KOSELLECK, Reinhart Et Al. O Conceito Moderno de História

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 66

Y Coleção

HISTORIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenação
Eliana de Freitas Dutra

Reinhart Koselleck
Christian Meier
Horst Gunther
Odilo Engels

O conceito de História

Tradução
René E. Gertz

Revisão técnica
Sérgio da Mata

autêntica
V

A configuração do moderno
conceito de História
Reinhart Koselleck

1. O percurso histórico do termo


Quando hoje se fala de “História”, estamos diante de uma ex-
pressão cujo significado e cujo conteúdo só se consolidou no último
terço do século XVIII. “A História” é um conceito moderno que
— apesar de resultar da evolução continuada de antigos significados
da palavra —, na prática, corresponde a uma configuração nova.
Naquilo que tange à História do termo, o conceito se cristaliza a
partir de dois processos de longa duração, que no final vão confluir
e, assim, desbravar um campo de experiência que antes não podia
ser formulado. Por um lado, trata-se da criação do coletivo sin-
gular, que reúne a soma das histórias individuais em um conceito
comum. Por outro lado, trata-se da fusio de “História” (cona
conjunto de acontecimentos) e “Historie” (como conhecimem’
narrativa e ciéncia histéricos).
a) O surgimento do singular coletivo. A configuragio fe
minina no alemao antigo “gisciht” e no alemão medieval “geschiht”
(a0 lado de “sciht” ou “schiht”) deriva do alemdo arcaico “scehan”,
verbo que deu origem a “geschehen” [acontecer] e significa “acon-
tecimento, acaso, processo”; e no alemdo medieval, significa ainda:
“aquilo que faz parte de uma coisa, caracteristica, modo” [Weise],
e, de forma mais geral: “esséncia [Wesen], coisa”; e ainda, sobretu-
do no alemio do inicio da Era Moderna: “acontecimento, coisa”
[Sache], mas também “aquilo que acontece a partir de alguém,
ato, obra”, além disso: “uma sequéncia de acontecimentos, acaso,

119
O concCEO DE HisTÓRIA

como uma realidade genuína. Com isso, se explorava uma nova


experiência de mundo — exatamente a da História. Um indício
seguro para isso são as várias formas de qualificação: “História em
si e para si” [Geschichte an und fiir sich), “História em si” [Geschichte
an sich], [a] “própria História” [Geschichte selbst], ou “História como
tal” [Geschichte iiberhaupt]. Até então, fora impossivel imaginar o
termo sem um sujeito — “historia” se referia a Carlos Magno, a
Franga, etc. Nas palavras de Chaldenius: “Os acontecimentos, e,
portanto, também a História, sio mudangas. Eles, porém, pressu-
põem um sujeito, uma esséncia duradoura ou uma substância”. 277
Ou entdo, uma história — como narrativa — visava a um objeto
que fazia parte dela. Isso mudou tio logo os historiadores ilumi-
nistas comegaram a tentar apreender a “Historia em si”. A “his-
toria em si e para si” podia ser pensada sem um sujeito que lhe
fosse atribuido. Comparada com a facticidade das pessoas e dos
acontecimentos, a “Historia em si” constituia um metaconceito.
E evidente que, no inicio, essa guinada se referia apenas ao
mbito dos acontecimentos, como Gundling o formulou, em 1734:
‘A Historie em si mesma, quatenus res gestas complectitur, nio agu-
diza o juizo” — o que incluiria a légica histérica.”® Ou, como o
expressou Haussen, com a palavra alemã: “A Historia em e diante
de si é uma série de acontecimentos, ela nio p 11 principios ge-
rais, e, por isso, não pode ser encarada como ciência”.?”? Mas nio
se ficou imobilizado nessa contraposigio racional de um âmbito
de acontecimentos, e o trabalho cientifico com eles. A genuina
reivindicagio de uma realidade por parte da Historia cresceu tio
logo ela passou a abranger mais que a soma de todos os fatos — uma
acusação reiterada dos iluministas contra seus antecessores fora a de
que estes se haviam restringido a enumeragio dos fatos.

?” CHLADENIUS, Johann Martin. Allgemeine Geschichiswissenschaft, worinnen der Grund zu ciner


neuen Einsicht in allen Arten der Gelahrtheit geleget wird, Leipzig, 1752, p. 11.
% GUNDLING, Nicolaus Hieronymus. Akademischer Discours itber des Freyherrn Samuel von
Pufendorffs Einleitung zu der Historie der vornelunsten Reiche und Staaten. Frankfurt, 1737, p. 2-
% HAUSEN, Carl Renatus. Rede von der Theorie der Geschichte, In: Vermischte Schriften. Halle,
1766, p. 131.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

“Uma série de acontecimentos é chamada uma História”,


define Chaldenius, em 1752.2%° Mas “a palavra “série' aqui não sig-
nifica ... apenas uma multiplicidade ou grande número; mas mostra
também as relações entre eles, e mostra que eles formam um con-
Junto”. Essa visão de conjunto — que, em geral, era pragmaticamente
interpretado como um emaranhado de causas e efeitos — colocou-se
num nível mais elevado que os simples acontecimentos e episódios.
“É a grande História” — como disse Planck, em 1781 — que, “como
uma planta trepadeira, perpassa muitas histórias pequenas”.!
Para a História do conceito, foi decisivo que a questão dos
efeitos não foi interpretada apenas como uma construção racional
— é sobre isso que trata a próxima seção —, mas que ele tenha sido
reconhecido como um campo autônomo, que, na sua complexidade,
orienta toda a experiência humana. A História sofreu uma alteração
linguística, que a transformou no seu próprio objeto.
Em 1767, Iselin perguntou se não teria sido melhor chamar
sua Geschichte der Menschheit [História da humanidade] de Von
dem Geiste der Geschichte [Sobre o espírito da Historia]. Segundo
ele, esse título “não ficaria mal para expressar mais claramen-
te a intenção e o conteúdo da obra”.º*? Assim, Thomas Abbt
fala metaforicamente da “majestade da História”, contra a qual
não se deveria pecar, aplicando-lhe uma interpretação. Ou en-
tão ele pensa que “a História se desenrola continuamente, sem
cessar, a partir do ponto de que partiu”, e que ela, como um
corpo da natureza, possui causas e consequências ordenadas,
possuindo, por isso, sua própria “velocidade”.*® Em analogia
com o “teatro do mundo”, Hausen podia falar agora também
do “teatro da História”, que teria influência sobre os corações
humanos.*** E, quatro anos depois, em 1774, Herder, “em meio

0 CHLADENIUS, Allgemeine Geschichtswissenschaft..., p. 7.


*” [PLANCK, Gottlieb Jakob]. Geschichte der Entstehung, der Verânderungen und der Bildung unseres
protestantischen Lehrbegriffs (vol. 1). Leipzig, 1781, p. IV.
2 [SELIN, Isaak. Tagebuch [Diário], em 1º de março de 1767, citado por HOF, Ulrich Im. Isaak
Iselin und die Deutsche Spataufklirang. Bern/Munique, 1967, p. 90.
"homas. Brief, die neueste Litteratur beteffend, 12. 1762, p. 259, 196 (carta); ABBT, Thomas.
Vom Vortrag der Geschichte. In: Vermischte Werke (vol. 6). Frankfurt/Leipzig, 1783, p. 124 e seg.
?% HAUSEN, C. R. Von dem Einfluss der Geschichte auf das menschliche Herz. Halle, 1770, p. 8.

123
O concamo DE HisTÓRIA

a uma crise estranha do espírito humano” — na qual se estaria —,


propôs “procurar o sumo e o cerne de toda História”.?*
Uma vez descoberta a História como autônoma e autoativa,
ela passa a classificar sua própria representação: “A classificação é a
própria História que nos fornece”.º* Mais, ela habilita o historiador
a esfriar “a ânsia por heroísmo”, própria dos príncipes, “em especial
quando a própria História transforma os historiadores em filósofos”.º*7
Passo a passo, essa História também vai aumentando sua pretensão
à verdade, a partir de seu genuíno e complexo conteúdo realista. “A
própria História, quando vista em geral, nos dá a melhor indicação
das condições de todos os seres sensatos, morais e sociais”, escreve
Wegelin, em 1783. O Direito Natural e o Direito Internacional
Público se baseiam nela, liberdade e moralidade não são viáveis sem
ela. “É daí que surge o conceito do mundo moral, ou da relação
entre todos os seres pensantes e ativos. Esse conceito geral não é outra
coisa que a expressão da História como tal”.º*º A fundamentação do
Iluminismo histórico em uma História não mais derivada, mas na
“História como tal”, tinha se definido como conceito
A História se eleva a algo como uma última instância. Ela se
iransforma em agente do destino humano ou do progresso social.
Nesse sentido, Adam Weishaupt — abstraindo conscientemente
de acontecimentos individuais — escrevera sua Geschichte der Ver-
vollkommnung des menschlichen Geschlechts [História do aperfeiçoa-
mento do gênero humano]. “Esta foi uma História sem ano nem
nome”, registrou, com orgulho; “a História do surgimento e do
desenvolvimento de nossas paixões e de nossos instintos”, que, de
agora em diante, devem ser racionalmente controlados: “Que agora
se apresentem os atores e representem eles mesmos”. Mas a “ própria
História” [Geschichte selbst] continuará a cuidar para que tudo

?% HERDER. Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit (1774). In:
Sâmtliche Werke (vol. 5). 1891, p. 589.
?% MOSHEIM, Johann Lorenz v. Geschichte der Kirchenverbesserung im sech ehnten Jahrhundert.
Leipzig, 1773, p. 4 [editado por Johann August Christoph von Einem].
1 [VOGT, Nikolaus). Anzeige, wie wir die Geschichte behandeln, benutzen und darstellen werden.
Mainz, 1783, p. 19.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

desemboque na perfeição, sem qualquer erro, pois “a História em


todos os tempos conseguiu vencer os mais obstinados equívocos”.?*?
Há motivos para enxergar nessa nova conceitualização — que
remete a História, como agens, a si mesma — a velada ou modificada
providência divina, o que — naquilo que tange aos efeitos históri-
cos — está correto. No sentido de uma História revelada por Deus,
Agostinho, por exemplo, havia constatado que as representações
históricas tratam de instituições humanas, mas que a própria His-
tória (“ipsa historia”) não é uma instituição humana. Pois aquilo
que aconteceu e não pode ser revertido, isso faz parte da sequência
dos tempos (“in ordine temporum habenda sunt”), cujo fundador e
administrador seria Deus.?*
Não há dúvida de que a historicidade de Jesus como fonte
empirica da revelação contribuiu em muito para dar ao conceito de
Historia uma pretensio enfatica a verdade. “Pois o sacramento ou
a Historia, e as palavras, / quando se fala do sacramento, / são duas
coisas diferentes” (Lutero).?”’ Hamannjá utiliza o singular coletivo,
quando definiu “a História, a natureza e a revelagio” como as trés
fontes de conhecimento sensato, ou ainda mais, quando confronta a
Histéria com o acontecido: “Sem autoridade, a verdade da Historia
(desaparece) junto com o préprio acontecido”.?? Foi, sobretudo,
com Herder, ¢, no campo suibio, com os pietistas teológico-
-federais [ foderaltheologische Pietisten]” que a moderna utilização

?” WEISHAUPT, Adam. Geschichte der Vervollkommnung des menschlichen Geschlechts (vol. 1).
Frankfurt/Leipzig, 1788, p. 228.
AUGUSTIN, De doctrina christiana, 2, 28 (44), In: Corpus dhristianorum (vol. 32), p. 63 (cf: nota 22).
LUTHER, Vom Abendmahl Christi, Bekenntnis (1528). In: Weimarer Ausgabe (vol. 26), 1909,
p. 410. “Denn das sacrament odder geschicht und die wort / so man vom sacrament redet / sind zweyerley"",
* HAMANN, Johann Georg. Briefe eines Vaters | (em tornode 1755). In: NADLER, Josef (Ed.).
Simtliche Werke (vol. 4). Viena, 1952, p. 217; Golgatha und Scheblemini (1784). Sâmtliche
Werke (vol. 3), 1951, p. 304; cf. Sâmiliche Werke (vol. 1), 1949, p. 9, 53, 303; Sâmtliche Werke
(vol. 2), 1950, p. 64. 176, 386 (“Polemik gegen den scharfsinnigen Chladenius“— polémica contra
o sagaz Chladenius); Samliche Werke (vol. 3), p. 311, 382.
O Pietismo foi um movimento religioso iniciado no século XVII, que pretendia fazer uma
“Reforma da Reforma”, ao contrapor-se i ortodoxia reformista e aos seus excessos institucionais,
recuperando a importincia da subjetividade e da vivéncia pessoal da religiosidade. A “Teologia
federal” entendia a “História como a concretizagio da graga” divina, Histéria que transcorreria em
cinco fases, a comegar na criagio narrada no Velho Testamento, de forma que a "História divinase
transformaria em um drama com sentido unitirio”. JACOB, P. Foderaltheologie. In: Die Religion in
Geschichte und Gegenwart [RGG]. Tiibingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1957, col. 1520 [N. TJ

125
O concermo be HisTóRIA

da palavra foi levada avante. A efetividade da Historia recebe con-


sagração propria através da encarnagio de Cristo.*” Wizenmann
escreve: “Finalmente, chegou a hora em que se comega a tratar
a Histéria de Jesus ndo só como um livro com sentengas para a
dogmitica, mas como alta Histéria da humanidade. [...]. Gostaria
de confirmar muito mais a Filosofia a partir da Histéria do que
a História a partir da Filosofia”. Um único fato novo conseguiria
derrubar sistemas inteiros. “História é a fonte da qual deve ema-
nar tudo”.?
O que caracterizou o novo conceito de uma “Historia como
tal” [Geschichte iiberhaupt] foi sua capacidade de abrir mio do re-
curso a Deus. Paralelamente, ocorreu a revelagio de um tempo
que é peculiar a Historia. Ele abarca — como destaca Chladenius,
em oposição ao linguajar usual — todas as trés dimensoes tempo-
: rais: “Coisas futuras fazem parte do historiar. [...]. Pois, mesmo
que o conhecimento do futuro, em oposição ao conhecimento do
passado, seja muito limitado e breve, mesmo assim temos várias
perspectivas de perscrutar o futuro, não só através da revelação,
\ mas também da astronomia e dos assuntos civis”, bem como da
| “arte médica”. “E por isso, na doutrina racional da Historia,
esse conceito deve ser tomado de forma tio ampla que inclua o
futuro”.?”* E, em contraposigio à expectativa cristd, essa Historia
adquire, em Chladenius, um horizonte fundamentalmente ili-
mitado, “pois a Histéria em si e diante de si [Geschichte an und vor
sich] não tem fim”.?%
Kant, mais tarde, polemiza de forma aberta contra a “fé mes-
sidnica na Historia”, a qual pretenderia interpretar e delimitar o
transcurso dos acontecimentos segundo uma ordo temporum, como
o teria feito Bengel, na sua interpretacio do apocalipse de João:

respeito do entdo novo conceito de Tatsache ou fato, cf. STAATS, Reinhart. Der
helic Hintergrund
des Begriffs “Tatsache"". Zeitschrift fiir Theologie
und Kirche,
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

“como se nio fosse a cronologia que deve guiar-se pela Histéria,


mas, inversamente, a Historia pela cronologia”.?’
Com isso, Kant definira que a Histéria é mais que a soma
temporal de dados individuais, que, em última instincia, se ali-
nham num tempo natural. A revelagio de um tempo genuinamente
historico no conceito de Histéria coincidiu com a experiéncia da
“Era Moderna”. Desde entio, os historiadores estão obrigados a
verificar relações que não se orientam mais pela sucessio natural
de gerações de soberanos, pelas órbitas das estrelas ou pela mistica
figural do simbolismo numérico dos cristios. A Histéria funda sua
propria cronologia.
Já em 1767, Gatterer falava de “sistemas de acontecimentos”,
pretendendo, com isso, descrever o resultado para o qual o novo
conceito de História ainda nio se havia institucionalizado: “E ver-
dade que sistemas de acontecimentos possuem seu proprio percurso
temporal, mas ele não se orienta pela divisio civil do tempo”.”*
Através de reflexdes como aquela a respeito do tempo histérico,
o conceito de Histéria incorporou o conteúdo complexo de reali-
dade que acabou garantindo a “prépria História” [Geschichte selbst]
uma pretensio de verdade especial. A desclassificagdo aristotélica da
Historie, que lhe atribuira uma simples adição de fatos cronolégicos,
foi, assim, abandonada.?”” Com isso, através da constitui¢do de um
conceito, se abrira um novo espago de experiéncia, que marcaria o
periodo seguinte. Para resumir, vamos citar trés critérios.
A Histéria no coletivo singular definiu as condições para as
possiveis Historias individuais. Todas as Historias individuais passa-
ram, desde entio, a se localizar numa relagio complexa, cujo efeito
é peculiar e autônomo. “Acima das Histórias estd a História” — assim
Droysen resumiu, em 1858, o novo mundo vivido da História.º
Esse mundo da experiência tinha sua pretensão imanente de
verdade. Aquilo que interessava não era mais o antigo fopos que |
j*
*” KANT. Der Streit der Fakultáten (1798). In: Akademie-Ausgabe (vol. 7), 1907, p. 62; KANT, Ê
Anthropologie (1798). In: ibid., p. 195
** Gatterer, Vom historischen Plan... (cf. nota 223), p. 81.
*” ARISTOTELES, Poetik, 1451 b.
* DROYSEN, Historik (cf. nota 236), p. 354.

127
O concerto ot Historia

costumava ser passado adiante, no sentido de que Historia só poderia


escrever aqucle que a tivesse visto. História,
ou participado de
pelo contrario, se transformou, agora, no espaço de vivéncia pro-
priamente dito, e ele, por sua vez, permite fazer juizos historicos.
“A respeito de Historia ninguém pode julgar a nio ser aquele que
vivenciou História em si mesmo”, constatou Goethe."
Finalmente, para caracterizar a autorreferenciacio da His-
tória a si mesma, como Gltima instincia, se recorrera a expressão
“Histéria como tal” [Geschichte iiberhaupt], e a algumas formulas
correspondentes. Mas, dentro de pouco tempo, o sentido pretendido
se incorporou na simples palavra “Historia”. Essa Historia como
sujeito de si mesma se transformou num agens autoativo, de forma
que Hegel, mais tarde, pode falar do “trabalho da Historia”.*"”
Nas décadas das simplificagdes e das singularizacoes, quando,
a partir das liberdades, surgiu “a liberdade™, e das revoluções surgiu
“a revolugdo”, a Histéria subordinou a si as historias individuais.
Esse é o conceito que na economia linguistica historico-politica
dos alemies parece ocupar aquele lugar que “revolução” ocupa no
francés. A “História”já aparece como conceito antes da Revolugio
Francesa, os contextos revolucionérios transformario aquilo que era
surpreendentemente único nessa nova Histéria numa proposigio
axiomitica de vida.
b) A fusio de “Historie” e “Geschichte [História]”. A Historia,
cuja ampliação de sentido foi explicitada até aqui, não foi apenas
um novo conceito de realidade, mas também um novo conceito de
reflexdo. Depois de 1780, Herder pode empregar o coletivo singular
para os dois niveis, numa mesma frase: “O fato é o fundamento de
tudo aquilo que ¢ divino na religido, e esta só pode ser apresentada na
Histéria, a religido mesma precisa se tornar constantemente Historia
viva. A Histéria constitui, portanto, o fundamento da Bíblia”.** Ago-
ra se pretende comprovar aquilo que as citagdes até entio apresentadas

* GOETHE. Maximen und Reflexionen, n. 217. In: Hamburger Ausgabe (vol. 12), 1953, p. 395
¥ HEGEL, Die Vernunft... (cf. nota 236), p. 182.
* HERDER, Briefe das Studium der Theologic betreffend (1780-85). In: Samliche Werke (vol.
10), 1879, p. 257 ¢ seg. A respeito, cf. STAATS, Der theologicgeschichtliche Hintergrund
des Begriffs “Tatsachen”, p. 327.

128
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

apenas deixavam transparecer: que o novo espaço de vivência da


História só foi explorado porque a reflexão sobre ela correu paralela
ao conceito. Na história do termo, isso se evidencia no fato de que
no último terço do século XVIII o conteúdo do significado de “His-
forie” — mediante gradativa exclusão dessa palavra — acabou sendo
totalmente absorvido por “Geschichte” [História].
Desde a germanização da palavra latina “historia”, no século
XL “Geschicht(e)” e “Historie” tinham mantido significados
claramente distintos, como Ja acontece em Conrado de Megen-
berg: aquilo que as Historien dizem, isso são os escritos das
geschichten nos paises e nos tempos”.** Em 1542 Burkart faz uma
rima: “quando tais Geschichten tiveram lugar, / como em Historien
se pode observar”. " O campo “objetivo” dos acontecimentos e da
ação bem como o conhecimento “‘subjetivo”, a narrativa, ou — mais
tarde — a ciéncia a respeito, puderam, até o século XVIII, ser de-
signados com terminologia separada. Assim, lê-se no prefácio a um
dicionário geográ fico de 1705: “Historie ou ciência da História”.º É
evidente que essa contraposição raramente foi observada com tanto
rigor quanto em definições. O significado de uma influenciava o
da outra, ainda que com intensidade variável.
A sobreposição dos dois campos semânticos pode ser constata-
da nos vocabulários do século XV: “historia” é traduzida por “um
acontecimento, uma coisa que aconteceu, geschicht, um discurso
escrito que conta como aconteceu” e “historie (Iu's!(rry)".mâ Tanto
“coisa acontecida” quanto “historie” constam como “historia”, que
é definida como “res facta” e como “relato de uma história sobre

* RUPP, Heinz; KÓOHLER, Oskar, Histori a Saeculum, n. 2, 1951, p. 632.


