para pôr
tudo prompto . Cuidou logo o prior em procurar
pessoa capaz d'ir com D. Marianna . Achou , e
logo convidou uma viuva de juizo, virtude e no-
breza, que não teve duvida em acompanhal-a :
mas não lhe declarou quem D. Marianna era,
porque tudo se tratava com o maior segredo . Cha-
108 PORTUGAL

mava-se ella D. Anna de Vasconcellos . Estava

já para sahir de sua casa, quando o padre prior


dos Remedios lhe foi dizer quem era a pessoa
que lhe tinha pedido quizesse levar ao convento .
Não pouco se perturbou com a nova ; mas como
era de muita piedade , respondeu , que ainda que
o caso era de mais ponderação do que julgava,
e que ia expor- se a ter algum desgosto com os
parentes de D. Marianna, e talvez que algum
perigo, todavia não permittisse Deus que ella em-
baraçasse tão santa empreza . E accrescentou ,
que como era razão que D. Marianna fosse acom-
panhada d'algum criado, seu filho iria servindo- a
como tal.
Ajustado assim tudo isto, pouco antes das Ave
Marias, no dia 15 de Janeiro de 1728 veiu D.
Anna em uma boa sege, e os moços trazendo nos
chapeos certo signal , que se tinha combinado, e
poz-se no campo, que então se chamava do cur-
ral, e hoje de Sant'Anna, na boca da travessa,
para que tinham a porta as casas em que então
morava a condessa de Tarouca . Aqui aconteceu
uma cousa bem digna de memoria . Posto que já
era quasi noite quando a sege chegou á boca da
travessa, como fazia mui claro luar, foi vista não
só das criadas da condessa , mas tambem de um
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 109

capellão d'aquella casa , que morava defronte . Mui-


to o maravilhou ver alli aquella sege a taes ho-
ras; e impellido de extraordinaria curiosidade pro-
testou não sahir da janella, que calia bem sobre
o lugar em que a sege estava parada , sem ver o
para que ella alli se puzera . Grande risco para
D. Marianna , porque o capellão não podia dei-
xar de a conhecer quando fugisse : e sem duvida
que logo avisaria a cendessa, se mesmo então não
podesse ter mão na fugida , e mui facilmente se
malograria tudo . Mas o Senhor que a guiava, sa-
bia desfazer qualquer obstaculo que sobrevinha;
antes parece que elle os mandava, para dar mais
a conhecer soltando - os , que esta obra era da sua
mão . Lembrou o Espirito Santo ao Capellão, que
era bom sacerdote, e desejava, como devia, ser
perfeito, que aquella curiosidade era và , e por
isso a não devia satisfazer . Acceitou elle a san-
ta inspiração, e promptamente se retirou , e fe-
chou a janella. Feito isto, sentiu rodar a sege,
em que já ia fugida D. Marianna . Vejamos
como ella o fez.
Não faltava a D. Marianna para largar a ca-
sa de seus pais senão em fim o sahir d'ella . Sua
mai não tinha ido fóra como jalgava, por moles-
tia, mas como estava tudo ajustado, não se po-
110 PORTUGAL

dia differir a fugida para outro dia. Era chegada


a hora de a fazer, e queria D. Marianna come-
çal-a; mas a novidade da sege tinha inquietado de
modo as criadas , que cheias de curiosidade anda-
vam pelas janelias vendo se podiam atinar no que
para alli estava. Assiin , além de que se expôz a
que ellas presenceassem o facto, não era livre a
D. Marianna dar um passo sem que fosse sentida .
Para as aquietar lhes perguntou se não faziam
serão aquella noite 27. Com este aviso se assenta-
ram as criadas a trabalhar , e D. Marianna se
viu desembaraçada para poder cometter a gran-
de empreza da sua fuga . Como teve as criadas.
soecgadas , e d'um certo modo prezas, começou
de passear pela casa em que estavam todas , e
em uma das voltas foi- se entranhando pelas ou ·
tras casas dentro, e tomando o caminho da esca-
da do quarto baixo . Chegando á porta despiu o
donaire, abriu-a com a celebre chavinha, e foi des-
cendo pela escada: senão quando uma criada que
passava para a sua casa topou com o donaire, co-
nhece- o ; e, como era natural, estranhou a novida-
de. D. Marianna que a ouviu tornou a subir,

27 Vida da Madre Marianna Josepha.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 111

com arte disfarçou, attribuindo o socego a coisa


diabolica ; e dizendo á criada que lh'o vestisse,
esta o fez, e continuou para onde ia , fóra de toda
a suspeita. Não foi pequena tribulação para D.
Marianna, e podia ser grande estorvo . Para se
livrar de que outra vez tal succedesse , com o do-
naire vestido desceu a escada. Era esta de ma-
deira, repartida em dois grandes lanços de cara-
col, e de todo desamparada de uma das bandas .
Chegando a baixo entrou pelas casas ; e depois
de ter passado tres ou quatro, foi dar n'uma ga-
leria em que estava tanto fato dos quartos de
cama, que a tomava toda .
Por meio de todo elle foi demandar as janellas
para sahir por alguma d'ellas . É muito para ad-
vertir que tudo isto fez D. Marianna áquella ho-
ra, não sómente desacompanhada , mas sem luz ;
ella que era tão timida , que muitas vezes cheia
de pavor e medo acordava de noite chamando
pela criada, que sempre dormia junto à sua ca-
ma, e nem de dia se atrevia a estar só um in-
stante. Foi D. Marianna apalpando todas as ja-
nellas , e todas achou pregadas .
Não ha com que se exprima a mortal agonia
em que entrou vendo assim malogrados os seus
projectos, e o grande trabalho e perigo com que
112 PORTUGAL

alli tinha chegado. Considerava - se perdida. Ha-


via tanto tempo que se retirara do sitio onde sem-
pre costumava estar, que sem duvida seria já
descoberta a sua falta.
De poder fugir estava desesperada: e que des-
culpa teria que dar de ter alli vindo? Em tama-
nha afflicção, advertiu que ainda havia para dian-
te outra casa, e poderia ser que os postigos d'ella
estivessem despregados . Como ultimo remedio ,
mas esperançado n'elle, procurou a porta que ia
para a dita casa; porem achou -a fechada . Em
fim não havia para que appellar senão para a
misericordia e providencia do Senhor . Cheia de
amargura a ella recorreu, pedindo - lhe anciosa-
mente soccorro n'aquella afflicção e perigo em
que se via por seu amor. Lembra -lhe de repente
que ouvira dizer que n'aquella porta servia a
chave d'outra do mesmo quarto baixo ; mas a
quem o ouvisse não consta, e pessoas de casa
asseveram nunca tal se saber. Como poude foi
buscar a chave, e com effeito viu, que servia, e
abriu a porta .
Contente com o bom resultado foi examinar as
janellas, mas tambem as foi achando pregadas ;
até que em fim encontrou n'uma um pequeno
postigo despregado . Cheia de alvoroço despiu o
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 113

donaire, e abriu o postigo para por elle se dei-


tar. Mas em tudo devia D. Marianna encontrar
grandes difficuldades que vencer. Ao abrir o pos-
tigo, eis que acha um cavalleiro montado n'um
manhoso cavallo, que tendo se pegado mesmo jun-
to da janella, não era possivel nem abalal - o para
diante . Fazia o cavalleiro quanta diligencia po-
dia ; bramia horrorosamente o bruto de raiva , e
á força do castigo, mas d'ali não havia passar.
Ao embaraço que isto fazia ao postigo , acrescia
o grande medo que D. Marianna concebeu do
raivoso animal, além de ter no cavalleiro uma
testemunha que a veria fugir d'aquella maneira.
Como D. Marianna tinha atropellado com a di-
vina ajuda não menores estorvos , confiadamente
recorreu ao Senhor ; mas tão afflicta como se
pode suppôr . O bom Deus que lhe mandava to-
das estas tribulações para a provar, e encher de
muitos merecimentos , veio em seu adjutorio, e
emfim, foi o cavallo por diante deixando o lo-
gar desimpedido .
Tanto que D. Marianna viu desembaraçada a
passagem, assim vestida como estava com aquel-
las compridas roupas, as quaes então mais vulto
faziam por serem de lãa , e com uma grande
cauda, porque andava n'aquelle tempo de lucto
8
114 PORTUGAL

pela condessa de Villar Maior, sua irmã, que de


pouco tinha fallecido, e sobre ellas posta uma
capa de inverno, como então era, assim mesmo
se deitou pelo mui pequeno postigo para a rua,
que era uma viva calçada, da qual ficava a
janella em altura quasi de sete palmos , e n'ella
se achou sem lesão alguma, nem molestia . Pos-
ta assim na rua, correu para a sege, mas para
podermos dar todo o valor á grandissima tri-
bulação , que n'este passo encontrou , e que a
nosso juizo foi maior que quantas o Senhor
lhe semeou n'este caminho, é necessario ad-
vertirmos que tinha lembrado a D. Marianna
que o escripto em que se aviṣava da vinda da
sege podia ter-se perdido, e ser achado por al-
guem, que, aproveitando- se da noticia e usando
de todos os signaes e senhas , a viesse aleivosa-
mente roubar. Não só veiu a D. Marianna este
pensamento , mas com tanta força lhe inquietou
a imaginação, e de tal modo a sobresaltou , que
não poude socegar em quanto o não communi-
cou ao seu confessor, o padre Paulo Amaro , com
quem n'aquella tarde pela ultima vez se confes-
sara, como preparação para a fugida . Segurou-
lhe o padre Paulo que tudo se tinha feito com a
maior cautella , e que descançasse que o Senhor
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 115

não consentiria que ella corresse perigo algum,


e que n'esta confiança fosse sem receio .
Quando D. Marianna se encaminhou para a
sege, não deixou de a assaltar o mesmo pensa-
mento ; mas resistindo-lhe foi por diante . Ape-
nas porém tinha chegado á sege, quando vê
sahir d'ella um galhardo mancebo e mui bisarro,
convidando-a a entrar para dentro. Considere
cada um que afflicção e que amargura não seria
a de D. Marianna vendo- se fugida , de noite , no
meio d'uma rua, cahida nas mãos de um homem
moço ; em fim vendo que se verificava a desven-
tura que tanto temia . Não temos nós com que a
expliquemos ; e parece-nos que o não acabar ella
alli á violencia d'um tão grande contraste , foi por-
que o Senhor, que lh'o enviara , tambem lhe deu
fortaleza para o comportar. Assentou comsigo D.
Marianna, e disse em seu coração que de todo
estava perdida, e ao mancebo respondeu que de
modo nenhum entrava . Então percebeu elle o
susto e engano de D. Marianna , e lhe tornou
que subisse á sege sem temor, que n'ella estava
sua mãe, e elle viera para a acompanhar a ca-
vallo. Não foi isto bastante para a socegar ; e
querendo mais seguras provas , perguntou quem
os mandava alli ? E como lhe respondesse a mãe
116 PORTUGAL

que vinham por ordem do Padre Prior dos Re-


medios , não duvidou mais, e logo se metteu na
sege. Tinha- se pedido esta ao conde d'Alvor, o
qual para que mais prompta fosse a fugida, pos-
to que não sabia de quem, lhe fez atrelar dois fo-
gosos urcos das cavallariças d'El-Rei. Lucas An-
tonio montou-se n'um bom cavallo , armado de
pistolas , prompto para qualquer caso que sobre-
viesse. Mal tinha D. Marianna entrado na sege
quando logo partiu, e com tal pressa e tal des-
acordo, pois outra cousa não lembrava senão fu-
gir, que nem fecharam o sacco d'ella .
Corriam os cavallos a toda a brida, e assim em
breve chegaram a Carnide. Acabava então a
priora do convento , que era religiosa de muito
juizo e prudencia, de propôr D. Marianna a vo-
tos de Communidade ; porque como tudo se ajus-
tou fazer- se, e com effeito se fez, com a maior
cautella e segredo , não quiz a priora dar occa-
sião nenhuma a que transluzisse a novidade, e
podesse vir á noticia dos parentes, por isso guar-
dou para aquella ultima hora esta diligencia .
Chegada que foi ao convento logo recebeu o
santo habito das mãos do padre prior dos Reme-
dios, que era fr . Gregorio de Santo Alberto, por
especial commissão que para isso tinha do seu
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 117

provincial o padre fr . Pedro de S. Bernardo , e


foi isto pouco depois das oito horas da noite do
dia 15 de janeiro de 1728. »>
E era na realidade mui vulgar a fuga das don-
zellas para os mosteiros . Mas não eram estes
n'aquelles tempos tão sómente casa de oração e
de penitencia . Eram tambem casa de vicio , casa
de torpezas, casa de devassidão. Algumas freiras
havia que se entregavam á vida mystica e pe-
nitente, porém muitas preferiam os conventos ,
só porque n'elles tinham incomparavelmente mais
liberdade do que em casa de seus paes .
116 PORTUGAL

que vinham por ordem do Padre Prior dos Re-


medios , não duvidou mais , e logo se metteu na
sege. Tinha-se pedido esta ao conde d'Alvor, o
qual para que mais prompta fosse a fugida, pos-
to que não sabia de quem , lhe fez atrelar dois fo-
gosos urcos das cavallariças d'El-Rei . Lucas An-
tonio montou-se n'um bom cavallo , armado de
pistolas , prompto para qualquer caso que sobre-
viesse. Mal tinha D. Marianna entrado na sege
quando logo partiu, e com tal pressa e tal des-
acordo, pois outra cousa não lembrava senão fu-
gir, que nem fecharam o sacco d'ella .
Corriam os cavallos a toda a brida , e assim em
breve chegaram a Carnide . Acabava então a
priora do convento, que era religiosa de muito
juizo e prudencia , de propôr D. Marianna a vo-
tos de Communidade ; porque como tudo se ajus-
tou fazer-se, e com effeito se fez, com a maior
cautella e segredo , não quiz a priora dar occa-
sião nenhuma a que transluzisse a novidade , e
podesse vir á noticia dos parentes , por isso guar-
dou para aquella ultima hora esta diligencia .
Chegada que foi ao convento logo recebeu o
santo habito das mãos do padre prior dos Reme-
dios, que era fr. Gregorio de Santo Alberto , por
especial commissão que para isso tinha do seu
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 117

provincial o padre fr . Pedro de S. Bernardo , e


foi isto pouco depois das oito horas da noite do
dia 15 de janeiro de 1728. »
E era na realidade mui vulgar a fuga das don-
zellas para os mosteiros . Mas não eram estes
n'aquelles tempos tão sómente casa de oração e
de penitencia . Eram tambem casa de vicio, casa
de torpezas, casa de devassidão . Algumas freiras
havia que se entregavam á vida mystica e pe-
nitente, porém muitas preferiam os conventos ,
só porque n'elles tinham incomparavelmente mais
liberdade do que em casa de seus paes .
116 PORTUGAL

que vinham por ordem do Padre Prior dos Re-


medios , não duvidou mais, e logo se metteu na
sege. Tinha- se pedido esta ao conde d'Alvor, o
qual para que mais prompta fosse a fugida, pos-
to que não sabia de quem, lhe fez atrelar dois fo-
gosos urcos das cavallariças d'El-Rei. Lucas An-
tonio montou-se n'um bom cavallo , armado de
pistolas, prompto para qualquer caso que sobre-
viesse. Mal tinha D. Marianna entrado na sege
quando logo partiu, e com tal pressa e tal des-
acordo, pois outra cousa não lembrava senão fu-
gir, que nem fecharam o sacco d'ella .
Corriam os cavallos a toda a brida , e assim em
breve chegaram a Carnide. Acabava então a
priora do convento, que era religiosa de muito
juizo e prudencia, de propôr D. Marianna a vo-
tos de Communidade ; porque como tudo se ajus-
tou fazer-se, e com effeito se fez, com a maior
cautella e segredo , não quiz a priora dar occa-
sião nenhuma a que transluzisse a novidade , e
podesse vir á noticia dos parentes, por isso guar-
dou para aquella ultima hora esta diligencia.
Chegada que foi ao convento logo recebeu o
santo habito das mãos do padre prior dos Reme-
dios, que era fr . Gregorio de Santo Alberto, por
especial commissão que para isso tinha do seu
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 117

provincial o padre fr . Pedro de S. Bernardo , e


foi isto pouco depois das oito horas da noite do
dia 15 de janeiro de 1728. »
E era na realidade mui vulgar a fuga das don-
zellas para os mosteiros . Mas não eram estes
n'aquelles tempos tão sómente casa de oração e
de penitencia . Eram tambem casa de vicio, casa
de torpezas, casa de devassidão . Algumas freiras
havia que se entregavam á vida mystica e pe-
nitente, porém muitas preferiam os conventos ,
só porque n'elles tinham incomparavelmente mais
liberdade do que em casa de seus paes .
VII

N'uma obra franceza intitulada : Memoires ins


tructifs pour un voyageur, impressa em Ams-
terdam , no anno de 1738 , conta-se uma partida
engraçada que as freiras d'um convento fizeram
ao celebre corregedor de D. João V o Baca-
Thau .
Tinha este com penas rigorosas obstado a al-
guns desaforos que se praticavam nos conventos ,
e certas freiras fizeram com que passasse cer-
to dia fóra de horas pela porta do seu convento,
um senhor que tinha fama de ser muito galan-
teador, e desappareceu , sem que se podesse co-
nhecer para que lado se tinha retirado . Baca-
lhau, a quem tinham advertido , estava á esprei-
120 PORTUGAL

ta, e julgou surprehender o sujeito, a quem se-


guia de longe . Entrou no convento com seus sa-
tellites , e foi logo direito ao parlatorio, onde viu
um homem que estava apertando a mão a uma
freira . Transportado de jubilo por ir fazer uma
tal prisão, elle proprio lançou a mão ao pescoço
do culpado, dando-lhe voz de preso da parte de
el-rei. A freira pareceu assustada, e ao fugir em-
purrou o preso para cima do Bacalhau, o qual
n'um instante se achou coberto de sangue e ou-
tras coisas não muito bem cheirosas : o supposto
criminoso não passava de um boneco represen-
tando um homem, que de proposito alli tinham
posto, para mangarem com o corregedor. 28
Bacalhau enfurecido com a affronta que lhe ti-
nham feito, fez amargas queixas a D. João V,
o qual riu ás gargalhadas : consolou -o , porém ,
com uma quantia de dinheiro, e com a dignida-
de de desembargador . Foi assistir ao seu exame
para tal fim, e estava continuamente a fazer-lhe
elogios , embora o rei estivesse bem longe de ser
um douto jurisconsulto.
Fr. Pedro de Sousa, da casa de Minas , mon-

28 Parece que este facto se passou no convento de


Santa Joanna, em Lisboa.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 121

ge no Brazil, matou o prior, porque lhe chamou


malcreado no capitulo . Fugiu para Allemanha,
onde militou 22 annos , e por fim o Papa per-
doou-lhe.
Julga- se que o bispo do Grão Pará , fr. João de
S. José Queiroz fôra um padre virtuoso, mas
por fim acabou fóra do bispado , perseguido por
uns padres ebrios , e pelo vigario geral Mathias
da Silva Gaio que tinha casado com duas mu-
lheres .
A proposito d'este bispo lembra-nos que elle
nas suas Memorias , dadas á luz em 1868 no Porto,
com annotações do nosso grande romancista e an-
tiquario Camillo Castello Branco , nos conta que
era então moda embriagarem- se as senhoras .

E nos conventos de freiras o que succedia ?


Commungavam diariamente, mas isso não obsta-
va aos odios e rancores que umas tinham ás ou-
tras , por causas insignificantes ! Que não fariam
mulheres sem a minima instrucção, algumas das
quaes nem sequer sabendo assignar o seu nome?
No emtanto diz -nos o auctor da Vida da Ma-
dre Maria Perpetua da Luz, do convento de Beja,
122 PORTUGAL

que ás vezes quando ia para o confessionario , ca-


minhava adiante d'ella o Menino Jesus , repre-
sentando um menino de 3 annos e levando a
chave ! 29
Outra circumstancia não deve passar desa
percebida do leitor . Em todos os livros que tra-
tam das vidas de santos , representam sempre um
papel muito importante as mulheres que vão
distrair os servos do Senhor dos seus actos reli-
giosos provocando - os a actos lascivos !
Conta-nos o Padre Manoel Velho nas suas
«Cartas directivas e doutrinaes » (pag. 271 ) : « Em
certo convento se metteu á força, como é costu-
me, uma d'estas mal procedidas : foi freira para .
adquirir a liberdade para o tracto , e continuou
as dissoluções nos excessos de amante ; fez para
com Deus o de aborrecer o Senhor tão cegamen-
te, que com odio á Divina Magestade aborrecia
o titulo de esposa de Christo , que nem era, nem
merecia ser. Pela morte de algumas pessoas que
temia, pôz em pratica annullar a profissão : con-
seguiu o depois de desacreditar o convento por
varios modos : fez demanda ao convento pelo

29 Na sua vida, já citada, pag. 178.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 123

dote, dando mil pezares ás freiras . Viveu disso-


luta, e acabou sem esperanças de arrependimen-
to e penitencia, miseravelmente. »

O que é verdade, é que aquelles tempos cor-


riam melhores para os pobres e para os indigen-
tes do que os actuaes . Hoje, as instituições de
caridade dão-lhes um albergue, e um passadio
regular, mas não lhes dão liberdade ; n'aquelles
tempos os pobres não morriam á fome, e go-
zavam alguma cousa no mundo . Logo de ma-
drugada se abriam as egrejas para as missas
das almas . Os templos estavam apinhados de
povo desde o romper da alva até á uma ou duas
horas da tarde , e os fieis em geral distribuiam
esmolas pelos pobres . Estes conciliavam o util
com o agradavel . Recebiam o obulo para o sus-
tento , e ouviam musica e cantoria nos duzentos
templos que então possuia a capital d'este paiz !
As prédicas eram incessantes , e as procissões
até de noite se faziam . Além d'isto havia todos
os dias o caldeirão para a pobreza , e os conven-
tos distribuiam um grande numero de esmolas ,
e sustentavam nas casas d'ellas um grande nume-
ro de familias honestas, mas que em virtude das
vicissitudes humanas tinham cahido na pobreza.
122 PORTUGAL

que ás vezes quando ia para o confessionario, ca-


minhava adiante d'ella o Menino Jesus , repre-
sentando um menino de 3 annos e levando a
chave ! 29
Outra circumstancia não deve passar desa
percebida do leitor . Em todos os livros que tra-
tam das vidas de santos , representam sempre um
papel muito importante as mulheres que vão
distrair os servos do Senhor dos seus actos reli-
giosos provocando-os a actos lascivos !
Conta-nos o Padre Manoel Velho nas suas
« Cartas directivas e doutrinaes » (pag. 271 ) : «Em
certo convento se metteu á força , como é costu-
me, uma d'estas mal procedidas : foi freira para
adquirir a liberdade para o tracto, e continuou
as dissoluções nos excessos de amante ; fez para
com Deus o de aborrecer o Senhor tão cegamen-
te, que com odio á Divina Magestade aborrecia
titulo de esposa de Christo , que nem era, nem
merecia ser. Pela morte de algumas pessoas que
temia , pôz em pratica annullar a profissão : con-
seguiu o depois de desacreditar o convento por
varios modos : fez demanda ao convento pelo

29 Na sua vida, já citada, pag . 178.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 123

dote, dando mil pezares ás freiras. Viveu disso-


luta, e acabou sem esperanças de arrependimen-
to e penitencia, miseravelmente. >>

que é verdade, é que aquelles tempos cor-


riam melhores para os pobres e para os indigen-
tes do que os actuaes . Hoje , as instituições de
caridade dão-lhes um albergue, e um passadio
regular, mas não lhes dão liberdade ; n'aquelles
tempos os pobres não morriam á fome, e go-
zavam alguma cousa no mundo . Logo de ma-
drugada se abriam as egrejas para as missas
das almas . Os templos estavam apinhados de
povo desde o romper da alva até á uma ou duas
horas da tarde , e os fieis em geral distribuiam
esmolas pelos pobres . Estes conciliavam o util
com o agradavel . Recebiam o obulo para o sus-
tento , e ouviam musica e cantoria nos duzentos
templos que então possuia a capital d'este paiz !
As prédicas eram incessantes, e as procissões
até de noite se faziam. Além d'isto havia todos
os dias o caldeirão para a pobreza , e os conven-
tos distribuiam um grande numero de esmolas,
e sustentavam nas casas d'ellas um grande nume-
ro de familias honestas , mas que em virtude das
vicissitudes humanas tinham cahido na pobreza.
122 PORTUGAL

que ás vezes quando ia para o confessionario , ca-


minhava adiante d'ella o Menino Jesus , repre-
sentando um menino de 3 annos e levando a
chave ! 29
Outra circumstancia não deve passar desa-
percebida do leitor. Em todos os livros que tra-
tam das vidas de santos , representam sempre um
papel muito importante as mulheres que vão
distrair os servos do Senhor dos seus actos reli-
giosos provocando-os a actos lascivos !
Conta-nos o Padre Manoel Velho nas suas
«Cartas directivas e doutrinaes » (pag. 271 ) : « Em
certo convento se metteu á força, como é costu-
me , uma d'estas mal procedidas : foi freira para .
adquirir a liberdade para o tracto, e continuou
as dissoluções nos excessos de amante ; fez para
com Deus o de aborrecer o Senhor tão cegamen-
te, que com odio á Divina Magestade aborrecia
o titulo de esposa de Christo , que nem era, nem
merecia ser . Pela morte de algumas pessoas que
temia, pôz em pratica annullar a profissão : con-
seguiu o depois de desacreditar o convento por
varios modos : fez demanda ao convento pelo

29 Na sua vida, já citada, pag. 178 .


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 123

dote, dando mil pezares ás freiras . Viveu disso-


luta, e acabou sem esperanças de arrependimen-
to e penitencia, miseravelmente. »

O que é verdade, é que aquelles tempos cor-


riam melhores para os pobres e para os indigen-
tes do que os actuaes . Hoje, as instituições de
caridade dão-lhes um albergue, e um passadio
regular , mas não lhes dão liberdade ; n'aquelles
tempos os pobres não morriam á fome , e go-
zavam alguma cousa no mundo . Logo de ma-
drugada se abriam as egrejas para as missas
das almas. Os templos estavam apinhados de
povo desde o romper da alva até á uma ou duas
horas da tarde, e os fieis em geral distribuiam
esmolas pelos pobres . Estes conciliavam o util
com o agradavel . Recebiam o obulo para o sus-
tento , e ouviam musica e cantoria nos duzentos
templos que então possuia a capital d'este paiz !
As prédicas eram incessantes , e as procissões
até de noite se faziam . Além d'isto havia todos
os dias o caldeirão para a pobreza , e os conven-
tos distribuiam um grande numero de esmolas ,
e sustentavam nas casas d'ellas um grande nume-
ro de familias honestas , mas que em virtude das
vicissitudes humanas tinham cahido na pobreza .
124 PORTUGAL

E por isso não é muito provavel que o grande


Luiz de Camões vivesse n'uma pobreza tão gran-
de como se suppõe, quando elle, nos frades do
convento de S. Domingos de Lisboa, com os
quaes estava relacionado , poderia achar lenitivo
ou remedio para essa pobreza tão apregoada ,
mas não provada sufficientemente. Além d'isso
a fidalguia portugueza por aquelle tempo era ex-
traordinariamente esmoler e caritativa, como ain-
da hoje o é.
Em summa, o pobre, ao mesmo tempo que das
pessoas caritativas recebia o sustento, recreava-
se, já nas festas diarias e nocturnas, já nos ar-
raiaes, já nas procissões, já vendo a queima do
Judas em sabbado d'alleluia, já assistindo ás
magestosissimas profissões nos conventos de fra-
des e de freiras , já contemplando os autos de
fé, já... vendo quasi diariamente o padecente ca-
minhar para o patibulo, já no Alto de Santa Ca-
tharina presenceando a entrada das nossas es-
quadras comboyando as naus dos quintos , já
percorrendo até alta noite as ruas com o fim de
vêr as procissões de penitencia, e principalmente
a dos nus ou do ferrolho , e a dos fogareos : e va-
mos ver o que elle contemplava quando dirigis-
se seus passos á Sé :
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 125

« Em todos os dias em que vinha Sua Eminen-


cia com seu pomposo estado da sua grande e
numerosa comitiva, o iam buscar os excellentis-
simos principaes e monsenhores á sua casa de ра-
ramentos , da qual o vinham conduzindo para a
Igreja em procissão na fórma e maneira seguin-
te com pompa e magnificencia nunca vista, e
nem ainda imaginada . 30 Principiava esta por
dois meirinhos de capa e volta com varas bran-
cas, um do padroado real, e outro geral do seu
Patriarchado : o escrivão , que estava de semana
na mesma fórma de capa e volta : seguia-se a
familia de Sua Eminencia, que vinham a ser os
24 gentishomens , ou pagens , 12 do numero , e
12 supranumerarios com seus mantelões encar-
nados; a estes se seguiam os capellães do nume-
ro e supranumerarios tambem com mantelões
encarnados , e com capellos de arminho branco
forrados. Seguiam- se as jerarchias dos illustrissi-
mos monsenhores , acolitos patriarchaes ; e logo
atraz d'elles os subdiaconos patriarchacs ; se-
guiam-se as mitras levadas por dois capellães de

30 FERNANDO Antonio da Costa de Barbosa : Elogio his-


torico de D. Thomaz d'Almeida, primeiro patriarcha de
Lisboa. Lisboa, 1754.
126 PORTUGAL

