HARTOG, F. Regimes de Historicidade

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Tempo da viagem e tempo na o bra "V·1agem " ................ . 113 PREFÁCIO

As ruínas ....... ............... .... ..... ... ... .. ....... .. ... .. ... .. .. ..... ··· 122
Ordem do tempo 2
Capítulo 4 -Memória, história, presente .......................... .. 133 Presentismo pleno ou padrão? 1
As crises do regime moderno ............. ......... ... .. .. .......... . 136
A ascensão do presentismo .......... ......... .. ............. .. ........ . 140
As fendas do presente ............. .................. ..... ... : .. ....... . 149
Memória e história ...... ........... ... ..... .. ........ .... .. ... .. .. ..... . 157
Histórias nacionais.. .. ... ........ .. ....... .. ..... ...... ..... .... ..... ... 170
Comemorar .. ..... .... .............. .. ..... .......... ...... ... ...... . ··· ··· 183
O momento dos "Li eux de mémoire".... ....... ................... 185 Publicada em 2003, esta obra falava de "crise" do tempo, mas
evidentemente não da crise em que estamos mergulhados desde
Capítulo 5- Patrimônio e presente...... .. ............................ 193 2008. Longe de mim a ideia de me atribuir uma capacidade profética
História de uma noção .............. .. .. ............. ....... ........... 195 (mesmo retrospectiva)! Mas, entre a crise, primeiramente financeira,
Os Antigos .... ..... .. ..... .... .... .. .. ..... ....... .... ..... ... ... ..... . ···· 201 que se alastrou a partir dos Estados Unidos, e um mundo em que,
Roma .......................... .... ........ ... ... .... ..... ........... .. .... ... 209 reinando absoluto, o presente se impõe como único horizonte,
A Revolução Francesa ........ ... .... .................................. · 220 não é difícil perceber algumas correlações. Que palavras ouvimos
Rumo à universa lização .. .. ....... ..... ..... .... ...... ...... .. ...... . . 231 desde 2008? "Crise", "recessão", "depressão", mas também "mu-
O tempo do meio ambiente .............. ......... .............. .. .. . 238 tação (profunda)" e até "mudança de época". "Nada mais será
como antes", alguns proclamaram rapidamente. "Porém, as coisas
Conclusão - A dupla dívida ou o presentismo do presente .. .. 247 retomarão (subentendido, como antes!), proclamaram os outros (ou
os mesmos) com igual vigor; percebem-se algumas recuperações,
O autor ....... ......... ..................................... .. ........ ......... . 261 a retomada está próxima, já se vê uma saída, não, a recessão ainda
,In d'1ce rem1ss1vo
. . ......... .................................................... . não terminou ou está recomeçando, mais ameaçadora ainda e, de
263
todo modo, o desemprego deve (ainda) aumentar, e os únicos pla-
nos possíveis são os de demissões coletivas". Na Europa, culpam-se
agora os déficits públicos, ao passo que a especulação financeira

