O artigo discute os direitos em Marx e na tradição marxista, e sua relação com a 'questão democrática' no Brasil. Aborda a concepção de democracia como um processo e direitos como categoria histórica, situando os desafios da democratização no contexto brasileiro.
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Descrição original:
Fundamentos teóricos metodológicos do Serviço social
O artigo discute os direitos em Marx e na tradição marxista, e sua relação com a 'questão democrática' no Brasil. Aborda a concepção de democracia como um processo e direitos como categoria histórica, situando os desafios da democratização no contexto brasileiro.
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Direitos, lutas sociais e “questão democrática”
no Brasil contemporâneo / Rights, social
struggles and “democratic question” in brazil contemporary
Evelyne Medeiros Pereira1
Michelly Ferreira Monteiro Elias2
Resumo: Abordam-se neste artigo os principais aspectos do debate
sobre direitos em Marx e na tradição marxista, e sua relação com a particularidade da “questão democrática” na realidade brasileira. Tem-se como objetivo refletir sobre o significado sócio-histórico dos direitos na atualidade, considerando os principais aspectos da forma- ção social do Brasil em que se destaca seu caráter dependente em meio ao processo desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.
Abstract: In this approach article the main aspects about rights in
Marx and in the marxist tradition, and his relationship with the particularity of the “democratic question” in the brazilian reality. Has as goal reflects on the socio- historical significance of rights in present, considering the main aspects of the Brazil Social Formation which highlights his dependent process in combined and uneven develop- ment of capitalism.
Keywords: State; law; democracy; social struggles; brazilian reality.
1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mes-
tre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dou- toranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente do Curso de Serviço Social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). 2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Dou- toranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente do Curso de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).
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D iante do quadro atual de acirramento das contradições do padrão
de produção e reprodução social vigente, o capital tem imposto grandes perdas para os trabalhadores, especialmente desde o fenômeno da reestruturação produtiva e do neoliberalismo. Essa realidade aden- sou o processo das lutas de classes e tem colocado em níveis cada vez mais complexos o debate sobre as contradições acerca dos direitos na sociedade burguesa. Considerando esse contexto, o presente artigo reflete sobre o significado sócio-histórico dos direitos na atualidade, tendo como refe- rência elementos que compõem tanto o debate sobre direitos em Marx e na tradição marxista como a particularidade da formação social brasileira. Sabendo que existem diferentes concepções e polêmicas sobre o tema em questão, nos respaldaremos em algumas obras que demonstram influência nesse debate no âmbito do pensamento crítico brasileiro. Assim, buscaremos um diálogo com as elaborações clássicas sobre Estado, sua dimensão jurídica e sua relação com os fundamentos da formação sócio-histórica do país, bem como suas expressões atuais. Partindo desses elementos, abordamos a concepção de democracia como um processo, conforme sintetizado por Lukács (2008), e do direto enquanto categoria histórica. Situamos a “questão democrática” como uma problemática intrínseca aos embates classistas e às contradições que permeiam as lutas por direitos no Brasil, considerando a histórica fragi- lidade dos direitos e da democracia na realidade brasileira como parte constitutiva do capitalismo no país. Por isso, os desafios do contexto atual apontam a inviabilidade de uma democratização mais profunda sem promover intensas cisões nas estruturas de poder hegemônicas.
