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SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Reservam-se os direitos desta edição à


EDITORA BIBLIOTECA CATÓLICA

Projeto Gráfico:
Gabriela Haeitmann

Edição:
Renan Martins dos Santos

Conteúdo exclusivo:
Silvia Emilia Cunha Lima

Revisão:
Gabriel Warken Charczuk
À Nossa Senhora da Conceição,
Virgem Mãe de Deus,
Rainha dos Anjos e dos Santos,
Refúgio dos Pecadores,
Saúde dos enfermos,
Auxiliadora dos cristãos
e Padroeira do Brasil,
oferece estas páginas,
como pequenina homenagem
de ardente amor e profunda gratidão,
o menor de seus filhos

— Manoel E. Altenfelder Silva


MÁRTIR DA CASTIDADE
(séc. XVI)

Era no tempo de Anchieta, o santo evangelizador dos nos-


sos aborígenes.
Em São Vicente, esperançoso reduto da catequese,
centro luminoso donde se irradiou o progresso espiritual e
material por toda Capitania, vivia uma piedosa cristã cujo
nome não chegou até nós. Filha das selvas, ela deixou a
taba dos seus maiores, quando aí surgiu a preclara e austera
figura do Apóstolo.
O padre, ao explicar-lhe toda a beleza da Religião, fa-
lou-lhe do amor infinito do Criador para com a criatura
a ponto de fazer-se Homem, padecer e morrer para sal-
vá-la, apontando-lhe o Crucifixo que trazia sobre o peito.
Fitando-o, a índia experimentou um sentimento novo, in-
definível.
Outra cruz conhecia a virgem das florestas; cruz de
ouro incrustada de pedrarias faiscantes, que Deus plantou
no céu de nossa Pátria,1 como uma carícia do seu amor, a
guiar os nossos destinos; cruz que ela divisava em todo o
seu esplendor na serenidade das nossas noites encantado-
ras. Mas esta, embora deslumbrante, apenas lhe fascinava a
vista; aquela, porém, pobre cruz de madeira, lhe empolgava
a alma.
Convertida e tendo repudiado as práticas pagãs, rece-
beu o Batismo e, com ele, sentiu na alma as fulguras da fé.

***

1. Refere-se à constelação do Cruzeiro do Sul.

7
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Casara-se. Para ajudar o esposo no cuidado do lar, em-


pregava o tempo que lhe sobrava das lidas caseiras no pre-
paro de velas de cera.
Certo dia, separando duas velas dentre as que tinha fa-
bricado, disse à sua irmã que as reservava para si.
Perguntando-lhe esta por que assim procedia, respon-
deu a piedosa cristã:
— Reservo-as para o Padre José, a fim de que diga mis-
sa por mim, quando eu for santa.
Depois levou as velas ao santo Anchieta, manifestando-
-lhe a sua intenção.

***

Um dia, a quietude de São Vicente foi quebrada pela


algazarra infernal dos tamoios2 de Cabo Frio, em inespera-
do ataque. Após a luta, retirou-se o inimigo, levando como
prisioneiros alguns pacatos moradores do lugar.
A virtuosa mulher não pôde escapar à sanha feroz dos
assaltantes. Foi aprisionada com alguns dos seus conterrâ-
neos e seguiu para o exílio.
Ia cumprir-se, em breve, sua profecia.
Depois de uma penosa viagem de muitas léguas, eis que
se aproxima a hora em que muitos baqueiam, vítimas da
fraqueza ou pusilanimidade; hora suprema em que se vai
decidir a sorte de uma alma: ou sujeitar-se às imposições
brutais do algoz, desonrando-se e ofendendo a Deus, ou
resistir… e morrer.
Antevendo os tormentos que lhe estavam reserva-
dos, lembrou-se do seu Deus, morto na cruz, com o
Corpo coberto de chagas. Lembrou-se dos conselhos
do seu querido Padre Anchieta, e nem por um instan-

2. Tribo indígena especialmente bárbara e indócil. Sobre eles, cf. livro principal deste
box. (N. E.)

8
MÁRTIR DA CASTIDADE (séc. XVI)

te vacilou. Iria pagar com amor o infinito amor de Jesus


Cristo.
Revestida de fortaleza sobre-humana, quando o chefe
tamoio apareceu para ultrajá-la, ela, com o rosto inflamado
de pejo e de santa indignação, fê-lo recuar, bradando:
— Eu sou cristã e casada; não atraiçoarei a Deus e a
meu marido. Podeis matar-me e fazer de mim o que qui-
serdes!
Enfurecendo-se o algoz diante daquela débil criatura
que ousava resistir aos seus lúbricos desejos, com um golpe
de tacape esmigalhou-lhe o crânio.

***

“Estava José em São Vicente, distante daquele lugar


trinta léguas, e contudo naquele mesmo dia, ilustrado do
Céu, acendeu as duas velas que ela lhe dera, e com elas disse
Missa de mártir, com as orações e lições que costuma dizer
a Igreja, e com o nome da mesma índia nos lugares, onde o
ordena o cerimonial, na Missa de uma Santa Mártir”.
“E perguntando por seu Superior, Nóbrega, que santa
era aquela por quem dissera Missa, respondeu: ‘Por fulana
(nomeando a índia, bem conhecida em São Vicente) que
neste mesmo dia foi morta a mãos de um tamoio bárbaro,
por guarda fiel da Lei de Deus, e da honestidade, e subiu
logo ao Céu’. E veio depois notícia pública do caso todo,
como dissera, com todas as suas circunstâncias”.3
O martírio da Serva de Deus a quem consagramos o
presente capítulo aconteceu, provavelmente, entre os meses
que decorreram de março a junho de 1567. Esta nossa supo-
sição se baseia na narração que do mesmo fato fez o padre
Antonio Franco.

3. Padre Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil,


2ª ed., Lisboa, 1865, vol. II, pp. 60 e 61.

9
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Diz este autor que após a morte de Estácio de Sá, em


fevereiro de 1567, o venerável Padre Anchieta regressou
para São Vicente, juntamente com o visitador, Padre Iná-
cio de Azevedo, o provincial, Luiz da Grã, o bispo, Dom
Pedro Leitão, e outros que foram se consolar “com o santo
velho Manuel da Nóbrega”; e que, durante o tempo em
que Anchieta aí permaneceu, deram-se esse e outros ca-
sos notáveis. Em julho do mesmo ano, Anchieta se retirou
novamente para o Rio de Janeiro, onde foi fundar, com os
venerandos padres Azevedo e Nóbrega, o colégio da Com-
panhia de Jesus.

10
PADRE DOMINGOS
GARCIA4
(sécs. XVI–XVII)

Um dos maiores obreiros da vinha do Senhor , em nossa


Pátria, foi sem dúvida o venerável jesuíta padre Domingos
Garcia, natural da então Vila de São Paulo.
Em Simão de Vasconcelos encontramos algumas refe-
rências sobre esse santo homem.
Homem inteligentíssimo, aprofundou-se no estudo da
língua brasileira, que manejava com facilidade e elegância.
Inúmeros índios deveram a conversão a este insigne
missionário, que empregou toda a sua vida de religioso no
serviço da catequese.
Às suas palavras cheias de unção dobravam-se os arro-
gantes filhos das selvas, abraçando a fé católica.

***

Um fato prodigioso, ocorrido em 1597, bem demonstra


quanto o Céu abençoava os trabalhos apostólicos do Pe.
Domingos Garcia.
Sabendo o santo missionário que, distante 400 ou 500
léguas de Espírito Santo, existia uma tribo de índios na mais
completa barbárie, a sua alma de apóstolo alvoroçou-se nos
mais santos impulsos de caridade. Pudesse ele, e como já
tantas vezes havia feito, empreenderia logo a longa e pe-
nosa jornada para trazer esses infelizes ao amor de Nosso
Senhor Jesus Cristo.

4. Padre Simão de Vasconcelos, Vida do Padre João de Almeida, Lisboa, 1658, pp.
39–41.

11
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Não permitindo, porém, motivos poderosos que nessa


ocasião o Servo de Deus se ausentasse da aldeia que diri-
gia, por uma felicíssima inspiração encontrou o meio eficaz
para a salvação dessas almas.
Escolheu Pe. Domingos dois índios cristãos, seus filhos
espirituais, e encarregou-os de irem, como seus embaixa-
dores, levar um convite aos selvagens para que viessem à
sua presença. Instruídos e abençoados pelo apóstolo, par-
tiram os embaixadores. Vencida a exaustiva viagem, de al-
guns meses, chegaram por fim à taba dos bárbaros.
Exposto ao chefe da tribo o fim da sua missão, foram
os dois emissários acolhidos com o maior carinho, e as suas
palavras caíram nas almas de todos os selvagens, como
gotas de celestial orvalho. Convidada pelo chefe, toda a
tribo resolveu imediatamente obedecer ao chamado do
Pe. Garcia.

***

Após seis meses de viagem, chegaram os selvagens a Reritiba.


Nesse dia, os moradores da aldeia, com indescritível
júbilo, prepararam-se para recebê-los festivamente. Foram
esperar os selvagens, a três léguas da aldeia, o Pe. Domin-
gos Garcia e seu companheiro de missão, seguidos por 300
índios cristãos, todos engalanados com seus arcos, flechas,
instrumentos musicais, etc.
O cacique aproximou-se do Pe. Domingos e prostrou-
-se a seus pés, soluçando. Levantou-o, por fim o Servo de
Deus, e depois de dados os parabéns da vinda, os foi guian-
do ao som de instrumentos, até a aldeia, e a igreja dela, a
cuja entrada ficaram os bárbaros espantados da majestade
do culto divino e do modo dele. Fez-lhes o padre aqui uma
prática com tal fervor e eloquência que o principal e todos
ficaram admirados e disseram uns aos outros:

12
PADRE DOMINGOS GARCIA (sécs. XVI–XVII)

— Se este padre correra todos os nossos nosso sertões,


não haveria ninguém que ficasse neles.

***

O Pe. Domingos Garcia faleceu e foi sepultado na al-


deia de Reritiba, deixando um vácuo imenso nos corações
de seus queridos índios, que, inconsoláveis, prantearam a
sua morte como a de um guia seguro, um mestre sábio e o
melhor dos pais.

13
FREI MANOEL DA PIEDADE5
(séc. XVII)

Vulto merecedor de especial destaque na história religio-


sa e civil da nossa pátria é incontestavelmente o do ilustre
franciscano frei Manoel da Piedade. Religioso de acrisola-
das virtudes, possuidor de vasta cultura, teólogo profundo,
muito versado na língua brasílica, notabilizou-se também
este Servo de Deus como grande patriota.
Nascido em Olinda, no ano de 1581, teve por pais o
capitão João Tavares, primeiro conquistador, e que deu
princípio a fundar a povoação de Paraíba, e sua mulher,
Constança Dias. No mesmo convento em que já se achava
seu irmão mas velho, o venerável Frei Bernardino das Ne-
ves, entrou o piedoso jovem como noviço, professado a 13
de março de 1598, com 17 anos de idade.
Ordenado daí a alguns anos, foi várias vezes distinguido
pelos superiores da sua congregação com elevados cargos.
Quando o bravo capitão Jerônimo de Albuquerque partiu,
em 1614, para o Maranhão, a fim de expulsar o franceses que
se apoderaram dessa região, levou como capelão dois religio-
sos da ordem de São Francisco: Frei Cosme de São Damião
e o nosso Frei Manoel.

***

Chegados ao termo da fatigante jornada, antes de co-


meçar a peleja, discursou o Servo de Deus aos indígenas,
fazendo-lhes sentir não só a obrigação que tinham todos
de combater com denodo contra os audaciosos inimigos,
5. Cf. Frei Jaboatão, Novo Orbe Seráfico, vol. 1, parte prim., estâncias XIV e XV,
pp. 185–191, e vol. 2, parte segunda, cap. XV, pp. 81–88 e cap. XVIII, pp. 380–85.

14
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

como também as vantagens espirituais e materiais que


usufruíam, uma vez expulsos do solo pátrio tão perigosos
aventureiros.
Travado o combate, não teve descanso o santo frade,
que, empunhando um crucifixo, ia de um lado a outro da
luta, animando os combatentes e socorrendo os que tomba-
vam; pensando as feridas de uns e sacramentando a outros.
Que grandiosa figura a desse humilde filho de São
Francisco, arriscando abnegadamente a vida, por Deus e
pela Pátria!

***

Findo o combate com a vitória das nossas tropas, e feitas


as pazes provisórias, para que as forças invasoras se retiras-
sem definitivamente do Maranhão, pediu o general Revadier
a valiosa intervenção de Fr. Manoel junto aos indígenas seu
aliados a fim de que estes se não revoltassem, supondo, tal-
vez, que ficariam escravos dos vencedores.
O Servo de Deus mais uma vez desempenhou otima-
mente a sua missão de sacerdote patriota, pregando aos
rebeldes e convencendo-os da sinceridade de Jerônimo de
Albuquerque.