Sua Eminencia, e logo um monsenhor subdiaco-


no, que levava a Cruz , e dois custodios com as
insignias chamadas Virga rubea, que acompa-
nham sempre a Cruz. Principiavam os 24 ex-
cellentissimos e reverendissimos principaes ves-
tidos com habito coral de capas magnas , primei-
ro os diaconos , a quem se seguiam os presbyte-
ros e ultimamente os principaes : é esta jerarchia
de todas a mais pomposa, a cada um lhe levan-
tava a cauda o seu caudatario com sua veste
roxa com capuz , e adiante levavam o seu corte-
jo ou Estado de Côrte, que eram tres gentisho-
mens, vestidos de preto á ecclesiastica, e um es-
cudeiro de capa e volta : seguiam- se logo os no-
bres parentes de Sua Eminencia e um monse-
nhor assistente com o Baculo. Principiavam pelos
lados de fóra os 12 masseiros de Sua Eminen-
cia com suas vestes proprias , roxas , agaloadas de
veludo da mesma côr, e quando Sua Eminencia
celebrava, vinham com seus peitoraes de malha ,
e sempre com as massas no braço esquerdo , e
n'ellas as armas de Sua Eminencia : juntamente
logo Sua Eminencia de pluvial caudado como
manto real, e dos lados os flabellos , e estes quando
Sua Eminencia vinha debaixo de um preciosissi
mo palio, de que sustentavam as varas seus capel-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 127

lães : no peito uma riquissima joia corresponden-


te á celebridade do dia, para o que tantas eram
estas, quantas eram as joias, que tinha, to-
das preciosissimas, e de inextimavel valor ,
acompanhado de dois excellentissimos e reveren-
dissimos principaes diaconos assistentes aos la-
dos , e dois illustrissimos monsenhores protonota-
rios pegando -lhe nas fimbrias da falda , e o pa-
rente mais proximo de Sua Eminencia de capa e
volta pegando -lhe na cauda , e ao pé dois capel-
lães mais antigos de Sua Eminencia , e entre el-
les o ministro da mitra. Na occasião, em que vi-
nha S. M. abaixo, o acompanhava tambem a sua
Côrte, a qual esperava Sua Eminencia á porta
da Igreja, e alli lhe lançava agua benta , e a
SS . AA. como seu capellão mór , e passando a
sua Côrte para diante , se ia pôr em acompanha-
mento no seu logar respectivo , indo S. M. e Al-
tezas apoz Sua Eminencia e ao entrar assim
na capella do SS . Sacramento , como na capella
mór, o recebia Sua Eminencia com os excellen-
tissimos principaes, e mais jerarchias postos to-
dos em pé, no plaino da quadratura nos seus loga-
res até subirem S. M. e Altezas para o seu throno,
e depois S. Eminencia, e ao subir para cima com
o mesmo acompanhamento se despedia das Ma-
128 PORTUGAL

gestades no patamar da escada grande da casa de


paramentos , e alli se apartavam, a quem fazia
reverencia, das quaes recebia Sua Eminencia in-
finitas honras n'estas occasiões de espera , e des-
pedida. Não só n'estas occasiões , mas tambem
em outras mais , vinha a sua Relação e officiaes
competentes a ella, e o acompanhavam na mes-
ma procissão no seu logar respectivo . E por fim
de tudo seguia- se a jerarchia dos illustrissimos
monsenhores mitrados assistentes , e ultimamente
os protonotarios . E vindo com todo este magnifi-
co e pomposo acompanhamento , o estava espe-
rando, com sua cruz alçada á porta do atrio da
Igreja, a Basilica Patriarchal, que se compõe de
meritissimos conegos , beneficiados , capellàes , e
cantores, de que ha n'estas tres jerarchias tam-
bem infinito numero . Vinha Sua Eminencia dei-
tando a sua benção a todos , e estava a guarda
real em ala pelos lados . Assim que entrava na
Igreja ouvia-se tocar varios instrumentos , timba-
les, e outros, que pela sua muita antiguidade se con-
servam , chamados Menestrins , a que o vulgo chama
Vacas; e ao mesmo tempo o orgão e repiques dos
sinos, que principiavam a tocar logo que aponta-
va este dilatadissimo e magnifico acompanha-
mento, encaminhando-se para a capella do San-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 129

tissimo, onde Sua Eminencia ia fazer oração no


seu genuflexorio de veludo carmezim franjado de
ouro : e feita esta, se encaminhavam para a ca-
pella mór até chegar Sua Eminencia a fazer se-
gunda oração ao altar- mór em outro genuflexo-
rio differente; e , emquanto fazia esta, vinha para
o seu lado esquerdo o celebrante da missa, e lhe
fazia reverencia, e com esta a principiava, e
logo subia para o throno , onde reccbia a obe-
diencia dos excellentissimos e reverendissimos
principaes com as suas capas magnas soltas, indo
um e um pela sua ordem e jerarchia, chegavam
a reverenciar a Sua Eminencia e a beijar-lhe a
mão posta debaixo do avefligio do pluvial, e tor-
navam a vir para os seus logares , a quem Sua
Eminencia recebia com tanto agrado e urbani-
dade, e no fim d'esta magnifica ceremonia che-
gava o primeiro presbytero , e lhe administrava
a naveta, e Sua Eminencia lançava incenso no
thuribulo , que servia para a missa da celebrida-
de do dia.
«Não fallo aqui da magnificencia, rito e decen-
cia, com que se fazem infinitas e innumeraveis
ceremonias todos os dias , n'esta Igreja patriar-
chal e na Basilica, onde em uma e outra ha in-
finitos ministros e peritissimos mestres ; de ma-
9
130 PORTUGAL

neira que em todo o mundo não ha mais pompo-


so nem sumptuoso apparato, com que se celebre
o culto divino , como este que nós vêmos e ad-
miram com um pasmoso extase todos os estran-
geiros que veem á nossa côrte, não tanto pela
conveniencia do commercio, quanto pela compla-
cencia que esperam ter de lograr na terra o me-
lhor traslado da celestial Jerusalem ...
Pelo que diz respeito á musica, tudo era gran-
de. D. João V 31 mandou vir os melhores artis-
tas italianos, que n'aquelle tempo eram os mais
admiraveis cantores que havia, graças ás cele-
bres escolas de canto fundadas por Porpera e
por varios outros .
Os artistas italianos eram largamente retribui-
dos , e formavam em 1754 com os nacionaes um
grupo de 130 cantores .
Depois d'este anno augmentou ainda conside-
ravelmente o numero indicado pela entrada de
outros artistas que tinham vindo posteriormente
da Italia, e pelo augmento dos capellães canto-
res .
O pessoal da Igreja patriarchal subiu em 1747

31 SR. JOAQUIM DE VASCONCELLOS. Os Musicos portuguezes,


vol. I. pag. 162.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 131

ao numero de 444 pessoas , não incluindo o ca-


pellão mór. E para se fazer idéa do dispendio ,
bastará que digamos que de ordenado tinha ca-
da um dos 24 principaes a quantia de 7 contos
de réis !
Eis em que se consumiram esses milhões , essa
incalculavel riqueza que o acaso deu a Portugal
nos diamantes vindos do Brazil nas celebres naus
dos quintos ! O sr. Oliveira Martins diz -nos na
sua «Historia de Portugal » 32 : « D. João V rece-
beu do Brazil 130 milhões de cruzados : 100 : 000
moedas d'ouro ; 315 marcos de prata : 24 : 500
marcos d'ouro ; 700 arrobas de ouro em pó : 392
oitavas de peso, e mais 40 milhões de cruzados
de valor em diamantes . Além de tudo isto , o pro-
ducto do imposto dos quintos e o monopolio do
pau do Brazil rendiam annualmente para o the-
souro cerca de milhão e meio de cruzados . Pois
esta massa quasi incalculavel de riqueza não bas-
tou para encher a voragem do luxo e da devo-
ção do espaventoso e beato monarcha . O inglez
sentava-se com elle á mesa e applaudia os des-
perdicios ; porque todo o ouro do Brazil passava

32 Vol. II. pag. 122.


132 PORTUGAL

apenas por Portugal, indo fundear em Inglater-


ra, em pagamento da farinha e dos generos fa-
bris, com que ella nos alimentava e nos vestia.
Por isso nem todo o ouro do Brazil chegou ; a
divida nacional cresceu ; e se Lisboa quiz dei-
xar de morrer á sede, teve de pagar com um
imposto especial a construcção do seu aquedu-
cto.
Os dinheiros do Brazil tinham outro e melhor
destino . Iam para Roma custear o preço de con-
cessões valiosas . Era a elevação da capella do rei
a patriarchado : eram as insistencias (sem resulta-
do) para que se definisse o dogma da immaculada
Conceição de Maria : era a licença para os pa-
dres dizerem tres missas em dia de finados : eram
os lausperennes , as reliquias, as canonisações ;
as indulgencias .
D. João V não regateava o preço das cousas ,
imaginando espantar o mundo com o modo per-
dulario com que dissipava . Mais de duzentos mi-
lhões de cruzados foram para Roma : não tem
conta o que deu pelo reino ás egrejas , aos con-
ventos de frades e freiras ; e na sua furia de ser
o esmoler-mór do catholicismo, lembrava se de
todos , ia derramar por toda a parte o ouro do
Brazil : Santo Antão de Benavente , S. Francisco
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 133

de Badajoz , a capella dos portuguezes de Lon-


dres, o presepe de Belem na Palestina, os tem-
plos de Jerusalem , para não fallar nos de Roma .
Alexandre de Gusmão, attonito, apertava a cabeça
com ambas as mãos exclamando : « a fradaria ab-
sorve- nos , a fradaria suga tudo , a fradaria ar-
ruina-nos ! >>
E no emtanto com tal riqueza o exercito por-
tuguez nada lucrou ; pois desde 1715 cahiu no
mais deploravel abandono , porque, pacifico e de-
voto, aquelle rei pouco se importou com as cou-
sas da guerra, chegando o exercito permanente
a não passar de 8 ou 10 mil homens , mal arma-
dos, mal equipados e sem instrucção, conservan-
do-se n'este estado , durante o resto do seu reinado .
E só no seguinte se cuidou seriamente das cou-
sas da guerra . 33
E que pomposa não era a procissão de Cor-

pus Christi ! Viu- se jamais n'outra qualquer


tanto luxo e tanta grandeza ! A festa do
Corpo de Deus em Lisboa é uma solemnida-
de desconhecida em qualquer outro paiz . É
uma theoria paga : é uma ceremonia fabulosa :

33 SR. SIMÃO JOSÉ DA LUZ SORIANO : Historia da Guerra


Civil em Portugal, vol 1, pag. 179.
134 PORTUGAL

é phantastica de riqueza e de maravilhas ! » 34


Assim exclamava a duqueza d'Abrantes em tem-
po d'el-rei D. João VI . Mas que diria ella se a visse
no reinado de D. João V! E entretanto não era só
esta a unica procissão de luxo, ellas eram quasi
diarias.
E que festas as dos patriarchas nos seus con-
ventos ! Em summa, o povo indigente ia pedindo
sua esmola, recebia- a, e ia gosando, e não per-
deria occasião para se deliciar com a anedocta
escandalosa do dia, repetida de bocca em bocca .
A historia, por exemplo , das troças que os fidal-
gos tinham feito na antecedente noite : e das pes-
soas que tinham ficado feridas ou assassinadas
pelos embuçados . Como o conde de Tarouca tinha
roubado uma rapariga, e esta depois fugiu com
o padre Soares . Como o conde de Valladares
disfarçado com manto e touca ia fallar todas as
noites com a creada do convento de Santa Cla-
ra... Mas a verdade é esta : são falsas as santi-
dades apregoadas dos tempos antigos, e a nossa
epocha não é tão immoral como o foi a de D.
João V.

34 SOUVENIRS D'UNE AMBASSADE , en France et Portugal,


de 1808 a 1811 , pela Duqueza de Abrantes .
VIII

Que direi eu da devoção n'aquelle tempo a


Santo Antonio, o casamenteiro das raparigas por
excellencia ; assim como S. Gonçalo d'Amarante
o era das velhas . Pois el-rei D. Affonso VI as-
sentou-lhe praça de soldado ! A um frade ! A um
theologo ! A um varão verdadeiramente evange
lico ! 35
Ribeiro Guimarães no vol . III do Summario
de Varia Historia bastante diz ácerca de Santo
Antonio. Havia o Santo Antonio Brigão: o Santo
Antonio da Mouraria: o Santo Antonio do Rato,

35 Sketches of Society and manners in Portugal in a se-


ries of letters . London , 2 vol . A primeira carta é datada
de 1778.
136 PORTUGAL

no convento da Madre de Deus , 36 e por isso tão


sómente accrescentarei o que nos diz o viajante
inglez Costigan ácerca do Santo Antonio Militar,
n'uma obra actualmente não muito vulgar em
Portugal.
Apparece n'esta obra o seguinte attestado : D.
Hercules Antonio Carlos Luiz Joseph Maria de
Albuquerque e Araujo de Magalhães Homem,
moço fidalgo de S. M. , cavalleiro da sagrada or-
dem de S. João de Jerusalem, e da illustrissima
ordem militar de Christo, senhor do districto e
villas de Moncarapacho e Ferragudo, alcaide
mór hereditario da cidade de Faro, e major do
regimento de infanteria da cidade de Lagos n'es-
te reino do Algarve por S. M. F. a quem Deus
guarde por longos annos .
«Attesto e certifico a quantos virem estas pre-
sentes , escriptas por minha ordem, e selladas
no fim com meu sello manual , com o grande sel-
lo de minhas armas , rubricado pela minha dita
assignatura, e um pouco á esquerda d'ella que o
Senhor Santo Antonio, por outro nome o grande

36 FR. JERONYMO DE BELEM: Chronica, vol. I , pag. 45 e


no supplemento, pag. 87.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 137

Santo Antonio de Lisboa (commum e falsamente


chamado de Padua) foi alistado e teve praça
n'este regimento, sempre desde 24 de janeiro do
anno de N. S. J. C. 1668, como se evidenciará
mais particularmente abaixo : attesto mais que
os 59. inclusos certificados, contando desde o n.º
. 1 até 59 com a firma do meu nome posta junto

de cada um, conteem e comprehendem uma ver-


dadeira e fiel relação dos milagres e outros ser-
viços eminentes que o referido Santo Antonio.
tem em epochas differentes feito e praticado
n'este regimento, pelo motivo de ter praça n'elle,
dos quaes, além d'outras muitas incontestaveis
evidencias, eu sou confirmado por ter conversa-
do com muitas das pessoas agora vivas que re-
ceberam estes , serviços do dito Santo : Pelo que
duvidar da verdade d'estes milagres é um atroz
crime contra o Espirito Santo, bem como o du-
vidar de qualquer dos dogmas da Nossa Santa
Fé, ou dos milagres do proprio Christo, cujas
evidencias não são tão fortes e convincentes , co-
mo estas no presente caso diante de nós, e pelas
quaes as proprias palavras de nosso bemdito Sal-
vador são cumpridas, quando disse a seus disci-
pulos : Depois de mim virá quem ha de fazer
obras maiores que aquellas , que eu tenho feito-
138 PORTUGAL

a qual prophecia claramente diz respeito ao nos-


so grande Santo Antonio . « Certifico outro sim
pela minha palavra de honra , como nobre e co-
mo cavalleiro, e christão catholico (como sou
pela graça de Deus) o que abaixo segue : « Que
tendo lido e observado attentamente todos os pa-
peis de notas, livros e registros de nosso regi-
mento, desde o principio de sua instituição e
tendo cuidadosamente copiado dos referidos pa-
peis todas as cousas relativas ao acima mencio-
nado Santo Antonio, é de verbo ad verbum co-
mo se segue aqui : para cuja veracidade me re-
porto aos ditos livros e papeis guardados nos ar-
chivos de nosso regimento :
«Que a 24 de janeiro de 1668 , por ordem de
S. M. D. Pedro II (que Deus tem na gloria) en-
tão principe regente do reino de Portugal , diri-
gida ao vice-rei d'este reino do Algarve, foi San-
to Antonio alistado como soldado raso n'este re-
gimento de infanteria de Lagos, logo no princi-
pio que se formou, por ordem do mesmo princi-
pe ; e de tal entrada no serviço militar se formou
um registro, que na actualidade existe no pri-
meiro volume do livro de registros do regimen-
to , folhas 149 v . , e onde deu por fiador a Rai-
nha dos Anjos , que se tornou responsavel em
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 139

como não havia de desertar do seu regimento,


mas pelo contrario se conservaria sempre como
um bom soldado junto das suas bandeiras ; e as-
sim o Santo continuou a servir, e a fazer serviço
na qualidade de soldado raso no regimento até
12 de setembro de 1683 , no qual dia o mesmo
principe regente foi elevado a rei de Portugal ,
pelo fallecimento de seu irmão D. Affonso VI ; e
n'esse mesmo dia S. M. promoveu Santo Anto-
nio ao posto de capitão no regimento , por se ter
pouco antes posto corajosamente á frente d'um .
destacamento do regimento , que estava marchan-
do de Jorumenha para a guarnição de Olivença,
ambas na provincia do Alemtejo, e posto em
fuga um forte corpo de castelhanos, em numero
quatro vezes maior do que a gente do referido
destacamento, o qual corpo tinha sido posto em
emboscada contra o destacamento, com a inten-
ção de o levar todo prisioneiro para Badajoz ,
tendo o inimigo por meio de espiões obtido es-
clarecimentos a respeito da sua marcha .
« Outro sim certifico que em todos os papeis e
registros acima mencionados não existe alguma
nota relativa a Santo Antonio , de mau compor-
tamento ou irregularidade praticada por elle :
nem de ter sido em tempo algum açoutado, pre-
140 PORTUGAL

so, ou de qualquer modo punido durante o tem-


po , que serviu como soldado raso no regimento :
Que durante todo o tempo , em que tem sido ca-
pitão, vae quasi para cem annos , constantemente
cumpriu seu dever com o maior prazer á frente
de sua companhia, em todas as occasiões, em
paz e em guerra, e tal que tem sido visto por
seus soldados vezes sem numero, como elles to-
dos estão promptos para testemunhar : e em tudo
o mais tem-se comportado sempre como fidalgo
e official : e por todos estes motivos acima refe-
ridos considero- o muito digno e merecedor do
posto de major aggregado ao nosso regimento , e
de quaesquer outras honras , graças ou favores .
que approuver a S. M. conferir-lhe . Em teste-
munho do que assignei meu nome , hoje 25 de
março do anno de N. S. J. C. 1777 .

MAGALHÃES HOMEM .

O mesmo Costigan continúa na sua Carta :


« Sabe- se muito bem que não se encontra nos
paizes catholicos , especialmente na Hespanha e
em Portugal, uma provincia , cidade, fréguezia
ou mesmo individuo que não tenha como tutelar
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 141

seu Santo ou Anjo , a quem se recommenda a si


e a seus negocios . Por conseguinte não ha um
regimento n'este paiz , que se não tenha posto
ha muito debaixo da protecção d'algum santo
particular, segundo lhe dicta sua devoção ou af
feição ; e um d'elles tomou Santo Antonio de
Lisboa por seu patrono ou protector, o qual pou-
co depois recebeu o posto de capitão do mesmo
regimento , e soldo regular d'ahi por diante, o
qual, bem como dois vintens pagos regularmente
por cada pessoa do mesmo corpo , se empregam
n'um determinado numero de missas pelas almas
d'aquelles que morrem, em fazer a festa ao San-
to , em sustentar os capellacs , em enfeitar a ca-
pella, e em fazer varios encargos eventuaes de-
baixo da inspecção d'um official do regimento
nomeado para esse fim . Este encargo de super-
intendencia de Santo Antonio foi desempenhado
por um major do dito regimento , fidalgo e estu-
pido, por muitos annos , com grande zelo e devo-
ção, e nunca depois cessou de importunar a côrte
com memoriaes e certificados de serviços a favor
de Santo Antonio, com o fim de ser promovido
ao posto de major adjunto ao regimento .
Entre os milagres mencionados nos referidos
certificados havia os seguintes : Ter restituido á
142 PORTUGAL

mulher do major um cão de regaço , muito esti-


mado, que lhe tinham furtado, e ao qual tinha
perdido as esperanças de tornar a vêr outra vez ,
até que seu padre director a aconselhou a im-
portunar Santo Antonio, o que ella apenas fize-
ra por dois dias, lhe levaram o caosinho . Ter
salvado tambem um pobre soldado que o invo-
cou estando a ponto de afogar- se ao passar um
profundo rio , atirando-lhe milagrosamente com
uma corda . Ter um outro escapado das bexigas ,
agradecendo a Santo Antonio , e isto depois de
ter o estertor na garganta, e de ter sido abando-
nado pelo cirurgião do regimento . Finalmente
uma outra certidão assevera que estando um
tambor do regimento , chamado João Ivo Alegre ,
na cama com sua mulher e um filhinho dormin-
do no meio d'elles , quando se levantou de ma-
nhã, encontrou uma grande cobra (a qual se in-
troduzira por debaixo da porta da sua barraca)
na cama com estes , mamando no peito de sua
mulher, em quanto ella estava profundamente
adormecida, com a cauda na bocca do menino,
que a estava chupando com muito contentamen-
to . Á vista d'um caso tão extraordinario o tam-
bor immediatamente invocou Santo Antonio, que
The inspirou presença de espirito e valor suffi-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 143

cientes para agarrar ao mesmo tempo pela ca-


beça e cauda da serpente, agora empanturrada
com a grande quantidade de leite que tinha ma-
mado, e pondo cada um de seus pés por cima
d'estas partes, segurou -a para lhe não fazer al-
gum mal, em quanto com sua faca de matto,
que estava á cabeceira da cama, cortou a cabe-
ça do animal, e fel-a em bocados, como para se
prevenir que lhe causasse mal .
D'esta fórma o homem, a mulher e o menino
tiveram uma salvação miraculosa ! » 37

37 Costigan ainda nos diz mais alguma coisa : « D. João V


gastou seu tempo na companhia ou de padres , ou de mu-
Theres. Na velhice, para se tornar mais proprio para a com-
panhia d'estas, fazia uso das cantharidas, cujos effeitos o
debilitaram a ponto que o puzeram n'uma continua desor-
dem. >>
«Os frades em vez de reprimirem o progresso do vicio
nas familias , nas quaes são recebidos, ou com as quaes
estão relacionados, servem de alcoviteiros ao grande vi-
cio da nação ! »
A duqueza de Abrantes diz -nos na obra Souvenirs d'une
ambassade que os assassinos encontravam-se nas egrejas.
Era aqui o seu ponto de reunião, e a ellas se encaminha-
vam aquelles que pretendiam mandar dar meia duzia de
punhaladas n'um inimigo.
Tanto o livro de Costigan, como o da Duqueza de
Abrantes são interessantissimos. Na nossa obra Portugal
e os Estrangeiros, publicada em 1879, encontrará o lei-
tor os trechos mais salientes d'ambas essas obras, tradu-
zidos em portuguez. Recommendamos -lhe essa leitura.
1
1
1

VIII

Já se vê, que este estado de cousas devia re-


tardar ou afugentar o progresso intellectual . Não
se raciocinava, não se pensava , não se discorria ,
como já disse, não se olhava para o futuro , não
se tratava de sahir do estado de incrivel embru-
tecimento em que se achava o paiz . O homem
estava reduzido a um automato , o qual gyrava
ou se movia tão sómente na direcção que seus
donos queriam . E para isto contribuiam d'um
modo extraordinario os empecilhos e difficulda-
des que se punham á publicação d'um livro. Em
primeiro logar um grande numero de pessoas ti-
nham de examinar o manuscripto para se dar
licença para a impressão . Depois de impresso ti-
10
146 PORTUGAL

nha o livro de ser conferido com o original, e


depois ainda éra a auctoridade , e não o auctor,
quem lhe marcava o preço . O auctor tinha ainda
de fazer um protesto, quando sua obra era poe- .
tica, em como não acreditava nos deuses da fa-
bula, e que Jupiter, Venus, Cupido e Saturno
não passavam de diabos .
Um frade carmelita por nome D. Antonio de
Escobar, compozera uma « Vida do condestavel
D. Nuno Alvares Pereira» . Mandara o manuscri-
pto para os censores , mas hoje morria um , ama-
nhã adoecia outro , ás vezes um dos censores ,
frade em geral , passava para outro convento, e
tambem acontecera que algum d'elles fôra eleva-
do á dignidade de bispo . Seguiu - se d'aqui que o
trabalho de Escobar passára durante longos an-
nos por muitas mãos , e alguem, tendo tirado uma
copia do manuscripto, a remetteu para Hespa-
nha, vertida na lingua hespanhola, e a obra foi pu .
blicada em Saragoça, attribuida a outro auctor .
Felizmente Escobar possuia provas bastantes para
corroborar as asserções de que a « Vida do Con-
destavel » era trabalho seu .
Note-se o titulo extravagante do seguinte livro :
« Instantes do heroe subtil e marianno , precursor
da mais celestial aurora, trovão da sua primeira
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 147

graça , raio da sua primeira gloria, luz da sua


primeira duvida, o veneravel João Duns Escoto ,
traduzida do hespanhol, por fr. Francisco do Ro-
sario , prégador e indigno filho da Santa Provin-
cia dos Algarves , Lisboa , 1744. 8. ° pequeno com
119 paginas sómente .
Vamos agora vêr as datas das licenças : Li-
cença da Ordem 5 de agosto de 1741. Licença
da Commissão Geral da Ordem dos Menores , 21
de julho de 1741. Licença do Santo Officio , 25
de agosto de 1741. Licença do Ordinario , 28 de
novembro de 1741. Licença do Paço , 7 de de-
zembro de 1741. Licença para a impressão , 11
de dezembro do mesmo anno . Certidão de que a
obra impressa está conforme com o original, 27
de junho de 1744. Licença para poder correr, 3
de julho de 1744. Certidão de D. José Barbosa
de como a obra impressa está conforme com v
original, 4 de julho de 1744. Outra licença para
poder correr: tem a mesma data. Taxa do livro
em 60 réis , e para não poder ser vendido por
maior preço , 10 de julho de 1744. Tres annos
perdidos em formalidades !
Note- se tambem o titulo da seguinte obra : -
Amores do Amado, Epitome selecto das Escri-
turas nas excellencias, grandezas e irregulari-
148 PORTUGAL

dades do Querubim de Deus, Benjamin de Chris-


to , Apice dos Prophetas, Timbre dos Apostolos ,
Aguia dos Evangelistas , Martyr sem morte, Mes-
tre dos doutores, Virgem sem macula, Secreta-
rio do Verbo Eterno, e Thesouro dos maiores
segredos , e sempre venerado , e nunca bem co-
nhecido, ainda que entre os mais mimosos S.
João Evangelista . Por fr. Manoel Evangelista ,
dr. em Theologia pela Universidade de Coimbra,
Lisboa 1754. Pois o auctor diz -nos ter por verosi-
mil a opinião d'aquelles que dizem achar- se
ainda S. João Evangelista no Paraizo Terreal !
Caso porém notabilissimo, apesar de tantas
virtudes apregoadas e de tanto beaterio : são os
reinados de D. João V e D. Maria I aquelles em
que foram mais numerosos os desacatos , embora
tão rigorosamente punidos . E o leitor que veja :

Desacatos

1708. - 25 de maio . - Na freguezia de Santa Mar-


tha de Alcanoes , termo de Santarem .
1715. - 9 de abril . -Collegio dos Padres da Com-
panhia em Setubal .
1727.-22 de dezembro . -Monforte , na egreja de
N. S. da Graça .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 149

1730. - 8 de junho . - Coimbra.