- Geschichte.
** MEGENBERG, Konrad von. Buch der Natur (cerca de 1350) (editado pm‘anz Pleiffer, em
Stuttgart, 1861; reimpresso em Hildesheim, 1971), p. 358. “sam die historien sagent, daz sind
die geschrift von den geschichten in den landen und in den zeiten™
Y WALDIS, Burkart. Streitgedicht (1542) (cditado por Friedrich Koldewey em Halle, 1883, p.
33). “Wan solch geschichte sein geschehen, / Wie in historien ist zuschen’
* Citado por GEIGER, Das Wort “Geschichte p. 15 com plural tipico, ainda que também
com a nova forma plural “Geschichten”.
*” DIEFENBACH, Lorenz. Glossarium Latino-Germanicum mediae et infimac actatis. Frankfurt,
1857, p. 279, * ,,gl.“hd““ eyn ding dz geschen ist, geschicht, ein gescribenred der getad
as es gescach" ¢ “historie (history)".

129
2
O concerTo DE HisTÓRIA

uma coisa acontecida”, tudo ao mesmo tempo.*”* Essa expansão


da “Historie” para os próprios acontecimentos ou seu transcurso se
mantém ininterrupta, no nivel dos dicionários.?"* Em contraposição,
na bibliografia histórica, começa a se impor, por afinidade com a
língua latina culta, a definição que tem sua origem em Cícero: “A
Historie — diz Hederich, em 1711 — é uma narrativa verdadeira de

% Vocabularium incipiens Teutonicum ante Latinum (Núrnberg, 1482), p. 47 scabularius gemma


gemmarum (Strassburgo, 1508), p. 58 DASYPODIUS, Petrus. Dicti Germanicum
(latim/alemão) (Strassburgo, 1536; reimpresso em Hildesheim, 1974 geschicht-
erzelung einer geschehenen sach”.
o Vocabularius incipiens Teutonicum ante Latinum, p. 47": “Geschehen ding. h de historiographus
cin schreiber der geschicht""; ibid., p. 62 “Historie. historia. vulgare geschehen ocabularinus gemma
gemmanun, p. 58 ‘Historia est res facta: ein geschehen ding oder history. Historiographus est seriptor
historiarum: ein h orien schryber", DASYPODIUS, Dictionarium, p. 93" “Historia, Ein geschicht
erzelung einer geschehenen sach. Historicus, et Historiographus, ein geschichtschreiber", c£. ibid., p. 3
Handlungen/geschichten""; ibid., p. 67": “Factum, Ein geschicht oder that"; ibid., alemão-latim, p. 3
“Geschehen. Fieri. ordentlich Geschicht/da alle umbstend gemeldet werden. Historia Geschichtbuch auffjartiche
leufi/oder rein jarbuch. Annales"; cf. ibid., p. 437": “Thaat/geschicht. Factum"; SCHÓPPER, Jacob.
Synonima. Dortmund, 1550 (reimpressão editadapor Karl Schulte-Kemminghausen, Dortmund,
1927), p. 29: “Das ist / Mancherley gattungen Deutscher worter/so im Grund cinerley bedeutung haben™;
“Facinus: That / geschicht / handel; MAALER, 1561 (cf. nota 314); FRISIUS, Johannes. Dictionarinm
Latinogermanicum (editado em Zurique, 1574), p. 630: “Historia. Ein history / Ein geschicht / Ein
ordenliche erzellung und erklirung waarhaffter / grundilicher unn geschachner dingen®; HENISCH, Georg
Teutsche Sprach und Weissheit. In: Thesaurus linguac et sapientiac Germanicae (vol. 1). Augsburg
1616, p. 1530 e seg, 1534: “Geschehen / sichzu tragen / begeben / begegnen / fieri, cvenire, cadere, incidere,
accidere, contingere, venire, evenire usu, geri, confore. Der (ivativium) Geschicht / es geschicht / evenit, accidit
Geschicht / eventus, acta, actum, gestum, historia. Geschehen ding / gesta, res actac, res gestac. Geschicht /
es geschicht / accidit, contingit. Siehe geschehen. Geschicht / (dic) historia. Geschicht / eines thun und lassen
/ actus hujus actus. Der (jvatium) Geschicht / that / acta, gesta historia ..... Geschichten und Handlungen /
acta"; DHUEZ, Nathanael (Ed)). Dictionaire frangois-allemand-latin. Leyden, 1642, p. 149: “Geschicht
/ That / Acte, Gesta, Facta. Histori / Histoire, Historia, Historic, Ein Geschicht / und Geschichtbuch /
Historia"; Dictionaire Frangois-allemand-latin (1675), p. 617: “histoire, narré, eine Erzehlung / Geschicht
/ Historia, narratio, enarratio. Histoire digerée, par suitte d'années, Ein Geschichtbuch nach Ordmung der
Zeit eingerichtet / Gestarum rerum annales. historier, descrire, Beschreiben / in einer Geschicht verfassen /
Describere"; STIELER (1691), p. 1746: “Geschicht / die / factum, historia, actum, res gestac. Geschicht
erzehlen / historiam narrare, commemorare. Geschichte schreiben / scribere res tas, monumenta factorum
componere"; POMEY, Le Grand Dictionaire Royal (1715) (t. 1), p. 485: * Histoire, hacc historia, hacc
narratio, eine Geschicht / Geschichts-Erzahlung""; ibid. (t. 2), p. 14: “Historia, histoire, rapport des choses
veritables, eine Historie, cine walrhaftige Erzahlung geschehener Dinge"; ibid. (c. 3), p. 129: “Geschicht
/ Tat / adte, histoire, gesta, facta"; STEINBACH, Christoph Ernst. Vollstindiges Deutsches Worter-
Buch (vol. 2). Breslau, 1734; reimpresso em Hildesheim, 1973, p. 395: “Geschichte (dic) factum, res
gesta, historia"; FRISCH, Deutsch-lateinisches Werterbuch (vol. 2), 1741, p. 176: “Schicht, Geschichte,
ist veraltet, und Geschichte von geschehen, geblieben (...) factum, historia, siche Historie; ibid., p. 168:
“Schehen, Geschehen, fieri, evenire, accidere”; ibid. (vol. 1), p. 456: * Historie, vom lateinischen historia,
Geschicht-Beschreibung oder Erzihlung dessen, was bei etwas notig ist ... Eine Historic von etwas schreiben,
historiae aliquid mandare cines Dings Historie schreiben, historiam scribere, res gestas scribere

130
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCENO DE HisTÓRIA

co1sas acontecidas™. "' Uma versio que tivesse em vista a relação


dos objetos em si — como aparece uma vez em Leibniz — foi extre-
m’nmcntc rara: “... que nenhum eleitor e principe faga mais entre o
puablico, e, portanto, participa mais da Historia Universal [Universal
Histori] dessa época que o eleitor de Brandenburgo™*?
Enquanto “Historie” se manteve relativamente imune a uma
contaminagio por parte de “Geschichte”, a transferéncia do signi-
ficado de “Historie” para “Geschichte” se realizou de forma muito
mais ripida ¢ profunda. Lutero já utiliza “Geschicht(e)” em ambos
os sentidos de “acontecimento” e “narrativa”, em certa oportu-
nidade, até numa mesma frase: “Mas a Histéria do rei Davi, as
primeiras e as últimas, veja que estdo escritas entre as Historias
de Samuel™ ? * Josua Maaler registrou, em 1561, para “Geschichte”:
“narrativa ordenada e explicagio de coisas verdadeiras, fundamen-
tais e acontecidas”, e, ao lado: “Histérias e agdes. Acta”*" Nos
titulos dos livros do século XVII, sio utilizadas, com frequéncia,
formas duplas, como: “Historie e/ou Geschichte de ...”*5, com que
Se pretendia expressar a distingdo, mas a0 mesmo tempo também
jáa convergéncia de contexto de acontecimentos com narrativa.
No final, não foi a expressão “Historie”, mas sim “Geschichte” que
fundiu os dois campos semânticos. O famoso título do livro de
Johann Joachim Winckelmann Geschichte der Kunst des Altertums
[História da arte da Antiguidade], de 1764, reduziu ambos os sig-
nificados a um denominador tio comum®® que não se consegue
mais derivar da palavra se o destaque recai sobre o objeto narrado
ou sobre a representação. Desde meados do século, o título “Ges-
chichte” vai expulsando, gradativamente “Historie” das capas dos

"" HEDERICH, Benjamin. Anleitung zu den firnchmsten historischen Wissenschaften. 2* ed.,


Wittenberg, 1711, p. 186
"* LEIBNIZ, In: KLOPP, Arno (Ed.). Werke
(1* série, vol. 10). Hannover, 1877, p. 33.
" LUTHER, 1. Chronik 30, 29 [Zerbster Handschrift, 1523; contagem moderna: 29, 29]. In:
Weimarer Ausgabe, Deutsche Bibel (vol. 1), 1906, p. 281 e seg. “Die geschicht aber des koniges
Dauid beyde dic ersten und l n sihe die sind geschrieben unter den geschichten Samuel".
" MAALER, 1561, 195 b. “Ein ordenliche E lung und erklárung waarhafter, grundtlicher und
geschiichner dingen*; chichten und handlungen. Acta”.
o R, Das Wort “Geschichte”..., p. 14.
"* WING MANN, J. J. Geschichte der Kunst des Altertums. In: EISELEIN, Joseph (Ed.).
Samiliche Werke (vol. 3). Donaueschingen, 1825.

131
O concero De História

livros histéricos®”; os poucos titulos com “Historie” correspondem


numericamente dqueles com o plural “Geschichten™*"
Winckelmann explicou o conceito, que ele entendia como
novo, apontando em especial para as intenções sistematicas que
estariam por tras dele: “A Historia da arte da Antiguidade que eu
resolvi escrever nio constitui um simples relato da sequéncia de
tempo das transformagdes da mesma, pois eu adoto a palavra His-
tória em seu sentido mais amplo, sentido que ela possui na lingua
grega, e minha intenção é apresentar uma estrutura doutrindria
[Lehrgebiude]”.*"
Com isso, Winckelmann citara a segunda fonte de que se
alimentava o moderno coletivo singular. O fato de imaginar uma
“História” que fosse além da narrativa de transformacoes represen-
tava criatividade teórica. Ela fazia com que a realidade da Histéria
desembocasse num “Lehrgebáude”, numa “estrutura doutrinaria”,
sem a qual a historia dos acontecimentos nem poderia ser reco-
nhecida. Somente através da reflexio sobre as historias individuais
é que “a Historia” poderia ser desvendada.
Naguilo que tange a Histéria dos vocibulos, a “Historie” deu
sua contribuição, tal qual ela, desde o Humanismo, foi pensada
e definida, nos muitos manuais sobre arte e metodologia escritos
por historiadores. A “Historic” como doutrina ou como disciplina
cientifica, desde sempre, pôde ser utilizada de forma reflexiva e
sem objeto. A partir de Cicero, o conhecimento reunido sobre
as histérias individuais fora subsumido, coletivamente, no termo
“historia”: “Historia magistra vitac”** Quero citar um comprovante
historicamente importante das inúmeras variantes que destacam a
função pedagdgica dessa historia: “Porro — disse Melanchton — non
alia pars literarum plus aut voluptatis aut utilitatis adfert studiosis, quam

* Cf. HEINSIUS, Wilhelm. Allgemeines Biicher-Lexicon oder vollstandiges Alphabetische


der von 1700 bis zum Ende 1810 erschienenen Biicher (2 vols.). 2. ed., Leipzig, 1812, p. 82 € segs.,
391 e seg.
? KAISER, Christian Gottlob. Index locupletissimus librorum, Vollstândiges Búcher-Lexikon,
enthaltend alle von 1750 bis zu Ende des Jahres 1832 in Deutschland und in den angre:
Lândern gedruckten Búcher (vol. 2). Leipzig, 1834, p. 355 e segs., 368; (vol. 3) 18
3% WINCKELMANN, Geschichte der Kunst..., p. 9 (Vorredo).
* Cf. KOSELLECK, Historia magistra vitae (cf. nota 224), p. 196 e segs.

132
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

historia”.**' Puffendorf, provavelmente, foi o primeiro que, em


1682, chamou de ciência o conhecimento criticamente verificado
das Histórias a serem ensinadas. “A Historie (seria) a ciência mais
graciosa e útil 322

Ess > signi ado aparentemente passou sem constrangimento


para “a História”. Pomey, em 1715, ainda precisou traduzir “Histo-
ria” por “Geschichts-Beschreibung [descrição da Histéria]”, ao registrar
os topoi ciceronianos: “A descrição da História é um testemunho do
tempo, uma luz da verdade, uma mestra da vida, e uma narradora
de todas as coisas que aconteceram antes de nós”.» 32 ? O tradutor
Rollins, em 1748, ji pode colocar ali o coletivo singular alemio:
“A Geschichte [Historia] &, com justiga, a testemunha do tempo”.**
Desde então, se tornou dificil distinguir entre a “verdadeira”
Historia e a Historia ativamente refletida. Frederico, o Grande,
ainda ficou desnorteado quando o bibliotecirio Johann Erich Biester
lhe disse que “se dedicava preferencialmente a Geschichte [História]”.
O rei perguntou “se isso significava a mesma coisa que Historie, pois
nio conhecia a palavra alemã”. Ele terd conhecido a palavra, mas
não seu sentido reflexivo contido no novo coletivo singular.’* Em
1777ja se diz de forma bem natural que Iselin pretendeu “estudar
a História” e tornar-se “professor de Historia”.2°
Em 1775 Adelung, finalmente, registrou a vitoria da “Histó-
ria”. A expressio possuiria trés significados equivalentes, que não
se perderam, desde entio: “1. Aquilo que aconteceu, uma coisa
acontecida... 2. A narrativa de tal Histéria ou de episédios acon-
tecidos; a Historic... 3. O conhecimento dos episodios acontecidos,
o estudo da História [Geschichtskunde], sem plural. A História é a
mais confiavel mestra da moral” — como diré ao explicar o último

*! Melanchton, em carta a Christoph Stalberg de 1526. In: Corpus reformatorum (vol. 1), 1834, p. 837.
2 PUFENDORF, Samuel. Einleitungzu der Historie der Vornehmsten Reiche
und Staaten. Frankfure,
1682, p. 1' (Vorrede)
B POMEY, Le Grand Dictionaire Royal (t. 1), 1715, p. 485
¥ ROLLIN, Charles. Historic alter Zeiten und Vôlcker (vol. 12). Dresden/Leipzig, 1748, p. 221.
3 BOTTIGER, Hofrat. Erinnerungen an das literarische Berlin im August 1796. In: EBERT,
Friedrich Adolph. Uberlicferungen zur Geschichte, Literatur und Kunst der Vor- und Mitwelt (vol.
2/1). Dresden, 1827, p. 42.
2 ISELIN, Isaak Ephemeriden der Menschheit (11* parte). 1777, p. 122 ¢ seg., nota.

133
ponto. No breve verbete sobre “a História”, aparecem as mesmas
definições, e Adelung acrescenta: “Para todos esses sentidos, pode-
se utilizar agora — ao menos numa escrita elegante — a palavra
alemã Geschichte”.”
Claro, seria possível interpretar essa constatação — que Ade-
lung certamente também registrou por razões linguístico-políticas
— de forma puramente onomasiológica, no sentido de que o espaço
semântico de uma palavra (“Historie”) simplesmente foi assumido
por outra palavra (“Geschichte”). Mas a história vocabular mos-
trou que tais convergências foram possíveis e corriqueiras, desde
o final da Idade Média. Também não é decisivo que “IHistorie”
agora podia ser usada, sem restrições, no sentido de “Geschichte”,
coisa que a Deutsche Encyclopedie [Enciclopédia alema] — apesar
de eruditas diferenciações — confirma.**”* O que é decisivo é que,
no último terço do século XVIII, foi transposto um patamar. Os
três níveis (situação objetiva, a representação dela, e a ciência
a respeito) foram reunidos num único conceito: “Geschichte”.
Levando-se em consideração o emprego das palavras na época,
trata-se da fusão do novo conceito de realidade expresso em
“História como tal” [Geschichte iiberhaupt], com as reflexões que
ensinam a entender essa realidade. Numa formulaç ) talvez um
pouco exagerada, pode-se dizer que “Geschichte” foi um tipo de
categoria transcendental que visava às condições de possibilidade
de Geschichten/Histórias.
Quando Hegel escreveu: “Geschichte reúne, em nossa língua,
tanto o lado objetivo quanto o subjetivo, e significa tanto a histo-
riam rerum gestarum quanto as próprias res gestas”, não considerou
essa constatação como uma “casualidade externa”. As “ações e OS
acontecimentos propriamente históricos”, que se localizam além do
espaço pré-histórico de acontecimentos naturais, só teriam surgido

* ADELUNG (vol. 2), 1775, p. 600 e seg., 1210 ¢ seg


5 KÓSTER, Heinrich Martin. Verbete “Gesc ichte In: Deutsche Encyclopidic (vol. 12), 1787,
p. 67; KÓSTER, Heinrich Martin. Verbete “Philosophie/Philosophieder Historie™. In: ibid.
(vol. 15), 1799, p. 649. Além disso, cf. o excurso histórico-vocabular de HERTZBERG,
Gustav. Verbete “Geschichte®, In: ERSCH/GRUBER (1* seção) (vol. 62), 1856, p. 343, nota
2, o qual se refere a Wilhelm Wachsmuth wurf einer Theorie der Geschichte. Halle, 1820, p.
2 ¢ segs.), cujas distingdes reaparecem, neste texto, daqui para frente.

134
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

mediante sua elaboração por meio da narrativa historica.’* Uma


coisa remete a outra, e vice-versa. Ou como, mais tarde, Droysen
ligou a forma de ser da Histdria a consciéncia sobre ela: “O co-
nhecimento a seu respeito é ela mesma”.*"
Com isso, 0 novo conceito de realidade e o novo conceito de
reflexio se haviam sobreposto. No campo tedrico-cientifico, essa
conve géncia levou a inúmeras imprecisoes e davidas. Niebuhr — e
muitos outros, depois dele — procuraram diferenciar novamente
a utilizagio das palavras.®' O fracasso desses esforgos indica que
a “Historia” como conceito social e politico cumpriu [uma tare-
fa] menor ou maior, em todo caso, [uma tarefa] diferente: ele se
transformou num conceito abrangente, supracientifico, que pre-
cisa incluir a experiéncia moderna de uma Histéria auténoma na
reflexio dos seres humanos que a realizam ou são produto dela.

2."A Histéria” como Filosofia da Histéria


A importancia que teve o fato de a nova realidade da “Historia
como tal” [Geschichte uberhaupt] ter conseguido evoluir para o
status de um conceito através da reflexio está indicada pelo surgi-
mento da palavra paralela “Filosofia da Histéria”. O desvendamento
da “Histéria como tal” coincidiu com o surgimento da Filosofia
da Historia. Quem utiliza a nova “expressio: Filosofia da Historia”
— escreveu Koster, em 1790, na Deutsche Encyclopddie®™ [Enciclo-
pédia Alemã| — só deveria “estar atento para o fato de que ela nio
constitui nenhuma ciéncia propriamente dita e especial, como se
poderia ser facilmente levado a acreditar, ao primeiro contato com
essa expressio. Pois, mesmo que grande parte da Historie ou toda
uma ciéncia histérica sejam tratadas assim, não é outra coisa do
que Historie em si mesma”.Já a escrita pragmatica da Histéria, que
tiraria conclusoes de experiéncias proprias e alheias, mereceria esse
nome, da mesma forma que a “critica histérica”, que ensinaria a

* HEGEL, Die Vernunft... (cf. nota 236), p. 164.


W DROYSEN, Historik (cf. nota 236), p. 331; além disso: ibid., p. 325, 357.
” Cf. nota 361.
2 KOSTER, Verbete “Historie*, p. 666.