***

Após a retirada das tropas de Revadier, reinando a paz


no Maranhão, ocuparam-se os dois veneráveis missionários
na conversão de numerosos franceses calvinistas, que ali fi-
caram residindo com suas famílias.
Convertidos muitos desses hereges, a outra catequese se
entregaram os Servos de Deus: a conversão dos selvagens.
Passavam semana a fio nas tabas, em pleno sertão, ensi-
nando aos abandonados filhos das nossas selvas a doutrina

15
FREI MANOEL DA PIEDADE (séc. XVII)

cristã; e, convertidos os moradores de uma taba, logo eram


encaminhados para a capital do Maranhão onde recebiam
solenemente o Batismo. Inúmeras foram as conversões dos
selvagens durante os dois anos da catequese dirigida pelos
dois apóstolos.

***

No fim do ano de 1616, ou começo de 1617, já se achava


Fr. Manoel em Pernambuco, todo entregue aos labores san-
tificantes de seu ministério, e, a 15 de fevereiro de 1630, por
ocasião do cerco de Olinda pelas forças holandesas, inesti-
máveis serviços prestou o santo religioso ao nosso exército.
Com a tomada de Olinda, foi o Servo de Deus obri-
gado a se retirar durante a noite, juntamente com os seus
irmãos de hábito, para o Recife, onde permaneceram ape-
nas dois dias, seguindo depois para o convento de Paraíba.
Aí devia ele sofrer o martírio, por Deus e pelo Brasil.
No assalto dos holandeses ao forte de Cabedelo, a 11 de
dezembro de 1631, achava-se o insigne missionário junto
aos seus compatriotas combatentes, animando-os sempre
com um crucifixo nas mãos, quando recebeu uma alabarda-
da que o prostrou por terra, banhado em sangue.
E sete dias depois, expirou o santo Frei Manoel da Pieda-
de, indo receber no Céu a dupla coroa de apóstolo e mártir.

16
MÁRTIRES DA FÉ
E DA CASTIDADE6
(séc. XVII)

Duras, honrosas e por demais humilhantes foram as pro-


vações por que passaram milhares de brasileiros, durante os
vinte e quatro anos em que holandeses permaneceram em
nossa pátria.
Repetiram-se, então, aquelas cenas diabólicas que um
historiador insuspeito7 nos descreve, ocorridas durante os
reinados de Henrique VIII e Isabel, de Inglaterra, contra
os católicos de seu país.
Protestantes, trazendo na alma sentimentos de ódio aos
adeptos do catolicismo, e de desenfreada cobiça, os invaso-
res holandeses por toda parte semeavam a morte, tingiam
as mãos no sangue de inocentes vítimas, violavam lares,
profanavam templos, praticavam, enfim, crimes os mais
hediondos.
Deus, entretanto, protegia a Terra de Santa Cruz,8 sus-
citando para sua defesa bravos e heroicos cabos de guerra,
como Antônio Filipe Camarão, Henrique Dias, Vidal de
Negreiros e outros que varreram do solo sagrado do Brasil
os pérfidos invasores.

***

6. Cf. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, por D. Domingos do Loureto


Couto, da Ordem de S. Bento, vol. 1, livro quarto, cap. 3, pp. 239–243 e vol. 2, liv.
sétimo, cap. 1, pp. 116–117.
7. Guilherme Cobbett, História da reforma protestante em Inglaterra e Irlanda,
Trad. port. do Pe. José de Souza Amado.
8. Como era chamado o nosso território antes de ser denominado "Brasil". (N. E.)

17
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Um dos primeiros gestos dos hereges, chegando a Per-


nambuco, foi a prisão de padres do clero secular e regular,
que, metidos nos porões de navios, depois de torturados e
insultados, eram desembarcados em longínquas praias, onde
encontravam a morte.

***

Prestem os leitores atenção a estas palavras de Dom


Domingos Couto: “Para que a sua bárbara crueldade ser-
visse mais a seu depravado deleite, inventavam esses ti-
ranos novos modos de tormentos, e esquisitos gêneros
de desumanidade. Condenavam a açoites, executava-se
a pena por tais braços, e com tais tormentos, que não se
dava golpe que não abrisse ferida. Sentenciavam à morte,
cumpria-se a pena com tais escárnios, injúrias e martírios,
que se não podia saber se morriam aos rigores do ferro,
ou à violência do pejo… Estendiam os corpos dos pacien-
tes sobre umas rodas obradas com tal artifício, que com
os movimentos lhe moíam os ossos, e se a vida suportava
o tormento, lhe davam fim com uma maça de ferro, que
lhes abatia os peitos. A outros faziam em migalhas já pe-
las juntas dos dedos, que muito vagarosamente lhes iam
cortando articulação por articulação, até lhes arrancarem
as línguas, olhos, faces e dentes. A uns atormentavam em
cavaletes de pau até que feneciam. A outros com afilados
trinchetes iam pouco a pouco desmembrando até lhes fica-
rem os ossos expostos.”
“A outros penduravam e ungiam com azeite ou emplas-
tavam com pez derretido, para que a fogo lento acabassem
as vidas. A muitos imprensavam entre duas tábuas repassa-
das de agudos pregos, que juntamente os transpassavam.”
“As mulheres de qualquer estado, ou qualidade, cortavam
as mãos, e rompiam as orelhas, e feriam as gargantas, só para

18
MÁRTIRES DA FÉ E DA CASTIDADE (séc. XVII)

lhes tirarem os anéis, pendentes e gargantilhas. Abriam


muitas pelas costas ou pelos peitos, lhes tiravam os fígados
e corações ainda palpitantes, esgarçavam as crianças vivas e
com as mãos as faziam em duas partes.”

***

Chegando o holandês Jacob à povoação de Cunhaú, a


15 de junho de 1645, mandou logo afixar editais, ordenan-
do, em nome do governador, que a população se reunisse na
igreja, a fim de lhes falar.
Permitia-lhes, entretanto, o herege, que essa reunião se
realizasse no dia seguinte, que era domingo, depois da Mis-
sa, para cuja celebração ele dava consentimento.
Encheu-se a igreja, com exclusão de alguns moradores
do lugar, que, desconfiados das intenções de Jacob, se refu-
giaram nos engenhos. A Missa andava pela metade. No mo-
mento em que o celebrante elevava o Corpo Divino de Jesus,
para a adoração dos fiéis, eis que os hereges invadem a igreja,
e dão início à carnificina.
Era o sacerdote que celebrava, homem de noventa anos,
varão de vida exemplar, e virando para os fiéis lhes disse:
que todo aquele que nele tocasse, ou nas imagens e pa-
ramentos do altar, lhes ficaria tolhida a parte com que o
fizesse; temeram os gentios e se retiraram reverentes, ou-
tros infiéis, ou mais assanhados ou menos respeitosos, lhe
tiraram a vida.
Todas aquelas partes dos seus corpos, que serviram
ao sacrilégio, lhes ficaram pasmadas, e invisíveis, e todos
em brevíssimo tempo morreram despedaçados dos seus
próprios dentes: e para que se não duvidasse da causa do
castigo, permitiu Deus que na dureza das portas da igreja,
como em branca cera, ficassem impressas as mãos do sacer-
dote buscando com elas arrimo nos últimos alentos da vida.

19
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Verificou-se o prodígio com se ver por largo tempo o san-


gue dos padecentes tão vivo e fresco, como se na mesma
hora fosse derramado.
Assaltando a freguesia de São Lourenço, os holande-
ses martirizaram, entre outros, o respectivo vigário, padre
Gonçalo Ribeiro, e os fiéis Domingos da Silva, Jerônimo
de Albuquerque de Mello, Pedro Alvares Carneiro, Fran-
cisco Dias e um filho.

***

Em 1645, era vigário da freguesia de Rio Grande o Pe.


Ambrósio Francisco Ferros.
Nesse tempo, a fortaleza existente no território da mes-
ma freguesia estava guarnecida pelos holandeses.
No dia 2 de outubro, achavam-se nessa praça de guer-
ra o Pe. Ambrósio, Antônio Vilela Cide o velho, Antônio
Vilela Cide o moço, Francisco de Bastos, José do Porto,
Diogo Ferreira, Estevam Machado de Miranda, Francisco
Mendes Pereira, Simão Correa, João da Silveira, Vicente
de Araújo Pereira e João de Lustar Navarro, este último
como prisioneiro.
Chegando a essa fortaleza, com sinistras intenções, o
famigerado João Bolastrater, um dos três do “Conselho
Supremo dos Holandeses”, foi logo ordenando aos brasi-
leiro aí reunidos que se retirassem para seu sítios, a fim de
tratar da lavoura, pois, como lhes disse, a praça necessitava
de víveres, e necessário se tornava que eles trabalhassem
suas terras, para haver abundância de mantimentos.
Traiçoeiramente lhes ofereceu uma companhia de sol-
dados, pretextando ser isso uma garantia para os viajantes,
que assim poderiam evitar alguma surpresa pelo cami-
nho, num tempo em que bandos de malfeitores andavam
assolando as povoações.

20
MÁRTIRES DA FÉ E DA CASTIDADE (séc. XVII)

No dia seguinte, partiram nosso compatriotas, confian-


tes na palavra de João Bolastrater.
Desembarcaram no porto de Hiomavaçú, distantes três
léguas da fortaleza; mas, nem bem saltaram em terra, viram
os nossos a cilada que lhes fôra preparada.
O comandante da tropa mandou que os brasileiros se
despissem e ficassem de joelhos. Duzentos selvagens, que
se achavam escondidos na mata próxima, apareceram, de
súbito, rodeando o grupo de prisioneiros e soltando gritos
medonhos. Feito silêncio, um dos holandeses se dirigiu aos
católicos propondo-lhes a vida em troca da apostasia.
Todos, a uma só voz, declararam que permaneceriam
fiéis a fé católica. Então a horda selvagem atirou-se con-
tra os heróicos brasileiros, martirizando-os com inaudita
crueldade. Quem mais sofreu foi o Pe. Ambrósio, contra
quem se voltou com maior furor o ódio dos hereges.

***

Retirando-se, os soldados seguiram para umas trinchei-


ras, a meia légua distante de Hiemovaçú, onde, havia três
meses, se tinham instalado setenta pernambucanos, com
suas famílias, a fim de se defender dos ataques do bando
chefiado pelo facínora Jacob.
Aí chegado, o oficial mandou, em nome do governa-
dor, que os pernambucanos deixassem suas famílias nesse
mesmo local e comparecessem à fortaleza, onde deveriam
assinar uma concordata, para o bem comum, de holandeses
e brasileiros. Para que a viagem se tornasse mais cômoda,
deveriam ir ao porto de Hiemovaçú, onde os aguardavam
algumas embarcações. Embora prevendo um triste fim,
despediram-se das suas famílias e, resignados, partiram.
Assim que chegaram ao porto, seus olhos contem-
plaram o mais tétrico dos espetáculos. Os selvagens

21
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

ainda tripudiavam em derredor dos corpos mutilados dos


mártires. Aí se renovou a cena anterior. Os hereges, depois
de fazerem a apologia dos ensinamentos de Lutero e Cal-
vino, convidaram-nos a renegar o catolicismo, sob pena de
morte. Os invictos católicos, firmes na fé, responderam que
não trocavam a Religião divina a que tinham a ventura de
pertencer, desde o berço, pelos infames ensinamentos de
homens vis como Lutero e seus sequazes.
Ainda mais enfurecidos os hereges, com tão nobre res-
posta, caíram sobre eles e os martirizaram.
Mas, nem todos sofreram o mesmo gênero de martírio.
Antonio Baracho e Matheus Moreira, por exemplo, foram
amarrados a troncos de árvores e açoitados; em seguida, ar-
rancaram-lhes as entranhas e encheram o vácuo com brasa.
Que outro martírio mais doloroso poderiam proporcionar-
-lhes seus algozes?
Matheus, ao expirar, bradou: “Bendito e louvado seja o
Santíssimo Sacramento!”.
Por último, admirados os verdugos da serenidade com
que oito jovens esperavam a morte, pediram ao seu capitão
que lhes poupasse a vida. Acedeu o oficial, impondo porém
aos destemidos jovens que se comprometessem a nunca
pegar em armas contra os holandeses, mas sim contra os
seus patrícios.
A proposta foi logo altivamente repelida. Nem outra
poderia ser a resposta desses bravos moços, modelos de
católicos e patriotas, custando-lhes essa atitude heroica o
sacrifício da vida. Foram logo mortos, com exceção de João
Martins, em cuja presença sacrificaram os companheiros.
Nem com a vista de tão assombrosos sofrimentos se dobrou
a alma forte daquele jovem. Repelindo as novas propostas
de apostasia, teve o heroico patrício a sorte dos demais.

***

22
MÁRTIRES DA FÉ E DA CASTIDADE (séc. XVII)

Um fato não pode deixar de causar certa impressão aos


perversos holandeses. Foi avistarem os corpos dos mártires
apertados por ásperos cilícios.

