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História e historiografia

na Antiguidade Oriental

De há cento e cinquenta anos a esta parte vive-se uma espécie de


segundo Renascimento. Não será efectivamente exagero nem abuso
terminológico apelidar de «Renascimento oriental» a profunda
transformação dos conhecimentos e o espantoso enriquecimento das
vivências culturais resultantes da descoberta das literaturas, das
religiões, das ciências e da arte do Próximo Oriente antigo. E ainda
nos encontramos mais propriamente na fase preparatória do
«Humanismo», sob o alvoroço da descoberta. Que será quando nos for
dado mergulhar de cabeça aos pés nas águas refrescantes do pleno
«Renascimento oriental» e seguir até ao fim, melhor dizendo, até ao
princípio detectável, as raízes mais profundas das civilizações
clássicas?! Em todo o caso desde já «os especialistas podem narrar
1

com grande pormenor o primeiro grande esforço do homem para


erigir uma civilização complexa. Enquanto o centro do segundo
esforço esteve na Grécia e em Roma, o drama anterior centrou-se nas
terras do Egipto, Síria e Mesopotâmia» . Não é, pois, lícito prolongar
2

a euforia do primeiro Renascimento, como se tudo o que veio a ser


Ciência e Filosofia, História e Arte, remontasse finalmente aos Gregos.
Compreende-se que filólogos e historiadores da Antiguidade
Clássica adiram ao orador-filósofo que baptizou Heródoto de «pai da
História» (Cícero, De leg. 1,5), «pois ele criou a história como ideia e, ao
mesmo tempo, transformou a vaga irrealidade da sua contínua
anterioridade, do seu fluxo constante para trás, num cosmos de
1 Cf. S. MOSCATI, L'Orient avant les Grecs, trad., Paris 1963, pp. 3-8.
2 G . E . W B I G H T , Arqueologia bíblica, trad., Madrid 1975, pp. 3 7 - 3 8 .

XII (1982) DJOASEALU 333-358


334 DIDASKALIA

realidade duradoura e de futuro eterno» . Custa, porém, a entender


3

que numa obra dedicada a «A Ideia de História» nas várias etapas do


pensamento humano se arrume em escassas cinco páginas o contributo
da Antiguidade Oriental sob o rótulo sumário de «História teocrática e
mito» , para de imediato se passar à «Criação da História científica por
4

Heródoto» . Nem com a mais tolerante compreensão um


5 6

orientalista se pode dar por satisfeito . E que nem era sequer preciso
1

esperar pela decifração dos textos «historiográficos» amarelecidos nos


monumentos egípcios ou soterrados até há pouco nas colinas de
Lasgash, Nippur, Nínive, Hattusa, Alalakh, Mari e Tell el-Amarna
(Akhet Aton). Analisando a única historiografia oriental que não
ressuscitou com as descobertas arqueológicas porque nunca deixou de
viver, ou seja, o Antigo Testamento, «um dos mais notáveis
historiadores dos últimos tempos» pôde afirmar:
8

«Assim, o apogeu da realeza judaica criou uma verdadeira


historiografia. Nenhum outro povo civilizado do antigo Oriente foi
capaz disso; mesmo os Gregos só aí chegaram no ápice do seu
desenvolvimento, no século V, e então não tardaram em ir mais além.
Aqui, pelo contrário, trata-se de um povo que acabava de entrar na
civilização. (...) Com estas criações, a civilização israelita coloca-se
logo de início, com independência e igualdade de direitos, ao lado do
desenvolvimento que, uns séculos mais tarde, de forma essencialmente
mais rica e mais variada, se processou em solo grego...» Umas 9

décadas mais tarde, sintetizava G. von Rad:.


«Neste campo (da história), os povos do círculo cultural do
Ocidente são discípulos e herdeiros tanto da historiografia grega como
da bíblica» . 10

3 H. STRASBURGER, DielVesensbestimmung der Geschichte durch die antike Geschichtsschrei-


bung, Wiesbaden 1975 , p. 53. K. VON FRITZ, Die griechische Geschichtsschreibung, I, Berlin 1967,
3

mal toca a questão das relações da historiografia grega com a oriental.


4 R . G . COLLING WOOD, A Ideia de História, trad., Lisboa 1978 , pp. 2 3 - 2 7 .
4

5 Ibid., pp. 28-30.


6 E . A. SPEISER, Ancient Mesopotamia, em R . C. DENTAN (ed.), The Idea of History in the
Ancient Near East, N e w Haven, Conn./London 1955, p. 39, n. 6: «But in justice to
Collingwood's provocative study it should be added that its author had not the opportunity to
acquaint himself with much essential information on the progress of historiography among 'our
forerunners in civilization'».
7 Cf. a crítica de W . A. IRWIN, The Orientalist as Historian, JNES 8 (1949) 303-304.
8 Eduard Meyer, nas palavras de R . G . COLLINGWOOD, a. c., p. 2 2 3 .
9 E . MEYER, Geschichte des Altertums, II/2, Stuttgart 1 9 5 3 , pp. 2 8 5 - 2 8 6 .
2

1 0 G. VON RAD, Der Anfang der Geschichtsschreibung im alten Israel, em Gesammelte Studien
zum Alten Testament (TB 8), München 1961, p. 148.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 335
Que Israel foi pioneiro na tarefa de pensar e escrever história
tornou-se comunis opinio entre os especialistas do Antigo Testa-
mento . Mesmo os construtores das civilizações, bem mais
11

brilhantes que a hebraica, do Egipto e da Mesopotâmia não teriam


atingido o nível da historiografia autêntica . 12

Raras vezes os Hititas são chamados à colação. Muito mais


raramente ainda os biblistas se apercebem de que a historiografia hitita
se abalança a disputar a primazia à de Israel. «Muito mais significativo
é que, entre os Hititas, tenha aparecido pela primeira vez na história
mundial um género literário de alto significado: o relato histórico. (...)
O relato histórico hitita tem a noção do que é compendiar
acontecimentos retrospectivamente, a partir de pontos de vista
unitários, evocar impressionantemente situações, num modo que só
volta a ser atingido nos relatos históricos dos Israelitas» . 13

Mesmo seguindo a definição de «historiografia autêntica»


perfilhada pelos exegetas do Antigo Testamento, ter-se-ia de
reconhecer a anterioridade dos Hititas neste campo . 14

A parte uma ou outra excepção ou solução de compromisso ,


15 16

o berço da historiografia parece estar na Hélade para o filólogo e


1 1 Cf. K. ELLIGER, Der Begriff ^Geschichte» bei Deuterojesaja (1955), em Kleine Schriften zum
Alten Testament (TB 32), München 1966, pp. 199-200; H . GESE, Geschichtliches Denken im Alten
Orient und im Alten Testament, Z T K 55 (1958) 127; J. A. SOGGIN, Geschichte, Historie und
Heilsgeschichte im Alten Testament, TLZ 89 (1964) 725.
1 2 G. VON RAD, O. C., p. 149: «Ein auffallendes Unvermögen, geschichtlich in dem oben
bezeichneten Sinn zu denken, charakterisiert die alten Ägypter. Eminent conservativ, eminent
schreibfreudig haben sie doch ihr Nachdenken über die Vergangenheit immer nur antiquarisch
auf Einzelheiten gerichtet und es nicht vermocht, grössere Zusammenhänge zu erfassen. Aber
auch die Kulturen des Zweistromlandes, so bewegt die Geschichte in diesem R a u m auch war,
haben keine Darstellung der Geschichte geschaffen, die über Einzeldokumente der
obengenannten Art wesentlich hinausginge. (...) So sind es nur zwei Völker, die im Altertum
wirklich Geschichte geschrieben haben: die Griechen und lange Zeit vor ihnen die Israeliten».
1 3 A. GOETZB, Hethiter, Churriter und Assyrer, Oslo 1936, p. 73. Não era a primeira
descoberta da capacidade historiográfica dos Hititas, pois já E. Forrer em 1925 e o mesmo A.
Goetze em 1928 haviam chamado a atenção para o facto; Cf. H. CANCIK, Grundzüge der
hethitischen und alttestamentlichen Geschichtsschreibung,Wiesbaden 1976, p. 5.
1 4 Cf. H. CANCIK, Mythische und historische Wahrheit. Interpretationen zu Texten der
hethitischen, biblischen und griechischen Historiographie (SBS 48), Stuttgart 1970, p. 46.
1 5 Não faltam exgetas do Antigo Testamento a negar a consciência histórica e a
«historiografia autêntica» em Israel. Assim L . KOEHLER, Der hebräische Mensch, Tübingen 1953 , 2

pp. 125-126: «Geschichte stezt Vergangenheit voraus; vergangen ist, was seine Wirksamkeit
verliert. In diesem Sinn kennt der hebräische Mensch kaum Vergangenheit oder Geschichte».
O u R . SMEND, Elemente alttestamentlichen Geschichtsdenkens (TSt. 95), Zürich 1968, p. 33: «Es fällt
nicht leicht, macht man sich von dem hier besonders leicht hineinspielenden Bedürfnis nach
Apologetik frei, der) Behauptung Vatkes zu widersprechen: 'Auf dem Standpunkt der eigentlich-
-historischen Betrachtung haben sich die Hebräer überhaupt nicht erhoben und kein Buch des
A. T.... verdient den Namen wahrer Geschichtsschreibung!'».
1 6 A. MALAMAT, Doctrines of Causality in Hittite and Biblical Histotriography, V T 5 (1955) 1:
A historiografia «was a literary genre is the Ancient Near East, apparently introduced by the
Hittites and brought to artistic perfection by the Israelites».
336 DIDÃSKALIA

historiador da Antiguidade Clássica, na Palestina para o exegeta do


Antigo Testamento, na Ásia Menor do 2.° milénio a. C. para o
hititólogo. Mas não há lugar para bairrismos académicos. O que se
impõe é o diálogo dos vários ramos da Orientalística entre si , dos l7

orientalistas com os classicistas , alargado mesmo a historiadores de


18

outras épocas e outras culturas. Todos não somos demais para debater
questões tão complexas e tão fundamentais. Trata-se, efectivamente,
de saber como é que os antigos escritores lidaram com o passado, que
ideia tinham de «história» e do seu conteúdo, em que medida o seu
pensamento histórico foi afectado pelo mundo e mundividência
envolventes.
Nesta perspectiva irénica, hei por bem renunciar metodologica-
mente à definição de «história» e «historiografia» (com maior razão à de
«historiografia autêntica»). Proponho-me simplesmente captar as
grandes linhas do pensar histórico da Antiguidade Oriental, enquanto
veiculado em literatura de algum modo historiográfica. A esta
limitação de género literário (as lendas, os cânticos, os hinos e as
lamentações, os poemas e epopeias mitológicos, para não falar nos
oráculos proféticos de Israel, têm muito a dizer sobre a ideia de história
no Próximo oriente antigo, mas não cabem no espaço que me é dado) a
esta limitação de género literário, dizia, há que juntar a da cronologia:
terminus ad quem da digressão serão os meados do século VI a. C.. Em
breve estará em cena o império persa — uma viragem significativa na
história mundial — e um século mais tarde escreve Heródoto, «o pai da
história»... clássica, pelo menos.