1736. - 10 de abril . - Na aldeia de Mezio , na
Igreja de S. Miguel, termo de Lamego .
1740. - 16 de dezembro . - S . Thiago, concelho
de Penafiel .
1745. -29 de maio.-- Igreja de S. Salvador, con-
celho de Riba Tamega . 38
1779. - 14 de maio . - Igreja de S. João Baptista
de Palmella.
1780. -20 de maio . - Igreja de N. S. do Cabo ,
termo de Cezimbra .
1797-18 de julho . - Esgueira. 39

Veja-se ainda o seguinte titulo , e passemos


a outro assumpto : « Zodiaco soberano que entre
dois cometas da vida humana contém brilhantes
astros em discursos tropologicos , encomiasticos e
exegeticos para os doze mezes do anno , quares-
ma e advento : ideados nas divinas letras , exor-
nados de varias allegorias , exquisitos problemas ,

38 O reinado de D. João V terminou em 1750. O de D. ,


Maria I começou em 1777. O intervallo entre estes dois
é o reinado de D. José : repare- se para estas datas , e
para as datas da lista.
39 Fr. CLAUDIO DA CONCEIÇÃO : Memoria dos escravos do
SS. Sacramento do Convento da Mealhada. Lisboa . 1827.
150 PORTUGAL

mysteriosos hieroglyphicos , philosophicas senten-


ças e humanidades celestes, com um astrolabio
sacro-rhetorico, omnimoda instrucção de prégado-
res , na qual como em planispherio mathematico
estão recopilados todos os preceitos da rhetorica
sagrada, breve extracto de quanto o evangelico
orador deve saber, compendiado dos maiores ora-
dores gregos e latinos , sagrados e profanos » . 2 to-
mos . Salamanca, 1726 e 1734 .
A que espantoso embrutecimento tinha chega-
do o paiz ! Os fogos fatuos dos cemiterios eram
considerados como signaes prodigiosos e signifi-
cativos de que os cadaveres alli enterrados eram
de predestinados que já estavam gozando da
visão beatifica ; e a electricidade era o Corpo
Santo , isto é - S . Pedro Gonçalves Telmo .
As cruzes na terra em Barcellos eram um mi-
lagre que o Senhor fazia annualmente . As pe-
dras variegadas que se encontram na praia de
Santos em a nossa capital , considerava- se um mi-
lagre que todos os annos recordava a effusão de
sangue dos santos martyres protectores de Lis-
boa -Verissimo, Maximo e Julia. As pedras ver-
tiam sangue amiudadamente por causa de qual-
quer scena lamentavel . E o santo milagre de San-
tarem attrahia annualmente áquella povoação cen-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 151

tenares de devotos n'uma epocha em que a viagem


era bem penosa, mas soffrivelmente remunerada
porque se visitava o sitio em que está o tumulo de
Santa Iria, fabricado por mãos de anjos no fundo
do Tejo , e se visitava em S. Domingos o tumulo
do grande feiticeiro e magico S. Fr. Gil .
Os accidentes , convulsões e doenças nervosas
eram tidos por obras diabolicas , e contra ellas
havia os exorcismos acompanhados de chibatadas .
O architecto que fez a Torre dos Clerigos no
Porto , n'ella pôz na ultima varanda da torre, ao
lado do sul , uma imagem de Santa Barbara, ad-
vogada contra as trovoadas , feita de pedra tos-
camente lavrada, e esculpiu em latim , na frente
que olha para o oceano , a oração de N. Senhora
ou Magnificat, que ainda se lê perfeita e distin-
ctamente . Diz o chronista franciscano fr . Fer-
nando da Soledade, a pag. 1114 do vol . V da
Chronica Seraphica : « Que quando em 1707 um
grande fogo destruiu o templo de S. Francisco
em Lisboa, fôra o demonio que dirigia e appli-
cava a actividade para acabar de destruir este
grande templo, mas que no antecôro não pudera
o diabo fazer das suas, porque certo religioso
para alli atirou um Agnus Dei. >>
Os medicos eram taes que d'elles dizia o bispo
152 PORTUGAL

do Grão Pará nas suas Memorias já citadas : Julgo


ser melhor curar-se a gente com um tapuia do ser-
tão, que observa a natureza com mais desembara-
çado instincto . » 40
Contra a mordedura dos cães damnados o re-
medio mais geralmente applicado era uma pere-
grinação a Santa Quiteria de Meca.
Fragmentos de pedra d'ara serviam para des-
pertar os amores, e tornal-os fogosos e perma-
nentes . E até mesmo tinham virtude os tijolos e
azulejos arrancados das egrejas .
Portugal foi talvez em todas as epochas o paiz
mais dado ao mysticismo , e ainda o é : se quereis
provas ide a Braga e ás provincias do norte, ou
então reparae tão sómente no que se passa em
Lisboa . Ide ao Conventinho, ide a Campolide ,
ide a S. Luiz rei de França , ide á egreja da
Graça, ide ás Brigidas do Mocambo, ide ás Tri-
nas, ide á capella da Senhora de Lourdes per-
tencente á condessa de Camaride . Ide mais lon-
ge, ide a S. José de Bemfica, ide á casa dos je-
suitas em Setubal . Ora, se as cousas ainda hoje
assim estão , depois da revolução franceza , de-
pois da extincção dos frades em Portugal, e de-

40 MEMORIAS, pag. 10.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 153

pois dos quasi incriveis progressos das sciencias


naturaes n'estes ultimos annos , como não esta-
riam ellas nos tempos anteriores aos do grande
marquez de Pombal ?
Havia por aquelles tempos muitos frades, ( e
fr . Antonio das Chagas foi um d'elles) dos quaes
se fallava com grande respeito e admiração por
causa das artimanhas que tinham empregado
para fazerem fugir muitas filhas de casa de seus
paes para os conventos . Velhacadas taes eram
havidas como grandes serviços prestados á reli-
gião , para maior gloria de Deus.
Portugal era, repito, por excellencia o paiz do
mysticismo , dos biocos e das visagens , o que
não obstou tambem a que fosse a patria da aucto-
ra das « Cartas da Religiosa portugueza» ! A ma-
dre Francisca do Livramento, já citada varias ve-
zes n'este livro , assignava- se do seguinte mo-
do : A nada, a menos que cousa nenhuma 41
e nas horas vagas fazia biscoutos , e preparava
panellas de caldo doce e cuscus para offerecer
ao padre guardião .
Um grande numero de freiras nem sequer sa-
biam assignar seu nome . Houve uma ou outra,

41 VIDA, pag. 52.


154 PORTUGAL

é verdade , que escreveu algum livro , mas os as-


sumptos eram sempre mysticos . De todas a mais
fallada foi Soror Violante do Ceu, mas de suas
«Obras poeticas » dizia D. Francisco Manoel de
Mello « que eram cousa escusada n'este mundo . » 42

Na epocha d'el- rei D. João V quasi que em


nada mais se pensava senão em cousas relativas
á Egreja. Os frades franciscanos tinham deixado ·
o seu antiquissimo convento de S. Francisco de
Orgens, e tinham-se passado para um que de
novo haviam mandado fazer na cidade de Vizeu .
O convento d'Orgens ia cahindo em ruinas , e já
uma parte tivera de ser apeiado . O coração po-
rém d'um abbade de Povolide não teve animo
para ver a ruina d'um convento que datava do
seculo XV . Cheio de abnegação o referido abba-
de Manoel Ferreira offereceu por uma só vez 5
mil cruzados , e além d'isto 40 mil reis annual-
mente para a fabrica da capella mór .
Os frades franciscanos de Vizeu passam-lhe

42 Cartas do Cavalleiro d'Oliveira -- Carta ao dr. Felix


José da Costa ..
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 155

então um padrão encomiastico e laudativo , em


abril de 1743 , no qual declarando esperarem
d'elle ainda outras mercês , accrescentam : « Que
o fazem participante não só na vida , mas para
sempre, de todos os sacrificios , officios divinos ,
inspirações , orações , missões , peregrinações , ab-
stinencias, observancias , jejuns , disciplinas , e de
todas as mais obras meritorias , que com a Divi-
na Graça se fizerem até ao fim do mundo pelos
religiosos d'esta Provincia; e outro sim queremos
e determinamos que, quando Deus fôr servido
levar a V. M. d'esta vida mortal para a eterna,
em gratificação da nossa divida , cada um dos sa-
cerdotes d'esta Provincia offereça pela sua alma
8 missas , cada um dos coristas 8 officios de de-
funtos de 9 lições , e cada um dos religiosos lei-
gos 800 padre-nossos e ave-marias , e em todos ,
e em cada um dos conventos se lhe cantará uma
missa com um officio de defuntos , e em 8 dias
continuos se lhe resará em plena communidade
um responso ... Finalmente com especial goso
recebemos a V. M. por padroeiro e particular
protector do sobredito convento e capella mór,
como consta da authentica escriptura que do tal
padroado fez a V. M. em nome da Sé Apostoli-
ca o nosso Syndico , pelo qual se concede a V.
156 PORTUGAL

M. in solidum e a seus successores , que possui-


rem o sobredito padroado , todas as regalias e
preeminencias a elle annexas, com poder de man-
darem fazer seus jazigos , carneiros , e sepulturas
na dita capella mór, abrir no alto, ou frontespi-
cio d'ella as suas armas , e seus timbres , e lo-
grando em todo o convento as mais regalias , que
pelas Bullas Pontificias , declarações apostolicas,
leis geraes de toda a ordem Serafica e munici-
paes d'esta Provincia são concedidas aos padroei-
ros dos conventos , tendo assento na capella mór,
como padroeiro d'ella , e logrando em todos os
actos de communidade , assim no côro , como nas
procissões e refeitorio do sobredito convento, o
primeiro e mais honorifico logar, tendo V. M.
sómente , em quanto fôr vivo 43 uma cella prom-
pta e preparada, e commoda para dois creados ,
quando no dito convento quizer assistir em com-
panhia dos seus muito amantes , agradecidos , re-
verentes e obrigados religiosos . 28 de abril de
1743.»
Eram pomposas e dispendiosas as festas feitas
a S. Bento pela condessa das Galveias no con-

43 Fr. Pedro de JESUS MARIA : Chronica da Conceição,


vol. I. Lisboa, 1754.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 157

vento das religiosas Bernardas do Mocambo 44 ;


magestosas as celebradas na Graça em honra de
Santa Rita, na Esperança em louvor do Espiri-
to Santo : e bem fallados eram ainda em 1850 os
oiteiros ou abbadessados de Santa Clara do Por-
to, aonde Camillo Castello Branco e João Augus-
to Novaes Vieira iam fazer poesias .. Os oiteiros
celebravam - se com extraordinaria pompa; poetas,
musica, doces, licores, vinhos e animação não falta-
vam . E a par d'isto vêmos o grande Bartholomeu
de Gusmão obrigado a fugir de Portugal para esca-
par ás garras do Santo Officio ! Felizmente um
grande numero de estrangeiros vão dando o seu a
seu dono e reconhecem o nosso illustre compa-
triota, como auctor das machinas aerostaticas . 45
Luiz Antonio Verney no seu Verdadeiro Me-
thodo d'estudar, impresso em Barcelona, e nos
opusculos que posteriormente publicou, tratava
de chamar as attenções para o estado deplora-
vel em que a instrucção , e as intelligencias se
achavam em Portugal . Mas que podia elle fazer
n'um paiz em que as cousas da religião absor-

44 FR. MARCELLINO DA ASCENÇÃO Vida do glorioso S.


Bento. Lisboa, 1737.
45 Por exemplo : F. MARION: Les Ballons. Paris. 1881.
158 PORTUGAL

viam todas as attenções ? Verdade é que aqui até


os soldados eram santos . Santa Thereza de Je-
sus assevera que todos os portuguezes que mor-
reram na batalha d'Alcacer Quibir foram para o
céo , sem terem de passar pelas penas do purga-
torio ! E o auctor das « Memorias de D. Sebastião »
não se esqueceu de transcrever esta passagem na
sua obra.

Quem ha que não saiba que no principio do


seculo actual era ainda incrivel o numero dos
sebastianistas n'este paiz ! Quem ha que desco-
nheça a lucta acirrada travada entre o padre José
Agostinho de Macedo e os vassalos do rei encuber-
to! Quantos folhetos escriptos pro e contra ! Quão
volumosa a collecção das prophecias ácerca da
vinda d'el-rei D. Sebastião ! E isto depois das
reformas do grande marquez, e depois de tantos
progressos intellectuaes que o paiz tinha feito !
Pode- se dizer que as prophecias da Madre Leo-
cadia , do pretinho do Japão , a Vida do sapatei-
ro Simão Gomes, o Lunario Perpetuo, as histo-
rias e comedias de cordel, sermões , novenas e
vidas de santos , conjunctamente com as historias
de Bertholdo , Bertholdinho e Cacasseno eram a
leitura quasi exclusiva das pessoas d'aquelle tempo!
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 159

Em uma das suas cartas a D. Luiz da Cunha,


conta o grande diplomata Alexandre de Gusmão ,
que tendo ido fallar . a D. João V ácerca de um
negocio importante, teve que esperar por muito
tempo, porque el-rei achava-se entretido a con-
versar com um andador a respeito de quanto ren-
diam por anno as esmolas que os devotos deita-
vam na bandeja para a missa das almas !
Como admirarmo- nos então de que as cruzes
de S. Lazaro, pregadas nas portas, fossem tidas.
como um especifico contra a invasão do mal de
pelle , a romaria a Santa Quiteria de Mecca e a
Santa Auta da Madre de Deus remedio efficaz
contra a mordedura dos bichos damnados , e de
que o ministro inglez lord Tirawley exclamasse :
Que se pode esperar d'um paiz em que parte
dos habitantes estão á espera do Messias , e parte
á espera de D. Sebastião!
Quem deixaria então de trazer o rosario ao
pescoço na parte exterior , e os bentinhos na par-
te interior! Quem deixaria de usar da agua de
Santo Alberto , e de levar sua cartinha de na-
moro, para ser bem succedido nos seus amores ,
ao painel de Santo Antonio na egreja d'esta in-
vocação perto da Sé de Lisboa !
E que chusma, por toda a parte, de frades , pa-
160 PORTUGAL

dres, freiras, conegos , sachristas , andadores, cam-


painhas , monges, donatos , farricôcos , leigos ,
irmãos dos terços , juizes da vintena , pedintes , ter-
ceiros de S. Francisco e de S. Domingos . Um
exercito, mas um exercito formidavel que por to-
da a parte havia de guerrear quaesquer refor.
mas !
E que divisões e subdivisões de frades ! Fran-
ciscanos da Conceição , Franciscanos da Arrabi-
da, Franciscanos capuchos , Franciscanos de San-
to Antonio, Franciscanos da Soledade, Francis-
canos da Piedade , Dominicanos , Trinos , Bentos ,
Bernardos , Carmelitas, Brunos ou Barbadinhos ,
Agostinhos descalços , Agostinhos calçados , fami-
liares do Santo Officio , Irmãos da Boa Morte ,
Agonisantes, Irmãos do Terço , Conegos Regran-
tes , Seringas, Bôrras ! Outro formidavel exer-
cito contra as reformas (não fallando dos jesuitas,
os mais poderosos de todos) exercito que lhes ti-
nha declarado guerra de morte !
E as servas do Senhor ? As santas freiras de
Odivellas , com os seus magestosos habitos ; as
riquissimas freiras de Lorvão , as santas freiras
do Louriçal, e as tão falladas de Cellas , que
mimoseavam as visitas com os afamados pastelli-
nhos de manjar branco ; as dominicanas, as ber-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 161

nardas, as grillas, as commendadeiras fidalgas


da Encarnação e de Santos com suas roçagantes
capas . Terceiro exercito em campo contra os
reformadores, e talvez mais temivel que os dois
primeiros para aquelles que sabem como são as
cousas do mundo , e quão poderosa é a fragilidade
apparente da mulher.
N'aquelles tempos até os vassallos queriam que
os reis fossem santos . Simão Pacheco Varella es-
creveu um estiradissimo livro intitulado : Nume-
ro Vocal, só para que el-rei D. João V tomasse
a S. João Baptista para seu modelo . 46
Que direi eu das novenas, jaculatorias , livros
devotos , e do requinte das expressões amorosas
e dos requebros com que se dirigiam á Virgem !
As damas do paço não tinham vontade pro-
pria no tocante ao matrimonio . Seus paes em
geral lhes escolhiam o marido . Mas muitas ve-
zes era a propria rainha a que tractava de taes
negocios . A rainha D. Catharina, mulher d'el-rei
D. João III , foi quem deu marido a D. Violante
de Noronha, fundadora do convento do Calvario
em Alcantara, onde hoje se acha a Escola Nor-
mal do Sexo Feminino, e de quem mais ao dean-
te trataremos .

46 Lisboa, 1702.
11
IX

As utilidades das plantas estudavam- se então


na obra de João Vigier, impressa em Lyon,
com o titulo de « Historia das plantas da Europa » ,
1718. N'esta obra se vê que as virtudes do joio
são as seguintes : Resolve, alimpa , embebeda, faz
dormir, perturba os espiritos : o remedio é o vi-
nagre, e é nociva á vista : a farinha misturada
com vinagre e enxofre cura as impigens , a sarna
e canceira, tambem resolve as alporcas . Cosida
em vinho com esterco de pombo e semente de
linhaça faz rebentar as apostemas rebeldes ; feita
em pessarios faz purgar a madre de suas super-
fluidades facilitando a conceição.»
Fallando da consolida diz : « Bebida em pó
164 PORTUGAL

abstrahe o sangue extravasado das veias , é boa


para todas as quebraduras internas, seu sumo
é admiravel contra todas as chagas da bocca e
das gengivas, testiculos e partes pudendas de um
e outro sexo : emfim, tem tantas virtudes que
dizem que com esta planta se póde passar sem
cirurgiões . » 47
Quem poderia então prever em Portugal a ap-
parição d'um João de Loureiro que veiu honrar
o paiz com a sua « Flora da Cochinchina » , obra
reimpressa na Allemanha : d'um abbade Corrêa
da Serra que foi achar seu retrato nos Estados
Unidos entre os retratos dos mais celebres bota-
nicos : e d'um Brotero que se correspondia com
os primeiros homens de sciencia da Europa !
«Quem quizer um remedio efficaz para almor-
reimas , cursos de sangue, e dôr de cadeiras , sem
prejuizo da sua saude, vá fallar com Manoel Cor-
reia, ferrador ás portas de Santo Antão , que dirá
onde se vende . >>
É o sr. C. Castello Branco quem nos dá noti-
cia d'este annuncio no seu prefacio ao poema-
Os Ratos da Inquisição , pag. 25 .

47 Vol . II, pag. 476 .


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 165

Em 1713 publicava- se em Lisboa a Pharma-


copea Bateana traduzida do latim por D. Caeta-
no de Santo Antonio , conego regular de Santo
Agostinho, da Congregação de Santa Cruz de
Coimbra, Boticario do Real Mosteiro de S. Vi-
cente de Fóra da cidade de Lisboa.
Vejamos duas receitas d'este livro : « Pós de
bythargirio de ouro 4 onças , vinagre bom onças
8, dirija-se por tres dias movendo a materia mui-
tas vezes e se filtre . Serve para curar a ver-
melhidão da cara , bostellas , etc. » 48 .
« Bagas de Alkegenges frescas , onças 6 ; pisadas
se lhe lance soro uma libra e meia, esprema- se o
sumo, e se clarifique com clara d'ovo , depois se

48 No anno de 1670 publicou fr. Antonio Teixeira , mes-


tre e padre da provincia da Ordem da Santissima Trin-
dade e Redempção de Captivos - um livro ao qual deu o
titulo de Epitome das Noticias Astrologicas para a Me-
dicina. N'elle nos diz seu autor que «Os astrologos em ra-
zão das muitas experiencias que fizeram a respeito dos si-
nistros influxos do sol, vierain a tomar d'elle maior indi-
cação das doenças chronicas, assim como nas doenças agu-
das se toma do movimento . "
Dois annos antes tinha publicado tambem um outro fra-
de da Ordem de Nossa Senhora do Monte do Carmo, uma
obra á qual poz o titulo de Correcção de abusos introdu-
zidos contra o verdadeiro methodo da Medicina. Uma par-
te importante d'este livro é destinada para provar « que
convem as sangrias dos pés primeiro que dos braços , nas
enfermidades que accommettem a cabeça. »
166 PORTUGAL

lhe deitem bagas frescas de Alkegenges inteiras,


e se cosa em fogo brando com 3 oitavas de noz
moscada. Trochiscos de Gordonio duas oitavas,
raiz de cardo corredor feito branco primeiro ao
fogo onças duas, cosa-se tudo até se fazer tenro ,
+
cosidas as bagas e tiradas depois , o licor com
outro tanto assucar se coserá até ter consisten-
cia de xarope, no qual se lançarão as bagas do
Alkegenges, que é um contraveneno . Serve para
todos os ataques dos rins, etc. » 49
Como se vê, n'estas receitas nada ha de apro-
veitavel . A medicina estava atrazada em toda a
parte, porém em Portugal muitissimo mais do que
em qualquer outro paiz . Ainda hoje o povo portu-
guez consulta charlatães e curandeiros que ne-
nhuns conhecimentos possuem aproveitaveis, mas
que curam a espinhella cahida . É publico quão
grande é ainda o numero de charlatàes, de bru-

49 Na obra de João Curvo Semmedo intitulada Observa-


ções medicas doutrinaes, impressa em Lisboa no anno de
1741 , encontra-se a seguinte noticia: LINGUAS DE S PAULO
E SUAS VIRTUDES : Estas pedras que verdadeiramente tem
o feitio de uma lingua de passaro, e são pardas de côr de
azeitonas de Elvas, acham-se nas terras de Malta, e tem
grande virtude contra as febres malignas, e quaesquer
outras, porque feitas em pó subtilissimo, mitigam muito
o demasiado calor das febres , aliviam as areias, e algu-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 167

xas , e de mulheres de virtude nas provincias do


norte e até mesmo em Lisboa !
No tempo , porém, de D. João V era incompara-
velmente peior. Tudo entregavam á mercé de Deus ,
e que se fizesse sua divina vontade . Verdade era
que n'aquelle tempo o Menino Jesus , a Virgem,
os bemaventurados e os anjos vinham continua-
mente á terra . Eis mais um exemplo : Mandou um
dia a prelada do convento do Salvador da cidade

mas vezes provocam suor; attribuem- lhe muitas pessoas


grande virtude contra o veneno, porque consta de algu-
mas experiencias, que dando- se veneno em certa iguaria
de que comeram quatre pessoas, estiveram todas quasi
mortes, e accudindo - lhes com o pó d'estas pedras, esca-
param: o que eu posso certificar como testemunha de
vista, é, que estando uma mulher ungida por occasião de
uma febre malignissima, tão visinha da morte e tão des-
acordada que deitando- se - lhe ventosas sarjadas com gol-
pes bem profundos, não as sentia : n'este aperto lhe dei
o meu cordeal a que ajuntei o pó de duas linguas d'es-
tas, que lhe mandei de minha casa, e no mesmo dia es-
capou da morte.
«Esta mulher estava em casa de seu cunhado Manoel
Pereira, morador á Boa Vista, junto ao pateo das Galle-
gas. Estas pedras se acham tambem na mesma praia,
redondas, do tamanho dos grãos de bico de Portugal, es-
tas são pretas como são as pedras da cobra de Dio, e
tem a mesma virtude que as de Dio, porque postas so-
bre a mordedura de qualquer bicho venenoso chupam em
si o veneno : chamam - se estas taes pedras « olho de vibo-
ra». (pag. 30) Memorial de varios simplices.
168 PORTUGAL

de Evora 50 que a missa conventual se resasse , cou-


sa que em outras occasiões poderia ser de menos
reparo , que n'este dia , por ser o oitavo da festa de
S. Francisco . Estariam talvez as religiosas atare-
fadas em outras cousas que as impedissem de can-
tar a missa: entraram n'este tempo algumas religio-
sas para o côro e acharam n'elle a Esposa do
Senhor, que estava absorta em um notavel ex-
tasi ; não lhes causou o successo particular repa-
ro, porque era isto já tão costumado em a vene-
ravel soror Marianna, que por ser succedido mui
a miude, era menos a admiração , devendo ser
maior. Porém notaram todas as que alli se acha-
vam, que quando o sacerdote sahiu da sachristia
para o altar, estando a serva de Deus na mesma
suspensão de sentidos sem que tornasse a entrar
em seu natural acordo , exclamou e disse em voz
perceptivel : Anjo de Deus , vêde o que fazeis. E
quem duvida que teriam as religiosas por novida-
de mysteriosa isto que ouviram ? Pois é certo não
costumava a veneravel Madre n'aquellas occa-
siões dizer coisa alguma .

50 «Desposorios do espirito celebrados entre o Divino


Amante e sua Amada Esposa soror Maria do Rosario,
religiosa de véo branco no convento do Salvador da ci-
dade de Evora. »
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 169

«Até aqui foi o que succedeu exteriormente :


digamos agora o melhor d'este successo , que foi
o que a veneravel soror Marianna interiormente
passou. Ao tempo que o sacerdote sahiu a dizer
missa , viu ella no meio do côro um anjo tocando
harpa, e admirada de tão celeste formosura e da
suavissima harmonia com que tocava aquelle so-
noro instrumento, rompeu nas referidas palavras :
Anjo de Deus, vêde o que fazeis ! Viu logo coros
de anjos nos logares das freiras , que com vozes
do céo e consonancias que bem mostravam ser
da gloria, começaram a cantar no côro o Introi-
to, e foram continuando os mais passos que se
costumam cantar na missa >>
Certa occasião uns homens desconhecidos fo-
ram bater á portaria do mosteiro do Salvador em
Lisboa, dizendo serem musicos, e que alli iam
tocar e cantar n'uma festa, com a qual tinham
sonhado. Tal festa não havia, mas as freiras pen-
sam que seriam talvez anjos alli mandados por
Deus mysteriosamente, e preparam tudo para
uma festividade . No fim os musicos desapparecem
sem esperar por paga. As freiras exclamam - mi-
lagre ! E eis porque no Salvador de Lisboa a
festividade de Corpus Christi precedia a todas
que d'este genero se celebravam na capital. E
168 PORTUGAL

de Evora 50 que a missa conventual se resasse , cou-


sa que em outras occasiões poderia ser de menos
reparo, que n'este dia, por ser o oitavo da festa de
S. Francisco . Estariam talvez as religiosas atare-
fadas em outras cousas que as impedissem de can-
tar a missa: entraram n'este tempo algumas religio-
sas para o côro e acharam n'elle a Esposa do
Senhor, que estava absorta em um notavel ex-
tasi ; não lhes causou o successo particular repa-
ro, porque era isto já tão costumado em a vene-
ravel soror Marianna, que por ser succedido mui
a miude, era menos a admiração, devendo ser
maior . Porém notaram todas as que alli se acha-
vam, que quando o sacerdote sahiu da sachristia
para o altar, estando a serva de Deus na mesma
suspensão de sentidos sem que tornasse a entrar
em seu natural acordo , exclamou e disse em voz
perceptivel : Anjo de Deus , vêde o que fazeis . E
quem duvida que teriam as religiosas por novida-
de mysteriosa isto que ouviram ? Pois é certo não
costumava a veneravel Madre n'aquellas occa-
siões dizer coisa alguma.

50 «Desposorios do espirito celebrados entre o Divino


Amante e sua Amada Esposa soror Maria do Rosario,
religiosa de véo branco no convento do Salvador da ci-
dade de Evora. >»
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 169

«Até aqui foi o que succedeu exteriormente :


digamos agora o melhor d'este successo, que foi
o que a veneravel soror Marianna interiormente
passou. Ao tempo que o sacerdote sahiu a dizer
missa, viu ella no meio do côro um anjo tocando
harpa, e admirada de tão celeste formosura e da
suavissima harmonia com que tocava aquelle so-
noro instrumento, rompeu nas referidas palavras :
Anjo de Deus, vêde o que fazeis ! Viu logo coros
de anjos nos logares das freiras , que com vozes
do céo e consonancias que bem mostravam ser
da gloria, começaram a cantar no côro o Introi-
to, e foram continuando os mais passos que se.
costumam cantar na missa »
Certa occasião uns homens desconhecidos fo-
ram bater á portaria do mosteiro do Salvador em
Lisboa, dizendo serem musicos , e que alli iam
tocar e cantar n'uma festa, com a qual tinham
sonhado. Tal festa não havia, mas as freiras pen-
sam que seriam talvez anjos alli mandados por
Deus mysteriosamente , e preparam tudo para
uma festividade . No fim os musicos desapparecem
sem esperar por paga. As freiras exclamam—mi-
lagre ! E eis porque no Salvador de Lisboa a
festividade de Corpus Christi precedia a todas
que d'este genero se celebravam na capital. E
168 PORTUGAL

de Evora 50 que a missa conventual se resasse , cou-


sa que em outras occasiões poderia ser de menos
reparo, que n'este dia , por ser o oitavo da festa de
S. Francisco . Estariam talvez as religiosas atare-
fadas em outras cousas que as impedissem de can-
tar a missa : entraram n'este tempo algumas religio-
sas para o côro e acharam n'elle a Esposa do
Senhor, que estava absorta em um notavel ex-
tasi ; não lhes causou o successo particular repa-
ro, porque era isto já tão costumado em a vene-
ravel soror Marianna, que por ser succedido mui
a miude, era menos a admiração , devendo ser
maior. Porém notaram todas as que alli se acha-
vam, que quando o sacerdote sahiu da sachristia
para o altar, estando a serva de Deus na mesma
suspensão de sentidos sem que tornasse a entrar
em seu natural acordo , exclamou e disse em voz
perceptivel : Anjo de Deus, vêde o que fazeis . E
quem duvida que teriam as religiosas por novida-
de mysteriosa isto que ouviram? Pois é certo não
costumava a veneravel Madre n'aquellas occa-
siões dizer coisa alguma .

50 «Desposorios do espirito celebrados entre o Divino


Amante e sua Amada Esposa soror Maria do Rosario,
religiosa de véo branco no convento do Salvador da ci-
dade de Evora. >»
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 169

«Até aqui foi o que succedeu exteriormente :


digamos agora o melhor d'este successo , que foi
o que a veneravel soror Marianna interiormente
passou. Ao tempo que o sacerdote sahiu a dizer
missa, viu ella no meio do côro um anjo tocando
harpa, e admirada de tão celeste formosura e da
suavissima harmonia com que tocava aquelle so-
noro instrumento, rompeu nas referidas palavras :
Anjo de Deus, vêde o que fazeis ! Viu logo coros
de anjos nos logares das freiras, que com vozes
do céo e consonancias que bem mostravam ser
da gloria, começaram a cantar no côro o Introi-
to, e foram continuando os mais passos que se
costumam cantar na missa >>
Certa occasião uns homens desconhecidos fo-
ram bater á portaria do mosteiro do Salvador em
Lisboa, dizendo serem musicos , e que alli iam
tocar e cantar n'uma festa , com a qual tinham
sonhado . Tal festa não havia, mas as freiras pen-
sam que seriam talvez anjos alli mandados por
Deus mysteriosamente , e preparam tudo para
uma festividade. No fim os musicos desapparecem
sem esperar por paga. As freiras exclamam - mi-
lagre ! E eis porque no Salvador de Lisboa a
festividade de Corpus Christi precedia a todas
que d'este genero se celebravam na capital. E
170 PORTUGAL

quão deslumbrantes eram aqui as festas do Me-


nino Jesus que crescia !
Sem duvida que para um tal estado dos cère-
bros incandescentes devia contribuir muito a com-
pleta continencia que alguns individuos guarda-
vam , e a horrorosa descripção que os livros mys-
ticos faziam das penas dos infernos , descripção
ainda hoje capaz de fazer enlouquecer aquellas
pessoas que se entregavam continuamente a pen-
sar em taes assumptos , como aconteceu á rainha
D. Maria I.
Não fallando dos Ultimos Novissimos do P.
Manoel Bernardes, obra que bastaria para dar a
immortalidade a este grande escriptor mystico ,
andava nas mãos de todos o Desengano dos
Peccadores, dedicado a D. Manoel, infante de
Portugal, escripto pelo P. Alexandre. Perier, da
Companhia de Jesus , e accrescentado com uma
addição de um caso horrivel na terceira impres-.
são por Lourenço Morganti. 51

51 Eis, como curiosidade, um trecho d'essa obra : Nun-


ca cuidei que o fedor do Inferno fosse tormento tão
insoffrivel, que bem considerado, se não vence a qual-
quer das penas, que hão de soffrer os mais sentidos , pelo
menos não cede, nem é menor d'aquellas que mais se
podem excogitar. E se um só fedor, que é intenso , não
ha quem o possa supportar por muito tempo, quem du-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 171

E são realmente horrorosas aquellas estam-


pas de diabos cornudos mordendo nos corpos hu-
manos como uns desesperados , e aquellas descri-
pções , capazes até de fulminarem com a morte
instantanea as almas timoratas e crentes !

vida que, se os fedores forem muitos , e todos unidos no


mesmo logar, e com a mesma intensidade, não sejam capa-
ses de tirar milhares de vidas no primeiro instante ! Será
logo o fedor do inferno intensissimo e totalmente into-
leravel por tres razões . A primeira em razão do logar e
do sitio; a segunda em razão da quantidade innumera-
vel dos corpos dos condemnados ; a terceira em razão da
continuada assistencia dos demonios. No tocante ao lo-
gar, diz o doutor Angelico Santo Thomaz, que, depois
de estar a terra bem purgada pela violencia e activida-
de do fogo do ultimo dia do juizo ; depois de reduzida em
cinza esta universal machina do Orbe; depois de estar
purificado o mundo de todas as immundicies dos pecca-
dos; todas as fezes, que restarem, ajuntadas entre si
irão por canos subterraneos a sepultarem- se na intole-
ravel sentina do Inferno. Mas o alcatrão , o enxofre, o
breu, e outras materias betuminosas, que servem de ali-
mento áquelle fogo, accrescentarão e levantarão em grau
mais subido este mau cheiro. E , se o ar, por puro que
seja, fechado por muitos annos em qualquer morada, se
corrompe de qualidade que fica insupportavel e pesti-
lente, julguemos agora que taes ficarão os ares do In-
ferno fechados, ha tantos seculos , em um hediondo re-
ducto de tantas immundicies, sem nunca ter por onde
exhalar ou purgar-se. Que peste refinada não causará! E
quem haverá que imagine o que poderá soffrer ! quando
aqui n'este mundo o fumo de uma candeia inal apagada,
que lá no Inferno pareceria um cheiro mui suave, se ren-
de ao nosso olfato tão molesto, como se fosse um fedor
insupportavel ! (pag. 82). ·´
172 PORTUGAL

As confissões egualmente deviam propagar a


crença de taes castigos e penas . Oh ! Ácerca das
confissões poder-se-hiam encher volumes . Mas
foram ellas um dos mais possantes meios de que
o clero podia lançar mão para enraizar o seu
poderio . As confissões podem encaminhar as ove-
lhas perdidas para o redil. As confissões podem
desencaminhar a solteira e a casada . Tudo isso
depende do modo de proceder do sacerdote no
acto da confissão . Mas darei eu credito a tudo ,
menos a que a donzella ficasse tão innocente como
estava anteriormente , se os confessores cumprissem
á risca os preceitos que se encontram no livro Com-
pendium totius Tractatus de Sancto Matrimonio,
impresso em Lisboa no anno de 1621 , ou no livro
intitulado Aphorismi Confessariorum do nosso je-
suita Manoel de Sá, impresso em Antuerpia no anno
de 1614. Os theologos parece que se deleitavam
escrevendo ácerca de certos assumptos . Pois até
o P. Sebastião d'Azevedo , auctor do « Céo Mysti-
co á gloriosissima Senhora Sant'Anna, Mãe da
Mãe de Deus , nos diz d'um modo positivo que « o
appetite carnal estava morto em seus paes . » E
que o «juntarem- se seus paes para a gerarem foi
porque os moveu o amor de Deus, e não porque
os incitasse algum carnal appetite, antes o obra-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 173

ram contra a sua vontade , e d'este modo com o


puro motivo do amor de Deus foi por elles gera-
da. » 52 Parece que as cogitações dos theologos
cheios de respeito nem sequer deviam pensar em
pontos taes, e tratarem só d'outros assumptos ,
que lhes não faltavam elles .
Na Italia parece que as cousas corriam pouco
mais ou menos como em Portugal . Lady Morgan
na sua obra tão celebre, a Italia (vol I. pag.
351 ) diz-nos : Que na Lombardia a maior parte
dos nobres já entrados na edade, tanto d'um co-
mo do outro sexo, pertenciam a irmandades ou
confrarias religiosas , e que a das damas de Bis-
cotini era uma das de mais voga . Era uma as-
sociação de senhoras, que baseavam suas espe-
ranças de salvação de suas almas na distribuição
de bolos e percorriam as casas dos pobres com
cabazes cheios de biscoitos e bolinhos , aos quaes
os distribuiam, e ao mesmo tempo faziam prati-
cas religiosas ! Era então director d'esta associa-
ção de damas o P. Vecchi, que Lady Morgan
diz ser divertido . Os capellães d'esta associação
fidalga penteavam os cãesinhos de regaço, e

52 Lisboa, 1725, pag. 107 e 108.


174 PORTUGAL

acompanhavam as damas á missa e ás vesperas .