135
O concero o€ História

distinguir verdade de plausibilidade, podendo, por isso, ser chamada


de “lógica da Geschichte [História] ou teoria da Historie”. Com o
registro linguistico, Kóster resumiu a nova constatação.
Foi graças à Filosofia iluminista que a Historie como ciência se
separou da Retórica e da Filosofia moral, e se livrou da Teologia
e da Jurisprudência, a quem estivera subordinada.
Não era óbvio que a Historie, que, até então, lidara com o in-
dividual, com o peculiar e com o casual, tivesse capacidade para ser
“Filosofia”. Enquanto os métodos histórico-filológicos e as ciências
auxiliaresjá se haviam independizado desde o Humanismo, a His-
torie só se tornou uma ciência própria, quando — na “História como
tal” — conquistou um novo espaço de experiência. Desde então,
ela também pôde definir publicamente o “ campo de seu objeto”.
A configuração da Filosofia da História indica esse processo. Três
etapas levaram até ele: a reflexão estética, a moralização das Histórias
e a formulação de hipóteses, que tentav a superar uma interpretação
teológica da História através do recu so a uma História “natural”.
a) A reflexão estética. No contexto do surgimento da Filoso-
fia da História, Historik e Literatura sofreram uma nova ordenação
recíproca, cuja relação constituía tema antigo, sempre retomado,
desde o Humanismo. De forma esquemática, a relação entre His-
torie e produção literária pode ser caracterizada por duas posições
extremas, que permitem construir uma escalada gradativa, para
agregá-las.**
Ou se classifica o conteúdo de verdade da Historie em nível
mais elevado que a produção literária, pois quem se dedica às res
factae precisaria mostrar a verdade, enquanto as res fictae levariam
à mentira. Historiadores que defendiam essa posição gostavam de
recorrer à metáfora do espelho, que circulava desde Luciano, para
definir sua tarefa de descrever a “verdade nua”. A Historie mostraria
uma “nudité si noble et si majesteuse”, escreveu Fénelon, em 1714, de
forma que não necessitaria de qualquer enfeite poético.* “Dizer

*” HEITMANN, Klaus. Das Verhiltnis von Dichtung und Geschichtsschreibung in últerer


Theorie. Archiv fiir Kulturgeschichte, n. 52, 1970, p. 244 ¢ segs
3 FENELON, Frangois de. Lettre à M. Dacier sur les occupations de I'Academie. In: Oeuvres
complétes (t. 6). Paris, 1850, p. 639,

136
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HistÓRIA

a verdade nua significa narrar os eventos que aconteceram sem


qualquer maquiagem” — é como Gottsched confirma essa tarefa
dos historiadores.”*
Contra a indiferença teórico-epistemológica contida nessas
frases, a outra po: ão recorria a Aristóteles.”* Aristóteles desvalori-
zara Historie frente à poesia, porque ela se orientaria exclusivamente
pelo transcurso do tempo, no qual muita coisa aconteceria ao acaso.
Ela relataria “aquilo que aconteceu”, enquanto a poesia relataria
“aquilo que poderia acontecer”. A poesia visaria ao possível e ao
geral, motivo pelo qual seria mais “filosófica” e mais “importante”
que a Historie. Lessing — o aristotélico do século XVIII — expressou
sua opinião da seguinte maneira: “Verdades históricas casuais nunca
podem transformar-se em verdades racionais necessárias”**, motivo
pelo qual “a plausibilidade interna” da poesia teria muito mais peso
que a verdade histórica, que, muitas vezes, é questionável.*** Ao
contrário do historiador, “o poeta [é] ... senhor sobre a História;
e ele pode aproximar os acontecimentos tanto quanto queira”** —
como Lessing o expressa de forma mais moderna. Em função de
suas reservas aristotélicas contra o conhecimento histórico, não
admira que Lessing, ali onde, em 1784, aparecia como filósofo da
História — em sua Erziehung des Menschengeschlechts [Educação do
gênero humano] —, acabou abrindo mão da expressão “Geschichte”
[História]. Isso mostra — da perspectiva negativa — quão vagarosa-
mente o novo termo “Geschichte”, impregnado pela Filosofia, havia
conseguido impor-se.

* GOTTSCHED, Johann Christoph. Versudh einer Critischen Dichtkunst. 3. Aufl., Leipzig,


1742, p. 354; cf. WINTERLING, Fritz. Das Bild der Geschichte in Drama und Dramentheorie
Gotscheds und Bodmers. Frankfurt, 1955, p. 15 (tese de doutorado). A respeito de tudo isso,
cf REICHARDT, Rolf. Historik und Poetil in der deutschen und franzdsischen Aufelárung.
Heidelberg, 1966 (monografia de curso); a respeito da metáfora da verdade nua dentro de suas
transformações históricas: BLUMENBERG, Hans. Paradigmen einer Metaphorologie. Archiv
Siir Begriffsgeschichte, n. 6, 1960, p. 47 e segs.
Poctik, 1451 b; 1
*” LESSING. Uber den Beweis des Geistes und der Kraft (1777). In: Sâmtliche Schriften (vol. 13),
1897, p. 5
** LESSING. Abhandlungen iúber die Fabel (1757). In: Sâmuliche Schriften (vol. 7), 1891,p. 446.
% LESSING. Briefe, die neueste Literatur betreffend, Nr. 63. In: Samtliche Schrifien (vol. 8), 1892,
p. 168

137
O concemo ok HistóRria

O fato de a Histéria da Filosofia ter-se tornado viivel nio se


deveu, de forma alguma, à vitéria de um ou de outro desses dois
campos, aqui apresentados de maneira esquematicamente reduzida.
Nem os representantes da “verdade nua”, isto ¢, os defensores da
“propria Historia” [Geschichte selbst], conseguiram se impor, nem
os defensores da Poesia — considerada superior —, que submetiam
sua representagdo as regras de uma possibilidade imanente, o con-
seguiram. Pelo contririo, ambos os campos fizeram uma fusio, na
qual a Historie se aproveitou da verdade mais geral da Poesia, de
sua plausibilidade interna, enquanto, inversamente, a Poesia tentou
incorporar cada vez mais as exigéncias da realidade historica. O
resultado acaba sendo sinalizado pela Filosofia da História.
Bodin — ao contririo de Bacon — havia valorizado significa-
tivamente a Historie. Sem suas sagradas leis (“sacra historiac leges™),
ninguém se acharia na vida, e mesmo a filosofia fracassaria sem os
dicta, facta, consilia históricos: graças a ela, seria possivel preparar-se
para o futuro.’*” Seria exatamente o reino da probabilidade que —
a0 contrário da verdade matemitica ou religiosa — caracterizaria
a Historie humana, e seria justamente de suas incertezas e de suas
trapalhadas que os philosophistorici obteriam seus conhecimentos.*
É dessa modéstia que derivava, no longo prazo, o ganho,
pois, no confronto seguinte com a critica cartesiana ¢ pirronista da
incerteza e da inconfiabilidade das afirmações historicas, se abriu
aquele campo das “verités de faits” cujo oposto — em acordo com
Leibniz — podia ser pensado, cuja factibilidade, no entanto, só podia
ser cientificamente investigada segundo graus de probabilidade.*
“Ainda que, na Historie, nio se consiga chegar a uma certe
perfeita” — assim Zedler resume, em 1735, a vitoria contra o pirro-
nismo —, “a probabilidade, que também ¢ um tipo de verdade, está
ali”. Quem quiser avaliar uma Historic deve perguntar pela “propria

3 BODIN. Methodus ad facilem cognitionem hiscoriarum (1572). In: MESNARD, Pierre (Ed).
Qeuvres philosophique. Paris, 1951, 112 a.
4 Ibid., 114 ¢ seg. 138 b. A respeito da historia conceitual da plausibilidade, cf. BLUMENBERG,
Paradigmen.... p. 88 ¢ segs.
*º LEIBNIZ. Monadologie, 6 33. In: GERHARDT, C. J. (Ed.). Philosophische Schriften (vol. 6)
Berlim, 1885, p. 612; LEIBNIZ. Theodizee, §§ 36 e segs. In: ibid., p. 123 ¢ segs.; LEIBNIZ.
Discours de métaphysique. In: Philosophische Schrifien (vol. 4), 1880, p. 427 e segs.

138
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTORIA

História [Geschichte selbst], e em que medida ela é possível ou não”.**


Com isso, a Historie havia galgado um patamar, no âmbito da hie-
rarquização aristotélica, que a aproximava da poesia. Não se per-
guntava pela realidade, mas, em primeiro lugar, pelas condições de
sua possibilidade. Mas a Poesia tinha a mesma obrigação. Uma vez
submetida a uma exigência racional comum, também sua utilidade
podia ser definida em comum: “Le but principal de I'Histoire, aussi
bien que de la poésie, doit étre d'enseigner la prudence et la vertu par des
exemples, et puis de monster le vice d'une maniére qui em donne de V'aver-
sion, et qui prote ou serve à l'eviter”>**
No âmbito da produção literária, foi a nova categoria do
romance burguês que agora se achava submetida ao postulado da
fidelidade histórica aos fatos. Como em dois vasos comunicantes,
Historie e romance foram mutuamente adaptados. A credibilidade e
a capacidade de convencimento do romance cresciam na medida em
que ele se aproximava de uma “Historie verdadeira”. Representativa
desse processo, ao qual aparentemente correspondeu uma expecta
tiva dos leitores no sentido de apresentar uma correspondência cor
a realidade, é a mudança rápida de títulos, na primeira metade de
século X VIII.** Para satisfazer à presunção de realismo, o romance
francés costumava ser chamado de “Histoire” ou “mémoires”. A ten-
tativa de Charles Sorel em manter a antiga divisio entre romance
e Historie nio conseguiu impor-s ; “Il ne faut ass se persuader que
quelque roman que ce soit puisse jamais valoir une vraie histoire, ni que
on doive approuver que Uhistoire tienne em quelque sorte du roman”%*
Com o entrecruzamento de Poética e Historik, foi liberado
o novo e complexo conceito de Geschichte/Histéria, o qual esta-
beleceu uma religagio da verdade superior de filosofia e poesia
com a facticidade histérica. Dessa forma, Diderot recorreu as

* ZEDLER.. Verbete “Historie” (vol. 13), 1735, p. 283.


* LEIBNIZ. Theodizee, $ 148. In: Philosophische Schriften (vol. 6), p. 198.
5 JONES, P. S. A list from French prose fiction from 1700to 1750. New York: Columbia University,
1939, introdugio (tese de doutorado); a esse respeito: FURET, Frangois (Ed.). Livre et société
dans la France du X VIIF sidcle. Paris/Den Haag, 1970.
% SOREL, Charles. De la connaissance de bons livres ou Examen de plusieurs autheurs (1671).
Citado por DULONG, Gustave. Labbé de Saint-Réal. Etude sur les rapports de 1'histoire et
du roman au 17 siécle (t. 1). Paris, 1921, p. 69.

139
O CONCENO DE HistóRIA

categorias aristotélicas do verdadeiro, do provavel e do possivel


para realizar a comparagdo entre “histoire” e “poésie”. “Llart poétique
serait donc bien avancé, si le traité de la certitude historique était fait”>*
E seu Eloge de Richardson [Elogio a Richardson], de 1762, mostra
como, na mio de Diderot, o conceito de Histéria é libertado de
suas peias aristotélicas. A Historie, muitas vezes, estaria repleta de
mentiras, mostrando apenas recortes e episodios temporalmente
limitados — ainda se pode ler, em sentido convencional. Algo di-
ferente aconteceria com o romance de Richardson, que trataria
da sociedade e de seus costumes, e sua verdade abrangeria todos
0s espacos e todos os tempos do género humano, “ j'oserai dire que
souvent Ihistoire est un mauvais roman; et que le roman comme tu l'as
fait, est une bonne histoire”>*
Na Alemanha ocorreu uma valorização parecida. Em 1664,
Johann Wilhelm von Stubenberg cunhou a expressio Geschicht-
Gedicht [Historia-Poesia] para o romance, a fim de caracterizar sua
eligação com a verdade. Como dizia, os irmios Scudéry tratariam,
:m sua Clélie, de “histórias todas acreditadas como verdadeiras em
si e para si mesmas [vor und an sich selbst], / para as quais, porém,
inventam e acrescentam acasos / possiveis, / provéveis, / razoaveis,
/ que lhes dão oportunidade e razio / para apresentar suas doutrinas
de moral e virtude”. Birken, em sua Poética, ainda acrescentou a
expressao Poesia-Historia [Gedicht-Geschicht],*** a fim de distinguir
a epopeia do romance. Desde entio, “os limites da criagio poética
e [da criagdo] provivel [aparecem] ... como os limites do mundo
historicamente imaginavel”.**" E desde mais ou menos 1700, a
expressao “Geschichte” deslocou o “romance”, e ainda mais a “His-
torie”, dos titulos dos romances alemies.>’

7 DIDEROT, Denis. De la poésie dramatique (1758). In: ASSEZAT, J. (ed.). Oeuvres compltes
(¢. 7). Paris, 1875, p. 335, cf. p. 327 e seg.
* DIDEROT, Denis. Eloge de Ricardson (1761). In: Oeuvres (t. 5). 1875, p. 221, cf. p. 215, 218.
* SCUDERY, Madeleine et Georges de. Clelia: Eine rómische Geschichte (vol. 1). Núrnberg,
1664 (Zuschrift), (versio alemã de Johann Wilhelm Freiherr von Studenberger), citado por
VOSSKAMP, Wilhelm. Romantheoric in Deutschland, Von Martin Opitz bis Friedrich von
Blanckenburg, Stuttgart, 1973,p. 11 e seg. onde tambémse encontram análises mais detalhadas.
%0 VOSSKAMP, Romanthearic..., p. 13.
1 SINGER, Herbert. Der deutsche Roman zwischen Barrock und Rokoko. Colônia/Graz, 1963
(Bibliographie), p. 182 e segs.

140
/A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

Portanto, muito antes que historiadores migrassem do título


“Historie” para “Geschichte”, os poetas já haviam passado a utilizar
o título mais atraente, que prometia um conteúdo de realidade su-
perior. Em 1741 Bodmer reivindicou que o contexto narrado fosse
vinculado a coisas conhecidas. “Com isso, a poesia e o romance vão
adquirindo gradativamente a dignidade da Historie, a qual consiste
no mais alto e no mais extremo grau de probabilidade; já que a
louvada verdade histórica não é outra coisa que probabilidade, que é
comprovada através de testemunhos coincidentes e unificadores”.*?
Enquanto a arte do romance foi se comprometendo com
a realidade histórica, a Historie, inversamente, foi submetida ao
mandamento poetológico de criar unidades de sentido. Passou-se
a exigir-lhe uma maior arte de representação, em vez de narrar
séries cronológicas, ela deveria desvendar motivos secretos, e tentar
descobrir uma ordem interna em meio aos acontecimentos casuais.
Dessa forma, através de um tipo de osmose recíproca, ambas as
categorias levaram à descoberta de uma realidade histórica a que
só se poderia chegar através da reflexão. Em 1714, Fénelon havi:‘
formulado, diante da Academia, o seguinte programa: “La principale
perfection d’une histoire consiste dans lordre e dans I'arrangement. Pour
parvenir à ce bel ordre, Uhistorien doit embrasser et poséder toute son histoire;
il doit la voir tout entiére comme d'une seule vue. .. Il faut en montrer Lunité,
et tirer, pour ainsi dire, d'une seule source tous les principaux événemns
qui en dependent”. Com isso, o leitor teria proveito e divertimento
a0 mesmo tempo.>>
Somente através do trabalho subjetivo do historiador, feito a
partir de um ponto de vista, desvenda-se a unidade da Histéria,
que, a partir de então, seria cada vez mais evidenciada na prépria
realidade histérica. Quem contribuiu para concretizar essa tarefa
foi a perspectiva teolégica de uma Historia Universal vivenciada
pelos cristios. Bossuet insistia que todas as Historias estavam inter-
relacionadas, de forma que se poderia apreender “comme d’un coup

2 BODMER, Johann Jacob, Critische Betrachtungen iiber die Poctischen Gemilde der Dichter. Mit
ciner Vorrede von Johann Jacob Breitinger. Zurique, 1741, p. 548, citado por VOSSKAMP,
Romantheoric..., p. 156
* FENELON, Lettre à M. Dacier... (cf. nota 334), p. 639.

141
O conceODE HisTÓRIA

d’eil, tout l'ordre des temps”. “La vraie science de Vhistoire est de remar-
quer dans chaque temps ces secretes dispositions qui ont prépraré les grands
chargements, et les conjonctures importantes qui les ont fait arriver”.**
Leibniz já recorria à muito discutida metáfora do romance
para descrever a unidade interna da melhor História possível dos
homens: “Ce roman de la vie humaine, que fait I'histoire universelle du
genere humain, s'est trouvé tout invente dans I'entendement divin avec une
infinité d'autres”. Mas Deus decidiu concretizar somente a sequência
efetiva dos acontecimentos (“cette suite d’evenemens”), pois eles se
inserem de modo perfeito em tudo o mais.**
Em que medida evidentemente a certeza teologica da provi-
déncia divina recuou para garantir a unidade da Historia, em termos
cientificos, isso se pode verificar no caso de Gatterer, quando, em
1767, falava do “plano histérico” e da “decorrente unificagio das
narrativas”. Gatterer se envolveu, de maneira consciente, na discus-
são poetologica para fundamentar a tarefa unificadora da Historie,
que se via desafiada pelo caos de fontes teimosas. A Historie, que
até entdo se encontrava na sombra da arte poética, “enxerga agora,
entre nós, uma carreira aberta pelos poetas”. Tudo dependeria do
plano e das categorias através das quais a Historia deve ser conhecida
e representada. A forma mais “natural” de proceder seria aquela
na qual “os acontecimentos sio alinhados de forma sistémica...
Acontecimentos que não fazem parte do sistema ..., por assim
dizer, não são acontecimentos, para o historiador”. Somente com
sua intervenção sistematizadora prévia, as relagdes pragmaticas são
desvendadas. Se o historiador é “filósofo — e isso ele precisa ser, se
quer manter-se pragmatico —, então ele estabelece máximas gerais,
de como os acontecimentos costumam ocorrer”. Ele reflete sobre
as condigdes da Historia possivel, e, com isso, o plano historico é
revinculado à prépria História. A transigio é gradativa: o historia-
dor fundamenta, compara, atenta para o cariter e as motivagoes, “e
ousa derivar dai um sistema de acontecimentos, uma forga propul-
sora”, que ele ou confirma através de fontes contemporineas “ou

*% BOSSUET. Discours sur histoire universelle (1681). Paris, 1966, p. 40, 354 (editado por Jacques
Truchet).
% LEIBNIZ. Theodizee, § 149. In: Philosophische Schriften (vol. 6), p. 198.

142
/A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTORIA

encontra justificado através de todo o conjunto interconectado da


Historia”. A intervengao tedrica prévia, o “nexus rerum universalis”,
€ confirmado pela prépria Histéria. “Pois, nenhum acontecimento
no mundo &, por assim dizer, insular. Tudo interdepende, é reci-
procamente motivado, produz-se mutuamente, é desencadeado, é
gerado e motivado, e gera de novo”.*
Assim, a partir do desafio para uma representagio pragmati-
ca, que precisava levar em conta o efeito e a utilidade da Historie,
surgiu a necessidade de também enxergar um sistema interno no
contexto de eventos pragmaticos. E merece menção o fato de que
a primeira Philosophie der Historie [Filosofia da Historie] escrita na
Alemanha foi atestado — supostamente pelo proprio Gatterer — que
“ela não contém nada de novo”.” Késter, seu autor, entendia por
Filosofia da Historie, isto é, da Histéria, tanto as regras da representagio
quanto da pesquisa, e aplicou o conceito também ao “sistema da
Historie-Universal”, que se poderia chamar também de “Ontologia
ou doutrina basica da Histéria, e à qual não se pode negar o titulo
de Filosofia da Histéria”.%®
K&ster apenas reuniu as intenções de um Chladenius, um
Iselin, um Gatterer ou de um Schlézer em um conceito comum,
que eles proprios ainda não haviam utilizado.
O plano do autor e a unidade interna que a prépria Historia
registrava foram se sobrepondo, aos poucos, enquanto pareciam se
estimular reciprocamente. Nesse sentido, Justus Moser sugeriu, em
1768, que se atribuisse ao império alemão desde 1495, “o movimen-
to e o poder da epopeia”. Ao seu “plano” de “elevar” a Historia a
“unidade” correspondeu consequentemente “uma completa Historie
do império, que pode consistir única e exclusivamente na Historia
natural de uma unificagio” do império.*”

% GATTE , Vom historischen Plan... (cf. nota 223), p. 21, 16, 82 e segs.
% GATTERER, Rezension H. M. G. Késter, Uber die Philosophie der Historie (Giessen, 1775).
Historisches Journal, n. 6, 1776, p. 165.
* KOSTER, Uber die Philosophic..., p. 54, 50,73 e segs.
* MOSER, Justus. Osnabriickische Geschichte (1768). In: Sâmtliche Werke (vol. 12/1), 1964,
p. 34; MOSER, Justus. Vorschlag zu einem neuen Plan der deutschen Reichsgeschichte.
Patriotische Phantasien. In: Samiliche Werke (vol. 7), 1954, p. 132 e seg.