I
Reconhecendo embora o carácter substancialmente homogéneo
da civilização mesopotâmica , afloro separadamente cada uma das
19

1 7 C o m o nos colóquios do Departament of Near Eastern Languages and Literatures da


Universidade de Yale, em colaboração com o Semitic and Blibical Club local e dois especialistas
vindos de fora em 1952/53, donde saiu o volume editado por R . C. DENTAN (n. 6) ou no
exercício interdisciplinar de estudantes de Teologia Protestante e de Orientalística da
Universidade de Münster no Semestre de Inverno 1973 /74, em cuja conclusão foi apresentado o
estudo de J . KRECHER (n. 25).
1 8 Assim no seminário conjunto dos Departement of Near Eastern Studies e Department
of Classics da Universidade de Toronto, subordinado ao tema «Histories and Historians of the
Ancient Near East» e realizado em 1 9 7 4 / 7 5 , onde se produziram os trabalhos de A. K . GRAYSON
(n. seguinte) e H . A. HOFÍNER Jr. (n. 67).
1 9 E . A. SPEISER,O. C.,pp. 3 5 - 7 3 ; H . GESE, pp. 1 2 9 - 1 3 8 . A minha opção de separar as
O. C.,

duas historiografias foi justificada a posteriori pelas observações de A. K. GRAYSON, Histories and
Historians of the Ancient Near East: Assyria and Babylonia, em Orientalia 4 9 (1980) 148.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 337
historiografias — a suméria e a acádica —, buscando a ideia de história
expressa em cada uma delas.
Os Sumérios deixaram-nos muitas referências históricas directas,
mas poucas criações literárias que possamos apelidar de «historio-
gráficas». As próprias fontes históricas não foram exaradas pelo desejo
de conservar para os vindouros a memória dos eventos. Sucede,
porém, o arquivista situar uma vez ou outra o facto na sua perspectiva
histórica, remontando às origens da situação presente ou confron-
tando-a com a passada. Assim na famosa inscrição de Entemena
(c. 2430) — o diferendo entre Umma e Lasgash por causa da fronteira
comum vinha de longe: já Mesilim, rei de Kish (mais de cem anos
antes) o tinha arbitrado . Ou ainda no não menos célebre texto da
20

reforma social de Urukagina: a dedicação de um canal da cidade de


Lagash deu azo a confrontarem-se as duas situações sociais sucessivas e
opostas . São estes os mais antigos lampejos de historiografia
21

sumérica. Introduzindo o meta-estrato da conexão temporal ou


causal, o escriba deixa a arquivística e envereda pela história.
Três obras salientam-se nitidamente da massa do material de
arquivo como autênticas composições literárias de índole (mais ou
menos) historiográfica: um texto do libertador da Suméria, Utuhegal
(2116-2110) a que poderíamos chamar «A Guerra dos Seis Dias»,
«A Maldição de Agade» e a «Lista de Reis».
«A Guerra dos Seis Dias» desenrola-se numa série de quadros:
22

oração inflamada de Utuhegal de Uruk e Inanna, marcha para a guerra


sob a protecção dos deuses, discursos às turbas nos santuários e
entusiasmo transbordante dos ouvintes, estações de refrescamento
espiritual e desobriga cultual em templos e capelas da rota. A partir do
quarto dia (de marcha), o ritmo acelera, como a preparar a fuga
precipitada de Tirigan, o rei do Gútios, logo apanhado e morto. «Pela
estrutura e estilo, (isto é) claramente uma obra literária, não uma
inscrição real, de que nem sequer se toma a forma externa» . 23

2 0 E. SOLLBERGBR-J. R . KUPPER, Inscriptions royales sumériennes et akkadiennes (LAPO 3),


Paris 1 9 7 1 , pp. 7 1 - 7 5 . Referência a Mesilim logo no início, p. 71 ; versão portuguesa do texto em
S. N . KRAMBR, OS Sumérios. Sua História, Cultura e Carácter, trad., Lisboa 1 9 7 7 , pp. 3 4 8 - 3 5 0 .
2 1 S. N . KRAMER, Sumerian Historiography, IEJ 3 (1953) 2 2 7 - 2 3 2 . Versão portuguesa do
texto de Urukagina (ou segundo a proposta de leitura de W . G. LAMBERT em Orientalia 3 9
[1970] 4 1 9 Uru-inim(KA)-gi-na) em I D . , Os Sumérios... pp. 3 5 1 - 3 5 4 .
2 2 Versão francesa do texto em E . SOLLBERGBR-J. R . KUPPER, O. c., 1 3 0 - 1 3 2 .
2 3 H. G. GÜTERBOCK, Die historische Tradition un ihre literarische Gestaltung bei Babyloniem
unt Hethitern, I, Z A 42 (1934) 14. Há um exemplar da época de Isin (séculos x x - x i x a. C.) e outro
mais tardio.
338 DEDASKALIA

Há a convicção profunda de que os homens executam uma missão


divina. Os próprios deuses parecem defrontar-se: no auge do combate,
Nanna (Lua) esconde-se, abandonando à sua sorte os pobres Gútios que
devia proteger, enquanto Utu (Sol) atende a súplica de Utuhegal e o
faz vitorioso. O que não exclui nem dispensa a acção dos homens.
Preparação psicológica da população, alistamento de combatentes,
troca de mensagens, perseguição e captura do inimigo... são elementos
que não envergonham nenhuma historiografia, antiga ou moderna,
«teocrática» ou «iluminada». Importante é ainda o prólogo, que
remonta às origens e causas da situação presente. Provinha esta da
invasão e actuação dos Gútios, «os escorpiões da montanha, que tinham
feito violência aos deuses, que tinham levado para o estrangeiro a
realeza da Suméria, que tinham enchido a Suméria de iniquidade, que
raptaram a mulher de quem tinha uma mulher, que raptaram um filho
a quem tinha um filho, que instalaram a iniquidade e a violência no
país» . 24

Aqui como na reforma de Urukagina a história é uma sucessão de


tempos: tempos maus — tempos bons.
Sequência inversa domina a principal composição historiográfica
suméria, «A Maldição de Agade: o Ekur Vingado» . De Akkad 25

restava apenas a memória e as ruínas. Caíra inexoravelmente às mãos


dos Gútios. Mas porquê' O autor procura as causas e encontra-as no
saque da cidade santa de Nippur. Enlil, ofendido com o sacrilégio de
Naram-Sin (2259-2223), chama os Gútios das montanhas e lança-os
sobre Akkad. Bem vistas as coisas, há aqui mais do que sequência. Os
tempos maus são antes a consequência do pecado de Naram-Sin.
Com a «Lista de Reis» voltamos à ideia de história como
26

sequência. Cada dinastia experimenta a passagem de tempos bons a


tempos maus: «As armas feriram a cidade de x e a sua realeza foi para a
cidade de y».
A razão última das viragens históricas é a vontade soberana dos
deuses: Urukagina corrige os abusos de Lagash como vigário de
E. SOLLBERGER-J. R . KUPPER, 0. C.,P. 130.
2 4

Composta provavelmente em Nippur nos meados do século xxi a. C., só nos chegou
2 5

em cópias dos séculos xvm-xvii a. C.; cf. J . KRECHER, em J . KRECHER-H. P. MÜILER,


Vergangenheitsinteresse in Mesopotamien und Israel, em Saeculum 26 (1975) 15, 23. Versão inglesa
em J . B. PRITCHARD (ed.), Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, Princepton
1969 , pp. 647-651.
3

Provavelmente da mesma época (sec. xxi a. C.), embora a versão actual provenha de
2 6

Ur-Ninurta de Isin (1923-1896), J. KRECHER, O. c., p. 25. A Lista é uma obra historiográfica, cujas
fontes, oriundas de Kish, Uruk e outras cidades, terão sido elaboradas pelos redactores de
Nippur; cf. H . G . GÜTERBOCK, O. C.,pp. 7-8.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 339
Ningirsu; Inanna escolhe e abençoa Sargão e Akkad, sem mérito da
parte deste («A Maldição de Agade»). Só na explicação da ruína de
Akkad se introduz um princípio de racionalização: os deuses não agem
arbitrariamente; castigam pecados humanos.
Ocorre perguntar se isto reflecte a ideia especificamente suméria
de história. Numericamente é uma excepção. Quer-me parecer que
está aqui infiltrada uma concepção semítica. Por duas razões:
a) O pecado de Naram-Sin não é a única explicação de má sorte de
Akkad neste texto de díspares tradições, retocadas e combinadas . 27

A primeira grande viragem da história de Akkad e do reinado de


Naram-Sin irrompe exclusivamente pela vontade de Inanna. Sem
qualquer explicação, a deusa resolve não aceitar os sacrifícios e
abandonar a cidade , b) Com esta atitude mental está de acordo a
28

mundividência suméria: o pecado, se existe, não conta como


elemento de reflexão e busca do racional. Os males individuais, até os
demónios, entram e saem sem qualquer pecado humano. «Tão pouco
como se pode impor aos deuses uma obrigação moral para o seu
comportamento, tão pouco conhece a religião suméria, na medida em
que se exprimem nos nossos monumentos literários, um nexo causal
entre culpa e sofrimento, a nível humano» . O sacrilégio de Naram-
29

-Sin como detonador da ruína da Akkad reflectirá então uma ideia


semítica, segundo a qual o pecado é causa e origem de males colectivos
e individuais . Indiscutivelmente suméria é a ideia de história como
30

sequência de tempos.
O rei e a sua relação com os deuses ocupam uma posição central
nesta historiografia: nas construções, nas reformas sociais, nas empresas
militares, no destino dos seus reinos. Muito cedo aparece a ideia das
dinastias. E uma concepção fundamental da «Lista de Reis» suméria é a
continuidade linear da realeza e das dinastias.