E por estes tempos em Portugal havia quem pa-
gasse annualmente a Santo Aleixo uma pensão
de 50 réis para nos defender contra os perseve-
jos, e outra tambem de 50 réis a S. Bento para
nos livrar do usagre !
É porém certo que alguns dos proprios padres
não estavam contentes com os estudos de Portu-
gal n'aquelles tempos . O padre fr . Manoel de
Santo Ambrosio auctor da « Vida de D. Fr. Igna-
cio de S. Caetano, confessor da rainha D. Maria
I » , escreve a pag. 28 : « É como todos sabem, .a
philosophia Aristotelica (que n'esse tempo se
estudava), bastantemente escabrosa : parece que
as subtilezas e passagens inintelligiveis são a al-
ma que a anima, ao menos não falta quem diga
que é esse o fim a que se propunha seu auctor . »
Muitos, ainda mesmo dos que se tinham por Co-
rifeos , e a ensinavam, talvez que nem entendes-
sem o que diziam . 53

53 Lisboa, 1791.
X

Todavia, depois das reformas litterarias do Mar-


quez de Pombal já os espiritos tinham voado
mais alto , já se raciocinava mais correctamente ,
e a obra do P. Theodoro d'Almeida-a Recrea-
ção Philosophica —foi digna da acceitação que teve
em 1793.
E com effeito Sebastião José de Carvalho e
Mello , debellados e prostrados seus inimigos , em
nada pensou tanto como na restauração das let-
tras , na mudança do systema do ensino , na es-
colha de excellentes professores , mandando -os
vir do estrangeiro , quando em Portugal os não
houvesse . Em 1759 cria a Aula do Commercio
n'um paiz em que até os guarda-livros eram es-
176 PORTUGAL

trangeiros . Estabelece 440 aulas de instrucção


primaria, 15 nas ilhas e 24 no ultramar . 54
Pouco será isto para as idéas de nossos dias ,
mas para as d'aquelles tempos era immenso , era
inaudito .
Creou uma aula de navegação, estabeleceu o
Collegio dos Nobres , excellente instituição entre-
gue a mestres excellentes . N'elle estabeleceu o
ensino das linguas latina, grega, franceza, italia-
na, e ingleza , rhetorica , poetica, logica , historia,
arithmetica , geometria , trigonometria, theoremas
d'Archimedes, seis primeiros livros d'Euclides ,
algebra, optica, principios d'astronomia , geogra-
phia, nautica, architectura civil e militar , dese-
nho , physica, equitação , esgrima e dança .
O professor de rhetorica devia apresentar aos
discipulos um resumo historico critico das diffe-
rentes seitas philosophicas .
O de historia tinha obrigação de dar idéa ge-
ral da chronologia, da geographia , da historia
antiga e moderna , principalmente da portugueza,
principios e progressos das artes . Recommendava

54 Emquanto ao Ultramar o numero d'ellas talvez não


seja ainda hoje muito maior.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 177

finalmente aos professores das linguas vivas: «Que


o ensino tivesse o mais possivel um caracter pra-
tico, dispensando uma multidão de preceitos inu-
teis , a que ordinariamente se soccorria n'esse en-
sino . »
E apesar d'estas recommendações do grande
marquez , os alumnos dos nossos actuaes lyceus ,
de lá sahem, passados dois annos de estudo, não
sabendo dizer uma palavra nem de francez nem
de inglez ! Por ironia dizemos hoje - francez e
inglez de lyceu !
Não ficam ainda só n'isto as reformas . Estabe-
lece uma aula de artilheria em S. Julião da
Barra, cria bibliothecas militares em todas as
guarnições , estabelece uma aula de cirurgia no
Hospital de Todos os Santos, funda a Impressão
Regia, cria uma aula de pharmacia e un dis-
pensatorio pharmaceutico junto da universidade
de Coimbra, e reforma esta mesma universidade,
a qual, passado um seculo, celebra o primeiro
centenario d'estas reformas, exaltando e engran-
decendo a memoria do marquez , como era de jus-
tiça .
Com a apparição do marquez tudo mudou.
Suas reformas eram sempre salutares, e não
ephemeras, mas seculares . E eis o que diz um
12
178 PORTUGAL

lente da universidade : 55 « Começou então uma


nova era para o movimento intellectual da nação .
Abriram-se escolas de sciencias naturaes , cousa

quasi desconhecida entre nós ; permittiu-se o li-


vre exame : facultou - se ampla discussão sobre
materias litterarias e scientificas ; e o pensamen-
to poude, por este modo , exercer a sua activida-
de em todos os ramos do saber humano . A for-
tificar o espirito nas lides da sciencia accudiu a
mocidade estudiosa . Seguiu- se o labutar na ins-
trucção e desenvolvimento progressivo das ideas.
que prepararam a liberdade e os beneficios da
civilisação, de que rós, a geração presente , go-
samos . »
Effectivamente assim é: « Tudo quanto depois
do governo do grande Pombal fomos e somos , ao
grande marquez o devemos . »
Já no anno de 1783 e seguintes são vulgares
as observações astronomicas em Portugal, feitas
até mesmo por padres . 56 E , se a nossa Academia

55 SR. BERNARDO ANTONIO SERRA MIRABEAU. Memoria


historica e commemorativa da Faculdade de Medicina.
Coimbra.
56 P.e D. JOAQUIM DA ASSUMPÇÃO : Observações astro-
nomicas no Real Collegio de Mafra, no anno de 1785,
1786, etc.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 179

Real das Sciencias , apesar de pertencer ao nu-


mero das mais modernas, pelas obras dos seus
socios de prompto se elevou ao numero das mais
distinctas, a elle o deve.
Ás reformas do marquez devem sua gloria a
Academia e seus socios Monteiro da Rocha, Gar-
ção Stockler, Caetano do Amaral, Soares Barbo-
sa, Gomes de Villas Boas , 57 Bonifacio d'Andrade,
Dantas Pereira e tantos outros !
Ah ! Quanto não podia eu dizer ácerca da ce-
lebre Arcadia ! Como seus poetas são ainda hoje
o orgulho da nossa litteratura !
Ao marquez de Pombal se deve a regenera-
ção de um paiz inteiro, immerso no mais pro-
fundo embrutecimento intellectual de que ha me-
moria nos annaes de qualquer povo civilisado .
É, não ha duvida, o marquez arguido de ex-
cessivamente rigoroso nas suas punições . Foi
bem rigoroso, não ha duvida, mas já um estran-
geiro distincto (o conde da Carnota nas suas « Me-
morias do Marquez de Pombal » ) provou « que os
castigos nos paizes estrangeiros durante a admi-

57 CUSTODIO GOMES DE VILLAS Boas : Observações as-


tronomicas feitas em 1790, etc.
180 PORTUGAL

nistração do marquez , ainda eram mais atrozes


do que em Portugal .
Além do que um tal rigor era cruel sim, mas
indispensavel. O marquez só tinha pelo seu lado
D. José, e gloria seja a este monarcha : o paiz
inteiro era contra o marquez, a quem por vezes
tinham tentado tirar a vida . Pombal n'um paiz
de fanaticos ou de santos, 58 como quizerem, sỏ
podia ser obedecido empregando o terror .
Finalmente, se as lettras e as artes encontra-
ram- como é forçoso confessar e como ao deante
demonstrarei um protector em D. João V, as
sciencias não tiveram egual fortuna durante esse
reinado . Essa gloria estava reservada para o
grande marquez de Pombal . E sua protecção e
serviços foram taes que, pretendendo o governo
portuguez em 1835 , fazer uma d'aquellas refor-
mas tão vulgares em Portugal , os lentes das fa-

58 É grande o numero dos santos portuguezes : Infan-


te S. Fernando, Santa Isabel, e Santa Joanna, filha de
D. Affonso V, etc. Alguns d'elles foram acabar seus dias
em paizes estrangeiros, como Santo Antonio, S. João de
Deus, Pedro Neagles , conhecido na Italia, e do qual ha
uma « Vida» impressa, o beato Amadeu, tambem muito
conhecido na Italia, uma Margarida de quem nos falla
fr. Luiz de Sousa na « Vida do Arcebispo » . Muitos santos
vieram de fóra e residiram em Portugal como S. Fran-
cisco Xavier, S. Pedro d'Alcantara , etc.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 181

culdades de Theologia, Canones , Leis , Medici-


na, Mathematica e de Philosophia da universi-
dade de Coimbra 59 ergueram sua voz, e brada-
ram pedindo: « Que se mandasse suspender a ex-
ecução de quaesquer reformas legislativas da
universidade , por isso que os seus estatutos eram
um padrão da sabedoria e gloria nacional , que
ainda hoje merece veneração no seio da Europa
culta , »

59 Diario do governo, de 1 de dezembro de 1835, n.°


283, pag. 1162.
XI

A liberalidade de D. João V para com a Sé


Patriarchal, já em 1710 começára a patentear- se,
com umas tendencias que tocavam quasi as raias
da loucura .
No 1.º de março do referido anno erigiu por
constituição do pontifice Clemente XI a sua real
capella em insigne collegiada, com o titulo de S.
Thomé Apostolo , e condecorada com grandes
prerogativas, instituindo lhe 6 dignidades , 18 co-
negos, 12 beneficiados , além de outros ministros.
subordinados ao capellão mór 60, como seu pro-

60 FR. CLAUDIO DA CONCEIÇÃO : Gabinete Historico, vol.


X. pag. 137.
184 PORTUGAL

prio ordinario, e lhes estabeleceu para congrua


e sustentação 12 :5505560 réis , de fórma que ao
deão competia 4005000 réis , a cada uma das di-
gnidades 3005000 réis , a cada um dos 18 cone-
gos 300 000 réis, a cada um dos doze beneficia-
dos 150 000 réis e a cada um dos mansionarios
805000 réis ; assim tomaram posse a 16 de maio
de 1710.
« Constituida a insigne collegiada de S. Thomé,
passou el-rei a condecorar os seus ministros com
um habito coral distincto do antigo, ordenando
que os conegos podessem trazer sobre o roquete
capa magna roxa com capello forrado de pelles
brancas de arminho em tempo de inverno, isto
é, desde vespera de todos os Santos até sabba-
do de Alleluia ; e no verão usariam das mesmas
capas forradas de seda encarnada : e os benefi-
ciados trariam tambem capa roxa com capello
forrado de pelles cinzentas, no tempo do inverno,
e no verão andariam com a mesma capa, e ca-
pello forrado de seda roxa , accrescentando mais
a cada conego 100 000 réis , e a cada um dos
beneficiados 505000 réis . >>
Mas tudo isto é nada comparado com o que
el-rei fez a favor da Patriarchal. E ouçamos o
P. João Baptista de Castro no seu excellente Map-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 185

pa de Portugal 61 : « Toda esta abundancia de gra-


ças e honras, com que o magnanimo rei D. João V
engrandeceu a sua real capella, ainda se não
proporcionava com o dilatado do seu pio e regio
coração, e assim obtendo da Santidade de Cle-
mente XI a Bulla Aurea, que começa : In supre-
mo Apostolatus solio , expedida em 7 de novem-
bro de 1716 , fez exaltar a sua insigne collegia-
da em cathedral metropolitana e patriarchal com
a invocação de Nossa Senhora da Assumpção ,
dividindo para este effeito esta cidade e seu ar-
cebispado em duas partes , estabelecendo na parte
occidental um patriarcha, a quem uniu a digni-
dade de capellão- mór com distincta jurisdicção
da metropolitana , o qual como patriarcha ficou
superior a todos os arcebispos , e bispos do reino,
e ainda ao de Braga .
Para maior decoro e magnificencia da sua di-
gnidade lhe alcançou à regalia de andar vestido
em habito purpureo á maneira do arcebispo Sa-
lisburgense, primaz da Allemanha, e outros tan-
tos privilegios e proeminencias, unindo-lhe tam-
bem as honras e tratamento de cardeal, que lhe
mandou dar por decreto de 17 de fevereiro de

61 Vol. III. pag. 183. Lisboa. 1763.


186 PORTUGAL

1717. E por que esta honra cardinalicia lhe fosse


propria e fixa, fez com que o papa Clemente XII
não só o elevasse áquella dignidade, como elevou
por bulla de 27 de dezembro de 1737, que co-
meça Inter præcipuas Apostolici ministerii ; mas
pela mesma estabeleceu para sempre que a pes-
soa que fosse preconisada patriarcha de Lisboa,
fosse logo creada cardeal no consistorio immedia-
tamente seguinte.
Para tal fim consignou do patrimonio real e
do rendimento das quintas das Minas- Geraes
para sustentação magnifica do patriarcha e seus
successores , em perpetua doação, todos os annos ,
220 marcos d'ouro , e o grande rendimento da
Leziria da Foz de Almonda, para que sem pre-
juizo dos pobres, podesse luzir com esplendor em
tão alta dignidade . E proseguindo na ampliação
da nova cathedral , creou nova dignidade e co-
negos para formarem um respeitoso cabido, en-
chendo-os de grandes auctoridades e honras , além
das que o papa Clemente XI lhes outorgou pela
constituição Gregis Dominici, de 3 de janeiro
de 1718 .
Continúa a exercitar novas grandezas que já
pareciam impossiveis à imaginação , e sómente
sondaveis e factiveis á dilatada esphera da sua
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 1.87

idéa. Tornou a unir as duas cidades em uma só,


e por constituição do papa Benedicto XIV pas-
sada em 13 de dezembro de 1740, e que principia
Salvatoris nostri, fez abrogar e extinguir a anti-
quissima Sé de Lisboa Oriental, incorporando e
estabelecendo uma só igreja patriarchal com
omnimoda jurisdicção metropolitana ; e para que
as suas dignidades se distinguissem mais especi-
ficamente, erigiu um excellentissimo collegio de
24 principaes com habito cardinalicio , e 72 pre-
lados ou ministros de habito prelaticio , divididos
em varias jerarchias , a saber -prelados presby-
teros com insignias episcopaes , e exercicio de
pontifical, protonotarios , subdiaconos e acolytos ,
20 conegos , 12 beneficiados de 700 000 réis , 32
beneficiados, 32 clerigos beneficiados e outros
mais ministros da egreja patriarchal . »
«O rei (diz o sr . Ribeiro Guimarães no Summario)
doou ao patriarcha, além das rendas ecclesiasti-
cas , outras muitas para a mantença de seu esta-
do com lustre e grandeza . Quando ainda o pa-
triarcha era bispo do Porto, deu-lhe D. João V
24 creados de sala, que se appellidavam da sua
guarda, com vestidos de panno roxo, guarnecidos
pelas costuras e agaloados de ricos passamanes de
velludo lavrado carmesim, os quaes , quando o
188 PORTUGAL

patriarcha sahia de estado, levavam umas capas


compridas do mesmo panno , abandadas e agaloa- ·
das de velludo carmesim, cabelleiras grandes, e
voltas tinha mais 24 creados das cavallariças,
que tambem acompanhavam o estado , mas sem
capas, vestidos do mesmo panno roxo , guarne-
cido e agaloado, e todos com meias encarnadas :
e mais 2 creados chamados da Cruz, que acom-
panhavam o cruciferario, um a cada estribo da
mulla branca, um estribeiro e um viador .
Tinha mais ao seu serviço 12 clerigos , que se
appellidavam capellães , e 12 gentis-homens secu-
lares, os quaes entravam de serviço ás semanas ,
e vestiam de seda roxa, loba e sotaina de man-
gas cahidas, e ainda havia mais 24 de ambas
estas classes supra numerarios , os quaes só ti-
nham obrigação de esperarem o patriarcha , ou
na patriarchal, ou em qualquer outra parte , onde
ia celebrar ou assistir ás funcções patriarchaes .
E além d'este pessoal ainda tinha um secretario
do expediente, um esmoler, e muitas mais pes-
soas do seu serviço .
Com estes familiares numerosos sahia do es-
tado no seu coche riquissimo de velludo carme-
zim, agaloado de ouro por dentro, e tendo no
tejadilho, na parte interna, o Espirito Santo , fa-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 189

bricado de ouro , á imitação do que usa o papa .


Os cocheiros eram tambem como os do papa,
vestidos com calções largos cobertos de ouro,
vestias encarnadas todas tecidas de ouro, e por
cima d'estas outras de mangas perdidas, com va-
rios cachos de ouro pelos hombros, volta borda-
da, cabelleiras grandes, botas encarnadas, e as
joelheiras cahidas com umas rendas finissimas ;
montados em sellas encarnadas, e os arreios da
mesma côr e tecidos de ouro .
Seguia se a liteira do estado, tambem muito
rica, e depois quatro coches conduzindo os seus
familiares, puchados cada um d'elles por seis ca-
vallos russos bem ajaezados, levados pela redea
por outros tantos creados .
E n'um coche iam sempre n'estas occasiões
quatro desembargadores da relação patriarchal . »
«E para que não só as obras , mas as vozes che-
gassem ao céo com pura e suave harmonia, sem
mistura de symphonias profanas , (continua o P.
João Baptista de Castro), mandou vir de varias.
provincias de Italia os melhores musicos com
grossos estipendios, de que formou um côro es-
pecial e grave dos mais selectos cantores .
Fez tambem guarnecer a torre da egreja de
muitos e harmoniosos sinos . Constava ella de
190 PORTUGAL

dois andares de sineiras : o primeiro tinha duas


em cada lado, em que havia 8 sinos ; no segundo
andar havia quatro sineiras ; porém o sino grande
tomava todo o vão do meio , de sorte que se via
por todas as quatro partes, e se sustinha em ma-
deiras, que não tocavam nas paredes da torre .
O primeiro sino pesa 800 arrobas, e toca nas
festas de primeira classe e nas exequias das pes-
soas reaes , patriarchas , cardeaes e priucipaes : o
segundo pesa 152 arrobas ; toca nas de segunda
classe e dobra aos fidalgos titulares , monsenhores
e conegos ; o terceiro tem 110 arrobas , e toca
nas exequias dos beneficiados ; o quarto , 87 ar-
robas e toca pelos capellães; o quinto 77 arrobas
e toca pelos sachristas ; o sexto , 35 arrobas ; o
septimo, 29 arrobas ; o oitavo , 25 arrobas ; o nono,
22 arrobas ; a garrida , 2 arrobas . Havia outra
torre chamada do Relogio, separada da egreja
patriarchal, cujos sinos tocavam nos seguintes
dias: Dia de Reis , S. Vicente, Sabbado d'Alle-
luia, Domingo de Paschoa, Sabbado e Domingo
do Espirito Santo, Corpo de Deus , (só á procis-
são), Conceição e Natal .

}
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 191

«Era tenue para este monarcha toda a profusão


que se empregava no culto da egreja, para cujo
ornato mandou tambem fazer e conduzir de to-
das as partes do mundo os adornos , adereços e
alfaias mais preciosas . Entre ellas são dignos de
especial memoria os nove riquissimos castiçaes ,
e maravilhosa cruz de exquisita e nova inven-
ção , que mandou fabricar a Roma e a Florença ,
no anno de 1732 , pelo desenho e artificio do fa-
moso Antonio Arrighi Romano, cuja primorosa
e incomparavel architectura excedeu a importan-
cia de 300 mil cruzados. Toda a machina de pra-
ta excellentemente dourada, que formava a gran-
de cruz se levantava ra altura de 17 palmos
desde a planta do pé , de figura quadrangular, que
tinha tres palmos e meio de diametro .
« Viam -se distribuidos com admiravel simetria
pelas bases e balaustres , assim da cruz como dos
castiçaes, muitos symbolos , jerogliphicos e ge-
nios , cherubins e estatuas , umas de vulto , outras
de meio relevo, com differentes acções , que allu-
diam com propriedade aos mysterios de Christo
e de Maria SS . , outros caracterisavam a magni-
ficencia da santa egreja patriarchal, outros o im-
perio da magestade portugueza no reino e suas
conquistas ; porém tudo guarnecido com muitos.
192 PORTUGAL

e polidos festões da mesma prata dourada, com


muitas tarjas e quartellas de perfeitissimo lapis-
lazuli, com muitos engraçados esmaltes e em-
butidos de epigraphes e diamantes preciosissi-
mos .»
XII

Eram, porém, mais que tudo os sinos , gran-


des, muito grandes , immensos , o feitiço , o enle-
vo, o iman dos olhos de D. João V.
Acabamos de dar, no capitulo antecedente,
uma descripção dos sinos da Patriarchal. Veja-
mos agora a das torres e carrilhões de Mafra.
« As torres lateraes da egreja de Mafra elevam-
se acima do plano dos terraços 194 palmos : a
sua construcção é inteiramente de cantaria, e
acabam n'uma cruz de ferro que sobe além da
ultima pedra das suas cupulas 33 palmos . Esta
cruz com os ornatos que lhe pertencem , peza 226
arrobas ; em cada uma das torres ha, por um
13
194 PORTUGAL

calculo diminuto , 14 :500 arrobas de differentes


metaes . 62
«O grande varão de ferro que enfia a cruz e
mais ornatos , em cada uma das torres , passa ao
interior da cupula , e é ahi atarracado por uma
grossa porca de bronze, que encosta sobre uma
larga chapa de ferro . Esta chapa divide- se em
quatro fachas, que descem pelos quatro cantos
da cupula, até encontrar uma forte grade de fer-
ro que liga o corpo quadrado da torre , em que
assenta a cupula ; sobre esta grade e n'uns va-
lentes cachorros de bronze, descança uma gran-
de trave de ferro de 20 palmos de comprido ,
palmo e meio de alto e tres quartos de palmo de
largo, dividindo ao meio o alto da torre. N'esta
trave está suspenso o sino que sôa as horas , o
qual por si só pesa 800 arrobas . Por baixo d'es-
te sino, na distancia de algumas pollegadas , fica
um andaime formado de grossas traves de páu
cavilhadas e chapeadas de ferro , e cobertas de
chumbo . Os dois sinos dos quartos estão logo

62 D. JOAQUIM DA ASSUMPÇÃO VELHO : Observações phy-


sicas por occasião de 6 raios que em differentes annos
cahiram sobre o Real Edificio junto á villa de Mafra. Me-
morias da Acad. R. das Sciencias de Lisboa. Vol. I. pag.
286.
NA EPOCHA DE D. JOÃO v 195

por baixo d'este andaime, suspensos n'uma trave


tambem de ferro , e de volume egual áquella que
sustenta o sino das horas . Cada um d'estes sinos
tem o seu martello , de peso proporcionado ; o que
bate as horas pesa 20 arrobas. Estes martellos
são puchados por tres grossos arames de ferro,
que atravessando os andares das torres acabam
no mais inferior, aonde prendem no admiravel
jogo dos relogios . Por baixo dos dois sinos que
soam os quartos , estão dispostos em 4 ventanas
6 sinos ; a distancia que ha nas bordas inferiores.
d'estes sinos de umas a outras , é de dez palmos ,
e os arames que pucham os tres martellos das
horas e dos quartos, passando encostados a um
angulo das torres , distam 5 palmos dos dois si-
nos , que lhe ficam ao lado ; os nove sinos d'este
superior andar das torres, as duas traves de fer-
ro, e a grande chapa, cruz e seus ornatos pesam
juntamente 4 : 500 arrobas .
O segundo andar é um confuso tecido de si-
nos , badallos , martellos , e arames . Os sinos são
48, dispostos pelas ventanas , e no interior das
torres suspensos em grossas vigas de pau cha-
peadas . O primeiro sino na grandeza pesa além
da porca e ferragens 666 arrobas ; os outros vão
diminuindo no volume e peso, conforme é pre-
196 PORTUGAL

ciso, para fazerem admiravel consonancia, que


se experimenta quando tocam os relogios e car-
rilhões . Cada um d'estes sinos tem , além do ba-
dallo , dois, tres e quatro martellos de peso pro-
porcionado. Todos estes badallos e martellos es-
tão ligados com arames de latão , mais ou menos
grossos, que vão prender nos differentes jogos
dos relogios e carrilhões . Os 48 sinos d'este an-
dar com as suas porcas , ferragens e badallos ,
com 144 martellos , dos quaes muitos de muitas
arrobas , com mais de 200 grossos e compridos
arames, com um sem numero de molas e cha-
pas , pesam, segundo a mais exacta averiguação ,
7:000 arrobas .
De todos os martellos d'este segundo andar
descem arames, que vão prender nos chamados
papagaios ou teclas, no admiravel jogo de relo-
gios, que assentam no andar inferior das torres ,
no plano dos terraços . O grande jogo d'estes re-
logios , representa um ordenado montão de bron-
ze, aço e ferro , que quanto mais se examina,
mais se admira , até pela magnifica superfluidade
da sua riqueza e ornatos . Toda esta machina se
move puxada por tres grandes pesos de chumbo,
que equivalem a 650 arrobas . Estes tres pesos
puxam outros tantos grossos calabres de linho
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 197

canhamo, descendo por duas calhas até o infe-


rior das torres . N'este andar é mais difficil o

calcular o peso dos metaes, por serem todas as


peças d'este admiravel jogo differentes , e de fi-
guras irregulares; comtudo na presença ninguem
duvidará que este andar contenha até 3: 000 ar-
robas de metal. >>
«E no emtanto (diz o nosso Alexandre Her-
culano) 63 Mafra é um monumento rico, mas
sem poesia, e por isso sem verdadeira grandeza.
É o monumento d'uma nação que dormita apoz
um banquete como os de Lucullo ; é o toucador
d'uma Laes ou Phrine assentado dentro do tem-
plo do deus dos chistãos , e sob outro aspecto , é
a beataria d'uma velha tonta , affectando a lin-
guagem da fé ardente e profunda d'Origenes ou
de Tertulliano.
Sem contestação —Mafra é uma bagatella ma-
ravilhosa, o dixe de um rei liberal, abastado e
magnifico e é pouco mais ou menos o que foi
Portugal na primeira metade do seculo XVIII .
Collocae pela imaginação Mafra ao pé da Ba-
talha, e podereis entender quanto é clara e pre-

63 Panorama de 1843, pag. 189.


198 PORTUGAL

cisa a linguagem d'estas chronicas, lidas de pou- .


cos, em que as gerações escrevem mysteriosa-
mente a historia do seu viver. A Batalha é gra-
ve como o vulto homerico de D. João I, poetica
e altiva como os cavalleiros da ala de Mem Ro-
drigues , religiosa, tranquilla e santa como D.
Philippa rodeada dos seus cinco filhos . As mãos
que edificaram Santa Maria da Victoria, me- ,
neando as armas em Aljubarrota, deviam ser
vencedoras . A Batalha representa uma geração
energica, moral, crente . Mafra uma geração afe-
minada, que se finge forte e grande . A Batalha
é um poema de pedra : Mafra é uma semsaboria
de marmore . Ambas , echos perennes que reper-
cutem, nos seculos que vão passando, a expres-
são complexa, e todavia clara e exacta, de duas
epochas historicas do mesmo povo , sua juventu-
de viçosa e robusta, e sua velhice cachetica. »
Taes são as reflexões do grande mestre ácer-
ca de Mafra: mas as vontades dos reis faziam a
moda n'aquelle tempo , e por isso se a Sé e Ma-
fra tinham grandes sinos , tambem os templos
mais pequenos os imitavam quanto podiam, e d'isso
é um exemplo a egreja dos Congregados no Por-
to . Este templo , notavel pela sua elevadissima
torre, teve começo em 1732 , dirigido por Ni-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 199

colau Nasoni, architecto italiano . A torre com


seus 75 metros de altura, possue grandes sinos ,
que conjunctamente com os da cathedral da mes-
ma cidade são o enlevo , o encanto, e a fascina-
ção d'aquelles que, com pungentes saudades ,
ainda se lembram d'outros tempos ... se melho-
res ou peiores outros o digam. O caso é que ain-
da hoje ha quem no dia de finados procure os
pontos mais elevados da cidade para d'alli á
vontade poder ouvir o dobre de todos os sinos
ao mesmo tempo . A torre dos Clerigos é toda de
cantaria lavrada, e tem dez sinos pesando todos

544 arrobas , que importaram em 5 : 808/420
réis . O sino maior pesa 177 arrobas e 11 arra-
teis .
Mais uma nota curiosa a proposito da mania
de D. João V pelos sinos , e deixemos o assum-
pto. Um jornal manuscripto da epocha diz que
um homem chamado José Jorge, que foi levar
a El -Rei a noticia de estar collocado na torre o
sino grande da Patriarchal, recebeu o titulo de
sineiro-mór, com a tença de 100,000 réis.
198 PORTUGAL

cisa a linguagem d'estas chronicas, lidas de pou- .