Estado, direitos e luta de classes: uma relação necessária para a
tradição marxista O acervo marxiano nos oferece uma base importante para desenvolvermos as reflexões acerca do tema em questão sem perder de vista os aspectos da realidade contemporânea. No texto A questão judaica, por exemplo, Marx ([1844] 1993) analisa uma problemática vivida na época em que o Estado alemão não garantia os direitos políticos para a população judia tal como assegurava para o restante da população. A crítica ao Estado burguês é desenvolvida mediante
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constatação, por um lado, da especificidade da formação do Estado
alemão e, por outro, que a relação entre religião e Estado, embora em alguma medida houvesse a tendência de separação, não é antagônica na sociedade capitalista. Devido à manutenção da propriedade privada dos meios de produção fundamentais, como determinante das relações sociais, o autor ressalta que a questão fundamental a ser tratada é o fato de, na sociedade burguesa, a liberdade política não coincide com a liberdade do homem, pois as relações capitalistas produzem uma “oposição entre as esferas do Estado e da sociedade civil”, embora efetivamente se cons- tituam como uma mesma totalidade, expressando uma separação historicamente construída entre a dimensão genérica e a dimensão individual do homem. Ao analisar o Estado como síntese da formação social que se funda na propriedade privada, constituindo um ser humano cindido do coletivo, o pensador alemão destaca a natureza de classe do Estado e, com isso, aponta os limites dos direitos do homem na sociedade burguesa. Considerando que esta é fundada na desigualdade entre os homens, em que a produção é social e a apropriação da riqueza produ- zida é privada, conclui que, no capitalismo, a igualdade é somente em sua dimensão formal. Marx (1993) realiza sua crítica tendo como entendimento que a questão dos direitos inclui os direitos do cidadão, como direitos políti- cos, no sentido da participação na vida da comunidade e do Estado. Já os direitos do homem, previstos nas Declarações e Constituições dos países que foram protagonistas das revoluções burguesas, incluem os direitos de liberdade, propriedade, igualdade e segurança. Diante disso, demonstra o caráter formal que cada um desses direitos possui, estando voltados, em essência, para a garantia do direito de proprie- dade e para os interesses privados do homem individual, burguês. Assim, os direitos do cidadão se tornaram um meio para a preservação dos direitos do homem egoísta, e a separação existente na sociedade burguesa entre o gênero e o indivíduo, o coletivo e o individual, o Estado e a sociedade civil, é parte da constituição dos limites da emancipação política na sociedade burguesa, formando o cidadão apenas em seu sentido abstrato.
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Considerando essa problemática, Marx (1993) aponta a necessi-
dade de busca pela emancipação humana, em que, superando os limi- tes da emancipação política, os homens poderão atender às suas neces- sidades desenvolvendo o conjunto de suas potencialidades e tendo como pressuposto a existência individual e genérica como dimensões de uma mesma totalidade, superando a sua condição de autoalienação. “A emancipação humana só será plena quando o homem real e indivi- dual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico (p. 63). Associado a essas reflexões estão as concepções acerca do Estado burguês e sua relação com a lei e o direito na obra A ideologia alemã, em que Marx e Engels ([1989] 2002) analisam a questão da ideologia, do Estado e da política tendo como pressuposto que a atividade prática da produção da vida é o fundamento de toda a existência humana. Nesse sentido, a consciência possui uma determinação fundamentalmente social vinculada à capacidade humana de produção. Porém, os filósofos passaram a representar o mundo como produto de uma consciência autônoma e isso se tornou o fundamento real da ideologia como forma de consciência invertida do mundo. Nessa perspectiva, a história se constitui no processo de autopro- dução dos indivíduos, incluindo todas as suas dimensões, cuja centra- lidade está na vida material. As classes sociais, portanto, se definem materialmente e em luta entre si, defendendo seus interesses. Conside- rando a divisão do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção, a classe proprietária desses meios é quem domina o processo produtivo, mas, além disso, esta classe passa a ter também o domínio político e ideológico na sociedade. Assim, “os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos domi- nantes”, pois precisa defender seus interesses de forma que estes pare- çam ser os interesses de toda a sociedade. O Estado, assim como a lei e o direito, é expressão das relações sociais e o principal meio pelo qual “os indivíduos de uma classe domi- nante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época”, não se configurando em um poder que está acima da sociedade. (MARX; ENGELS, 2002, p. 48-72).
