O Segredo Das Trancas
O Segredo Das Trancas
O Segredo Das Trancas
DAS TRANÇAS
E OUTRAS
HISTÓRIAS
AFRICANAS
Recontadas por Rogério Andrade Barbosa
Ilustradas por Thaís Linhares
Os contos reunidos
neste livro vêm de cinco
países que estão situados
em distantes pontos da
África: Angola, Cabo
Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e São
Tomé e Príncipe.
Ainda que estejam todos
no mesmo continente
e tenham muitos
pontos em comum, são
países diferentes, com
paisagens, histórias
e populações diversas.
Há um fato que os
aproxima e que os torna
também mais próximos de
nós: todos eles foram, até
os anos de 1970, colônias
de Portugal e, por isso,
têm o português como
uma de suas línguas.
Cada uma dessas
histórias traz verdades
sobre a vida que o autor
do livro aprendeu com
esses povos e quer dividir
com cada um de nós. Se
aceitarmos o convite,
conheceremos mais
desses povos, dessas
terras, e voltaremos mais
ricos dessa viagem que
a leitura torna possível.
Rita Chaves
O SEGREDO
DAS TRANÇAS
E OUTRAS
HISTÓRIAS
AFRICANAS
Recontadas por Rogério Andrade Barbosa
Ilustradas por Thaís Linhares
1a edição, 2022
O segredo das tran•as e outras hist—rias africanas
© Rogério Andrade Barbosa, 2007
ISBN 978-65-89609-16-2
CDD 028.5
22-3748
Código da obra CL: 720900 (AL) / 720901 (AL digital) / 720901 (PR digital)
CAE: 802305 (AL) / 802312 (AL digital) / 802313 (PR digital)
2022
1a edição
1a impressão
Impressão e acabamento:
Envidamos nossos melhores esforços para localizar e indicar adequadamente os créditos dos textos e imagens
presentes nesta obra. Colocamo-nos à disposição para avaliação de eventuais irregularidades ou omissões
de créditos e consequente correção nas próximas edições. As imagens e os textos constantes nesta obra que,
eventualmente, reproduzam algum tipo de material de publicidade ou propaganda, ou a ele façam alusão, são
aplicados para fins didáticos e não representam recomendação ou incentivo ao consumo.
2
Sumário
Apresentação 5
3
Apresentação
Cinco histórias, cinco países, muitas verdades
5
distâncias são grandes, procuramos ou tras formas de via-
gem. Essas histórias vindas de Angola, Cabo Verde, Guiné-
-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe nos ensinam
que a leitura pode ser uma delas.
Ainda que estejam todos no mesmo continente e tenham
muitos pontos em comum, são países diferentes, com paisagens,
histórias e populações diversas. Há um fato que os aproxima e
que os torna também mais próximos de nós: todos eles foram,
até os anos de 1970, colônias de Portugal e, por isso, têm o por-
tuguês como uma de suas línguas. É assim mesmo: uma de suas
línguas, porque em todos esses países há outras.
Em Moçambique temos a língua ronga, a língua macua, a
língua sena, a língua nyanja e a língua maconde, entre as
mais de vinte línguas que são faladas num país de aproxima-
damente 20 milhões de habitantes. Em Angola, existem a lín-
gua quimbundo, a língua umbundo, a língua cuanhama etc.
No primeiro conto, você pode ver a palavra maka, que é
muito frequente na fala angolana. Essa palavra, da língua
quimbundo, significa confusão, discussão, problema, ou seja,
uma situação que possa gerar alguma discordância ou barulho.
Como os angolanos são muito expressivos, essa palavra é muito
usada em seu cotidiano e em sua literatura.
6
Em Cabo Verde, além do português, há uma língua
chamada crioulo caboverdiano, que é resultado da mistura
de várias línguas. Nas situações mais informais, em família
e entre os amigos, é em crioulo que os caboverdianos con-
versam. Na página 24, você encontrará uma espécie de
ditado expresso nesse idioma: “Fogom pagóde e p´ lom
calóde é sinal de carestia de tchuba” (Fogão apagado e
pilão calado são sinais da falta de chuvas). Em Cabo Verde,
esses ditos populares são, naturalmente, expressos na lín-
gua mais usada pelo povo. Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe também têm suas formas de crioulo.
