Uma Análise Filosófica Do Discurso Proprietário

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UMA ANÁLISE FILOSÓFICA DO DISCURSO PROPRIETÁRIO

Felipe Frank1

1. INTRODUÇÃO

Desvelar a propriedade exige, além de um estudo jurídico e de uma


busca histórica em relação à sua formação, um estudo crítico, dialeticamente
aberto à filosofia, à economia política, à sociologia e, principalmente, à
realidade. Nesse sentido, empreender-se-á neste artigo uma busca pela forma
como este instituto jurídico se estabeleceu socialmente e como ele se reproduz
culturalmente, investigando-se, para tanto, a ordem do discurso que o
(re)produz e que torna o factível nas relações privadas e mesmo na cultura
ocidental.
Antes de se adentrar à análise do tema, impede fazer alguns
aclaramentos preliminares à investigação. Filiar-se-á à perspectiva de
MacPherson, para quem a criação dos institutos sociais é feita pelo homem
(man-made), seja para atender suas necessidades vitais, seja para manter
determinadas vontades de classe (wants of the classes), as quais estão ligadas
a desejos, cuja abrangência vai da necessidade de existência da classe e de
sobrevivência daqueles que a compõem ao desejo de manutenção de
determinado status quo alcançado pela classe e por aqueles que a integram.2
Por classes sociais, entenda-se, segundo Marilena Chauí:

As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações
sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de
suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho,
instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e
legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições
sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas

1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); bacharel em Direito pela
UFPR; pesquisador do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da UFPR "Virada de
Copérnico"; advogado.
2
MACPHERSON, Crawford Browgh. Property, mainstream and critical positions. 6.
Reimpressão. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 1.
instituições através de sistemas determinados de idéias que
exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes
sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades
3
econômicas, políticas e culturais.

Sabendo-se que existem determinadas posições sociais passíveis de


serem objetivadas em classes segundo sua maior ou menor similitude e poder
de interferência sobre a ordem estatal, evidencia-se a criação de vários
discursos, em diferentes instâncias sociais, que servem à propagação e à
defesa dos interesses dessas classes e dos indivíduos que a integram.
Passar-se-á, assim, à investigação de como se dá a produção e o
controle do discurso na sociedade para que se possa compreender o que é o
chamado discurso proprietário que permeia, por exemplo, enunciados como
este: “Um bom sistema jurídico mantém a lucratividade das empresas e o bem-
estar do povo alinhados, de modo que as pessoas que buscam lucros também
beneficiem o público.”4

2. A ORDEM DO DISCURSO

Segundo Michel Foucault, o discurso não se restringe à pronunciação


de dado enunciado, à pronunciação de uma luta; revela, também, a ligação
entre o desejo e o poder daquele que o profere ou que por ele é beneficiado,
conformando, portanto, não apenas a tradução de uma contenda, mas
principalmente “aquilo pelo que se luta”5. Nesse sentido, o discurso representa,
de per se, a materialização de certa visão de mundo, e é justamente por esta
relevância que:

A produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,


organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
6
materialidade.

3
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/12876624/Colecao-Primeiros-Passos-O-Que-e-IdeologiaMarilena-
Chaui>. Acesso em: 01 set. 2012. p. 21.
4
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010,
p. 26.
5
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 10.
6
Ibidem, pp. 8-9.
Eroulths Cortiano Jr. afirma que o discurso materializa ideologias,
estando “na base da produção da existência humana”7. Nesse sentido, aduz
que “o discurso ao mesmo tempo constrói e desconstrói o saber; ele serve para
conhecer e desconhecer, para reprimir e para emancipar.”8
Foucault afirma que o discurso está na ordem das leis, (re)produzindo-
se sob o amparo de instituições sociais, as quais conferem validade e poder
aos discursos nelas desenvolvidos, incidindo sobre a forma como o
conhecimento é delimitado, aplicado, valorizado, distribuído, repartido e
atribuído9.
E é justamente por reconhecer esse poder existente nas diversas
instituições sociais, dentre as quais pode ser incluída a própria Universidade,
que Eroulths Cortiano Jr. afirma estar o ensino do Direito em crise, e em
especial o ensino do direito de propriedade, uma vez que:

O direito de propriedade que se ensina no Brasil é


descontextualizado, dogmático e unidisciplinar, como demonstra a
cartografia traçada pela Ordem dos Advogados. Por evidente,
existem exceções, em professores ou instituições, mas exceções que
só fazem confirmar a regra. Este trabalho parte, então, de uma
constatação: o ensino do direito de propriedade está, também,
descontextualizado, dogmatizado e pecando por ausência de
interdisciplinariedade. Por isso, ele é objeto de investigação que
permite compreender melhor o problema maior da crise do ensino
jurídico.
[...]
Considerando as variadas formas de se compreender a estruturação
socioeconômica da sociedade moderna, todas elas envolvendo, de
uma forma ou de outra, o direito de propriedade, a questão diz
respeito às formas de compreender o fenômeno proprietário: como
estudar o direito de propriedade. Não se quer ver no problema seu
viés epistemológico ou metodológico, o que demandaria outra
espécie de investigação. O que interessa aqui é posicionar-se diante
do estudo do direito de propriedade a partir da análise de quando,
onde e como se o estuda. Entre a realidade social e a realidade
normativa, o objeto do estudo do direito de propriedade está
agrilhoado a um ensino descontextualizado, dogmático e
10
pluridisciplinar.

7
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 3.
8
Ibidem, p. 3.
9
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 17.
10
CORTIANO JR., Eroulths. Op. Cit., pp. 212-213.
Nesse sentido, é possível afirmar que a própria Universidade – quando
propaga de forma acrítica, descontextualizada, estritamente dogmática e modo
unidisciplinar qualquer conhecimento que seja – contribui, e muito, para o
controle do discurso.

As exclusões e escolhas presentes no discurso do ensino jurídico


produzem e mantêm o discurso proprietário, e para conhecê-lo,
precisa-se conhecê-las. Por outras palavras, há um discurso no
ensino jurídico que limita as possibilidades do discurso proprietário.
Dentre os enunciados que conformam o discurso proprietário está o
discurso do ensino jurídico. Tomando o ensino como uma relação
existente, sobremaneira, entre professor e aluno com referência a um
objeto, estar-se-á diante de uma situação de inculcação. Nesse
situação os papéis e funções são definidos, o professor informa
aquilo que o aluno desconhece, e por isso as informações
transmitidas têm caráter de cientificidade e chegam ao destinatário
através de uma linguagem especializada. Como o local onde se dá o
discurso pedagógico é o da escola, há uma legitimação do discurso
11
que ali se produz.

Segundo Foucault12, esse controle se realiza pela existência de certos


procedimentos de exclusão e de limitação, os quais podem ser tanto de ordem
interna quanto externa. Quanto aos procedimentos de exclusão, são externos
aqueles que extrapolam materialmente o próprio discurso, e internos aqueles
que protegem discursivamente o próprio discurso.
No que diz respeito ao controle externo, Foucault arrola três
procedimentos: (i) interdição; (ii) separação e rejeição; (iii) vontade de verdade.
A interdição impede que qualquer um fale sobre qualquer coisa. Para
tanto, reveste-se o objeto indesejado com tabu, a circunstância com dado ritual
e o sujeito que fala com certo atributo, faculdade, privilégio, título ou
exclusividade para proferir algo sobre aquilo.13
A separação e a rejeição opõem razão e loucura, fazendo com que
aquilo que é proferido por alguém considerado louco seja tido por insanidade e
não seja ouvido; doutro lado, o discurso institucionalmente amparado, por mais