1
O título original deste prefacio é "Présentisme plein ou par défaut?". Se "plein" é evidente - pleno,
"par défaut" não o é: " padrão" serve, aqui, como adjetivo que é muito usado em linguagem da
info rmática (by default), ou seja, na ausência de outro regime o presentismo funcionaria como
o " padrão" . Agradecemos aos colegas Matheus Pereira (UFOP) , José Otávio Nogueira (UnB) ,
Fern ando Nicolazzi (UFRGS), Marcos Veneu (Casa Rui Barbosa) e, principalmente, a Eliane
Mi s i:~k (F UR.G), que sugeriu a fó rm ula que apresentam os para o título do novo prefacio e que
fo i ratificada po r Franço is Hartog, bem como nos auxilio u em várias o utras qu estões ao longo
do tex to . (No ta elo reviso r gera l)
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESEI,!TISMO E EXPERIÊNCIAS DO TEMPO PREFÁCIO - PRESENTISMO PLENO OU PADRÃO?
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segue seu rumo (o que haveria de mais presentista do que essa es- Razão do valor tranquilizador de uma fórmula como "a retomada"
peculação?) . Ao imediatismo do tempo dos mercados não podem (retomar significa, de fato, repartir de onde se estava), diretamente
se ajustar nem o tempo da economia nem mesmo o tempo político ligada à nossa incapacidade coletiva de escapar ao que agora é
ou, antes, os tempos p·olíticos. Aquele, imperioso, dos calendários usual chamar, na França, de "court-termisme", ou seja, a busca do
eleitorais; aquele, conhecido desde a noite dos tempos, que consiste ganho imediato, e que eu prefiro denominar "presentismo". O
em " ganhar tempo" (decidindo adiar a decisão); aquele, recém- presente único: o da tirania do instante e da estagnação de um
-chegado, mas não menos exigente, da comunicação política (que presente perpétuo.
tem por unidade de cálculo o tempo midiático), em virtude do qual O que o historiador pode propor? A "retomada" não faz
os dirigentes políticos devem "salvar", por exemplo, o euro ou o evidentemente parte de seus atributos. Todavia, ele pode convidar
sistema financeiro - digamos, a cada dois meses - ou pelo menos a um desprendimento do presente, graças à prática do olhar dis-
proclamá-lo. E, mais profundamente ainda, as velhas democracias tanciado. Isto é, a um distanciamento. O instrumento do regime
representativas descobrem que elas não sabem muito bem como de historicidade auxilia a criar distância para, ao término da ope-
ajustar os modos e os ritmos da tomada de decisão a esta tirania do ração, melhor ver o próximo. Este era, em todo caso, o projeto
instante, sem arriscar comprometer aquilo que, justamente, cons- e o desafio de minha proposta.2
tituiu as democracias. A hipótese (o presentismo) e o instrumento (o regime de
Encheram nossos ouvidos com o mau capitalismo financeiro historicidade) são solidários, completam- se mutuamente. O re-
(de visão curta), em oposição ao bom capitalismo industrial dos gime de historicidade permite formular a hipótese e a hipótese
administradores de outrora ou de pouco tempo atrás. Contudo, leva a elaborar a noção. Pelo menos de início, um não anda sem
desde que os historiadores se debruçaram sobre a história do ca- o outro. "Por que, perguntaram- me, preferir o termo regime ao
pitalismo, eles têm reconhecido sua plasticidade. Se há uma certa de forma (de historicidade) "? E por que "regime de historicidade"
unidade do capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente de em vez de "regime de temporalidade"? Regime: a palavra remete
hoje, ela deve ser creditada, em primeira instância, à sua plastici- ao regime alimentar (regimen, em latim, diaita, em grego) , ao re-
dade a toda prova, concluía Fernand Braudel: à sua capacidade de gime político (politeia), ao regime dos ventos e ao regime de um
transformação e de adaptação. Para ele, que distinguia economia motor. São metáforas que evocam áreas bem diferentes, mas que
de mercado e capitalismo, este vai sempre onde está o maior lucro: compartilham, pelo menos, o fato de se organizarem em torno das
"Ele representa a zona do alto lucro". Considerando a história do noções de mais e de menos, de grau, de mescla, de composto e
capitalismo desde a Idade Média, o historiador belga Henri Pirenne de equilíbrio sempre provisório ou instável. Assim, um regime de
se espantara com a "regularidade realmente surpreendente das fases historicidade é apenas uma maneira de engrenar passado, presente
de liberdade econômica e das fases de regulamentação". Marc Bloch e futuro ou de compor um misto das três categoriais, justamente
acrescentava, em uma conferência de 1937, que, desde a abolição como se falava, na teoria política grega, de constituição mista (mis-
das dívidas na Atenas de Sólon (no século VI a.C.), "o progresso turando aristocracia, oligarquia e democracia, sendo dominante
econômico consistia em uma sequência de bancarrotas". de fato um dos três componentes) .
Sem querer transformar este prefácio em uma exposição sobre
a crise atual, constatamos que , uma vez superada às pressas a crise 2
Ver HARTOG, François. Sur la notion de régime d'historicité. Entretien avec F. Hartog. In:
financeira de 2008, reinou e reina por toda parte uma extrema DELA C RO IX, C hristi an; DOSSE, Fra nço is; GARCIA, Patrick (Dir.). Historicités. Paris: La
dificuldade para enxergar além. M ais se reage do que se age . Déco uvcrtc, 2009. p. 133- 151.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO
PREFÁCIO - PRESENTISMO PlENO OU PADRÃO?
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"Historicidade", por quê? De Hegel a Ricreur, passando por registrado nos almanaques dos contemporâneos; é construído pelo
Dilthey e Heidegger, o termo remete a uma longa e pesada histó- historiador. Não deve ser assimilado às instâncias de outrora: um
ria filosófica. Pode-se enfatizar seja a presença do homem para si regime que venha suceder mecanicamente a outro, independen-
mesmo enquanto história, seja sua finitude, seja sua abertura para temente de onde venha. Não coincide com as épocas (no sentido
o futuro (como ser-para-a-morte em Heidegger). Retenhamos aqui de Bossuet ou de Condorcet) e não se calca absolutamente nestas
que o termo expressa a forma da condição histórica, a maneira grandes entidades incertas e vagas que são as civilizações. Ele é
como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve um artefato que valida sua capacidade heurística. Noção , categoria
no tempo. É legítimo, observarão, falar de historicidade antes da formal, aproxima-se do tipo-ideal weberiano. Conforme domine a
formação do conceito moderno de história, entre o fim do século categoria do passado, do futuro ou do presente, a ordem do tempo
XVIII e o início do século XIX? Sim, se por "historicidade" se resultante não será evidentemente a mesma. Por essa razão, certos
entender esta experiência primeira de estrangement, de distância de comportamentos, certas ações, certas formas de historiografia são
si para si mesmo que, justamente, as categorias de passado, presente mais possíveis do que outras, mais harmônicas ou defasadas do
e futuro permitem apreender e dizer, ordenando-a e dando-lhe que outras, desatualizadas ou malogradas. Como categoria (sem
sentido. Assim, remontando bastante, até Homero, é a experiência conteúdo), que pode tornar mais inteligíveis as experiências do
que Ulisses faz diante do bardo dos feácios cantando suas façanhas: tempo, nada o confina apenas ao mundo europeu ou ocidental. Ao
ele se encontra repentinamente confrontado com a incapacidade contrário, sua vocação é ser um instrumento comparatista: assim o
de unir o Ulisses glorioso que ele era (aquele que tomou Traia) ao é por construção.
náufrago que perdeu tudo, até seu nome, que ele é agora. Falta-lhe O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto
justamente a categoria de passado, que permitiria reconhecer- se amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um
neste outro que é, no entanto, ele mesmo. É também, no início do artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico (tal
século V, a experiência (diferente) relatada por Santo Agostinho. como Napoleão, que se encontrou entre o regime moderno, trazido
Lançado em sua grande meditação sobre o tempo, no livro XI das pela Revolução, e o regime antigo, simbolizado pela escolha do
Confissões, ele se encontra inicialmente incapaz de dizer, não um Império e pelo casamento com Maria-Luisa de Áustria), ou a de
tempo abstrato, mas esse tempo que é ele, sob esses três modos: a um homem comum; com ele, pode-se atravessar uma grande obra
memória (presente do passado), a atenção (presente do presente) e (literária ou outra), tal como as Mémoires d'outre-tombe de Chate-
a expectativa (presente do futuro) . Podemos nos servir da noção de aubriand (onde ele se apresenta como o "nadador que mergulhou
regimes de historicidade antes ou independentemente da formulação entre as duas margens do rio do tempo"); pode-se questionar a
posterior do conceito moderno de história, tal como a delineou arquitetura de uma cidade, ontem e hoje, ou então comparar as
bem o historiador alemão Reinhart Koselleck. grandes escansões da relação com o tempo de diferentes sociedades,
Falar de (regimes de) temporalidade em vez de historicidade teria próximas ou distantes. E, a cada vez, por meio da atenção muito
o inconveniente de convocar o padrão de um tempo exterior, como particular dada aos momentos de crise do tempo e às suas expressões,
em Fernand Braudel, cujas diferentes durações se medem todas em visa-se a produzir m ais inteligibilidade .
relação a um tempo "exógeno", o tempo matemático, o da astro- R esta dissipar, na m edida do possível, alguns mal-entendidos;
nomia (que ele também chama de "tempo imperioso do mundo"). em primeiro lugar, não se deve confundir presentismo e presente.
Definamos o que é e o que não é o regime de historicidade. A proposta da hipó tese do presentism o não provém ipso fa cto de
Ele não é uma realidade dada. N em diretamente observável nem um inimi go o u de um denegridor do presente. N ão estamos nem
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REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTlSMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO 15
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no registro da nostalgia (de um regime melhor) nem naquele da está aberto para eles) . O presentismo pode, assim, ser um hori-
denúncia. Tampouco no de uma mera aquiescência à ordem pre- zonte aberto ou fechado: aberto para cada vez mais aceleração e
sente do tempo . Falar de um presente onipresente não dispensa, mobilidade, fechado para uma sobrevivência diária e um presente
pelo contrário , de se interrogar sobre possíveis saídas do presen- estagnante. A isso, deve-se ainda acrescentar outra dimensão de
tismo . Em um mundo dominado pelo presentismo, o historiador nosso presente: a do futuro percebido, não mais como promessa,
tem um lugar ao lado daqueles que Charles Péguy chamava de mas como ameaça; sob a forma de catástrofes, de um tempo de
"sentinelas do presente"; mais do que nunca. catástrofes que nós mesmos provocamos.
A construção do neologismo "presentismo" deu-se, de início, Deste modo, a crise na qual estamos nos debatendo, hesitantes,
em relação à categoria de futurismo (o futuro comandava). Para demanda aprofundar a reflexão. Certamente o presentismo não
mim, arriscar a denominação presentismo era primeiramente uma basta para dar conta dela (e não pretende isso), mas talvez ele venha
hipótese. Nosso modo de articular passado, presente e futuro não ressaltar os riscos e as consequências de um presente onipresente,
tinha algo de específico, agora, hoje, que faria com que nosso onipotente, que se impõe como único horizonte possível e que
presente diferisse de outros presentes do passado? E minha resposta valoriza só o imediatismo. Longe de toda nostalgia e das afirma-
foi sim, parece-me que há algo específico. O que levou à pergunta ções peremptórias, minha ambição ontem, assim como hoje, era
seguinte, que eu ainda não formulava nestes termos no livro: esta- dedicar-me, juntamente com outros e com algumas questões de
mos lidando com um presentismo pleno ou padrão? Será somente historiador, a entender a conjuntura. Para passar, segundo a bela
um momento de pausa, de estase, seguido de um futuro mais ou fórmula de Michel de Certeau, da "estranheza do que se passa hoje"
menos "glorioso", de tipo futurista- já que as probabilidades de à "discursividade da compreensão".
voltar a um regime de tipo "passadista" (no qual o passado co- Enfim, aquele que quiser fazer uma experiência presentista
manda) são limitadas?-, ou esse presente onipresente (como se diz basta abrir os olhos, percorrendo estas grandes cidades no mundo
onívoro) no qual nos encontramos e' um presentlsmo . p1eno.? Em para as quais o arquiteto holandês Rem Koolhaas propõe o con-
outras palavras, será um modo inédito de experiência do tempo e ceito de "Cidade genérica", associado ao de ]unkspace. Nelas, o
o delineamento de um novo regime de historicidade, sobretudo presentismo é rei, corroendo o espaço e reduzindo o tempo, ou
para um mundo ocidental, que, durante dois séculos, caminhou o expulsando. Liberada da servidão ao centro, a cidade genérica
e fez os outros caminharem para o futuro? Ainda não sabemos. não tem história, mesmo que busque com afinco se dotar de um
Longe de ser uniforme e unívoco, este presente presentista é vi- bairro-álibi, onde a história é resgatada como uma apresentação,
venciado de forma muito diferente conforme o lugar ocupado na com trenzinhos ou caleches. E se, apesar de tudo, ainda existir
sociedade. De um lado, um tempo dos fluxos, da aceleração e uma um centro, ele deve ser, "na qualidade de lugar mais importante"
mobilidade valorizada e valorizante; do outro, aquilo que Robert simultaneamente "o mais novo e o mais antigo", "o mais fixo e
Castel chamou de précaríaf, isto é, a permanência do transitório, o m ais dinâmico". Produto "do encontro da escada rolante e da
um presente em plena desaceleração, sem passado - senão de um refrigeração , concebido em uma incubadora de placas de gesso", o
modo complicado (mais ainda para os imigrantes, os exilados, os Junkspace ignora o envelhecimento: só conhece a autodestruição e
deslocados), e sem futuro real tampouco (o tempo do projeto não a renovação local, ou então uma precariedade habitacional ultrar-
r5pida. Os aeroportos se tornaram os b airros- modelo da Cidade
' " Précariat" , na obra de Castel, tem o sentido de trabalhador precarizado . Agradeço ao colega genérica, senão work sempre in progress de sua realização ("Pedimos
Henri que N ardi , do Instituto de Psicologia da U FRGS , e ex-orientando do professor Castel, a
explicação precisa. (Nota do revisor geral)
descu lpas pelos tra nstorn os momentaneamente ocasionados .. . ") .
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERIÊNCIAS DO TEMPO
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Bairros sempre em movimento, em transformação, inventando INTRODUÇÃO

percursos cada vez mais complicados para seus habitantes tem-


porários. Os aeroportos são os grandes produtores de junkspace
sob a forma de bolhas de espaços em expansão e transformáveis.
E desse espaço não poderíamos nos lembrar, pois "sua recusa em Ordens do tempo,
se cristalizar lhe garante uma amnésia instantânea". 4 Mas pode-se
viver em uma cidade presentista? regimes de historicidade
Setembro de 2011

Ninguém duvida de que haja uma ordem do tempo, ma1s


precisamente, ordens que variaram de acordo com os lugares e as
(·pocas. Ordens tão imperiosas, em todo caso, que nos submetemos
a elas sem nem mesmo perceber: sem querer ou até não querendo,
sem saber ou sabendo, tanto elas são naturais. Ordens com as quais
entramos em choque, caso nos esforcemos para contradizê-las. As
relações que uma sociedade estabelece com o tempo parecem ser,
de fato, pouco discutíveis ou quase nada negociáveis. Na palavra
ordem, compreende-se imediatamente a sucessão e o comando: os
tem.pos, no plural, querem ou não querem; eles se vingam também,
restabelecem uma ordem que foi perturbada,Jazem às vezes de justiça.
Ordem do tempo vem assim de imediato esclarecer uma expressão,
talvez de início um tanto enigmática, regimes de historicidade.
No início do século V a.C., o filósofo grego Anaximandro já
cm.pregava essa expressão, justamente para indicar que "as coisas
que são [... ] se fazem justiça e reparam suas injustiças conforme a
ordem do tempo". 5 Para Heródoto, a história era, no fundo, o in-
tervalo - contado em gerações - que fazia passar de uma injustiça
:1 sua vingança ou à sua reparação. Investigando, de alguma forma,
os momentos da vingança divina, o historiador é aquele que, graças
;1 seu saber, pode reunir e desvendar as duas extremidades da cadeia.