***

Por mais que as esposas, filhos e demais parentes dos


mártires suplicassem licença ao bárbaro oficial holandês
para sepultar os mortos, não a obtiveram senão passados
quinze dias. Queria o herege, num requinte de maldade,
aumentar o sofrimento das desoladas mulheres, com a vista
dos cadáveres em putrefação.
Mas o Céu, empenhado em publicar a vitória de seus
servos, permitiu que os meios de que se valia a herética
malícia para esconder aos olhos do mundo a sua crueldade,
e o triunfo dos servos do Senhor, esses mesmos servissem
para maior honra e glória; porque passados quinze dias
estavam os seus corpos, ainda que divididos e despedaça-
dos, intactos, não se atrevendo a tocá-los nem a corrupção
nem os bichos, exalando tão suave fragrância, que vencia
a todo o aroma, e flores dos jardins (cheiro que neste sí-
tio permaneceu por muito tempo) para que não houvesse
quem não fosse testemunha de tamanho prodígio. Estava
o sangue sobre a terra fresco, e as feridas da cor de pre-
ciosos rubis, mostrando a divina Providência, com esta e
outras extraordinárias demonstrações, o quanto fora grato
a seus divinos olhos o sacrifício daquelas inocentes vítimas.
Na noite em que as devotas mulheres deram sepultura aos
corpos dos bem-aventurados mártires, ouviu a mulher de
Gusmam, governador da fortaleza, para os lados onde se
depositaram, uma suavíssima melodia de acordadas vozes,
que como celestiais moviam e admiravam; espantada do
caso, chamou o marido que com outros holandeses estava
conversando, e todos ouviram a música com um mesmo

23
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

espanto. Saiu a uma câmara, onde se achavam algumas mu-


lheres portuguesas, que compassiva tinha recolhido em sua
casa, e achou que suspensas na suavidade da harmonia se
esqueciam da mágoa e do sono.
Para chorar sem perigo (porque também se reputava
delito o natural sentimento) se recolheu ao aposento in-
terior uma menina filha de Diogo Pinheiro, onde achou
uma formosa senhora com um chicote na mão, que com
venerável gravidade lhe disse: “Não chores, filha, que com
este açoite, que aqui vês, hão de ser castigados os minis-
tros da crueldade, que logo ouvirás”; e desapareceu. Saiu
a menina espantada, e medrosa, e perguntada a causa re-
latou o referido. Em breve tempo degolou o fio da nos-
sa espada a todos os agressores, adiantando-se na paga
aquele pérfido holandês Jacob, ao qual Gusmam matou
a punhaladas.
Todas estas notícias foram autenticadas por testemu-
nho e juramento de muitas pessoas, que tudo presenciaram,
e escreveu destes e mais martírios o Pe. Frei Manoel do
Salvador no seu Valeroso Lucideno, Frei Raphael de Jesus
no Castrioto Lusitano, e em outras muitas memórias e tra-
dições verdadeiras.

***

Após o martírio dos heróis brasileiros, no porto de


Hiemovaçú, apressaram-se os soldados holandeses em vol-
tar às trincheiras onde se achavam as famílias dos mártires.
Desumanamente descreveram às venerandas senhoras e
inocentes donzelas a sorte que proporcionaram aos seus que-
ridos parentes, e tentaram, com ameaças terríveis, violentá-las.
Mais de cinquenta, entre elas, resistiram heroicamente.
Alentadas pela fé, cheias de esperança na eterna recompen-
sa, não permitiram que fosse ultrajada a sua pureza.

24
MÁRTIRES DA FÉ E DA CASTIDADE (séc. XVII)

Vingaram-se os bárbaros, cravando em seus corações


agudos punhais. E, assim, foram aquelas ditosas criaturas
receber no Céu a refulgente coroa do martírio e a palma
branca da castidade!

25
FREI FRANCISCO
DE SANTO ANTÔNIO9
(1609–1695)

Frei Francisco de Santo Antônio, mais conhecido por Frei


Francisco, o “Pretinho”, porque era negro, nasceu em Per-
nambuco, no ano de 1609. Em sua mocidade foi soldado,
tendo defendido a pátria contra a invasão dos holandeses,
combatendo sob as ordens do bravo Henrique Dias.
Chamado por Deus, recolheu-se Francisco ao Conven-
to de Nossa Senhora das Neves, em Olinda, onde recebeu
o hábito e cordão de irmão donato.10 Muitos anos viveu este
santo homem ao serviço do mesmo convento, pretendendo
alcançar a graça de professar como irmão leigo. Cansado
de suplicar aos superiores, e vendo frustrado o seu justo in-
tento, partiu para Portugal. Aí o apresentaram ao Rei Dom
Pedro II, o qual, atendendo aos seu serviços, especialmente
aos da religião, e boas informações de sua vida em estado
de Irmão Donato, o remeteu para a Província, ordenando
aos padres dela que o admitissem à profissão, que veio a
fazer no Convento de Olinda, a 2 de agosto de 1689, quan-
do já contava os oitenta anos de idade.
Foi sempre Fr. Francisco muito humilde, caridoso e pie-
doso. Quando se desocupava dos serviços da cozinha, a que

9. Cf. Frei Jaboatão, Op. cit., vol. II, part. I, cap. XXVII, pp. 356 e 357, e vol. III,
adit. ao liv. VII, cap. VIII, pp. 823 e 824.
10. Os que se apresentavam como candidatos a este humilde estado de Donato na
Ordem Franciscana, depois da prova de dois anos no serviço do convento, eram
admitidos à profissão da Ordem Terceira da Penitência.
Em algumas províncias da Ordem Franciscana era costume fazerem os Donatos,
além da referida profissão, também os votos de fidelidade, obediência e castidade (cf.
Fr. Diogo de Freitas, O Último Donato, biografia do virtuoso Fr. Silvino Soares de
Mello, publicada no “Echo Seraphico” de novembro de 1925)

26
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

se entregava voluntariamente desde o tempo de irmão dona-


to, retirava-se à igreja, onde passava muitas horas em oração.

***

Quando Fr. Jaboatão procurava documentos para tra-


çar a biografia do Servo de Deus, soube dos religiosos do
Convento de Olinda ser constante tradição entre eles o
que várias vezes aconteceu com Fr. Francisco, durante suas
fervorosas orações. De contínuo notava o irmão sacristão,
ao preparar o altar-mor da igreja para a primeira Missa da
madrugada, que a imagem de Jesus Menino que se achava
nos braços de Nossa Senhora, estava em posição diferente
da que devia estar.
Não podendo compreender como isso acontecia, pôs-se
certa noite a espreitar na capela-mor, orando, o virtuoso
frei Francisco.
Em dado momento, notou o irmão sacristão que a ima-
gem do divino Infante se desprendera milagrosamente dos
braços da Santíssima Virgem e fôra colocar-se nas mãos do
Servo de Deus.
Depois, acariciado com santa ternura por Fr. Francisco,
lá voltava para os braços da divina Mãe o seu bendito Filho.

***

A 25 de agosto de 1695, contando 86 anos de idade,


terminou Fr. Francisco de Santo Antônio sua existência
terrena, com reputação universal de virtude, e fama de
santidade.

27
PADRE JOÃO ALVARES
DA ENCARNAÇÃO11
(1634–1719)

Este valoroso missionário foi um daqueles que maior nú-


mero de almas conquistaram para o Céu, em nossa pátria.
Assenta-lhe bem o título de Apóstolo do Ceará, onde fun-
dou numerosas aldeias de índios.

***

Nasceu o Pe. João Alvares na povoação de Tracunhaém,


Pernambuco, a 4 de março de 1634. Seus pais, Antônio
Jorge Guerra e dona Izabel Taveira, encontraram de sua
parte os melhores frutos da cuidadosa educação que lhe
proporcionaram. De natural dócil e obediente, de proceder
irrepreensível, revelava o cândido menino que futuramente
Deus lhe enriqueceria a alma com singulares graças.

***

Recebendo o presbiterato, continuou o Servo de Deus a


viver sob o teto paterno. Algum tempo depois, sentindo ce-
lestial chamado à vida do claustro, entrou para o Convento
de Santo Amaro, em Olinda. Na congregação de São Feli-
pe Néri, fundada pelo venerando Pe. Duarte do Sacramen-
to, trabalhou muitos anos o Pe. João Alvares, demonstrando
continuamente os fervores de sua alma na oração, na morti-
ficação e na prática heroica das virtudes. Os jejuns, os cilícios
e as disciplinas com que castigava o seu corpo, para melhor

11. Cf. D. Domingos de Loreto Couto, Op. cit., vol. 1, livr. IV, cap. 18, pp. 315–18.

28
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

servir a Deus, foram perenes. Dispusera-se o santo religioso


a exercer completo domínio sobre as paixões, e, assim arma-
do com a couraça da oração e da penitência, vencia todas as
tentações, prosseguindo valentemente nos caminhos espiri-
tuais que Deus lhe traçara.
Com permissão dos seus superiores deixou Pernam-
buco, partindo para o Ceará, onde se lhe desvelava vasto
campo para os seus trabalhos apostólicos.
Não se podem reduzir a número os trabalhos e vigílias
que constantemente tolerou, os caminhos fragosos e ina-
cessíveis que muitas vezes descalço percorreu, os perigos
e ciladas a que heroicamente ofereceu a vida para atrair à
fé os corações dos idólatras, merecendo por estes angélicos
ministérios ter chamado apóstolo dessa missão.
Numerosos milagres fez em vida o venerável padre João
Alvares, curando enfermos, convertendo pecadores, profe-
rindo profecias e penetrando o íntimo dos corações. Mui-
tos desses prodígios foram autenticados com o testemunho
de pessoas merecedoras de crédito, cujos depoimentos fo-
ram tomados por ordem do bispo de Pernambuco, Dom
Frei José Fialho.

***

Alquebrado pelos árduos trabalhos, enfermidades e


idade, recolheu-se o santo homem ao convento da Madre
de Deus, em Recife, onde a sua principal ocupação, depois
da Missa, era ouvir e absolver os pecadores.
A 29 de setembro de 1719, depois de receber os últimos
Sacramentos, faleceu o grande missionário, na avançada ida-
de de 75 anos. A morte do Pe. João Alvares da Encarnação
encheu de pesar não só os seus irmãos de hábito, mas toda a
população de Recife, que lhe prestou as maiores homenagens.

29
PADRE JOÃO ALVARES DA ENCARNAÇÃO (1634–1719)

Em dois dias que o venerável cadáver esteve sem se en-


tregar à sepultura, se viu flexível, e a carne tão branda e
tratável como se fosse animada. Com alguns particulares
prodígios confirmou o Senhor a virtude e eterna felicidade
deste Seu servo, e entre outros foi admirável o seguinte:
aquele tumor ulcerado que em sua vida exalava um cheiro
corrupto, que ofendia o olfato e o cérebro de quem lhe as-
sistia, logo que se apartou do corpo o espírito, desapareceu
em um instante, exalando uma fragrância suavíssima e não
conhecida, e tanta que preencheu o espaçoso ambiente da
igreja.

30
PADRE BELCHIOR
DE PONTES
(1644–1719)

Fez dois séculos, a 22 de se-


tembro de 1919, que deixou
de existir na terra, para viver
no Céu, um dos nossos maio-
res missionários, o taumatur-
go paulista Padre Belchior de
Pontes.
Em 1751, trinta e dois
anos após sua morte, o padre Manoel da Fonseca, da Com-
panhia de Jesus, publicou um livro, hoje raríssimo, com 266
páginas de texto, sobre a vida, virtudes e milagres de tão
insigne Servo de Deus.
Para desempenhar-se tão meritória tarefa, revolveu o
ilustre biógrafo os arquivos da sua congregação, consul-
tou os párocos das freguesias onde missionara, pratican-
do prodígios o santo religioso; ouviu a narração de muitos
fatos miraculosos, inquirindo testemunhas fidedignas; fez,
enfim, tudo quanto era necessário para nos legar um livro
edificante e de inestimável valor histórico.
Lendo esse preciosíssimo trabalho, que o autor dividiu
em quarenta capítulos, muito aprendemos; pois, a par da
descrição da vida assombrosa do Pe. Belchior de Pontes,
temos conhecimento de vários costumes da época, de ce-
nas desenroladas por ocasião da Guerra dos Emboabas, em
1708, e da segunda revolução em 1720, ambas em Minas
Gerais, as quais foram profetizadas pelo Servo de Deus.

31
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Desse livro extraímos tudo quanto vamos narrar sobre


a vida do taumaturgo paulista.12

***

A capital de S. Paulo, então vila, foi o lugar escolhido


por Deus para berço natal do santo missionário. Na matriz
da mesma vila recebeu o Servo de Deus o Sacramento do
Batismo, a 6 dezembro de 1644. Desde menino demons-
trou o Servo de Deus a sua altíssima fé e imaculado amor
por Nossa Senhora.
Pouco mais de seis anos contava o angélico Bel-
chior, quando se operou o primeiro prodígio alcança-
do do Céu por sua intercessão. Adoecendo gravemente
dona Ignez Domingues, o afetuoso filhinho dirigiu-se
imediatamente a seu pai, pedindo-lhe que levasse sua mãe
a São Paulo a fim de consultar um médico, fazendo-se a
viagem pela aldeia de Pinheiros, onde visitariam a ima-
gem de Nossa Senhora do Montserrat, ali venerada. Pedro
Nunes atendeu à súplica do filho e, chegados a Pinheiros,
todos se dirigiam à capela da Virgem.
Tão fervorosa fôra a prece de Belchior que, ao che-
garem à vila, já sua mãe recuperara a saúde! Não deixou
entretanto, de procurar um médico, e este constatou, com
12. Foi, há meses, posto à venda nas principais livrarias de S. Paulo um livro infame.
Trata-se do romance de Júlio Ribeiro: Padre Belchior de Pontes, em segunda edição.
O público, que em geral desconhece a biografia do taumaturgo paulista, pensará que
nesse “romance histórico”, como maldosamente o classificou o autor, se encontrem
dados verdadeiros sobre o Servo de Deus, e adquirirá o livro.
Triste ilusão de quem assim procede!
O autor, então protestante e anticlerical, envolveu a figura veneranda de Belchior de
Pontes numa trama amorosa, pondo irreverentemente na boca desse santo apóstolo
palavras heréticas e blasfemas!
Além disso, o livro está repleto de calúnias e falsidades contra os heroicos e gloriosos
filhos de Santo Inácio de Loyola, aos quais o Brasil tanto deve. Esse livro como
romance é medíocre e como obra histórica é simplesmente ridículo. A sua leitura, para
uma alma verdadeiramente católica, em vez de deleitar, enfastia e produz indignação.
Sirvam estas linhas de protesto e de aviso aos católicos incautos. (N.A.)