11
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, pp. 220-221.
12
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 9.
13
Ibidem.
louco que seja, terá vez e voz14, tal qual ocorre com a propriedade sob uma
leitura mais crítica do Direito.
Por fim, a vontade de verdade representa a oposição historicamente
organizada entre o verdadeiro e o falso. Assim, conforma-a a busca pela
representação, pelo aporte técnico-institucional que tornará determinado ato
ritualizado verdadeiro.15
Nesse sentido, apenas à medida que as diferentes visões de mundo
ganham amparo institucional é que se faz possível “mudar” a verdade.
Quanto ao controle interno, é possível afirmar que o discurso controla a
si próprio por meio de três procedimentos, a saber: (i) pelo comentário; (ii) pelo
princípio de autoria; (iii) e pela disciplina.
Pelo comentário, desde que proferido por um sujeito com
representação, traz-se à luz aquilo que estava implicitamente contido no texto,
atribuindo-se significação ao texto.16 Destaque-se, entretanto, que esta
significação não é imutável, podendo sofrer deslocamentos que possibilitem
sustentar discursos completamente diferentes sobre a mesma base.17
Permite-se, pois, a construção e a fundamentação de diferentes
discursos por um mesmo texto, tal qual ocorre com a Constituição.
Foucault não concebe o autor como aquele que criou algo ou
determinado discurso, mas aquele que lhe conferiu unidade e coerência à
ficção, à ideia, de modo a torná-la factível.18 É, pois, a teoria do medalhão de
Machado de Assis19 aplicada à composição do discurso, já que o autor se
apresenta como alguém distinto dos demais, que destaca por compilar e se
submeter a pensamentos alheios já consolidados, não sob um viés crítico, mas
sim como alguém que meramente reproduz uma determinada posição
sedimentada por meio de um argumento de autoridade.

14
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.
10-11.
15
Ibidem, p. 14.
16
Ibidem, p. 25.
17
Ibidem, p. 24.
18
Ibidem, p. 28.
19
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Teoria do medalhão. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf>. Acesso em: 01 set. 2012.
Por fim, quanto à disciplina, entenda-se a sistematização das
proposições sobre determinado objeto, não como a totalidade das verdades
ditas a respeito dele, mas sim como aquilo que permite que o discurso seja
reatualizado, que dá abertura à formulação de novas proposições discursivas.
Isso ocorre porque ela não se limita a um único autor nem precisa ser repetida,
redescoberta e ressignificada; opõe-se, portanto, ao autor e ao comentário20.
A despeito dos limites do discurso, verifica-se a existência de regras
impostas àqueles que proferem os discursos, dividindo-se em rituais (que
estipulam a qualificação daqueles que proferem o discurso21), doutrinas (que
definem os conteúdos e aqueles que “melhor” dele trataram22) e apropriação
social dos discursos (que se consubstancia nos sistemas institucionais em que
o sujeito tem contato com o discurso – ex: na educação, no judiciário etc.23).
Nas palavras de António Manuel Hespanha:

Note-se que as produções jurídicas consistem e decorrem de


discursos. A própria língua em que os juristas se exprimem pode ter
influência no conteúdo do discurso, ao estabelecer um campo de
24
referência (de citações, de reenvios) relativamente limitado.