' Ana ximandro, Fragmento , B.1, "Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a
rorrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns
aos o utros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo" (SOUZA, José Cavalcante (Sei.). Os
< KOOLHAAS, Rem.j1111kspace: reperrser radicale111ent /'espace url!air1. Paris: Payot, 2011. p. 49, 82, 86, 95. prtl-.wrr!Ítiros. S:io Paulo: Abril C ultural, 1985. lOs Pensadores]. p. 16).
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ORDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
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Esse é realmente o sentido da história do rei Creso que, ao passar da Tempo e narrativa (1983 10) e concluído com A memorza, a história,
felicidade à infelicidade, paga, na quarta geração, o erro de seu ances- o esquecimento (2000), pode enquadrar comodamente o período,
tral Giges. 6 Aqui não exploraremos essa via, a da história e da justiça. mostrando um filósofo, que sempre se quis contemporâneo de seus
Em seguida, a ordem do tempo lembra A ordem do discurso, de contemporâneos, primeiramente levado a meditar sobre as aporias
Michel Foucault, breve texto programático que leva à aula inau- da experiência do tempo, antes de se mostrar preocupado com
gural ministrada por ele no College de France, em 1971, e que se "uma política da justa memória". Colocando "em contato direto
revela um convite à reflexão, à continuidade do trabalho, fora dali, a experiência temporal e a operação narrativa", Tempo e narrativa,
de outra forma, com outras questões. 7 Fazer com o tempo o que frisa Ricceur, "não leva em conta a memória". Era exatamente essa
Foucault havia feito anteriormente com o discurso, nisso buscando lacuna que ele pretendia preencher com esse segundo livro, explo-
pelo menos uma inspiração. Por fim, A Ordem do tempo é o pró- rando "os níveis médios" entre tempo e narrativa11 • Da questão da
prio título do livro substancial que o historiador KrzysztofPornian verdade da história à da fidelidade da memória, sem renunciar a
dedicou ao tempo: uma história do "próprio tempo", precisava o nenhuma delas.
autor, "abordado em uma perspectiva enciclopédica", ou ainda uma Antes disso, Michel de Certeau já lembrara com uma frase, en
história "filosófica" do tempo. 8 passant, que "sem dúvida a objetivação do passado, nos últimos três
O tempo passou a ser o centro das preocupações não faz muito. séculos, fizera do tempo o elemento impensado de uma disciplina
Livros, revistas, colóquios, onde quer que seja, são testemunhos; a que não deixava de utilizá-lo como um instrumento taxinôrnico" 12 .
literatura também trata do assunto, à sua maneira. "Crise do tempo", A observação convidava. à reflexão. Estas páginas servem para me
diagnosticaram imediatamente nossos generalistas do pensamento! É experimentar nesse campo, partindo de uma interrogação sobre
claro que sim, mas e então? O rótulo significa no máximo: "Aten- nosso presente.
ção, problema!". 9 O trabalho de Paul Ricceur, iniciado com a obra
As brechas
' DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: ensaio sobre a investigação de Her6doto.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998 . Sobre o caso de Creso, ver HAR TOG,
O próprio curso da história recente, marcado pela queda do
François. Myth into logos: the case o f Croesus. In: BUXTON, Richard. From myth to reason: muro de Berlim em 1989 e pela derrocada do ideal comunista
studies in the development ofgreek thought. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 185-195.
trazido pelo futuro da Revolução, assim como a escalada de
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
8 POMIAN, Krzysztof. L'Ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984. p. XII. Ver também, do mesmo múltiplos fundamentalismos, abalaram, de uma maneira brutal e
autor, "La crise de l'avenir", em Le Débat, n. 7, 1980, p. 5-17, retomado em Sur l'histoire. Paris: duradoura, nossas relações com o tempo 13 . A ordem do tempo
Gallimard, 1999. p . 233-262.
9 A partir de múltiplas reflexões, realizadas em diversos campos disciplinares, no entanto preocupadas
foi posta em questão, tanto no Oriente quanto no Ocidente.
com uma abrangência geral, elaborou-se: ver, por exemplo, SUE, Roger. Temps et ordre social. Como mistos de arcaísmo e de modernidade, os fenômenos
Paris: PUF, 1994; ELIAS, Norbert. Du temps [1987]. Tradução de M. Hulin, Paris: Fayard, 1996;
as reflexões de Paul Virilio, ao longo de vários livros há mais de quinze anos; GÜNTHER, Horst.
Le temps de l'histoire. Tradução de O. Mannonu. Paris: Maison des Sciences de L'Homrne, 1995;
CHESNEAUX,Jean. Habiter le temps: passé, présent,fotur: esquisse d'un dialogue possible. Paris: Bayard, 10
Publicação no Brasil: RICCEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1993-1995. 3 t.;
1996; LEDUC,'Jean. Les historiens et le temps: conceptions, problématiques, écriture. Paris: Seuil, 1999; RICCEUR, Paul. A mem6ria, a hist6ria, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.
LAIDI, Zaki. Le sacre du présent. Paris: Flamrnarion, 2000; JEANNENEY, Jean-Noel. L'Histoire 11
RICCEUR, Paul. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 1; RICCEUR, Paul. Mémoire:
va-t-elle plus vi te? Variations sur un vertige. Paris: Gallimard, 2001; BAIER, Lothar. Pas le temps:
approches historiennes, approche philosophique. Le Débat, n. 122, 2002, p. 42-44.
traité sur l'accélération. Tradução de M. H. Desart e P. Krauss . Arles: Actes Sud, 2002; KLEIN, 12
CERTEAU, Michel de. Histoire et psycanalyse entre science etfiction. Paris: Gallirnard, 1987. p. 89.
Étienne. Les tactiques de Chronos. Paris: Flamrnarion, 2003: após ter mostrado que se fala do tempo
"pratican1ente da mesma maneira que antes de Galileu" e demonstrado que a física moderna e o Ver LEDUC. Les historiens et /e temps, 1999.
tempo são cúmplices. É. Klein encerra seu livro com uma nota mais epicurista, ou seja, com um
11
P MIAN. La crise de l'aven ir, p. 233- 262; GAUCI--IET, Mareei. La rlémocratie coi'Lire el/e- 1n ~me,

convite "a confiar na ocasião do tnomento, no kaíros". Paris, Ca llitn:ml, 2002, p. 345- 359.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 21
20

fundamentalistas são influenciados, em parte, por uma crise do continuava retomando. Franz Rosenzweig, Walter Benjamin e Ger-
futuro, enquanto as tradições, às quais se voltam para responder shom Sholem também poderiam evocar uma experiência análoga
às infelicidades do presente, são, na impossibilidade de traçarem na Alemanha dos anos 1920, eles que procuram uma nova visão da
uma perspectiva do porvir, amplamente "inventadas" 14 . Como história, repudiando a continuidade e o progresso em proveito das
articular, nessas condições, o passado, o presente e o futuro? A descontinuidades e rupturas 17 •
história, escrevia François Furet em 1995, voltou a ser "esse túnel Em Le Monde d'hier [O Mundo de ontem], redigido antes de seu
no qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações suicídio, em 1942, Stefan Zweig queria testemunhar, ele também,
o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança rupturas: "[... ] entre nosso hoje, nosso ontem e nosso anteontem,
ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o in- todas as pontes estão rompidas" 18 . Mas já em 1946, por meio de um
divíduo democrático vê tremer em suas bases, no fim do século editorial com título sugestivo, "Face ao Vento", Lucien Febvre con-
XX, a divindade história: angústia que ele vai ter de conjurar. A vidava todos os leitores dos Annales a "fazer história", sabendo que se
essa ameaça da incerteza se une, no seu espírito, o escândalo de entrara a partir de então em um mundo "em estado de instabilidade
um futuro fechado" 15 . definitiva", onde as ruínas eram imensas; mas no qual havia "muito
Do lado europeu, todavia, fendas profundas se tinham aberto mais do que ruínas, e mais grave ainda: esta prodigiosa aceleração
da velocidade que, fazendo colidirem os continentes, abolindo os
muito antes: logo após a Primeira Guerra Mundial, também após
oceanos, suprimindo os desertos, coloca em contato brusco grupos
1945, mas de maneira diferente. Paul Valéry era um bom sismógrafo
humanos carregados de eletricidades contrárias". A urgência, sob
das primeiras, ele que, em 1919, evocava "o Harnlet europeu",
pena de não se compreender mais nada do mundo mundializado
olhando "de um imenso balcão de Elsinore", "milhões de espec-
de amanhã, já de hoje, era olhar, não para trás, em direção ao que
tros": "Ele pensa no tédio de recomeçar o passado, na loucura de
acabava de acontecer, mas diante de si, para frente. "Acabou o
querer inovar sempre. Ele oscila entre os dois abismos". Ou quando
mundo de ontem. Acabou para sempre. Se nós, franceses, temos uma
delimitava, em uma conferência de 1935, de maneira mais precisa
chance de sair disso- é compreendendo, mais rápido e melhor do que
ainda, essa experiência de ruptura de continuidade, dando a "todo outros, essa verdade óbvia. À deriva, abandonando o navio, eu lhes
homem" o sentimento de pertencer "a duas eras". "De um lado", digo, nadem com vontade". Explicar" o mundo ao mundo", responder
prosseguia, "um passado que não está abolido nem esquecido, mas as questões do homem de hoje, tal é, pois, a tarefa do historiador que
um passado do qual nós não podemos tirar quase nada que nos enfrenta o vento. Não se trata de fazer do passado tábula rasa, mas de
oriente no presente e nos possibilite imaginar o futuro. De outro "compreender bem em que ele se diferencia do presente" 19 . Em que
lado, um futuro de que não fazemos a menor ideia" 16 . Um tempo ele é passado. Conteúdo, tom, ritmo, tudo nas poucas páginas desse
desorientado, portanto, situado entre dois abismos ou entre duas manifesto sugere ao leitor que o tempo urge e que o presente manda20 •
eras, o qual o autor de Regards sur le monde actuel experienciara e
11
MOSES, Stéphane. L'ange de /'histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992.
14
No sentido entendido em HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. The irwention ciftradition. '" Z WEIG, Stefan. Le monde d'hier: souvenirs d'un Européen. Tradução de S. Niémetz. Paris: Belfond,
Cambridge: Cambridge University Press, 1983. 1993. p. 9.
15
FURET, François. Le passé d'une illusion: essai mr l'idée communiste au XXe siecle. Paris: Robert ''' FEBVRE, Lucien. Face au Vent, Manifeste des Annales Nouvelles. In: Combats pour l'histoire.
Laffont; Calrnann-Lévy, 1995. p. 808. Pari s: Armand Colin, 1992. p. 35, 40 e 41.
16 111
VALÉRY, Paul. Essais quasi politiqu es. In: CEuvres. Paris, Gallimard, 1957. (Bibliotheque de I"EB VR.E, Lucien. Vers une autre histoire (publicado em 1949, retomado em Combats pour
la Pléiade). t. 1. p. 993 (carta primeiramente em inglês em 1919) e p. 1063 (conferência na l'histoire, p. 437-438): "A história , que é um meio de organizar o passado para impedir o peso
universidade dos Am10les, 1935). Em 1932, ele retomava em uma conferência dada na mesma dc111asiado sobre os ombros dos homens [.. .]. Organizar o passado em função do presente: é o
esfera se u dügnóstico de 1919 sobre a confusão do Hamlet europeu. que se poderia denominar de função social da história".
INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO 23
22