32
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

admiração geral, que dona Ignez não apresentava indícios


de ter sofrido qualquer enfermidade. Jubilosos, voltaram
todos para o seu sítio de Pirajuçara, louvando a Deus por
tão assinalado favor.
Dispondo Pedro Nunes de poucos haveres, não se des-
cuidava, entretanto, de proporcionar aos filhos esmerada
educação. Para tal fim, montou casa na vila, para onde
mandou Belchior, em companhia de seus irmãos mais ve-
lhos. Começou então o Servo de Deus a frequentar o colé-
gio da Companhia de Jesus.
Certa ocasião caminhava Belchior para o colégio, em
companhia de outros meninos, quando, ao passar junto
à casa de uma veneranda matrona, que todos conside-
ravam santa, saiu esta ao seu encontro, e, ajoelhando-se,
beijou-lhe os pés.
Tendo enviuvado dona Ignez, e vendo que Belchior já
sabia ler, escrever e contar, confiou-lhe a administração do
sítio. Havia anos que o Servo de Deus estava entregue a
esse trabalho, sempre se exercitando na prática das virtudes
e mortificações, quando sua mãe resolveu mandá-lo no-
vamente para a vila, a fim de continuar os estudos com os
jesuítas.
O santo jovem passava o tempo de férias no sítio de sua
tia, dona Catharina de Pontes, em Santo Amaro. E como
sabia ele aproveitar esses dias entesourando merecimentos
para o Céu! Ao amanhecer, subia o exemplar estudante a
uma frondosa árvore, e, aí instalado, abria um livro sobre a
Paixão de Jesus Cristo, passando longas horas inteiramente
entregues à meditação, esquecido das coisas do mundo. Do
seu amado retiro somente se afastava o piedoso Belchior
para tomar algum alimento, ou quando a noite assomava.

***

33
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

O Servo de Deus prosseguia proveitosamente nos es-


tudos, firme na resolução de abraçar o estado sacerdotal,
para o qual sentia-se impelido desde criança. Conhecedor
dos apostólicos trabalhos de Anchieta e João de Almeida
na catequese dos índios, desejava imitá-los, ingressando na
Companhia de Jesus.
Contando vinte e três anos de idade, ouviu um dia dis-
correrem amplamente sobre a vida prodigiosa de São Fran-
cisco Xavier, e as chamas do amor celeste que lhe abrasavam
o coração, definitivamente o impeliram para a missão nas
aldeias dos índios.
Manifestando ao provincial dos jesuítas o seu desejo
de entrar para a Companhia, não foi bem acolhido. Não
desanimou, porém, o Servo de Deus, pondo sua causa sob a
proteção de Maria Santíssima. Três anos depois, achando-
-se em São Paulo o novo provincial, Pe. Francisco de Avel-
lar, a ele se dirigiu Belchior. Confidenciou-lhe seu ideal,
pedindo-lhe humildemente que o aceitasse na Companhia.
Achando-o um tanto moço, o Pe. Avellar relutou em satis-
fazer-lhe a vontade; mas, tais foram as informações colhi-
das sobre as raras virtudes do pretendente, que se decidiu a
admiti-lo no glorioso exército de Santo Inácio de Loyola.
Partiu, pois, o Servo de Deus, para a Bahia, juntamente
com o provincial, e, aí, chegando, entrou para o noviciado
dos jesuítas a 23 de janeiro de 1670. Terminado o tempo
de noviço, proveitosíssimo para a sua alma e para a dos seus
colegas, que imensamente se edificaram com o seu santo
exemplo, recebeu Belchior o presbiterato.
Virtuoso e sabendo a fundo a língua brasílica,13 nin-
guém melhor que o Pe. Pontes poderia dedicar-se ao serviço
da catequese. Assim julgando, o provincial mandou-o para
São Paulo, onde havia numerosas aldeias de índios mansos,
que jaziam na mais completa ignorância religiosa.
13. Isto é, o tupi.

34
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

Quão elevados não seriam os agradecimentos do Pe.


Belchior a Nossa Senhora, que atendendo aos seus rogos,
o encaminhava agora para o apostolado que tanto o atraía!
Itapecerica, Itaquaquecetuba, M’Boi 14, São José (dos
Campos), Nazaré, São Miguel, Araçariguama e tantas ou-
tras aldeias, foram palco das suas maravilhas. Durante 40
anos, o santo missionário exerceu o seu ministério, não só
no território paulista, mas também nos sertões de Minas
Gerais e Paraná. Por toda a parte onde passava este Servo
de Deus, aí deixava os traços imorredouros do seu fecundo
apostolado, a par dos inúmeros prodígios que Deus operou
em atenção às suas súplicas. Sempre que se realizavam fa-
tos miraculosos, ocultava-se o santo homem, para furtar-se
às ruidosas e justas manifestações populares. Ele não queria
receber na terra nenhum galardão, dando a Deus toda a
glória de tão notáveis acontecimentos.
O povo o venerava de tal maneira, que muitas pessoas,
desejosas de possuir uma relíquia sua, lhe pediam que es-
crevesse num pedaço de papel a oração de determinado
santo, a pretexto de devoção. Em vida do Servo de Deus e
após sua morte, muitos enfermos foram curados somente
com o contato de uma dessas relíquias. Mas o efeito mais
extraordinário que produziam era naqueles que se achavam
em perigo de vida, em consequência de mordeduras de co-
bras venenosas.

***

Sua humildade era profunda, a tal ponto que, um re-


ligioso bem exercitado em virtude, que nos últimos anos
de sua vida o conheceu, à boca cheia o chamava humilíssi-
mo, afirmando que não tinha visto homem mais humilde.

14. A igreja de M’Boi foi construída pelo padre Belchior. O convento anexo foi
erigido, após sua morte, pelos seus irmãos de hábito.

35
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Quando o chamavam de virtuoso, ou de santo, o Servo de


Deus, logo apelando para as suas culpas, confessava que era
o maior pecador de todos. Esta mesma confissão, fazia, ain-
da quando o Céu, querendo mostrar o quanto se agradava
dos seus trabalhos, lhe cobria o rosto de resplendores. Se
alguém lhe falava, respondia com voz tão submissa como
se tivesse vergonha de ser ouvido.
Escrevendo-lhe certo amigo, com o pedido de orações
para ser feliz num negócio difícil, respondeu-lhe o Servo
de Deus:
— Nos rascunhos que me fez, me pedia encarecidamen-
te minha dívida, e obrigação, que tenho de encomendar a
Deus meus amigos: assim vou fazendo, principalmente no
momento da Missa, mas como grande pecador não serei
ouvido de Sua Majestade; porém consolo-me que há quem
tem merecimento nesta Sagrada Religião para ser ouvido
de Deus em favor de v. m., que são os religiosos dela.
E a caridade do Pe. Belchior? Não podia deixar de ser
perfeito este religioso, que se esmerava em praticar a cari-
dade, segundo o espírito do Evangelho, com todos quantos
necessitavam de um conforto espiritual e material.
Quando, por exemplo, nas aldeias encontrava algum ín-
dio doente, não só lhe prodigalizava os socorros da religião,
como também lhe servia de médico e enfermeiro. E ainda
fazia mais: sendo tão rigoroso para com o seu próprio cor-
po, que alimentava apenas com o estritamente necessário
para poder viver, evitando sempre as iguarias, tornava-se o
Servo de Deus o cozinheiro do enfermo, preparando-lhe os
guisados que mais lhe apeteciam.
Tão fervoroso era o seu desejo de salvar almas, que
Deus lhe permitiu ir muitas vezes milagrosamente a vá-
rios lugares, a fim de confessar a enfermos desamparados,
ou simplesmente àqueles que com ele próprio se queriam
confessar, mas que se achavam impossibilitados de o fazer

36
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

não só pela moléstia como pela distância em que se encon-


travam.
No confessionário, onde passava horas intermináveis,
sempre rodeado de penitentes, a sua ação era singular.
Quando lhe apareciam penitentes inveterados na prática
dos vícios, com eles se demorava longo tempo, chegando
até, iluminado por uma luz celeste, a lembrar-lhes culpas
inteiramente esquecidas; suspirando e chorando com eles,
movendo-os ao arrependimento e reforma da vida; ajudan-
do-os, assim, paternalmente, a saírem do confessionário
sinceramente resolvidos a detestarem o pecado e viverem
daí por diante, como bons e piedosos cristãos.
Um dia chamaram o Servo de Deus à casa de Sal-
vador Nunes, para confessar um enfermo. Prontamen-
te se apresentou ele junto à sua cabeceira, onde esteve
algum tempo, instigando-o a bem se confessar. Vendo, po-
rém, a inutilidade da sua presença, porque o doente se não
movia ao verdadeiro arrependimento, retirou-se do quarto,
silencioso, dirigindo-se a um bosque vizinho. Pouco tempo
depois, voltou com o rosto tão cheio de luzes, que vendo-o
Salvador Nunes lhe disse:
— Que resplendor é este que Vossa Reverência traz?
Mas ele fazendo sinal com a mão do pouco que tinha
gostado da pergunta, respondeu:
— Que resplendor pode ter um pecado?
E sem mais atender a coisa alguma, entrou no apo-
sento em que estava o enfermo; e gastando com ele algum
tempo saiu dando mostras da especial consolação, que re-
cebia pelo ver bem disposto, dando-nos a entender com
estes sinais que a fervorosa oração que lhe encheu o rosto
de luzes, de tal sorte inflamou o coração do seu penitente,
que o fez apto para o Reino do Céu.
Foi encantadora a pureza do padre Belchior. Nunca ele
manchou com a mais leve culpa a alvura incomparável do

37
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

lírio da virgindade. Muito trabalham os espíritos infernais


para que se murchasse essa delicadíssima flor, que o santo
sacerdote conservava com excepcional carinho. Deus, porém,
fez com que ele saísse sempre vitorioso desses combates.
Quando ainda jovem, tal era o respeito que lhe consagra-
vam seus colegas de estudo que, à sua aproximação, quando
conversavam sobre coisas torpes, mudavam logo de assunto.
A um seu confidente disse ele, um dia, que até fazer a sua
primeira confissão não tivera nenhuma tentação contra a
castidade, mas que, depois, foram tão terríveis os ataques, e
tão obstinados, que em vinte anos contínuos não perdera o
Inferno a esperança de fazê-lo cair, ainda que pela miseri-
córdia de Deus nunca o consentisse: mas que passados estes
anos rarissimamente sentiu semelhante tentação.
Podemos pois comparar a pureza do padre Belchior à
de São Luiz de Gonzaga , ou a de Santo Estanislau Kostka,
sob cuja proteção ele se colocou desde a juventude.
É a obediência, em especial para um religioso, uma vir-
tude preciosíssima. E era tal o amor com que o Servo de
Deus a praticava, que, dentre os casos que nos são narrados
pelo seu biógrafo, nos basta o seguinte: Achando-se em
São Paulo o bispo do Rio de Janeiro, Dom José de Barros
Alarcão, mandou chamar à sua presença o reitor do Colé-
gio dos Jesuítas. Tinha este ido a uma fazenda e só regres-
sou à noite. Ao chegar à portaria do colégio, encontrou-se
com o Pe. Belchior e outro sacerdote, que saíam em visita
ao prelado. Disse, então, o reitor ao Servo de Deus que,
se Dom Alarcão indagasse de sua pessoa, respondesse que
ainda se achava ausente.
Como se sairia da incumbência o nosso Pe. Belchior?
Se obedecesse à recomendação do seu superior, mentiria;
se falasse a verdade, pecaria contra a obediência! Mas os
santos nunca são desamparados por Deus, que sempre lhes
proporciona inspirações.