2 7 Tradições sobre a queda de Akkad, tradições sobre a existência de um soberano rival de


Naram-Sin em Nippur, tradições sobre uma crise económica na cidade santa pelos fins da
dinastia de Akkad; cf. J . KRECHBH, O. C., p. 23.
2 8 Na versão de S. N . KRAMER, em J. B. PRITCHARD (ed.) o. c., p. 648: «Holy Inanna
accepted not its gifts /like a princely son who..., she shared not its wealth,/ the 'word of the ekur'
was upon it like a (deathly) silence, / Agade was all atremble, / the Ulmash was in terror / she
who had lived there, left the city, / like a maiden forsaking her chamber, / Holy Inanna forsook
her shrine Agade, / like a warrior hastening to (his) weapon, / she went forth against the city in
battle (and) combat, / she attacked as if it were a foe».
2 9 A. FALKENSTEIN-W. VON SODEN, Sumerische und akkadische Hymmen und Gebete
(Bibliothek der alten Welt), Zürich/Stuttgart, 1953, p. 36; cf. A. FALKENSTEIN, Die Haupttypen
der sumerischen Beschwörung literarisch untersucht, Leipzig 1931, pp. 56, 61.
3 0 Cf. A . FALKENSTEIN-W. VON SODEN, o.e.,pp. 52-53.
340 DIDASKALIA

II
A primeira impressão que se colhe de Babilónios e Assírios é o
seu enorme interesse pelo passado. Três situações vitais estimularam a
pesquisa: a escola com a sua curiosidade e o seu conservadorismo, o
trono e o altar com as suas ânsias de fundamentar a legitimidade.
Os académicos das dinastias semíticas de Isin, Larsa e Babilónia
não se cansaram de copiar documentos históricos do velho e glorioso
império de Akkad. Na prestigiada academia de Nippur as inscrições
de Sargão e sucessores estavam mesmo à mão de semear, nas estátuas
do templo deEnlil. Foram copiadas «com um cuidado e fidelidade que
honrariam qualquer arqueólogo e epigrafista moderno» . 31

Mais duradoiro foi o convívio com o passado nos domínios do


culto. Templos não faltavam e os materiais eram pouco sólidos. Por
altura dos restauros, queria saber-se a sua história. O que era
relativamente fácil: bastava ler as inscrições de fundação. Deste modo,
Salmanassar I (1274-1245) ao restaurar um templo de Assur pôde
registar as vicissitudes por que passara: originalmente erigido por
Ushpia, fora reconstruído por Erishu e, cento e cinquenta e nove anos
mais tarde, por Shamshi-Adad I (1814-1782); tinham passado mais
quinhentos e oitenta anos até à actual reparação. Mal sabia o assírio
que, outros quinhentos e oitenta anos volvidos, Asarhaddon (681-669)
iria ter o mesmo trabalho de restaurar e o mesmo cuidado de anotar a
história do monumento. Nabonido, «um arqueólogo feito rei»
(Speiser), diz ter encontrado a primeira pedra do templo de Shamash,
em Nippur, colocada três mil e quinhentos anos atrás . Um culto 32

tinha de ser devidamente instituído e atestado.


O trono e os seus interesses não dispensaram os serviços da
história. Acontecimentos políticos do século XII legitimam-se com
uma suposta profecia do rei divinizado em vida Shulgi (2093-2046), da
III dinastia de Ur. No século VII, um usurpador assírio toma o nome
dinástico de Sargão (II: 722-705), reclamando-se não só do nome
(Sharrukin, «o rei é legítimo») mas também do prestígio do grande
Sargão de Akkad (outro usurpador), que vivera milénio e meio
antes . A um mecenas das letras assiro-babilónicas como Assurba-
33

3 1 S. N . KRAMER, OS Sumários... p. 79.


3 2 D. D . LUCKENBILL, Ancient Records of Assyria and Babylonia, I, reprinted N e w York
1968, p. 41; cf. E. A. SPEISER, O. c., pp. 45-49.
3 3 Cf. J . KRBCHER, o. c., pp. 15, 2 2 . Entre Sargão de Akkad e Sargão II (722-705) tinha
havido um Sargão assírio, nos princípios do século xix a. C..
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 341

nípal (669-627) ficava bem narrar a pacificação dos Elamitas no fundo


da religião... e da história: os deuses deixaram as devastações dos
vizinhos de Leste «mil e seiscentos anos por vingar» . 34

A concepção linear destas incursões no passado herdaram-na os


Semitas dos Sumérios. Mas elevaram-se muito acima dos seus
predecessores tanto na quantidade das produções historiográficas como
na diversidade dos seus géneros: inscrições reais, anais, cartas ao deus,
listas de reis, crónicas, epopeias históricas, esteias fictícias . 35

A «Crónica de Weidner» , paleobabilónica, é o «primeiro


36

compêndio mesopotâmico sobre a ideia de história» . Partidária, 37

doutrinária e manifestamente abaixo do nível do melhor pensamento


do seu tempo, não deixa de ser, apesar de tudo, uma historiosofia.
Enceta, pelo menos, no Dinástico Primitivo (c. 2750-2350 a. C.),
nimbada de mitologia, mas o seu ponto nevrálgico é a dinastia de
Sargão e os acontecimentos que a rodearam até Shulgi. A ideia de
história é simplicíssima: a ascensão e queda dos reis dependeu sempre
da sua atitude para com o Esagil, o grande templo de Marduk em
Babilónia; os que negligenciaram ou insultaram Babilónia, Marduk e
o seu culto tiveram fim miserável; ao passo que os cumpridores vive-
ram felizes e prósperos. Estão avisados os monarcas presentes e futu-
ros: livrem-se de não cuidar de Babilónia e do seu deus principal.
Uma epopeia histórica babilónica sobre Adad-shuma-usur
(1218-1189) navega nas mesmas águas: oficiais e nobres são bem
sucedidas numa rebelião, porque o monarca desprezara Marduk e
Babilónia. Adad-shuma-usur confessa os seus pecados ao deus e
restaura o templo . 38

Parte-se do esquematismo fundamental sumério: tempos bons-


-tempos maus. Irrompe, todavia, a ideia de correspondência entre acto
e paga. Os deuses não agem com total arbitrariedade; recompensam os
méritos e punem as transgressões dos reis, os únicos responsáveis pelos
destinos da nação. Da mera sequência de tempos nasce a consequência da
acção humana. Chega-se a uma espécie de formulação genérica:
«aquele que peca contra os deuses, a sua estrela não será estável no

3 4 D . D . LUCKENBILL, O. C„ n , 3 5 7 .
3 5 C f . A . K . GRAYSON, O. C., p p . 1 4 9 - 1 8 8 .
Texto, transliteração, versão alemã e comentário em H . G . GÜTEBBOCK,
3 6 O. C.,

pp.45-57; versão francesa em R . LABAT e outros. Les religions du Proche-Orient asiatique. Textes et
traditions sacrés babyloniens-ougaritiques-hittites, Paris 1970, pp. 315-316.
. 3 7 E . A . SPEISES, O. C., p . 5 9 .
3 8 A . K . GRAYSON, u.c., p . 186.
342 DIDASKALIA

céu» . Eis um corolário da concepção semítica do pecado e um passo


39

significante a caminho de uma concepção imanentista da história.


Até no género literário da «estela» (naru, em acádico) fictícia, tão
4 0

parenética e tão concentrada nas lições da história, perpassa esta ideia de


consequência. Por não obedecer a um oráculo que o mandava ficar em
casa e abster-se de aventuras é que o rei fatídico Naram-Sin viu o país
inundado de hordas bárbaras — um «dilúvio» de «morte, peste...
terror, medo... fome, insónias», enfim, de «todos os males» . 41

Fontes históricas de primeira ordem, os anais assírios são 42

redundantes em frases bombásticas, mas literária e historiografica-


mente pobres e pouco adiantam sobre a ideia de história: teoria da
história é teologia da história; o rei é mero vigário do grande deus
Assur, a quem os anais — desenvolvimento literário das inscrições
monumentais e das cartas ao deus — querem louvar e prestar contas.
Levem-se, pois, os auto-elogios e hipérboles não à conta do orgulho
desmesurado, mas antes da piedade devota dos monarcas. Babilónia,
que nunca teve anais em forma, produziu consequentemente uma
historiografia mais objectiva que a Assíria . Prova disso é a chamada 43

«Crónica de Babilónia» , imensamente mais sóbria, imparcial e


44

secular do que os anais assírios: na queda de Nínive pesa pouco ou nada


o favor dos deuses; contam decisivamente as armas dos Medos e dos
Babilónios.
Para deparar com o theologoumenon semítico da história como
consequência entre os Assírios, temos que ir à «Epopeia de Tukulti-

3 9 E . A . SPEISER, o. c . , p . 5 9 .
4 0 Designação porventura mais apropriada do que a de «pseudo-autobiografia», como lhe
chama A. K. GRAYSON, pp. 141,187-188. O primeiro estudioso a identificar e baptizar o
O. C.,

género naru-Literatur foi H. G. GÜTERBOCK, pp. 19,62-86 (textos, com transliteração, versão
O. C.,

alemã e comentário).
4 1 «Esteta» de Naram-Sin, da versão francesa de R . LABAT e outros, o. c., p. 3 1 2 . A versão
integral, ibid., pp. 3 0 9 - 3 1 5 , incorpora um texto que H . G . GÜTERBOCK, O. C., pp. 19, 2 0 , 6 5 - 6 9 ,
v

tratara como independente e para que propusera a designação de «Texto de Suili» (p. 19), do
nome da personagem principal, em substituição do título então usado, «O rei de Kutha». A o
género naru pertence ainda, segundo R . LABAT e outros, a famosa «Lenda do Nascimento de
Sargão», tão aparentada com a lenda do nascimento de Moisés (Ex 2) e que se pode ler nas
versões de R . LABAT e outros, o. c., p. 3 0 8 , J . B . PRITCHARD (ed.), o. c., p. 119 e, com comentário,
H . G . GÜTERBOCK, O. C., p p . 6 2 - 6 5 .
4 2 C o m o os anais assírios são cronologicamente posteriores aos hititas, põe-se a questão de
dependência. A GOETZE, (n. 13), pp. 181-182, observa que os anais assírios incorporam
O. C.,

motivos mítico-épicos estranhos à mitologia hitita e que, em última análise, poderiam remontar
aos Hurritas; H . G . GÜTERBOCK, p. 98 deixa a questão em aberto; A. K. GRAYSON,
O. C., p. O. C.,

150 afirma que os anais são «apparently an Assyrian innovation».