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Na tradição marxista observamos diversas interpretações acerca
desse debate, a exemplo da análise de Pachukanis ([1926] 1989) que situa as leis fundamentais do direito e a sua forma jurídica como espe- cíficas da sociedade burguesa em um determinado nível de desenvolvi- mento das forças produtivas e das relações sociais decorrentes de tal desenvolvimento. Considerando que a desigualdade é intrínseca à lógica capitalista, o direito burguês se baseia na concepção de igual- dade no seu sentido formal, tendo como referência as relações mercan- tis, para assim estabelecer o seu sistema jurídico. Por isso, o direito tem como aspecto central a existência do sujeito que se situa na troca de mercadorias. Nessas relações não se considera a desigualdade existente entre as classes sociais, sendo as categorias jurídicas perpetuadas e normatizadas pelo Estado e pelo direito, formando o que é denomi- nado de poder público. O autor aponta ainda que o direito também possui uma natureza ideológica que legitima o poder da burguesia e afirma que a questão fundamental é a sua forma jurídica, ou seja, a sua manifestação formal, uma vez que esta se aproxima da forma mercadoria e expressa “um real processo de transformação jurídica das relações humanas, que acom- panha o desenvolvimento da economia mercantil e monetária” (PACHUKANIS, 1989, p. 05). Neste sentido, a forma jurídica é anali- sada como historicamente determinada e, por isso, entendida como expressão real das relações de produção existentes. A supressão da sociedade burguesa demandará, portanto, a extinção também do seu ordenamento jurídico. Frente à análise sobre a forma jurídica desenvolvida por Pachukanis (1989) e à problemática que envolve os direitos do homem na sociedade capitalista, considerarmos os determinantes das lutas de classes e do desenvolvimento da economia capita- lista de forma inter-relacionada é fundamental para uma análise dos direitos na sociedade burguesa como síntese de múltiplas determinações. Caso contrário, seria provável endossarmos uma interpretação causal, entendendo o Estado, o direito e a lei apenas como derivações das relações sociais de produção e não como sínteses que, ao mesmo tempo em que expressam a deter- minação material, inf luenciam e condicionam a base material da qual é expressão.
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Marx desenvolve sua crítica demarcando a contradição funda-
mental que há entre os direitos do homem e a realidade socioeconô- mica no capitalismo, pois “a aplicação da pretendida igualdade de direitos à posse culminou em uma contradição radical, visto que implicou necessariamente a exclusão de todos os outros da posse efetiva, restrita a um só indivíduo” (MÉSZAROS, 2008, p. 159). Diante disso, a questão dos direitos do homem no capitalismo – que, segundo a denominação de Mészáros (2008), diz respeito aos direitos humanos – é estabelecida devido à forma sócio-histórica da sociedade e não devido aos direitos em si. Desse ponto de vista, a identificação das determinações e a reali- zação de mediações acerca do processo histórico e da dinâmica das lutas de classes tornam-se necessárias para análise das contradições intrínsecas aos direitos na sociedade capitalista. Conforme Mészáros (2008), Marx rejeita a “ilusão jurídica” de que a lei se baseia em uma vontade livre, autônoma da base material da sociedade, mas, ao mesmo tempo, reconhece que “os vários fatores legais não são unilateralmente determinados pela base material, mas agem também como determi- nantes poderosos no sistema global de interações complexas” (p. 162). A relação entre a base material e as diversas formas de consciência social não deve ser estabelecida de forma direta, mas, sim, de forma dialética e mediada pelo processo histórico. É, portanto, no quadro da relação dialética entre a vida material e os aspectos de cunho legal e político que se insere a questão dos direi- tos humanos. Com isso, Mészáros (2008) sinaliza que as contradições geradas pela sociedade capitalista somente são possíveis de administrar até o ponto em que estas não ameacem a lógica de funcionamento do sistema; e o discurso de defesa dos direitos permanece somente até o momento em que não há um contexto de acirramento das contradições e de possibilidade de ameaça do próprio metabolismo social. Ou seja, nem sempre é oportuna para a classe dominante a garantia e defesa dos direitos, em suas múltiplas dimensões. Ao identificar essas contradições e os próprios limites postos à realização dos direitos na sociedade burguesa, o autor apresenta a consolidação de uma alternativa socialista como a única que pode e deve incorporar os direitos humanos enquanto desenvolvimento livre das individualidades. “Nesse sentido, a legitimação de uma alternativa