cos, em que as gerações escrevem mysteriosa-
mente a historia do seu viver. A Batalha é gra-
ve como o vulto homerico de D. João I, poetica
e altiva como os cavalleiros da ala de Mem Ro-
drigues, religiosa, tranquilla e santa como D.
Philippa rodeada dos seus cinco filhos . As mãos
que edificaram Santa Maria da Victoria , me- .
neando as armas em Aljubarrota , deviam ser
vencedoras . A Batalha representa uma geração
energica, moral, crente . Mafra uma geração afe-
minada, que se finge forte e grande. A Batalha
é um poema de pedra : Mafra é uma semsaboria
de marmore . Ambas , echos perennes que reper-
cutem, nos seculos que vão passando, a expres-
são complexa, e todavia clara e exacta, de duas
epochas historicas do mesmo povo , sua juventu-
de viçosa e robusta, e sua velhice cachetica. »
Taes são as reflexões do grande mestre ácer-
ca de Mafra: mas as vontades dos reis faziam a
moda n'aquelle tempo , e por isso se a Sé e Ma-
fra tinham grandes sinos , tambem os templos
mais pequenos os imitavam quanto podiam , e d'isso
é um exemplo a egreja dos Congregados no Por-
to . Este templo, notavel pela sua elevadissima
torre, teve começo em 1732 , dirigido por Ni-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 199

colau Nasoni, architecto italiano. A torre com


seus 75 metros de altura, possue grandes sinos ,
que conjunctamente com os da cathedral da mes-
ma cidade são o enlevo, o encanto, e a fascina-
ção d'aquelles que, com pungentes saudades ,
ainda se lembram d'outros tempos ... se melho-
res ou peiores outros o digam. O caso é que ain-
da hoje ha quem no dia de finados procure os
pontos mais elevados da cidade para d'alli á
vontade poder ouvir o dobre de todos os sinos
ao mesmo tempo . A torre dos Clerigos é toda de
cantaria lavrada , e tem dez sinos pesando todos
544 arrobas, que importaram em 5 : 808$420
réis. O sino maior pesa 177 arrobas e 11 arra-
teis.
Mais uma nota curiosa a proposito da mania
de D. João V pelos sinos , e deixemos o. assum-
pto . Um jornal manuscripto da epocha diz que
um homem chamado José Jorge, que foi levar
a El-Rei a noticia de estar collocado na torre o
sino grande da Patriarchal, recebeu o titulo de
sineiro-mór, com a tença de 100,5000 réis .
198 PORTUGAL

cisa a linguagem d'estas chronicas , lidas de pou-.


cos, em que as gerações escrevem mysteriosa-
mente a historia do seu viver. A Batalha é gra-
ve como o vulto homerico de D. João I, poetica
e altiva como os cavalleiros da ala de Mem Ro-
drigues , religiosa , tranquilla e santa como D.
Philippa rodeada dos seus cinco filhos . As mãos
que edificaram Santa Maria da Victoria, me-
neando as armas em Aljubarrota , deviam ser
vencedoras. A Batalha representa uma geração
energica, moral, crente . Mafra uma geração afe-
minada , que se finge forte e grande . A Batalha
é um poema de pedra : Mafra é uma semsaboria
de marmore . Ambas, echos perennes que reper-
cutem, nos seculos que vão passando , a expres-
são complexa, e todavia clara e exacta , de duas
epochas historicas do mesmo povo, sua juventu-
de viçosa e robusta , e sua velhice cachetica. »
Taes são as reflexões do grande mestre ácer-
ca de Mafra: mas as vontades dos reis faziam a
moda n'aquelle tempo , e por isso se a Sé e Ma-
fra tinham grandes sinos , tambem os templos
mais pequenos os imitavam quanto podiam , e d'isso
é um exemplo a egreja dos Congregados no Por-
to . Este templo, notavel pela sua elevadissima
torre, teve começo em 1732, dirigido por Ni-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 199

colau Nasoni, architecto italiano . A torre com


seus 75 metros de altura, possue grandes sinos ,
que conjunctamente com os da cathedral da mes-
ma cidade são o enlevo, o encanto, e a fascina-
ção d'aquelles que, com pungentes saudades ,
ainda se lembram d'outros tempos ... se melho-
res ou peiores outros o digam. O caso é que ain-
da hoje ha quem no dia de finados procure os
pontos mais elevados da cidade para d'alli á
vontade poder ouvir o dobre de todos os sinos
ao mesmo tempo. A torre dos Clerigos é toda de
cantaria lavrada, e tem dez sinos pesando todos
544 arrobas, que importaram em 5 : 808$ 420
réis . O sino maior pesa 177 arrobas e 11 arra-
teis.
Mais uma nota curiosa a proposito da mania
de D. João V pelos sinos , e deixemos o assum-
pto. Um jornal manuscripto da epocha diz que
um homem chamado José Jorge, que foi levar
a El-Rei a noticia de estar collocado na torre o
sino grande da Patriarchal, recebeu o titulo de
sineiro-mór, com a tença de 1005000 réis.
XIII

O individuo, que sahir de Lisboa pelas por-


tas d'Alcantara, passados uns cinco minutos , vê,
junto do convento das Flamengas , vestigios de
um edificio antigo . Era um palacio real , de mes-
quinha construcção , á qual ficava contigua uma
quinta, tambem pertencente á casa real . Era a
quinta do Calvario, em cuja area tem sido cons-
truidos modernamente diversos predios : e egual
destino soffreu o palacio , que tivera alguma cele-
bridade no tempo dos reis D. Affonso VI e D.
Pedro II. Defronte d'esta quinta e d'este palacio,
no qual não havia mysterios de architectura , para
me servir da linguagem do grande Fr. Luiz de
Sousa, estanciava um mosteiro de modesta ap-
202 PORTUGAL

parencia, edificio onde hoje se acha estabelecida


a Escola Normal do sexo feminino .
Foi aquelle convento franciscano fundado em
1617 por duas damas nobres, mãe e filha : A
mãe, por nome D. Violante de Noronha, que tinha
perdido seu marido na batalha d'Alcacer Qui-
bir; e a filha, D. Maria Telles de Menezes 64. O
convento, porém , apesar de relativamente moderno,
pobre e não fabricado por mãos regias , possuia ,
na épocha de D. João V, nada menos do que as
seguintes reliquias : uma cabeça da virgem e mar-
tyr Santa Helena (uma das onze mil virgens) ;
outra d'um santo martyr de Agreda abonada por
milagrosa ; uma cruz guarnecida de reliquias ;
uma particula da toalha em que Christo comeu .
As duas cabeças estavam depositadas em duas
caixas de prata, de obra muito curiosa, por in-
dustria da madre soror Maria Magdalena .
Para as reliquias fez- se um deposito no côro
de baixo, e n'elle estava tudo isto : uma vera ef-
figie do P. S. Francisco, outra de Santa Clara,
tres caixões de ossos de diversos martyres e uma
cruz de crystal com prendas identicas . No altar

64 Pe FERNANDO DA SOLEDADE. Historia Seraphica, etc.


Tomo V. Lisboa, 1721 .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 203

do Menino Jesus , obra da madre soror Maria do


Calvario, junto á porta que do mesmo côro sa-
hia para o claustro, tambem se achavam d'estes
penhores, e alguns eram do insigne bispo S.
Braz, aos quaes acompanhava o seu retrato , é
dava muito esplendor o Santo Lenho, que no
proprio logar se venerava.
Porém esta copia de reliquias era incompara-
velmente excedida pela das que se guardavam
no ante- côro, em uma capella de sufficiente gran-
deza, erigida pelos padroeiros com o titulo de
capella da Visitação , e mais tarde da Graça .
N'aquella capella tudo era ouro, tudo preciosida-
des, ricos ornamentos ; tanta a multidão de reli-
quias sagradas pelo ambito d'ella, que seria ne-
cessario muito papel para a enumerar .
Pois todas estas indulgencias e reliquias possuia
o convento do Calvario ; e todavia este convento
não pertencia ao numero dos mais notaveis, nem
se podia comparar em taes preciosidades com mui-
tissimos outros de Portugal: e tudo aquillo só-
mente se podia obter á força de muito dinheiro .

Não resistimos a transcrever parte da seguinte.


certidão passada pelo afamado medico Duarte
204 PORTUGAL

Madeira Arraes, physico de sua magestade, sete


annos depois da morte de D. Violante, fundado-
ra do alludido mosteiro:
«Sendo-me mostrado o corpo da sr.ª D. Vio-
lante de Noronha, e sendo por mim bem visto e exa-
minado, o achei não estar corrupto pelo caminho
ordinario natural, por onde os outros corpos hu-
manos mortos se corrompem ; por quanto haven .
do mais de sete annos que estava na sepultura,
não tinha fedor nem podridão alguma, antes com
não ser embalsamado com aquella myrrha, bal-
samo, azevre e outras cousas aromaticas que se
costumam, senão puramente mettido na cal, lança
de si suave cheiro : Sicut cinnamomum et balsa-
mum aromatisans odorem dedit et quasi myrrha
electa dedit suavitatem odoris. E posto que a fra-
grancia não era tão intensa , pelo menos imitava
á de camoezas maduras ..

0 que tudo me parece se deve attribuir a mi-


lagre, e a favor que Nosso Senhor quiz fazer a
tão notavel pessoa, por sua virtude e exemplar
vida : visto que todas as mais Freiras se enter-
ram d'aquelle modo , e se desfazem em pó em
mui breve tempo ; e se alguma cousa se acha
por desfazer, tem um fedor abominavel, que n'es-
NA EPOCHA DE D. JOAO Y 205

te corpo não havia, antes, pelo contrario, suave


cheiro, como está dito 65

Mas é mister que antes de caminhar mais diga


bem altoos costumes de Portugal n'aquelle
tempo eram os dos outros paizes , e os dos ou-
tros paizes os de Portugal. Leiam a vida de
Taillerand para verem qual a relaxação do clero
francez nos tempos proximos a el -rei D. João V.
Leiam a Italia de lady Morgan (vol . I , pag.
107) para verem como no Piemonte era moda o

65 Poucos annos depois da morte d'este celebre medico,


fallecido em 1652, publicou- se em Lisboa um livro
intitulado <« Correcção dos abusos introduzidos contra o
verdadeiro methodo da medicina. O auctor era o dr. fr.
Manoel d'Azevedo, religioso da Ordem do Carmo. O se-
guinte trecho d'essa obra deixa-nos entrever o estado de
atrazo da sciencia medica em Portugal, atrazo que se
prolongou até á epocha de renascimento scientifico creada
pelas reformas do Marquez de Pombal : Não menos erro
é no cirurgião o receitar purgas sem conselho do medico ;
pois o cirurgião não conhece, nem pode conhecer bem os
humores, que predominam, nem em que região do corpo
estão, nem que medicamentos são os convenientes , nem a
quantidade em que se devem dar, nem outros muitos re-
quisitos que convém se considerem para receitar uma
206 PORTUGAL

marido não fazer caso da mulher com quem era


casado, para fazer a côrte á do seu visinho . Não
temos de que nos admirar quando o cavalleiro
de Forbin nas suas Memorias nos assevera que
os frades de Belem em Lisboa andavam arma-
dos de punhaes . N'este convento era então cos-
tume em dia de S. Jeronymo tomarem os mon-
ges grandes pançadas de melancia . E o proprio
pae d'el-rei D. João V tinha passado muitas
noites nas mais desbragadas orgias .

purga. E é tão certa esta verdade que, quando se recei-


tam purgas para senhoras, ou pessoas de consideração,
de ordinario se ajuntam tres medicos, para melhor acer-
tarem nas qualidades e quantidades dos medicamentos..
E eu já vi algumas receitas de cirurgião, onde achei onças ,
havendo de ser oitavas ; e oitavas, havendo de ser onças.
E se uma purga d'estas taes damnos faz (como é certo
faça) á purga se deita a culpa, e não ao ignorante e atre-
vido que a receitou : sendo indubitavel que da purga re-
ceitada por medico, e preparada por bom e christão boti-
cario não succede damno algum.. (Pag. 460).
XIV

Comtudo , apesar do embrutecimento em que


se achava o povo, e apesar do vergonhoso atra-
- as
zo em que estavam entre nós as sciencias ,
lettras eram cultivadas e - coisa notavel ! - nun-
ca o nosso Luiz de Camões foi tão citado , tão imita-
do, tão paraphraseado, como n'essa epocha. Mais
ao deante prestaremos justiça ao que as lettras e as
artes deveram a D. João V, para que se não di-
ga que só procuramos mostrar os erros e defei-
tos d'esse reinado. Emquanto ahi não chegamos,
saiba o leitor, que o nosso grande poeta não era
por esses tempos tão desconhecido ou pouco lido
como muitos julgam : era até bastantemente ci-
tado . Mas infelizmente , se é certo que o citaram
208 PORTUGAL

muito , não é menos certo que não conseguiram


de modo algum imitar a harmonia e a linguagem
de seus versos .
O leitor sem duvida ha de ter reparado que
os trechos citados n'esta obra, e escriptos no rei-
nado de D. João V, acham -se n'uma linguagem
não muito castiça, mas muito hyperbolica e exag-
gerada. Com effeito a elocução d'aquelle reinado
não deve ser de modelo para os que se prezam
de bem fallar. Mas o que é indubitavel , é que talvez
nunca os versos de Camões fossem tão amiuda-
das vezes citados como no referido reinado .
O cavalleiro d'Oliveira , no seu enthusiasmo
pelo poeta, chega a levar a mal que citem Ca-
mões poucas vezes. Na carta a D. Florencio Mal-
donado , censurando um discurso sobre a immor-
talidade da alma, diz : « Estimava saber 66 se foi
menos caso, ou se foi respeito, achar- se o dignis-
simo Camões uma só vez allegado . Direi a V.
M. de passagem para que o diga ao seu amigo ,
que este portuguez não é Camones , e que é ne-
cessario escrever o seu nome com e antes do n
como eu faço . Este defeito póde talvez ser des-

66 Vol. II, carta LXVII.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 209

cuido , não é erro em um estrangeiro que se não


jacta de saber a lingua portugueza, como por
exemplo Monsieur de Voltaire , que entendendo
o que disse Camões com tanta clareza que che-
gou a critical-o , não acertou com o mesmo nome
do Camões em algumas das suas obras . Eis aqui
o que se chama pouca vergonha . >>
Poucas paginas adiante (391 ) torna a fallar de
Camões : Os mathematicos francezes deram á or-
dem d'estas estrellas o nome de Carro, os poe-
tas são os que lhe chamam Ursa, dizendo que
ha duas, uma maior e outra menor :

Vi as Ursas apesar de Juno


Banharem - se nas aguas de Neptuno

Na obra intitulada Recreação Proveitosa , com-


posta por Custodio Jesam Barata (João Baptista
de Castro) e impressa em Lisboa no anno de 1728,
continuamente são citados versos do nosso gran-
de poeta . No colloquio que trata dos acrosticos ,
apresenta estes versos d'umi elegia :

Juizo extremo, horrifico e tremendo,


E juiz sempiterno alto e celeste
Significar á terra humedecendo,
Ver-se- ha n'ella um suor, que manifeste
Como en carne vem Deus para que o veja , etc.
14
210 PORTUGAL

Porém onde brilha com mais utilidade e en-


genho esta composição, é quando as letras com
que se começam os versos vão dizendo alguma
cousa. Tal é o soneto 59 da Cent. 2. de Camões
que principia :

Vencido está de amor meu pensamento

porque dividindo -se em duas partes , dirá com as


proprias letras d'elle - Vosso como cativo muy
alta Senhora. Tal é tambem um dos seus notes
feito a uma dama chamada Anna, cujo nome se
lê pelo principio de tres versos que o formam :

A morte, pois que sou vosso


NAM quero ; mas se vem
A de ser todo o meu bem.

E logo a pag. 105, tratando dos versos corre-


lativos , parallelos , correspondentes ou antitetos ,
que vem a ser quando as dicções de um verso
correspondem ás dicções do outro , traz para
exemplo o fim do soneto 23 das Rimas de Camões ,
fallando de D. João de Castro :

Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,


que Atlante, Homero, Orfeo, Alcides,
esforço, engenho, amor, fortuna, fama.

A pag. 121 falla de um soneto feito por An-


dré Nunes organisado com os de Camões , assim :
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 211

Faz contra Lusitania vir Castella (cant. 4 est. 6.)


O filho de Filippe n'esta parte (cant. 1. est. 75.)
Fervendo-lhe no peito o duro Marte (cant. 3. est. 30.)
Das soberbas e varias gentes d'ella . (cant. 4. est. 57.)

Fallando da ilha de Ceilão (pag . 259) onde


alguns disseram ter sido o Paraizo Terreal, não
se esquece de trazer á lembrança os celebres ver-
sos do nosso poeta :

Olha em Ceilão, que o monte se alevanta


tanto que as nuvens passa, ou a vista engana.
Os naturaes o tem por cousa santa
pela pedra onde está a pegada humana.

Mas ainda , na mesma Recreação Proveitosa, se


encontram mais passagens do nosso poeta.
Algumas folhas adiante , pag. 305, fallando
das palmeiras que estão no fundo do mar, cujo
fructo maior que o côco , é remedio contra o ve-
neno, mais poderoso que a pedra bazar, cita os
versos seguintes :

Nas ilhas de Maldiva nasce a planta


no profundo das aguas soberana,
cujo pomo contra o veneno urgente .
é tido por antidoto excellente.

Mais adiante, (pag . 310) tratando das fontes


que convertiam em pedra tudo quanto dentro
d'ellas deitavam , apresenta os seguintes versos.
212 PORTUGAL

do nosso poeta , o qual repete o mesmo nas Re-


dondilhas :

Olha a Sunda tão larga, que uma banda


esconde para o sul difficultoso :
a gente do sertão, que as terras anda,
um rio diz que tem miraculoso,
que por onde elle só sem outro vae
converte em pedra o pau que n'elle cáe.

Os antigos trabalharam na exploração das nas-


centes do Nilo ; os portuguezes tambem n'este
ponto teem seu quinhão de gloria , e ao fallar de
um tal assumpto não poderiam esquecer os ver-
sos de Camões :

Olha lá as lagoas d'onde o Nilo


Nasce, que não souberam os antigos.

E com effeito estes versos se encontram a pag .


318 da já citada Recreação Proveitosa . Fallando
do crescimento do rio Nilo (pag. 323) menciona
um verso do nosso poeta (est. 127 do canto X)
para mostrar que tambem á elevação das suas
aguas se deve a boa colheita do anno .
No vol . 2.° declama contra o atavio e enfeite
das mulheres, e offerece para exemplo o campo .
« Basta para isso (diz o auctor a pag. 53) que
vos offereça aos olhos a formosura d'este campo,
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 213

o esmalte de suas côres , e o agrado de seus pro-


ductos, nos quaes sem cultura simplesmente re-
verbera melhor a graça e a belleza natural . Isto
deveis vós imitar , para então serdes vistas com
mais agrado, e para serdes verdadeiramente for-
mosas . Ouví o nosso Camões na Canção XI para
complemento de tudo . E transcreve a Canção XI
que começa Nem roxa flor d'abril, etc.
Fallando das hyenas (pag. 193) assevera que
imitam a voz humana, e para comprovação apre-
senta versos de Camões :

As hienas levantam
a voz tão natural á voz humana,
que a quem as ouve, facilmente engana.
(Eglog. VII . est. 20.)

Tambem para comprovar a sagacidade do cão


apresenta o auctor alguns versos da estancia 74
do Canto IX dos Lusiadas.

Qual cão de caçador, etc. ( est. 74 do canto IX).


1
Para exaltar e engrandecer um bom nome (pag.
299) cita uma passagem da Biblia e a seguinte
dos Lusiadas :

O nome illustre a um certo amor obriga,


E faz a quem o tem, amado e caro. (Canto II. est. 58).
214 PORTUGAL

Ao fallar das nuvens (pag . 359) transcreve


aquella formosissima descripção da tromba ma-
rinha, que se encontra nos Lusiadas , e ainda mais
uma vez cita o nosso épico ao fallar do coral :

O ramoso coral fino e presado


que debaixo das aguas molle cresce
e como é fóra d'ellas , endurece.

O dr. João de Sousa Caria publicou um soneto


na fórma seguinte :

Claro Simão gentil, que te partiste


tão cedo da Academia descontente,
repousa lá no Pindo eternamente,
e viva eu cá na Estygia sempre triste.

Se lá no olho do Sol, onde subiste ,


memoria d'este Entrudo se consente,
não te esqueças d'aquella pulha ardente,
que em meus versos tão viva esguichar viste.

E se podér acaso merecer- te


a bucha, que nos cascos me ficou,
d'esta pulha sem contra de perder-tė :

Roga a Apollo, que os louros te encurtou,


que tão cedo a escarradas chegue a ver- te,
quão cedo a cabriolas te levou.

Quando no reinado de D. João V chegou a


Evora, vindo de Roma, D. Fr. José Maria da Fon-
seca, com o fim de ir para o Porto occupar a ca-
deira episcopal, para a qual havia sido nomeado,
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 215

fizeram -lhe em Lisboa apparatoso recebimento , e


foi grande a profusão de poesias que escreveram
em honra d'este prelado . Porém o soneto que se
encontra a pag. 116 da collecção de poesias feitas
em honra do bispo , e impressa em Lisboa no
anno de 1742 é uma verdadeira imitação d'aquel-
le celeberrimo soneto Alma minha gentil.
N'um parecer de Filippe José da Gama, que
precede esta mesma collecção , se fazem allusões
á estancia 155 do canto X, e á estancia 14 do
canto V.
É conhecida a edição dos Lusiadas, feita parte
em Napoles, parte em Roma . Luiz Antonio Ver-
ney mostrou gosto e linguagem detestavel nas.
suas apreciações a este poema.
Outro verso de Camões que tem sido muito
repetido, é este Se a tanto me ajudar engenho e
arte. Apparece tambem citado da seguinte fór-
ma no opusculo: <« Á magnifica festividade que SS.
MM. FF. foram offerecer á Virgem Nossa Senho-
ra denominada do Cabo . Lisboa, 1784. »

Eu cantarei grandezas,
E acções particulares d'este empenho,
Que sem poupar despezas
Foram do Regio peito desempenho,
E gostoso darei segunda parte
Se a tanto me ajudar engenho e arte.
216 PORTUGAL

Fr. Francisco da Natividade na sua obra :


Lenitivos da dôr, Lisboa , 1700, dá mostras (pag.
23) de que tambem conhecia o celebre soneto do
nosso poeta, pois diz : « Piedosamente crêmos que
livre aquella em tudo gentil e ditosa alma das
prisões em que a detinha o corpo , servindo -lhe
as virtudes de azas , voou remontada ao céo,
quando partiu da terra. »
N'esta mesma obra apparecem ainda as se-
guintes citações das obras do nosso poeta :

Pag. 30. Cant. X. , est. 38.


>>> 59. Carta 2.a
>> 73. Soneto 2.º «Atada ao remo tenho a paciencia. »>
>> 81. Sextina : Que o mais certo que temos , etc.
» 117. Que se não veja nada, etc.
» 149. Sextina : Foge-me pouco a pouco a curta vi-
da, etc.
» 229. Carta . Veja - se os bens que tiveram , etc. 67

Na obra intitulada « Orações Academicas do

67 Vide tambem pag. 285, 315 e 374.-- Na obra de Ma-


cedo, Flores de España, Excellencias de Portugal,
Coimbra, 1737 , citam -se versos de Camões ou falla- se
d'este poeta em todas as seguintes paginas : 5, 6, 7, 10,
30, 31 , 32, 39, 65, 75, 77 , 79, 92, 104, 105, 152 , 158, 160,
164 (bis), 179 (bis), 184, 185, 189, 191 , 194 (bis ), 196,
197, 200, 201 , 205, 207 , 209, 212, 235 (tres vezes ), 237
(bis), 240, 248, 249 , 256, 264, 265, 266, 272, 277, 284
(bis), 286 (bis). E na Armonia Politica, obra do mesmo
auctor, vem o nosso poeta citado a pag. 49.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 217

muito Reverendo Padre Mestre Fr. Simão An-


tonio de Santa Catharina» , impressa em Lisboa ,
no anno de 1723, além do soneto composto pelo
dr. João de Sousa Caria, ainda mais vezes se
falla do nosso Camões, como a pag. 368 no Ro-
mance de Paranomasias.

Na Oração de que foram assumpto os varões


famosos de Portugal, ainda se lêem as seguintes
linhas relativas ao nosso grande epico : « Ultima-
mente pela differença de espirito apparecia em
lugar eminente o divino Luiz de Camões, varão
igual á sua fama, dotado de um engenho sobre
todos excellente , nascido na verdade para a poe-
sia, facil , copioso, sublime, e tão vivo , que to-
dos os pensamentos da alma, que n'elle foram
muitos e insignes , explicou com vozes discre-
tissimas . Assim o confessam com admiração os
professores d'esta arte, e assim o dizem as tra-
ducções latinas de D. Thomé de Faria , bispo de
Targa ; a do P. Macedo ; a ingleza de Ricardo
Fanstravu (sic); as italianas de um anonymo , e
a de Carlos Antonio Paggi, Genovez ; as caste-
lhanas de Bento Caldeira, de Luiz Gomes de
218 PORTUGAL

Tapia, de Henrique Garcez , e a de um anony-


mo, como a franceza . Foram seus panegyristas
os maiores homens do mundo, e bastará por to-
dos o grande Torquato Tasso que nos elogios
que lhe fez , e nos louvores que lhe deu , nos
deixou um famoso argumento de ser o principe
da poesia italiana , pois conhecia o merecimento
de Camões , laureado principe da poesia de toda
a Hespanha . >>
Na obra intitulada Musa Pueril, impressa em
Lisboa no anno de 1736 , e composta por João
Cardoso da Costa , encontra- se tambem a pag. 13
um soneto pelas consoantes de um soneto de Ca-
mões .
Outra parodia ao Camões se encontra a pag.
333 da mesma obra nas oitavas em applauso de
D. Manoel, barão de Astorga, quando compoz e
imprimiu um livro de doze cantatas com lettra
em duas linguas , italiana e castelhana .
D. Thomaz Caetano do Bem, membro da Real
Academia de Historia, n'uma epistola latina em
louvor de Antonio Cerqueira Pinto, auctor da
Historia do Senhor de Mathosinhos, impressa em
Lisboa no anno de 1737 e dedicada a el-rei D.
João V, acha que só Camões seria digno de can-
tar uma tal obra :
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 219

Unus Alexandrum merito depinxit Apelles,


Non alius tanto munere dignus erat.
Aeolidemque Ducem cantu celebravit Homerus,
Non alia poterat voce per astra vehi.
Virgilius Phrygii cecinit facta inclita , tanto
Heroi inferior forsitan alter erat..
Lusiadas toto celebris Camonius orbe
Personat, apta quidem non foret ulla tuba.
Magnos magna decent si sic, mea, Maxime vir, nunc
Musa tuis meritis me negat esse parem.

Os versos de Camões para tudo serviam, e a


tudo se applicavam . Francisco de Pina e Mello ,
arrebatado pelo enthusiasmo exclama fallando de
Camões : 68 .
« Este grande espirito levantou a poesia ao
auge, que entre a incultura portugueza se podia
esperar de um impulso humano . Deu-nos a mes-
ma felicidade que teve a Grecia com Homero, e
o Lacio com Virgilio , e a Italia com Tasso . » E
é tal o enthusiasmo de Pina e Mello para com o
nosso poeta que ao lembrar- se da maneira como
em vida elle foi tratado , exclama : « Mas para
que exporei estes exemplos á vista do nosso Por-
tugal, senão para lhe expor que elle despreza
aquelle mesmo ornamento, de que homens tão

68 Triumpho da Religião, poema epico - polemico . Coim-


bra, 1756.
220 PORTUGAL

grandes e reinos tão civilisados têm feito a sua


maior lisonja ?
«Que mais triste testemunho de tão inculta
influencia, que o pouco caso que fizemos do
nosso Camões ! Sempre pobre, perseguido , des-
terrado , até vir a morrer no mesmo hospicio do
desamparo e da miseria . Este foi o conceito , que
formaram os portuguezes d'aquelle tempo d'este
sublime espirito : elle ros louva muito nos Lusia-
das, mas igualmente nos condemna n'esta estan-
cia : (cita a estancia - Emfim não houve forte ca-
pitão, etc. )
«Mas não foram só os portuguezes os que se
infamaram com o tratamento que deram ao maior
poeta da sua nação . Tambem os italianos prati-
caram a mesma insolencia com outro homem
69
igual ao nosso Camões ... »
No parecer de João Antunes , relativo ao poe-
ma de Trallo de Vasconcellos da Cunha, Espe-
lho do Invisivel, ( Lisboa, 1714) lá apparece cita-
do o nosso epico .
Innumeras citações ainda poderiam ser apre-
sentadas para comprovarmos que foi o mencio-

69 Escreve-se nos Prologomenos com grande desenvol-


vimento ácerca dos Lusiadas .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 221

nado reinado de D. João V aquelle em que o


poeta contou n'este paiz maior numero de culto-
res e admiradores .
Já o leitor vê com toda a evidencia que era
bastante vulgar n'essa epocha a leitura das
obras de Luiz de Camões . E talvez dominado
por esta verdade, o sr. Pinheiro Chagas tambem
fallasse na matutina luz serena e fria, quando
no seu bello romance A côrte de D. João V, des-
creve « o aclarecer do céo , sem comtudo se poder
o sol desembaraçar do manto de nuvens que o
cercava . »>
XV

Se as artes portuguezas florescêram sob a pro-


tecção magnificente do celebre rei, deve dizer-se
em abono da verdade que a arte culinaria parece
ter sido cultivada com grande exito .
Domingos Rodrigues, cozinheiro de S. Mages-
tade, na sua Arte de cozinha, impressa em 1732,
já em 3.ª edição, diz que a exercitou pelo espa-
ço de 29 annos , e que se habilitou para compôr
esta arte com a assistencia dos maiores banque-
tes da côrte de Lisboa, e de todos os da casa
real. E diz mui ufano que todas as cousas que
n'ella ensinava, as tinha experimentado pela sua
mão, e que as mais d'ellas as tinha inventado
pela sua habilidade . O leitor, porém, póde por
224 PORTUGAL

experiencia propria provar os petiscos do mes-


tre cozinheiro , e depois decidir ácerca do cre-
dito que elle merece .
Para fazer sopa de peros camoezes receita: Que
se póde fazer em uma tigella nova , na qual se
deite o molho de qualquer genero de assado,
com tres ou quatro peros em quartos apartados ,
e ponha-se a ferver : depois de cosidos os peros ,
batem -se com o molho em um prato sobre fatias
tostadas , e ponha-se o assado por cima com sumo
de limão: e vá á mesa guarnecido com miollos
do mesmo molho .
Manda que no domingo se deem as seguintes
comidas aos hospedes :

1.ª iguaria.- Tijellas de caldo de gallinha com sua gem-


ma de ovo, e canella por cima, e logo sopas
de vacca.
2.a > Perdigões assados, guarnecidos com linguiça.
3.a >>> Coelhos de João Pires.
4.a » Um ou dois peitos de vitella de conserva
guarnecidos com torrijas de vitella.
5.a >>> Pastellões de varias carnes, redondos , lavra-
dos.
6.a >> Pasteis fritos pequenos, de carneiro, com as-
sucar e canella
7.a >>> Olha castelhana, a saber, vacca, carneiro,
:

mãos de porco, presunto, grãos, nabos, pi-


mentão, de todos os adubos amarellos com
bem assafrão. Manjar branco em pélas assado.
Para o fim doces fritos , e fructas do tempo.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 225

COMER PARA A SEGUNDA FRIRA

1.ª iguaria.-Tijella de caldo de gallinha e sopas de


vacca.
2.a >>> Frangas caseiras assadas, lardeadas sobre
sopa de natas, guarnecidas com biscoitos de
la Reyna .
3.a Uma potagem de mariquas, todos á france-
za, guarnecidos com verdeaes em borraçados.
4.a » Cabeça de vitella, guarnecida com mãos de
Judeu.
5.a >> Uma torta de frangãos; e pombos de folhado
francez.
6.a Pasteis de bocca de dama, de gallinha, do
tamanho de dois tostões.
7.a >>> Olha podrida portugueza.
8.a » Manjar real em tigelas coradas.
Fim, com doces fritos e fructas.
COMER PARA A TERÇA FEIRA

1.ª iguaria. Caldo de gallinha e sopa, como acima fica


dito.
2.a > Coelhos novos, assados com cebola botada na
agua em roda, e salsa muito miuda, por cima
alcaparras , guarnecidas com achar de porco,
3.a >> Frangas de Fernão de Sousa com tutanos so-
bre sopa de tutanos.
4.a Perús em gigote de toucinho, e vinho branco
com substancia de vitella.
5.a >> Empadas inglezas nevadas.
6.a » Pasteis de barquinhos folhados portuguezes.
7.a >> Olha franceza.
8. >> Ovos brancos.
Fim da mesa, doces frios e frutas.
"
COMER PARA A QUARTA FEIRA

1.ª iguaria. Caldo de gallinha com sopas , como acima.