38
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

No caminho, pois, tomou o santo missionário uma reso-


lução, que executou com sucesso. Ao chegar com seu com-
panheiro à presença do bispo, este imediatamente lhe pediu
notícia do superior. O Pe. Belchior, pouco se importando de
passar por um desequilibrado, baixou os olhos e levantou o
ombro direito, sem proferir palavra. Dom Alarcão supondo-
-o surdo, elevou a voz, renovando a pergunta. Mas o santo
religioso, baixando ainda mais os olhos, levantou o ombro
esquerdo, conservando-se calado. Seu companheiro, inco-
modado com o caso, tomou a palavra, explicando ao prelado
qual o motivo do não comparecimento do seu superior.
No dia seguinte, ao apresentar-se o reitor ao bispo, este
assim o interpelou:
— Que louco me mandou cá Vossa Reverência? Per-
gunto-lhe por Vossa Reverência, levanta-me um ombro;
torno a perguntar e levanta-me outro.
O superior explicou ao prelado, sinceramente, qual a ordem
que dera ao Servo de Deus, que preferiu passar por louco a de-
sobedecer ou mentir. Mudou o bispo de opinião sobre o Pe.
Belchior, que se tornou daí por diante venerado por ele, e tanto,
que o incumbiu, muitas vezes, de examinar os que pretendiam
ascender ao presbiterato, como aqueles que, já ordenados, ne-
cessitavam de ser provisionados para ouvirem confissões.
Vejamos agora a que ponto chegou o seu espírito da
pobreza e desprendimento do mundo. Vestia uma roupeta
remendada, cuja cor primitiva desaparecera, para se tornar
vermelha do barro dos caminhos. O chapéu e os sapatos
que usava acompanhavam perfeitamente a miséria das
suas vestes. O modesto breviário e um comprido bordão
eram seus inseparáveis companheiros de viagem. Após sua
morte, encontraram unicamente, além dos objetos próprios
para sua mortificação, tais como cilícios e disciplinas, estes
outros que lhe pertenciam, cujo valor material era quase
nulo: um pequenino livro de orações e dois manuscritos

39
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

contendo algumas de suas orações, devoções, casos de mo-


ral, avisos espirituais e receitas médicas com que costumava
tratar os seus queridos índios.
O que tinha de mais precioso era uma Imagem de Cris-
to Crucificado, emprego total do seu coração: mas ainda
esta não excedia os limites da santa pobreza.
Era intensíssima a devoção do Servo de Deus pela Pai-
xão de Jesus Cristo, por Maria Santíssima e a Divina Euca-
ristia, e quando ainda aluno do colégio da Companhia, em
São Paulo, comungava semanalmente, embora seus colegas
assim procedessem uma vez por mês.15 Sua alma pura tinha
fome do Divino Alimento, sentindo com ardor inenarrável
aquilo que inspirado vate concretizou nestes lindos versos:

Quando a minha alma este Alimento come,


Que no infinito a fome lhe sacia,
E das paixões e febre lhe consome,
Sinto que Ela, o anjo da alegria,
Sinto que é Ela quem me mata a fome
Carne de Cristo é carne de Maria.16

A todos quantos lhe pediam conselhos para acertar


num negócio difícil, ou orações para que seus parentes se
emendassem de certos vícios, o Pe. Belchior indicava logo
a recitação do Rosário de Maria Santíssima, como um
remédio soberano. E muitas esposas infelizes confessa-
vam sinceramente que, devido aos conselhos do Servo de
Deus, rezaram o terço da Virgem e viram em breve tempo
seus maridos regenerados.

15. À exceção da Igreja primitiva, apostólica, a comunhão dominical, ou até diária,


é prática muito recente na história da Igreja. Guardemos sempre a exortação do
Apóstolo em I Cor 11,27–29. (N. E.)
16. Padre Júlio Maria.

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

Na celebração do Santo Sacrifício da Missa demorava-


-se o Pe. Pontes longo tempo, o que deu motivo para um
seu companheiro o interpelar. Longe estava, entretanto, o
interlocutor de pensar de que maneira Deus prendia ao al-
tar o seu querido Servo. Com a simplicidade de uma alma
verdadeiramente predestinada, declarou-lhe o santo varão,
“não se atrever a comungar e a receber a Cristo enquanto
se lhe manifestava vivo na Hóstia, e que esperava que o
mesmo Senhor se tornasse a encobrir debaixo dos cândidos
acidentes, para que então O pudesse receber”.
Tanto eram os rigores com que o santo sacerdote, desde
menino, maltratava o corpo, que sua magreza era extrema.
Jejuava três dias por semana, e, mesmo quando aluno dos
jesuítas, chegou a passar até oito dias sem se alimentar, reti-
rado no silêncio do seu quarto, todo entregue aos odores da
meditação. Sua alimentação principal consistia em legumes
mal temperados, ou sem tempero algum. Não comia car-
ne, mesmo quando se achava doente. Dormia muito pouco,
sem usar colchão, deitado sobre o trançado do catre, ou
sobre tábuas. Quando estudante, diversas vezes o avistaram
tirando de um formigueiro, que existia no quintal de sua
casa, punhados de terra nos quais se envolviam as pequeni-
nas formigas, para espalhá-los sobre a cama. Disciplinava-
-se, pode-se dizer, diariamente, e usava os mais mortifican-
tes cilícios, a ponto de lhe dificultarem os passos.
Mal se soube de que cor foram os seus olhos; porque
era tão natural nele a modéstia, que querendo formar-se
um quadro, alguns anos depois de morto, e duvidando-se
com que ação se deveria pintar, foi de parecer um religioso,
que o tinha conhecido, que o ilustrassem com olhos baixos,
pois ele raras vezes os levantava.
Com o mesmo rigor se portava, tanto no confessionário
como no altar, e quando andava pelas ruas, pregava como
S. Francisco com a sua modéstia.

41
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

***

Dentre os dons incomuns com que Deus enriqueceu


abundantemente a alma do Pe. Belchior, destacam-se exu-
berantemente: o do perfeito conhecimento dos corações
humanos, o das profecias e o dos milagres de ordem fí-
sica. Numerosíssimos são os casos de que nos dá notícia
o seu biógrafo, e muito prazer teríamos em transcrevê-los
um por um; entretanto não o podemos fazer, para que se
não alongue demais este capítulo. Contentem-se os leito-
res com os que vamos citar, que lhe bastam ao renome do
glorioso taumaturgo paulista.
Convidado pelo capitão-mor Amador Bueno, foi o Pe.
Belchior de Pontes pregar em uma fazenda. Na expectati-
va de chegada do santo missionário, a esposa de Amador
Bueno disse a várias pessoas que se havia de confessar duas
vezes com o Pe. Belchior: uma, assim que ele chegasse, e ou-
tra, quando estivesse prestes a regressar. Pois bem, chegou o
Servo de Deus à fazenda; aí se demorou durante alguns dias
e dona Marta, ou ocupada com os cuidados da casa, ou es-
quecida dos seus primeiros fervores, foi adiando a confissão.
Por ocasião de um dos seus últimos sermões, a que a
mesma senhora assistia, do interior da casa, disse o santo
missionário estas palavras:
— Antes de eu vir, andava uma pessoa dizendo que havia
de confessar duas vezes, uma assim que eu chegasse e outra
estando para partir, e por fim nem uma vez tem confessado.
Causaram tal impressão estas palavras no espírito de
dona Marta, que imediatamente foi confessar-se.
Na mesma fazenda de Amador Bueno, deu-se este outro
caso: três senhoras que com o santo missionário se tinham
confessado, em palestra íntima murmuraram dele, por não as
ter repreendido de certas faltas que tinham acusado. Pouco
depois, no decorrer de um sermão, disse o Servo de Deus:

42
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

— Falam de mim que não sou bom confessor porque


não repreendo; não consiste nisso o ser bom confessor.
Quão proveitosa não teria sido a lição para as três mur-
muradoras!
Tão notória era a fama que gozava o taumaturgo paulis-
ta, de conhecer intimamente os corações humanos, que José
da Silva Goes, homem da primeira nobreza de São Paulo,
à boca cheia confessava que se não atrevia a falar com o Pe.
Belchior de Pontes, porque estava certo que ele conhecia os
interiores, e que sem dúvida estava vendo os seus defeitos
e pecados. E Manoel Pinto Guedes afirmou que era tal o
conhecimento que tinha dos corações, que andando o padre
em Missão, só com olhar conhecia os penitentes que com ele
se queriam confessar, mandando àqueles, a quem faltavam
as disposições necessárias, que se fossem preparar primeiro,
e que tal dia viessem, sendo tão pontuais semelhantes peni-
tentes, que não faltavam no dia designado.
Em casa de sua prima, dona Justina Luiz, aonde fora
chamado para confessar alguns doentes, ao ver passar um
índio, assim falou a essa senhora:
— Sabe, irmã, que este patrício é pagão.
Respondeu ela que não era possível; porque seu pai,
tendo-o trazido pequenino do sertão, depois de instruído
na Fé, o mandou batizar em São Paulo.
Então o Servo de Deus chamou o índio, pedindo que
lhe dissesse se era ou não batizado. Respondeu-lhe o patrí-
cio que o ignorava. Continuou o padre a insistir:
— Pois não vos lembra quando vos batizaram?
Respondeu-lhe o índio que para dizer a verdade, se
lembrava, pois quando fora batizado já era bem crescido e
desse ato jamais esquecera.
— Pois que disseste – continuou o padre – quando vos
botaram água na cabeça, meteram sal na boca e fizeram as
demais cerimônias daquele Sacramento?

43
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Em vista de tal insistência do santo sacerdote, o índio


confessou francamente que lhe não parecera batismo as ce-
rimônias a que o submeteram; pois quando lhe lançaram
água na cabeça, considerara que talvez estaria menos assea-
do, e que por isso lavavam; e que quando lhe meteram o sal
na boca se persuadira que faziam zombaria dele, e que por
isso o lançara fora e cuspira.
Ardendo em zelo por salvar essa alma, perguntou-lhe o
Pe. Pontes se queria que o batizasse, e o índio respondeu-
-lhe que sim, pois há muito tempo desejava pedir-lhe esse
Sacramento. O Servo de Deus batizou-o, tornando-se o
patrício um bom cristão.
Das numerosas profecias do Pe. Belchior, destacamos
alguns casos. Quando se deram as revoluções de Minas
Gerais, profetizadas pelo Pe. Belchior, todo os parentes e
amigos do Servo de Deus, ouvindo-lhes os conselhos, dali
se retiraram e nada sofreram. Os que não ligaram impor-
tância às suas palavras, passaram dias torturados, morrendo
um deles.
Ao batizar, na igreja de Itapecerica, o primogênito de
seu sobrinho, disse o Pe. Belchior a uma parente sua que
assistia ao ato:
— Vê este, a quem agora batizamos um filho; pois bre-
vemente lhe havemos de ouvir Missa.
Anos depois realizou-se plenamente a predição. Tendo
enviuvado esse seu parente, fez-se padre, e foi durante mui-
tos anos vigário de Cotia.
Percorrendo o sertão do Paraná, aí se encontrou o
Servo de Deus com o capitão Salvador Jorge, que havia
anos abandonara Parnaíba, onde deixou a família, com o
intuito de descobrir ouro para pagar suas dívidas.
Perguntou-lhe o santo missionário quando preten-
dia ele regressar; disse-lhe Salvador Jorge que não o faria
sem que primeiro obtivesse os meios para resolver os seus

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

antigos compromissos. Lembrou-lhe então o Pe. Belchior


as grandezas da bondade de Deus que, como Pai miseri-
cordioso, acudiria certamente às suas necessidade; e pro-
fetizou-lhe a volta ao lar, no outono que já se aproximava.
Dias depois, chegou ao capitão Jorge a notícia de um
lugar pouco distante, onde era abundante o cobiçado metal.
Para aí se dirigiu o capitão e encontrou tal quantidade de
ouro, que pôde regressar à Parnaíba no tempo predito pelo
taumaturgo paulista, e, depois de pagar as suas dívidas, e
ainda lhe sobraram algumas peças do mesmo metal, com
que pôde adornar a casa.
Pregando o Servo de Deus em Nazaré, invectivou os ví-
cios de muitos moradores dessa aldeia e os ameaçou de que,
se não se emendassem, seriam atacados por terríveis onças. E
foi tal a quantidade desses animais que, deixando as brenhas,
buscaram a povoação, que bem mostraram ser executores da
Justiça Divina. Assim que anoitecia, entravam como salteado-
res, infestando as casas dos moradores: mas como os castigos
de Deus nem sempre se dirigiam às pessoas, contentando-se
a Justiça Divina com castigar nas fazendas, permitiu que não
matassem pessoa alguma, empregando a dureza de suas unhas
somente nos cães, os quais, como vigilantes carcereiros, guar-
davam a seus donos presos em suas casas, para que purgassem
com a violência do medo os pecados passados, e se movessem
com maior eficácia à emenda dos futuros.
A muitas senhoras que, para buscar conforto às tribula-
ções produzidas pela ausência dos maridos, procuravam o
Servo de Deus, disse ele a época e mesmo o dia certo em
que eles regressariam ao lar.
Certa vez, estava o Pe. Belchior na igreja do colégio,
ouvindo confissões, quando dele se abeirou sua irmã Maria
Domingues, pedindo-lhe encarecidamente que lhe disses-
se se era vivo ou morto seu marido, pois vivia aflita e sem
esperança de notícias.