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socialista para a forma capitalista de intercâmbio social não pode igno-
rar a questão dos direitos humanos”. (MÉSZÁROS, 2008 p. 165). Nesta concepção, a plena realização dos direitos humanos somente é possível em uma sociedade igualitária no seu sentido econômico e social, ao mesmo tempo em que se constitui em um aspecto impor- tante para a conquista desta sociedade. Para o autor, tais direitos somente irão se efetivar em uma sociedade em que haja um padrão de igualdade para a totalidade dos indivíduos, onde os interesses particu- lares não sejam contraditórios aos interesses da humanidade em geral. Portanto, as limitações e contradições acerca dos direitos na sociedade atual não se constituem em relação aos direitos em si, mas são geradas pelas determinações da realidade socioeconômica desigual que é intrín- seca ao modo de produção capitalista. Sobre isso, é importante destacar que as lutas por direitos – prin- cipalmente os direitos sociais e políticos, assim como a ampliação destes por meio da realização de reformas sociais – fizeram (e fazem) parte de diversas reivindicações da classe trabalhadora e do movimento revolucionário. Abreu (2008) nos lembra que as lutas pela ampliação dos direitos da classe trabalhadora adquiriram significativa importân- cia a partir de 1830 com as reivindicações e o início da organização sindical dos trabalhadores ingleses. Com a perspectiva de tensionar e demonstrar os limites desses direitos, os movimentos operários do século XIX, que tiveram seu auge nas Revoluções de 1848 e que comandaram a experiência da Comuna de Paris, em 1871, construí- ram as bases para a luta revolucionária daquela época. A importância histórica desse período deu-se pelo fato de que tanto as lutas pela ampliação dos direitos políticos e sociais quanto as lutas revolucioná- rias já explicitavam as contradições da sociedade burguesa e os limites intrínsecos à sua lógica. Frente a essa trajetória que, com suas particularidades históri- cas, marcam o desenvolvimento capitalista, é possível identificar a importância das lutas reivindicatórias em torno dos direitos como mediação para outros patamares que conformam a relação entre emancipação política e humana. Isto demonstra a complexidade das contradições e dos dilemas que permeiam a luta por direitos na socie- dade burguesa, em suas diferentes formações sociais, considerando a
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perspectiva de construção de uma alternativa socialista, tal como nos
apresenta Mészáros (2008).
Com isso, priorizaremos a partir desse momento, reflexões
voltadas para a realidade brasileira e sua relação histórica com a ques- tão dos direitos e da democracia, visando dialogar com o debate clás- sico marxista, com as transformações contemporâneas e com os desa- fios do nosso tempo.
“Questão democrática” e realidade brasileira:
breves apontamentos
A conjuntura brasileira apresenta expressões mais latentes que (re)
põe temas centrais na opinião pública, sinalizando a responsabilidade e necessidade de aprofundarmos nossas reflexões sobre os direitos e a “questão democrática” no país, diante de um momento capitalista onde suas contradições se aprofundam como também o questiona- mento a respeito do seu conteúdo “civilizatório”. Sobre isso, basta abri- mos as principais páginas de jornais, os canais de televisão, os sites mais visitados nas redes sociais, observarmos as pautas e bandeiras mais propagandeadas pelos principais meios de comunicação, mais reivindi- cadas no parlamento e mais presentes nas conversas cotidianas dos transeuntes: restrição ainda maior dos direitos sociais e trabalhistas; criminalização do movimentos sociais e da pobreza; dentre outros fatos que refletem uma relevante influência fundamentalista, patriarcal, moralista e ultraconservadora em pleno século XXI.
Ao contrário do coro ideológico que impregna a sociabilidade em
que vivemos, não existe uma democracia em seu sentido ideal e univer- sal. Trata-se de um processo fundamentalmente histórico, não de uma situação estática, o que implica também em uma “multiplicidade de formas de democracia”, assim como em múltiplas dimensões do direito. Nesta perspectiva, Lukács (2008) prioriza referir-se a um “processo de democratização”, não de “democracia” como algo dado, o que significa uma força política ordenadora de uma formação econômica particular “sobre cujo terreno nasce, opera”, como também pode tornar-se proble- mática e desaparecer.