143
O concerto re História

A ruptura filosófica que indicou o caminho foi feita por


Kant, quando vinculou a questão da relação da História com
sua adequada representação à tarefa moral, com que historiador
e História estariam igualmente comprometidos. Com sua “ideia
de uma História mundial [Weltgeschichte] que possui como que
um fio condutor a priori”, ele não queria dispensar o trabalho
empírico dos historiadores. Mas Kant promoveu um avanço na
discussão sobre uma representação adequada, na medida em que
vinculou a realidade histórica às condições transcendentais de
seu conhecimento. Em tom de aprovação, cita Hume, segundo
o qual a primeira página de Tucídides seria “o único início de
toda História verdadeira”.
Por outro lado, Kant se pronunciava contra a metafora de
que se pudesse construir a Historia teleologicamente, como um
romance. O estabelecimento de uma unidade teleoldgica é muito
menos uma tarefa estética que moral. “No conjunto, pode-se en-
xergar a Historia da categoria humana como a concretizagio de
um plano nio revelado da natureza”, desde que, na pratica, se age,
“através de nossa constitui¢io racional”, no sentido de “apressar”
o futuro que se reivindica. Isso tem consequéncias para a forma da
representação. Ao transportar — como reivindicara Schlozer — “o
agregado não planificado de ações humanas” para um “sistema” da
Histéria, crescem as chances de concretizar esse sistema. É ai que
se localiza a fundamentação histérico-filosofica de toda Histéria.
“Uma tentativa filosofica de abordar a Historia mundial [Weltges-
chichte] geral segundo um plano da natureza que tenha por objetivo
a unificação civil perfeita no género humano deve ser vista como
possivel, e mesmo digna de ser promovida a favor das intengdes da
natureza”. Assim, o projeto filosófico de constituir a Historia gera
efeitos sobre a Historia real. O planejamento humano exige mais
que o plano estético: ele se funde na intengio moral pritica com
o plano secreto da natureza.**

* KANT. Idee zu cinerallgemeinen Geschichte in weltbiirgerlicher Absiche (1784), § 8° ¢ 9º. In:


Akademie-Ausgabe (vol. 8), 1912, p. 30, 29 (notas 27, 29). A respeito da metifora do romance,
cf. KANT. Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte (1786). In: Akademie-Ausgabe
(vol. 8), p. 109.

144
A CONFIGURAÇÃO DO MOCERNO CONCEITO DE HISTORIA

A profundidade com que essa virada transcendental entrelaçara


as tarefas da representação com a interconexão dos acontecimentos
em uma unidade da História fica clara numa reflexão de Niebuhr,
de 1829, quando justificou o anúncio de suas preleções a respeito da
“História da era da revolução”. Ele não pretenderia falar “exclusi-
vamente da revolução”, mas ela constituiria “o centro dos últimos
40 anos; é ela que confere a unidade épica ao todo”, motivo pelo
qual ele a tomaria como ponto de partida. Evidentemente a pró-
pria revolugio constituiria apenas “um produto do tempo” sobre
o qual pretenderia falar. “Mas falta-nos uma palavra para o tempo
em geral, e, diante dessa auséncia, permito-me chami-lo de era
da revoluc:
A revolugio como que criou a unidade a ser exposta, épica, da
Historia, mas por trás dela estd o tempo em geral, o tema genuino
da Histéria moderna, a qual, na revolugdo, foi subsumida no seu
primeiro conceito, todo ele derivado da experiéncia.
Finalmente, Humboldt — em confronto com Schiller — dissol-
veu a antiga disputa entre Historik e Literatura, ao tentar derivar os
parimetros de sua representagio da “Historia como tal” [Geschichte
iiberhaupt] (1821). “Com a nua separagio daquilo que realmente
aconteceu ainda nio se chegou ao esqueleto do acontecimento. O
que se consegue com isso é a base necessaria da História, a subs-
tincia para a mesma, mas não a propria Historia” [Geschichte selbst].
Para chegar a propria Historia [Geschichte selbst], haveria neces-
sidade, por um lado, da “investigagio critica do acontecimento”,
isto é, da pesquisa histérico-filoséfica, por outro lado, da fantasia
produtiva, que vincula o historiador ao poeta. Só então se poderia
desenvolver aquele conceito de “realidade” que, “independente-
mente de sua aparente casualidade, está condicionada por uma
necessidade interna”. Gragas a esse reconhecimento, a matéria do
acontecimento adquiriria aquela forma geral que a estruturava
como Histéria. “O historiador digno desse nome precisa apresentar
qualquer episédio como parte de um todo, ou — o que significa o

* NIEBUHR, Barthold Georg. Geschichte des Zeitalters der Revolution (vol. 1). Hamburgo,
1845, p. 41.

145
O CONCEITO DE HisTORA

mesmo — representar em cada um a Histéria como tal” [Geschichte


iiberhaupt]. Nessa medida, Humboldt parece continuar seguindo as
regras de uma Poética que fornece os critérios formais de uma repre-
sentação material. Mas, baseado em Kant e em Herder, Humboldt
da o passo decisivo em frente, ao atribuir a relação originalmente
invisivel de todos os acontecimentos a enigmaticas “forças atuantes
e criadoras”, que vio configurando a Histéria, dando-lhe a forma
que ela tem. O que interessaria, portanto, não seria apenas “tra-
zer à tona a forma” que ordena “os labirinticamente entrelacados
acontecimentos da História mundial”, mas sim “descolar essa forma
deles proprios”. Isso não representaria nenhuma contradigio, pois a
Historia como uma interconexao dinimica e como conhecimento
teria uma base comum, “ja que tudo aquilo que age na Historia
mundial [Weltgeschichte], também se movimenta dentro do interior
do homem”.**?
A determinagio transcendental da Histéria como uma catego-
ria da realidade e, simultaneamente, da reflexio, aparece aqui como
resultado de um longo processo envolvendo Literatura e Historik
no qual, ao final, a Estética foi absorvida pela Filosofia da Historia.
Agora era possivel que Schaller, em 1838, nos Hallische Jahr-
biicher, pudesse constatar, de forma lacénica: “A Histéria como
representação daquilo que aconteceu, na sua perfeicio, é, necessa-
riamente, também Filosofia da Histéria”.%
b) Da moralizagdo a processualizagio da Historia. A ta-
refa poetolégica atribuida à Historie exigira a apresentagio de uma
interconexdo com sentido. Essa interconexio foi atribuida, como
responsabilidade, & “prépria Historia” [Geschichte selbst], gragas a
reflexdes histérico-filoséficas, com que ela seria comprovavel nela
mesma. A velha tarefa moral da Historie de, através de juizos, nio
só ensinar, mas também melhorar, sofreu uma mudanga parecida.
Se originalmente a submissio de uma Histéria real a normas mo-
rais era coisa do historiador, como guardiio filoséfico, ao final do

%2 HUMBOLDT, Uber die Aufgabe des Geschichtsschreibers (cf. nota 153), p. 36, 40 e seg. 47.
* SCHALLER, Julius. Hallische Jahrbiicher, n. 81, 1838, p. 641 (R ezension von Hegels Vorlesungen
iiber die Geschichte der Philosophic).

146
À CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

século XVIII, o ônus da prova para a moralidade foi transferido


para a própria História.
Os historiadores debatiam, de forma animada, se deveriam
permitir que seu juízo fluísse para dentro da narrativa, ou se deve-
riam deixar que a própria História falasse. Nesse sentido, Hausen
escreveu, por exemplo, que o historiador “formado de acordo com
as regras de Luciano” deveria “se esconder”.º** “A História possui
sua própria forma de falar”, já dizia Mosheim, em 1748, motivo
pelo qual o historiador deveria “pintar, mas pintar sem cores”.º*
Pois — como acrescentava Móser, em 1768 —, “na História, como
numa pintura, só [deveriam] falar os atos... Impressão, apreciação
e juízo devem ser especificos de cada espectador”.** Uma posição
retórica preferida dos historiadores — exatamente para obter um
efeito exemplar — era a de fazer com que a História falasse por si
mesma, uma posição que se mantivera desde Luciano.
Do outro lado, por causa do Iluminismo, foi se fortalecen-
do decisivamente aquele campo que exigia do historiador um
posicionamento enfático a favor da verdade, em especial pelo
ensinamento moral da História. A antiga versão de que medo ot
esperança diante do julgamento histórico possui efeito regulado:
sobre o comportamento do mundo posterior já fora aceita no
Humanismo, por Bodin, por exemplo.”” A fórmula de Viperano,
segundo a qual o historiador deve ser um “bonus judex et incorruptus
censor”*, foi tanto mais aceita quanto durante o século XVIII o
mundo posterior foi guindado a condição de fórum da justiça, em
substitui¢io ao Juizo Final. O historiador, “por assim dizer, está
sobre os túmulos e chama os mortos”, sem atentar para titulos ou
séquitos, ele os contempla, “aqui com indiferenga, lá com olhar

* HAUSEN, Freye Beurtheilung iiber die Wahl, úber die Verbindung, und Einkleidung
der historische Begebenheiten, und Vergleichung der neuen Geschichtsschreiber mit den
romischen. In: Vermischte Serhrifien (cf. nota 279), p. 10.
* MOSHEIM, J. L. v. Versuch ciner unpartheiischen und grindlichen Ketzergeschichte. 2. Aufl.,
Géttingen, 1748, p. 42 ¢ segs.
* MÓSER, Osnabriickische Geschichte, Vorrede. In: Simtliche Werke (vol. 12/1), p. 33.
* BODIN, Methodus.... (cf. nota 340), 112b £
* VIPER ANO, Giovanni Antonio. De scribenda historia liber. Antwerpen, 1569; KESSLER,
Theoretiker... (cf. nota 179), p. 65.

147
O concero 2E História

de juiz”.** Assim, até os soberanos, que sempre tentam se esquivar


da verdade, poderiam, graças à Historie, aprender a julgar-se com
antecedência. Uma força moralizante saía dela, a Historie constituía
— nas palavras de D'Alembert — um “tribunal integre et terrible”> Os
senhores governantes, de forma alguma, ficariam impunes, como
registra em tom de elogio o tradutor de Bacon; a História é seu có-
digo penal.*”' E é nisso que consistia sua aplicação “filosoficamente”
pensada: “A História efetivamente apõe o carimbo da imortalidade
aos atos bonitos, e cobre os vícios com uma marcação em brasa,
que séculos não conseguem apagar. Se a História, portanto, é es-
tudada de forma adequada, ela representa uma Filosofia, que causa
uma impressão tanto maior em nós quanto mais ela falar através de
exemplos vivos”. A Historie que ensina pelo exemplo,já no século
XVII, foi definida como Filosofia: “Cum ergo Historia nihil alind sit,
quam Philosophia exemplis utens” — como havia escrito Morhof.*” E
a versão adotada por Bolinbroke, de que a Historie seria a Filosofia
que ensina através de exemplos, foi muito citada; ao historiador
moralizante se agregara, além disso, uma função judicial filosófica
“Justiça histórica é a capacidade de chegar a conclusões válidas a
partir da verdade histórica que deriva de fatos”.”*
Ultrapassou-se um patamar decisivo em direção à Era Mo-
derna quando a tradicional função judiciária da Historie, com sua
concepção do coletivo singular, pôde ser transferida para a “História
como tal” [Geschichte iiberhaupt]. Uma fórmula que representou a
transição foi utilizada por Robespierre, quando, em 1792, se dirigiu
à posteridade: “Postérité naissante, c'est à toi de croíte et d'amener les

3 ABBT, Briefe, die neueste Litteratur betreffend, 10, 1761, p. 221, 161 (carta)
¥ D'ALEBERT, Discours préliminaire de I'Encyclepédic (1751). Hamburgo, 1955, p. 62 (editado por
Erich Kohler).
* Essa é a formulação do conde sueco Tessin; citado por BACON, Francis. Úber die Wiirde und
den Forigang der Wissenschaften. Pest, 1783; reimpresso em Darmstadt, 1966, 196 (nota) (versio
alemi de Johann Hermann Pfingsten).
2 HALLE (vol. 1), 1779, p. 521.
7 MORHOF, Daniel Georg, Polyhistor literarius, philosophicus et practicus (t. 1). 2. Aufl., Lúbeck,
1714, p. 218 (editado por Johann Moller) [1. Aufl.: 1688]; cf. BOLINGBROKE, Henry St.
John Viscount. Letters on the study and use of history (1735). Londres, 1870, p. 5.
7 [Andnimo]. Uber historische Gerechtigkeit und Wahrheit, Eudacmonia oder deutsches
Volksgliick 1 (1795), p. 307.

148
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HIsTÓRIA

Jours de la prosperité et du bonher”.””> A sentença histórica se transfor-


mou em expectativa histórica de sua execução. Não mais apenas
a História individual contava como exemplo, mas toda a História
foi processualizada, pois se passou a lhe reivindicar uma tarefa de
criar Direito e de administrar Direito. Quando Herder editou
suas Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit [Ideias sobre a
Filosofia da História da humanidade], partiu do principio de que,
como na natureza, também na História “vigoram leis naturais que
estão na essência da coisa”. Uma dessas “regras” dizia: “O abuso se
punird a si mesmo, e a desordem, com o tempo, simplesmente se
transformará em ordem, através da incansável dedicação de uma
razão crescente”.””* A moral da História foi temporalizada em
direção à História como processo. O hemistíquio de Schiller, do
ano de 1784, se espalhou rapidamente: “Die Weltgeschichte ist das
Weltgericht” [A História mundial é o tribunal do mundo].?”” Abrir
mão de uma justiça cujas compensações só se fazem no além levou
à sua temporalização. A História hic et nunc adquiria um caráter
incontornável: “Aquilo que a gente excluiu do minuto, / nenhuma
eternidade devolve”.
Em 1822 Humboldt pôde constatar que “o Direito [garante sua
existência e validade] ao longo do caminho inexorável dos aconte-
cimentos que, perpetuamente, vão se julgando e penalizando”.”*
Com isso, formulou em termos teóricos aquilo que se transformara
em legitimação histórico-filosófica geral da ação política, quando,
por exemplo, se invocava o “Direito da História mundial” [Welt-
geschichte], que certamente estaria de seu lado.”” Ou quando Ernst
Moritz Arndt exclamou: “Aqueles que querem levar o Estado para
trás são loucos ou moleques. Esse foi o julgamento da longa História,

Y> Robespierre, em discurso no Clube Jacobino sobre a questão da guerra, em 11 de novembro


de 1792. In: BOULOISEAU, Marc; LEFEBVRE, Georges; SOBOUL, Albert (Eds.). Ocuvres
(t. 8). Paris, 1953, p. 115.
¢ HERDER.. Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (1784/87). In: Sâmrliche
Werke (vol. 14), 1909, p. 244, 249.
7 SCHILLER. Resignation. In: Sikular-Ausgabe (vol. 1), s. d., p. 199.
y* HUMBOLDT, Uber die Aufgabe des Geschichtsschreibers (cf. nota 153), p. 55.
* Citado por ROTHFELS, Hans. Theodor von Schôn, Friedrich Wilhelm V. und die Revolution von
1848. Halle, 1937, p. 193.

149
O concerto e HisTória

e esse julgamento fornece um dos poucos ensinamentos do passado


que deveríamos aproveitar”.*** E em 1820, Politz confirmou que a
História, desde 1789, forneceu a “frutífera” comprovação para “a
palavra de conteúdo denso” de Schiller.**'
Vivenciar a História como um tribunal poderia aliviar o his-
toriador da formulação subjetiva de seu juízo. Por isso, Hegel se
defendeu, de consciência tranquila, contra a acusação da “presun-
ção de ter-se comportado como juiz do mundo”, ao desenvolver
a História como processo. Os acontecimentos da História geral
do mundo representavam para Hegel a “dialética dos espíritos
particulares dos povos, o tribunal do mundo”.”*? Na transição da
formulação de um juízo moral, por parte dos historiadores, para o
processo como História mundial [Weltgeschichte], se firmara a visão
filosófica da História do Iluminismo em direção à Filosofia da
História da Era Moderna.
Quando, mais tarde, a Escola Histórica se opôs a essa in-
terpretação, não conseguiu mais anular os rastros da experiência
então vivida. O topos acompanha, desde então, a História Moderna
— seja de forma crítica, seja de forma ideológica —, pois ele indica
para a unicidade e a direção das vivências modernas, que vão se
superando de forma constante. Em 1841, Wilhelm Schulz escreveu
10 Brockhaus der Gegenwart [Brockhaus da atualidade]’™: “À ação
unilateral seguiu imediatamente o castigo da História mundial
[Weltgeschichte] como tribunal do mundo, no qual, para a Restau-
ração, o desmedido salto para o passado se transformou num salto
mortale, da mesma forma que, para a Revolução, se tornara o salto
para o futuro”.
Também como palavra de ordem, e destituído de qualquer
significado hegeliano, a metáfora do tribunal se alimenta da pressu-
posição de uma justiça que se realiza através da História. Por isso — só

o A{{NDT. Ernst Moritz. Der Bauernsta


— politisch
nd betrachter. Berlim, 1810, p. 113.
* POLITZ, Karl Heinrich Ludwig. Die Weltgeschichte fiir gebildete Leser und Studierende (vol. 4).
3º ed., Leipzig, 1920, p. 1.
* HEGEL. Enzyklo
der pádie
philosophischen Wissenschafien im Grundrisse (3. Aufl., 1830). Hamburgo,
1959, p. 24, 246 (Vorwort e § 548) (editado por Friedhelm Nicolin ¢ Otto Poggeler).
* SCHULZ, W. Verbete ,Zeitgeist", In: [Enciclopédia] Brockhaus, Conversations-Lexicon der
Gegenwart (vol. 4/2), 1841, p. 462.

g 150
A CONFIGURAÇÃO DO MOCERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

para citar um dos inúmeros exemplos —, Hitler a pôde invocar, em


1924, quando se defendia contra a acusação de alta traição: “Ainda
que nos declarem culpados mil vezes, a deusa do eterno tribunal
da História rasgará sorridente o pedido do promotor e a sentença
do tribunal; pois ela nos absolve”.?*
c) Da formulação racional de hipóteses à razão da His-
tória. O desafio poetológico frente ao plano histórico levou à
unidade interna, ao “sistema” da História. O postulado por uma
moral da História levou à justiça do processo histórico. Para os
contemporâneos, ambas as respostas foram resultado de reflexões
filosóficas sobre a Historie. A expressão em si (“la philosophie de
Phistoire”) vinha de Voltaire, que, em 1765, publicara — sob o
pseudônimo de Abbé Bazin — um escrito com esse título, que logo
teve várias edições e reimpressões.** Três anos depois, surgiu, em
tradução de Johann Jacob Herder, para o alemão, Die Philosophie
der Geschichte [A filosofia da Histéria].*¢ O desafio contido no
desdobramento do novo conceito foi resumido pelo editor alemao
na seguinte observagio: ele nio lembraria “de nenhum livro em
que se encontrariam tantas obje¢des a fé historica na Sagrada Es-
critura quanto na Filosofia da História”.º*” E, em notas de rodapé
que eram mais extensas que o proprio texto de Voltaire, procurou
refutar os ataques a Biblia, à Histéria da criagdo e a fé histérica
na providéncia. A “Filosofia da histéria”, de fato, no inicio, foi
um conceito polémico — se voltava criticamente contra a fé nas
Escrituras, e metafisicamente contra a providéncia divina, que,
segundo a interpretagio teoldgica, criava a conexao interna da
História. Voltaire se encontrava na esteira de Simon, Spinoza ou
de Bayle, dos pirronistas e racionalistas, retomando os desafios
apresentados por estes contra a Teologia.

* Adolf Hitler, na palavra final antes da leitura da sentenga, em 24 de margo de 1924. In: Der
Hitler-Prozess vor dem Volksgericht in Múnchen (parte 2). Munique, 1924, p. 91.
* BAZIN, Abbé (= Voltaire). La philosophic de Uhistoire (Amsterdam, 1765). Genebra, 1963
(editado porJ. H. Brumfity).
* Die Philosophic der Geschichte des verstorbenen Herrn Abtes Bazin. Leipzig, 1768 (versio alemã de
Jph. Jacob Harder).
* Ibid., Vorbericht.

151
O CONCENO DE HisTÓRIA

No mesmo ato, a Hisforie se via provocada. Pois, se o plano


divino deixava de existir, a Historie se via obrigada a desenvolver
interconexdes, que — caso existissem — deveriam derivar da propria
Histéria. “La philosophie de Ihistoire est fondé sur les modifications et
Vordre sucessif des faits mémes” — como formulou Wegelin, quando,
nos anos de 1770 a 1776, apresentou sua Philosophie de I’histoire à
Academia de Berlim.**® Tratava-se de conseguir interpretar de
forma filosoficamente consistente a multiplicidade e a sucessao
de realidades históricas, eliminando o acaso e os milagres, através
de fundamentagdes racionais. Para cumprir essa tarefa, a Historie
se serviu cada vez mais de hipoteses, que possibilitavam superar
lacunas no conhecimento dos fatos e tirar conclusoes sobre o des-
conhecido a partir do conhecido. Importava — como disse Wegelin,
recorrendo a uma metáfora de Bacon — consertar e complementar
“um quadro meio apagado”, ou “uma coluna danificada, a partir
de algumas partes originais”. O pressuposto teórico da “pesquisa”
histérica consistia em “diferenciar entre a ciéncia historica possi-
vel e a verdadeira”.*®” Com isso, também aqui — em acordo com a
hierarquia aristotélica — a Historie se aproximou da Filosof
No seu Discours, de 1754, sobre a origem da desigualdade
humana, Rousseau havia elaborado uma histoire hypotétique, cujas
‘onjectures se transformam em motivos racionais, “quand clles sont
es plus probables qu'on puisse tirer de la nature des choses”. Constitui-
ria tarefa da Historie estabelecer relagdes entre os fatos, “c'est à la
philosophie à son défaut, de determiner les faits semblables qui peuvent les
lier” 9 Gragas a essa ligação entre Filosofia e Historia, no século
XVIII a doutrina do Direito natural foi historicizada. Era preciso
se certificar da natureza da Histéria, para conseguir entender in-
terconexdes, sem precisar recorrer a razdes ou fins supra-historicos.
Nesse sentido, estamos diante de uma fundamentagio antropologica

¥ WEGELIN, Jakob. Surla philosophie de I'histoire. Noveaux memoires de I'Académie royale, ano
1770. Berlim, 1772, p. 362.
3% WEGELIN. Jakob. Briefe (cf. nota 288), p. 4; a respeito, cf. BACON, Francis. The advancement
of learning2, 2, 1 e segs. In: Works (vol. 1) (reimpressio de 1963), p. 329 e segs.
* ROUSSEAU. Discours sur l'origine et les fondemens de I'inégalité parmi les hommes. In:
Oeuvres complétes (¢. 3), 1964, p. 127, 162 ¢ seg.