45
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Ouviu o padre a pergunta, e representando-lhe a sua hu-


mildade que daquele modo o tratava como santo, levantou
de improviso a voz, dizendo que não era santo para saber se
era vivo ou morto seu marido.
Não desanimou sua irmã com essa resposta e continuou
a suplicar-lhe que a livrasse da dúvida em que vivia. Tanto
insistiu dona Maria Domingues, que o Servo de Deus ficou
comovido e obteve do Céu uma feliz inspiração, dizendo
a sua irmã que o esposo estava vivo e chegaria daí a pou-
cos dias. Assim aconteceu: no tempo predito, chegou a São
Paulo seu cunhado Belchior de Borba Paes.
Estava o santo missionário numa capela da aldeia de
Araçariguama, ocupado em ouvir confissões. Em dado mo-
mento, chegou à porta da capela e, chamando a mulher
de Francisco de Sequeiro, dona Joana Leme, disse-lhe que
fosse preparar o jantar para seu esposo, que nesse dia re-
gressaria do sertão.
Embora algumas pessoas duvidassem da predição, pois
correra a notícia de que Francisco de Sequeiro tinha fale-
cido, atendeu a boa senhora à ordem que lhe dera Pe. Bel-
chior de Pontes e, ao entardecer, pôde ela abraçar o esposo.
Certo dia, à hora do recreio, discutiam os religiosos
do Colégio de São Paulo sobre as obscuras notícias que
ocorriam a respeito da vinda de alguns padres, que da Eu-
ropa partiam com destino ao mesmo colégio. Estava pre-
sente o Pe. Belchior, que só falava quando necessário, e,
achando que devia romper o seu silêncio, na ocasião, assim
lhes falou:
— Para que se cansam vossas reverências? Amanhã, pe-
las seis horas, hão de chegar notícias da fragata.
Acalmaram-se os ânimos e todos confiaram no vaticí-
nio do Servo de Deus. No dia seguinte, à hora determinada
por ele, chegava ao colégio uma carta em que se pedia con-
dução para os religiosos, que já estavam em Santos.

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

Tendo adoecido o vigário de Santo Amaro, Pe. João de


Pontes, irmão do Pe. Belchior, pediu por carta ao bispo do
Rio de Janeiro que lhe desse um substituto. Antes de che-
gar a resposta do prelado, disse o santo missionário a seu
irmão que viria substituí-lo o Pe. Cosme Gonçalves e que
este morreria no exercício do novo cargo. Dias após, com a
chegada do correio, verificou o Pe. João de Pontes a realiza-
ção da profecia do Servo de Deus, a qual se completou ple-
namente, daí a anos, com a morte do Pe. Cosme na vigararia
de Santo Amaro.
Dona Ignez Domingues, mãe do taumaturgo paulista,
passou os últimos anos de existência no sítio de Antônio
Domingues de Pontes,17 perto de Itapecerica.
Quando se lhe agravaram os achaques, motivados por
sua idade avançada, os parentes escreviam logo ao Pe. Bel-
chior, chamando-o para junto da veneranda matrona. Res-
pondia-lhes sempre o Servo de Deus que se não assustas-
sem com o caso, pois sua mãe viveria ainda algum tempo.
Um dia, porém, achando-se o Pe. Belchior na aldeia de
Itapecerica, e sem que recebessem nenhum aviso humano,
partiu em busca do sítio de Antônio Domingues. Em ca-
minho, passando junto à casa de dona Justina Luiz, convi-
dou-a para assistir, no dia seguinte, à Missa que ia celebrar
a fim de dar o Viático a sua mãe, porque era chegado o
tempo dela partir para a eternidade. Surpreendida com essa
notícia, disse-lhe sua parenta que na véspera desse dia vi-
sitara a dona Ignez e nunca a tinha visto tão bem disposta,
parecendo-lhe que ainda viveria longo tempo.
Despediu-se o santo religioso, afirmando que sua mãe
morreria no dia seguinte.

17. Supomos que esse Antônio Domingues de Pontes era irmão do Pe. Belchior, pois
o padre Fonseca, na enumeração que fez dos 15 filhos de Pedro Nunes de Pontes e
dona Ignez Domingues Ribeiro, nos diz que o oitavo deles assim se chamava. (N.A.)

47
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Chegando o Servo de Deus à casa de Antônio Domin-


gues, foi logo dizendo a dona Ignez o fim para que tinha
vindo e começou a encorajá-la para o momento supremo.
Respondeu-lhe sua mãe que havia muitos anos que espera-
va tão tremenda hora, e que conhecia muito bem que ha-
via de morrer. Consolou-se sobremaneira o Servo de Deus
com as boas disposições da virtuosa senhora. Dessa hora
em diante, quão piedosos não seriam os colóquios dessas
duas almas, que tanto se amavam e compreendiam!
O Pe. Belchior, que sempre lhe dispensara cuidados
e carinhos, fôra incumbido por Deus de lhe administrar
os últimos Sacramentos, cerrar-lhe os olhos e abrir-lhe as
portas da Glória. Era o mesmo Jesus, que sua boa mãe lhe
ensinara a amar, que ele lhe entregava agora, na santa Hós-
tia, para ser o seu guia na misteriosa jornada!
Ao anoitecer, ouvindo pela última vez da boca de seu
filho o dulcíssimo nome de Jesus, expirou a veneranda se-
nhora.
Pouco tempo depois, retirou-se o Servo de Deus para a
aldeia próxima, pedindo aos seus parentes que trocassem as
lágrimas por santos júbilos, pois dona Ignez tivera a mais
ditosa das mortes.

***

Em ocasiões diversas permitiu Deus ao Pe. Belchior de


Pontes transportar-se rapidamente a longínquas paragens,
a fim de socorrer a enfermos desamparados, ou que à hora
da morte desejavam receber os Sacramentos. Vejam os lei-
tores este notável caso a seguir.
Devido a uma desinteligência com o bispo Dom Alar-
cão, o Pe. José Pompeu tomou a resolução inabalável de re-
tirar-se de São Paulo. Embarcando-se em uma canoa com
alguns índios, dirigiu-se para o sertão.

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

Depois de uma longa viagem, foram surgir da outra ban-


da do Rio Grande em uma ilha, que faz o rio Anhanguepu,
ou Anhendu. Os índios, mal satisfeitos com as impertinên-
cias do amo, e pouco tementes a Deus, assim que o viram
dormindo em terra, o deixaram, levando-lhe a canoa com
tudo.
Desamparado dos homens, no meio de um deserto,
desprovido de todo o recurso, e vendo que ia chegar ao fim
da vida, voltou-se o Pe. Pompeu para o Céu, implorando
misericórdia Nessa ocasião, caminhava o Servo de Deus
para o colégio de São Paulo, acompanhado por alguns ín-
dios. Em dado momento, disse-lhe que o esperassem um
pouco, e, afastando-se deles, entrou num capão de mato.
Depois de longa espera, temendo os índios que o Pe.
Pontes tivesse sofrido algum acidente, resolveram procurá-
-lo, percorrendo o mato e chamando-o em alta voz. Desa-
nimados, partiram os índios para o colégio e, às perguntas
do superior, contaram o misterioso desaparecimento do
Pe. Belchior nas circunstâncias referidas.
Decorridas algumas horas, eis que chega ao colégio o Ser-
vo de Deus, arrimado ao seu bordão, e, por obediência, teve
de confessar ao superior que tinha ido ao sertão de Cuiabá
confessar o padre Pompeu, que estava à beira da morte.
Alguns anos depois, passando pelo lugar em que mor-
reu o clérigo, alguns homens viram junto a uma árvore
um breviário sobre um altar feito de varas, e junto ao altar
uma sepultura pouco funda, mas bem povoada de ossos,
que pela disposição entenderam serem relíquias de corpo
humano. Visto isto, tiveram curiosidade de revistar o terre-
no, e acharam escritas em uma casca de pão estas palavras:
“Aqui jaz enterrado o Padre José Pompeu confessado pelo
Padre Pontes”.
Em certa época do ano, grassava em Mato Grosso uma
moléstia epidêmica. Eram febres malignas, e mensageiras

49
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

certas da morte, ainda que compassivas no modo suave


com que matavam; porque causando um pesado letargo
obrigavam os enfermos a passar em poucos dias do sono
temporal para o eterno.
Eis que subitamente ali aparece o santo padre Belchior
que, acercando-se de um deles, dá-lhe a beber certo líqui-
do que trouxera em uma vasilha, recomendando-lhe que
fizesse o mesmo com seus companheiros, que todos recu-
perariam a saúde. Parecia ao homem estar sonhando; mas,
sentindo-se curado, procurou saber quem era o seu salva-
dor, e, voltando os olhos para o caminho, viu distintamente
o vulto do Servo de Deus seguindo apressadamente, sem
dar ouvidos ao seu chamado, até desaparecer numa curva
do caminho.
Achando-se prestes a morrer, dona Ângela de Siqueira,
esposa do capitão-mor Pedro Taques, encheu-se sua casa de
parentes e amigos, aguardando a hora final. O reitor do colé-
gio de São Paulo foi visitá-la, em companhia do Pe. Belchior.
Finda a visita, iam retirar-se, quando o Servo de Deus pe-
diu ao capitão-mor que lhe desse licença para ver a enferma.
Conduzido ao aposento de dona Ângela, dirigiu-lhe as mais
consoladoras palavras e, depois de abençoá-la, disse-lhe que
daí a poucos dias ela poderia ir à igreja do colégio.
Foram tais as melhoras que a enferma começou a sentir
desde esse momento que, no dia determinado pelo tauma-
turgo paulista, foi dona Angela à igreja render ação de gra-
ças pelo seu completo restabelecimento.
João Vaz Cardoso, capitão-mor da vila de Taubaté, afir-
mou com juramento ter presenciado ao seguinte prodígio:
trabalhavam vários operários na construção da torre da
igreja do colégio, na mesma vila. Já estavam terminando a
obra, quando começou a torre a inclinar-se, desprendendo
algumas pedras. Assustaram-se os trabalhadores e também
o Pe. Manoel da Costa, reitor do colégio, que, percebendo o

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

perigo do desmoronamento, muito aflito chamou em altas


vozes o Servo de Deus.
Acudiram ao local, imediatamente, diversos religio-
sos, com o Pe. Belchior, à frente, o qual lhes bradou que se
aquietassem, pois cessaria logo o perigo; e encostando-se a
parede, ela conservou-se inclinada e deu lugar a que sem
perigo a desmanchassem.
Convidado por dona Izabel Paes de Barros, foi o Servo
de Deus ao seu sítio, onde benzeu a casa recém-construída,
e uma cruz de madeira, que plantaram no terreiro. Cor-
reram os anos. A velha cruz, à medida que se ia estragan-
do, inclinava-se, até que, certa ocasião, desencadeando-se
forte tempestade sobre o sítio, foi ela atingida pela fúria
da ventania e derrubada sobre uma laranjeira, que havia
anos secara. Operou-se, então, um prodígio: ao contato do
santo madeiro, começou a laranjeira a cobrir-se de verde
folhagem, florescendo daí em diante no tempo próprio e
produzindo ótimos frutos.
Achando-se o Servo de Deus na aldeia de S. José, cha-
maram-no para administrar os Sacramentos a um mori-
bundo. Tomou o Pe. Belchior uma canoa, fazendo-se con-
duzir pelos índios até o outro lado do rio Paraíba, onde
desembarcou, seguindo a pé em busca do enfermo. Desem-
penhando a sua missão, voltou o santo varão ao mesmo
lugar onde desembarcara, mas aí não achou a canoa, pois
os romeiros, supondo que seria grande a demora na casa
do enfermo, resolveram retirar-se para voltar mais tarde.
Quando voltaram, estava já o Pe. Belchior do outro lado do
rio, para onde se transportara milagrosamente.
O capitão Pedro Vaz de Barros era um fazendeiro abas-
tado, que morava à distância de uma légua de Carapicuíba.
Era a sua casa de numerosa família, tendo debaixo de sua
jurisdição mais de quinhentas almas, para cuja doutrina e
da vizinhança convidava muitas vezes ao seu bom amigo,

51
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

a fim de que em uma capela, que tinha no seu sítio, lhe


fizesse missão por alguns dias.
Como esta ocupação era muito conforme ao zelo e de-
sejo, que tinha de salvar a todos, aceitava o convite, gastan-
do neste emprego, em diversos tempos semanas inteiras.
Certa vez, sabendo o Pe. Belchior que nesse mesmo sítio
grassava, com caráter maligno, a epidemia de sarampo, para aí
se dirigiu, encontrando ainda atacados dessa moléstia, que já
havia ceifado algumas vidas, oito pessoas. Com a alma cheia
de consideração, mandou o Servo de Deus que todos (enfer-
mos e sãos) se preparassem para receber dignamente os Sacra-
mentos da Penitência e Eucaristia, a fim de que Nosso Senhor
fizesse cessar a epidemia. Obedientes, confessaram-se todos,
recebendo durante a Missa a sagrada Comunhão.
Terminados esses atos, saiu o Servo de Deus ao terreiro
e, pondo os olhos no céu, disse:
— Basta, Senhor; basta de castigo.
Deus atendeu às súplicas do Seu servo, concedendo a
saúde aos oito doentes e fazendo cessar por completo a
epidemia.
Paula, era como se chamava uma mulher bastarda, mo-
radora da vila de São Paulo. Tinha ela um filho que por
certos crimes foi encarcerado. As pessoas ofendidas acha-
ram, porém, que o castigo era pequeno, e deliberaram fa-
zer justiça por suas próprias mãos. Certo dia alvejaram o
criminoso com um tiro e o prostraram quase em vida. Es-
tando à morte, foi visitado pelos religiosos do colégio, que
procuraram ministrar-lhe socorros médicos; mas era tal o
ódio que contra ele tinham concebido os autores daquela
maldade, que o privaram da vida com os mesmos meios
com que a caridade a intentava prolongar, dando-lhe por
mãos do cirurgião um veneno letal.
Antes de falecer, o filho de Paula, por amor a Jesus
Cristo, perdoou aos seus algozes, pedindo a sua mãe que