Nesse sentido, Foucault afirma que “se quisermos analisá-lo [o


discurso] em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é preciso [...] questionar
nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento;
suspender, enfim, a soberania do significante”25.
Para tanto, o autor arrola quatro procedimentos de inversão, aos quais
nos filiaremos para conduzir o presente trabalho, quais sejam: (i) um princípio
de inversão (que se opõe à criação, investigando a fonte dos discursos como
se expandem e como foi estabelecida sua continuidade); (ii) um princípio de
descontinuidade (que aduz serem os discursos atos descontínuos, nem sempre
conexos, e que podem ser colidentes, conflitantes ou mesmo excludentes); (iii)
um princípio de especificidade (segundo o qual não existem significações
20
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.
30-31.
21
Ibidem, p. 39.
22
Ibidem, pp. 41-42.
23
Ibidem, pp. 43-44.
24
HESPANHA, António Manuel. A história do direito na história social. Lisboa: Livros
Horizonte, 1978, p. 49.
25
FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 51.
prévias); (iv) e uma regra de exterioridade (para a qual não cabe investigar o
interior de um discurso, suas razões, mas seus efeitos externos)26.
Tendo-se, assim, em mente que o discurso não se limita à
pronunciação de um enunciado, conformando um conjunto de práticas
disseminadas e controladas, em maior ou menor grau, por intermédio de
procedimentos institucionalizados de controle interno e externo, passar-se-á à
investigação do discurso proprietário, investigação esta que será conduzida
pelas quadro noções de inversão numeradas por Foucault, pretendendo-se,
com isso, analisar este discurso de forma crítica, desvelando-se suas
condições, seu jogo e seus efeitos.

3. O DISCURSO PROPRIETÁRIO

Para que melhor se compreenda o significado da palavra propriedade,


faz-se necessário não se restringir aos conceitos e às fórmulas jurídicas
apartadas de uma análise filosófica, histórica e sócio-econômica, uma vez que,
segundo MacPherson27, o seu significado não é constante, tendo sofrido, ao
longo da história, uma série de mudanças, as quais derivam dos propósitos da
sociedade.
Com efeito, esses propósitos são definidos, em maior ou menor grau,
pelo complexo discursivo estabelecido pelas classes sociais política ou
economicamente dominantes e pelos sujeitos que põe em prática em sua vida
cotidiana o discurso vigente sobre a propriedade.
Ressalte-se, também, que as mudanças de significado do instituto são
determinadas pelo discurso que rege a propriedade em dado contexto sócio-
econômico. Na modernidade, segundo Eroulths Cortiano Jr., “a entrada em
cena de uma organização social e política racional-individualista, baseada

26
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.
51-53.
27
MACPHERSON, Crawford Browgh. Property, mainstream and critical positions. 6.
Reimpressão. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 1.
economicamente na circulação de riquezas [...] fez com que uma determinada
concepção de propriedade ocupasse o centro do universo jurídico.”28
Para Pietro Barcellona há:

[…] de um lado, a concepção da propriedade como a expressão de


um domínio abstrato sobre a terra, baseado em um título jurídico [...];
e de outro lado a concepção da propriedade como gestão produtiva
de uma atividade de transformação da natureza, baseada em uma
29
posse efetiva e destinada ao mercado.

A concepção, trazida por Pietro Bacellona, de propriedade como


gestão produtiva de uma atividade de transformação da natureza remete àquilo
que se convencionou chamar de posse, instituto jurídico que foi posto a serviço
da propriedade e, assim, teve sua efetividade circunscrita pelas formalidades
inerentes àquilo que Barcellona chamou de propriedade abstrata baseada em
um título.
Quanto à concepção de propriedade abstrata, verifica-se que está
calcada no individualismo proprietário, cuja realização se dá pela desaparição
do sujeito, pelo uso e pelas necessidades exclusivamente pessoais, os quais
interessam única e exclusivamente ao indivíduo consumidor separadamente
considerado.30
Essa concepção tem, segundo MacPherson, sete razões, ou melhor,
suposições de ser, derivadas da mudança histórica das relações sociais e,
consequentemente, das ideias que as sustentavam, o que será exposto no
capítulo referente à composição histórica do discurso proprietário. Passemos
agora às sete suposições de ser, descritas por MacPherson31:
(i) a propagação da ideia de que aquilo que faz o homem humano é
justamente a liberdade dele não depender da vontade dos outros;