152
'À CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

da História, quando Iselin — um ano antes do escrito de Voltaire —


editou, em 1764, suas Philosophische Mutmassungen iiber die Gechichte
der Menschheit [Conjecturagdes filosoficas a respeito da Histéria
da humanidade].*" E quando Iselin tentou explicar a Histéria
humana, de forma progressiva, a partir de motivagées internas,
admitiu, de forma sincera: “As revolugdes que descrevemos neste
livro constituem, no entanto, muito mais hipéteses filosoficas que
verdades histéricas”.>
Independentemente de a providéncia divina ou um plano na-
tural continuarem a agir nos bastidores, foi a coragem de formular
hipóteses que permitiu a elaboragio filoséfica de uma nova Histéria.
Os historiadores e filésofos morais escoceses, que haviam escrito
as historias universais [Universalgeschichten) sobre a surgimento do
mundo moderno, numa linha histérico-social e pratica, também
formularam esta premissa®”: “In examinating the history of mankind,
as well as in examining the phenomena of the material world, when we
cannot trace the process by which an event has been produced, it is often of
importance to be able to show how it may have been produced by natural
causes... To this species of philosophical investigation, which has no appro-
priated name in our language, I shall take the liberty of giving the title of
Theoretical or Conjectural History, as employed by Mr. Hume, and with
what some French writers have called Histoire Raisonée™.***
Também na Alemanha, foi esse “eterno burilar uma teoria da
Histéria” — de que foi acusado Gatterer”* — que clareou os princi-
pios racionais de construgio necessirios para o conhecimento do
mundo histérico. Friedrich Schlegel resumiu o status de reflexão
cientifico-teérica que havia sido alcangado em torno de 1800,

¥ ISELIN, Isaak. Philosophische Muthmassungen. Ueber die Geschichte der Menschheic. Frankfurt/
Leipzig, 1764. 2. Aufl.: Ueber die Geschichte der Menschheit (2. vols). Zurique, 1768.
Y2 ISELIN, Ueber die Geschichte der Menschheit (vol. 1), p. 201.
" MEDICK, Hans. Naturzustand und Naturgeschichte der birgerlichen Gesellschaft. Góttingen, 1973,
p. 137, 190, 203, 306 e segs.; a respeito da história da palavra “history”, cf. ibid., p. 154 e seg.
(nota 55), 200 (nota 84).
* STEWART, Dugald. Account of the life and writings of Adam Smith (1793). In: HAMILTON,
William (Ed.). Collected Works (vol. 10). Edimburgo, 1858, p. 34.
5 [Anônimo]. Schreiben aus D... an einen Freund in London úber den gegenwirtigen Zustand
der historischen Litteratur in Teutschland. Der Teutsche Merkur, vol. 2, 1773, p. 253. Agradego
a Júrgen Voss pela indicagio.

153
O CONCEITO DE HisTORA

da seguinte forma: “Ja que se fala tanto contra hipoteses, estd na


hora de alguém, um dia, tentar comegar a Histéria sem hipoteses.
Nio se consegue dizer que alguma coisa é, sem dizer o que ela
é. Enquanto se pensa neles, os fatos já sio referidos a conceitos, e
nao é indiferente a que conceitos eles sio referidos”. Quem abriria
mão da reflexão teorica ficaria entregue a uma escolha aleatoria, se
vangloriaria de “possuir solida empiria pura totalmente a posteriori”,
mas estaria perseguindo, de fato e sem percebé-lo, “uma visio a
priori, muito unilateral, muito dogmatica e transcendental” — foi
396
assim que Schlegel retomou a cr a kantiana.”* Na formulag¢io
de hipéteses, foram unificadas demandas cientifico-teoricas es-
pecificas da disciplina com reflexdes transcendental-filosoficas.
Assim, a “primeira pergunta” que o jovem Schelling fazia “a uma
Filosofia da História” foi a seguinte: “como uma Historia como tal
[Geschichte iiberhaupt] seria imaginavel,já que, se tudo aquilo que &,
para cada um, só é posto através de sua consciéncia, também toda
a Historia passada, para cada um, só pode ser posta através de sua
consciéncia”.>
A partir da Filosofia da consciéncia, o Idealismo alemio de-
senvolveu Filosofias da Historia que incorporaram os pressupostos
até aqui descritos da época do Iluminismo, e as sintonizaram entre
1. A unidade de sentido estética das representagdes historicas, a
noral atribuida ou buscada na Histéria e, finalmente, a construgio
racional de uma Historia possivel — todos esses fatores foram articu-
lados numa Filosofia da Histéria, que acabou estatuindo a “própria
Histéria” [Geschichte selber] como racional, e a reconhecia como
racional. Aquilo que Kant ainda havia formulado como postulado
moral, e elaborado de forma hipotética, foi compreendido agora
como emancipagio do Direito ou do Espirito ou da Razio, e de
suas ideias no processo da Historia. Schelling disse mais adiante:
“A Histéria como um todo é uma revelagio progressiva, que se

% SCHLEGEL, Fricdrich. Atheniunts-Fragment Nr. 226. In: Sâmiliche Werke (1* seção, vol. 2),
1967, p. 201 e seg.
7 SCHELLING. System des transzendentalen Idealismus 4,3 (1800). In: Werke (vol. 2), 1965, p.
590; a respeito, cf. MOLITOR, Franz Joseph. Ideen zu einer kiinfiigen Dynamik der Geschichte.
Frankfure, 1805.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

vai mostrando aos poucos”.>”® “No conceito da História, [estaria


contido] o conceito de uma progressividade infinita”, que age no
sentido “de acelerar o progresso da humanidade na construção de
uma concepção geral do Direito”. Por isso, em 1800, Schelling se
deu por satisfeito com o fato de que “o único objeto verdadeiro da
Historie só pode ser o surgimento gradativo da constituição civil
universal, pois exatamente este é o único motivo de uma História”;
toda e qualquer “outra História” seria puramente “pragmática”.””?
Depois que a Filosofia havia sistematizado a História, essa
História podia retroagir sobre a Filosofia e compreendê-la histo-
ricamente. Para Fichte — em 1794 —, “a Filosofia... [era] a História
sistemática do espírito humano em suas formas gerais de agir”.*º
Assim, “por motivos racionais, mediante o pressuposto de uma
experiência como tal, antes de qualquer experiência determinada
anterior, [se poderia] calcular a marcha do gênero humano”. Como
filósofo, seria possível mostrar quais são os degraus de cultura que
uma sociedade deve percorrer, como historiador se estaria perscru-
tando a experiência para saber que degrau, em determinado tempo,
teria sido efetivamente alcançado. Constituiria tarefa simultânea
dos filósofos e dos historiadores reconhecer os futuros meios de
satisfação das necessidades.**'
Para Hegel, a convergência de Filosofia e História fora inte-
gralmente alcançada. O autodesdobramento do Espírito se reali-
zaria tanto na Histéria quanto na Filosofia — e isso se mostraria
também na historiografia. Tanto em sequéncia sistemdtica quanto
em diacronica, Hegel classificou a escrita da Historia em trés tipos:
a original, a refletida e a filosofica.!” Nesse aspecto, ainda não se
distinguiu de seus predecessores, quando, para ele, “a Filosofia da
Historia não [era] outra coisa que a apreciação pensada da mesma”.
Era decisiva “a simples ideia da razio de que também na Hist6ria

** SCHELLING, System..., p. 603.


*” Ibid., p. 591 e seg
0 FICHTE. Uber den Unterschied des Geistes und des Buchstabens in der Philosophie. In:
Akademic-Ausgabe (vol. 2/3), 1974, p. 334.
*% FICHTE. Einige Vorlesungen iiber die Bestimmung des Gelehrten (1794). In: Akademie-
Ausgabe (vol. 1/3), 1966, p. 53.
42 HEGEL, Die Vernunft... (cf. nota 236), p. 4.

155
O concerto De HistóRIa

mundial as coisas aconteceram de forma racional. Essa convicção


e esse reconhecimento constituem um pressuposto decorrente da
apreciação da História como tal” [Geschichte iiberhaupt].**> Com isso,
“a História”, como coletivo singular de todas as Histórias indivi-
duais, não é apenas resultado de reflexão racional, mas ela própria
constitui a forma em que se manifesta o Espírito, que se desdobra
no trabalho da História mundial. “Esse processo de ajudar o Espírito
a chegar a si mesmo, a seu conceito, é a História”.*** Do ponto de
vista de seu conteúdo, esse processo constitui uma continuidade
no desenvolvimento da liberdade, que se concretiza na humanida-
de. Evidentemente, para si mesmo, o Espírito, que se exterioriza
nas suas formas de manifestação históricas, permanece igual. Sua
concretização crescente no tempo não se perde no infinito de um
futuro ou de um passado, mas constitui sempre tempo realizado.
Por essa razão, Hegel também compreende a História como
“uma História que ao mesmo tempo não o é, pois os pensamentos,
os princípios, as ideias que temos diante nós, são algo presente...
Algo histórico, isto é, o passado como tal não existe mais, está
morto. A tendência histórica abstrata de se ocupar com objetos ina-
nimados difundiu-se muito, nos tempos mais novos ” — acrescentou
ele. “Mas se uma determinada era trata tudo historicamente, e,
portanto, só se preocupa com o mundo que não existe mais, isto
é, quando só se frequentam cemitérios, então o Espírito acaba com
ua própria vida, que consiste em pensar a si mesmo”.“º Hegel,
ao reunir no seu pensamento a unicidade de qualquer situa
com a determinação de toda a História como História da razão,
antecipou a crítica dquele Historicismo que não mais podia lidar
com essa tensão, e se recolheu para o tempo perdido do passado.
Por outro lado, a Filosofia da História do Idealismo alemão
— com base nas suas premissas iluministas — forneceu a estrutura
duradoura da qual a Escola Histórica não conseguiu mais desven-
cilhar-se, independentemente de sua crítica ao caráter especulativo

43 Ibid., p. 25.28.
44 Ibid., p. 72; cf. H?GEL. Einleitung in die Geschichte der Philosophie. Hamburgo, 1959 (reimpresso de
1966), p. 111 (editado por Johannes Hoffmeister, 3. Aufl. Resumida; e por Friedhelm Nicolin).
05 HEGEL, Einleítung..., p. 133 ¢ segs.

156
/A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTORIA

da Filosofia da Histéria. Gragas ao transcendentalismo, a “História”


se transformou em conceito de uma religido secular da consciéncia,
que continuava a atribuir à Histéria, como revelagio do Espirito,
as estruturas de uma teodiceia, “pois — como escreveu Novalis** —
toda a Historia é Evangelho, tudo aquilo que é divino possui uma
Historia”' “Deixa que eles meçam e pesem — assegurou Droysen
—, nosso negdcio é a teodiceia”.!”® Essa Historia produziu um ex-
cedente de fundamentagio para toda a experiéncia ja vivida e para
aquela ainda a ser vivida. Também as reservas metodolégicas da
Escola Histérica não conseguiam se opor a que toda ação dentro da
Historia, desde então, fosse compreendida como ação para a Historia,
para uma Histéria que atribuia a todo ato de fazer um objetivo, e a
todo sofrimento um sentido. A nação como portadora do Espirito
do mundo; a politica como realizagio de ideias e de tendéncias,
forgas ou poderes; o fim inerente a todo acontecimento de executar
o Direito; a “astúcia da razão” de Hegel; a concretizagio da liber-
dade humana ou da igualdade ou da humanidade no transcurso dos
acontecimentos — todos esses topoi da linguagem social e politica
tentaram, pelo final do século XVIII, incorporar o contetdo “da
Historia como tal” [Geschichte iiberhaupt] em seu conceito.
Em 1830, Karl Heinrich Hermes constatou retrospectiva-
mente que só então — assim como a verdadeira ciéncia da natureza
— também a ciéncia da Histéria estaria começando. O “conceito
de Historia” até agora utilizado seria imprestavel e tautolégico:
“A Historia é a representação de acontecimentos curiosos, apa-
rentemente, nio significa outra coisa que a Histéria é a Historia...
Somente com os mais recentes progressos na ciéncia do Espirito
conseguimos penetrar mais profundamente no significado da His-
téria; somente através de Fichte, Schelling e Hegel descobrimos
aquilo que antigamente só era intuido por rarissimos espiritos, isto
é, que Historia é o desenvolvimento do Espirito na humanidade, e

¢ NOVALIS, Fragmente und Studien 1799-1800, Nr. 214. In: Gesammelte Werke (vol. 3), 1968,
p. 586
* Novalis. Die Lehrlinge zu Sais. Gesammelte Werke (vol. 1), 1960, p. 99.
* Johann Gustav Droysen, em carta a Wilhelm Arendt, de 30 de setembro de 1854, In:
HUBNER, Rudolf (ed). Brigfivechsel (vol. 2). Stuttgart/Berlim, 1929, p. 283.

157
O concerto DE HisTÓRIA

cabe agora a nós — depois desse reconhecimento — montar, a partir


do material bruto que até agora nos foi oferecido com o nome de
História, o edifício científico da História”“
d) Resultados da guinada histórico-filosófica ao tempo da
revolução. As Filosofias idealistas da História tentaram fundamentar
a unidade da História em sua extensão temporal e no modo de sua
movimentação. “Evoluções progressivas, sempre crescentes, são a
matéria da História” (Novalis).*"º* “Aquilo que não é progressivo
não é objeto da História” (Schelling).“"" Ainda que se especulasse
sobre o início e o destino da História mundial, isso sempre acontecia
com vistas a um diagnóstico sobre o próprio tempo. Só então o
conceito de “História” se tornou capaz de preencher, para além de
qualquer método científico, o espaço antes ocupado pela religião
eclesiástica, só então o conceito estava apropriado a trabalhar com
as experiências da revolução. Vamos citar três critérios que foram
decisivos para a liberação de um novo tempo, que, na reflexão
histórico-filosófica, levou ao novo conceito de “História”
Primeiro, a Filosofia idealista da História introduziu o axioma
do caráter único [Einmaligkeif], sobre o qual se baseavam tanto o
“progresso” quanto a Escola Histórica. A soma das histórias indi-
viduais foi elevada à unidade da própria História [Geschichte selbst],
que é única, por natureza. Essa concepção, que tentava dar conta
da experiência da Revolução Francesa, fez com que inicialmente a
análise causal pragmática do Iluminismo fosse relativizada. Schlzer
ainda havia destacado, de forma aditiva e mais quantificante, que o
conceito de História, “no seu significado mais nobre, ... [incluiria]
o conceito secundário de completude e de interconexão ininterrup-
ta”. Essa História se transformaria em “Filosofia” quando “sempre
vincula efeitos a causas”."? Mas se a História sempre é única, isto

*” HERMES, Karl Heinrich. Blicke aus der Zeit in die Zeit. Randbemerkungen zu der
Tagesgeschichte der letzten fiinfundzwanzig Jahre (vol. 1). Braunschweig, 1845, p. 11. Trata-se
de uma preleção dada em Munique, no verão de 1830, sobre a Revolução Francesa.
“ NOVALIS. Die Christenheit oder Europa (1799). In: Gesammelte Werke (vol. 3), p. 510.
' SCHELLING. Aus der “Allgemeinen Ubersicht der neuesten philosophischen Literatur”. In:
Werke (vol. 1), 1958, p. 394.
2 SCHLOZER, August Ludwig, Fortzetzung der allegmeinen Welthistoric (vol. 31). Halle, 1771,
p. 256; SCHLOZER, August Ludwig. WeliGeschichte nach ihren Haupt Theilen im Auszug und
Zusammenhange (vol. 1). 3. Aufl., Góttingen, 1785, p. 8.

158
/A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO D€ HISTÓRIA

€, se na Histéria sempre acontece algo mais ou algo menos daquilo


que estd contido nas preliminares, entio nenhuma anilise cau-
sal consegue dar conta da singularidade de uma situagio. Numa
formulagio de Creuzer, se lê o seguinte: “O Espirito procura por
uma unidade que está acima do proprio nexo causal... Somente
essa unidade pode ser chamada de histérica... ou de unidade de
uma ideia”.*®
Herder, Hegel e Humboldt, cada um a seu modo, descartaram
como banal a abordagem pragmitica, que busca causas e efeitos — a
liberdade se perderia na necessidade. Com isso, o abandono de um
nexo causal entendido de forma mecinica — baseado em fatores
que, por natureza, são iguais — levou a visualizagio de um tempo
histérico que é inerente a todos os fatores e, com isso, os qualifica
de forma historicamente diferente. Nunca é indiferente “quando algo
aconteceu, ou teria acontecido, ou ird acontecer”, disse Herder. “Na
verdade, toda coisa mutável tem em si a medida de seu tempo; essa
medida existe mesmo se nio existisse outra; não existem duas coisas
que tivessem a mesma medida do tempo... Portanto (pode-se dizé-
lo de maneira sincera e audaciosa), no universo existe, a0 mesmo
tempo, uma infinidade de tempos”. Com isso, Herder resumira,
numa férmula, a vivéncia basica da modernidade, na qual estio
contidos tanto o “progresso” quanto a “Histéria™", formula que
quase o assustou — a contemporaneidade do nio contemporineo
ou a nio contemporaneidade do contemporineo. Por isso — como
Herder aventou contra a determinagdo kantiana do tempo como
pura forma de concepgio interna —, o tempo seria “um conceito
de experiéncia”.*® Ou, como Novalis deduziu de forma aforistica:
“O tempo é o historiador mais seguro”."®

* CREUZER, Georg Friedrich. Die historische Kunst der Griechen in ihrer Entstehung und
Fortbildung. Leipzig, 1803, p. 230 e nota 37.
44 Cf. o verbete “Fortschritt” [progresso], no vol. 2, p. 355 e segs. [de Geschichliche Grundbegriffe.
Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, no qual esti também o
presente texto (N.T)]
*5 HER DER., Verstand und Erfahrung, Eine Metakritik zur Kritik der reinen Vernunft, 1* parte
(1799). In: Samiliche Werke (vol. 21), 1881, p. 59
* NOVALIS. Das Allgemeine Brouillon (1798/99), Nr. 256. In: Gesammelte Werke (vol. 3),
p. 286.

159
O concerto pe HisTóRIA

Herder também introduziu o conceito de “força” [Kraft] na


reflexdo sobre a Histéria, que, em sua orientação temporal, igual-
mente escondia dentro de si a capacidade para a individuagdo, para
a unicidade histérica. Dos impulsos mecanicistas de eventuais ra-
zdes psicologicas constantes se originaram forças dinimicas.*"” Essa
perspectiva foi utilizada por Humboldt para criticar outro legado
do Tluminismo — as determinagdes finais da Historia. “A assim
chamada Historia filosofica” — de Schiller, por exemplo*® — ante-
poria a Historia “um objetivo, como se fosse um adendo estranho.
Não se deve perscrutar as causas flnalS, mas as que movimentam;

não se deve enumerar acontecimentos antecedentes dos quais sur-


giram os posteriores; deve-se comprovar as forças às quais ambas
devem sua origem”. Ali onde caberia avangar “até as forcas agentes
e criadoras”, ndo bastaria mais o recurso a anilise causal — que,
em tese, é admissivel e necessiria. Em altima instincia, as forças
estdo enraizadas nas “ideias” que sio orientadoras e “perpassam ...,
como produgio de forca, a Historia mundial” [Weltgeschichte]. Mas
nao seria possivel “derivi-las de circunstincias concomitantes”.*”
Assim, de Historia — como conceito transcendental de refle-
xão — surgiu um conceito reflexivo. Na formulagio de Novalis: “A
Historia se produz a si mesma”.2’ A incomparabilidade, a unicidade
de situagdes historicas concretas — também efeito da Revolugio
Francesa — levou a Histéria criadora, produtiva.
Com isso, em segundo lugar, se modificou o potencial prog-
nosticador das velhas Historien. Sua tarefa tradicional de servir de
mestra para a vida deixou de existir tão logo nio foi mais possivel
comprovar situagdes analogas das quais se pudesse tirar conclusdes

*” Cf. o posficio de Hans-Georg Gadamer a Herder: Auch eine Philosophie des Geschichte zur Bildung
der Menschheit. Frankfurt, 1967, p. 146 e segs., em especial p. 163 ¢ segs
** Cf. SCHILLER. Was heisst und zu welchem Ende studiert man Universalgeschichte? In:
Schiller-Ausgabe (vol. 13), s. d., p. 20 e seg: “O espirito filosófico ... produz uma causa racional
para o transcurso do mundo e um principio telcolégico para a Historia do mundo” — se esse
enfoque se confirma ou é refutado, isso ficaria em aberto, também quando a vontade de acelerar
o futuro traz dificuldades ao homem para sua concretização.
*” HUMBOLDT. Betrachtungen iiber die bewegenden Ursachen in der Weltgeschichte
(1818). In: Akademic-Ausgabe (vol. 3), 1904, p. 360; HUMBOLDT, Uber die Aufgabe des
Geschichtschreibers (cf. nota 153), p. 46 e seg,, 51 ¢ sega
420 NOVALIS. Fragmente und Studien 1799-1800, Nr. 541. In: Gesammelte Werke (vol. 3), p. 648.