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PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

também os perdoasse. Mas Paula não atendeu nunca às


súplicas que lhe fizera seu filho, odiando cada vez mais os
seus inimigos. Trazia sempre consigo a camisa ensanguen-
tada do filho, como lembrança do crime e da prometida
vingança. Assim viveu Paula alguns anos, sem que o tempo
fosse capaz de apagar em seu coração as saudades do filho
e o ódio aos seu assassinos.
Eis que um dia é ela atingida por mortal enfermidade.
Pouco antes de morrer, pede que chamem o Pe. Belchior,
com quem em outros tempos costumava confessar-se. Par-
tiu um mensageiro em busca do Servo de Deus, mas não
conseguiu encontrá-lo. Paula assim morreu sem os Sacra-
mentos e sem dar nenhuma demonstração de que havia
perdoado os algozes de seu filho.
Não quiseram os seus parentes sepultar-lhe o cadáver
sem que antes fosse visitado pelo santo missionário. De
novo, pois, o buscaram tendo-o encontrado na igreja do
colégio, em oração. Contaram-lhe o que sucedera, e o Pe.
Belchior logo se dirigiu à casa da defunta. Entrando no
quarto mortuário, o Servo de Deus cerrou a porta, fican-
do sozinho na parte de dentro. Os curiosos, pelo orifício
da fechadura, puderam vê-lo ajoelhado algum tempo, em
fervorosa oração.
Em dado momento, Paula despertou, pronunciando
estas palavra:
— Ai, Jesus!
Depois confessou que uma mulher lhe tinha dito que
acordasse, e que entre as escuridades da morte vira o Pe.
Pontes, que com suma caridade a favorecia. O Pe. Belchior,
vendo-a ressuscitada, disse-lhe estas palavras:
— Estavas condenada a outra vida, por não perdoares
a morte de teu filho, e guardas ainda sua camisa ensan-
guentada?

53
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Ante tão maravilhoso acontecimento é para supormos


que Paula viveu daí em diante como piedosa cristã, seguin-
do os conselhos do santo jesuíta que, intercedendo por ela
junto a Nossa Senhora, conseguiu a sua salvação.

***

Para aumentar ainda mais os seus sofrimentos, suporta-


dos sempre com a máxima resignação, foi o Servo de Deus
acometido de nova enfermidade, que devia levá-lo desta para
a melhor. Removido de Araçariguama, onde se achava havia
perto de dois anos, no exercício do seu apostolado, assim que
chegou ao Colégio de São Paulo declarou aos seus compa-
nheiros saber que a sua existência terrena estava por pouco.
Apesar dos recursos da medicina e dos cuidados de que
o cercaram todos os religiosos, a moléstia de tudo zomba-
va. Dois dias antes de falecer, pediu e recebeu o sagrado
Viático; e, como receassem os religiosos que viesse o Servo
de Deus a falecer nesse mesmo dia, administraram-lhe a
Extrema-Unção.
Depois, pediu o Pe. Belchior ao seu assistente, Pe. Se-
bastião Alvares, que no dia seguinte celebrasse Missa de
moribundo, por sua intenção. O Pe. Alvares dizia-lhe que
ainda tinha esperança no restabelecimento da sua saúde,
mas o Servo de Deus apagou-lhe essa esperança, afirman-
do que na próxima sexta-feira, às 3 horas da tarde, entrega-
ria sua alma ao Criador.
Em seguida instruiu o Pe. Alvares sobre a assistência
que desejava para os seus últimos momentos com as ora-
ções de Santo Ambrósio e a Paixão de Jesus Cristo. Insis-
tindo o superior para que ficasse à sua cabeceira um reli-
gioso, pediu-lhe o Pe. Belchior que o deixassem sozinho,
no que foi satisfeito. Assim se conservou toda a noite, em
ardente colóquio com Deus.

54
PADRE BELCHIOR DE PONTES (1644–1719)

***

Repetindo as orações que o Pe. Sebastião Alvares ia


lendo, às 3 horas da tarde de 22 de setembro de 1719, san-
tamente expirou o Pe. Belchior Pontes, pronunciando os
dulcíssimos nomes de Jesus e Maria.
Não teve mudança alguma o seu cadáver, antes, conser-
vando sempre a mesma disposição que teve em vida, dava
a entender que mais tinha sido aquela separação um leve
sono, do que despojos da morte; e ainda posto no féretro,
para ser sepultado, conservava no rosto aquela alegria de
que fôra dotado e se é que com aqueles sinais não queria
dar mostras de que gozava seu espírito na Glória.
Da Sacristia foi levado pelo corredor da portaria à igre-
ja onde se lhe fez o ofício de corpo presente com a soleni-
dade e concurso que a terra permitia; e deposto o cadáver
na sepultura o cobriram primeiro de flores, do que de terra;
pois era justo que fosse depositado em flores, quem, tendo
vida, soube florescer em virtude e produzir tantos frutos de
santidade.
Não acabou com a vida a reputação de suas virtudes,
pois nas suas relíquias esperavam os seculares conser-
var com a memória a sua proteção, fazendo todo o pos-
sível para alcançarem dos religiosos algumas destas joias:
e ainda que eles, também avarentos destas preciosida-
des, procurassem enriquecer-se primeiro; com tudo se
repartiram algumas para satisfazer a devoção de alguns
pretendentes.

***

Hoje nada mais resta dos despojos mortais do tau-


maturgo paulista. Quase duzentos anos repousaram essas
sagradas relíquias no templo augusto que foi teatro de

55
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

muitos dos seus prodígios; mas o seu jazigo foi profanado!


Que é da igreja do colégio? Já não existe! Quando a pica-
reta derrubou as paredes seculares desse templo venerável
– a joia mais preciosa dentre os monumentos históricos do
Brasil – se as pedras pudessem falar, certamente bradariam,
amaldiçoando os demolidores.
E essa maldição seria contra o governo imprevidente,
que podendo e devendo reconstruir essa igreja, no mesmo
estilo e com o mesmo material, não trepidou em mandar
destruí-la, privando as gerações futuras de contemplar esse
monumento histórico de valor inestimável. Se a igreja do
colégio não primava pela beleza de suas linhas arquitetô-
nicas, nem pelas riqueza das decorações, ou grandeza das
dimensões, era, entretanto, um templo sagrado, fabricado
pelas mãos da nossa gente, um tesouro das nossas mais pu-
ras tradições religiosas e cívicas.

56
PADRE ESTANISLAU
DE CAMPOS18
(1649–1734)

Fulgurante glória da Igreja e do Brasil, foi, certamente, o


egrégio missionário jesuíta Estanislau de Campos. Esti-
madíssimo pelos seus companheiros de congregação, pe-
las autoridades eclesiásticas e civis, e pelo povo em geral,
a fama de suas virtudes ultrapassou as fronteiras da pátria.
O Rei de Portugal, D. João V, era um dos seus maiores ve-
neradores, como teremos ocasião de ver no decorrer deste
capítulo.
Foi o padre Estanislau uma das mais fortes colunas da
Companhia de Jesus no Brasil. Nos altos postos que ascen-
deu, empregou toda a sua energia de administrador exímio
e sem par, aliado aos mais elevados sentimentos de justiça
e caridade. As casas que administrou floresceram espiritual
e materialmente. Foi, enfim, um verdadeiro discípulo de
Santo Inácio de Loyola, procurando em todas as suas ações
a maior glória de Deus.

***

Nasceu Estanislau em São Paulo, no ano de 1649, tendo


por pais Felipe de Campos Banderborg e dona Margarida
Pires, ambos oriundos de nobre estirpe. Teve esse feliz casal
duas filhas e cinco filhos, dos quais Felipe e Estanislau se

18. O livro de que nos valemos para compor o presente capítulo, foi a Vida do Padre
Estanislau de Campos da Sociedade de Jesus, Sacerdote da Província do Brasil, vertido do
original latino para o nosso idioma por J. Alencar Araripe e publicado na “Revista do
Instituto Histórico” do Rio de Janeiro, em 1889. (N.A.)

57
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

consagraram ao ministério sacerdotal, aquele como mem-


bro ilustre da Ordem dos Clérigos.
Muito santa e piedosamente vivera Felipe, perante
Deus, embora nenhum monumento nos tenha restado da
sua integridade e santidade, como bem o demonstra o seu
nobre despojo corpóreo, sendo a cabeça admiravelmente
conservada e espargindo de si grato perfume em todos os
sábados.
Conta-se além disso que Felipe, depois de morto, apa-
recera a Bartolomeu de Quadros, sacerdote verdadeiro e
probo, e lhe lembrara o pacto, que em vida ambos fizeram
acerca da morte, para que aquele que primeiro morresse
viesse certificar ao sobrevivente o dia próximo do óbito.
Na verdade a morte de Bartolomeu aconteceu no dia que
fôra designado pelo defunto amigo, que assim cumpriu o
pacto e o divulgou.
Estanislau, piedosamente educado por seus pais, quan-
do chegou à idade dos estudos foi por eles entregue à dire-
ção dos padres da Companhia.
Puro como um lírio e inteligentíssimo, Estanislau era
o exemplo dos seus companheiros de estudo no colégio de
São Paulo. Nesse tempo, achando-se em luta e ódios en-
carniçados duas das principais famílias da cidade (Pires e
Camargo), Deus livrou o santo jovem de ser morto por um
tiro de espingarda, que não o atingiu, disparado por um
inimigo de seus parentes, afeito ao uso de tal arma.
Com dezoito anos incompletos foi o Servo de Deus ad-
mitido nas fileiras da Companhia de Jesus pelo Pe. Antô-
nio Gonçalves, comissário geral do Brasil. Seguindo depois
para o colégio do Rio de Janeiro, aí entrou para o noviciado,
a 1º de abril de 1667.
Vestindo o hábito da sociedade, satisfez vantajosamen-
te a esperança e expectativa dos padres, pois embora as no-
vas vestes que tomava, o constituísse entre os mais recentes

58
PADRE ESTANISLAU DE CAMPOS (1649–1734)

alunos, todavia, a virtude, que rápido se robustecera, o co-


locara entre os mais provectos.
Durante o noviciado, teve o Servo de Deus como con-
fessor o célebre Pe. Alexandre de Gusmão, homem famoso
tanto por insigne virtude como por extraordinários feitos.
Tempos depois, quando o Pe. Alexandre se referia a Es-
tanislau, demonstrava intenso júbilo em ter sido o guia e
mestre espiritual de tão santo discípulo.
Do Rio de Janeiro, depois de ordenado sacerdote, foi
mandado pelos superiores para auxiliar os seus colegas, que
se achavam dirigindo três povoações de índios, distantes
duzentas milhas do colégio de Pernambuco. Aí, entretanto,
pouco tempo permaneceu, sendo removido para o colégio
de Olinda, como professor de filosofia.

***

A 15 de dezembro de 1693, foi nomeado reitor do colé-


gio do Espírito Santo. Não podemos deixar de transcrever
a narração de um fato aí ocorrido e que bem demonstra a
santidade de Estanislau, proclamada pelo próprio espírito
das trevas.
Aplicava-se exorcismo a certo homem possesso do de-
mônio, quando, em dado momento, este declarou que pou-
co antes entrara na fábrica de açúcar do colégio, e excitan-
do o vento, dispersara uma porção de algodão, que estava
exposta ao sol para secar; porém tentando de novo entrar
no mesmo lugar, vira em pé, e o olhando da janela, o filho
de Inácio, cuja presença lhe impedira ingresso, e o obrigara
a retroceder.
Feitas as diligências, verificou-se que o filho de Santo
Inácio, cuja presença atemorizou o demônio, era o santo
padre Estanislau de Campos.

59
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

A 6 de setembro de 1698, passou o Servo de Deus a


ocupar a reitoria do colégio de Olinda, e, em outubro de
1705, era ele reitor do colégio da Bahia. Depois desse tem-
po, foi Estanislau incumbido de várias e honrosas missões,
em diferentes lugares.
Em 1713, regressando à Bahia, após uma viagem cheia
de acidentes, em que, prestes a morrer, só escapou por in-
signe favor divino, recebeu diploma de Roma, nomeando-o
provincial da Companhia. A 3 de junho desse mesmo ano,
tomou posse do referido cargo.

***

Em 1722, contando o santo missionário 74 anos de


idade, foi transferido para o colégio de S. Paulo. Dois fins
principais tiveram os seus superiores removendo-o para a
terra de seu berço: procurar suavizar-lhe as enfermidades,
com a mudança de clima, e encarregá-lo de obter esmolas
entre seus conterrâneos para que se pudesse promover a
beatificação do santo padre Anchieta.
Nem esta mudança de lugar trouxe acontecimento
algum desagradável. Pois sendo confessor do vice-rei da
Bahia, nesta ausência achara meio de dispensar-se de hon-
ra daquele encargo, como muito desejava, sem ofensa algu-
ma ao mesmo vice-rei.
Aqui convém que se registre que o povo de São Paulo,
saudoso do santo homem, o recebeu com as mais vivas de-
monstrações de alegria, tendo o governador da capitania,
capitão-general Rodrigo Cesar de Menezes, promovido
festejos públicos em sua honra, mandando soltar fogos de
artifício, e etc.
Um dos primeiros atos de virtude do Servo de Deus, ao
chegar ao colégio de São Paulo, foi avisar o irmão sacristão
que, diariamente, a primeira Missa ao romper da aurora

60
PADRE ESTANISLAU DE CAMPOS (1649–1734)

seria sempre por ele celebrada. Apesar de velho e doente,


raro deixava o venerável sacerdote de celebrar a essa hora.