4 3 Cf. E. A . SPEISER, o. c., 64-67.
4 4 Versão inglesa em D . D. LUCKENBILL, O. C., II, 417-421 e J. B. PRITCHARD (ed.), o. c.,
pp. 303-305 (A. L. Oppenheim).
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 343
-Ninurta» , do século xn a. C.: o rei cassita foi vencido, porque
45

quebrara os juramentos aos deuses.


Pela objectividade histórica tiveram os Semitas da Mesopotâmia o
mesmo interesse dos Sumérios, isto é, nenhum. O passado só
interessava enquanto ajudasse a compreender e sobretudo a modelar o
presente. Pouco importava que houvesse ou não um templo de
Marduk em Babilónia no tempo dos reis de Akkad («Crónica de
Weidner»). A Marduk é que o teorizador se tinha de referir se queria
fundamentar historicamente as pretensões hegemónicas daquele deus
(ou do clero do Esagil). A finalidade didáctica e até propagandística foi
um motivo comum na historiografia assiro-babilónica. A «Crónica de
Weidner» é nisso igual à «Profecia de Shulgi», à «Epopeia de Tukulti-
-Ninurta» e à «Estela de Naram-Sin».
Causalidade, a pedra de toque da historiografia moderna, não
existia a não ser na interacção ou sinergismo de deuses e homens, um
ponto indiscutível na mundividência mesopotâmica.
Ao contrário do que tantas vezes se ouve, a história não era cíclica
para Assírios e Babilónios. Passado, presente e futuro faziam parte de
um fluxo contínuo de eventos, com origem num passado distante, mas
sem meio nem fim. Deuses e homens continuavam ad injinitum. Não
há provas de que o pensamento babilónico alguma vez tivesse
concebido uma visão escatológica da história . 46

Entre os lados positivos da historiografia e ideia de história acádica


está a sua intuição de que certos factos merecem ser recordados e
narrados para o futuro e o saber elevar-se, desde os tempos mais
remotos, a considerações sobre a verdade histórica. «Por Shamash e
Aba, conclui uma inscrição de Rimush (2284-2275), juro que isto não
são mentiras; é absolutamente verdade» . 47

III
Em matéria de produção historiográfica e de ideia de história o
vale do Nilo parece ter sido quase tão sáfaro como os desertos que o
circundam. Certamente não faltou trabalho arquivístico ou 48

4 5 Redigida provavelmente depois da vitória de Tukulti-Ninurta I (1244-1208) sobre o


rei cassita de Babilónia. Tradução parcial d e W . G. LAMBERT em Archiv fiir Orientforschung 18
(1957/58) 43-51; cf. J . KRECHER, p. 26.
O. C.,
4 6 A . K . GRAYSON, o. c., p . 191.
4 7 E . SOLLBERGER-J. R . KUPPER, O.
C.,p. 103; cf. ibid.,p. 104 (Manishtushu).
4 8 Pelo menos tão antigo com a V dinastia, donde provém a Pedra de Palermo, e
desembocando no Papiro de Turim, que menciona todos os faraós da I à XIX dinastia, ou seja de
c. 3000-2900 a 1300-1200.
344 DIDASKALIA

interesse antiquário pelo passado , para não falar nas longas listas de
49

faraós, confeccionadas e mantidas por razões de culto funerário . 50

Mas só no Império Novo, com a expansão para a Síria e o fim do


esplêndido isolamento, desabrochava a melhor literatura historio-
gráfica de toda a civilização faraónica.
Quanto à ideia de história, o saldo final de uma investigação
moderna só confirma a imaginável reacção de Heródoto ante o resumo
da história egípcia ouvido da boca de egípcios cultos: «Neste espaço de
tempo (trezentas e quarenta e uma gerações humanas), disseram (os
sacerdotes egípcios), o sol nasceu quatro vezes de modo insólito . 51

Onde agora se põe, de lá nasceu duas vezes, e onde agora nasce, lá se


pôs por duas vezes. E nada então se alterou no Egipto, nem quanto aos
produtos do campo ou do rio, nem quanto ao regime das enfermidades
ou às condições da morte» . Passados dois milénios e meio, parece-
52

nos estar a ouvir um eco: os antigos Egípcios «não puderam ter tido
uma ideia de história comparável nalgum sentido ao que a expressão
significa para pensadores da era presente, ou talvez dos últimos dois mil
e quatrocentos anos» . 53

As hipérboles têm a função salutar de realçar uma verdade


estranha. Mas podem esconder outras. E o facto é que nem em
historiografia nem muito menos em ideia de história foram os
Egípcios absolutamente omissos.
Uma inscrição de Hatshepsut , fonte primária e não propria-
54

mente historiográfica, não compreende a reconstrução de templos e


monumentos sem evocar as causas da situação presente — a acção
demolidora dos abomináveis Hicsos. O «Relato de Ahmose» refere 55

a insustentável situação política do Egipto — o faraó «associado a um


4 9 Patente nas tábuas genealógicas de famílias sacerdotais do III Intermediário; cf. L. Buix,
o. c„ pp. 3-9; J. VERCOUTTER, Fischer Weltgeschichte, II, Stuttgart 1978, pp. 232-233.
5 0 E, por isso, obviamente incompletas, além de tendenciosas: razões teológicas ditaram
a omissão de Akhenaton, herético e contumaz; razões jurídicas opuseram-se à inclusão de
Hatshepsut (1490-1468), simples regente e não rainha; sentimentos patrióticos não admitiram o
culto nem a menção dos abomináveis Hicsos.
5 1 O u , segundo a versão de um texto conjectural, «mudou quatro vezes de moradas»; cf.
HERODOTE, Histoires. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand, Paris 1963 , II, 166, n. 7.
4

5 2 ' E v TOÎVUV TO\STCJ1 TC5 xpóvc.j TETpáxtç ëXeyv èÇ 7)0éwv TÓv fiXtov àvacrriivat
êv9a Ts vüv xaraSiiETat, èvõeÜTcv Slç èrcavaTeiXai, x a i gv9ev vüv ávaTéXXei, èvôaûra
SLÇ xaxaSOvaf x a l oùSsv T<5V XOCT" Aïyu7tTov ÛTTÔ TAÛTA éTepoitoÔîjvat, OÖTC xà
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TA xarà TOÙÇ 0avàTouç.
5 3 L . BULL, O. C„ p . 3 2 .
5 4 Versão inglesa e m j . B . PRITCHARD (ed.), o. c., p. 230.
5 5 Versão inglesa ibid., pp. 232-233.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 345
asiático (rei dos Hicsos) e a um negro (rei da Núbia)» — e descreve
brilhantemente o conselho de Estado e as guerras de libertação. Os
chamados «Anais de Tutmés III», depostos ante o deus Amon no
templo imperial de Karnak, oscilam entre a transcrição dos diários de
campanha (relatos em primeira pessoa, ordens secas aos soldados) e a
descrição primorosa dos acontecimentos. E chegamos à obra
historiográfica por excelência do Império Novo e de toda a literatura
egípcia: o «Boletim» e o «Poema» sobre a batalha de Cades, no
Orontes . Mas que estranha historiografia, mesmo no apogeu.
56

A prosa do «Boletim» começa sóbria e objectiva: quatro divisões, faraó


à cabeça, deixam o Egipto, passam ao Sinai, penetram em Canaã,
atingem o Líbano. Quando, porém, junto a Cades, Ramsées II e a sua
divisão são atacados de surpresa pelos carros hititas, o narrador troca a
realidade pela fantasia: vê-se apenas o faraó a investir, sozinho, furioso
«como seu pai Mont», contra toda a tropa hitita. No «Poema» épico,
prevalece naturalmente a arte sobre a história. Conta-se per longum et
latum et profundum o heroísmo de Ramsés II. Sozinho, desamparado de
todos (de soldados e oficiais, até do deus Amon), menos dos seus
cavalos (ironia pungente!), o faraó resolve o prélio com a ajuda do deus
imperial, chamada e chegada in extremis.
O balanço não é brilhante. Mesmo na mais elaborada
historiografia do Império Novo («Relato de Kamose» «Boletim» de
Cades) fica-se num estádio mais que rudimentar. Nunca o Egipto
faraónico produziu uma visão global e minimamente crítica de
qualquer época do seu passado, nem sequer ao nível da Lista de Reis
suméria ou das Crónicas de Babilónia. E quer dizer da ideia de
história? Faltará ela por completo no antigo Egipto, como quer L.
Buli com a aprovação de H. Gese? 57

De maneira nenhuma. Antes, a ideia de história, própria e


vigorosa, é que impediu o desenvolvimento da historiografia como
nós modernos a entendemos e, ingenuamente, desejaríamos impor a
todas as épocas e culturas. Historiografia é literatura régia, porque a
história é função do rei divino. Em rigor, só o faraó é objecto de
historiografia. Por ele e em relação a ele tudo acontece. «Neste
sentido, escreve-se história egípcia como dogmática do rei-deus» . 58

5 6Introdução e versão inglesa em M . LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, II: The New
Kingdotn, Los Angeles/London 1976, pp. 57-78.
5 7Apelando para a conclusão negativa do egiptólogo americano, H . GESE, O. p. 128
C.,

justifica a omissão dos Egípcios do seu estudo.