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Ou seja, legalidade e ilegalidade; barbárie e civilização; cidada-
nia e violação de direitos; o velho e o novo são faces da mesma moeda. Para o pensador húngaro, a “libertação” das colônias não fez desapa- recer o “traço da velha exploração e opressão; mas, na verdade, a política que se apresenta como nova […] não é mais do que, em sua real substância, o prosseguimento com novos meios técnicos da velha política colonialista” (p. 96). Porém, é sempre importante lembrar que, uma face ou outra torna-se mais forte a depender fundamental- mente (mas não unicamente) das necessidades econômicas, tendo a luta de classes um papel decisivo. Partindo da compreensão de totalidade em que o “conhecimento do concreto opera-se envolvendo universalidade, singularidade e parti- cularidade” (NETTO, 2011), é importante identificar a realidade brasileira como uma composição do desenvolvimento desigual e combi- nado capitalista (TROTSKY apud LOWY, 1995). Para entendê-la, contudo, é fundamental conceber o seu caráter de dependência em relação aos países centrais desde a colonização. Para Prado Jr. ([1942] 2008), o processo de colonização particularizou o caráter do capitalismo no país, revelando como o “moderno” se arti- cula permanentemente com o “arcaico”, sendo fundamental para a acumulação originária de capital nos países centrais. Trata-se de uma transição ‘pelo alto’ ou, como alguns autores caracterizam, de um processo “restaurador” de “revoluções passivas” (GRAMSCI, [1966] 2006, p. 393), que ocorre sem profundas alterações na estrutura social e econômica, especialmente agrária. De outra forma, podemos dizer que a transição do capitalismo competitivo ao monopolista no Brasil foge ao “modelo universal da democracia burguesa” (FERNANDES, [1975] 2006). Ou seja, ausente de um processo de “desagregação das relações orgânicas patriarcais que são substituídas por relações jurídicas, isto é, por relações entre sujeitos que, formalmente, possuem os mesmos direitos”. (PACHUKANIS, 1989, p. 11). Não é estranho, por exemplo, que na última década, analistas apontem para uma tendência de “reprimarização” das exportações brasileiras via commodities, que, segundo Gonçalves (2010), representa- ria um “retorno ao passado” na política econômica do Brasil. E de
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continuar alarmante o número de trabalhadores encontrados em
condições análogas ao trabalho escravo em pleno século XXI. Talvez se possa até sugerir que nosso moderno agronegócio, em certa medida, contenha um núcleo (reconfigurado) ao da grande exploração típica dos tempos coloniais.
Com isso, podemos entender que a forma de dominação burguesa
no país deu-se por meio do que Florestan Fernandes (2006) qualifica de “democracia restrita”. Apesar do necessário estabelecimento de formas jurídicas liberais nas constituições – sendo a primeira estabele- cida oficialmente em 1824 –, na República não ocorreu a ruptura com o poder oligárquico e patrimonialista, antipopular e antidemocrático.
O latifúndio e a dependência, incrementados pela ação do Estado
com a combinação entre repressão e assistencialismo, não se revelaram como obstáculos ao desenvolvimento capitalista, ao contrário. Tais circunstâncias nos dão pistas para entendermos o “por quê” que o “capitalismo brasileiro” não viabilizou reformas sociais clássicas, de teor democrático e popular, tal como a reforma agrária, urbana e polí- tica, que foram viáveis em outros países capitalistas.
Tal como na América Latina, no Brasil “os projetos burgueses
estiveram sempre divorciados do pacto democrático […]. A democracia política, entre nós, ergue-se não a partir de componentes dos projetos burgueses, mas contra eles”. Mesmo diante da resistência das classes subalternas, caracterizada pela dialética de “revolta e conformismo”, o modo de desenvolvimento capitalista no continente latino-americano “não propiciou a consolidação de uma tradição cultural democrática”. (NETTO, 1990, p. 119-121).