D esde os anos 1950, Hannah Arendt se mostrara uma perspicaz nossas cabeças", em particular o conceito moderno de história,
observadora das rachaduras do tempo, mas não era isso que chamava fundado na noção de processo 26 . Mais uma vez, uma experiência
mais atenção em seu trabalho naquela época. " Nossa herança não de tempo desorientado.
é precedida de nenhum testamento", havia escrito René Char em Em 1968 , o mundo ocidental e ocidentalizado era atraves-
Folhetos d' Hypnos, antologia de 194621 . Por meio desse aforismo sado por um espasmo que, entre outras coisas, questionava o
ele procurava dar conta da estranha experiência da Resistência, progresso do capitalismo, ou seja, duvidava do tempo, ele pró-
tomando-a como um tempo de entremeio, no qual um " tesouro" prio como um progresso, como um vetor em si de um progresso
fora descoberto e, por um instante, estivera entre as mãos, mas que prestes a abalar o presente. Para marcar esse momento, as palavras
ninguém sabia nomear ou transmitir. No vocabulário de Arendt, fenda e brecha vêm sob a pena dos observadores , mesmo que eles
esse tesouro era a capae1'dad e d e mstaurar
. " um mun d o comum22" . não deixem de observar que são onipresentes as imagens tomadas
Embora a libertação da Europa estivesse acontecendo, os membros das gloriosas revoluções do passado 27 . Nascidos, em sua maioria,
da Resistência não haviam conseguido redigir um "testamento" após 1940, os jovens revoltados de então podiam, pelo menos na
no qual seriam consignadas as maneiras de preservar e, se possível, França, voltar- se para as grandes figuras da Resistência e, ao mes-
de estender esse espaço público que eles haviam começado a criar mo tempo, para os ensinamentos do Livro vermelho do presidente
e no qual "a liberdade podia surgir". Ora, do ponto de vista do Mao, assim como para as lições dos comunistas vietnamitas, que
tempo, o testamento, na medida em que diz "ao herdeiro o que derrotaram a ex-potência colonial em Dien Bien Phu e, algum
será legitimamente seu, atribui um passado ao futuro" 23 . tempo depois, venceram os Estados Unidos da América. Em
Fazendo justamente dessa fórmula de Char a frase de abertura seu último romance, Olivier Rolin dá voz a seu narrador, que
de Between Past and Future (título mais preciso que sua tradução fala de si mesmo à sua jovem interlocutora: "É de lá, [dos anos
francesa, La Crise de la culturé4*), Arendt introduzia o conceito 1940- 1945], desse desastre que você vem, meu caro: sem ter
de "brecha (gap) entre o passado e o futuro" em torno do qual estado lá. Sua geração nasceu de um acontecimento . que ela não
se organizava o livro, como "estranho entremeio no tempo viveu 28 ." Por um momento, a crise dos anos 1970 (inicialmente
histórico, onde se toma consciência de um intervalo no tempo petrolífera) pareceu reforçar esses questionamentos. Alguns até
inteiramente determinado por coisas que não são mais e por se vangloriavam do "crescimento zero"! Acabava-se de sair dos
coisas que não são ainda" 25 . O tempo histórico parecia então " Trinta Gloriosos" do pós-guerra: anos de reconstrução, de
suspenso. Por outro lado, seu estudo pioneiro sobre As origens modernização rápida, da corrida ao progresso entre o Leste e o
do totalitarismo a havia levado a concluir que "a estrutura íntima O este, tendo como pano de fundo a Guerra Fria e a implementação
da cultura ocidental, com suas crenças, havia desmoronado sobre do desarmamento nuclear.
O tema dos "retornos a" (até tornar-se uma fórmula pronta-
21 C HAR, René . Feuillets d'Hypnos. In: CEuvres completes. Paris: Gallimard, 1983. (Bibliotheque de -para-pensar e para-vender) ia logo fazer sucesso. Após a subversão
la Pléiade) . p. 190. Essas anotações, escritas entre 1943 e 1944, são dedicadas a Albert Carnus. dos retornos a Freud e a Marx, vieram os retornos a Kant ou a
22 TASSIN, Étienne. Le trésor perdu : Hannah Arendt, l'intelligence de l'action politique. Paris, Payot-
Rivages, 1999. p. 32.
Deus, e muitos outros retornos relâmpagos que se consumiam
23 ARENDT, H annah. La crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972. p. 13 e 14.
24 Em português, o título fran cês corresponderia a "A crise da cultura" . N o Brasil, a obra se chama
21 ' A I~ENDT, Hannah. Les origines du totalitarisme. Paris: Gallimard, 2002. (Quarto) . p. 867.
Entre o passado e ofuturo (mais próxima do original em inglês: Between Past and Future) (5. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2000) . (Nota do revisor geral) " MOR.IN , Edgar; LEFORT, C laude; COUDRAY, J.-Marc. Mai 1968: La Bri!che. Paris: Fayard, 1968.
25 AR.ENDT. La crise de la w lture, p. 19. '" I\ O LI N , li vier. T\~re de papier. Paris: Seu iI, 2002. p. 36.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
25
24

em suas próprias proclamações. Os progressos (tecnológicos), no e mais frequentemente, não desempenhou papel algum? Frente às
entanto, continuavam a galope enquanto a sociedade de consumo provações por que os judeus passaram, a memória do passado foi
não parava de crescer, exatamente como-a categoria do presente, da sempre essencial, mas por que os historiadores nunca foram seus
qual fazia seu alvo e que constituía, de alguma maneira, sua razão primeiros depositários 30 ?"
social. Apareciam na vida pública os primeiros passos da revolução Aqui, um pouco mais cedo, lá, um pouco mais tarde, essa vaga
informática, exaltando a sociedade da informação, mas também os atingiu praticamente todas as costas do mundo, senão todos os grupos
programas das biotecnologias. Logo viria o tempo, imperioso, se sociais: a velha Europa primeiro, mas também e muito os Estados
assim se pode dizer, da globalização: da World Economy, preconi- Unidos, a América do Sul após as ditaduras, a Rússia daglasnost e os
zando mobilidade crescente e apelando cada vez mais ao tempo real; ex-países de Leste europeu, a África do Sul após o Apartheid, salvo
mas também, simultaneamente, da World Heritage, sistematizada o restante da África, Ásia e Oriente Médio (com notável exceção
pela Unesco, tal como a convenção de 1972, "pela proteção do da sociedade israelense). Tendo culminado em meados dos anos
patrimônio mundial cultural e natural". 1990, o fenômeno seguiu diversos caminhos, variando em diferentes
De fato, os anos 1980 viram o desabrochar de uma grande contextos. Mas não há dúvida de que os crimes do século XX, seus
onda: a da memória. Com seu alter ego, mais visível e tangível, o assassinatos em massa e sua monstruosa indústria da morte são as
patrimônio: a ser protegido, repertoriado, valorizado, mas também tempestades de onde partiram essas ondas memoriais, que acabaram
repensado. Construíram- se memoriais, fez- se a renovação e a mul- unindo e agitando intensamente as sociedades contemporâneas. O
tiplicação de museus, grandes e pequenos. Um público comum, passado não havia "passado" e, na segunda ou terceira geração, ele
preocupado ou curioso pelas genealogias, pôs- se a frequentar os estava sendo questionado. Outras ondas, mais "recentes", como
arquivos. As pessoas passaram a interessar-se pela memória dos lu- a das memórias comunistas, vão avançar por muito tempo ainda,
gares, e um historiador, Pierre Nora, propôs em 1984 o "lugar de seguindo passos diferentes e ritmos defasados 31 .
memória". Organizadora do grande empreendimento editorial dos Memória tornou-se, em todo caso, o termo mais abrangente:
Lieux de mémoire [Lugares de memória], a noção resultava inicialmente uma categoria meta-histórica, por vezes teológica. Pretendeu-se
de um diagnóstico baseado no presente da França. fazer memória de tudo e, no duelo entre a memória e a história,
Ao mesmo tempo, era lançado oficialmente Shoah (1985) de deu-se rapidamente vantagem à primeira, representada por este
Claude Lanzmann, filme extraordinariamente forte sobre o teste- personagem, que se tornou central em nosso espaço público: a
munho e os "não-lugares" da memória. Pondo diante dos olhos do testemunha32 . Interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer e
espectad or "homens que se co1ocam na cond'1çao - d e testemun h a" 29 ,
o filme visava, de fato, a abolir a distância entre o passado e o pre-
30
YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: histoire }uive et mémoire }uive. Tradução de E. Vigne.
sente: fazer surgir o passado do presente. Já em 1982, o historiador Paris : La Découverte, 1984. p. 12; GOLDBERG, Sylvie Anne . La clepsydre: essai sur la pluralité
Y osefY erushalmi publicara seu livro Zakhor, logo célebre nos dois des temps dans le judafsme. Paris: Albin Michel, 2000. p. 52-55.
31
MAIER, Charles. Mémoire chaude, mémoire froide. Mémoire du fascisme, mémoire du
lados do Atlântico. Com ele, abriam-se os debates sobre história e
communisme . Le Débat, n. 122, 2002, p. 109-117. LOSONCSY, Anne-Marie. Le patrimoine
memória. "Por que, perguntava-se, enquanto o judaísmo através dos de l'oubli, Le parc-musée des statues de Budapest. Ethnologie Française, n. 3, 1999, p. 445-451,
tempos foi sempre fortemente impregnado pelo sentido da história, no qual o autor apresenta esse museu a céu aberto , um pouco distante e não realmente acabado,
reunú1do as estátuas da era comunista. C onservar para apagar.
a historiografia teve no máximo um papel ancilar para os judeus, " DULON G, R enaud. Le témoin oculaire: les conditio ns sociales de l'attestation personnelle. Paris: École
dcs Ha utes Études en Sciences Sociales, 1998; W IEVIOR.KA, Annette. L'êre du témoin. Paris:
Plon, 1998; HARTOG, Fra nço is. A testemunha e o historiador. In: Evid~ncia da hist6ria: o que
29 DEGUY, Michel. A u sujet de "Shoah", lefilm de Claude Lanz mann. Paris: Belin , 1990. p. 40. os historiadores IICC /11 . Belo Hori zonte: Autênti ca, 2011. p. 203-228.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 27
26