2.a Perúas novas lardeadas á franceza, sobre
15
226 PORTUGAL

sopa dourada, gallinhas com lombos de con-


serva.
3. iguaria. Adens reaes estofadas com marmellos , maçãs
azedas, especiaria preta, guarnecidas com
tordos.
4.a >> Trouxas de carneiro.
5.a Empadas de lombos de vacca e vitella.
6.a Pastelinhos de tutanos saboyanos.
7,a >> Olha Moura, que chamam de fina.
8.a >> Fruta de siringa com graxe.
Fim, doces frios e frutas.

CCMER PARA A QUINTA FEIRA

1. iguaria.- Caldo de gallinha com sopas, como acima.


2.a > Leitões assados, guarnecidos com gallinholas.
3.a Pombos com cardo em fricassé.
4.a >>> Pernas de carneiro de casio.
5.a Empadas de perú sem osso.
6.a >> Pasteis folhados de coelho.
7.a >> Olha podrida em massa, que é a melhor de
todas.
8.a > Leite em siricaia.
Advirto que para as gallinhas que ficam de caldo, se
hão de mandar á mesa um dia sobre cuscus, outro sobre
fideos, outro sobre letria, outro sobre arroz

COMER PARA A SEXTA FEIRA

1.ª iguaria.- Gemmas de ovos em manteiga, depois sopas


de natas com letria.
2.a » Linguados recheados assados , guarnecidos
com azevias assadas de molho castelhano.
3.a >> Corvina de conserva, guarnecida com vesu-
gos pequenos.
4.a >> Tigellada de chocos.
5.a >> Empadas de salmonetes.
6.a Pasteis de marisco.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 227

7. iguaria.- Peixe frito.


8.a >> Ovos moles .
Doces frios, e frutas no fim.
COMER PARA O SABBADO

1.ª iguaria. Ovos com pão em manteiga, depois sopa


dourada.
2.a >> Salmonetes assados com potagem franceza,
guarnecidos com ostras.
3.a >> Postas de cherne em casis, guarnecidas com
ameijoas.
சும்ம

4.a >> Linguado de caril .


5.a >> Empadas de vesugos .
6.a » Almojavenas de peixe picado fritas.
7.a >> Peixe frito, guarnecido com mexilhões de
Aveiro.
8.a >> Sonhos passados por assucar e graxe.

Deve-se notar que não se faz n'estas listas a


minima menção quer de chá, quer de café.
Tambem parece que se não abusava muito do
vinho, porque nas Mémoires instructifs pour un
voyageur, (já citadas por mais d'uma vez n'este
livro), se encontra a seguinte passagem :
«O estrangeiro não deve entregar- se aos ex-
cessos do vinho . Os portuguezes desprezam os
bebados , e o rei ( D. João V) que não bebe vi-
nho, tem uma aversão invencivel contra todos
aquelles que se entregam a este vicio . >»

Apesar d'isto, porém , conta -se que o parocho


228 PORTUGAL

da igreja parochial dos Olivaes, tendo bebido


mais do que o costume, quiz baptizar uma creança,
e posto junto á pia baptismal, entrou a procurar
no Ritual as rezas proprias d'aquella cerimonia,
e não atinando quando as procurava, por mais
que folheasse, voltou-se para os circumstantes , e
exclamou:- É bem difficultoso de baptizar este
rapaz !
Tambem se diz que, por essa mesma epocha,
estando para sahir uma procissão em Caparica,
succedeu que o guia d'uma dança que precedia a
procissão , se embebedou de sorte que ficou a
dormir até ao dia seguinte , em que acordou , e
sahiu pela rua fóra, perguntando : - Onde está a
dança ? Que é feito da dança ? E quando lhe
disseram que já estava tudo acabado , exclamou :
- - É engano : sem mim nada se podia fazer !
Tambem foi n'este reinado que succedeu o
seguinte divertido caso :
Certo prégador n'uma occasião em que sahia
de casa para prégar, disse a um galleguito , seu
creado , e recentemente chegado da terra, que
para a ceia lhe trouxesse uns bofes de casa de
certo carniceiro chamado David ; e parecendo -lhe .
que este lh'os fiaria, não mandou dinheiro . De-
pois succedeu entrar o gallego na egreja atempo
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 229

que o prégador repetindo algumas authoridades


dos prophetas olhou descuidadamente para onde
estava o moço, e ponderando n'uma, exclamou :
-Pois que diz, David ?
O lorpa do gallego, pensando que se tratava
do carniceiro, gritou : -« Diz que não dá bofes
sem ver a côr ao dinheiro . »
No carnaval era uso a que ninguem fugia os
grandes banquetes , as formidaveis pançadas . O
seguinte soneto, escripto n'essa epocha , dá ideia
do que era o entrudo do reinado de D. João V::

Filhos, fatias, sonhos, mal assadas,


Gallinhas, porco, vacca e mais carneiro,
Os perús em poder do pastelleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas,

Enfarinhar, por rabos , dar risadas ,


Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o taberneiro,
Com resteas de cebolas dar pancadas,

Das janellas com tanhos dar na gente,


A bozina tanger, quebrar panellas ,
Querer em um só dia comer tudo,

Não perdoar a arroz, nem cuscus quentes


Despejar pratos, e limpar tigellas,
Estas as festas são do gordo entrudo.
230 PORTUGAL

Os frades, apesar de frades, e de todo o fa-


natismo que então dominava o povo baixo, não
deixavam tambem de ser chasqueados, e metti-
dos a ridiculo , tanto em prosa como em verso .
Inventava- se mil historietas para se zombar d'el-
les, e não só em Lisboa, mas tambem nas outras
povoações do paiz.
Ácerca dos frades da Cardiga narravam a se-
guinte historia , verdadeira ou forjada.
Um frade da Cardiga fazia a côrte ou arrasta-
va a aza a uma mulher casada. Passava o frade
frequentemente por debaixo da janella d'esta mu-
lher, suspirava e dizia :
-Menina eu quero-lhe bem.
A mulher porém era honrada, e informava o
marido de quanto se passava : por fim combi-
naram -se ambos para se rirem á custa do frade.
Aconselhou-a o marido a que acceitasse a car-
ta, que o frade lhe queria entregar, e lhe dis-
sesse que seu marido sahia a uma feira para
longe, e tinha que se demorar por fóra alguns
dias. E que se o frade quizesse, comparecesse
tal dia e a taes horas , pois o ensejo era propicio.
O frade comparece á hora marcada, e eis imme-
diatamente o marido a bater á porta.
Finge-se a mulher muito apoquentada , e sem
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 231

saber o que ha de fazer, mas vae- o encaminhan-


do para uma casa em que se maçava o linho , onde
esconde o frade amoroso . Entra o marido , e a
mulher exclama :
- Disseste que te demoravas por alguns dias
na feira, e appareces já ?
-- Sim, acóde o marido , porque encontrei um
amigo que me quer comprar todo o linho , e por
isso vou contar as duzias que lá tenho .
Ainda taes palavras não eram proferidas, e to-
pa o frade.
-Olá seu religioso ! Você por aqui ? Não sa-
bia que tinha a religião cá em casa !
O frade estava muito pequenino , muito peque-
nino , e procurando a porta para se agachar atraz
d'ella, quando o cacete principiasse a trabalhar .
- Ora vamos lá , seu frade, não se assuste :

não o mato, nem lhe toco a pavana se fizer o


que eu mandar.
-Faço sim, diga o que pretende.
― Sob pena de morte, ha de maçar todo o li

nho que está n'esta casa.


-Mas se eu não maçar . · ?
Não tem duvida ; eu o vou ensinar.
Ensinou-o com effeito .
O frade maçou, maçou, maçou, e por fim aca-
232 PORTUGAL

bou, depois de ter trabalhado toda a noite, ―e o


marido sentado com um cacete nas mãos .
Deixaram-n'o sahir, mas dando ao diabo a
cardada, e protestando não se metter mais em
taes aventuras .
Passados dias succedeu passar o frade por de-
baixo da janella da mesma casa, e a referida
mulher que lá se achava, exclamou :
-
Oh seu frade, eu quero-lhe bem !
Acóde o frade, olhando para cima :
Oh sua atrevida, e eu quero -lhe mal !

E não só contavam centenares de historias ácer-


ca dos frades, e das freiras , mas até mesmo os
satyrisavam em verso, como se vê dos seguintes ,
embora bem toscos , que pelas ruas de Thomar
cantarolavam :

Os frades da Graça têm uma cabaça 70


De canada e meia
Que bebem á ceia
Mas os de Christo têm mais poder
E têm mais filhos do que eu hei de ter.

70 Alludiam aos frades da Graça em Lisboa.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 233

E os da Annunciada. 71
Vão para a adega tomar a socega
Sahem de lá com suas cabelleiras ,
E vão para a fonte laurear com as freiras.

E os de S. Francisco 72 só comem vitella.


Quando veem moças bonitas
Pegam-lhes pela mão
E levam-n'as para a cella. 73

E os d'Alcobaça mandam apregoar


Que quem quizer pepinos
Vá ao seu pepinal.

Fallêmos tambem do celebre Camões do Rocio ,


o corregedor Caetano José da Silva Sotto Maior,
a quem o rei era muito affeiçoado por causa das
suas pilherias , versos, e epigrammas muito joco .
sos. Tinha elle ido á casa professa de S. Roque
pedir um confessor para assistir aos ultimos mo-
mentos d'um amigo do corregedor, prestes a fi-
nar-se . Os Jesuitas não estiveram para incom .

71 Convento de Santo Antonio dos Capuchos em Tho-


mar.
72 Convento em Thomar.
73 Para a cella as içavam os frades de Xabregas den-
tro de cestos, em tempo de D. João V, e ainda muito de-
pois.
234 PORTUGAL

modos , e deram em resposta que d'ali não sahia


ninguem , fosse para que fosse, depois das 9 ho-
ras da noite. O Camões do Rocio ficou indigna
do, e jurou dar uma lição aos padres Jesuitas .
Andava elle, passados dias, na companhia dos
seus quadrilheiros a fazer a ronda, seriam umas
dez horas da noite, e eis senão quando topa no
Rocio com dois Jesuitas que se recolhiam para S.
Roque.
O Camões sae-lhes ao encontro, e dá-lhes voz
de presos , accrescentando que não havia licença
para andarem mascaras pelas ruas áquellas ho-
ras, e em tal tempo !
-Mas nós somos padres Jesuitas, que nos
recolhemos para nossa casa !
-Isso é falso ! Vocês são mascarados que an-
dam na rua a estas horas, talvez para maus fins !
Nós somos Jesuitas, que vamos para S.
Roque !
-É mentira. Os Jesuitas não andam pelas
ruas depois das nove horas da noite ! E salta já
para o Tronco !
E os dois Jesuitas , debaixo de prisão , não ti-
veram remedio senão ficarem aquella noite no
Tronco, que era a cadeia onde se recolhiam os
meliantes e vagabundos .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 235

Deu isto um grande brado em todo o paiz ;


choviam os versos de troça aos Jesuitas , já muito
mal conceituados por aquelles tempos , a ponto
de se ter escripto uma chistosissima comedia con-
tra elles , tendo por assumpto este mesmo caso .
Os Jesuitas foram ás nuvens, as queixas dos
padres ferviam por toda a parte , o proprio D.
João V chegou a reprehender o Camões ; mas
este, sustentando sempre o seu papel , respon-
dia :
-Não , Real Senhor, não acreditei que elles fos-
sem Jesuitas : aquelles padres são de tal modo cir-
cumspectos e sisudos que nem sequer para assis-
tirem a um moribundo prestes a ir dar contas a
Deus, sáem das suas casas depois das nove ho-
ras da noite ! Só acreditei que eram homens que
para maus fins se tinham disfarçado em Jesui-
tas !
Não se póde negar que o Camões do Rocio ,
foi um homem notabilissimo do reinado de D.
João V : e n'um livro que se occupa d'esse rei
não se poderia deixar de dizer alguma cousa do
seu celebre corregedor.
Era homem instruido , socio da Academia de
Historia, e auctor do celeberrimo poema a Mar-
tinhada, no qual verbera a sensualidade mais
236 PORTUGAL

que brutal de Fr. Martinho de Barros , confessor


d'El- Rei D. João V. Este poema é, no seu ge-
nero, uma das obras mais perfeitas que se conhe-
cem .
Certa occasião foi mandado por El - Rei prender
um homem. Succedeu, porém, que o corregedor
era amicissimo d'esse homem, e resolveu desobe .
decer a El- Rei , e não prender o amigo . Foi cer-
car-lhe a casa, e viu que o homem tinha fugido
para o telhado. Retirou- se pois com a sua gente,
e foi ao Paço .
-Real Senhor, venho perguntar a V. Mages-
tade : quem governa de telhas acima ?
- De telhas acima só governa Deus, respon-
deu o rei , não atinando com a causa porque o
Camões lhe fazia tal pergunta .
Pois o homem, Real Senhor, estava em casa
quando o fui prender, mas fugiu-me para o te-
lhado . E eu sabia tão bem como V. Magestade ,
que de telhas acima só governa Deus !
D. João V n'um relance percebeu tudo, que o
homem era amigo do Camões , e que este o qui-
zera salvar ... Não ficou mal com o corregedor.
O beaterio estava então em Portugal no seu
auge, no seu maximo requinte. Este requinte do
beaterio desceu um pouco no reinado seguinte,
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 237

mas ainda assim foi o Padre Theodoro de Al-


meida uma das primeiras pessoas a quem no
anno de 1783 informaram dos milagres attribui-
dos ao servo de Deus Bento José Labre, 74 cuja
beatificação foi desagradavel a muitas pessoas . A
par do beaterio caminhava a relaxação de costu-
mes, sendo o proprio rei quem dava o detesta-
vel exemplo de frequentar os conventos para fa-
zer a côrte a freiras , e tendo amantes nos mos-
teiros . E a dissolução de costumes era tal que na
obra L'Etat présent du Royaume de Portugal en
l'année 1767, se leem estas palavras , que tradu-
zimos do original francez : « Todos os conven-
tos de Portugal teem por modelo o de Odivellas ,
onde tresentas freiras bellas e namoradeiras for-
mavam o serralho de D. João V, d'onde sahiram
todos os bastardos d'este rei, e as quaes tinham
cada uma um ou varios amantes para com elles
se distrahirem . Estas religiosas , sempre atavia-
das, nunca usando dos seus fatos de religião , co-
bertas d'alvaiade , de enfeites , e de diamantes , ani-
mavam o mais refinado galanteio, e passavam
por serem as amantes mais attrahentes da no-

74 Colleção de varias noticias a respeito do servó de


Deus Bento José Labre, Lisboa, 1785, pag. 63.
238 PORTUGAL

breza portugueza . E foi este escandalo o que


mais se viu exposto aos rigores do marquez de
Pombal . Tanto os padres portuguezes como as
freiras portuguezas podem ser havidos como os
mais libertinos de toda a Christandade » . 75
Esta asserção (attribuida ao general Dumou-
rier) não é exaggerada . Em tempo d'el -rei D.
João V revoltaram-se não só as freiras do con-
vento de Sant'Anna em Lisboa, mas tambem as
de varios outros conventos . Sahiam para fóra dos
mosteiros processionalmente, de cruz alçada, e
davam bastante que fazer ao Camões do Rocio.
O proprio chronista dos Arrabidos emprega al-
guns capitulos em descrever as briges e desor-
dens entre os seus . Mas que poderia fazer o cor-
regedor d'el-rei D. João V, n'um tempo em que
o rei era omnipotente , e podia entrar e sahir dos
conventos , quando bem lhe aprouvesse !

75 Pag. 189 da obra citada (L'État présent du royaume


de Portugal en 1767).
XVI

D. João V era bondoso : d'isso deu muitas e


muitas provas : foi elle que ordenou que, embora
as sentenças da Inquisição fossem olhadas como
soberanas, deveriam comtudo subir á presença
do rei para serem revistas pelo seu tribunal, e
permittiu que os criminosos tomassem advogados
para sua defesa. 76
Para as mulheres porém, é que elle tinha um
encanto, um condão irresistivel. Parece que era
entendidissimo na arte da seducção . Eis um caso:

76 Certa occasião foi condemnado a morrer queimado


um padre brazileiro por ter cahido no Judaismo. D. João
V fez tudo quanto era possivel para o salvar, pedindo-
240 PORTUGAL

Achava-se muito mal uma rapariga com quem


el - rei tivera amores por algum tempo . Foram
participar-lhe o estado em que ella se encon-
trava, e que a sua vida estava em perigo .
-Pois hei de salval-a ; digam lhe que venha
cá.
Trouxeram a doente effectivamente para a
sala em que se achava o rei com muitos fidalgos .
O monarcha apenas proferiu estas palavras : --
Como está?
Mas a maneira como foram proferidas calou de
tal modo no animo da menina, que percebeu que
o rei ainda lhe tinha amor, e ia outra vez reno-
var as relações com ella. Recuperou com effeito

lhe que se retractasse; mas o padre estava emperrado.


Apesar de ter sessenta annos de edade, não quiz renun-
ciar ao Judaismo. Não deu provas de fraqueza alguma,
e nem sequer se dignou responder uma só palavra aos
jesuitas e aos frades que lhe diziam ao ouvido que se
convertesse. E a morte d'este homem foi havida como
uma grande gloria para os judeus, e para os christãos
novos. Os padres porém estavam furiosos ; de proposito
The prolongavam e refinavam os padecimentos. O padre
brazileiro, porém, já no supplicio, bradava-lhes : E' uma
grande infamia, e uma vergonha o tratardes assim um
homem que morre por affirmar que não ha mais do que
um Deus, que vos ha de punir, desgraçados, de o offen-
derdes d'esta sorte ! (Mémoires instructifs por un voya-
geur, Amsterdam, 1738) .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 241

a saude, poupando ao seu real amante o incom -


modo de mandar dizer missas por sua alma .
São muito fallados os dois meninos de Palhava ,77
filhos naturaes d'el - rei D. João V , mas se nós
repararmos bem no que os livros nos dizem,
D. João V deveria ter sido pae de muitas deze-
nas de filhos bastardos . Porém succede o que

77 Ainda em 1787 viviam na sua quinta de Palhava.


Lord Beckford faz a respeito d'elles as seguintes conside-
rações nas suas Cartas ácerca de Portugal : Quanto póde
a força da educação ! Que esforços não demandaria da
parte das aias, escudeiros e camaristas , abafar todas as
vividas e generosas sensações no animo dos principes
que educavam, violentar a natureza humana, sugeitan-
do-a aos habitos d'uma realeza sem poder ! A magestade
sem dominio é de todas a carga mais pesada. Um sobe-
rano achará em que se occupe ; tem a escolha do bem
ou do mal ; porém principes como os de Palhavã , sem
mando, nem influencia, que nada mais têm a manter do
que uma imaginaria grandeza, bocejarão com o espirito
hebetado, e no andar do tempo se mostrarão tão cerimo-
niosos e inanimados como as pyramides de buxo enfezado
em seus jardins. Quanto mais felizes foram os rapazes
que o rei João entendeu que não devia reconhecer, e que
não são poucos , «porque o piedoso monarcha, largo como
os seus dominios, espalhava a imagem e similhança do
seu creador pela terra. »
Estas Cartas são interessantissimas e escriptas d'um
modo encantador. Na nossa obra Portugal e os Estran-
geiros (Lisboa, 1879 , 2 vol. ) encontral- as-ha completas o
leitor, traduzidas em portuguez pelo grande escriptor
Rebello da Silva.
'16
242 PORTUGAL

acontece em todos os tempos: uns , sem para isso


trabalharem, tiveram seus nomes na Historia, os
nomes dos outros ficaram na obscuridade.
Foram os excessos amorosos do rei que lhe
estragaram a saude ; a ponto de ter ido muitas
vezes procurar allivio para seus males nos ba-
nhos das Caldas . Tinham já n'aquelle tempo es-
tas aguas uma grande fama e um escriptor as
exalta nas seguintes phrases que pela sua origi-
nalidade não queremos deixar de transcrever:
«Quem poderá duvidar 78 que sendo as aguas
das Caldas da Rainha melhores que as de Vichy,
farão as mesmas , e mais prodigiosas curas , e . que
se fossem administradas por um medico sciente
se poderia tambem dizer em Portugal: « adeus
leites de vacca, e de cabra: adeus soros e leite
de burras : consolae-vos vitelinhas e burrinhos,
está chegado o tempo que vos deixarão o alimento
que a natureza vos tem destinado : adeus caldos
de frangos, que sendo simples , sois excellentes
tambem, e uns verdadeiros netos do caldo de
gallinha: mas recheiados com as drogas do pa-
ganismo de Galeno , sois uma verdadeira peste, e

78 Observações sobre as aguas das Caldas da Rainha,


por um curioso. Paris. Offic. de Jacob Vincent, 1752.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 243

podeis casar sem dispensa com os leites , aguas


de malvas e outros (chamados remedios frescos ,
para enganar os enfermos, augmentando - lhes as
obstrucções) : adeus tizana de aveia da celebre
madame Fouquet , que sendo simples , fazeis bem,
porém misturada com maná salcatartico , e trocis-
cos de fio ravente, fazeis uma purga endiabrada ,
que só se pode dar a um robusto mariola , »
A enfermidade do rei foi uma mina para os
frades e para as confrarias. Desde que elle foi
accomettido do primeiro ataque (paralysia) come-
çaram logo as preces e as procissões , de dia é
de noite. As communidades andavam de umas
egrejas para as outras com as imagens de mais
devoção : o Senhor dos Passos foi para a Pa-
triarchal: a imagem da Senhora do Carmo do
convento d'essa invocação , esteve no proprio apo-
sento do rei . Emfim, era uma ostentação , de pie-
dade e de affecto pela pessoa do rei , que seria
sublime, se não fosse claramente uma torpe espe-
culação com o espirito fraco do soberano . A todos
esses actos de devoção e de sympathia o rei cor-
respondia com a sua habitual liberalidade , e por
isso os frades semeavam para colher .
As academias litterarias tambem se empenha-
vam nos testemunhos de vassalagem ao rei . A
244 PORTUGAL

Academia dos Escolhidos, fundada em 1742 , de


que era presidente José Freire Monterroyo Mas-
carenhas, (que instituin a Gazeta de Lisboa) pro-
poz varios problemas para o assumpto de um
certamen, que duraria tres dias, em applauso das
melhoras de el-rei . Era o primeiro problema :
« Se foi tão grande a molestia de S. M como a
affectuosa piedade dos seus vassallos . » O segun-
do : « Se na doença de S. M. mostraram mais
fineza nas suas rogativas os habitantes d'esta
côrte, on os moradores dos logares distantes . >» O
terceiro : « Se foi n'este reino tão grande o sen-
timento na queixa de S. M. como o gosto na sua
melhora. »
E estes tres problemas haviam de desenvol-
ver - se em odes latinas , em romances heroicos ,
romances vulgares, lyras, sonetos , epigrammas,
oitavas e decimas !!
Quando el-rei mellorou, mandou repartir ma-
gnificas esmolas pelas communidades e confrarias
que tinham saído em procissão de preces , e en-
tão é que foi um espalhar de milhares de cru-
zados verdadeiramente louco .
Os medicos aconselharam a el-rei os banhos
das Caldas : logo se mandou concertar as estra-
das e construir alli palacios de madeira para
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 245

alojar a côrte, e foi o cardeal da Cunha benzer


as estradas , dias antes da partida do rei .
() rei foi acompanhado dos infantes , medicos ,
padres , imagens e reliquias.
A Villa Nova vieram esperal- o varias commu-
nidades , ás quaes logo elle mandou dar cerca de
6005000 réis .
Antes de partir para as Caldas , mandára dar
200 moedas a cada um dos medicos da camara,
e 100 aos de fóra que lhe tinham assistido, com a
mercê do habito de Christo e uma tença de réis
1005000, pagos na casa da moeda; e aos criados
que o serviram na doença, quiz que se dessem
60 moedas a cada ' um ! Dois padres que o acom-
panharam ás Caldas , levaram 24 : 000 cruzados
em pequenas moedas para se distribuirem pelos
pobres .
Os frades de Alcobaça, apenas a côrte chegou
ás Caldas , enviaram -lhe um presente que con-
stava de 69 vitellas , 19 presuntos , 182 queijos ,
210 perús , 692 gallinhas , 12 cargas de fructa,
36 paios e 333 caixas com doces .
El- rei repartiu este mimo dos Bernardos , que
viera expressamente para elle e sua familia , pelos
cardeaes da Motta e da Cunha, e pelos frades
arrabidos das Gaieiras , mandando a estes mais
246 PORTUGAL

2005000 réis de esmola. O guardião veio agra-


decer a el-rei a sua caridade , e S. M. ainda lhe
mandou dar mais 2005000 réis . Era um nunca
acabar, uma fonte inexhaurivel para os conven-
tos, o seu bolsinho, que era afinal de contas o
thesouro publico.
Além d'estes donativos ainda el-rei mandou àos
frades arrabidos de Santarem e de Valle de Fi-
gueira, 4005000 réis , e ao Senhor da Pedra
10:000 cruzados para as obras da sua egreja!
Os donativos e gratificações que el-rei deu,
quando tomava os banhos, foram egualmente
extraordinarios : só aos dois enfermeiros , que o,
mettiam e tiravam do banho, foram 200 peças de
ouro de. 6 $400 réis , e 605000 réis de tença ! E
depois aos medicos , e ao dono das casas que lhe
serviram de paço , e ao dono da casa onde estava
a rainha , e ao prior, e a tudo e a todos final-

mente, e sempre com a mesma liberalidade . No
dia 17 de agosto regressou á capital fazendo a
jornada em 12 horas, ou em 10 , segundo diz a
Gazeta de Lisboa.
E ao lado d'esta grandeza verdadeiramente
realenga, figurava a miseria.
A administração publica não podia ser mais
desamparada da vigilancia governativa . Não havia
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 247

nenhuma segurança pessoal : os ladrões e assassi-


nos eram desaforadissimos : roubava-se e assas-
sinava-se em pleno dia, apesar de trabalharem
constantemente duas polés, uma das quaes no
Rocio, sem embargo da forca estar em exercicio
todos os mezes, e apesar do espirito religioso
que parecia exercer tamanha influencia,
A administração militar era um foco de ladroei-
ras . Os assentistas impunemente roubavam os
fornecimentos . E a tal ponto chegava o desgo-
verno, que, no mez de março de 1742 , se paga-
ram 3 mezes de soldos e prets á tropa , e se lhe
ficaram devendo ainda 6. E n'este tempo fugiram
de Lisboa para Inglaterra 3 assentistas com
108 :000 cruzados !
E já que fallâmos dos loucos desperdicios do
magnificente monarcha, descreveremos a largos
traços a maneira como elle se apresentou na en-
trevista do Caia, para a troca das infantas de
Portugal e de Hespanha.
Nas Vendas Novas mandou por essa occa-
sião 79 levantar o palacio que lá está , adornan-