O que houve foram verdadeiras contrarreformas, demonstrando
a debilidade histórica da democracia e o predomínio das relações autoritárias, intermediadas pela lógica do “favor” em detrimento ao “direito”, aprofundando os laços e mecanismos de dependência partí- cipes do movimento de concentração e centralização capitalista. Nesse movimento, a modernização conservadora consagra a aliança do grande capital financeiro com o Estado nacional sob o regime da “autocracia burguesa” (FERNANDES, 2006), promovendo uma “permanente privação dos direitos sociais, trabalhistas e políticos”
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aos trabalhadores urbanos e rurais, “aprofundando sua exclusão do
bloco do poder e dos pactos políticos”. Isso nos diz que “o liberalismo no Brasil não se constrói sobre a universalidade da figura de cidadão” (IAMAMOTO, 2007, p. 131-139), ou mesmo da democracia; ou seja, não “exige a defesa impla- cável dos direitos do cidadão” (FERNANDES, 2006, p. 46-47). No Brasil, “o ideário liberal incorporado na Constituição de 1829 chega de braços dados com a escravidão e com a prática geral do favor que, embora contrapostos, se unem na história política brasileira”. (IAMA- MOTO, 2007, p. 135-138). Sobre isso, observamos o quanto é permanente e atual a marca da restrição de direitos e debilidade democrática, sustentada por um contexto econômico que promove altas taxas de concentração de riquezas e renda, onde os 0,9% dos mais ricos detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza no país (PNAD, 2012), faz com que o Brasil ainda assuma a 79ª posição no ranking de países reconhecidos pela Organi- zação das Nações Unidas (ONU) em relação ao baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mesmo sendo a 6ª economia mundial (PNUD, 2013). Mais que isso, nos diz o quanto é comum na dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado capitalista a dialética entre a ampliação e restrição de direitos. Esta realidade vem adensando a insatisfação e o descrédito aos mecanismos da democra- cia representativa no país. Como podemos observar, não é possível entender a “questão democrática” e os principais aspectos que conformam os direitos no Brasil sem levar em consideração sua dimensão política, que revela um intenso e complexo jogo de interesses e disputas de classes: “É nessa perspectiva que se situam os acontecimentos de Canudos, Contestado, Trombas e Formoso, Bico do Papagaio, Anoni […]”. (IANNI, 2004, p. 92). Os sujeitos na linha de frente desse processo conformam um amalgamado de setores e frações de classes heterogê- neas que representam, de um lado, as classes trabalhadoras e setores populares que, sob o mesmo julgo da exploração capitalista, são frutos da questão agrária, indígena, urbana, regional, racial. De outro lado, frações da classe dominante que compõem a “burguesia asso- ciada” (IANNI, 2004), historicamente atrelada aos interesses do capital estrangeiro e imperialista, mesmo que em alguns períodos de
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forma menos contundente e coesa, destituindo-se de um projeto polí-
tico de orientação democrática e de soberania nacional. Sob essas circunstâncias, a consolidação do poder deu-se mediante a explora- ção desenfreada da classe trabalhadora combinada “com duas táticas calculistas por parte do patronato: a do paternalismo e a da repressão policial”. (GORENDER, [1981] 1982, p. 49). Atualmente, observamos as configurações da classe trabalhadora a partir das transformações partícipes do “novo” ciclo de acumulação capitalista. Por outro lado, têm se produzido também inúmeras greves e manifestações em torno de pautas de teor fundamentalmente demo- crático e popular: direito à educação, transporte, habitação e saúde; reforma agrária, urbana e política; entre outros. Porém, “cabe lembrar que sempre que há um avanço político de forças populares [...] as clas- ses dominantes, mesmo débeis, juntam as suas forças para garantir e fortalecer o Estado burguês” (IANNI, 2004, p. 239). Sobre isso, obser- vamos “novos” mecanismos de controle e repressão com forte teor assistencialista como também de criminalização, conformando o que alguns analistas chamam de “militarização” da sociedade, com o alar- gamento da face penal do Estado e das políticas punitivas que possuem teor secular e são aspectos permanentes da construção e manutenção de hegemonia, especialmente em realidades com frágeis instituições democráticas, mesmo que seja uma tendência universal. Essa conjuntura reforça e renova, de forma mais complexa, uma característica presente em toda a história da formação brasileira: a restrição de uma ampla parcela da população a processos de demo- cratização e a privação contínua de direitos às classes subalternizadas, demonstrando que os processos de mudanças transcorridas possuem mais elementos de conservação que de rupturas. Tal situação reforça, inclusive, as teses que apontam a perda gradativa da capacidade civi- lizatória do capitalismo e suas implicações irreparáveis às políticas e aos direitos sociais. Como podemos observar, a questão dos direitos no Brasil é muito complexa, não restando espaços para conclusões que, de um lado, neguem a validade da luta por direitos, atribuindo a tal fato um cami- nho sem volta para a barbárie capitalista; de outro, apresentem as reivindicações por direitos e pela ampliação da democracia como o caminho necessário para desenvolvermos o capitalismo brasileiro e,