A diversidade linguística é um dos sinais da variedade de
culturas que caracteriza cada um desses países, habitados por
povos que guardam muitas tradições. Mas guardam também a
experiência de terem sido explorados e discriminados durante
séculos. Essa vivência fez que tivessem em comum a necessi-
dade de resistirem às muitas formas de violência. Todos esses
aspectos se misturam a uma sabedoria que foi transmitida
pela tradição oral, vencendo o tempo e aproximando gera-
ções. Por isso, nessas terras valorizava-se tanto o momento em
que os mais velhos contavam histórias. Tradicionalmente, isso
acontecia à volta de uma fogueira, e podia ser acompanhado
7
com canções e danças. Era o momento de lazer, mas era tam-
bém a hora de aprender.
Um pouco dessa sabedoria que permanece na memória
das pessoas está nessas cinco estórias. As cinco narrativas
são introduzidas por provérbios, frases curtas que nos
falam de uma verda de que não tem dono, ou melhor, que
pertence a uma comunidade. Eles nos fazem pensar que
cada uma dessas histórias traz verdades sobre a vida que o
autor do livro aprendeu com esses povos e quer dividir com
cada um de nós. Se aceitarmos o convite, conheceremos
mais desses povos, dessas terras e, mesmo sem o calor e a
magia da fogueira, voltaremos mais ricos dessa viagem que
a leitura torna possível.
Rita Chaves
Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
da Universidade de São Paulo.
Autora das obras A formação do romance angolano e
Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários.
8
9
O SEGREDO
10
Kunana cikuma. Kwasa um cimbuji.
“Apontar demoradamente significa perder o alvo.”
Provérbio angolano do povo Luvale
DAS TRANÇAS
11
NauŽ, jovem m‹e que ficara viœva muito
cedo, dirigiu-se à casa de Katchiungo com o bebê amarra-
do às costas. O homem, que já possuía três mulheres, vi-
nha insistindo com ela para que casassem. Naué, então,
deu-lhe um ultimato:
– As suas esposas são invejosas e não gostam de mim.
Sou mais nova e, de acordo com os costumes, terei de fazer
tudo o que elas mandarem. Se você não quiser me seguir, vou
embora hoje mesmo com Mutenga, meu filho – ameaçou,
cansada de viver no mesmo Kimbo, a aldeia onde nascera.
Katchiungo, ultimamente, andava chateado com o mau
humor e com as constantes makas (discussões) entre suas
mulheres. Por isso, seduzido pela beleza de Naué, resolveu
aventurar-se com ela para um lugar bem distante.
Partiram de madrugada, encobertos pelas sombras da
noite, desafiando o perigo que se escondia no muxito (flo-
resta cerrada). A selva, segundo os mais velhos, além de
animais carnívoros, abrigava um monstro aterrador de
duas cabeças: o Di-Kishi. E os rios eram a moradia de um
o segredo das tranças Angola
12
– Para lá – disse o primeiro, apontando para frente.
– É preferível ir por ali – discordou o outro, virando
a cabeça para trás.
O casal optou pelo conselho de “Para Onde Vou”, pois
se obedecessem a orientação de “De Onde Venho”, regres-
sariam ao ponto de partida.
Depois de percorrerem vários lugares, os andarilhos
escolheram uma clareira isolada para morar. A golpes de
catana, facão afiado, Katchiungo cortou os arbustos e ga-
lhos necessários para construir a nova cabana.
Enquanto ele, pacientemente, revestia de barro as pa-
redes da cabana que erguera, a mulher preparava o terreno
para as lavras de milho.
Naué, mesmo trabalhando, jamais desgrudava do pe-
queno Mutenga, que mantinha preso a seu corpo por uma
manta descolorada.
Apesar de ser um homem bem mais velho do que a es-
posa, Katchiungo era forte, ágil e, acima de tudo, cheio de
mistérios. Usava quatro tranças. Cada uma tinha um nome
diferente, que ele mantinha no mais rigoroso sigilo.
o segredo das tranças Angola
13
Certa noite, Katchiungo chamou Naué e disse:
– O seu menino, que eu ajudei a cuidar com todo cari-
nho, já é quase um homem, e está na época de ele passar
pelas provas da Mukanga (período de iniciação), de acor-
do com as tradições de nosso povo. Precisamos voltar –
disse, arrumando a trouxa.