79 O sr. Pinheiro Chagas descreve estas scenas no seu


bello romance, A Côrte de D. João V, ( Lisboa, 1867).
246 PORTUGAL

2005000 réis de esmola. O guardião veio agra-


decer a el-rei a sua caridade , e S. M. ainda lhe
mandou dar mais 2005000 réis . Era um nunca
acabar, uma fonte inexhaurivel para os conven-
tos, o seu bolsinho, que era afinal de contas o
thesouro publico .
Além d'estes donativos ainda el- rei mandou aos
frades arrabidos de Santarem e de Valle de Fi-
gueira, 4005000 réis , e ao Senhor da Pedra
10:000 cruzados para as obras da sua egreja!
Os donativos e gratificações que el-rei deu,
quando tomava os banhos , foram egualmente
extraordinarios : só aos dois enfermeiros , que o
mettiam e tiravam do banho, foram 200 peças de
ouro de 6$ 400 réis , e 605000 réis de tença ! E
depois aos medicos, e ao dono das casas que lhe
serviram de paço , e ao dono da casa onde estava
+
a rainha, e ao prior, e a tudo e a todos final-
mente, e sempre com a mesma liberalidade . No
dia 17 de agosto regressou á capital fazendo a
jornada em 12 horas , ou em 10, segundo diz a
Gazeta de Lisboa .
E ao lado d'esta grandeza verdadeiramente
realenga, figurava a miseria .
A administração publica não podia ser mais
desamparada da vigilancia governativa . Não havia
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 247

nenhuma segurança pessoal : os ladrões e assassi-


nos eram desaforadissimos : roubava-se e assas-
sinava-se em pleno dia, apesar de trabalharem
constantemente duas polés, uma das quaes no
Rocio, sem embargo da forca estar em exercicio
todos os mezes , e apesar do espirito religioso
que parecia exercer tamanha influencia,
A administração militar era um foco de ladroei-
ras . Os assentistas impunemente roubavam os
fornecimentos . E a tal ponto chegava o desgo-
verno, que, no mez de março de 1742 , se paga-
ram 3 mezes de soldos e prets á tropa, e se lhe
ficaram devendo ainda 6. E n'este tempo fugiram
de Lisboa para Inglaterra 3 assentistas com
108 :000 cruzados !
E já que fallâmos dos loucos desperdicios do
magnificente monarcha, descreveremos a largos
traços a maneira como elle se apresentou na en-
trevista do Caia, para a troca das infantas de
Portugal e de Hespanha .
Nas Vendas Novas mandou por essa occa-
sião 79 levantar o palacio que lá está, adornan-

79 O sr. Pinheiro Chagas descreve estas scenas no seu


bello romance, A Côrte de D. João V, (Lisboa , 1867).
246 PORTUGAL

2005000 réis de esmola. O guardião veio agra-


decer a el-rei a sua caridade , e S. M. ainda lhe
mandou dar mais 2005000 réis . Era um nunca
acabar, uma fonte inexhaurivel para os conven-
tos , o seu bolsinho, que era afinal de contas o
thesouro publico .
Além d'estes donativos ainda el-rei mandou àos
frades arrabidos de Santarem e de Valle de Fi-
gueira, 4005000 réis , e ao Senhor da Pedra
10:000 cruzados para as obras da sua egreja !
Os donativos e gratificações que el-rei deu,
quando tomava os banhos , foram egualmente
extraordinarios : só aos dois enfermeiros , que o
mettiam e tiravam do banho, foram 200 peças de
ouro de 6$400 réis , e 605000 réis de tença ! E
depois aos medicos , e ao dono das casas que lhe
serviram de paço , e ao dono da casa onde estava
a rainha, e ao prior, e a tudo e a todos final-
mente , e sempre com a mesma liberalidade . No
dia 17 de agosto regressou á capital fazendo a.
jornada em 12 horas , ou em 10, segundo diz a
Gazeta de Lisboa.
E ao lado d'esta grandeza verdadeiramente
realenga, figurava a miseria .
A administração publica não podia ser mais
desamparada da vigilancia governativa . Não havia
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 247

nenhuma segurança pessoal : os ladrões e assassi-


nos eram desaforadissimos : roubava-se e assas-
sinava- se em pleno dia, apesar de trabalharem
constantemente duas polés, uma das quaes no
Rocio, sem embargo da forca estar em exercicio
todos os mezes, e apesar do espirito religioso
que parecia exercer tamanha influencia,
A administração militar era um foco de ladroei-
ras. Os assentistas impunemente roubavam os
fornecimentos . E a tal ponto chegava o desgo-
verno , que, no mez de março de 1742 , se paga-
ram 3 mezes de soldos e prets á tropa, e se lhe
ficaram devendo ainda 6. E n'este tempo fugiram
de Lisboa para Inglaterra 3 assentistas com
108 :000 cruzados !
E já que fallâmos dos loucos desperdicios do
magnificente monarcha, descreveremos a largos
traços a maneira como elle se apresentou na en-
trevista do Caia, para a troca das infantas de
Portugal e de Hespanha .
Nas Vendas Novas mandou por essa occa-
sião 79 levantar o palacio que lá está, adornan-

79 O sr. Pinheiro Chagas descreve estas scenas no seu


bello romance, A Côrte de D. João V, ( Lisboa , 1867) .
248 PORTUGAL

do -o de muitas pinturas, ricas tapecerias e cus-


tosas armações .
O patriarcha, 12 conegos e mais ecclesiasti .
cos necessarios para o culto, acompanharam el-
rei, além de numerosissima comitiva composta
de todos os fidalgos que tinham cargos no Paço
e de muitos outros que foram para tornar mais
luzida a funcção . O estado da Casa Real, n'essa
occasião , constou de 10 coches , 8 berlindas , 29
estufas, 2 caleças , e 141 seges . Os animaes de tiro
para o serviço d'esses vehiculos foram 353 urcos
ou frisões, como lhe chamavam, para os coches ;
468 cavallos e muares das seges e dos criados de
cavallariça ; 673 cavallos de sella e 316 muares
das galeras , carros de matto, liteiras e outros
transportes .
Os criados passavam de 900, só para o ser-
viço dos coches e para cuidarem do gado . E
além d'este estado havia todo o acompanhamento
que pertencia aos fidalgos que iam na comitiva .
Os infantes iam cada um em seu coche : a
rainha tinha o seu coche além do do estado , bem
como o rei. Assim se tornava mais apparatoso o
prestito.
Para o regresso a Lisboa foram necessarios
mais de 300 barcos , que de Aldeia Gallega se-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 249

guiram até Belem , onde se fez o desembarque


n'uma vistosa ponte que alli se armou, e d'ahi
vindo em direcção á Esperança , o prestito subiu
a calçada do Combro, rua do Chiado, rua do
Ferro , Pelourinho , até ao Terreiro do Paço , onde
era o palacio e Capella Real .

Os filhos de D. João V parece terem tido al-


guma educação litteraria, mas acanhada. Da in-
fanta real, que depois cazou com o principe das
Asturias, nos diz o livro Mémoires instructifs, já
por varias vezes citado : « A infanta dava gran-
des esperanças e tinha uma indole excellente. As
bexigas tinham extraordinariamente desfigurado
0 seu rosto . Fallava varias linguas , como a
rainha sua mãe , irmã do imperador Carlos VI .
O principe do Brazil n'aquelle tempo era bello ,
e como não fallava francez tomei a liberdade de
lhe perguntar a razão . Sua Alteza Real deu- me
em resposta: -Minha mãe não quer . Tendo -lhe re-
plicado que a Infanta Real fallava bem o fran-
cez , o principe respondeu-me: -Porque minha mãe
assim o quer!
E não podia deixar de ser acanhada a educa-
ção freiratica d'aquelle tempo .
250 PORTUGAL

Já se viu como a familia real andava continua-


mente pelas egrejas , porque assim era moda, e
porque n'ellas tambem havia divertimentos . Os
Jesuitas representavam vidas de Santos em latim
nos seus collegios . E em hespanhol e portuguez ,
eram afamadas as que se representavam nos
conventos de frades e freiras . Nenhumas porém
tão falladas como as do convento de freiras do-
minicanas do Salvador em Lisboa , ao Menino
Jesus que crescia , -- celebre imagem ácerca da
qual se detem muito o nosso mavioso fr . Luiz de
Souza, na sua admiravel Historia de S. Domin-
gos .
Se os limites impostos a este trabalho permit-
tissem mais delongas , apresentariamos dezenas
de exemplos e citações para demonstrarmos que
nos mosteiros tambem'havia divertimentos e pra-
zeres, e que os frades e freiras estavam muito
longe de serem as creaturas asceticas e desdito-
sas que muita gente hoje imagina 80. Nos con-

80 Por estes tempos, segundo diz fr. João de Nossa


Senhora na sua Oração Capitular publicada em Lisboa
em 1741 , contava a provincia do Algarve 50 conventos
com mil e tantas religiosas , e mais de novecentos fra-
des.
A um ministro inglez que lhe fallava em tão extraor-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 251

ventos havia luxo, ostentação , modas e vicios ,


pois não era só el-rei D. João V que roubava as
esposas ao Senhor . E até mesmo eram n'este
reinado tão vulgares as infamias praticadas nos
mosteiros , que o celebre corregedor Bacalhau teve
de tomar providencias mui rigorosas contra taes
abusos . E andou mui acertadamente, pois nem
todos á hora da morte tinham á sua disposição in-
dulgencias plenarias em abundancia.
Mas se ha, e com rasão , muito que censurar
durante o reinado de D. João V, ninguem lhe
poderá jámais tirar a gloria que de direito lhe per-
tence, pois foi na realidade de todos os monar-
chas portuguezes o que mais protegeu as artes e
as lettras. No capitulo com que vamos finalisar
o demonstraremos .

dinario numero de religiosos existentes em Portugal, res-


pondeu D. João V :-- Esta gente em geral é mandriona:
e eu antes a quero ter dentro de conventos, onde está
recolhida, do que vel - a andar vadiando.
XVII

Depois do pouco lisongeiro quadro que têmos


esboçado e documentado , manda a justiça que
prestêmos homenagem ao que houve de bom
n'este reinado . Elle marca - já o dissemos , e re-
petimol-o agora, -um periodo notavel na histo-
ria das bellas artes portuguezas . As lettras e as
sciencias recebêram impulso . E o nome portu-
guez durante essa epocha, teve incontestaveis
glorias .
« Quando não fôra tão fertil o reinado de D.
João V (diz um escriptor portuguez 81 ) em aconte-
cimentos gloriosos , quando não houvesse tantos

81 Panorama. Anno de 1844 pag. 395.


XVII

Depois do pouco lisongeiro quadro que têmos


esboçado e documentado , manda a justiça que
prestêmos homenagem ao que houve de bom
n'este reinado . Elle marca d -já o dissemos , e re-
petimol-o agora, -um periodo notavel na histo-
ria das bellas artes portuguezas . As lettras e as
sciencias recebêram impulso . E o nome portu-
guez durante essa epocha, teve incontestaveis
glorias .
« Quando não fôra tão fertil o reinado de D.
João V (diz um escriptor portuguez 81) em aconte-
cimentos gloriosos , quando não houvesse tantos

81 Panorama. Anno de 1844 pag. 395.


254 PORTUGAL

monumentos de . sua grandeza e sabedoria , as in-


strucções mandadas dar pelo rei a André de Mel-
lo e Castro, seu enviado em Roma no anno de
1707 , bastariam para provar que, a prudencia, a
previsão, a dignidade , e o saber presidiam aos
actos da sua illustrada administração .
E' sabido que durante o reinado d'este sobe-
rano foram sobre modo protegidas as lettras e as
artes estabelecendo - se então fabricas de vidros ,
de sedas , de armas, de papel, de atanados , de
couros e de marroquins, bem como as fundições
para artilheria.
A D. João V se deve a construcção do sum-
ptuoso edificio e convento de Mafra, o de Santa
Clara do Louriçal, o paço das Vendas Novas, o
paço e hospicio de N. Senhora das Necessidades ,
reforma do hospital das Caldas da Rainha, e mui-
tos outros edificios de menos nomeada . E todas
estas numerosas obras publicas poude elle man-
dar fazer, apesar de sustentar pelo . espaço de sete
annos mui dispendiosa guerra com Castella. Fei-
ta a paz no anno de 1715 , não tardou que no
anno seguinte enviasse ao Levante uma armada
portugueza em soccorro dos venezianos contra
os turcos , continuando Portugal nos annos sub -...
sequentes do seu governo a occupar, nos conse-·´
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 255

: .lhos europeus , um logar distincto como potencia


de primeira cathegoria .
Fiel observador dos tratados de alliança que
celebrou, distinguiu-se o seu reinado pela fé, que
manteve sempre com os seus alliados, sem que
nem promessas, nem ameaças podessem nunca
desvial- o do leal cumprimento das estipulações
• de taes tratados . Esta verdade vê-se demonstra-

da em todos os documentos d'aquella epocha, e


apparece com um novo brilho nas instrucções da-
das a André de Mello e Castro no começo quasi
do reinado de D. João V, e antes do seu casa-
mento negociado por Fernão Telles da Silva, ter-
ceiro conde de Villar Maior, que, concluida a ne-
gociação, acompanhou a archiduqueza D. Maria
Anna, filha do imperador d'Aust, ia ·Leopoldo I ,
e entrou com uma esquadra ingleża de 18 naus
de guerra no porto de Lisboa , no dia 26 de ou-
tubro de 1708 82.
Já dissémos algumas palavras ácerca de Ma-

82 Estas instrucções correm no referido volume do Pa-


norama de paginas 360 a 364. Foram bastantemente elo-
giadas. E na Bibliotheca Publica de Lisboa existe uma
grande collecção de opusculos tanto em prosa como em
verso, em differentes idiomas, e impressos em varios pai-
zes, em louvor d'um tal consorcio.
256 PORTUGAL

fra, a obra mais monumental do seu reinado .


Fallêmos de outra sua maravilha , a capella de
S. João Baptista : quantas capellas haverá no
mundo que possam ser comparaveis com a de S.
João Baptista em S. Roque de Lisboa? Que des-
lumbrante riqueza ! Ha quem diga ter apenas
uma rival na capella Sixtina em Roma !
« D'aquella collecção de pedras e metaes pre-
ciosos , diz um escriptor portuguez 83, em que o
trabalho do artista mal deixa aos olhos do ob-
servador reparar na riqueza da materia : de toda
aquella fabrica magnifica, resalta o nome de D.
João V, tão claro e brilhante , como se estivesse
ali esculpido repetidas vezes em letras d'ouro .
N'esta capella está retratada uma das qualidades
mais preeminentes do caracter d'el-rei D. João
V, e tambem n'ella está escripto moralmente o
maior acontecimento da sua epocha , o successo
que deu ao seu reinado o vulto e feições que o
distinguem de todos os outros . Essa qualidade é
amor da ostentação que levou aquelle monar-
cha a esforçar- se por imitar Luiz XIV, o fastoso
rei de França .

83 Archivo Pittoresco de 1864, pag. 273.


NA EPOCHA DE D. JOÃO V 257

Aquelle successo foi o descobrimento das mi-


nas de ouro e de diamantes do Brazil.
A capella de S. João Baptista é o epitome de
todas as glorias architectonicas e artisticas do
reinado, em que mais se construiu n'esta nossa
terra, e foi, como o ultimo canto do cysne , a der-
radeira e mais bella de todas as obras de arte do
rei magnanimo . A egreja do Menino Deus em
Lisboa , rica em pedraria, quasi que deve sua
existencia a D. João V.
Nenhum dos monarchas portuguezes teria ani-
mo e posses para dispender tão avultadas quan-
tias na edificação de uma pequena capella , senão
o fundador do palacio e basilica de Mafra .
Todas as capellas na egreja de S. Roque ti-
nham confrarias e irmandades que as adornavam ,
e n'ellas faziam sumptuosas festividades ; uma
só cousa que se achava votada ao despreso , era
a de S. João Baptista . Não tinha confraria que
olhasse por ella, e el-rei quando tal soube, excla-
ma : -Pois bem : eu serei o seu protector, visto
o santo ter o meu nome !
E dito e feito. Acabado o risco da capella , feito
pelo architecto Vanvitelli, e trazido a Lisboa,
el-rei gosta d'elle , e o manda executar, remet-
tendo logo grossas quantias de dinheiro . Concluida
17
258 PORTUGAL

toda a obra da capella , o papa Benedicto XIV


manda armal-a até á cimalha real dentro da ba-
silica de S. Pedro , depois de se ter procedido ás
cerimonias da sagração , e n'ella resa a primeira
missa .
E el- rei D. João V envia-lhe como esmola de
uma tal missa , um calix d'ouro de primoroso la-
vor, cravejado de diamantes no valor de quaren-
ta contos de réis .
Desmanchada a capella, e encaixotadas todas
as suas peças, foi conduzida a Portugal por Ale-
xandre Giusty, e por outros artistas encarrega-
dos de a collocarem na egreja de S. Roque . »
A capella de S. João Baptista em S. Roque
é um monumento de tal ordem que a viuva de
Napoleão II foi o que de mais notavel viu em
Lisboa, o que não admira, pois conta-se que na
epòcha da invasão franceza, o general Junot já
estava encaixotando tudo aquillo para remetter
para França, mas tendo os operarios estragado
um vidro, exclamou subitamente : Parai, não
se diga que Junot foi tão barbaro que mutilou
uma obra tão preciosa . 84

84 Magasin Pittoresque, vol. V., 1837.


NA EPOCHA DE D JOÃO V 259

Da riqueza e grandeza da capella da Sé d'Evora


falla assim o dr. Filippe Simões no tomo XI do Ar-
chivo Pittoresco : « Na Sé d'esta cidade ha entre a
capella-mór, obra do architecto d'el - rei D. João V,
e o corpo do templo , construido no reinado de
D. Sancho I , um contraste não menos notavel ,
que o que nos resulta de compararmos o devoto
instituidor da patriarchal com o reforçado repres
sor dos excessos do clero . Na variedade , riqueza ,
polimento e brilho dos marmores da capella mór
da Sé d'Evora , na belleza das côres, na elegante
e bem proporcionada articulação de todas as pe-
ças, na exuberancia da luz e ornatos , adınirâmos
o luxo e magnificencia de um rei, que parecia
convencido de que nas ostentações dispendiosas
tinha os unicos e verdadeiros alicerces do altar
e do throno . A capella-mór da Sé d'Evora é a
obra prima de Ludovici 85 , e o principal monumento
da sua gloria. Se não tem comparação nas di-
mensões com o palacio e convento de Mafra,
leva lhe grande vantagem na fineza da pedraria
e na elegancia da architectura. E é tal a belleza

85 Este architecto é de origem allemã. Veja- se a tal res-


peito um opusculo composto pelo sr. visconde de San-
ches de Baena.
260 PORTUGAL

e a combinação das côres dos marmores, lustro-


SOS como espelhos , tão bem proporcionadas as
partes , tão harmonico o todo, que os olhos se
deleitam a contemplar aquella graciosa perspe
ctiva, sem encontrarem uma só peça que melhor
parecesse de outro modo imaginada . O espirito
vê ali evidente e manifesta a perfeição da arte. >>
Mas ainda não termina aqui a enumeração dos
monumentos , edificações e obras publicas que
devemos ao prodigo monarcha . Reedifica a praça
de Campo Maior. Manda fazer bellas imagens
para um grande numero de egrejas, e entre ellas
a da Senhora Mãe dos Homens, para a cgreja
conventual de Xabregas, com o fim de obsequiar
o celebre poeta d'este convento . Institue duas
academias militares : uma em Elvas, outra em
Almeida. Funda os sumptuosos arsenaes de Lis-
boa e de Extremoz , e a fabrica da polvora em
Barcarena, que começou a funccionar em 8 de
dezembro de 1729. Manda erigir uma fabrica de
sedas no sitio da Cotovia, em Lisboa, na qual
trabalhavam com tanta perfeição , que se teciam
n'ella as mais delicadas sedas e todo o genero
de tissus, telas e estofos d'ouro e prata.
É igualmente a este rei que devemos duas
riquissimas bibliothecas : a de Mafra e a de
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 261

Coimbra. A edificação d'esta ultima começou em


10 de abril de 1712 , e findou em 1728 , tendo - se
gasto na sua construcção e em todos os arranjos
necessarios , perto de 70 contos de réis, afóra 15
contos empregados na compra de livros . 86
De todas as grandes obras , porém , que elle
nos deixou, a mais monumental, a mais util , por-
ventura aquella em que os dinheiros publicos
(tão loucamente prodigalisados) , tiveram me-
lhor applicação, foi a construcção do grandioso
Aqueducto das Aguas Livres.
Para esse fim lançou um tributo especial, o
que não é para admirar, porque as finanças an-
davam deploravelmente administradas (e a tal
ponto que por occasião do fallecimento do rei
não havia dinheiro , para os funeraes) . Esse im-
posto foi de 60 réis em cada alqueire de sal ven-
dido em Lisboa, 10 réis em cada canada d'azeite,
50 réis em cada panno de palha . Mais tarde o
mesmo imposto tornou-se extensivo ao vinho e á
carne.
Mas é na realidade ainda hoje o Aqueducto o
espanto e o assombro dos estrangeiros , obra

$6 FLORENCIO MAGO BARRETO FEIO : Memoria historica


e descriptiva ácerca da Universidade de Coimbra, pag. 9.
262 PORTUGAL

utilissima, pois Lisboa luctava cruelmente com a


falta d'agua. Lord Beckford em 1787 assevera
que muitas vezes tinha ouvido fallar d'elle como
o edificio mais colossal do seu genero na Eu-
ropa.
Este magnifico aqueducto cujo risco e desenho são
obra do brigadeiro Manuel da Maia, começou em
1729 e foi concluido em 1748. « Foi , diz o padre
Fr. Claudio da Conceição , no seu Gabinete histo-
rico, o maior beneficio que D. João V fez á ci-
dade de Lisboa, fazendo-lhe um Aqueducto que
de longe introduzisse agua em tanta abundancia,
como se vê nos muitos chafarizes , que aformo-
seam a mesma cidade. Se Lisboa é grande, se é
populosa , só a esta obra se deveu. Sem esta
providencia Lisboa jamais passaria dos limites
do bairro de Alfama, onde sómente havia qua-
tro chafarizes , e alguns poços e cisternas: todo o
resto da cidade que hoje se vê povoado eram
campos, e n'elles sómente se viam poucas casas ,
e as mais d'ellas eram conventos ... »
O padre é exagerado : o Bairro Alto era já
muito povoado, mas effectivamente o Aqueducto
das Aguas Livres era um monumento sem rival.
Mas continuêmos o que diziamos ácerca de D.
João V: apezar de viver n'uma epocha em que as
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 263

sciencias estavam em todo o mundo n'um estado


incrivel d'atrazo 87 ainda assim mandou vir da
Italia dois mathematicos d'alguma habilidade-os
padres Domingos Cappace e João Baptista Car-
bone .
E não deixa de merecer elogios por mandar
vir mathematicos para Portugal , um réi que vi-
veu n'uma epocha, em que Montfaucon visitando
as , bibliothecas de Italia , encontrou em Pavia
uma, -a do cavalheiro Belcredio, - que nenhuns
livros continha que não fossem obras em defeza
da Immaculada Conceição . É Lady Morgan quem
nol- o refere, no tomo III da sua obra L'Italie.
O proprio. Alexandre Herculano , que tanto se

87 D'este estado de cousas pode-se fazer uma idéa


lendo a seguinte passagem, que se encontra no Journal
des Savants, de 1707 , pag. 47: «Mr. Le Clerc estabelece
em primeiro logar como primeira hypothese: Que. o Fir-
mamento não é mais do que uma vasta extensão d'agua,
que por todos os lados rodeia o nosso TURBILHÃO COM
uma infinidade d'outros, em cada um dos quaes está en-
cerrada uma ESTRELLA ou um corpo luminoso, assim como
o SOL está contido em o nosso. » Os primeiros trinta ou
quarenta volumes d'esta collecção quasi de nada mais
tractam, do que de dar noticia de: Sermonarios, livros de
Theologia, de Jurisprudencia, de direito Canonico, vidas
de Santos e Santas inilagrosas, de Beatos, de Beatas, ver-
salhada latina, etc.; exactamente os mesmos assumptos,
ácerca dos quaes se escrevia em Portugal, no reinado
de D. João V.
264 PORTUGAL

aproveitou d'essa immensa Collecção de docu-


mentos relativos a negocios de Portugal, mandada
copiar em Roma, no que D. João V gastou uns
200 contos de réis , confessa que esse monarcha
deu impulso aos estudos historicos em Portugal .
Elle o confessa no Eu e o Clero, e passagens da
Symicta lá se encontram na Historia de Portu-
gal, d'este nosso grande escriptor .
E deu na realidade. Houve jamais em Portu-
gal um rei tão zeloso da conservação dos antigos
monumentos como D. João V? Que o diga a lei
de 20 d'agosto de 1721 .

Os riquissimos presentes mandados dar por


D. João V na Allemanha, ás pessoas que acom-
panharam a rainha sua esposa, aos officiaes da
esquadra ingleza , que a conduziram a Lisboa , e
á propria rainha Anna da Grã-Bretanha, foram
de uma magnificencia e prodigalidade espantosas .
Para maior solemnidade d'este matrimonio, che-
gou do Brazil a Lisboa no referido mez de de-
zembro a frota mais rica e numerosa de quantas
de lá tinham vindo . Compunha-se de mais de
cem navios , cuja carga em ouro, diamantes, as-
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 265

sucar e outras mercadorias e generos preciosos


se avaliava em 54 milhões de cruzados .
A instancias do papa Clemente XI duas ve-
zes 88 largou do Tejo , durante este reinado , uma
esquadra portugueza commandada pelo conde do
Rio Grande. A primeira vez compunha-se esta
frota, sahida do Tejo em 1716 , de 9 vasos de
guerra, com 390 bocas de fogo, e 2581 praças .
Os inimigos turcos não foram encontrados , e a
nossa esquadra voltou ao Tejo .
A gloria, porém, estava-lhe reservada para o
anno immediato.
A esquadra portugueza encontrou os inimigos
no Cabo de Matapan , pelejou e ganhou a victo-
ria. 89 Tinhamos então navios de guerra por toda
a parte, e ainda assim esta esquadra compu-
nha-se de : -Nau Conceição , com 80 bocas de
fogo, e 700 homens : -Nau Sr.a do Pilar, 700. h.
80 peças : -Nau Assumpção , 500 h. 66 p .: — Nau
Sr.ª das Necessidades, 500 h. 66 p.:- Nau Sta
Roza, 500 h. 66 p.:- Nau Rainha dos Anjos ,
350 h . 56 p.:— Brulote S.to Antonio de Padua,

88 Vida do Serenissimo Eugenio Francisco de Saboya,


Lisboa, 1739. Parte II, pag . 45.
89 J. P. C. SOARES : Quadros Navaes, vol. III , pag. 85.
266 PORTUGAL

8 p . 40 h.:-Brulote S.to Antonio de Lisboa,


egual lotação : -Transporte S. Thomaz, 20 p. e
100 h.:-Uma tartana com 8 pe 60 h. Ao todo
11 navios, 518 boccas de fogo e 3840 ho-
mens .
Nossa frota tinha de combater ao lado de na-
vios venezianos , pontificios , napolitanos ; malte- .
zes e hespanhoes, que chegavam ao numero de
177 embarcações, entre as quaes se contavam 62 .
de linha, mas a força e renhido da acção coube '
aos portuguezes, no dia 19 de julho de 1717. O
balio e tenente general Bellefontaine, desamparou-
o seu posto, vendo- se por isso o nosso conde do
Rio Grande na necessidade de combater em a nau
Conceição com a Sultana do Grão- Bachá, que era de
110 peças e 1500 homens : o conde de S. Vicente
em a nau Pilar; o capitão de mar e guerra Pe-
dro de Souza, na Assumpção; Rolhano, na St.a
Roza, com as sultanas inimigas . Mas todos se por-
taram com tal ardor e valentia que fizeram per-
der aos turcos uns 5000 homens , perdendo os
portuguezes uns 200 homens, entre os quaes o
capitão de mar e guerra Manuel André, da nau
Pilar:
Deu brado esta victoria, e o Papa mandou
agradecer a . D. João V aquelle serviço feito á
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 267

Christandade, e ao conde de Rio Maior remet-


teu-lhe um breve que principiava por estas pala-
vras : Dilecte Fili, Nobilis Vir , salutem, etc.

A cidade de Pór, do reino de Cambaya, .a


umas 40 leguas da praça de Diu , era desde mui-
tos annos vassala e tributaria da corûa de Por-
tugal , mas, instigada pelos arabios , pretendeu
sacudir esta antiga sujeição , e começou por ne-
gar o pagamento de tributos a l'ortugal, Mandou.
então o conde da Ericeira, vice-rei do Estado da
India, que o general da armada D. Lopo de Al-
meida fosse com uma esquadra reduzir aquella
cidade á obediencia . Recusando dar ouvidos aos
nossos , a povoação foi entrada á força, com morte .
de 400 arabios e cambayanos .
O schah da Persia tem noticia de que os ara- 是
bios lhe tinham tomado a ilha de Baharem, e lhe
estavam sitiando Ormuz , manda por isso uma
pomposa embaixada ao conde da Ericeira, pedin-
do-lhe que fosse afugentar aquelles povos e sal-
var aquellas povoações . Os arabios são atacados
por Antonio de Figueiredo Ultra , que fôra man-
dado para tal fim , e foram derrotados , sendo
268 PORTUGAL

mettida a pique a nau capitania dos inimigos , de


80 peças, e ficando os restantes navios incapa-
zes de poderem navegar .
Não só na Asia mostraram os portuguezes que
descendiam dos antigos heroes de Aljubarrota,
Montes Claros , e Linhas d'Elvas . Malta ainda
hoje apresenta grandes monumentos devidos a
portuguezes , pois os dinheiros portuguezes íam
então para toda a parte .
E, comquanto este reinado não possa servir
de modelo no tocante ás coisas da guerra, alguma
coisa todavia se fez no caminho dos melhora-
mentos . Provam -n'o as reformas realisadas na
organisação da infanteria, cavalleria e dragões ,
plas novas ordenanças de 15 de novembro de
1707. Na obra, hoje rarissima, intitulada Me-
moria em que se dá noticia da força militar ter-
restre, etc. , por Antonio Joaquim de Gouvêa, se
encontra noticia minuciosa d'essas reformas .
E como fallâmos em assumptos bellicos , não
deixaremos de citar o infante D. Manuel, irmão
de D. João, a quem se refere um extraordinario
numero d'obras estrangeiras , e que contava uns
17 annos d'edade quando sahiu occultamente de
Lisboa, passando á Hollanda , e d'aqui á Hungria ,
onde militou ao lado do celebre principe Eugenio
NA EPOCHA DE D. JOAO V 269

de Saboya, e assistiu ás batalhas de Peterwara-


din, Temeswar e Belgrado .
N'uma batalha correu grande perigo a sua vida,
ficando devedor da conservação d'ella a D. Di-
niz d'Almeida , cavalleiro de Malta, que andava
a serviço do imperador da Allemanha . A peleja
foi renhidissima , mas por fim os christãos fica-
ram vencedores dos turcos , sobre os quaes foi
grande a mortandade causada . 90
Do valor do nosso infante fallaram com parti--
cular applauso todas as memorias d'aquelle tempo .
O Journal Historique , notavel gazeta que pu-
blicava então tudo quanto de notavel se passava
pelo mundo, e na qual a cada passo se falla dos
feitos dos portuguezes , em março de 1718 de-
clara que o principe de Portugal tinha adquirido
« muita gloria e reputação de bravura. » Lady
Mary Wortley Montague, escriptora celebre , é
uma das maiores admiradoras de D. Manuel:
e a pag. 59 das suas cartas diz : « O joven prin-
cipe de Portugal é , em Vienna d'Austria, a ad-
miração de toda a Côrte : é bello , polido , e tem
grande vivacidade. Todos os officiaes dizem ma-

90 Vida do principe Eugenio de Saboya, parte II ,


pag. 57.
270 PORTUGAL

ravilhas da sua valentia na ultima campanha» .