5 8 S. MOBENZ, Âgyplische Religion (Die Religionen der Menschheit, 8), Stuttgart
1977 , p. 11.
s
346 DIDASKALIA

Horus incarnado e filho de Rá, o faraó é o garante da ordem cósmica e


social do universo, a maat. Estabelecer a maat implicava uma acção
vasta nos domínios do político, do social, do religioso, do cósmico:
combater as injustiças, satisfazer os deuses, garantir as cheias, os dias e as
noites a seu tempo , até dar caça às feras no deserto... Não fora o
59

rei-deus, e as forças do caos, remetidas para as bordas do cosmos «pela


primeira vez» na criação, desabariam sobre o mundo. História é apenas
um aspecto parcial da maat: os inimigos do estrangeiro como as feras do
deserto são manifestações do caos, pois o mundo é o Egipto; garante da
ordem cósmica, o faraó tinha, por necessidade dogmática, de esmagar
esses restos de caos. O faraó e os Egípcios são os únicos sujeitos da
história, enquanto o resto do mundo não passa de objecto. Narrativas
e representações plásticas só podem então terminar com a vitória dos
Egípcios. Não importa a facticidade, mas sim a situação típica e a ideia
que a suporta. «Os textos e as representações historiográficas têm uma
relação para nós estranha com a realidade, em caso extremo
transmitem factos aparentes que de modo nenhum aconteceram,
reproduzem uma imagem da história cuja relação com os factos é
determinada pela exigência ideal do que devia ter acontecido» . 60

História como consequência da ideologia deu origem ao género


literário da «novela real», tecida à volta de «um acontecimento
importante e que actua através dos tempos; e é sempre o rei, não tanto
como personalidade individual, mas enquanto figura típica, que está no
centro» . Com tamanha idealização e ideologização, até admira
61

como a «novela real» de Kamose e de Tutmés III no conselho de


guerra de Megiddo equilibrou tão bem a restituiçãodo facto com a
dogmática.
No todo, pode considerar-se a ideia egípcia de história como
culto celebrado pelo faraó na qualidade de penipotenciário dos
62

deuses e garante da ordem recta. A alternância de cenas históricas com


cenas cultuais nas paredes dos templos reforça esta ideia e, por outro
lado, encontra aí a sua melhor explicação . 63

5 9 E. O T T O , Geschichtsbild und Geschichtsschreibung in Ägypten, cm Die Welt des Orients 3


(1966) 1 6 5 .
6 0 Ibid., p. 161.
6 1 Die ägyptische Königsnovelle, Leipzig 1 9 3 8 , cit. em S. HERRMANN, Die
A . HERRMANN,
Königsnovelle in Ägypten und in Israel, em W Z Leipzig 3 ( 1 9 5 3 / 5 4 ) 5 1 . C o m o trabalho de A .
Herrmann, o nome de «novela real» teve aceitação geral na Egiptologia.
6 2E. HORNUNG, Geschichte als Fest, 1966.
6 3S. MORENZ, Der Alte Orient. Von Bedeutung und Struktur seiner Geschichte, em I D . ,
Religion und Geschichte des alten Ägypten. Gesammelte Aufsätze, Köln/Wien 1975, p. 69. O
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 347
Os artistas foram efectivamente os primeiros exegetas da ideia
egípcia de história. Já na paleta de Narmer, dos alvores da história,
aparece o rei como figura dominante. As cenas de guerra do Império
Novo são meras elaborações dessa composição arcaica. Sem ajudas no
carro nem inimigos que se lhe oponham, o faraó triunfa. Na caça
como na guerra , o faraó não é um herói, é um deus. Guerra e caça
64

são funções essenciais do rei egípcio, pertencem-lhe de direito. E os


artistas representaram Tutankhamon a abater touros e leões selvagens
no deserto e Hatshepsut, varonil na coragem e nas feições, a combater
ao lado de seu pai Amon... ainda que nem um nem outro tivessem
estado envolvidos bravatas dessas . A dogmática régia obrigava...
65

Raríssimas vezes os Egípcios se aproximaram da consciência


histórica como hoje a entendemos. Ocorrem-me dois casos: no I
Intermediário, com a ruptura da maat — «o que (antes) nunca sucedera,
acontece (agora)» exclama Ipuwer, apontando um facto irreversível
contrário à teoria; no Império Novo, com o reconhecimento de três
partes especialmente significativas da história egípcia — as unificações
do país por obra de Menes, de Mentuhotep e de Ahmose
(periodização) «<>.
IV
Relativamente tardios no palco da história antiga , tardios no 67

horizonte do historiador moderno , os Hititas foram assaz precoces


68

no despertar para a historiografia . Não criaram a partir do zero,


69

estudo aparecera em Summa Histórica — Propyläen Weltgeschichte, 11, Berlin/Frankfurt/Wien


1965, pp. 25-63.
Cf. H . FRANKFORT, Kingship and the Gods. A Study of Ancient NearEastern Religions
6 4

as an Integration of Society and Nature, Chicago/London 1965 , pp. 7-11, onde se contrapõem
5

as concepções egípcia e mesopotâmica da realeza através da arte de cada uma das civilizações.
6 5 C . DBSROCHES-NOBLECOURT, «A pintura egípcia», em J . PIJOAN, História da Arte, I, trad.,
Lisboa 1972, pp. 117-118.
6 6 Cf. J. VERCOUTTER, Fischer Weltgeschichte, II, 310.
C o m H. A. HOFFNER, Histories and Historians of the Ancient Near East: The Hittites, em
6 7

Orientalia 49 (1980) 283 considero hititas os súbditos de uma sequência de reis começada com
Anitta de Kussar (c. 1750) e terminada com Suppiluliuma II (c. 1200).
Prosseguia há mais de cem anos a exploração científica das antigas civilizações do
6 8

Egipto (desde 1798) e da Mesopotâmia (a partir de 1843) quando a missão arqueológica alemã,
chefiada por H. Winckler, descobriu a antiga capital do império hitita (Hattusa) em Boghazküy,
com seus arquivos. A exploração arqueológica de Winckler (1905-1913) foi mais tarde
continuada pelas de K. Bittel (1931-1937; 1952). O checo B. Hrozny, que levou a cabo e
decifração da língua hitita (1915), dirigiu escavações arqueológicas em Kültepe/Kanesh (1925),
retomadas pelo turco T. Ozgiiç em 1948.
Ainda que porventura só um décimo das suas composições literárias contenha
6 9

narrativas históricas e não um quarto, como supõe E. LAROCHE, Catalogue des textes hittites. Paris
1971 (duzentos e vinte «textes historiques» em oitocentas e trinta e três entradas); cf. H . A.
2

HOFFNER, O. C., p . 2 8 4 .
348 DIDASKALIA

é certo, sorvendo como sorveram a tradição histórica sumero-acádica.


Mas, desde os primórdios da sua existência política, viu-se o sangue
novo que injectaram na historiografia oriental . 70

Ainda os Mesopotâmios insistiam no monótomos e paratácticos


encadeamentos de factos das inscrições reais e já Anitta de Kussar
(c. 1750) rebentava o esquema dado com liberdade tal que o primeiro
estudo sério do seu texto o rotolou de espúrio . Com notável 71

capacidade de retrospectiva histórica (linhas 39-42: «antes... mas


depois»), o arquivista-historiador conjugou relatos de construção com
narrativas de guerra e caça, desembocando na vassalagem do «grão
príncipe» da zona, Burushanda, ao primeiro rei hitita. Eis o embrião
de uma historiografia que não deixará de se afirmar cada vez mais
autónoma e mais segura — na sã mundanidade do «Testamento
Político» e na racionalidade desempoeirada dos «Anais» de Hattu-
silis I (c. 1650-1620), no sentido da sequência temporal e na elevada
7 2

técnica historiográfica da «Crónica de Ammuna» , na humana, 73

demasiado humana pré-história do «Edito Constitucional de Tele-


pinu» , tudo do Reino Antigo — até alcançar o apogeu na obra
74

historiográfica de Mursilis II (c. 1329-1300), no Império. Na «Década»


e nos «Anais» como nas «Gestas de Suppiluliuma» , Mursilis
75 76

denuncia uma inovadora concepção globalizante da história e uma


invulgar capacidade de estruturação e composição literárias . 77

7 0 Não está suficientemente provado que o «sentido histórico» dos Hititas seja de atribuir à
simbiose entre os Hatitas autóctenes e os imigrados Hititas, contra A. KAMMENHUBER, Die
hethitische Geschichtsschreibung, em Saeculum 9 (1958) 146; considerar a historiografia hitita como
produto do chamado espírito indo-europeu «ist jedenfalls lediglich mit Hilfe kräftiger Vorurteile
und Unkenntnis aufrechtzuerhalten» (H. CANCIK,Wahrheit... [n. 14], p. 148); cf. H. A. HOFFNER,
o. c., p. 322.
7 1 H . G. GÜTERBOCK, Die historische Tradition un ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern
uni Hethitern, II, Z A 4 4 (1938) 1 4 1 - 1 4 4 : «Anitta hätte also von der Assyrern nur den Rahmen der
königlichen Bau- oder Weihinschrift lernen können, hätte aber dank der den Hethitern eigenen
erzählerischen Begabung seine Lehrmeister übertroffen. Das ist zwar nicht undenkbar, aber auch
nicht gerade wahrscheinlich» (p. 142). Estudos publicados desde 1951 levaram, porém, À
conclusão de que se trata de facto de uma composição do Reino Antigo e o próprio GUterbock se
vergou aos argumentos em favor da autenticidade (OLZ, 1956, col. 5 1 8 ); cf. A. KAMMENHUBBR, 2

o. c., p p . 1 4 8 - 1 5 1 , H . C A N C I K , W a h r h e i t . . . p . 4 7 - 4 8 e H . A . HOPFNER, O. c., p p . 2 9 1 - 2 9 2 .


7 2 H . CANCIK,Wahrheit... p p . 48-49.
7 3 H . A . HOFFNER, O. c„ p . 3 0 6 .
Excertos de texto e comentário em H. HOTTEN, «Hethiter, Hurriter und Mitanni», in
7 4

Fischer Weltgeschichte, III, 112-113.