160
À CONFGURAÇÃO () MODEENO CONCITO BE SÕA

comportamento, Sehlózer, cujas análises causais ha-


viam “despido” « : & ? W
M “aespido” todos os acontecimentos “de qualquer casualidade”,
unda partia do pressuposto “de que não acontéce mais
novo sob o sol”.**' Dessa concepção de que havoria facores
s, é que derivavam o caráter pedagógico da História e
te do comportamento político*
derivou da mesma premissa — da constância dos
acteitos” — a conclusão oposta: “que às coisas fi-
mpre foram™, motivo pelo qual não se pode prever
mportamento levaria à “inanição”, ¢ todo o esfore
osófico de Kant visava a fundamentar uma previsio de
tória da humanidade”, no futuro, seria diferente — ¢ fsso
melhor. Se toda a História ¢ única, também o futuro

. a Filosofia da História levou a uma reversão do f


Do prognóstico pragmático de um futuro possível, s
a expectativa de longo prazo sobre um novo futuro, que deveria
determinar o comportamento. Essa nova determinagio tenporal
teve reflexos sobre o conceito de História: transformou-se tumbeém
num conceito de ação. Evidentemente, à frase muitas veses citada
de Kant de que o homem pode prever o8 acontecinieitos que e
mesmo desencadeia, continha uma conotagio irônica, 10 se vl
tava contra o ancien régime, o qual, com sua política anti B
estaria, ele proprio, produzindo as consequências que Bt temia.
Kant era mais cuidadoso nas suas medições da EHistória cuno nx
paço de ação moralmente determinável, À sua Pegunta e é
possível uma História a príori”, deu i respuosta apenas dmdbreia,
pois aquilo que os homens devem fazer eles não 6 D, e fn
alguma. Simultaneamente, enxergava i vl nl Hente A B
volução Francesa um “sinal da Flistória” (st e,
demonstrativum, prognostikon”), que ndiar i para i Pt bt g vl
a0 progresso. Desde então, comlbderava ventho que sl

2 SCHLOZEI, WeltCiosdiidim (vl 1, 3 ÁBA i


2 KOSEL| SO K, Histarna magisto i G0 nea 800 s á ipee e
2 KANT, Idee.., (06 yoka 360), b Akt Ausgabe ol 6) p 44

141
o
O conceTo D HisTóRrIA

através da experiência repetida” levaria os homens a promover


uma constituição na qual, em consonância com o plano natural,
vigorariam a liberdade e o Direito.*?* Enquanto Kant criticava
os teólogos naquilo que tange ao passado, dizendo que “é uma
superstição” a afirmação de “que a fé na História é um dever e
que leva à bem-aventurança”, ele próprio investigou o futuro da
Histéria com intenções praticas, como sendo planificável.* “Vê-
se: a Filosofia também pode ter seu quiliasmo”?
Assim, o tratamento histórico-filosófico da Revolução France-
sa conduziu a um novo alinhamento entre experiência e expectativa.
A diferença entre todas as Histórias até aqui e a História do futuro
foi temporalizada num processo em que se torna dever do homem
intervir com sua ação. Com isso, a Filosofia da História deslocou
de forma fundamental a antiga importância da Historie. Desde o
momento em que o tempo adquirira uma qualidade histórico-
dinâmica, não foi mais possível — como se fosse um retorno natural
— aplicar as mesmas regras de antigamente ao presente, regras que
tinham sido elaboradas de forma exemplar até o século XVIIL. “A
Revolução Francesa foi, para o mundo, um fenômeno que pare-
ia zombar de toda a sabedoria histórica, e diariamente foram se
senvolvendo a partir dela novos fenémenos, a respeito dos quais
u cada vez mais dificil buscar respostas na História” — escreveu
sltmann, em 1799, para tentar fazer algo em sentido inverso.”??
Em consequéncia — em terceiro lugar —, também a importincia
do passado na Histéria se modificou. A Historia temporalizada e
processualizada como unicidade permanente nio podia ser mais
aprendida de forma exemplar — “portanto, o objetivo diditico é
incompativel com a Historie”. A Historia deveria, muito mais — como
continuou Creuzer —, “ser encarada e explicada de forma nova por
cada nova geragio da humanidade que estd em progressão”.** A

*% KANT. Streit der Fakultiten (cf. nota 297), $ 2. In: Akademie-Ausgabe (vol. 7), p. 81 ¢ seg., 79
€ scg., 84, 88,
5 [bid., § 1, p. 65.
*% KANT, Idee..., 8. Satz. In: Akademic-Ausgabe (vol. 8), p. 27; cf. KANT, Streit der Fakultiten,
p. 81.
* WOLTMANN, Karl Ludwig (ed.). Geschichte und Politik. Eine Zeitschrift. Berlim, 1800, p. 3.
% CREUZER, Historische Kunst (cf. nota 413), p. 232 ¢ seg.

162
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

elaboração do passado se transformou em um processo de educação


que progredia junto com a História, e que, por sua vez, tinha efeitos
sobre a vida. E, nesse processo, a revolução, em sua classificação
histórico-filosófica, ocupou o lugar das Histórias que vigoravam
até então. Nas palavras de Górres: “Todo presente deve apostar
em si mesmo, pois ele mesmo sabe aquilo que melhor lhe agrada e
serve... A História consegue ensinar pouco a vocês. Mas se vocês
querem aprender com ela, tomem a revolução como mestra, [já
que] o andar preguiçoso de muitos séculos acelerou-se com ela,
para se transformar num ciclo de anos”.**?
A aceleração, que na época foi reiteradamente destacada, cons-
titui um indício seguro da existência de forças imanentes à His-
tória, as quais dão origem a um tempo histórico próprio e pelas
quais a Era Moderna se distinguiria do passado. Para dar conta da
unicidade de toda a História e da distinção entre passado e futuro,
importava reconhecer a História como um todo, a realidade, seu
transcurso e sua direção, que leva do passado ao futuro. Os esforços
dos filósofos da História se concentravam na solução dessa tarefa.
Na tentativa de cumprir essa tarefa, a velha Historie perdeu sua
utilidade, que consistia em recuperar os achados do passado para
a situação contemporanea. Hegel dizia: “Aquilo que traz algum
ensinamento na História é algo diferente das reflexões dela deri-
vadas. Nenhum caso é totalmente semelhante ao outro... Aquilo
que a experiência e a História ensinam é que povos e governos
nunca aprenderam com a História nem agiram de acordo com os
ensinamentos que ela poderia ter fornecido”.* Do diagnóstico
de Hegel se pode deduzir teoricamente o lugar das novas ciências
históricas. Como ciência do passado, ela só poderia ser praticada
por si mesma — a não ser que ela, pela via da formação histórica,
interfira de forma direta na vida.
Humboldt deduziu desse diagnóstico exatamente a mesma
coisa. Também a História na compreensão da Era Moderna seria
“aparentada da vida ativa”, pois ela não prestaria mais seu serviço

@ GORRES, Joseph. Teutschland und die Revolution (1819). In: Gesammelte Schriften (vol. 13),
1929, p. 81.
9 HEGEL, Die Vernunft... (cf. nota 236), p. 19.

163
O CONCENTO DE HISTÓRIA

“através de exemplos individuais para aquilo que deve ser seguido


ou evitado, pois [esses exemplos], muitas vezes, induzem a erros, e
raramente ensinam alguma coisa. Sua verdadeira e incomensuravel
utilidade está muito mais em avivar e esclarecer o sentido para lidar
com a realidade a partir da forma inerente ao acontecimento do que
através de si mesma”.**! Em termos modernos: existem estruturas
formais que se mantém ao longo dos acontecimentos, condições
para Histérias possiveis, cujo conhecimento antes se refere a pratica
do que o conhecimento das condições.
Dessa forma, a Filosofia da Histéria explorou um moderno
espago de experiéncia através do novo alinhamento de passado e
futuro, através da qualidade histérica que o tempo adquirira — e é
dai que toda a Escola Histérica, desde então, busca inspiragio. A
unicidade das forgas e das ideias, das tendéncias e das épocas que
se produziam a si mesmas, mas também dos povos e dos Estados,
ndo podia ser neutralizada através de nenhuma critica de fontes. Era
natural que, quanto mais bem-sucedido fosse o método historico-
critico em derivar fatos duros do material encontrado nas fontes,
-anto mais forte se tornava a critica a especulagio historico-filo-
sófica, de cujas premissas tedricas a Escola Histérica, não obstante,
continuava a se nutrir. Por isso, Ferdinand Christian Baur podia
dizer, com razio, em 1845: “Com essa assim chamada critica das
fontes, por si só, se avangou muito pouco, enquanto não se reco-
nheceu que a Histéria como tal [Geschichte iiberhaupt] é crítica”.
Na Histéria, aconteceria uma mediação entre passado e presente,
mas somente na medida em que o sujeito teria consciéncia critica
dessa mediagdo. Só então o “processo historico externo” se trans-
forma num “processo mental, através do qual o homem chega ao
conhecimento de sua esséncia. Pois, para saber que ele é, precisa
saber “como chegou a ser”. A critica é que permite relacionar a
objetividade da Historia e sua elaboragio subjetiva. “Na critica, a
Historia por si só se transforma na Filosofia da Historia”. "

* HUMBOLDT, Die Aufgabe des Geschichtschreibers, p. 40.


42 BAUR, Ferdinand Christian. Kritische Beitrige zur Kirchengeschichte der ersten Jahrhunderte,
mit besonderer Riicksicht auf die Werke von Neander und Gieseler. Theologische Jahrbiicher, n.
4, 1845, p. 207 e seg.

164
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

3. A “História” se define como conceito

A História narrativa, o ato de contar [Erzãáhlung], encontra-se


entre as formas mais antigas de interação humana, e isso ela continua
sendo até hoje. Nesse sentido, seria possível considerar “História”
como um conceito fundamental permanente da sociedade, em
especial da sociabilidade. Se, no século XVIII, “a História” — cuja
fundamentação terminológica e teórica tentamos conhecer até
aqui — foi configurada como conceito fundamental da linguagem
social e política, isso aconteceu porque o conceito adquiriu o status
de princípio regulador de toda experiência e expectativa possível.
Com isso, se modificou a importância da “Historie” como ciência
propedêutica — como se pretende mostrar de forma esquemática,
a seguir: “a História” foi abarcando de forma crescente todos os
âmbitos de vida, enquanto simultaneamente ia sendo guindada à
posição de uma ciência central.
As eruditas árvores genealógicas, que desde o Humanismo
foram classificando todas as áreas do saber da historia e ordenando-as
num espaço que admitia algumas variações, utilizavam invariavel-
mente os mesmos esquemas classificatórios: em primeiro lugar, a
historia foi estruturada temporalmente, de acordo com os quatro
impérios, por exemplo, ou então (forma popularizada desde Celário)
como História antiga, medieval e moderna”**; em segundo lugar,
a historia foi classificada em áreas, quando a tripartição em historia
divina, civilis, naturalis se tornou a mais usual — ainda que crescen-
temente questionada, desde Bacon; em terceiro lugar, a historia
foi determinada por critérios formais, como historia universalis ou
specialis; em quarto lugar, segundo formas de representação, sendo
definida, por exemplo, como arte narrativa ou descritiva. É evidente
que cada uma dessas redefinições nesses esquemas tivesse reflexos
sobre os outros, na medida em que todas as afiliações da historia se
encontravam numa relação sistemática entre si.

F o verbete “Zeit, Zeitalter” [Ao contrário do que previa Koselleck nesta nota, o verbete sobre
“tempo” e “época” não apareceu nos Geschichtliche Grundbegriffe, nem foi por ele publicado 3
parte posteriormente (nota do revisor técnico)].

165
O CcONCETO De HistTóRIA

A configuração da História como conceito que está na base de


tudo pode ser mostrada à mão de três processos: [primeiro], na elimi-
nação da historia naturalis do cosmos histórico, fato que, no entanto,
trouxe consigo a historicização da “História Natural”; segundo, na
fusão da historia sacra com a História Geral; e, terceiro, na conceitu-
alização da História mundial [Weltgeschichte] como ciência-mestra,
que transformou a antiga Historia universal [Universalhistorie] .
a) Da “historia naturalis” para a “História da natureza”
[Naturgeschichte]. Conhecimentos histéricos foram considerados,
até o século XVIII, como pressuposto empirico de todas as ciéncias,
assim que Heckermann podia afirmar que devem existir tantas
Historien quantas são as ciéncias.** Como conhecimento geral das
experiéncias, a Historie tratava do individual, do especifico, enquan-
to as ciéncias e a Filosofia visavam ao geral. Jônsio escreveu que se
saberia que “ fundamentum omnis scientiae esse historiam, observationes,
exempla, experientiam, e quibus tanquam singularibus, scientia universa-
les suas propositiones format”**, ou, como escreveu, de forma mais
enfética, Johann Mathias Gesner, em 1774: “Ita Historia est quase
civitas magna, ex qua progrediuntuy omnes aliae disciplinae”.***
Dentro desse campo de experiéncia, ainda era óbvio que o
conhecimento sobre a natureza fosse parte tio integrante da His-
forie quanto o conhecimento sobre os homens e suas agdes. Assim,
Johann Georg Biisch — com base nos modelos de Reimaro — ini-
ciou em 1775 sua Encyclopadie der Wissenschaften [Enciclopédia das
Ciéncias] com o primeiro livro: “Da Historie como tal [iiberhaupt]
e, em especial, da Historia da natureza... Historic ou Geschichte
[Historia] denominamos todas as noticias daquilo que efetivamente
é ou efetivamente foi”.**” Essa Historie, como um saber sobre a rea-
lidade, era uma ciéncia de experiéncias que, naquilo que tange ao

94 MENKE-GLUCKERT, Emil. Die Geschichtsschreibung der Reformation und Gegenreformation.


Osterwick/Harz, 1912, p. 131.
* JONSIUS, Johannes. De scriptoribus historiac philosophicae. 2. Aufl., Jena, 1916; reimpresso
Diisseldorf, 1968, p. 2 (editada por Johann Christoph Dorn).
4% GESNER, Johann Matthias. Isagoge in eruditionem universalem (c. 1). Leipzig, 1774, p. 331.
— *” BUSCH, Johann Georg. Encyclopidie der historischen, philosophischen und mathematischen
Wissenschaften. Hamburgo, 1775, p. 12.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

presente, se baseava em experiências próprias, naquilo que tange


ao passado, em experiências alheias. Desse aspecto temporal duplo
— que pressupõe a unidade do mundo da natureza e dos homens —,
também derivava a velha dualidade da representação, isto €, que a
Historie tanto descreve quanto narra. Justus Lipsius foi mais longe,
contrapondo a historia naturalis descritiva à historia narrativa, a qual,
por sua vez, se estenderia à historia divina e humana.*®
Foi sobretudo a historia naturalis, o estudo da natureza, que, até
Linné, descreveu situações derivadas de observações e de classificações
da terra, dos reinos animal e vegetal, e do espaço estelar. Também
quando a expressão “História da Natureza” [Natur-Geschichte] des-
bancou a “historia naturalis” — como em Zedler, por exemplo* —, essa
expressão continuava visando a situações da natureza, sem interpretá-
-las “historicamente”. A historicização da natureza que — em termos
modernos — se ia configurando, no longo prazo, isto é, sua classificação
temporal — de forma que ela mesma ganhasse uma “História” — não
se deu sob o título de “historia naturalis”, pois essa expressão estava re-
servada para a descrição daquilo que está dado de forma permanente.
Bacon — que classificou a historia em apenas naturalis e civilis —
ainda compreendera a natureza como a-histórica. Mas ele a definiu
como mutável, através da arte humana, motivo pelo qual colocava
a historia artium na historia naturalis**º, situação que explicava através
da expressio experimentalis.** Mas a investigagdo sobre as causas que
levavam a mutabilidade da natureza ele não mais incluia na historia
naturalis, mas sim entre as ciéncias teéricas, a Fisica: “Etenim in hisce
omnibus Historia Naturalis factum ipsum perscrutatur et refert, at Physica
itidem causas”?

* Citado por Menk: ckert, Die Geschichtsschreibuy p. 34. O Sr. Galli chamou minha atengio
para o fato de que foram, sobretudo, eruditos catdlicos — Beurer e Glaser — que, enquanto faziam
a contraposigio teológica entre criador e criatura, também faziam a bipartigio entre historia
naturalis (que abarcava, simultaneamente, a História da natureza ¢ a dos homens) e historia divina.
*” ZEDLER (vol. 23), 1740, p. 1063.
* BACON. De dignitate et augmentis scientiarum, 2, 2. In: Works (vol. 1), 1864, p. 495; Pfingsten
chama de “Mechanik", mas "no sentido mais amplo que a palavra ArteHistória [KunstGeschichte]
ou . melhor Tecnologia possui”. Wiirde und Fortgang der Wissenschafien (cf. nota 371), p. 178
(com nota).
“I BACON, Novum Organum 1, 111. In: Works (vol. 1), p. 209.
2 BACON, De augmentis, 3, 4 (p. 551).

167
O concero e História

Com a abertura do futuro através do conhecimento progressivo


da natureza e com a ocupação de novas terras no além-mar, com
a descoberta de novos continentes e de novos povos, a expansão
temporal também atingiu o passado.Já no século XVII, ela atingiu
espaços temporais que se localizavam além da cronologia da criação
da Bíblia.** Leibniz, por exemplo, com sua Protogaca — pensada
como introdução à sua história dos guelfos —, avançou sobre esse
pré-passado da natureza. Mas ele não chamou seu esboço diacrônico
de historia naturalis. “Inicio pela mais profunda antiguidade dessas
terras, provavelmente muito antes que elas fossem habitadas por
seres humanos, de forma que vão muito além de quaisquer Histo-
rien, buscando-lhes as caracteristicas deixadas pela natureza”.*** Na
verdade, tratava-se de uma “teoria da infancia de nossa terra”, que
possivelmente viria a fundamentar uma nova ciéncia, a “Geografia
da Natureza” [Natur-Geographie]. Nio se tratava de uma Historie,
pois a fundamentagio das relações permanecia hipotética.**> Pela
mesma razao, Kant, em 1755, recorreu a um titulo duplo — “Histéria
geral da natureza e teoria do firmamento” [Allgemeine Naturgeschichte
und Theorie des Himmels] —, porque só através dessa expressio podia
caracterizar seu esbogo repleto de hipéteses, que temporalizara a
natureza, como um “aperfeicoamento sucessivo da criagio”.*¢
A temporalizagio da natureza, que abre seu passado finito em
direção a um futuro infinito, e preparava sua interpretagio historica,
realizou-se no âmbito da teoria, e não da historia naturalis — e isso
corresponde a nossa Historia conceitual do século X VIII. Por isso,
não admira que essa tradicional pesquisa da natureza fosse sendo
gradativamente excluida do cosmos das ciéncias histéricas. Natu-
reza e Historia foram separadas. Voltaire falou, na Encyclopédie, de
“Uhistoire naturelle, improprement dite histoire, ... qui est une parte essen-
tielle de la physique”.**” Adelung retomou esse distanciamento, em

40 KLEMPT, Adalbert. Die Sakularisierung der universalhistorischen Auffassung. Zum Wandel des
Geschichtsdenkens im 16, und 17. Jahrhundert. Góttingen, 1960, p. 81 e segs.
* LEIBNIZ. In: PERTZ, G. H. (Ed). Geschichtliche Aufsátze (vol. 4). Hannover, 1847, p. 240.
45 LEIBNIZ. Protogaea. In: PEUCKERT, Will Erich (Ed.). Werke (vol. 1). Stuttgart, 1949, p.
19; ibid., p. 171 (versio alemã de Wolf v. Engelhardy).
*% KANT. Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels (1755). In: Akademic-Ausgabe
(vol. 1), 1902, p. 312.
* VOLTAIRE. Verbete * Histoire". In: Encyclopédie (t. 8). Genebra, 1765, p. 220 e seg.