invocou-se o "dever de memória" e por vezes, também, começou- Pode-se delimitar melhor esse fenômeno? Qual é seu alcance?
33
-se a estigmatizar abusos da memória ou do patrimônio . Que sentido atribuir a ele? Por exemplo, no âmbito da história pro-
fissional francesa, o surgimento de uma história que se reivindica,
Do Pacífico a Berlim a partir dos anos 1980, "História do tempo presente" acompanhou
esse movimento. Para Renê Rémond, um de seus defensores mais
Em meu trabalho, não estudei diretamente esses eventos de
constantes, "a história do tempo presente é uma boa medicação
massa. Não sendo nem historiador do contemporâneo nem analista contra a racionalização a posteriori, contra as ilusões de ótica que a
da atualidade, levei minhas pesquisas para outros caminhos. Tam- distância e o afastamento podem induzi25 ". Ao historiador foi solici-
pouco são diretamente aqueles da teoria da história, mas me esforço, tado, algumas vezes exigido, que respondesse às demandas múltiplas
cada vez que o posso, por refletir sobre a história fazendo história. da história contemporânea ou muito contemporânea. Presente em
Não se trata então de propor depois de outros, melhor que outros, diferentes frentes, essa história encontrou-se, em particular, sob
uma explicação geral ou mais geral desses fenômenos históricos os holofotes da atualidade judiciária, durante processos por crimes
contemporâneos. Meu enfoque é diferente, outro meu propósito. contra a humanidade, que têm por característica primeira lidar com
Esses fenômenos, eu os apreendo obliquamente, ao me interrogar a temporalidade inédita do imprescritíveP6 •
sobre as temporalidades que os estruturam ou os ordenam. Por que Para fazer esta investigação, a noção de regime de historici-
ordem do tempo eles são sustentados? De -que ordem são portadores dade me parec~u operatória. Eu falara nela uma primeira vez em
ou sintomas? De que "crise" do tempo, os indícios? 1983, para dar conta de um aspecto - o mais interessante de meu
Para fazer isso, convém encontrar alguns pontos de entrada. ponto de vista - das propostas do antropólogo americano Marshall
Historiador da história, entendida como uma forma de história Sahlins, mas naquele momento ela não chamou muita atenção: a
intelectual, pouco a pouco fiz minha a constatação de Michel de minha pouco mais que a dos outros 37 • Seriam necessários outros
Certeau. O tempo tornou-se a tal ponto habitual para o historiador tempos! Recomeçando das reflexões de Claude Lévi-Strauss sobre
que ele o naturalizou ou o instrumentalizou. O tempo é impen- as sociedades "quentes" e as sociedades "frias", Sahlins buscava
sado, não porque seria impensável, mas porque não o pensamos efetivamente delimitar a forma de história que fora própria às ilhas
ou, mais simplesmente, não pensamos nele. Historiador que se
esforça para ficar atento ao seu tempo, observei ainda, como muitos
AUGÉ, Marc. Le temps en ruines. Paris: Galilée, 2003, em que ele insiste sobre o presente perpétuo
outros, o crescimento rápido da categoria do presente até que se de "nosso mundo violento, cujos destroços não têm tempo de se tomarem ruínas" (p. 10) . Ao
imponha a evidência de um presente onipresente 34 . O que nomeio que ele opõe um tempo de ruínas, espécie de "tempo puro, não datado, ausente de nosso mundo
de imagens, de simulacros, de reconstituições" (p. 10). O sentido que dou ao presentismo é
aqui "presentismo". mais amplo do que aquele, quase técnico, que conferiu George W. Stocking ao termo, em .seu
ensaio "On the limits of 'Presentism' and 'Historicism' in the Historiography of Behavioral
Sciences" (retomado em Race, culture and evolution: essays in the history of Anthropology. Chicago:
" KLEIN, Kerwin. On the emergence of memory in historical discourse. Representations, n. 69, 2000, P· T he Universiry ofChlcago Press, 1982. p. 2-12). A abordagem presentista é aquela que considera
127-150; Politiques de l'Oubli: Le Genre Humain, n. 18, 1988. Sobre o historiador como, simultaneamente, o passado tendo em vista o presente, enquanto o hlstoricista enxerga o passado por ele mesmo.
"perturbação-memória" e "salva-memória", ver LABORIE, Pierre. Les Français des années troublés. Pans:
Desclée de Brouwer, 2001. p. 53-71; ROBIN, Régine. La mémoire saturée. Paris: Stock, 2003. " l'lÉMOND , R ené . Écrire l'histoire du temps présent: en hommage à François Bédarida. Paris: CNRS,
1993. p. 33. ROUSSO, Henry. Pour une histoire du temps présent. In: La hantise du passé:
34 HARTOG, François. Temps et hlstoire: comment écrire l'histoire de .France? Annales, n. 1,
m tretiert 1111ec Philippe Petit. Paris: Textuel, 2001. p. 50-84.
1995, p. 1223-1227. Zaki Liidi descreve um "presente autárquico" (LAIDI. Le sacre du présent,
11
. 102-129). A partir de uma experiência dupla de medievalista e de observador do mov1mento ' Ver DUMOULIN, O livier. Le rôle social de l'historien: de la chaire au prétoire. Paris: Albin Michel,
;apatista, Jérôme Baschet fala de "presente perpétuo", em "L'hlstoire face au présent perpétuel, 2003. p. 11 -61.
11
quelques remarques sur la relarion. passé/futur" (H~'l...TOG, François; KEVEL, Jacques (D•r.) . IIAR'J'OG, François. Marshall Sa hlins et l'anthropologie de l'histoire. Annales ESC, n. 6, 1983,
Les usages poli tiques du passé. Paris: Ecole des Hautes Etudes En Sc1ences Soc~ales, 2001. P· 55-74). p. 125ú- 1263.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
28 29

do Pacífico. Tendo deixado, por assim dizer, a expressão de lado, r ·tornarei), ela "reage" a um "grau de historicidade" idêntico
sem elaborá-la muito, eu a reencontrei dessa vez não mais com os p:ua todas as sociedades. Mais precisamente, a noção devia poder
Selvagens e no passado, mas no presente e aqui; mais exatamente, l'ómecer um instrumento para comparar tipos de história diferen-
depois de 1989, ela impôs-se quase por si mesma como uma das tes, mas também e mesmo primeiramente, eu acrescentaria agora,
maneiras de interrogar uma conjuntura, em que a questão do tempo para colocar em foco modos de relação com o tempo: formas da
tornava-se pregnante, um problema: uma obsessão às vezes. ·xperiência do tempo, aqui e lá, hoje e ontem. Maneiras de ser
No intervalo, familiarizei-me com as categorias meta-históricas no tempo. Se, do lado da filosofia, a historicidade, cuja trajetória
da "experiência" e da "expectativa", como as trabalhara o histo- Paul Ricreur reconstituiu de Hegel até Heidegger, designa "a
riador alemão Reinhart Koselleck, com a intenção de elaborar condição de ser histórico 40 ", ou ainda "o homem presente a si
uma semântica dos tempos históricos. Interrogando as experiências mesmo enquanto história41 " aqui, estaremos atentos à diversidade
temporais da história, ele de fato buscava "como, em cada presente, dos regimes de historicidade.
as dimensões temporais do passado e do futuro haviam sido correla- Enfim, em 1994, ela me acompanhou em uma estadia em Berlim,
cionadas38". Exatamente isso era interessante investigar, levando em no Wissenschciftskolleg, quando os vestígios do Muro ainda não haviam
conta as tensões existentes entre campo de experiência e horizonte desaparecido e o centro da cidade resumia-se a obras e reformas, em
de expectativa e estando atento aos modos de articulação do pre- andamento ou vindouras, quando se discutia a reconstrução ou não
do Stadtschloss, o castelo real, e que as grandes fachadas dos prédios do
sente, do passado e do futuro. A noção de regime de historicidade
Leste, destruídas e marcadas por projéteis, tomavam visível um tempo
podia assim beneficiar-se do estabelecimento de um diálogo (nem
que, ali, escoara de outro modo. Seria evidentemente falso dizer que
que fosse por meu intermédio) entre Sahlins e Koselleck: entre a
ele se paralisara. Com seus grandes espaços vazios, suas obras e suas
antropologia e a história.
"sombras", Berlim parecia para mim uma cidade para historiadores,
Um colóquio, concebido pelo helenista Mareei Detienne,
onde, mais do que em outros lugares, podia aflorar o impensado do
comparatista mais que decidido, foi a oportunidade de retomá-la
tempo (não somente o esquecimento, o recalcado, o denegado).
e trabalhá-la juntamente com um antropólogo, Gérard Lenclud.
Mais do que em nenhuma outra cidade da Europa, talvez do
Era uma maneira de prosseguir, modificando um pouco, o diálogo
nmndo, Berlim deu trabalho, ao longo dos anos 1990, a milhares
intermitente, mas recorrente, fatigante às vezes, mas nunca abando-
de pessoas, do operário imigrante aos grandes arquitetos interna-
nado, entre antropologia e história que Claude Lévi-Strauss havia
cionais. Chance dos urbanistas e dos jornalistas, a cidade tornou-se
aberto em 1949. "Regime de historicidade", escrevíamos então,
um ponto de passagem obrigatório, até mesmo uma moda, um
podia ser compreendido de dois modos. Em uma acepção restrita,
" bom tema", um laboratório, um lugar de "reflexão". Ela suscitou
como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em
inúmeros comentários e múltiplas controvérsias; produziu massas de
uma acepção mais ampla, regime de historicidade serviria para
imagens, de falas e de textos, provavelmente alguns grandes livros
designar "a modalidade de consciência de si de uma comunidade
humana 39 ". Como, retomando os termos de Lévi-Strauss (aos quais
c N. Dodille. Paris: L'Harmattan, 1993. p. 29. Ver a apresentação do dossiê por DETIENNE,
Mareei. Co111parer l'inco111parab/e. Paris: Seuil, 2000. p. 61-80.
38
KOSELLECK, Reinhart. Le jutur passé. Tradução de]. Hoock e M.-CI. Hoock. Paris: École des "' R.J CCEUR. La 1né111oire, l'histoire, l'oubli, p. 480-498, e RICCEUR. Mémoire: approches historiennes,
Haures Études en Sciences Sociales, 1990. p. 307-329. ~ pproc h e philosophiqu e, p. 60-61.
39 Publicado nos documentos preparatórios ao colóquio, o texto foi retomado em !NSTITUT " LYOTAR.D, J ca n- François. Lcs lndicns ne cueillen t pas de fl eurs. Armales, n. 20, 1965, p. 65
FRANÇA !S DE BUCAREST. L'État des lieux en sciences sociales. Textos reuni dos por A. Dutu (~ rti go de /..nprusrr sn u vn,~e, de laudc Lév i-S tr~ u ss).
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 31
30