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finalmente, criarmos condições concretas para pensarmos em um
processo de transição no país. Tais posturas aparentam não considerar (ou mesmo desconhecer) a forma particular com que o capitalismo se consolidou por aqui, especialmente na sua fase atual, e como se rela- ciona com o contexto internacional. Portanto, é importante entender os aspectos estruturais e conjun- turais como uma unidade dialética, da mesma forma que é o movi- mento entre a produção material da vida e as formas culturais, jurídi- cas, vigentes, demonstrando que não há uma espécie de “evolução” ou desdobramento de uma suposta democracia universal. Outro aspecto central e geral que consideramos pertinente ressal- tar, é que, do ponto de vista das contradições, ao mesmo tempo em que concebemos a normatização do trabalho alienado como base para a normatização jurídica, tendo em vista que o processo de objetivação e exteriorização do trabalho na sociabilidade capitalista implica tenden- cialmente (muito embora não necessariamente) em alienação, tal processo, porém, não anula a condição ontológica do trabalho como “condição fundamental de toda a vida humana” capaz de suprir os valores necessários à humanidade. (ENGELS, [1977] 2000, p. 215). Em síntese: mesmo que predomine a alienação, nem todo “dever-ser” é alienado, porém, nos marcos da sociabilidade capitalista, também não será “livre” em sua plenitude. Isso implica, portanto, nos remetermos à ideia de Coutinho ([2000] 2008, p. 21) quando nos diz: “não existe identidade mecânica entre gênese e validade” para o materialismo histórico. Ou seja, consi- derando a própria historicidade e multiplicidade das formas de regula- ção, existem processos que, embora tenham tido origem na sociedade burguesa, constituem um “valor” no âmbito da trajetória contraditória da humanidade. Dessa forma, a “questão democrática” e a instituição dos direitos na sociedade burguesa, como parte constitutiva do Programa da Modernidade e da cultura ilustrada, mesmo transmutada profundamente já no início do século XIX, momento em que a burgue- sia se torna definitivamente classe conservadora e dominante, repre- senta um importante passo no processo que “conduziu a uma ordem social, sem dúvida, muito mais livre que a anterior, mas que continha limites insuperáveis à emancipação da humanidade”. (NETTO; BRAZ, 2006, p. 19).
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Pensar o significado dos direitos hoje, portanto, demanda também
lembrar que desde o século XIX, “a herança ilustrada passa às mãos do proletariado” (p. 19-20); o desenvolvimento das forças produtivas não necessariamente produz alienação, mesmo que a tendência seja esta na sociedade capitalista; e, portanto, uma outra normatividade, forma de regulação social, é possível. Porém, não cairá do céu e seu germe está nas contradições existentes no seio das velhas formas. Assim, “as regras da convivência e da cooperação humana que caracterizam a democra- cia socialista não são de modo algum princípios radicalmente novos […] são, ao contrário, forças elementares, que operam há milênios, mas que só no socialismo podem se generalizar para toda a sociedade” (LUKÁCS, 2008, p. 121). Isso não quer dizer que a “democracia socia- lista” seja fruto de uma “evolução”, uma continuidade da democracia burguesa, mas de uma verdadeira ruptura, tal como ocorreu em relação a democracia na polis, aprofundando o processo de democratização da economia e da política. Caso contrário, referendaremos uma concepção ideal, essencia- lista. Por isso, é possível que, mesmo em um processo de transição, o momento jurídico não esteja apenas presente, mas represente um aspecto central para viabilizar um passo adiante na história da huma- nidade, no horizonte da emancipação humana, permitindo que o próprio educador possa ser educado (MARX; ENGELS, 2002, p. 100). Não estamos nos referindo aqui a “etapas”, mas a um processo necessá- rio para criar as circunstâncias reais e concretas que permitam uma relação de forças favorável à “luta dura e tenaz” pela transformação social que não se constitui em um “único e grande golpe”, muito menos “por meio de um simples ataque de surpresa” (ENGELS, [1895] 2008, p. 46). Daí já nos alertava Lenin (2010), diante dos desafios postos no contexto pré-revolucionário russo no início do século XX, sobre “o dever de expor e de destacar diante de todo o povo os objetivos demo- cráticos gerais, sem dissimular, nem por um instante, as nossas convic- ções socialistas”, pois não é um revolucionário “aquele que, na prática, esquece que o seu dever é ser o primeiro a levantar, ressaltar e resolver todas as questões democráticas gerais” (p. 149). Em pleno século XXI, no contexto brasileiro, observamos o quanto tais questões são atuais e urgentes, especialmente quando ainda se vê “a exceção” como um importante mecanismo de dominação que
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“procura eliminar do direito sua pequena, porém valiosa, utilidade na
resistência contra a violência de classes”. Isto tendo em vista que “o direito ainda é um limite à atuação dos poderes e às arbitrariedades cometidas, mesmo que nem sempre seja observado”. (OLIVEIRA; CHACON, 2013, s/p).