A esposa, que com o passar do tempo tornara-se menos
rebelde e mais compreensiva, concordou. Ela também sentia
falta das conversas das mulheres de sua aldeia natal.
E foi assim que regressaram. Foram andando devagar,
porque as pernas do velho de tranças não tinham mais o
vigor de outrora. Katchiungo, para se proteger do frio das
madrugadas, pegou o casaco de Mutenga emprestado, ape-
sar das reclamações do jovem.
No meio do caminho pararam para fazer uma fogueira.
Quando estavam comendo um prato de mukunza (canjica de
milho cozida), foram surpreendidos pelos guerreiros de um
importante soba, um chefe que dominava todas as terras da-
quela região.
– Quem deu licença para vocês acamparem aqui? –
o segredo das tranças Angola
14
Assim que entraram na Mbanza (tribunal do soba),
Mutenga foi logo se defendendo:
– Desculpe – disse o rapazinho. – A culpa é desse ve-
lho teimoso – falou, apontando para o pai de criação. – Se
tem alguém que merece ser castigado, é ele. Mas, antes,
gostaria de ter meu casaco de volta.
– Se é seu, pode pegar – respondeu o soba, que, então,
virou-se para Naué e perguntou:
– E você, tem alguma reclamação?
– Sim. Se meu marido fosse mais jovem, não precisa-
ríamos ter parado para descansar em seu reino. Mas, se
pretende matá-lo, cuidado – avisou. – As quatro tranças
que ele usa têm nomes e segredos que ele não conta para
ninguém.
O soba, surpreendido com o que acabara de escutar, in-
terrogou Katchiungo:
– É verdade o que a sua mulher está dizendo?
– Sim – respondeu o ancião, sem perder a altivez.
– Se você me revelar o enigma das tranças, eu posso
o segredo das tranças Angola
15
Sem entender, o inquisidor interrompeu Katchiungo e
pediu-lhe que explicasse o segredo das tranças de um jeito
que ele pudesse compreender o que significava cada um
dos nomes.
O velho, então, recomeçou:
– “Não digas tudo aos conhecidos”, porque se você
conta seus segredos, como contei para minha mulher, as
pessoas acabam contando para os outros.
– É verdade – concordou o soba. – Alguns indivíduos
são como os sapos, que vivem repetindo tudo. E a trança
do lado oposto? – quis saber.
– Este rapaz, que acabou de me desdenhar, não tem co-
ração – reagiu, encarando Mutenga. – Eu o criei com toda
atenção, como se fosse sangue das minhas veias. Viu como
ele me tratou quando precisei de apoio? Daí o nome “O fi-
lho dos outros não é teu filho”.
O soba, cada vez mais admirado com as respostas, solicitou:
– E qual é a interpretação da trança “O mais velho é
igual ao seu mais velho”?
o segredo das tranças Angola
16
– Se seus homens, antes de me arrastarem, tivessem
olhado com mais atenção, perceberiam que eu tenho idade
para ser pai deles. Portanto, deveriam ter mais considera-
ção e respeito por um idoso. Eles lhe poupariam aborreci-
mentos, e você não estaria perdendo seu tempo comigo.
O chefe ficou tão desconcertado que desistiu de pros-
seguir com o interrogatório, mas Katchiungo fez questão
de continuar:
– O nome da última trança é “O soba não usa de justi-
ça”, porque qualquer chefe, por mais poderoso que seja, te-
ria de me ouvir antes de fazer alguma acusação.
E, perante um silêncio total, concluiu:
– Nada mais tenho a dizer. Agora você descobriu o se-
gredo das tranças – encerrou Katchiungo, abrindo cami-
nho por entre a perplexa audiência.
De cabeça erguida, retornou sozinho para sua caba-
na, de onde nunca deveria ter saído. Ele sabia que era sua
derradeira jornada, pois a morte, dizem, é o amanhã dos
mais velhos.
o segredo das tranças Angola
17