7 5MURSILIS II. KÖNIG DER HETHITER: Die Annalen, texto hitita e versão alemã de A .
Goetze, Darmstadt 1967 ( = Leipzig 1933).
7 6Texto, transliteração, versão inglesa com introdução e notas de H . G . GÜTERBOCK, The
Deeds of Suppiluliuma as told by His Son Mursiii II, JCS 10 (1956) 41-50; 59-68; 75-85; 90-98;
107-130.
7 7H . CANCIK, Wahrheii..., p. 52-61; Grundzüge der hethitischen und alttestamentlichen
Geschichtsschreibung (n. 13), 1976, p. 49.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 349
Particularmente bem sucedida é a sétima placa das «Gestas» dedicada às
guerras com os Egípcios. Há mais que terçar de armas: várias linhas de
descrição histórica, discursos, conselhos de Estado e de guerra,
manobras diplomáticas (a viúva de Tutankhamon pede a mão dum
príncipe hitita, juízo correcto de situação: que significará um pedido de
casamento depois de uma derrota militar?), certo sentido de
distanciação e causalidade, tudo concorre para fazer das guerras com os
Egípcios uma página memorável, literária e historiograficamente. No
seu todo, a historiografia de Mursilis não sofre comparação com as das
inscrições monumentais de Babilónia nem sequer com os mais
elaborados e em parte contemporâneos anais assírios . 78

A ideia de história tem raízes orientais comuns: teoria da história é,


antes de mais, teologia da história. Jamais algum historiógrafo hitita
concebeu o devir histórico em pura causalidade horizontal. Surgiu até
uma historiografia tão marcadamente teológica que melhor daria pelo
nome de «teologia histórica» ou «história teológica». Não se evoca o
passado pelo simples prazer de narrar, como fazia a tradição histórica,
nem para conservar os factos para a memória dos vindouros, objecto
da historiografia oficial, mas tão-somente para fundamentar
teologicamente situações políticas actuais. Refiro-me às «Orações da
Peste» de Mursilis II e sobretudo à chamada «Autobiografia» ou
79

«Apologia» de Hattusilis III (c. 1275-1250).


8 0

As «Orações da Peste» supõem a ideia semítica de história como


consequência de acções humanas. Grassava uma peste no Hatti.
A origem histórica próxima era clara: trouxeram-na os prisioneiros de
guerra egípcios capturados nas campanhas da Síria. Mas faltava apurar
a causa da última, que só podia ser um pecado grave de um rei hitita.
De consciência limpa, Mursilis acha a causa no rompimento do pacto
com os Egípcios sobre os habitantes de Kurustama. Réu era seu pai,
Suppiluliuma. A «Apologia» de Hattusilis III desenvolve uma ideia
diferente. História (se assim podemos chamar a uma biografia) é um
produto exclusivo e acabado da divindade protectora de Hattusilis,
Ishtar de Samuha. Do berço ao trono, Ishtar «nunca abandonou» (natta
kuwapikki) e «sempre salvou» (humandazapát) o futuro rei. Não se

7 8 C f . H . CKNCIK,Wahrheit... p. 61.
7 9 Versão inglesa em J . B . PRITCHARD (ed.), o. c., pp. 394-396.
8 0 Embora muitas passagens justifiquem estas designações correntes, o texto é para H .
GESE, O. c., p. 139 uma «autobiografia na forma de um decreto real»; mas, na opinião de H.
CÀNCIK,Wahrheit... p. 65, pertence mais propriamente ao género literário dos documentos de
fundação e doação.
350 DIDASKALIA

conta a vida de Hattusilis, canta-se a protecção, o carinho, o poder,


o triunfo de Ishtar. Se há uma lei da história, o seu nome hitita é para
handandatar, qualquer coisa como «ordenação divina», «ordem divina»,
«império justo» da deusa. História não é consequência do agir
humano . Antes se remete o homem para uma passividade e
81

irresponsabilidade total . 82

Mas é isto um extremo. Nos «Anais de Mursilis», apesar das


intervenções miraculosas dos deuses (com predomínio da deusa do Sol
de Arina e do deus da Tempestade, Tesub) , nunca se apaga a 83

participação humana. O que é mais conforme com a ideia geral dada


pela historiografia hitita: sinergismo da causalidade horizontal
(humana) com a vertical (divina). Nem faltam apresentações
historiográficas em que os deuses se eclipsam de todo.
N'«0 Cerco de Ursu», por exemplo, os deuses não têm nenhuma
influência no curso dos eventos, nem sequer se mencionam, a não ser
uma só vez (deus da Tempestade) numa maldição . Eminentemente 84

secular é também o preâmbulo do «Edito Constitucional de Telepinu».


Teologicamente moderados são ainda o «Testamento Político» e as
«Gestas» de Hattusilis I: sem esquecerem os deveres cultuais
(Testamento) e a assistência divina nas batalhas (Gestas), essas obras
concedem largo espaço à iniciativa humana.
Curiosamente, todas estas obras são do Reino Antigo. À medida
que avançamos no tempo, cresce a compreensão teológica da história.
Ao contrário da experiência moderna, a evolução não se dá no sentido
da secularização, mas exactamente na direcção inversa. Os «Anais» de
Mursilis II têm uma ideia de história muito mais teológica do que a
analística antiga.
Tão pouco como os Mesopotâmios ou os Egípcios, os Hititas se
deixaram embalar pelo sonho moderno da objectividade histórica.
Nunca cuidaram de investigar o passado por si próprio. Interessa-
vam-lhes mais as lições da história. E souberam pôr a história ao
serviço da política, com uma tendenciosidade que toca as raias da
propaganda. Nos preâmbulos a decretos ou pactos de vassalagem
8 1 Contra H. GESE, O. p. 139. Cf. n. seguinte.
C.,
8 2 H . A . HOFFNER, o.
c., p. 3 1 6 : «Even of himself Hattusili makes no statement that he
earned his power. N o special obedience or cultic observances secured it for him. It was strictly
of the divine initiative and grace. Ishtar chose him as a child and vouchsafed to him her
protection and constant solicitude».
8 3H . CANCIK. Grundziige... pp. 1 4 4 - 1 4 6 ; H . A . HOHWEK, O. C., p . 3 1 4 .
8 4H . G . GÜTERBOCK, Die historische Tradition...,11,117 (14'): «Möge der Wettergott euch
fortschwemmen!»; H . A. HOFFNER, o. C., p. 299.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 351
trata-se obviamente de uma «historiografia ao serviço de...» Se a
história hitita é um céu aberto de sabedoria na política interna e
externa, argumenta-se, há que acatar sem discussão as leis do país e os
pactos concedidos aos vassalos. Os arrazoados históricos do «Edito
Constitucional de Telepinu» e da «Apologia» de Hattusilis III não
passam de instrumentos de propaganda política, difamando sem
rebuço os reis destronados e legitimando a todo o custo os
usurpadores . 85

Inovadora foi a historiografia hitita no espaço concedido ao


homem — até os generais inimigos se recortam com plasticidade
própria, não são sombras nem caricaturas — e à dimensão política da
86

história . Inovou na busca do racional (argumentação histórica em


8?

documentos jurídicos ), na reflexão sobre a verdade (histórica e até


88 89

ontológica ), com um grau de abstracção pouco comum no 2.°


90

milénio a. C.. Inovou ainda libertando a historiografia do mito.


Soube «ordenar e interpretar os acontecimentos particulares a
partir de um ponto de observação mais elevado» . E chegou a 91

articular uma filosofia da história e do Estado : o Estado hitita 92

prospera sempre que a família real se mantém unida, os grandes não se


«comem» uns aos outros, os cidadãos não perseguem egoisticamente os
seus interesses e ambições, todos seguem os conselhos e as leis do rei
(preâmbulos históricos do «Testamento Político» de Hattusilis I e do
«Edito Constitucional de Telepinu»).

V
Emergindo timidamente do colapso definitivo dos Hititas e do
ominoso entardecer do Império Novo dos Egípcios, Israel parecia
destinado a epígono serôdio e inglório das civilizações pré-clássicas.
Que se havia de esperar daqueles grupelhos seminomádicos e semi-
-selvagens arribados às montanhas agrestes de Canaã pelos fins do

8 5 H . A. HOFFNER, o. c., pp. 307-308,315.


8 6 H . CANCIK, Grundzüge... p. 60.
8 7 Cf. Ibid., pp. 38-43,59-66,143,147-151.
8 3 H . A . HOFFNER, O.C.,p. 300.
8 5 H . CANCIK,Wahrheit... p p . 79-80.
9 0 Ibid., pp. 88-89.
5 1 H . SCHMÖKEL, Geschichte des alten Vorderasiens (Handbuch der Orientalistik, II) Leiden
1957, p. 150, cit. em H. CANCIK, Grundzüge... p. 6.
9 2 H . A . HOFFNER, O. C., p p . 3 0 1 - 3 0 2 .
352 DIDASKALIA

Bronze Recente (1300-1200 a. C.)?! No entanto, desse chão


aparentemente estéril é que iria brotar a mais rica historiografia do
Oriente antigo. Se e em que medida também a «concepção israelita de
história é única no seu género» , há que ver. 93

Só um Estado que faz ele próprio história está em condições de


escrever história, opina E. Schwartz com alguns orientalistas. Se 94

assim é, Israel constitui uma excepção, pois soube debruçar-se sobre


o seu passado e captá-lo com narrativas inolvidáveis muito antes
de se organizar em Estado. Perguntemos aos Egípcios, aos Sumé-
rios ou aos Semitas que lhes sucederam na Mesopotâmia pelo seu
passado pré-estatal, e a resposta será um silêncio opaco, impenetrável.
Israel, ao contrário, reteve e elaborou muitos episódios da sua pré-
-história nomádica e das tentativas de penetração e sedentarização em
Canaã. Refiro-me às sagas da literatura hebraica antiga.
95

Não há que elevar as sagas veterotestamentárias a estatuto


historiográfico que efectivamente não têm. Mesmo as sagas de heróis
do Livro do Juízes, carregadas de sentido político, só tocam, mas não
ultrapassam, o limiar da história. Também não há que rebaixar e
denegrir essas lendas, como se a História tivesse o monopólio de
actualizar o passado. História e saga são duas formas distintas e
igualmente legítimas de aflorar a Geschichte (de «geschehen»,
«acontecer»). Alheia ao preconceito «científico» da «objectividade», em
união vivencial com os episódios que recorda, a saga conserva a
Geschichte com uma riqueza e uma profundidade inacessível à fria
contemplação da história. Saga é história/ Geschichte com todos os
ingredientes vitais que fazem a consciência, a memória... a história de
um povo . 96