também42 • Sem esquecer os sofrimentos e as desilusões provocadas uma grande travessia nos faça chegar quase diretamente ao fim do
por essas mudanças, pois, lá mais do que em outros lugares, o tempo século XVIII europeu, uma pequena escala, intitulada "Ulisses não
era um problema, visível, tangível, ineludível. Que relações manter leu Santo Agostinho", permitirá abrir um espaço à experiência cristã
com o passado, os passados certamente, mas também, e muito, com do tempo, a uma ordem cristã do tempo e, talvez, a um regime
o futuro? Sem esquecer o presente ou, inversamente, correndo o cristão de historicidade.
risco de nada ver além dele: como, no sentido próprio da palavra, Em seguida, para este momento tão forte de crise do tempo
habitá-lo? O que destruir, o que conservar, o que reconstruir, o na Europa, início e fim da Revolução Francesa, Chateaubriand será
que construir, e como? Decisões e ações que implicam uma rela- nosso guia principal. Ele nos levará do Velho ao Novo Mundo, da
ção explícita com o tempo, que salta aos olhos a ponto de não se França à América e de volta. Viajante incansável, "nadador", como
querer ver? escreverá ao final das Mémoires d'outre-tombe, que se encontrou "na
De ambos os lados de um muro, que se tornaria pouco a pouco confluência de dois rios", oscila entre duas ordens do tempo e entre
um muro de tempo, tentou- se de início apagar o passado. A de- dois regimes de historicidade: o antigo e o novo, o regime moderno.
claração de Hans Scharoun - "Não se pode querer construir uma De fato, sua escrita jamais deixou de partir dessa mudança de regime
nova sociedade e ao mesmo tempo reconstruir os prédios antigos" c de voltar a esta brecha do tempo, aberta por 1789.
-podia, na verdade, valer para os dois lados 43 • Arquiteto renoma- Com Ordem do tempo 2, é nossa contemporaneidade que in-
do, Scharoun, que presidira a comissão de urbanismo e arquitetura terrogamos em segundo lugar, desta vez diretamente, a partir destas
imediatamente após a Guerra, construiu sobretudo o auditório da duas palavras mestras: memória e patrimônio. Muito solicitadas,
Berlíner Philharmoniker. Cidade emblemática, lugar de memória para abundantemente glosadas e declinadas de múltiplas maneiras, es-
uma Europa apreendida como um todo, entre amnésia e dever de sas palavras- chave não serão desdobradas aqui por si mesmas, mas
memória. Esta é a Berlim no limiar do século XXI. Nela, aos olhos tratadas unicamente como indícios, também sintomas de nossa
do flâneur-historiador, ainda se veem fragmentos, vestígios, marcas relação com o tempo- modos diversos de traduzir, refratar, seguir,
de ordens de tempo diferentes, como as ordens da arquitetura. contrariar a ordem do tempo: como testemunhas das incertezas ou
Assim, formada às margens das ilhas do Grande Pacífico, a de uma "crise" da ordem presente do tempo. Uma questão nos
noção aportou, ao final, em Berlim, no coração da história europeia acompanhará: estaria em formulação um novo regime de histori-
moderna. Foi nessa cidade que, retrabalhada, ela tomou finalmente cidade, centrado no presente? 44
forma para mim. Com o título Ordens do tempo 1, vamos das ilhas
Fidji à Esquéria, ou do Pacífico estudado por Sahlins ao mar das Histórias universais
travessias de Ulisses, o herói de Homero. Será um duplo exercício
de "olhar distanciado" e um primeiro ensaio da noção. Antes que Não faltaram ao longo da história as grandes "cronosofias",
m.isto de profecias e de periodizações, seguidas dos discursos sobre
42
a história universal - de Bossuet a Marx, passando por Voltaire,
Por exemplo , GRASS, Günther. Toute une histoire. Tradução de C. Porcell e B. Lortholary. Paris:
Seuil, 1997; NOOTEBOOM, Cees. Le jour des morts. Tradução de Ph. Noble. Arles: Actes Sud, Hegel e Comte, sem esquecer Spengler ou Toynbee. 45 Engendradas
2001. Em um regime diferente, TERRAY, Emmanuel. Ombres berlinoises: "oyage dans un autre
A llemagne. Paris: Odile Jacob, 1996; ROBIN, Régine. Berlin chantiers. Paris: Stock, 2001.
43
FRANÇOIS, Étienne. Reconstrucyion allemande. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). Patrimoine et " Vc r, a partir de um questionamento ft!osófico, as reflexões paralelas de BINOCHE, Bertrand.
passions identitaires. Paris: Fayard, 1998. p. 313 (citação de Scharoun); e DOLFF-BONEKAMPER, Apres l'histo ire, I' événement. Act11els Marx, n. 32, 2002, p. 139-155.
Gabi. Les monuments de l'histoire contemporaine à Berlin: rupture, contradictions ct cicotriccs. '" J> M IAN , L'Ordre d11 temps, p.1 01 - 163; LÓWITH, Karl. Histoire et sa/111: Les présupposés théologiq11es
In : DEBR.AY, Régis (Dir.). L'ab11s mommJel!tal. Paris: Fayard, 1999. p. 3ó3-370. dt• la philosophit• dt·l'histoirt' 11 953 1. Tradução de J.-F. Kcrvégan. Poris: Galli mard, 2002.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 33
32

por interrogações sobre o futuro, essas construções, tão diferentes por muito tempo o modelo das sete idades do mundo, que servia
quanto possam ter sido os pressupostos que as fundamentavam (quer ainda de arcabouço ao Discours sur l'histoire universelle [Discurso sobre
tenham privilegiado uma perspectiva cíclica ou linear), buscaram a história universa~ de Bossuet no final do século XVII. Colocando
fundamentalmente compreender as relações entre o passado e o diante dos olhos do Delfim "a ordem dos tempos", o autor retoma
futuro. Descobri-las e fixá-las: dominá-las, para compreender e "essa famosa divisão que fazem os cronologistas da duração do mun-
prever. Na entrada dessa longa galeria, em ruínas há muito tempo, do48". Adão inaugurava à primeira idade enquanto Jesus, a sexta.
pode-se inicialmente parar por um momento em frente à estátua Ela correspondia ao sexto dia, idade também da velhice, e devia
que apareceu no sonho de Nabucodonosor, o rei da Babilônia. durar até o fim do mundo 49 . Mas esse "tempo intermediário" era
Era uma estátua imensa, aponta a descrição, "cuja cabeça era ao mesmo tempo velhice e renovação à espera do sabá do sétimo
de ouro fino, o peito e os braços, de prata; o ventre e as coxas, de dia, que traria o repouso eterno na visão de Deus.
bronze; I as pernas, de ferro; os pés, parte ferro e parte argila". Eis Nessas tramas (à das idades e da sucessão dos impérios somou-
que uma pedra caiu não se sabe de onde e acabou pulverizando -se mais tarde o conceito de transferência (translatio) do império),
a estátua da cabeça aos pés. Recebido pelo rei, o profeta Daniel, por muito tempo presentes e eficientes na história ocidental, ope-
único capaz de interpretar o sonho, começa declarando: "Há um rou-se inicialmente com o humanismo uma divisão em Tempos
Deus nos céus que revela os mistérios e mostrou ao rei Nabuco- Antigos, Idade Média (Media Aetas) e Tempos Modernos. Depois
donosor o que acontecerá nos próximos dias". Cada metal e cada a abertura do futuro e do progresso se dissociou progressivamente
parte, explica ele, corresponde a uma monarquia: a uma primeira e cada vez mais da esperança do fim. Por temporalização do ideal
monarquia se sucederá uma segunda, depois uma terceira e uma da perfeição 50 • Passou- se então da perfeição à perfectibilidade e
quarta, antes que smja, por fim, a quinta, que será o reino de Deus ao progresso. Chegando a desvalorizar, em nome do futuro, o
para toda a eternidade46 . Tal é o significado da visão. passado, ultrapassado, mas também o presente. Não sendo nada
Datado de 164 a.C.-163 a.C., o livro de Daniel tem em vista mais do que a véspera do futuro, melhor senão "radiante", ele
as realezas babilônica, meda, persa e macedônica, com Alexandre e podia, até devia ser sacrificado.
seus sucessores. Os autores do livro combinam de maneira única um O evolucionismo do século XIX naturalizou o tempo, enquanto
esquema metálico com aquele que trata da sucessão dos impérios, já o passado do homem se prolongava cada vez mais. Os seis mil anos
presente nos historiadores gregos desde Heródoto. Mas desse misto da Gênese não passavam de um conto infantil. Teve-se assim, como
eles fazem algo completamente diferente, inscrevendo-o em uma operadores, os progressos da razão, os estágios da evolução ou a sucessão
perspectiva apocalíptica47 . Mais tarde, a identificação das monarquias dos modos de produção, e todo o arsenal da filosofia da história. Foi
sofreu variações, o povo medo desapareceu e os romanos fecharam também a idade de ouro das grandes filosofias da história, às quais se
o ciclo por muito tempo, mas o valor profético do esquema geral sucederam, nos anos 1920, as diversas meditações sobre a decadêncl.a
continuava incólume. e a morte das civilizações. A Decad~ncia do Ocidente: esboço de uma mor-
Uma outra estrutura, igualmente de grande alcance, foi a das fologia da história universal, de Spengler, mas também Valéry, já citado,
idades do mundo. No século V, Santo Agostinho retomou e ilustrou "desesperando-se" com a história e registrando o caráter mortal das