168
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HistÓRIA

1775: “Numa compreensão muito inadequada, utiliza-se a palavra


História da natureza [Naturgeschichte] para designar o registro e a
dcacrªção dos corpos pertencentes ao reino natural”.**º
E verdade que Késter ainda registra, ao lado da narrativa de
acontecimentos, “também a descrição de coisas que se mantêm ao
longo do tempo” como pertencente à Historie, mas a “simplesmente
assim chamada Historie” trataria somente de homens e de aconteci-
mentos que os envolvem.*** Em Campe, finalmente, a separação se
completa: “A descrição da natureza..., isto é, das coisas na natureza,
em especial na terra, de acordo com sua forma e suas caracteristicas.
Caso seja narrado seu surgimento, a forma como se mantém, suas
modifica¢oes enquanto durar, o tempo de sua duragio, etc., então
estamos diante de uma Histéria da Natureza [Naturgeschichte], que
deve ser diferenciada da simples descrição”º
Com a separagio da antiga historia naturalis descritiva, também
se torna palpável o processo correspondente: o novo significado da
Historia da Natureza que se impusera no meio século anterior. A
prépria natureza foi dinamizada e, com isso, se tornou passivel de
uma Histéria, no sentido moderno. Como escreveu Buffon, em
sua Histoire naturelle, de 1764: A natureza não é uma coisa ou um
ser, ela é uma forga viva, “une puissance vive... cest en méme temps
la cause et Veffect, le mode et la substance, le dessein et I'ouvrage”. Ela é
“un ouvrage perpétuallement vivant” e “un ouvrier sans cesse actif”, ao
mesmo tempo.** Com esse avango, que lhe permitiu classificar a
natureza em periodos histéricos, fora encontrada uma definição que
se aproximava bastante do conceito de Histéria, o qual foi, então,
desenvolvido, na Alemanha, a partir de Herder: “Toda a Historia
da humanidade é uma pura Histéria da natureza de forgas, ações
e instintos humanos localizados no espago e no tempo”.*? Herder
concretizou a guinada. A natureza historicizada podia servir agora
também como caracteristica estrutural da Histéria humana.

*** ADELUNG (vol. 2), 1775, p. 601.


* Deutsche Encyclopedie (vol. 15), 1787, p. 649 e seg.
0 CAMPE (vol. 3), 1809, p. 461.
* BUFFON. Histoire naturelle. In: PIVETEAU,
Jean (Ed.). Oeuvres philosophiques. Paris, 1954,
p. 31.
2 HER DER, Ideen... (cf. nota 376), p. 145.

169
O concerto DE HisTÓRIA

Também aqui foi Kant quem, pela primeira vez, havia reivin-
dicado abertamente a mudança da historia naturalis de velho estilo
para a História temporalizada da natureza. “Por mais que se odeie
— e com razão — a impertinência das opiniões, deve-se arriscar
uma História da natureza que seja uma ciência separada, que possa
progredir, gradativamente, de opinides para conhecimento”.**
Em 1788, Kant procurou garantir “História da natureza” para a
investigação científica, que derivaria a “configuração [atual] da
natureza de causas localizadas em tempos mais antigos, de acordo
com leis naturais... das forças da natureza”. Essa ciência deveria se
conscientizar das limitações inerentes a seus principios racionais e,
por isso, concretizar sua teoria através de hipóteses — ao contrário
da descrição da natureza, que poderia concretizar um sistema com-
pleto. Kant estava consciente das dificuldades terminológicas que
apareceriam em decorrência de sua historicização da “História da
natureza”, já que “História” e “Historie” são utilizadas ao mesmo
tempo no sentido de narrativa e de descrição. Para destacar o aspecto
emporal decisivo da nova ciência, sugeriu denominações alterna-
ivas, como “fisiogonia” [Physiogonie] ou — na Crítica da faculdade de
juizo [Kritik der Urteilskraft] — “arqueologia da natureza”.** “Mas
a dificuldade linguística para distinguir não consegue eliminar a
diferença das coisas”.*** Estava aberto o caminho para as teorias
da evolução do século seguinte,”º no qual a História se mostraria
como setor que orientava a pesquisa sobre a natureza. Nas palavras
de Biedermann (1862): a História da natureza [Naturgeschichte], ao
contrário da ciência da natureza [Naturkunde], começa “somente ali
onde aparece uma interconexão, uma permanência, uma ligação

* KANT. Von den verschiedenen Rassen der Menschen (1775). In: Akademie-Ausgabe (vol. 2),
1905, p. 443. Os cofundadores da Geologia na Alemanha ji utilizavam o novo conceito de

1756; FUCHSEL, Georg Christian. Entwurfzu der dltesten Erd- und Menschengeschichte, nebst
cinem Versuch, den Ursprung der Sprache zu finden. Frankfurt/Leipzig, 1773.
* KANT. Uber den Gebrauch teleologischer Prinzipien in der Philosophic (1788). Akademic-
— Ausgabe (vol. 8), p. 161 e seg., 163 (nota 1); KANT. Kritik der Urteilskraft (1790), 2* parte,
In: Akademic-Ausgabe (vol. 5), 1908, p. 428 (nota).
er den Gebrauch teleologischer Prinzipien..., p. 163.
erbete ,, Entwicklung" [evolugio/desenvolvimento] [em Geschichtliche Grundbegriffe.
exikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, no qual está também o
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

do individual com um todo”. Ela é um “processo do vir a ser no


tempo..., onde todo o reino das coisas visíveis — da pedra ao ho-
mem — aparece como um todo inter-relacionado, desenvolvido
em diferentes níveis, como resultado de um processo lento de vir
a ser e vir a acontecer”.*7
b) Da “historia sacra” para a “História da salvação” [Heil-
sgeschichte). “Historiae, id est, verae narrationis tria sunt genera: huma-
num, naturale, divinum”. A Historie humana trataria daquilo que
é provável, a História da natureza daquilo que é necessário, e a
divina da verdade da religião.”* Bodin, que orientava essa sequ-
éncia nas trés doutrinas do Direito, enxergava nelas uma escala
de certeza crescente. Mas no seu Methodus, só abordou a historia
humana, colocando-se, assim, na tradigio da escrita temporal da
Historia, como ela fora desenvolvida pela alta [dade Média e pelo
Humanismo. A Histéria sagrada, na sequéncia, era tratada ou
separada da Historie politica ou entdo, cada vez mais, como uma
Historia secular, das Igrejas, ou das doutrinas religiosas, ou ainda
totalmente integrada nessa Historia secular.””” Com isso, também
a interpretagio teologica de todos os acontecimentos seculares foi
perdendo cada vez mais sua forga.
Um indicador dessa transformagio est, em primeiro lugar, na
eliminacio da historia divina do cosmos do conhecimento histérico.
Freigius, com sua Historiae synopsis, de 1580, parece ter sido um
precursor, nesse campo. Ele só conhecia a Historia mundi majoris da
natureza como um todo, e a Historia mundi minoris de todas as ações
humanas, bem como as opiniones circa religionem aut philosophiam,
em particular.*® Bacon também reduziu a Historie a apenas dois
campos: a Historia naturalis e a Historia civilis, dividindo a última
em trés categorias: “primo, Sacram, sive Ecdlesiasticam; deinde eam quae
generis nomen retinet, Civilem; postremo, Literarum et ArtiumӢ Assim,

*” BIEDER MANN, Friedrich Karl. Verbete , Geschichte". In: ROTTECK; WELCKER (vol.
6), 3. Aufl., 1862, p. 428.
* BODIN, Methodus... (cf. nota 340), 114b.
* KLEMPT, Die Sikularisierung..., p. 42 € segs.
4 Ibid., p. 44.
* BACON, De augmentis, 2, 4 (p. 502).

171
O concerTo DE HisTóRIA

a Histoire civil, pela primeira vez, se transformou em conceito geral


para a História sagrada ou eclesiástica.
Leibniz — que adotou a bipartição — já classificou, entre a
Histoire humaine, uma grande quantidade de campos científicos: A
Historia universal [Universalhistorie] e a Geografia, as antiguidades, a
Filologia e a Historie da literatura, costumes e leis, por fim também
“Histoire des religions, et surtout celle de la veritable Religion revelée, avec
PHistoire Ecclesiastique”.**> Dessa forma, em Leibniz, correspondendo
a experiéncia planetiria de uma multiplicidade de religiões e de
Igrejas cristas, a historia sacra se transformou numa historia religiorum,
dentro da Hist6ria humana.
Quando Voltaire faz, na Encyclopédie — assim como alguns
contemporaneos — uma referéncia tradicional à histoire sacrée, ele
acrescenta, de forma irénica: “Je ne toucherai point a cette matiére
respectable”.** E, finalmente, quando Krug, em 1796, mais uma vez
elaborou um sistema de todas as ciéncias, surgiu, em meio à “Historia
da humanidade ou do género humano (preferencialmente chamada
Historia)”, em posição secundaria, também a religiio de Jesus de
Nazaré — isso no âmbito da Histéria da cultura [Kulturgeschichte],
depois de profissdes, artes, costumes, erudigio e literatura, e dentro
da História da cultura religiosa, depois da religido natural e da “His-
toria do fanatismo”, como uma entre várias religides reveladas.**
A inclusio da Historia sagrada [heilige Geschichte] na Historia
do mundo [Weltgeschichte] vinha sendo preparada pela historiografia
eclesidstica protestante, na medida em que esta — sobretudo a Escola
de Gottingen, no século XVIII — tinha feito da Historia ecclesiastica
uma Histéria das sociedades eclesiasticas e de suas opinides doutri-
narias. “Na Historia da Igreja, é, sem dúvida, muito conveniente
partir do pressuposto de que se deve visar, em cada um de seus
periodos, ... aquilo que é peculiar e caracteristico das formas sociais
a que se ligam ... e apenas seguir as relações que estabelecem com

* LEIBNIZ. Mémoire pour des personnes éclairées et de bonne intention (1694?). In: KLOPP,
Arno (Ed.). Werke (vol. 10). Hannover, 1877, p. 13; cf. KONZE, Werner. Leibniz als Historiker.
Berlim, 1951, p. 36 ¢ segs, com outras citagdes.
43 VOLTAIRE, verbete “Historie" (cf. nota 447), p. 221.

172
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HisTÓRIA

elas”.*** Experiências extrassensoriais eram eliminadas em favor de


fatos históricos que podiam ser incluídos na perspectiva de uma
moral que avançava ou, então, eram interpretados de forma psico-
lógica. A primeira experiência temporal historicamente imanente
— a do progresso — historicizou coerentemente também os dogmas,
até agora considerados imutáveis. Semler esperava convencer seus
leitores de “que nunca existiu uma concepção estabelecida e imu-
tável do conteúdo da doutrina e da religião cristã”.* A irrupção
da nova “História” nas verdades até agora consideradas eternas se
fundamentava e era impulsionada pela nova convicção — que tam-
bém abrangia a religião — “de que a evolução do mundo moral, de
acordo com a ordem de Deus, também possui seus períodos e suas
etapas, como o conhecimento e a descoberta do mundo físico”.*?
Desde que a História adquirira uma qualidade que se modificava
no decorrer do tempo, também a historia sacra podia ser interpre-
tada, nesse sentido, de forma “histórica”, como a historia naturalis.
E verdade que na ascensão do velho conceito de História que
vinha se impondo, por mais novo que fosse, o impulso teológico
não esteve ausente. Justamente a historia sacra, uma História que ia
além da revelagio biblica, tal como era ensinada, por exemplo, no
ambito da Teologia federal’, trouxe alguns aspectos cristaos para
dentro do conceito moderno de Histéria. O esquema reproduzido
e reproduzivel pela expectativa escatologica, com suas promessas
e realizagdes, desde sempre se prestara a atribuir ao transcurso
temporal uma qualidade histérica no sentido da unicidade e até
da mudanga para um nivel ascensional. Também a conversio do

** PLANCK, Gottlicb Jakob. Einleitung in die theologischen Wissenschaften (vol 2). Leipzig, 1795,
p. 223; cf. VÔLKER, Karl. Die Kirchengeschichtsschreibung der Aufklárung. bingen, 1921, p.
22, com outras citações
*% SEMLER, Johann Salomo. Versuch eines fruchhtbaren Auszugs aus der Kirchengeschichte (vol. 2).
Halle, 1774 (Vorrede); citado por MEINHOLD, Peter. Geschichte der kirchlichen Historiographie
Freiburgo/Munique, 1967, p. 46. :
1S, Lebensbeschreibung von ilm selbst verfasst (vol. 2). Halle, 1782, p. 157; citado por
Meinhold, Geschichte... (vol. 2), p. 64. eA
* A “Teologia federal” entendia a “História como a concretização da graça” divina, História
que transcorreria em cinco fases, a e omegar na criação narrada no )Velho Testamento,
il de
forma que a “História divina se transformaria em um drama com sentido unitirio”. JACOB,
e

P. Fóderaltheologie. In: Die Religion in Geschichte und Gegemuurt [RGG]. Tibingen:J. C. B,


Mohr (Paul Sicbeck), 1957, col. 1520 [N. (s

173
O concero DE HisTóRrIA

futuro escatológico em um processo que avança com o tempo foi


impulsionada pelas expectativas religiosas. “A realização não deve ser
localizada — como acontece em geral — nos primeiros séculos nem nos
tempos futuros, mas sim, numa divisão não necessariamente desigual,
por toda a linha de tempo do Novo Testamento, de tal forma que
todo o verdadeiro sistema de toda a Historie sirva de explicação para
Judeus e gentios, cristãos e turcos”.* Para Bengel, toda a História
se transformou em uma História da revelação, que se desvendava
em forma crescente, com que o ônus da prova para a interpretação
se deslocava do Testamento para a História pós-bíblica. Ninguém
poderia explicar a revelação, “se não incluir as Histórias eclesiástica
e mundial [Kirchen- und Weltgeschichten)”.*º É nelas que se mostra a
unidade sistemática da Historie. O intérprete apenas deve “esgotar
a verdadeira soma da História mundial e da História eclesiástica, e
absorvê-la dentro de si, mas, ao fazê-lo, não deve atentar para as
partes, e sim para o todo, para as coisas básicas, os tempos básicos e
os lugares básicos, como, por exemplo, Roma e Jerusalém”.
O gradual desvendamento do Apocalipse de João pela Historia
revelou, então, como um tipo de fenomenologia do espirito, a
qual vai corrigindo de forma sucessiva todos os erros das interpre-
tações do passado e, com isso, revela seu sentido futuro, verdadeiro,
o qual será idéntico com o fim da História até aqui. Oetinger —
um discipulo de Bengel — disse o seguinte: “Cada século depois
de Cristo possui sua propria medida de conhecimento verdadeiro,
ainda que nio integral”. Mas Deus mandaria, “de tempos em
tempos, instrumentos que, na medida do conhecimento crescente,
produzem, a cada século, uma abertura maior”.*”!
Na formulagio de conceitos da Histéria, na Alemanha, o grupo
de tedlogos de inspiragio pietista (Arnold, Bengel — também Ha-
mann —, Oetinger, Wizemann ou Hess) nio pode ser subestimado,

* BENGEL, Johann. Erklarte Offenbarung Johannis oder vielmehr Jesu Christi. (2* ed., 1747) (editado
por Wilhelm Hoffmann, Suttgart, 1834), p. 75.
* Ibid, p. 137.
™ Ibid., p. 654.
* OETINGER, Friedrich Christoph. Predigten iiber die Sonn-, Fest- und Feiertaglichen Episteln.
Reutlingen, 1852, p. 11 (editado por Karl Christian Eberhard Ehmann); OETINGER,
Friedrich Christoph. Evangelienpredigten (vol. 2). Reutlingen, 1853, p. 110.

174
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

por causa de sua concepção de uma revelação que tenha sentido e


seja progressiva. O reino de Deus se tornou, ele próprio, um processo
histórico. A convergência com um conceito “secular” de progresso
da História se realizou via inspiração recíproca. Isso acontece, por
exemplo, com Thomas Wizemann, que derivou o “plano” de Deus
do “desenvolvimento histórico”: “O homem está em eterno movi-
mento, e cada recaída constitui um passo adiante no aperfeiçoamento
do todo... Juntamente com sua História, seu conhecimento também
avança e constitui verdade política e teológica que o verdadeiro co-
nhecimento efetivo só pode se tornar mais transcendente na medida
em que a História também se torna [mais transcendente]”.””?
O testemunho a favor da verdade divina, com Wizemann,
deslocou-se, por completo, das “doutrinas” para os “fatos”, da Bi-
blia para a História: “Aquilo que, na minha opinião, requer uma
atenção especial nas nossas sagradas escrituras é a História. É ela
que diferencia essas escrituras de todos os demais livros de religião,
e a transforma em revelação divina”.*® Com isso, estava aberto o
caminho para — na sequência da Filosofia idealista da História — tam-
bém dissolver processualmente a escatologia cristã. Assim, Richarc
Rothe descreve o “transcurso do processo histórico” de tal forma
que a igreja cristã estaria se integrando e se fundindo cada vez mais
no Estado cristão do futuro. O Juizo Final — a crise — é, por assim
dizer estendido para a “sucessão do desenvolvimento histórico”,
de forma “que toda a História cristã se transforma numa grande
crise continuada do nosso gênero”, que, no decorrer do tempo,
moralizaria a Igreja e a tornaria supérflua.”
Influenciado por Ranke e por Schelling, Johann Christian
von Hofmann adotou, em 1841, a expressão “História da salvação”
[Heilsgeschichte], que antes fora pouco usada. E aqui não se tratava de

2 GOLTZ, Alexander Freiherr von der (Ed.). Thomas Wizemann, der Freund Friedrich Heinrich
Jacobis (vol. 1). Gotha, 1859, p. 147. A respeito de “plano” e “desenvolvimento”, cf.
[WIZEMANN, Thomas). Góttliche Entwicklung des Satans durch das Menschengeschlecht, Dessau,
1792, p. 2, 18, 28, 57 e passim; WIZEMANN, Thomas. Geschichte Jesu (cf. nota 294), p. 8 e 46
e segs. Cf. BENZ, Ernst. Verheissung und Erfillung. Úber die theologischen Grundlagen des
deutschen Geschichtsbewusstseins. Zeitschrift fir Kirchengeschichte, n. 54, 1935, p. 484 e segs.
9 WIZEMANN, Gotdliche Entwicklung des Satans, p. 1 ¢ seg.
4 ROTHE, Richard. Die Anfinge der Christlichen Kirche und ilrer Verfassung (vol. 1). Wittenberg,
1837, p. 59.

175
O CONCENO DE HisTÓRIA

uma tradução da já meio apagada “historia sacra”, mas de um conceito


que pretendia dar conta — como conceito cristão — das exigências
de uma História baseada em princípios histórico-filosóficos que se
difundiam cada vez mais."”
Edgar Bauer formulou, na década crítica que antecedeu a
revolução de 1848, de forma polêmica: “Através da religião, a His-
tória se transforma numa fábula, através da História a religião se
transforma num mito, na História a verdade de hoje refuta aquela
de ontem, para novamente ser refutada pela de amanhã, na religião
só deve existir uma verdade”.® As imposições alternativas forçaram
a historicização. Diante dos desafios por elas exercido surgira o ter-
mo “História da salvação”. Retrospectivamente pode-se formular
da seguinte forma o resultado da lenta mudança ocorrida desde o
século XVII: enquanto na “historia sacra” a indicação para a salvação
eterna caracterizara o conceito, no conceito composto de História
da salvação a [própria] História assumiu o papel fundamental. É
dela que derivou o caminho para a salvação.
De qualquer forma, o legado judaico-cristão ficou preservado,
? sinalizava a contemporaneidade do não contemporâneo no novo
onceito de História, mostrando que a antiga expectativa escatológica
agora também tinha efeito sobre ele e sobretudo combinava com
ele. Por isso, não admira que Moses Hess — também na linha do
idealismo alemão — pôde, em 1837, escrever Die Heilige Geschichte der
Menschheit [A História sagrada da humanidade], na qual, de acordo
com o esquema joaquimista, o terceiro e último período, “a última
renovação da humanidade, cujo processo ainda não se concluiu™?’,
teria começado com a Revolução Francesa. A expectativa de salvação
permaneceu, como em camadas, inerente ao conceito de História,
e se manteve nos mais diferentes campos, desde o protestantismo,
e com sua fidelidade ao Estado, até o socialismo.