Este principe parece que tambem apreciava
as bellas-artes , pois esta escriptora dá-nos no-
ticia de que elle comprara uma famosa collecção
de quadros, que tinham pertencido a Fouquet » .
Voltêmos , porém, a D João V : a mais glo-
riosa de todas as suas creações é sem duvida a
Academia Real de Historia Portugueza, fundada
por elle em 1720.
Em 4 de novembro de 1720 communicou o
rei seu pensamento ácerca de tal fundação ao
theatino D. Manuel Caetano de Souza , encarre-
gando de lhe apresentar o plano da Academia
que intentava fundar. 91 A esta commissão satis-
fez elle em poucos dias n'um extenso relatorio
em que, depois de estabelecer as bases do novo
edificio, propunha a Italia Sacra de Fernando
Ughelli como modelo para a historia ecclesiastica
de Portugal . E a 8 de dezembro do dito anno ,
celebrou-se no Paço da Casa de Bragançà a pri-
meira sessão publica, a que assistiram 34 acade-
micos.
Além das memorias : colligidas em 14 volumes ,

91 M. J. M. T. no jornal : « O Panorama » de 1840. (vol .


VI).
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 271

que alcançam desde 1721 até 1734, escreveram


differentes academicos mais quarenta e tantos
volumes, em que trataram extensa e profunda-
mente de muitos pontos de historia nacional. Que
bibliographo haverá que não conheça a Biblio-
theca Lusitana de Diogo Barbosa Machado , e as
Memorias d'el-rei D. Sebastião ? Quem não admi-
rará o genio investigador que presidiu á compo÷
sição dos 21 vol . da Historia Genealogica por D.
Antonio Caetano de Souza ? Porém, nem só estes
dois distinctos només honraram aquella Acade-
mia: os do conde da Ericeira, D. Francisco ,
cantando as façanhas do grande Henrique ; D..
Luiz Caetano de Lima, auctor da Geographia
Historica de Portugal; José. Soares da Silva, que

escreveu as Memorias para a Historia de D.
João 1; o dr. Alexandre Ferreira , que publicou
as interessantes Memorias e Noticias da Ordem dos
Templarios ; Fr. Lucas de Santa Catharina, Fr.
Pedro Monteiro, o marquez d'Alegrete , D. Jero-
nymo Contador d'Argote , e tantos outros.

£3

Aos monges da Cartuxa deu D. João V, (em


1729) 5: 000 cruzados , só para dourarem o reta-
272 PORTUGAL

bulo da sua egreja . Muitos mil cruzados lhe cus-


tou tambem a edificação da egreja do Senhor da
Pedra, começada em 1740. Porém os milhares de
mil cruzados que dispendeu na construcção da
basilica de Mafra sobem a um numero quasi in-
crivel . Fazer-se-ha idéa do dispendio nas obras
sabendo-se que trabalharam n'ellas 3997 cantei-
ros, 1162 carpinteiros, e 54 entalhadores !
«Ultimamente para que houvesse no reino ho-
mens peritos na architectura, sem ser preciso ir
mendigal- os ás nações estrangeiras, ordenou el-rei
se abrisse em Mafra uma aula de risco , onde fos-
sem aprender os rapazes que se achassem de
melhor engenho , e mais capazes de a exercitar,
taxando ordenado a cada um, e augmentando-
lh'o todos os annos , segurdo o seu adiantamen-
to . 92 O nosso grande esculptor, Joaquim Ma-
chado de Castro exclama enthusiasmado : « Quem
se terá esquecido das immensas sommas que o
senhor rei D. João V de saudosa memoria dis-
pendeu magnificamente com professores das ar.
tes de desenho ? Diga-o ainda Mafra; recorde-o a
Basilica Patriarchal; e mostre- o a preciosa ca-

92 FR. CLAUDIO DA CONCEIÇÃO : Gabinete Historico,


vol . VIII, pag . 123 .
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 273

pella de S. João Baptista na egreja de S. Ro-


93
que» ...
Perdoemos-lhe pois a sua doida prodigalidade ,
as suas fragilidades, e os seus defeitos, que foi
elle o maximo protector entre nós das lettras e
das bellas-artes, e até mesmo entre estrangei-
ros, pois que á porfia lhe dedicavam suas obras,
e d'elle recebiam grandiosas pensões e brindes .

93 JOAQUIM MACHADO DE CASTRO : Carta que um affei-


çoado ás artes de desenho escreveu a um alumno da es-
culptura, para o animar á perseverança do estudo. Lis-
boa, 1817.
18
CONCLUSÃO

O que D. João V fez em prol das lettras já


tem sido reconhecido por muitos escriptores, e o
proprio Garrett no Romanceiro lhe prestou essa
justiça dizendo : « ao menos protegeu as lettras e
as artes : a culpa não foi sua , mas do seculo ,
se de· tão mau gosto eram as lettras que protegia.
O crepusculo da nossa rehabilitação luziu effe-
ctivamente em seu reinado . >»
Isto é verdade , e o nome d'este rei era apre-
goado com admiração por todo o mundo!
Ide a Malta e lá encontrareis peças d'artilhe-
ria mandadas por el- rei D. João V. Contemplae,
e vereis que as obras mais excellentes que ali
existem datam do tempo do referido rei , e foram
devidas a portuguezes !
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 275

Lêde a obra de Frascarelli, « Iscrizioni Porto-


94
ghesi che esistono in diversi luoghi di Roma » ,
e vereis o que do tempo d'este rei existe na cida-
de eterna. Mas chegam a centenares, os livros que
tratam d'este assumpto : e innumeras são tambem
as obras (algumas d'ellas verdadeiramente monu-
mentaes) publicadas no Estrangeiro e dedicadas
a D. João V ou féitas sob os seus auspicios . E
de quantos nomes gloriosos se não ufanou Portu-
gal n'essa epocha ! O illustre D. Antonio Manuel
de Vilhena, a quem os proprios inglezes erigiram
uma estatua ! O grão mestre Pinto ! E tantos
outros .
Pensa · muita gente que nas conferencias da
Academia de Historia, fundada por el-rei D.
João V, de nada mais se tratava do que de as-
sumptos ecclesiasticos !
Puro engano. Por exemplo: na conferencia do
dia 22 de outubro de 1722, á qual assistiu el-rei
e a familia real , dia em que se distribuiram pe-
los socios medalhas commemorativas da fundação
d'esta Academia , fallou José da Cunha Brochado
ácerca d'uma collecção de tractados com diver-

94 Roma, 1868.
276 PORTUGAL

sas potencias, que fôra encarregado de colligir.


Seguiu-se Joseph Soares da Silva, que discorreu
ácerca da « Historia d'el-rei D. João I » , na qual
estava trabalhando . Fallou depois d'este Fr. Lu-
cas de Santa Catharina, a respeito dos grão-mes-
tres portuguezes na ordem de Malta. Em se-
guida Manuel de Azevedo Fortes fallou a res-
peito das cartas chorographicas e prelazias de
Portugal, e terminou a conferencia o dr. Manuel
de Azevedo Soares ácerca das « Memorias para as
côrtes de Portugal . »>
Vejamos agora quaes os assumptos da confe-
rencia immediata , em 5 de novembro do mesmo
anno.
D. Manuel Caetano de Souza informou a
Academia de que estava trabalhando no « Cata-
logo dos bispos portuguezes que tiveram dioceses
fóra de Portugal . » Tomou depois a palavra Ma-
nuel Dias de Lima, e participou que estava escre-
vendo uma <« Historia d'el -rei D. Manuel . » Seguiu-
se Manuel Pereira da Silva Leal dando conta dos
seus trabalhos litterarios durante os ultimos 6
mezes . Percorrera o paiz , disse elle, examinara
o monumento commemorativo do voto d'el -rei D.
Affonso Henriques antes da tomada de Santarem:
visitara o mosteiro da Batalha, fôra examinar
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 277

uma inscripção romana em Pombal : fizera estudos


no archivo da camara de Coimbra, de cujos do-
cumentos mais importantes já tinha remettido in-
formação á Academia : fizera o inventario das
bullas e documentos mais apreciaveis d'aquelle
cartorio , e o mesmo praticara ácerca do cartorio
do mosteiro de S. ta Cruz de Coimbra . Organisara
tambem o indice dos papeis importantes da Sé
d'aquella cidade : e encontrara noticia d'alguns
concilios que escaparam á diligencia do cardeal
Aguirre. Fôra tambem examinar os documentos
de Lorvão e do collegio de S. Bernardo . Exami-
nara posteriormente os archivos da Guarda, Ce-
lorico, Assores , Belmonte, Covilhã, Caria, Alpe-
drinha , Castello Branco , Villa do Rei e Abrantes ,
tendo encontrado muitas inscripções romanas, go-
thicas e outros muitos objectos digros de apreço .
E D. João V quasi sempre assistia a estas con-
ferencias acompanhado muitas vezes da familia
real.
D. João V falleceu no dia 31 de julho de 1750.
Dizem que houvera difficuldade em se encontrar
o dinheiro necessario para o enterro . Não admi-
ra. O rei de Portugal fôra um gastador de quan-
tias fabuloses. Lembrêmo-nos, porém, da grande
protecção concedida ás artes e ás lettras , e que o
278 PORTUGAL

nome d'este rei é immorredouro, porque o im-


mortalisa a fundação de tantos monumentos per-
duraveis, verdadeiras maravilhas em todos os
tempos, e como tal consideradas até pelos estran-
geiros. 95

Rematemos agora este trabalho com as seguintes.


palavras do grande Alexandre Hérculano : 96 « Hou-
ve entre nós um rei nascido com indole generosa é
magnifica foi D. João V. Favoreceu a fortuna
a generosidade do seu animo . Durante o reinado
d'este principe, as entranhas da America pareciam
converter- se em ouro , e a terra brotar diamantes
para enriquecerem o thesouro , portuguez , e o
nosso primeiro rei do seculo XVIII poude emular
Luiz XIV, em fasto e magnificencia . Ha, porém ,
differença entre os dois monarchas . Luiz XIV ,
mais guerreador que guerreiro , malbaratou o
sangue de seus subditos em conquistas estereis .
D. João " V, mais pacifico que timido , comprou
sempre, sem olhar ao preço, a paz externa dos '
BAR

95 V. Histoire de l'Academie Royale des Sciences de


Paris: an 1772. Deuxième partie.
96 A. HERCULANO: Panorama de 1843, pag . 189.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 279

seus naturaes. Luiz XIV levou a altissimo gráu


de explendor as lettras e as sciencias : D. João V
tentou-o, mas ficou muito áquem do principe
francez . Devemos , todavia , lembrar- nos de que
Luiz XIV era senhor d'uma vasta monar-
chia, e D. João V rei d'uma nação pequena.
Uma litteratura extensa , e ao mesmo tempo vi-
gorosa, só apparece onde ha muitos homens. É
como a grande cultura, que só póde fazer- se em
opulentas propriedades e dilatados terrenos . »>
A tão sensatas reflexões do grande mestre, só
tenho, na qualidade de portuguez amante de tudo
quanto é de gloria para o meu paiz, o fazer vo-
tos para que uma aureola de gloria cinja sempre
o nome de D. João V, em Portugal o maximo
protector das artes e das lettras .

FIM
PORTUGAL E OS ESTRANGEIROS
POR
Manuel Bernardes Branco
Esta obra divide-se em 3 partes: a 1.ª é um diccionario de todas as obras
que até hoje se tem escripto no estrangeiro ácerca de Portugal e dos portu-
guezes.
Este diccionario porém não se limita á simples enunciação dos titulos
das obras e nomes dos auctores. Se assim fosse não passaria d'um mero
livro de consulta: mas o seu fim é mais vasto , e por isso, depois das indica-
ções biographicas e bibliographicas sobre os auctores e as obras, vem a tra-
ducção dos seus trechos mais notaveis, mais importantes, mais curiosos. E
sempre que a leviandade, a mentira, ou a parcialidade d'esses escriptores
quer falsear a historia, ou accusar-nos faltas, defeitos e vicios apenas imagi-
narios, o auctor portuguez refuta energicamente essas calumnias, destruindo
com argumentos as injustiças que se nos quer fazer. Assim, Portugal e os es-
trangeiros offerece uma leitura agradabilissima, porque é como um cosmorama
em que se vêem perpassar as opiniões diversissimas,-umas absurdas, outras
verdadeiras , de perto de 2000 estrangeiros de differentes épocas ,-que a tal
numero sóbem as obras publicadas nos outros paizes expressamente consagra-
das a Portugal e a assumptos portuguezes.
Portugal e os estrangeiros é um d'aquelles livros que em qualquer pagina
em que o leitor o abra, lhe offerece uma leitura que lhe prende a attenção, e
o obriga insensivelmente a folheal-o por muito tempo. Kara é a pagina em
que não se encontra transcripta uma curiosidade, uma opinião disparatada
d'um escriptor, uma descripção do antigo viver da sociedade portugueza, uma
gloria d'algum compatriota nosso. Agora é um estrangeiro que animado do
mais singular affecto pelos portuguezes, escreve de nós as coisas mais lison-
geiras, pondo-nos na corôa das nuvens ; depois é um que nos chama, com a
mais penhorante amabilidade, o povo mais porco de todo o mundo; em segui-
da, outro que se extasia ante as riquezas artisticas de Portugal, e que as
estuda, as descreve e as conhece, muito melhor do que nós. Mais adiante, ou-
tro que sacrifica toda a sua fortuna á publicação d'uma obra monumental re-
lativa ao nosso paiz. Finalmente, perto de 1000 paginas todas n'esse genero,
todas com essa variedade interessantissima de opiniões, de pontos de vista
differentes, de apreciações oppostas.
A 2.ª parte é um Diccionario das obras portuguezas que teem sido traduzidas
em linguas estrangeiras.
A 3.ª parte consta de Noticia das recordações e monumentos existentes nas
cinco partesa do mundo, e levantados pelos portuguezes ou erigidos em honra d'elles.
E a 4.ª parte é uma Noticia dos portuguezes que no estrangeiro se distingui-
ram nas lettras e nas sciencias, seguida d'uma resenha das obras portuguezas reim-
pressas repetidas vezes nos paizes estrangeiros.
Por aqui se vê que o Portugal e os estrangeiros, ao passo que é uma obra
interessantissima para se ler, utilissima para se consultar, é tambem um ver-
dadeiro monumento levantado ás glorias nacionaes, e que demonstra brilhan-
temente quanto o nome portuguez tem sido em todos os tempos exalçado pe-
los estrangeiros, e quanto elle ainda se impõe em todo o globo, ao contrario do
que muita gente hoje acredita.
A obra fórma 2 grossos volumes com 1200 paginas, em formato de 8.º
grande, adornados de 9 excellentes retratos de estrangeiros a quem podêmos
chamar benemeritos de Portugal.
O seu preço que era de 65000 réis, acaba de ser reduzido a 45000 réis,
com o fim de se facilitar a vulgarisação d'uma obra tão patriotica.
Á venda na livraria do editor Antonio Maria Pereira, rua Augusta, 50 e
52, Lisboa.
hould be returned to
r before the last date

nts a day is incurred


yond the specified

omptly .
M
MIMI

Harvard College Library

In Memory of

Aleixo de Queiroz Ribeiro

de Sotomayor d'Almeida
eVasconcellos

Count of Santa Eulalia

The Gift of

John B.Stetson Junior

of theClass of1906

A.J.Downey sc. LONDON 1992


CONCLUSÃO

O que D. João V fez em prol das lettras já


tem sido reconhecido por muitos escriptores , e o
proprio Garrett no Romanceiro lhe prestou essa
justiça dizendo : « ao menos protegeu as lettras e
as artes : a culpa não foi sua , mas do seculo ,
se de tão mau gosto eram as lettras que protegia.
O crepusculo da " nossa rehabilitação luziu effe-
ctivamente em seu reinado . »
Isto é verdade , e o nome d'este rei era apre-
goado com admiração por todo o mundo !
Ide a Malta e lá encontrareis peças d'artilhe-
ria mandadas por el- rei D. João V. Contemplae,
e vereis que as obras mais excellentes que ali
existem datam do tempo do referido rei , e foram
devidas a portuguezes !
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 275

Lêde a obra de Frascarelli, α Iscrizioni Porto-


ghesi che esistono in diversi luoghi di Roma >» , 94
e vereis o que do tempo d'este rei existe na cida-
de eterna. Mas chegam a centenares , os livros que
tratam d'este assumpto : e innumeras são - tambem
as obras (algumas d'ellas verdadeiramente mónu-
mentaes) publicadas no Estrangeiro e dedicadas
a D. João V ou feitas sob os seus auspicios . E
de quantos nomes gloriosos se não ufanou Portu-
gal n'essa epocha ! O illustre D. Antonio Manuel
de Vilhena, a quem os proprios inglezes erigiram
uma estatua ! O grão mestre Pinto ! E tantos
outros.
Pensa muita gente que nas conferencias da
Academia de Historia , fundada por el-rei D.
João V, de nada mais se tratava do que de as-
sumptos ecclesiasticos !
Puro engano . Por exemplo: na conferencia do
dia 22 de outubro de 1722, á qual assistiu el-rei
e a familia real , dia em que se distribuiram pe-
los socios medalhas commemorativas da fundação
d'esta Academia, fallou José da Cunha Brochado
ácerca d'uma collecção de tractados com diver-

94 Roma, 1868.
276 PORTUGAL

sas potencias, que fôra encarregado de colligir .


Seguiu-se Joseph Soares da Silva, que discorreu
ácerca da « Historia d'el-rei D. João I » , na qual
estava trabalhando . Fallou depois d'este Fr. Lu-
cas de Santa Catharina, a respeito dos grão-mes-
tres portuguezes na ordem de Malta. Em se-
guida Manuel de Azevedo Fortes fallou a res-
peito das cartas chorographicas e prelazias de
Portugal, e terminou a conferencia o dr. Manuel
de Azevedo Soares ácerca das « Memorias para as
côrtes de Portugal . »
Vejamos agora quaes os assumptos da confe-
rencia immediata, em 5 de novembro do mesmo
anno.
D. Manuel Caetano de Souza informou a
Academia de que estava trabalhando no « Cata-
logo dos bispos portuguezes que tiveram dioceses
fóra de Portugal . » Tomou depois a palavra Ma-
nuel Dias de Lima, e participou que estava escre-
vendo uma << Historia d'el -rei D. Manuel. » Seguiu-
se Manuel Pereira da Silva Leal dando conta dos
seus trabalhos litterarios durante os ultimos 6
mezes . Percorrera o paiz , disse elle, examinara
o monumento commemorativo do voto d'el -rei D.
Affonso Henriques antes da tomada de Santarem:
visitara o mosteiro da Batalha, fôra examinar
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 277

uma inscripção romana em Pombal : fizera estudos


no archivo da camara de Coimbra, de cujos do-
cumentos mais importantes já tinha remettido in-
formação á Academia : fizera o inventario das
bullas e documentos mais apreciaveis d'aquelle
cartorio, e o mesmo praticara ácerca do cartorio
do mosteiro de S.ta Cruz de Coimbra. Organisara
tambem o indice dos papeis importantes da Sé
d'aquella cidade : e encontrara noticia d'alguns
concilios que escaparam á diligencia do cardeal
Aguirre. Fôra tambem examinar os documentos
de Lorvão e do collegio de S. Bernardo . Exami-
nara posteriormente os archivos da Guarda, Ce-
lorico, Assores , Belmonte, Covilhã, Caria , Alpe-
drinha, Castello Branco , Villa do Rei e Abrantes,
tendo encontrado muitas inscripções romanas, go-
thicas e outros muitos objectos digros de apreço.
E D. João V quasi sempre assistia a estas con-
ferencias acompanhado muitas vezes da familia
-real.
D. João V falleceu no dia 31 de julho de 1750 .
Dizem que houvera difficuldade em se encontrar
o dinheiro necessario para o enterro . Não admi-
ra. O rei de Portugal fôra um gastador de quan-
tias fabuloses. Lembrêmo-nos , porém, da grande
protecção concedida ás artes e ás lettras, e que o
278 PORTUGAL

nome d'este rei é immorredouro , porque o im-


mortalisa a fundação de tantos monumentos per-
duraveis, verdadeiras maravilhas em todos os
tempos, e como tal consideradas até pelos estran-
geiros . 95

6
Rematemos agora este trabalho com as seguintes .
palavras do grande Alexandre Hérculano : 96 « Hou-
ve entre nós um rei nascido com indole generosa é
magnifica : foi D. João V. Favoreceu a fortuna
a generosidade do seu. animo . Durante o reinado
d'este principe, as entranhas da America pareciam
converter- se em ouro , e a terra brotar diamantes
para enriquecerem o thesouro portuguez, e o
nosso primeiro rei do seculo XVIII poude emular
Luiz XIV, em fasto e magnificencia . Ha, porém,
differença entre os dois monarchas . Luiz XIV,
mais guerreador que guerreiro , malbaratou o
sangue de seus subditos em conquistas estereis .
D. João ช V, mais pacifico que timido, comprou
sempre, sem olhar ao preço, a paz externa dos

95 V. Histoire de l'Academie Royale des Sciences de


Paris: an 1772. Deuxième partie.
96 A. HERCULANO: Panorama de 1843, pag . 189.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 279

seus naturaes . Luiz XIV levou a altissimo gráu


de explendor as lettras e as sciencias : D. João V
tentou-o, mas ficou muito áquem do principe
francez . Devemos , todavia, lembrar- nos de que
Luiz XIV era senhor d'uma vasta monar-
chia, e D. João V rei d'uma nação pequena.
Uma litteratura extensa, e ao mesmo tempo vi-
gorosa, só apparece onde ha muitos homens . É
como a grande cultura, que só póde fazer-se em
opulentas propriedades e dilatados terrenos . >>
A tão sensatas reflexões do grande mestre , só
tenho, na qualidade de portuguez amante de tudo
quanto é de gloria para o meu paiz, o fazer vo-
tos para que uma aureola de gloria cinja sempre
o nome de D. João V, em Portugal o maximo.
protector das artes e das lettras .

FIM
278 PORTUGAL

nome d'este rei é immorredouro , porque o im-


mortalisa a fundação de tantos monumentos per-
duraveis , verdadeiras maravilhas em todos • os
tempos, e como tal consideradas até pelos estran-
geiros. 95

Rematemos agora este trabalho com as seguintes .


palavras do grande Alexandre Hérculano : 96 « Hou-
ve entre nós um rei nascido com indole generosa é
magnifica: foi D. João V. Favoreceu a fortuna
a generosidade do seu animo. Durante o reinado
d'este principe, as entranhas da Americă pareciam
converter- se em ouro, e a terra brotar diamantes
para enriquecerem o thesouro portuguez, e o
nosso primeiro rei do seculo XVIII poude emular
Luiz XIV, em fasto e magnificencia . Ha , porém ,
differença entre os dois monarchas . Luiz XIV,
mais guerreador que guerreiro , malbaratou o
sangue de seus subditos em conquistas estereis .
D. João V, mais pacifico que timido, comprou
sempre, sem olhar ao preço, a paz externa dos

95 V. Histoire de l'Academie Royale des Sciences de


Paris : an 1772. Deuxième partie.
96 A. HERCULANO: Panorama de 1843, pag . 189.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 279 .

seus naturaes . Luiz XIV levou a altissimo gráu


de explendor as lettras e as sciencias: D. João V
tentou-o, mas ficou muito áquem do principe
francez. Devemos, todavia, lembrar-nos de que
Luiz XIV era senhor d'uma vasta monar-
chia, é D. João V rei d'uma nação pequena.
Uma litteratura extensa , e ao mesmo tempo vi-
gorosa, só apparece onde ha muitos homens . É
como a grande cultura, que só póde fazer- se em
opulentas propriedades e dilatados terrenos . >>
A tão sensatas reflexões do grande mestre, só
tenho, na qualidade de portuguez amante de tudo
" quanto é de gloria para o meu paiz , o fazer vo-
tos para que uma aureola de gloria cinja sempre
o nome de D. João V, em Portugal o maximo
protector das artes e das lettras .

FIM
278 PORTUGAL

nome d'este rei é immorredouro , porque o im-


mortalisa a fundação de tantos monumentos per-
duraveis, verdadeiras maravilhas em todos os

tempos, e como fal consideradas até pelos estran-
geiros. 95

Rematemos agora este trabalho com as seguintes .


palavras do grande Alexandre Hérculano : 96 « Hou-
ve entre nós um rei nascido com indole generosa é
magnifica : foi D. João V. Favoreceu a fortuna
a generosidade do seu animo . Durante o reinado
d'este principe, as entranhas da America pareciam
converter- se em ouro , e a terra brotar diamantes
para enriquecerem o thesouro, portuguez , e o
nosso primeiro rei do seculo XVIII poude emular
Luiz XIV, em fasto e magnificencia. Ha, porém,
differença entre os dois monarchas . Luiz XIV ,
mais guerreador que guerreiro , malbaratou o
sangue de seus subditos em conquistas estereis .
D. João * V, mais pacifico que timido , comprou
sempre, sem olhar ao preço , a paz externa dos
இது

95 V. Histoire de l'Academie Royale des Sciences de


Paris: an 1772. Deuxième partie.
96 A. HERCULANO: Panorama de 1843, pag. 189.
NA EPOCHA DE D. JOÃO V 279

seus naturaes . Luiz XIV levou a altissimo gráu


de explendor as lettras e as sciencias : D. João V
tentou-o , mas ficou muito áquem do principe
francez . Devemos, todavia, lembrar-nos de que
Luiz XIV era senhor d'uma vasta monar-
chia, e D. João V rei d'uma nação pequena .
Uma litteratura extensa , e ao mesmo tempo vi-
gorosa, só apparece onde ha muitos homens . É
como a grande cultura, que só póde fazer-se em
opulentas propriedades e dilatados terrenos . »>
A tão sensatas reflexões do grande mestre , só
tenho, na qualidade de portuguez amante de tudo
quanto é de gloria para o meu paiz, o fazer vo-
tos para que uma aureola de gloria cinja sempre
o nome de D. João V, em Portugal o maximo
protector das artes e das lettras .

FIM
PORTUGAL E OS ESTRANGEIROS
POR
Manuel Bernardes Branco
Esta obra divide-se em 3 partes: a 1.ª é um diccionario de todas as obras
que até hoje se tem escripto no estrangeiro ácerca de Portugal e dos portu-
guezes.
Este diccionario porém não se limita á simples enunciação dos titulos
das obras e nomes dos auctores. Se assim fosse não passaria d'um mero
livro de consulta: mas o seu fim é mais vasto , e por isso, depois das indica-
ções biographicas e bibliographicas sobre os auctores e as obras, vem a tra-
ducção dos seus trechos mais notaveis, mais importantes, mais curiosos. E
sempre que a leviandade, a mentira, ou a parcialidade d'esses escriptores
quer falsear a historia, ou accusar-nos faltas, defeitos e vicios apenas imagi-
narios, o auctor portuguez refuta energicamente essas calumnias, destruindo
com argumentos as injustiças que se nos quer fazer. Assim, Portugal e os es-
trangeiros offerece uma leitura agradabilissima, porque é como um cosmorama
em que se vêem perpassar as opiniões diversissimas,-umas absurdas, outras
verdadeiras, de perto de 2000 estrangeiros de differentes épocas, -que a tal
numero sóbem as obras publicadas nos outros paizes expressamente consagra-
das a Portugal e a assumptos portuguezes.
Portugal e os estrangeiros é um d'aquelles livros que em qualquer pagina
em que o leitor o abra, lhe offerece uma leitura que lhe prende a attenção, e
o obriga insensivelmente a folheal-o por muito tempo. Kara é a pagina em
que não se encontra transcripta uma curiosidade, uma opinião disparatada
d'um escriptor, uma descripção do antigo viver da sociedade portugueza, uma
gloria d'algum compatriota nosso. Agora é um estrangeiro que animado do
mais singular affecto pelos portuguezes , escreve de nós as coisas mais lison-
geiras, pondo-nos na corôa das nuvens ; depois é um que nos chama, com a
mais penhorante amabilidade, o povo mais porco de todo o mundo ; em segui-
da, outro que se extasia ante as riquezas artisticas de Portugal, e que as
estuda, as descreve e as conhece, muito melhor do que nós. Mais adiante, ou-
tro que sacrifica toda a sua fortuna á publicação d'uma obra monumental re-
lativa ao nosso paiz. Finalmente, perto de 1000 paginas todas n'esse genero,
todas com essa variedade interessantissima de opiniões, de pontos de vista
differentes, de apreciações oppostas.
A 2.ª parte é um Diccionario das obras portuguezas que teem sido traduzidas
em linguas estrangeiras.
A 3.ª parte consta de Noticia das recordações e monumentos existentes nas
cinco partesado mundo, e levantados pelos portuguezes ou erigidos em honra d'elles.
E a 4.ª parte é uma Noticia dos portuguezes que no estrangeiro se distingui-
ram nas lettras e nas sciencias, seguida d'uma resenha das obras portuguezas reim-
pressas repetidas vezes nos paizes estrangeiros.
Por aqui se vê que o Portugal e os estrangeiros, ao passo que é uma obra
interessantissima para se ler, utilissima para se consultar, é tambem um ver-
dadeiro monumento levantado ás glorias nacionaes, e que demonstra brilhan-
temente quanto o nome portuguez tem sido em todos os tempos exalçado pe-
los estrangeiros, e quanto elle ainda se impõe em todo o globo, ao contrario do
que muita gente hoje acredita.
A obra fórma 2 grossos volumes com 1200 paginas, em formato de 8.°
grande, adornados de 9 excellentes retratos de estrangeiros a quem podemos
chamar benemeritos de Portugal.
O seu preço que era de 65000 réis, acaba de ser reduzido a 45000 réis,
com o fim de se facilitar a vulgarisação d'uma obra tão patriotica.
Á venda na livraria do editor Antonio Maria Pereira, rua Augusta, 50 e
52, Lisboa.
hould be returned to
r before the last date

`nts a day is incurred


yond the specified

omptly .
33
MIMESE

Harvard CollegeLibrary

In Memoryof

Aleixo de QueirozRibeiro

de Sotomayor d'Almeida
eVasconcellos

Count of Santa Eulalia

TheGift of
John B.Stetson Junior

ofthe Class of1906

AS.Downey se. LONDON 1992


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Harvard College Library

In Memory of

Aleixo de Queiroz Ribeiro


de Sotomayord'Almeida
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TheGift of

John B. Stetson Junior

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A.J.Downey se. LONDON. 1992

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