Uma Análise Filosófica Do Discurso Proprietário
Uma Análise Filosófica Do Discurso Proprietário
Uma Análise Filosófica Do Discurso Proprietário
Felipe Frank1
1. INTRODUÇÃO
As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações
sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de
suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho,
instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e
legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições
sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas
1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); bacharel em Direito pela
UFPR; pesquisador do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da UFPR "Virada de
Copérnico"; advogado.
2
MACPHERSON, Crawford Browgh. Property, mainstream and critical positions. 6.
Reimpressão. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 1.
instituições através de sistemas determinados de idéias que
exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes
sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades
3
econômicas, políticas e culturais.
2. A ORDEM DO DISCURSO
3
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/12876624/Colecao-Primeiros-Passos-O-Que-e-IdeologiaMarilena-
Chaui>. Acesso em: 01 set. 2012. p. 21.
4
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010,
p. 26.
5
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 10.
6
Ibidem, pp. 8-9.
Eroulths Cortiano Jr. afirma que o discurso materializa ideologias,
estando “na base da produção da existência humana”7. Nesse sentido, aduz
que “o discurso ao mesmo tempo constrói e desconstrói o saber; ele serve para
conhecer e desconhecer, para reprimir e para emancipar.”8
Foucault afirma que o discurso está na ordem das leis, (re)produzindo-
se sob o amparo de instituições sociais, as quais conferem validade e poder
aos discursos nelas desenvolvidos, incidindo sobre a forma como o
conhecimento é delimitado, aplicado, valorizado, distribuído, repartido e
atribuído9.
E é justamente por reconhecer esse poder existente nas diversas
instituições sociais, dentre as quais pode ser incluída a própria Universidade,
que Eroulths Cortiano Jr. afirma estar o ensino do Direito em crise, e em
especial o ensino do direito de propriedade, uma vez que:
7
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 3.
8
Ibidem, p. 3.
9
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 17.
10
CORTIANO JR., Eroulths. Op. Cit., pp. 212-213.
Nesse sentido, é possível afirmar que a própria Universidade – quando
propaga de forma acrítica, descontextualizada, estritamente dogmática e modo
unidisciplinar qualquer conhecimento que seja – contribui, e muito, para o
controle do discurso.
11
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, pp. 220-221.
12
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 9.
13
Ibidem.
louco que seja, terá vez e voz14, tal qual ocorre com a propriedade sob uma
leitura mais crítica do Direito.
Por fim, a vontade de verdade representa a oposição historicamente
organizada entre o verdadeiro e o falso. Assim, conforma-a a busca pela
representação, pelo aporte técnico-institucional que tornará determinado ato
ritualizado verdadeiro.15
Nesse sentido, apenas à medida que as diferentes visões de mundo
ganham amparo institucional é que se faz possível “mudar” a verdade.
Quanto ao controle interno, é possível afirmar que o discurso controla a
si próprio por meio de três procedimentos, a saber: (i) pelo comentário; (ii) pelo
princípio de autoria; (iii) e pela disciplina.
Pelo comentário, desde que proferido por um sujeito com
representação, traz-se à luz aquilo que estava implicitamente contido no texto,
atribuindo-se significação ao texto.16 Destaque-se, entretanto, que esta
significação não é imutável, podendo sofrer deslocamentos que possibilitem
sustentar discursos completamente diferentes sobre a mesma base.17
Permite-se, pois, a construção e a fundamentação de diferentes
discursos por um mesmo texto, tal qual ocorre com a Constituição.
Foucault não concebe o autor como aquele que criou algo ou
determinado discurso, mas aquele que lhe conferiu unidade e coerência à
ficção, à ideia, de modo a torná-la factível.18 É, pois, a teoria do medalhão de
Machado de Assis19 aplicada à composição do discurso, já que o autor se
apresenta como alguém distinto dos demais, que destaca por compilar e se
submeter a pensamentos alheios já consolidados, não sob um viés crítico, mas
sim como alguém que meramente reproduz uma determinada posição
sedimentada por meio de um argumento de autoridade.
14
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.
10-11.
15
Ibidem, p. 14.
16
Ibidem, p. 25.
17
Ibidem, p. 24.
18
Ibidem, p. 28.
19
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Teoria do medalhão. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf>. Acesso em: 01 set. 2012.
Por fim, quanto à disciplina, entenda-se a sistematização das
proposições sobre determinado objeto, não como a totalidade das verdades
ditas a respeito dele, mas sim como aquilo que permite que o discurso seja
reatualizado, que dá abertura à formulação de novas proposições discursivas.
Isso ocorre porque ela não se limita a um único autor nem precisa ser repetida,
redescoberta e ressignificada; opõe-se, portanto, ao autor e ao comentário20.
A despeito dos limites do discurso, verifica-se a existência de regras
impostas àqueles que proferem os discursos, dividindo-se em rituais (que
estipulam a qualificação daqueles que proferem o discurso21), doutrinas (que
definem os conteúdos e aqueles que “melhor” dele trataram22) e apropriação
social dos discursos (que se consubstancia nos sistemas institucionais em que
o sujeito tem contato com o discurso – ex: na educação, no judiciário etc.23).
Nas palavras de António Manuel Hespanha:
3. O DISCURSO PROPRIETÁRIO
26
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.
51-53.
27
MACPHERSON, Crawford Browgh. Property, mainstream and critical positions. 6.
Reimpressão. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 1.
economicamente na circulação de riquezas [...] fez com que uma determinada
concepção de propriedade ocupasse o centro do universo jurídico.”28
Para Pietro Barcellona há:
28
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 5.