3 HOFMANN, Johann Christian Konrad von. Weissagung und Erfúllung im alten und neuen
Testamente (2 vols.). Nordlingen, 1841/44; cf. WETH, Gustav. Die Heilsgeschichte. Múnchen,
1931, p. 81 e segs.
* GEISMAR, Martin von (= Edgar Bauer) (Ed.). Bibliothek der Deutschen Aufklirer (vol. 2, separat
5). Leipzig, 1847; reimpresso em Darmstadt, 1963, p. 127.
7 HESS, Moses. Die Heilige Geschichte der Menschheit, Von einem Júnger Spinozas. In:
' CORNU, Auguste; MONKE, Wolfgang (eds.). Philosophische und sozialistische Schriften 1837-
1850. Berlim, 1961, p. 33.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

Depois que a velha historia sacra tinha sido superada pela His-
tória da salvação, a compreensão do cristianismo sobre si mesmo
entrou numa linha de historicização — também da metodologia
histórico-crítica —, de forma que, desde então, vem pendulando
entre duas respostas extremas. Por um lado, o cristianismo é sim-
plesmente declarado incompativel com a Histéria. Nesse sentido,
Overbeck registra “o desejo moderno de submeter o cristianismo
a Historia”, deduzindo que, “deslocado para o terreno da avaliagio
histérica, o cristianismo esta irremediavelmente exposto ao con-
ceito da finitude ou ... da decadéncia”.”8 Ou a Histéria como um
todo deve permanecer referida a Deus, de forma que a diferenga
entre uma Histéria cristd e uma Historia não cristã desaparece.
Nas palavras de Karl Barth: “Toda Histéria religiosa e eclesidstica
se desdobra por completo dentro do mundo. A assim chamada
‘Historia da salvagio’, porém, só representa a permanente crise de
toda a Histéria, nio uma Histéria ou ao lado da Histéria”.? O
componente progressista do conceito perdeu importancia, mas o
momento processual, que deriva da presenca existencial do juizo
eterno, se manteve, incluindo um legado da Teologia federal.”
c) Da “historia universalis” a “Historia mundial” [Weltgeschi-
chte]. A incorporagio da natureza e da historia sacra no processo his-
torico geral fez com que o conceito de História passasse a constituir
um conceito-chave da experiéncia e das expectativas humanas. O
conceito de “Histéria mundial” [Weltgeschichte] se adequava muito
bem a uma definigio desse processo.
Na perspectiva da Historia vocabular, a transicdo da “Histéria
universal” [Universalhistorie] para a “Histéria mundial” [Weltgeschichte]
se realizou de forma gradativa e sem muita insisténcia. No século
XVIII, ambos os termos podiam ser utilizados de maneira alternativa.

" OVERBECK, Franz. Christentum und Kultur. Gedanken und Anmerkungen zur modernen
Theologie. Basel, 1919; reimpresso em Darmstadt, 1963, p. 7 e seg. (editado por Carl Albrecht
Bernoulli).
* BARTH, Karl. Der Romerbrief. 10* edição da versio reformulada de 1922, Zurique, 1967, p. 32.
A “Teologia federal” entendia a “Histéria como a concretizagio da graga” divina, Histéria
que transcorreria em cinco fases, a comegar na criagio narrada no Velho Testamento, de
forma que a “Histéria divina se transformaria em um drama com sentido unitário”. JACOB,
P. Foderaltheologie. In: Die Religion in Geschichte und Gegenwart [RGG]. Tiibingen:J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), 1957, col. 1520. [N. T].

177
O CONCENO DE HisTóRIA

A expressio uuerltgeskihten ja fora utilizada por Notker (fa-


lecido em 1022) — referido a providéncia divina —, mas a palavra
nio conseguira se impor.*** A primeira referéncia concreta a uma
Historia universalis só é encontrada mais tarde. Em 1304, surgiu uma
tal obra, que pouco depois recebeu o certeiro titulo de Compen-
dium historiarum.*** Historien deste mundo que tentavam unificar
uma soma de Histérias individuais com pretensdes universais só
surgiram — nas palavras de Borst — quando a imagem do mundo do
povo cristio de Deus se esfacelou. Na medida em que a conquista
de terras no além-mar progredia, e a unidade da Igreja se rompia,
comegam a se multiplicar os titulos histérico-universais, os quais
deveriam registrar e unificar as novas e heterogéneas experiéncias.
Nesse contexto, também ressurge, no século XVII, a desaparecida
palavra “Histéria mundial” [Weltgeschichte], que talvez tivesse sido
inspirada na History of the world, de Sir Walter Raleigh.*** Stieler
registra Weligeschichte/ historia mundi sive universalis*®, e, desde o sé-
culo XVIII, preferem-se formas mistas, como “Universalgeschichte”
[Histéria universal] ou “Welthistorie” [Historie mundial].
Apesar das variagdes terminolégicas, o avango da expressio
‘Weltgeschichte” [Historia mundial] denota uma profunda mudanga
conceitual. Um sinal dissoja fora dado com a tradução do Essai zur
Phistoire générale de Voltaire, em 1762, por Versuch einer allgemeinen
Weltgeschichte [Ensaio de uma Histéria geral do mundo], quando
se tratava de desacreditar a providéncia.**
A forma plural — como as “mais curiosas Histérias do mundo”
[merkwiirdigste Weltgeschichten] — estava consolidada desde o final
do século XVII, no sentido de Histérias seculares.'™ E, por isso,

— ™ SEHRT, Edward H.; e STARCK, Taylor (Eds.). Notkers des Deutschen Werke. Halle, 1952, p. 33.
1 A respeito, cf. BORST, Weltgeschichten im Mittelalter (cf. nota 150), p. 452 ¢ segs.
'RALEIGH, Sir Walter. The history of the world. Londres, 1614.
“wnm.m. impressio de 1963, p. 1747
foltaire. Essai surI'histoire générale et surles moeurs et V'esprit des nations depuis Charlemagne
uumiwu (7 vols.). Genebra, 1756; e alemão: Allgemeine Weltgeschichte, worinnen zugleich
en'vnl das Eigene derer Vôlkerschafien von Carl dem Grossen bis auf die Zeiten Ludwigs XIV.
m,(d vols). Dresden, 1760/62.
!gbmnfihflmph . Handbuch der Universalhistorie nach ihrem gesamten Umfange. Vol.
igen Einleitung von der Historie úberhaupt und der Universalhistorie
igen, 1765, p. 127 e seg.
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

Chladenius pôde constatar, em 1752: “As História gerais do mundo


[gemeinen Weltgeschichte] costumam lidar com ações de homens, mas
a revelação lida com as grandes obras de Deus”.** Foi justamente
esse campo semantico, [até entdo] antiteticamente excluido do
mundo humano, que deu maior for¢a à nova expressio, frente a
tradicional “Universalhistorie”.
Os temas referidos ao mundo todo se difundiam e exigiam um
conceito adequado. Em 1773, o Teutsche Merkur registrava como
“estranho” que “nos últimos dois ou trés anos” tenham surgido
tantas Historias universais [Universalhistorien]*’, e Schlzer, um de
seus autores, constatou, no mesmo ano, que “o conceito da Historia
mundial [Weltgeschichte]” continuaria indefinido e vago. Deveria se
desenvolver “um plano, uma teoria, um ideal dessa ciéncia”, para
que conquistasse a posição fundamental que lhe compete.*®
Uma década mais tarde, em 1785, ja fazia uma avaliagao re-
trospectiva: “Historie universal antigamente não foi outra coisa do
que ‘uma misturanga de alguns dados históricos”, que serviam aos
teólogos e aos filologos como “ciéncia auxiliar”. Outra coisa era a
Historia mundial [Weltgeschichte], que agora assumira posigao de desta-
que no titulo de sua obra: WeltGeschichte [MundoHistoria] — Schlozer
preferia essa forma de escrever, para caracterizar o cariter composto
do conceito; “estudar WeltGeschichte significa pensar como um con-
junto as principais transformagdes da terra e do género humano, a
fim de reconhecer a situagio atual de ambos, a partir de suas bases”.**
Com isso, Schlozerjá citara os dois critérios que caracteriza-
vam a nova Historia mundial: espacialmente, ela se referia a todo
o globo ¢, temporalmente, a todo o género humano, cujas inter-
conexdes deveriam ser reconhecidas e explicadas, com vistas ao
presente. Retomando algumas sugestdes de Gatterer e de Herder,
e se antecipando a Kant,*” avangou no sentido de criticar a “soma

% CHLADENIUS, Allgemeine Geschichtswissenschaft... (cf. nota 277) (Vorrede), sem paginagio.


*” Schreiben aus D... (cf. nota 395), p. 262.
* SCHLOZER, A. L. Vorstellung seiner Universal-Historie (vol. 2). Gottingen/Gotha, 1773,
(Vorberichr), sem paginagio.
* SCHLOZER, A. L. WeltGeschichte (vol. 1) (cf. nota 412), p. 1 e 71.
* GATTERER, Vom historischen Plan... (cf. nota 223), p. 25, 28 e seg., passim; HERDER, A,
(vol. 5), 1891, p
L. Schlézers Vorstellung seiner Univsersal-Historie (1772). In: Sâmtliche Werke
436 e segs; KANT, Idee... (cf. nota 360), 9º sentença. In: Akademie-Ausgabe (vol. 8), p. 29.

179
O concerTto DE HisTÓRIA

[histórico-universal] de todas as Histórias especiais” [SpecialGes-


chichten] como um simples “agregado”, e abrir espaço para o novo
“sistema da MundoHistória”. O sistema alcançou, num patamar
mais elevado de abstração, uma pretensão de realidade superior.
Ele faz a intermediação entre causas pequenas e grandes, com que
a História mundial se transformaria em “Filosofia”. Sobretudo
seria importante que a “interconexão real” [RealZusammenhang]
dos acontecimentos fosse distinguida de sua “interconexão tempo-
ral” [ZeitZusammenhang], que uma não é redutivel à outra, ainda
que ambas se condicionassem mutuamente. Disso resultariam
dificuldades para a representação, para as quais Gatterer já apon-
tara, mas cuja solução estava em reconhecer a interdependência
global das Histórias modernas. Pontos de vista “cronológicos”
e “sincronísticos” — em termos modernos: diacronia e sincronia
— devem se complementar reciprocamente, a fim de class ficar a
História mundial de acordo com critérios imanentes. Com 1ss0, se
tornam dispensáveis as quatro monarquias da profecia divina, e as
novas etapas derivam da importância que os “povos principais” e
os “povos secundários” tiveram para a História mundial. Apenas
“as revoluções, não a História específica dos reis e dos sobera-
nos, sim, nem todos os nomes deles”, contavam, como destacara
Gatterer.*”* “Na verdade, ela [História do mundo] é a Historie dos
acontecimentos maiores, das revoluções, refiram-se aos próprios
homens ou aos povos, ou a sua relação com a religião, o Estado, as
ciências, as artes e aos ofícios; aconteçam em tempos mais remotos
ou mais recentes”.””?
Com isso, o novo campo semântico estava definido. Abrindo
mão da transcendência, pela primeira vez, o gênero humano foi
encarado como o sujeito presuntivo de sua História, neste mun-
do. Ainda em 1759, Sulzer, num ato de desespero, exclamara: “A
Historie geral, Historia Universalis, de todos os tempos e de todos
os povos só pode ser muito breve a respeito de acontecimentos
individuais. Ela, portanto, não pode apresentar toda a utilidade de

* GATTERER, Vom historischen Plan..., p. 66 e segs.


2 GATTERER, Johann Christoph. Einleitung in die synchronistische Universalhistorie. Góttingen,
1771, p. 1 € seg.

180
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HISTÓRIA

uma Historie mais detalhada”.*** Três décadas mais tarde, em 1790,


Kóster resumiu, na Deutsche Encyclopádie, o debate entrementes
desencadeado, e seu resultado.** A relagio entre as Historien geral
e especial seria relativa, dependendo da definição dos objetos e,
por consequéncia, “ambivalente... Mas existe uma outra Historie
universal [Universalhistorie] — simplesmente assim denominada —, que
também se chama de Historia mundial geral [allgemeine Weltgeschi-
chte]”. Ela trataria de todo o género humano, e da “superficie da
terra” como seu campo de ação. Ela mostraria, “por que o género
humano se tornou aquilo que realmente &, ou aquilo que ele foi,
em cada periodo”.
No último tergo do século XVIII, se estabeleceu certa unani-
midade de que essa Historia do mundo seria uma ciéncia mestra,
que, no entanto, ainda nio teria sido escrita — nas palavras de Kant:
ela ainda nio teria encontrado seu Kepler ou seu Newton.*”
Mas, a0 mesmo tempo, esses autores constatam — e isso indica
aquela experiéncia moderna que só pôde ser explorada através da
“Histéria mundial” [Weltgeschichte] — que a escrita de tal Historia
mundial somente agora seria possivel. E nisso que consistia a
verdadeira superioridade, o ganho de experiéncia em relagio a
antiga.*”® As mudangas constitucionais e a expansio da Europa
sobre todo o globo teriam tornado os “intercimbios mundiais”
cada vez mais “entrelagados”, de forma que não seria mais possivel
escrever a Historia de Estados individuais, já que a interconexdo
real perpassaria tudo.*” Em parte, o intercimbio europeu suge-
ria ser aquele “em que parece se dissolver gradativamente toda
a Historia mundial” [Weltgeschihte].** Em 1783, foi possivel que
uma tese de doutorado apresentada em Mainz iniciasse de forma

* [SULZER, Johann Georg]. Kurzer Begriffaller Wissenschafien und andern Theile der Gelehrsambeit,
2. Aufl., Frankfurt/Leipzig, 1759,p. 35.
*% KOSTER, verbete “Historie" (cf. nota 328), p. 651, 654.
* KANT, Idee... In: Akademie-Ausgabe (vol. 8), p. 18.
AT ER, Vom historischen Plan..., p. 16 ¢ segs.
1 BUSCH, Encyclopidie (cf. nota 437), p. 123; cf. ibid., p. 133, 165. Além disso, HALLE (vol.
1), 1779, p. 537.
% FORSTER, Georg. Die Nordwestkiiste von Amerika und der dortige Pelzhandel (1791). In:
Werke, (vol. 2), s. d., p. 258.

181
O CONCETODE HisTÓRIA

enfática e assintática, com as seguintes palavras: “O gênero hu-


mano chegou a um ponto em que, através de revoluções conhe-
cidas, foram derrubados os muros que separavam continente de
continente, povo de povo, e os diferentes setores humanos se
fundiram num grande todo, o qual é avivado por um espírito — o
mesmo espírito que aviva a História — de que o mundo é um só
povo, da mesma forma que a História geral mundial [allgemeine
Weltgeschichte], motivo pelo qual ela deve ser tratada como tendo
utilidade e influência para o mundo”. A História educaria os po-
VOS, a0s poucos, para uma cidadania mundial geral, ampliando-se
para uma Histéria mundial [Weltgeschichte]. “Essa é uma verdade
que tem base na propria Historia”*””
O conceito de Histéria moderna, que, por assim dizer, recor-
ria a si mesmo para se definir, procurava encontrar na “História
mundial” sua dncora empirica. Aqui se localizava o campo de ação
daquele sujeito hipotético chamado género humano, que só podia
ser imaginado como unidade na sua extensio temporalmente aberta.
EÍA Paralelamente às tentativas de escrever uma História mundial [Wel-
— tgeschichte], surgiram, por isso, muitos métodos antropológicos sobre
a História da humanidade.*** Aquilo que lhe faltava em termos de
concretização contemporânea esperava-se, de forma compensatória,
para o futuro. “O verdadeiro ideal de uma tal História — que não
é nada menos que um agregado de todas as Histórias particulares
e especiais —, porém, só foi elaborado em tempos mais recentes”,
como Krug se referiu a Kant, quando definiu a História da huma-
nidade como uma “História da cultura humana”.>"!
A famosa pergunta de Schiller, na sua aula inaugural, em Jena
(1789) — “Que significa e com que finalidade se estuda História
— universal [Universalgeschichte]?” —, resumiu, de forma precisa e bri-
‘fl_‘xmpe,‘ todos os argumentos que haviam transformado a Historia
ndial em ciéncia-mestra de todas as experiéncias e de todas as
ativas. Assim como, a partir da ideia de “progresso”, a Neuzeit,

nota 287), p. 3 e segs.


c&@ugu;}.mgen;nr Geschichte der Menschheit. In: Nachgelassene Werke
»@92%5‘?"'? uma ampla bibliografia, p. 10 e segs.
die (vol. 1), p. 66 ¢ s 2
A CONFIGURAÇÃO DO MODERNO CONCEITO DE HisTÓRIA

a Era Moderna, aprendeu a se ver como um novo tempo, ela se


certificou de sua totalidade espaço-temporal, a partir da ideia de
“História mundial”. Por isso, a expressão, como pressuposto e de-
limitação de experiências possíveis, também se transformou numa
caracteristica estrutural de Histórias possiveis: “Todas as Histórias
só são compreensiveis através da Histéria mundial e na Historia
mundial”;>”> ou — como Novalis formulou de forma ainda mais
coerente: “Toda Histéria deve ser Historia mundial, e somente
através de uma relagio a toda a Histéria o tratamento historico de
uma matéria individual é possível”?
O novo conceito adquirira uma conotagio coesa de totalidade,
o qual excluia modelos explicativos concorrentes. Por essa razao,
Friedrich Schlegel pode abrir suas Vorlesungen iiber Universalgeschi-
chte [Preleções sobre Historia universal], de 1805, com a seguinte
frase: “Como toda ciéncia é genética, se deduz que a Historia
deve ser a mais universal, a mais geral e a mais elevada de todas
as ciéncias”. Enquanto se falasse exclusivamente da Histéria dos
homens, ela se chamaria “simplesmente Historia”.** Foi a “His-
téria mundial” que, no periodo da Revolugio Francesa, atribuira
ao conceito de Histéria sua fungdo mestra — que, desde entdo,
nio mais perdeu. Em 1845, Marx e Engels dizem a respeito da
ideologia alema: “Nós conhecemos apenas uma única ciéncia, a
ciéncia da História”. E ela abarcaria a Historia da natureza e a dos
homens. “Mas ambos os lados nio podem ser separados; enquanto
existirem homens, Historia da natureza e Histéria dos homens se
condicionam mutuamente”.”* “Historia” só era imagindvel como
Histéria natural e como Histéria humana, isto é, como Histéria
mundial, de forma que esse significado foi superado, absorvido e
transcendido [aufgehoben] naquele conceito.

%2 LUDEN, Heinrich. Ueber den Vortrag der Universalgeschichte. In: Kleine Aufsitze (vol. 1).
Gottingen, 1807, p. 281. A respeito de Schiller, cf. nota 418. CE KESSEL, Eberhard. Rankes
Idee der Universalhistorie. Historische Zeitschrift, n. 178, 1954, p. 269 e segs.
NOVALIS. Fragmente und Studien, Nr. 77. In: Gesammelte Werke (vol. 3), p. 566.
s9% SCHLEGEL. Vorlesungen iiber Universalgeschichte (1805/06). In: Sâmtliche Werke (2* seção,
vol. 14) 1960, p. 3.
(vol. 3), 1962,
35 MARX; ENGELS. Die Deutsche Ideologie. In: MEW [Marx-Engels-Werke]
p. 18 (nota).

183
O CONCENO
DE HisTÓRIA

As representações histórico-universais abrangentes perderam


— segundo a grande concepção geral de Ranke — sua força, em
parte porque o método histórico-crítico aumentou as pretensões,
promovendo a especialização, em parte porque a inconclusividade
de toda História fez com que crescessem as criticas contra projetos
universais.>” Irrefletidas [as representagdes historicas|, continuaram
sendo sobretudo aquilo que Hans Freyer subsumiu em 1948, no
conceito “Histéria mundial da Europa™”’, que só no século XX
comega a transitar para uma “Histéria mundial propriamente dita”.
Com isso, as expectativas que o século X VIII vinculava ao conceito
foram modificadas, mas não ultrapassadas.
A única tentativa efetivamente bem-sucedida para retirar a
Histéria mundial de sua unicidade processual, em constante re-
novagio, veio de Oswald Spengler, quando derivou a decadéncia
do ocidente de uma “morfologia da Histéria mundial, do mundo
como Historia”, ciclica, natural.**® Em que medida seus circulos
culturais pluralistas, em sua analogia estrutural, influenciam a futura
Histéria do mundo fica, por enquanto, em aberto.

en, 1948.
Umrisse einer Morphologie der
Vi

“Histéria” como conceito


mestre moderno

Reinhart Koselleck

Quando Friedrich Schlegel disse, em 1795, que “o caminho


€ a direção da formação moderna são determinados por conceitos
dominantes”, esse reconhecimento já pressupunha o moderno
conceito de História.º** Schlegel se serviu de uma série de deter-
minagdes atuais de movimento, todas abrangidas pelo conceito
de Historia. Nessa medida, valia para a “História”, em especial,
aquilo que Schlegel reivindicava para os conceitos dominantes: “Sua
influéncia é imensamente importante, decisiva”. Histéria somente
pôde se tornar o moderno conceito mestre, porque, no periodo
do Iluminismo e através dos efeitos da revolugdo, todas as agdes
precursoras até então descritas tinham influenciado esse conceito.

1. Funções sociais e politicas do conceito de Histéria


A configuragio do conceito moderno, reflexivo de Histéria se
deu tanto através de discussões cientificas quanto através de diálogos
politico-sociais do cotidiano. Quem fez a ligação entre os dois niveis
de diilogo foram os circulos do Bildungsbiirgertum, a assim chamada
burguesia culta composta por intelectuais de formação acadêmica,
seus livros e suas revistas, que foram aumentando cada vez mais,
no último terço do século XVIII, sendo seguidos, no século XIX,

* SCHLEGEL. Úber das Studium der griechischen Poesie (1797). In: RASCH, Wolfdietrich
(ed). Kritische Schriften. Munique, 1964, p. 156.

185

Você também pode gostar