28
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 5.
29
Tradução livre de: “De un lado, la concepción de la propriedad como la expresión de un
dominio abstracto sobre la tierra, baseado en un título jurídico [...]; y del otro lado la concepción
de la propriedad como gestión productiva de una actividade de transformación de la naturaleza,
baseada en la posesión efectiva y destinada al intercambio.” BARCELLONA, Pietro. El
individualismo proprietario. Madrid: Editora Trotta, 1996, p. 114.
30
Ibidem, p. 93.
31
MACPHERSON, Crawford Browgh. The political theory of possessive individualism –
Hobbes to Locke. 13. Reimpressão. New York: Oxford University Press, 1990, pp. 263-265.
(ii) a ideia de que ser livre da vontade dos outros significa ser livre de
quaisquer relações para com outrem, exceto aquelas relações queridas
voluntariamente pelo indivíduo, de acordo com seu próprio interesse;
(iii) a ideia de que o indivíduo é dono absoluto de sua própria pessoa e
de suas próprias capacidades, não precisando prestar contas destas à
sociedade como um todo, isso porque a noção de propriedade foi ligada a um
direito exclusivo, personalíssimo;
(iv) decorrente das afirmações anteriores e em especial da última, a
possibilidade de o indivíduo poder alienar suas próprias capacidades, isto é, a
sua capacidade laboral;
(v) o fato de a sociedade ter se reduzido ao mercado e às relações nele
estabelecidas fez com que apenas as relações entre os proprietários (o que
inclui aqueles que apenas têm a própria força de trabalho) fossem tidas por
relevantes, determinando aquilo que seria tutelado pelo Direito;
(vi) na medida em que a liberdade do indivíduo é mensurada pela sua
liberdade em relação à vontade dos outros, deduziu-se às regras e obrigações
a máxima liberal de que a liberdade individual cessa na mesma medida em que
inicia a liberdade de outrem, limitando-se, com isso, a possibilidade de impor
limites diferentes à(s) liberdade(s) individualmente pensada(s);
(vii) ao fato de que as convenções estabelecidas em sociedade
derivam do desejo de manutenção de certa ordem sobre as relações de troca
mercadologicamente estabelecidas, protegendo-se, notadamente, aquilo que
cada indivíduo possui para proteger, assim, a sua própria liberdade.
Às sete suposições de MacPherson é possível incluir uma oitava,
deduzida a partir dos ensinamentos de Pietro Barcellona, e que, em certa
medida, acaba por desvelar o sentido das suposições de MacPherson.
Estamos a falar da teoria de Barcellona32 segundo a qual o individualismo
proprietário é fruto da transformação do princípio proprietário em princípio de
organização do sistema. Assim, pode-se dizer que:
(viii) a propriedade surge para instrumentalizar o mercado, casa da
nova classe dominante, possibilitando a circulação privada da riqueza.33

32
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietario. Madrid: Editora Trotta, 1996, p. 91.
33
Ibidem, p. 113.
A condução dessas oito suposições tem, em certa medida, amparo
também em outros autores, como Eroulths Cortiano Jr., que afirma que “a
propriedade deixa de ser um direito da pessoa para se transformar no princípio
da organização da sociedade marcada agora pelo signo do econômico”34, e
Stefano Rodotà35, para quem a propriedade, antes de sua ressignificação, era
o paradigma constitutivo de um modelo de sistema de relações econômicas,
cuja finalidade estava na satisfação das necessidades individuais, no
individualismo possessivo.
Nesse sentido, é possível afirmar que a propriedade foi pensada não
para a sociedade em sua integralidade, mas para a manutenção do status de
um certo homem, inserto em relações inter-subjetivas por ele criadas.
Possibilitou-se, com isso, a tutela dos interesses da nova classe que ascendia
ao poder, incrementando as trocas e o intercâmbio de bens (o que inclui o
próprio trabalho humano) e culminando na mercantilização dos bens e das
próprias relações humanas.
Deixando claro o que se entende por discurso proprietário e a corrente
à qual se filia o presente estudo, aduz-se, nas palavras de Eroulths Cortiano Jr,
que:

Pode-se falar num discurso proprietário: conjunto de enunciados


de diversas ordens (econômicas, políticas, jurídicas),
cuidadosamente elaborados, transparentes na prática discursiva
do modelo proprietário. O discurso proprietário é composição,
elaboração e limitação. Os limites, cortes e rupturas paradoxalmente
constroem e desconstroem o discurso. Esse mecanismo aparece
através de um jogo de exclusões e escolhas que serve para a
36
manutenção do próprio discurso. (grifos nossos)

Assim, a propriedade é, na verdade, princípio de organização sócio-


econômica protegido pelo Direito e constantemente recriada pela ordem
discursiva que lhe serve de fundamento e de limite.