46 Daniel 2, 28-45. As referências bíblicas são da edição da Pléiade, publicada sob orientação de ' " BOSSUET, Jacques-Bén.igne. Discours sur /'histoire universelle. Paris: Garn.ier-Flammarion, 1966. p. 142.
Édouard Dhorme. '''' AUGUSTIN. La cité de Dieu, 22, 30, 5. LUNEAU, Auguste . L'Histoire du salut chez les Pêres de
47 MOMIGL!ANO, Arnaldo. Daniel et la théorie grecque de la succession des empires. In: I'Église. Paris: Beauchesne, 1964. p. 285-331 .
111
ContributioflS {1 /'h istoire dujudaisme. Tradução de P. Farazzi. N1m cs: Editora Éclat, 2002. p. 65-71. I<OSELLECK. Li•.fillur priSSé, em especial p. 315- 320.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 35
34

civilizações51 • A história universal conquistadora e otimista parecia ter O progresso, em seguida, é fortemente colocado em perspectiva. As
chegado ao fim. A entropia estava ganhando e acabaria por vencer. formas de civilização que éramos levados a imaginar "como escalonadas
Nesses mesmos anos, a história, ao menos aquela que ambi- no tempo" devem, preferencialmente, ser vistas como "desdobradas
cionava tornar-se uma ciência social, buscava seriamente outras no espaço". Assim, a humanidade "em progresso não lembra muito
temporalidades, mais profundas, mais lentas, mais efetivas. Em um personagem galgando uma escada, acrescentando, com cada
busca dos ciclos, atenta às fases e às crises, ela se fez história dos um de seus movimentos, um degrau novo em comparação a todos
preços 52 . Foi o primeiro programa de uma história econômica e aqueles cuja conquista está adquirida; ela evoca, antes, umjogador
social, como ele se formulou, na França, em torno dos primeiros cuja sorte é repartida em vários dados. [... ] É apenas de um tempo
Annales. Após a Segunda Guerra Mundial, três linhas aparecem a outro que a história é cumulativa, ou seja, que as contas se adi-
quanto ao tempo. A arqueologia e a antropologia fisica não param cionam para formar uma combinação favorável" 55 .
de mover e de fazer recuar no tempo o surgimento dos primeiros A essa primeira relativização, de princípio, precisa-se ainda
hominídeos. Conta-se agora em milhões de anos . A "revolução somar uma segunda, ligada à própria posição do observador. Para
neolítica", finalmente, passou-se ontem, a Revolução Industrial se fazer compreender, Lévi-Strauss apela então para os rudimentos
então! Entre os historiadores, Fernand Braudel propõe a todos os da teoria da relatividade: "A fim de mostrar que o tamanho e a
praticantes das ciências sociais a longa duração e convida a assumir velocidade do deslocamento dos corpos não são valores absolutos,
a responsabilidade pela "pluralidade do tempo social" 53 • Atenta às mas que dependem da posição de observador, lembra- se que, para
estruturas, preocupada com os níveis e os registros, cada um com um viajante sentado à janela de um trem, a velocidade e o tamanho
suas temporalidades próprias, a história se dá, por sua vez, como de outros trens variam conforme estes se desloquem no mesmo
"dialética da duração". Não há mais tempo único e, se o tempo sentido ou em sentido oposto. Ora, todo membro de uma cultura
é ator, é um ator multiforme, proteiforme, anônimo também, se é tão estreitamente solidário dela quanto esse viajante ideal o é de
é verdade que a longa duração é esta "enorme superficie de água seu trem56 ".
quase estagnada" que, irresistivelmente, "leva tudo consigo". O último argumento, enfim, que poderia parecer contradi-
A terceira linha, enfim, a mais importante para a nossa propos- zer o precedente: não existe sociedade cumulativa "em si e por
ta, é o reconhecimento da diversidade de culturas. A obra Raça e si": uma cultura isolada não poderia ser cumulativa. As formas de
história, de Claude Lévy- Strauss, financiada e publicada pela Unes- história mais cumulativas, com efeito, foram alcançadas por socie-
co, em 1952, é o texto de referência54 . Nessas páginas, ele começa dades "combinando seus jogos respectivos", voluntária ou invo-
por criticar o "falso evolucionismo", denunciado como atitude luntariamente. De onde a tese final do livro, o mais importante é
que consiste para o viajante ocidental em crer "reencontrar", por a distância diferencial entre culturas. É ali que reside sua "verdadeira
exemplo, a idade da pedra nos indígenas da Austrália ou de Papua. contribuição" cultural a uma história milenar, e não na "lista de
suas invenções particulares" 57 . Assim, agora que estamos inseridos
em uma civilização mundial, a diversidade deveria ser preservada,
51
VALÉRY, Paul. Regards sur !e monde actuel. In: CEuvres. Paris: Gallimard, 1960. (Bibliotheque
de la Pléiade). t. li, p. 921. mas com a condição de percebê-la menos como conteúdo do que
52
LABROUSSE, Ernest. Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au 18' siêcle. Paris:
Dalloz, 1933.
55
53
BRAUDEL, Femand. Histoire et sciences sociales: !a longue durée. Annales ESC, n.4, 1958, p. 725-753. LÉVI-STRAUSS . Race et histoire, p. 393-394.
54
LÉVI-STRAUSS, Claude . Race et lústoire. Unesco, 1952 (La Q uestion Raciale Devant la Science "' LÉVI-STRAUSS. Race et histoire, p. 397.
57
Modern e), retomado em Anthropologie stn1cturale deux. Paris: Plon, 1973. p. 377-43 1. LÉV I-STRAUSS. Race et histoire, p. 417.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERIENCIAS DO TEMPO iNTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 37
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como forma: conta sobretudo o próprio "fato" da diversidade e Regimes de historicidade