Fortemente teológicas (Deus é o grande agente), as sagas vêem a


história fundamentalmente como etiologia e como paradigma.
Satisfazem a curiosidade intelectual respondendo a questões sobre a
9 3 S. MOSCATI, O. c., (n. 1), p . 2 5 9 .
9 4 Citado com aprovação em G. VON RAD, Der Anfang der Geschichtsschreibung im alten
Israel (n. 10), p. 176; no mesmo sentido, O. KAISEE, Einleitung in das Alte Testament. Einführung
in ihre Ergebnisse und Probleme, Gütersloh 1970 , p. 51; A. KAMMENHUBER,
2 O. C.,p. 149, per-
gunta, a propósito do primeiro texto historiográfico hitita, se «jenes grossartige Ereignis, das
Anitta schildert, d. h. die erstmalige Einigung der kleinen protohattischen Lokalfürstentümer
nicht — neben einer besonderen Begabung des Darstellens — mitgewirkt haben konnte, um
einen ebenfalls historischen Bericht zur schaffen».
9 5 «lenda» seria talvez mais correcto, pois a «saga» escandinava não corresponde à «Sage»
alemã (de «sagen», «dizer»), transformada apressadamente em «saga» nas línguas românicas; cf. P.
GILBERT, Légende ou Saga?, V T 2 4 (1974) 4 1 1 - 4 2 0 .
9 6 Cf. G. VON RAD, Das erste Buch Mose. Genesis (ATD 2/4), Göttingen 1961 , 6

pp. 23-26; Theologie des Alten Testaments, 1 , München 1962, p. 121.


4
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 353
origem (ama ou amov) de insólitas realidades actuais. E servem ao
ouvinte/leitor a «moral da história» (paradigma) . 97

Passando às produções historiográficas, afloremos rapidamente


três, porventura as mais significativas: uma monografia («História da
Sucessão de David»), uma história da nação até à entrada em Canaã,
pelo menos («História Javeísta») e a história das vicissitudes de seis
séculos, da sedentarização à monarquia, da afirmação ao cambalear e ao
finar dos reinos judaicos («História Deuteronomista»),
Tida justamente como o «trecho preferido dos exegetas» e a 98

«obra mais bela da arte narrativa hebraica» , a História da Sucessão


99

não se limita a evocar e apresentar os acontecimentos — David a


caminhar para o fim, como homem e como rei, o trono ameaçado, a
sucessão dada vez mais intrincada. Procura desvendar os móbeis dos
agentes, recortar as personalidades, salientar as repercussões. Jamais se
atingira em Israel tal perfeição no domínio de intrigas, caracteres,
questões jurídicas. Nunca se urdira semelhante teia de acontecimentos,
sem modelo nem blocos pré-construídos, com príncipes, espiões,
soldados, até mulheres... a primeira vez que alguém, antes de
Heródoto, julga as mulheres capazes de entrar na história °. 10

E que frescura de mentalidade histórica e de humanismo! Agem


homens, com personalidade e responsabilidade própria, homens de
carne e osso, adúlteros, incestuosos, assassinos, manhosos e sedentos de
poder... não figuras de santos, envoltas em nuvens de incenso. «Não
acontece nenhum milagre, não surge nenhum chefe carismático, mas
os acontecimentos desenrolam-se segundo as suas leis imanentes. (...)
...os acontecimentos seguem seu curso sem que se perceba a menor
falha no nexo causal terreno» . Quem acabou de ler as sagas não
101

pode deixar de estranhar esta ausência de Deus. Mas, afinal, Deus está
lá e... conduz a história (2 Sam 11, 27; 12, 24; 17, 14). Como'
Imperceptivelmente, por meio das causas segundas.
Isto não é apenas uma nova concepção teológica. E também uma
nova concepção da história, devolvida à inteira responsabilidade do
homem. Quem assim pensa e escreve quebrou definitivamente as
9 7 R . SMBND, Elemente alttestamentlichen Geschichtsdenkens (n. 15), pp. 10-23.
9 8 L . ROST, Die Überlieferung von der Thronnachfolge Davids ( B W A N T III/3), Stuttgart
1926, p. 83 = ID., Das kleine geschichtliche Credo und andere Studien zum Alten Testament,
Heidelberg 1965, pp. 191-192: «Lieblingsstück der Exegeten», com aspas no original. Citarei
doravante segundo a reimpressão.
9 9 Ibid., p. 244.
>0° H . CANCIK, Grundzüge... p. 106.
G. VON RAD, Der Anfang... p. 185.
354 DIDASKALIA

amarras que o ligavam às antigas instituições sacrais; respira a atmosfera


envolvente do iluminismo salomónico, numa profanidade inteira-
mente desmitificada.
Sensivelmente contemporânea deve ser a «Históriajaveísta» , de 102

esquema (tempos primordiais, dilúvio, tempos históricos) e finalidade


(legitimar as pretensões hegemónicas da dinastia reinante) semelhantes
aos da Lista de Reis suméria. Mas, se o modelo é mesopotâmico, que
tranformações não sofreu nas mãos talentosas do Javeísta! Uma lista 103

seca tranforma-se em narrativa dinâmica. Rudimentos de história


nacional (o mundo era a Suméria...) dão lugar a uma história mundial,
cujos horizontes vão da Mesopotâmia ao Egipto (Gn 12) e onde cabem
Arameus, Amonitas, Moabitas, Edomitas, Quenitas e Filisteus. De uns
farrapos de história política nasce uma história cultural e das
mentalidades.
Também aqui a história é devolvida ao homem. O próprio
objecto da «História Javeísta», sobretudo na introdução das Origens,
é o homem com os seus problemas (o bem e o mal, o trabalho e a dor,
os avanços culturais de mistura com retrocessos morais... suprema
ambiguidade do progresso!), o homem, não a realeza e as suas
ambições («Lista de Reis»), não as instituições e os lugares sagrados
(«Crónica deWeidner»).
E também aqui teoria da história continua a ser teologia da
história. Mesmo sem milagres, até na mais retinta profanidade, era
óbvio que Deus conduzia a história. A questão estava em saber «como»
e «em que direcção». Ao primeiro quesito estava já dada resposta
(História da Sucessão): no curso normal dos acontecimentos. «Em que
direcção» via-se agora: do mare tnagnum de povos para Abraão, e deste,
rumo à posse de Canaã. E com isto surgia uma novidade absoluta, não
só em Israel com em toda a Antiguidade Oriental: história não é
amálgama de eventos desconexos; tem uma unidade global; obedece a
um plano. O Javeísta consegue captar a dinâmica, mais, a dialéctica da
história, feita de realizações, fracassos e adiamentos até descansar na
posse tranquila de Canaã. A posse da «terra», meta final dos patriarcas
Não convencem as tentativas recentes de J. V A N SETERS, Abraham in History ia
1 0 2

Tradition, N e w Haven, Conn./London 1 9 7 5 , A . M E I N H O I D , Die Gattung der Josephsgeschichte und


des Estherbuches; Diasporanovelle, I, Z A W 87 (1975) 306-324; II, ibid., 88 (1976) 72-93 e H H .
SCHMID, Der sogenannte Jahwist. Beobachtungen un Fragen zur Pentateuchforschung, ZUrich
1976, no sentido de baixar a data de J (da era davídico-salomónica para o sec. vi a. C.) ou de pôr
em dúvida a sua própria existêntia.
E. A. SPEISER, Genesis (AB 1), Garden City, N . Y . , 1 9 6 4 p. XXVII: «If so much in the
1 0 3

Book of Genesis remains vivid and memorable to this day, the reason is not metely the content
of the tales but, in large measure as well, the matchless way in whicht J has told them».
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 355
seminómadas, é adiada era quatrocentos anos para caber em sorte ao
povo das doze tribos.
A «História Deuteronomista» , se é verdade que o problema de
104

interpretar a história nasce com o fracasso , estava em condições 105

ideais para teorizar. E de facto oferece uma «teoria da história de


Israel». Teoria simples, mas teoria apesar de tudo e de certo modo
adequada, pois explicita em categorias de pensar histórico um mundo
complexo de vivências e acontecimentos. Basta considerar o prólogo
do Livro dos Juizes (Jz 2) ou as considerações sobre a queda de
Samaria (2 Re 17,7 ss). Quantas personagens, quantos lugares, quanto
tempo não se comprimem nos juízos abstractos das formulações
genéricas! . Procura-se captar o «sentido autêntico» da história de
106

Israel à luz de seiscentos anos de acontecimentos e da sua reprodução


em dezenas de documentos, escritos e orais. Acaba por se escrever
uma grandiosa teodiceia em forma de narrativa: Deus foi reagindo à
apostasia crescente com avisos e castigos e, finalmente, quando estes
não resultaram, com a aniquilação completa . 107

Mais uma vez teoria da história é teologia da história. Só ainda


não satisfazem as respostas dadas até aí ao «como» da direcção divina.
Com um abandono do profano que lembra a evolução da
historiografia hitita, respondem os Deuteronomistas: Deus intervém
na história pela palavra autêntica dos seus profetas . E assim se 108

1 0 4 Reconstituída por M . N o t h , Überliejcrungsgeschichtliche Studien, Halle 1 9 4 3 Tübingen


e Darmstadt 1967 . Uso a edição de Darmstadt. Contrariamente a M . N o t h (um só autor da
3

«História Deuteronomista»), H. W e i p p e r t , Die «deuteronomistischem Beurteilungen der Könige von