34
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 9.
35
RODOTÀ, Stefano. El terrible derecho: estudios sobre la propiedad privada. Madrid:
Editorial Civitas, 1986, pp. 37-38.
36
CORTIANO JR., Eroulths. Op. Cit., pp. 219-220.
4. CONCLUSÕES

A reflexão problematizante aqui empreendida buscou desvelar a


propriedade moderna, marcada pela abstração das relações de pertencimento.
E, talvez mais do que isso, buscou desvelar o discurso proprietário responsável
por firmar essa propriedade como mentalidade profunda, apta a ordenar as
relações sócio-econômicas engendradas no mercado, assegurando, assim, os
interesses daqueles que se beneficiam deste modelo de pertencimento.
Para isso, verificou-se que o discurso proprietário – consubstanciado
nos enunciados de ordem econômica, jurídica e política – é cuidadosamente
limitado pelas mais diversas formas mais de controle interno e externo do
discurso.
Verificou-se, também, que, mais do que descrição de uma dada ordem,
o discurso proprietário é a própria ordem jurídico-econômico-política, é ele o
princípio de organização do sistema sócio-econômico, apto a instrumentalizar o
mercado sob a perspectiva do sujeito proprietário – que goza de liberdade na
medida em que exerce o seu direito subjetivo abstrato de propriedade.
Aqui também se evidenciou, segundo Foucault37, que todo saber
assegura o exercício de um poder, revelando-se que o saber funciona na
sociedade dotado de poder e, em uma relação causal, sustenta e é sustentado
por ele, servindo tanto à dominação quanto à emancipação das vítimas, em
uma complexa estrutura que sustenta o controlado discurso proprietário.
Cabe, pois, inverter e desvelar esse discurso, sua pretensão de
verdade e de validade, para, assim, se constatar que a propriedade não tem
um só significado, que ela não é neutra, bem como que ela não é produto único
e exclusivo das classes dominantes, mas também é práxis e como tal deve ser
direcionada à emancipação da pessoa humana cuja dignidade é, segundo Luiz
Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk “aferível no atendimento das
necessidades que propiciam ao sujeito se desenvolver com efetiva liberdade –
que não se apresenta apenas em um âmbito formal, mas se baseia, também, a

37
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Org. Roberto Machado. 30. reimpressão.
Rio de Janeiro: Graal, 2012.
efetiva presença de condições materiais de existência que assegurem a
viabilidade real do exercício dessa liberdade.”38
Em suma, trata-se de conferir tutela não a direitos abstratos, mas às
pessoas concretamente consideradas, cuja realização de uma vida digna, nos
termos supraexpostos, depende, materialmente, de determinados bens
essenciais.
Portanto, a propriedade pode, sim, ser um instrumento direcionado à
emancipação das pessoas concreta e coexistencialmente consideradas, mas
tudo depende da forma como é filosoficamente assimilada, uma vez que,
conforme destacado por Dussel39, as ciências sociais tanto podem ser críticas
quanto meramente funcionais (funcional no sentido organicista, de manter o
funcionamento da sociedade sem alterar o seu status quo), pertencendo a nós
o dever de desvelar e inverter esse discurso a partir da identificação de suas
vítimas.

38
FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa
humana no direito contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do
neopositivismo constitucionalista. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 35, Rio de Janeiro,
2008, pp. 108-109.
39
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 443-444.

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