menos "o conteúdo histórico que cada época lhe deu 58 ". Por meio
Onde situar a noção de regime de historicidade nessa galeria
de suas convenções e suas cartas, a Unesco entendeu (ao menos
de grandes referências percorrida rapidamente? Sua pretensão é
parcialmente) a mensagem, tendo em vista que está em elaboração
infinitamente mais modesta e seu alcance, se houver um, bem
uma convenção internacional sobre a diversidade cultural. Tais são
mais limitado! Simples ferramenta, o regime de historicidade não
os principais pontos de um texto, saudado, em um dado momento,
pretende falar da história do mundo passado, e menos ainda do
como "o último dos grandes discursos sobre a história universal59 " .
que está por vir. Nem cronosofia, nem discurso sobre a história
Porém, justamente em 1989, o gênero subitamente reencon- '
tampouco serve para denunciar o tempo presente, ou para deplorá-
trou uma ampla audiência com "O Fim da História e o Último
-lo, mas para melhor esclarecê-lo. O historiador agora aprendeu
Homem" de Francis Fukuyama. Como que para uma nova, mas
a não reivindicar nenhum ponto de vista predominante. O que
também última floração? A princípio apresentada sob a forma de
não o obriga de forma alguma a viver com a cabeça enterrada na
um artigo que deu a volta ao mundo, a tese, retomada em seguida
areia, ou unicamente nos arquivos e enclausurado em seu período.
em livro, pretendia sugerir que a democracia liberal poderia bem
Tampouco busca reativar uma história transformada por um tempo
constituir ''a forma final de todo governo humano" e, então, nesse
único, regulado ele mesmo por um único staccato do acontecimento
sentido, "o fim da História". "O aparecimento de forças democrá-
ou, ao contrário, pela lentidão da longa ou bem longa duração.
ticas em partes do mundo onde sua presença não era esperada, a
Não é o caso de se privar de todos os recursos de inteligibilidade
instabilidade das formas autoritárias de governo e a completa ausência
;~p ortados pelo reconhecimento da pluralidade do tempo social. De
de alternativas teóricas (coerentes) à democracia liberal nos forçam,
todos esses tempos folheados, imbricados, desencontrados, cada um
assim, a refazer a antiga questão: será que existe, de um ponto de
om seu ritmo próprio, dos quais Fernand Braudel, seguido por
vista muito mais 'cosmopolita' do que era possível no tempo de
muito outros, foi o descobridor apaixonado. Eles enriqueceram
Kant, uma história universal do homem?" 60 . Para Fukuyama, ares-
consideravelmente o questionário das ciências sociais, tornando-o
posta é sim, mas ele acrescenta imediatamente: ela está terminada61 •
mais complexo e refinando-o.
Formulada a partir de nossa contemporaneidade, a hipótese do
58
LÉVI-STRAUSS. Race et histoire, p. 421.
59
r ·gime de historicidade deveria permitir o desdobramento de um
POMIAN. L'Ordre du temps, p. 151.
6
° FUKUYAMA, Francis. La.fin de l'histoire et [e dernier homme. Paris: Flammarion, 1992. p. 11 e 96. tu estionamento historiador sobre nossas relações com o tempo.
Spectres de Marx, de Jacques Derrida (Paris: Galilée, 1993), é, particularmente, uma longa crítica I I istoriador, por lidar com vários tempos, instaurando um vaivém
à tese de Fukuyama.
61
Robert Bonnaud, que não esperou nem um pouco por 1989 para acreditar, ou acreditar
vntre o presente e o passado, ou melhor, passados, eventualmente
novamente, em uma história universal, tampouco pensa que ela esteja finalizada. Beneficiando- hem distanciados, tanto no tempo quanto no espaço. Este movi-
se, contudo , das interrogações presentes sobre o tempo, suas pesquisas receberam mais atenção
ltténto é sua única especificidade. Partindo de diversas experiências
por parte da núdia e do público. Explorador dos mecanismos temporais desde sua juventude, ele
procura, com efeito, situar o que nomeia cotno "viradas históricas mundiais" , documentando <lo tem.po, o regime de historicidade se pretenderia uma ferramenta
sincronismos (por exemplo, o de -221, valendo para o mundo mediterrâneo e o mundo chinês). ltl'llrÍstica, ajudando a melhor apreender, não o tempo, todos os
T endo publicado, em 1989, Le Systeme de l'histoire (Paris: Fayard) , não parou, desde então, de
afmar e precisar suas análises, convencido de que a história não sofre de um "excesso de datas
tvn tpos ou a totalidade do tempo, mas principalmente momentos
mas de um defeito de cronologia racional" (BONNAUD, Robert. Toumants et périodes. Paris; c k crise do tempo, aqui e lá, quando vêm justamente perder sua
Kimé, 2000, p. 13) . Suas pesquisas devem permitir que se tracem séries de "curvas planetárias"
(·v id '•ncia as articulações do passado, do presente e do futuro. Isso
e reivindicam um alcance previsível. Ver também as reflexões de J ean Baechlcr, q u ~ propõe um
I!sq11isse d'1111e flistoire lll'lillerselle (Paris: Fayard, 2002). 11.10 (· inicialmente uma "crise" do tempo? Seria, dessa maneira,
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERitNCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ORDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 39
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uma forma de esclarecer, quase do cerne, as interrogações de hoje hoj e? A análise focaliza-se assim em um aquém da história (como
sobre o tempo, marcado pela equivocidade das categorias: há relação gênero ou disciplina), mas toda história, seja qual for finalmente
entre um passado esquecido ou demasiadamente lembrado, entre seu modo de expressão, pressupõe, remete a, traduz, trai, enaltece
um futuro que quase desapareceu do horizonte ou entre um porvir ou contradiz uma ou mais experiências do tempo. Com o regime
ameaçador, um presente continuamente consumado no imediatismo de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das condições de
ou quase estático ou interminável, senão eterno? Seria também uma possibilidade da produção de histórias: de acordo com as relações
maneira de lançar uma luz sobre os debates múltiplos, aqui e lá, respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos
sobre a memória e a história, a memória contra a história, sobre o de história são possíveis e outros não.
jamais suficiente ou o já em excesso de patrimônio. O tempo histórico, se seguirmos Reinhart Koselleck, é pro-
Operatória no espaço de interrogação assim produzido, a no- duzido pela distância criada entre o campo da experiência, de um
ção valeria por e para esses movimentos de ida e retorno. Se desde lado, e o horizonte da expectativa, de outro: ele é gerado pela tensão
sempre cada ser tem do tempo uma experiência, não visamos aqui entre os dois lados 64 . É essa tensão que o regime de historicidade
considerá-la integralmente, indo do mais vivenciado ao mais ela- propõe- se a esclarecer, e é dessa distância que essas páginas se ocu-
borado, do mais íntimo ao mais compartilhado, do mais orgânico pam. Mais precisamente ainda, dos tipos de distância e modos de
ao mais abstrato 62 . A atenção, é preciso repetir, incide inicialmente tensão. Para Koselleck, a estrutura temporal dos tempos modernos,
e, sobretudo, sobre as categorias que organizam essas experiências m.arcada pela abertura do futuro e pelo progresso, caracteriza-se
e permitem revelá-las, mais precisamente ainda, sobre as formas ou pela assimetria entre a experiência e a expectativa. A partir do final
os modos de articulação dessas categorias ou formas universais, que do século XVIII, essa história pode esquematizar-se como a de um
são o passado, o presente e o futuro 63 • Como, conforme os lugares, desequilíbrio que não parou de crescer entre essas duas, sob o efeito
os tempos e as sociedades, essas categorias, de pensamento e ação ao da aceleração . De modo que a máxima "quanto menor a experiên-
mesmo tempo, são operacionalizadas e vêm tornar possível e per- cia, maior a expectativa" poderia resumir essa evolução. Ainda em
ceptível o deslocamento de uma ordem do tempo? De que presente, 1975, Koselleck interrogava- se sobre o que poderia ser um "fim"
visando qual passado e qual futuro, trata-se aqui ou lá, ontem ou ou uma saída dos tempos modernos. Isso não se revelaria por uma
máxima do gênero: "Quanto maior a experiência, mais prudente
62
e aberta é a expectativa" 65 ?
Sobre a noção de experiência, ver KOSELLECK, Reinhart. L'Expérience de l'histoire. Tradução
de A. Escudier. Paris: Gallimard; Se ui!, 1997. (Hautes Études), principalmente p. 201-204. Ora, não foi uma configuração suficientemente diferente que
63
Em "Le langage et l'expérience humaine", Érnile Benveniste propunha distinguir o "tempo se impôs desde então? Aquela, pelo contrário, de uma distância que
linguístico" e o "tempo crôníco". O primeiro é o "tempo da língua", pelo qual "se manífesta a
experiência humana do tempo", enquanto o segundo é "o fundamento da vida das sociedades"
se tornou máxima entre o campo da experiência e o horizonte da
(BENVENISTE, Émile. Pro hlemes du langage. Paris: Gallimard, 1966. p. 3-13) . O regime de expectativa, até o limite da ruptura. De modo que a produção do
historicidade participaria de um e de outro. Pode-se se reportar igualmente às reflexões de Norbert
tempo histórico parece estar suspensa. Daí talvez essa experiência
Elias sobre a noção de passado, presente e futuro: "Os conceitos de passado, presente e futuro
exprimem a relação que se estabelece entre uma série de mudanças e a experiência que disso faz contemporânea de um presente perpétuo, inacessível e quase imóvel
uma pessoa ou um grupo. Um instante determinado no interior de um fluxo contínuo apenas dá que busca, apesar de tudo, produzir para si mesmo o seu próprio
aparência de um presente em relação a um humano que vive, enquanto outros dão aparência de
um passado ou de um futuro . Na sua qualidade de simbolizações de períodos vividos, essas três
tempo histórico. Tudo se passa como se não houvesse nada mais do
expressões representam não somente uma sucessão , como o ano ou a dupla 'causa e efeito', mas
também a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana. Poder-se-
ia dizer qu e passado, presente e futuro constituem, ainda que se trate de três palavras diferentes, ,,., KOSELLECK. Le futur passé, p. 314.
um Útuco conceito" (ELI AS. D u temps, p. 86). ''~ KOSELLECK. Le_fi<tur passé, p. 326-327.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTlSMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 41
l
40

que o presente, espécie de vasta extensão de água agitada por um medieval; e é essa condição de porte à faux, que durou para além
incessante marulho. É conveniente então falar de fim ou de saída da sua morte, que me autorizou a constituir o caso Fustel. Quanto
dos tempos modernos, isto é, dessa estrutura temporal particular ou a Ulisses, aquele de Mémoire d'Ulysse [Memória de Ulisses], livro de
do regime moderno de historicidade? Ainda não sabemos. De crise, questionamentos sobre a fronteira cultural no mundo antigo, é
certamente. É esse momento e essa experiência contemporânea do para mim emblemático dessa perspectiva. Como viajante inaugural
tempo que designo presentismo. e homem-fronteira, ele é o que não cessa de colocar fronteiras e
Nem discurso sobre a história universal, nem história do tem- de atravessá-las, com o risco de se perder. Com o grupo formado
po, nem mesmo tratado sobre a noção de regime de historicidade: pelos que o seguiram, viajantes por uma razão ou outra, no espaço
estas páginas atêm-se então a momentos de história e em algumas da cultura grega, ele traça os contornos de uma identidade grega.
palavras do momento, elegem alguns personagens famosos e leem Com eles, construíram-se, no espaço e na longa duração de uma
ou releem vários textos, questionando todos do ponto de vista das cultura, esses itinerários gregos, atentos aos momentos de crise no
formas da experiência do tempo que os constituem ou os habitam, qual as percepções enevoam-se, infletem-se, reformulam-se.
sem que eles se deem conta às vezes. A investigação não busca enu- Hoje, com os regimes de historicidade, o objeto é outro, a
merar todos os regimes de historicidade que puderam ocorrer na conjuntura também. Trata-se de um novo itinerário, agora entre ex-
longa história das sociedades humanas. Produzida pela conjuntura periências do tempo e histórias, desenvolvendo-se em um momento
presente, a reflexão não para de colocá-la a distância, recuando no de crise do tempo. A perspectiva ampliou- se, o presente está mais
tempo, esforçando-se por voltar a ela de maneira mais satisfatória, diretamente presente, mas perdura a maneira de ver e de fazer, de
mas sem jamais ceder à ilusão de dominá-la. Mais uma vez, por con- avançar: o que se tornou minha maneira de trabalhar.
vicção intelectual e por gosto, optei pelo "movimento que desloca
as linhas", que privilegia os limites e os limiares, os momentos de ***
inflexão ou de reviravolta e as divergências.
Essa já era a dinâmica organizadora do meu livro O espelho de Meus agradecimentos vão para]ean-Pierre Vernant, que me encorajou
Heródoto. Colocado no limite da História ocidental, de qual lado do a escrever este livro efoi seu primeiro leitor. Obrigado a Maurice Olender,
limiar estava então Heródoto? Aquém ou além? Ainda não ou já que me propôs fazê-lo, assim como a Gérard Lenclud, Éric Michaud, ]ac-
historiador? Pai da história ou mentiroso? Pode-se dizer o mesmo ques Revel e Michael Werner. Obrigado, .finalmente, aos ouvintes do meu
quando, no espaço mais reduzido e também mais contido da his- seminário, que toleraram esses "regimes".
toriografia francesa, eu me deparei com Fustel de Coulanges. Com
ele, percorri um século de história. Nascido em 1830 e falecido
no ano do centenário da Revolução Francesa, ele foi historiador,
certamente, quase em excesso, mas sem deixar de se encontrar em
porte àfaux 66 : em relação a uma história-ciência da qual foi, no en-
tanto, um dos mais austeros promotores, no que concerne a uma
nova Sorbonne que criou para ele a primeira cátedra de História

66 Être en porte à ja11x : encontrar-se em uma posição instável, desequilibrada, ou entre posições
contraditórias. (Nota do revisor geral)

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