Israel undJuda und dos Problem der Redaktion der Königsbücher, em Biblica 5 3 (1972) 3 0 1 - 3 3 9 supõe
pelo menos três redactores para os Livros dos Reis. S. M i t t m a n n , Deuteronomium.
Literarkritisch und traditionsgeschichtlich untersucht (BZÄW 139), Berlin 1975, com uma
proposta inovadora (já na história da redacção o Deuteronómio está ligado tanto ao Pentateuco
como ao bloco Josué-Reis) ainda não abalou seriamente a reconstituição de M . Noth. Para u m
balanço da discussão científica cf. E. J b n n i , Zwei Jahrzehnte Forschung an den Büchern Josua bis
Könige, T R u 2 7 (1961) 9 7 - 1 1 8 , 1 4 2 - 1 4 6 ; F. L a n g l a m e t , recensão conjunta de R . Smend, Das
Gesetz un die Völker, em H . W . W o l f f (ed.)., Probleme biblischer Theologie, Festschrift f ü r
Gerhard von Rad, München 1971, pp. 4 9 4 - 5 0 9 ; T . V e i j o l a , Das Königtum in der Beurteilung der
deuteronomistischen Historiographie, Helsinki 1977; B . C. B i r c h , The Rise of the Israelite Monarchy,
Missoula, Montana, 1 9 7 6 , em R B 8 5 (1978) 2 7 7 - 3 0 0 .
1 0 5 J . Hempel, Die Mehrdeutigkeit der Geschichte als Problem der prophetischen Theologie,
citado em M. W e i p p b r t , Fragen des israelitischen Geschichtsbewusstseins, V T 2 3 (1973) 4 2 5 . De
modo: semelhante, A . A l t , Die Deutung der Weltgeschichte im Alten Testament, STK 5 6 (1959)
130 = ID., Zur Geschichte des Volkes Israel, München 1979, p. 441: a interpretação da história
mundial em Israel é «eine unter den Schmerzen des Erlebens und Erleidens unter Wehen
geborene neue Einsicht...»
1 0 6 H. C a n c i k , Grundzüge... p. 3 9 .
1 0 7 M . N o t h , O. c., p . 1 0 0 .
G. von Rad, Die deuteronomistische Geschichtstheologie in den Königsbiichern, em
1 0 8

Gesammelte Studien. , pp. 189-204.


356 DIDASKALIA

transforma toda aquela história num «único, monstruoso vactícinium


ex eventrn . 109

Teoria da história, teodiceia e profecia em marcha, a «História


Deuteronomista» persegue objectivos concretos. Interessam-lhe sobre-
maneira as lições da história. Também ela é uma etiologia e um
paradigma: etiogia da Palestina perdida (J era a da posse) e paradigma
das condições fundamentais para reencontrar e continuar a história
nacional . Havia exemplos de crises graves: a passagem à
110

sedentarização (Jz), a instauração da monarquia (1 Sam). Nessas


situações desesperadas, a solução foi reconhecer a apostasia e voltar a
Javé. É o que agora, com a independência perdida e a população
desterrada, os Deuteronomistas não se cansam de pregar: iub,
«converter-se», «voltar-se» ocorre constantemente nos seus discursos . 111

Pelo volume de materiais manuseados, pelos grandes lapsos de


tempo tratados numa só obra, pela investigação do modo de agir de
Deus, pelo espaço reservado aos homens, a historiografia israelita é
única no mundo oriental. Não difere das suas congéneres na
concepção linear do tempo, nem no carácter pragmático, nem na
dimensão teológica global. A sua especificidade está em abrir os olhos
para a dialéctica e até para o mistério da história. E na ideia de um
112

plano executado por homens livres sob a alta direcção de Deus, que até
escreve direito por linhas tortas (Gn 50, 20). O historiador moderno
apreciará sobretudo dois traços: a profanidade dos escritores
salomónicos e a preocupação de objectividade dos Deuterono-
113

mistas . 114

1 0 9 H. Cancie, Grundzüge... p. 4 0 .
1 1 0 R . Smend, Elemente... p. 27.
1 1 1 H . W . W o l f f , Das Kerygma
des deuteronomistischen Geschichtswerks, em Gesammelte
Studien zum Alten Testament (TB 22), München 1964, pp. 308-324.
1 1 2L. D b l e k a t , Tendenz und Theologie in der David-Salomo-Erzählung, em Das ferne und
nahe Wort (Feztschrift flir Leonard Rost), B Z A W 105, Berlin 1967, p. 28: os pontos fulcrais da
História da Sucessão «erklären nicht, warum die Herrschaft fest in Salomos Hand lag, sondern
lassen diese Tatsache vielmehr als unerklärlich, als ein Ärgernis erscheinen. Eben dies ist offenbar
die Absicht der Erzählung».
1 1 3Salientada por E. M e y e k , Geschichte des Altertums, II, 2 , pp. 2 8 5 - 2 8 6 : «(Es) zeigt sich
3

hier in geradezu groteskerWeise die in der Weltgeschichte waltende Ironie, dass diese durch und
durch profanen Texte (História da Sucessão) dem Judentum und dem Christentum als heilige
Schriften gelten...»
O Deuteronomista raras vezes toma a palavra. Prefere deixar falar as antigas tradições,
1 1 4

ainda que opostas às suas ideias fundamentais. Assim, narra sem objecção e sem crítica vários
actos de culto fora de Jerusalém, sobretudo antes de Salomão construir o templo: em Silo (1 Sam
1-2), em Gabaon (1 R e 3), em Ofra (Jz 6,11-24). Cf. M. N o t h , O. C., pp. 95,106-107.
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 357
VI
Dentro dos seus condicionalismos culturais, a começar pela
mundividência teológica, o Próximo Oriente antigo produziu não só
documentação histórica mas elaborações historiográficas baseadas em
fontes. Se esse é dificilmente o caso de Mesopotâmios e Egípcios, os
Hititas e sobretudo os Israelitas souberam criar obras literárias em que
os eventos do passado revivem nas suas complexas determinantes
políticas, sociais, familiares, humanas e religiosas. Não foram
sociedades fechadas em pensar mágico ou mítico, cúltico ou cíclico.
O que H. Cancik afirma para o 2.° milénio a. C. é mais exacto para
Israel do 1.° milénio: «Em determinados círculos destas sociedades, nas
diversas culturas com força diversa, vivia uma consciência histórica que
se articulou em várias formas de historiografia» . 115

Não encontramos aí nada de semelhante a Tucídides. Descrever


povos estrangeiros por si próprios, como faz Heródoto nas suas
«Histórias Persas», não ocorre no Oriente Antigo. Mas é injusto erguer
biombos ou cavar abismos ilusórios entre a historiografia oriental e a
clássica. Ouçam-se apenas classicistas.
A. Momigliano censura K. von Fritz por omitir a historio- 116

grafia oriental no estudo da grega: «A questão do aparecimento dos


géneros historiográficos é inseparável da questão das relações entre a
historiografia grega e a oriental» . H. Stasburger, apoiado nos117

relatos da conquista de Sardes (1,86) e da queda de Mileto (6,19), diz


que Hérodoto não encontrou uma posição filosófica segura entre a
interpretação teológica tradicional e a política-racional moderna . 118

Neste ponto, o primeiro historiador seria também «o último


representante da era arcaica» . Aí está o cordão umbilical da
119

interpretação teológica a ligar a historiografia clássica à pré-clássica.


Se a «história teocrática» de Collingwood fosse negação da história,
teríamos de adiar para Tucídides a paternidade dessa ciência... para,
mesmo aí, ficarmos quase engasgados, ao engolir Alexandre como
filho de Zeus e descendente de Hércules e Aquiles.

1 1 6 H . Cancik,Wahrheit..., p. 51.
1 1 6 Cf. supra, n. 3.
1 1 7 E m Gnomon 44 (1972) 207, citado cm H. Cancik, Grundzüge... p. 69, n. 9.
1 1 8 H . Strasburges, o. C., p p . 5 4 , 7 0 - 7 1 .
1 1 9Ibid., p. 70: «Von einem echten Primat der theologischen Geschichtsschreibung kann
man, wenn ich nicht irre, nur bei Herodot sprechen; der erste Historiker ist in dieser Hinsicht
zugleich der letzte Repräsentant des archaischen Zeitalters».
358 DIDASKALIA

Para debater até ao fundo o papel dos deuses ou de Deus na


história, teríamos de deixar esta pela metafísica. E também aqui
poderíamos evocar um clássico — o grande Homero — e um seu
intérprete moderno. A intervenção dos deuses nas epopeias homéricas
não empobrece a interpretação da história, antes a considera «na sua
significação absoluta» e na conexão universal do mundo. «Desse
modo, surge à plena luz a limitação, a miopia e a dependência das
acções humanas em relação aos decretos hiper-humanos e inson-
dáveis» . 120

A tendência marcadamente pragmática da historiografia oriental


tem excelente continuidade em Tucídides e Políbio, que vêem na
história a grande mestra da acção política e militar, e em Salústio e
Tácito, que se comprazem em apresentar exemplos edificantes ou
repugnantes da vida moral . 121

A melhor maneira de julgar a historiografia e a ideia de história da


Antiguidade Oriental não é, porém, comparando-as com as clássicas
ou as modernas, mas enquandrando-as no seu ambiente cultural e nos
pressupostos essenciais de qualquer actividade historiográfica. A histo-
riografia oriental é produto da sua época, como a história da Igreja de
Eusébio era filha da apologética e a dos tempos modernos se reconhece
na filosofia racionalista . O Iluminismo pôs termo a cerca de quatro
122

milénios de teologia da história e transformou o melhor que pôde a


ideia cristã de história: a criação passou a evolução; Jesus Cristo
a consciência histórica da humanidade; a expectação do fim da história
veio dar, em algumas versões atraentes, a teoria do progresso gradual.
O resultado final foi outra escatologia dogmática , posto que 123

atenuada e humanizada.
Resta ver aonde a evolução vai dar e se a filosofia, a teologia, a
história ou a sociologia prevalecerão na interpretação das acções
humanas. Facto é que a teologia da história se manteve por bons quatro
milénios. A filosofia da história, sua sucessora, parece não chegar aos
quatro séculos... 124

JOSÉ NUNES CARREIRA

120 w . J a e g e r , Paideia, trad., Lisboa s. d., p. 74.


1 2 1Cf. H. S t r a s b u r g e r , O. c., pp. 52-53.
1 2 2H . v o n Campenhausen, Les Pàresgrecs, trad., Paris 1963, p. 8 6 .
1 2 3P . S c h u b e r t , The Twentieth-Century West and the Ancient Near East, em R . C . D e n -
tan (ed.), o. c„ pp. 310-317.
1 2 4J. L b G o f f - P . N o r a , Fazer História, I, trad., Lisboa, 1977, p. 11: «A história nova, que
recusa mais resolutamente do que nunca a filosofia da história...»

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