29
Tradução livre de: “De un lado, la concepción de la propriedad como la expresión de un
dominio abstracto sobre la tierra, baseado en un título jurídico [...]; y del otro lado la concepción
de la propriedad como gestión productiva de una actividade de transformación de la naturaleza,
baseada en la posesión efectiva y destinada al intercambio.” BARCELLONA, Pietro. El
individualismo proprietario. Madrid: Editora Trotta, 1996, p. 114.
30
Ibidem, p. 93.
31
MACPHERSON, Crawford Browgh. The political theory of possessive individualism –
Hobbes to Locke. 13. Reimpressão. New York: Oxford University Press, 1990, pp. 263-265.
(ii) a ideia de que ser livre da vontade dos outros significa ser livre de
quaisquer relações para com outrem, exceto aquelas relações queridas
voluntariamente pelo indivíduo, de acordo com seu próprio interesse;
(iii) a ideia de que o indivíduo é dono absoluto de sua própria pessoa e
de suas próprias capacidades, não precisando prestar contas destas à
sociedade como um todo, isso porque a noção de propriedade foi ligada a um
direito exclusivo, personalíssimo;
(iv) decorrente das afirmações anteriores e em especial da última, a
possibilidade de o indivíduo poder alienar suas próprias capacidades, isto é, a
sua capacidade laboral;
(v) o fato de a sociedade ter se reduzido ao mercado e às relações nele
estabelecidas fez com que apenas as relações entre os proprietários (o que
inclui aqueles que apenas têm a própria força de trabalho) fossem tidas por
relevantes, determinando aquilo que seria tutelado pelo Direito;
(vi) na medida em que a liberdade do indivíduo é mensurada pela sua
liberdade em relação à vontade dos outros, deduziu-se às regras e obrigações
a máxima liberal de que a liberdade individual cessa na mesma medida em que
inicia a liberdade de outrem, limitando-se, com isso, a possibilidade de impor
limites diferentes à(s) liberdade(s) individualmente pensada(s);
(vii) ao fato de que as convenções estabelecidas em sociedade
derivam do desejo de manutenção de certa ordem sobre as relações de troca
mercadologicamente estabelecidas, protegendo-se, notadamente, aquilo que
cada indivíduo possui para proteger, assim, a sua própria liberdade.
Às sete suposições de MacPherson é possível incluir uma oitava,
deduzida a partir dos ensinamentos de Pietro Barcellona, e que, em certa
medida, acaba por desvelar o sentido das suposições de MacPherson.
Estamos a falar da teoria de Barcellona32 segundo a qual o individualismo
proprietário é fruto da transformação do princípio proprietário em princípio de
organização do sistema. Assim, pode-se dizer que:
(viii) a propriedade surge para instrumentalizar o mercado, casa da
nova classe dominante, possibilitando a circulação privada da riqueza.33
32
BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietario. Madrid: Editora Trotta, 1996, p. 91.
33
Ibidem, p. 113.
A condução dessas oito suposições tem, em certa medida, amparo
também em outros autores, como Eroulths Cortiano Jr., que afirma que “a
propriedade deixa de ser um direito da pessoa para se transformar no princípio
da organização da sociedade marcada agora pelo signo do econômico”34, e
Stefano Rodotà35, para quem a propriedade, antes de sua ressignificação, era
o paradigma constitutivo de um modelo de sistema de relações econômicas,
cuja finalidade estava na satisfação das necessidades individuais, no
individualismo possessivo.
Nesse sentido, é possível afirmar que a propriedade foi pensada não
para a sociedade em sua integralidade, mas para a manutenção do status de
um certo homem, inserto em relações inter-subjetivas por ele criadas.
Possibilitou-se, com isso, a tutela dos interesses da nova classe que ascendia
ao poder, incrementando as trocas e o intercâmbio de bens (o que inclui o
próprio trabalho humano) e culminando na mercantilização dos bens e das
próprias relações humanas.
Deixando claro o que se entende por discurso proprietário e a corrente
à qual se filia o presente estudo, aduz-se, nas palavras de Eroulths Cortiano Jr,
que:
34
CORTIANO JR., Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 9.
35
RODOTÀ, Stefano. El terrible derecho: estudios sobre la propiedad privada. Madrid:
Editorial Civitas, 1986, pp. 37-38.
36
CORTIANO JR., Eroulths. Op. Cit., pp. 219-220.
4. CONCLUSÕES
37
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Org. Roberto Machado. 30. reimpressão.
Rio de Janeiro: Graal, 2012.
efetiva presença de condições materiais de existência que assegurem a
viabilidade real do exercício dessa liberdade.”38
Em suma, trata-se de conferir tutela não a direitos abstratos, mas às
pessoas concretamente consideradas, cuja realização de uma vida digna, nos
termos supraexpostos, depende, materialmente, de determinados bens
essenciais.
Portanto, a propriedade pode, sim, ser um instrumento direcionado à
emancipação das pessoas concreta e coexistencialmente consideradas, mas
tudo depende da forma como é filosoficamente assimilada, uma vez que,
conforme destacado por Dussel39, as ciências sociais tanto podem ser críticas
quanto meramente funcionais (funcional no sentido organicista, de manter o
funcionamento da sociedade sem alterar o seu status quo), pertencendo a nós
o dever de desvelar e inverter esse discurso a partir da identificação de suas
vítimas.
38
FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa
humana no direito contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do
neopositivismo constitucionalista. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 35, Rio de Janeiro,
2008, pp. 108-109.
39
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 443-444.