Nessa perspectiva, a luta pela ampliação da democracia em prol
de reformas e direitos, historicamente negados às classes trabalhadoras no país, adquire um peso substancial que nos faz refletir sobre a invia- bilidade de um processo de democratização mais profundo, especial- mente nos marcos do capitalismo dependente; por outro, sobre o potencial que essa mesma luta passa a ter na atualidade, podendo ser um poderoso instrumento no próprio seio da normatização jurídico -burguesa. Isto, pensando na associação com as lutas e experiências organizativas da classe trabalhadora que visam a superação desta ordem. Afinal, “as estruturas econômicas capitalistas só são compatí- veis com ordenamentos políticos democráticos no limite restrito, e manter esta restritividade é, para elas, questão vital”. (NETTO, 1990, p. 76-77).
Considerações finais
Considerando que as ideias são fruto do seu tempo histórico,
que põe continuamente desafios àqueles que buscam não apenas entendê-lo como também transformá-lo, compreendemos que a ques- tão dos direitos adquire diferentes significados em cada época do desenvolvimento capitalista, considerando o papel do Estado e o processo das lutas de classes.
Contraditoriamente, é preciso lembrar que os fundamentos dos
direitos e da “questão democrática” possuem raízes na base concreta de estruturação da sociedade burguesa, desvelada pela lei do valor. Nesta ótica, a “forma direito” diz respeito à “forma mercadoria”; a “defesa dos fundamentos abstratos da ordem jurídica” à defesa dos interesses da classe burguesa; o “princípio da igualdade” formal, intermediado pelo contrato, à necessária “troca de equivalentes”; não sendo o ordena- mento jurídico um simples reflexo da ideologia burguesa. (PACHU- KANIS, 1989).
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As circunstâncias históricas analisadas por Marx e Engels no
século XIX, dentre outros momentos ímpares na trajetória do capita- lismo durante o século XX, até hoje, demonstram que a sociedade é uma “totalidade em processo” (NETTO, 1990), promovendo uma necessária conexão e sincronia entre estrutura econômica e ordena- mento político, o que não significa uma mera causalidade entre estas esferas, ou seja, “o nível de maturidade econômica de uma formação social não corresponde, obrigatoriamente, ao nível de maturidade polí- tica da revolução”. (FARIAS, 2013, p. 22). Assim, “com a ordem capitalista se dão as premissas para que se estruturem ordenamentos políticos democráticos”, por isso, o padrão econômico próprio da modernidade põe à democracia um “limite absoluto”: “ela só se generaliza e universaliza enquanto não desborda para um ordenamento político que requeira uma organização societá- ria fundada na igualdade social real, ou seja, na igualdade em face dos meios de produção”. (NETTO, 1990, p. 76). Daí a afirmação de Marx ([1852] 2008), ratificando tal contradi- ção: “qualquer reivindicação da mais simples reforma financeira burguesa, do liberalismo mais vulgar, do republicanismo mais formal, da democracia mais trivial, é ao mesmo tempo castigada como ‘aten- tado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’” (p. 219). Eis o limite central do “sistema democrático burguês”: “precisamente o fato de ele ser insuficientemente democrático” (NETTO, 1990, p. 85). Esse processo se intensifica em formações sociais que assumem um caráter particular de dependência, a exemplo da realidade brasileira. Por fim, sinalizamos que, frente aos condicionantes históricos e estruturais “irremediáveis” da sociedade capitalista, o campo da contradição, da processualidade e da conflitualidade das lutas sociais deve estar presente na análise sobre os significados dos direitos e da “questão democrática” na atualidade. Este caminho pode nos fazer entender o “valor instrumental estratégico” da democracia e da luta por direitos no Brasil contemporâneo. Submetido em 1º de dezembro de 2015 e aceito para publicação em 13 de julho de 2016.
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