***

Na impossibilidade de relatar, um por um, os atos de


virtude do Servo de Deus, contaremos apenas alguns fatos,
que bem alto proclamaram a santidade de sua alma.
Humilde como os que mais o foram, era o Pe. Esta-
nislau infenso à ostentação doutrinária. Dotado de vasta
erudição, preferia passar por ignorante, calando, quando
outros falavam. Em funções públicas, para as quais o convi-
davam, se de todo não podia escusar-se, nelas tomava parte
coagido. Tinha sumo prazer em viver ignorado e esqueci-
do; e dificilmente consentia em receber visitas de pessoas
estranhas à sua congregação.
O geral da companhia ordenou-lhe, certa ocasião, que
publicamente relatasse as culpas que tivesse cometido
quando provincial, por deixar de executar algumas ordens
que lhe havia dado, permitindo, porém, que ao arbítrio do
culpado ficasse a satisfação da pena.
Sobravam razões pelas quais poderia Estanislau não
só desculpar a sua omissão perante o prepósito geral, mas
também apresentá-la como coisa louvável; todavia preferiu
sujeitar-se a grave pena, quando aliás a própria consciência
testemunhava a sua inculpabilidade. E para servir de exem-
plo não só referiu a sua culpa perante os companheiros e
beijou os pés dos que sentavam-se à mesa, como também,
inclinado sobre o chão, flagelou-se com áspero azorrague.
Com grande reverência cumpria a vontade de qualquer
superior, embora relativas a coisas desprezíveis; e nunca a
idade avançada e nem outra qualquer circunstância serviu de
pretexto a sua decrepitude para não obedecer aos preceitos
dos governantes.

61
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Em São Paulo, exonerado das obrigações inerentes aos


altos cargos que em outros lugares ocupou, pôde o Servo de
Deus com mais afinco entregar-se ao exercício da caridade.
Fazia frequentes visitas aos enfermos, e, depois de os con-
fortar com os Sacramentos, muitas vezes lhes prestava ser-
viços de dedicadíssimo enfermeiro, preparando remédios e
alimentação. Era-lhe usual, quando assistia à refeição dos
doentes, dar-lhes água para lavar as mãos e praticar outros
atos de caridade e outros ofícios de humildade, que incu-
biam ao servente do enfermo.
Certo dia, uma pobre mulher pediu uma esmola ao
Servo de Deus. Não tendo na ocasião nenhum tostão para
lhe dar, lembrou-se o santo ancião que no tempo do inver-
no os pobres muito padecem com a falta de agasalho. As-
sim pensando, foi à sua cela, tomou do cobertor de seu uso,
e, sem que ninguém o percebesse, entregou-o à pedinte,
que lá se foi muito satisfeita com o ótimo presente.
Só passado algum tempo, chegando ao conhecimento
do superior do colégio a notícia do belíssimo rasgo de ca-
ridade do venerável sacerdote, pôde ele providenciar para
que lhe fosse fornecido outro cobertor.
Espalhando-se a fama do magnânimo gesto de Esta-
nislau, as pessoas devotas, especialmente os seus parentes
abastados, entregavam-lhe as esmolas com que pretendiam
favorecer os pobres, julgando que as suas dádivas seriam
mais bem aceitas de Deus em razão dos merecimentos do
esmoler.
Da generosidade de muitos dos seus parentes ricos,
principalmente de seu irmão José de Campos, aproveita-
va-se o Servo de Deus para não só aumentar o patrimônio
dos colégios e casas que dirigia, como também para enviar
auxílios às missões do Velho Mundo, sabendo-se que, só
para a de Malabar, mandava ele anualmente de 500 a 600
escudos.

62
PADRE ESTANISLAU DE CAMPOS (1649–1734)

Foram notabilíssimas em Estanislau a paciência e man-


sidão com que recebia injúrias, bem como a caridade em
perdoar e favorecer aos seus detratores.
No confessionário, que habitualmente estava rodeado
de penitentes de todas as classes sociais, passava o Servo
de Deus longas horas, chegando um dia a desfalecer de
fraqueza.

***

Alguns fatos ainda relataremos para mostrar em quanta


veneração era tido Estanislau pelos seus contemporâneos.
Achava-se em São Paulo, hospedado no colégio da Com-
panhia de Jesus, o bispo do Rio de Janeiro, Dom Antônio de
Guadalupe. Desejoso de ouvir todas as missas que o Servo
de Deus celebrasse durante o tempo em que aí permanecesse
e informado de que Estanislau celebrava a primeira missa de
madrugada, não quis o virtuoso prelado que ele modificasse
esse santo costume. E despertando ao romper do dia, sem
olhar os inconvenientes da hora que podia ser prejudicial à
sua saúde, dada a mudança de clima, ouvia Dom Antônio de
Guadalupe a missa do Servo de Deus.
Rodrigo César de Menezes, de quem já falamos, tinha
como diretor espiritual o Pe. Estanislau. Não empreendia
esse operoso governador nenhuma importante medida, ati-
nente à causa pública, sem que primeiramente lhe ouvisse
o iluminado parecer. Mas, nem por ser honesto e bem in-
tencionado, pôde o homem de governo livrar-se da língua
perversa dos seus desafetos.
Aconteceu chegar aos ouvidos do Rei D. João V uma
acusação contra a probidade do governador da capitania
de São Paulo. Mandando esse monarca abrir inquérito
sobre o procedimento de Rodrigo César, ordenou que o
Pe. Estanislau desse por escrito o seu parecer sobre o caso.

63
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Estanislau, escrevendo acerca do merecimento e pro-


bidade do governador, o isentou inteiramente de calúnia.
Isto desagradou aos inimigos de Rodrigo César, os quais
pretenderam, por via de cartas, manchar a reputação de
Estanislau. O rei porém respondeu que estava certo da
inocência do governador, fundada no testemunho de um
homem a cuja fidelidade ninguém excedia no território da
capitania de S. Paulo.
Entre os muitos dons que o Pe. Estanislau de Campos
recebeu do Céu, assinalaram-se de modo evidentíssimo o
das profecias e o conhecimento de recônditos pensamentos.
Quando o Servo de Deus viajava para a fazenda de
Guareí, pertencente à Companhia de Jesus, costumava vi-
sitar seu irmão José de Campos, que morava perto da es-
trada de Itú. Numa dessas visitas, logo à chegada, indagou
sobre a saúde de uma de suas irmãs, residente na vizinhan-
ça. Respondeu-lhe José de Campos que ela adoecera pouco
antes, mas que seu estado não inspirava cuidados. Então
Estanislau buscou persuadi-lo a ir imediatamente ver a
irmã, pois achava-se ela em perigo extremo.
Embora tivesse José de Campos recebido an-
tes da chegada do Pe. Estanislau, por um portador
que lhe enviara sua irmã, a notícia de que ela pas-
sava melhor, resolveu atender respeitoso ao conse-
lho do santo religioso. Partiu, pois, sem demora, e, ao
chegar à casa de sua irmã, encontrou-a moribunda.
Com efeito agravando-se repentinamente a moléstia, a
doente agonizava, e logo faleceu, apenas recebidos os Sa-
cramentos que a ocasião permitiu. Convenceu-se o irmão
do Pe. Estanislau de que, só por inspiração divina, pôde
este saber da enfermidade mortal de sua irmã.
Regressando, após o enterro, contou José ao santo sa-
cerdote que sua irmã havia falecido. Estanislau retirou-se

64
PADRE ESTANISLAU DE CAMPOS (1649–1734)

a um aposento, donde, após demorada oração, voltou para


junto dos seus parentes, trazendo no semblante sinais de
verdadeira alegria, e assim lhe falou:
— Já não temos motivo de pesar; nossa irmã vive com
Deus e goza da pátria celestial.
E depois de pronunciar outras palavras consoladoras,
mudou a conversação para outros assuntos.
Em meio de animada palestra, Estanislau, fazendo uma
pausa, perguntou a José quem morreria primeiro, se ele, seu
irmão ou Maria, irmã de ambos, ali presente. Não obtendo
resposta a tão difícil pergunta, disse o Pe. Estanislau:
— Tu, José, primeiro te apartarás da vida; eu te seguirei
depois; esta, porém (apontando para a irmã), igualará os
anos da serpente.
Mais tarde, tudo se realizou conforme essa predição. Mor-
reu primeiramente José de Campos, depois o Pe. Estanislau.
Maria, sobrevivendo a ambos, chegou a tamanha velhice que,
perturbada pela decrepitude a faculdade cognitiva, já não re-
conhecia os filhos, nem o lugar de sua própria habitação.
Noutra ocasião, conversando o santo missionário com
o mesmo José de Campos, queixou-se-lhe este da longa
ausência de um filho, que se achava nas minas de ouro de
Cuiabá, e não lhe obedecia a ordem que lhe dera para re-
gressar. Observou-lhe Estanislau:
— Não te irrites contra teu filho, pois ele virá mais cedo
do que esperas e do que pensas.
Achava José de Campos que isso se não realizaria, pois
seu próprio filho lhe comunicara por cartas, que nesse ano
não poderia voltar; tanto mais porque as cheias dos rios
tornavam as viagens dificílimas.
A profecia de Estanislau realizou-se daí a poucas se-
manas, pois contra toda a expectativa, aquele filho regres-
sou ao lar.

65
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Outro fato digno de registro é o que se deu com o Pe. Ma-


noel de Oliveira .19 confessor do Servo de Deus. Quando o padre
Estanislau estava nos últimos momentos de vida, disse-lhe o Pe.
Oliveira que seria o primeiro a segui-lo no túmulo. A isto o Servo
de Deus retrucou, afirmando que o seu confessor viveria ainda
tantos anos quanto faltavam para chegar aos oitenta. E de fato o
padre Manoel de Oliveira só faleceu quando chegou a essa idade

***

Dias antes de se agravar a sua última enfermidade, indo


o Pe. Estanislau, alta hora da noite, a procurar o Pe. Oli-
veira para se confessar, ouviu misteriosos sons de sinos que
dobravam funebremente.
Prevendo, dia depois, que chegara a hora de partir para
melhor vida, pediu o Pe. Estanislau que lhe administrassem
os Sacramentos. No meio de cruciantes dores, produzidas
pela gangrena que se generalizara pelo seu corpo, demons-
trava o Servo de Deus a maior serenidade.
Cheios de admiração, os assistentes viram esse venerá-
vel ancião de 86 anos, cujas mãos eram por demais trêmu-
las, juntá-las, firmes, em atitude de prece, tendo os olhos
igualmente voltados para o céu, por espaço de meia hora!
E assim, nessa edificante posição, placidamente expirou
o santo padre Estanislau de Campos, às 11 horas da noite
de 12 de julho de 1734.

19. O ilustre autor anônimo da Vida do Padre Estanislau de Campos, colega e,


provavelmente, contemporâneo do Pe. Manoel de Oliveira, tece louvores às preclaras
virtudes deste sacerdote, transcrevendo valiosíssima biografia do Servo de Deus,
escrita pelo mesmo religioso.

66
MADRE VITÓRIA
DA ENCARNAÇÃO20
(1661–1715)

Nascida 6 de março de 1661, na


capital da Bahia, em cuja cate-
dral foi batizada, teve Vitória por
pais o capitão Bartolomeu Nabo
Corrêa e Dona Luiza Bixarxe,
ambos muito virtuosos e des-
cendente de nobre estirpe.
Num lar verdadeiramente
cristão ia crescendo a Serva de Deus, em companhia de sua
irmã Maria da Conceição, sob o olhar vigilante e carinhoso
dos seus genitores, ardentemente desejosos de que elas se
consagrassem ao serviço divino.
Vitória não ignorava essa intenção que lhe não seduzia
o espírito, mas evitava tocar nesse assunto, para não contra-
riar a vontade paterna. Certo dia, porém, revestindo-se de
coragem, disse francamente a Bartolomeu Corrêa:
— Prefiro que me cortem a cabeça, antes que consentir
em fazer-me freira.
Admirou-se seu pai ao ouvir tão duras expressões, pois
jamais pensara em obrigar as filhas a darem um passo na
vida contrário a sua vocação. Desconsolado, foi logo desa-
bafar o magoado coração com seu confessor, o Pe. João de
Paiva, da Companhia de Jesus. O virtuoso sacerdote con-
fortou-o afirmando-lhe que Vitória, com o correr dos anos,

20. Cf. Frei Jaboatão, Op. cit., vol. 3, parte segunda, livro VI, pp. 684–746, onde
se encontra transcrita integralmente a biografia de madre Vitória, traçada pelo
apostólico arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro de Vide, decorridos apenas
cinco anos após o falecimento da Serva de Deus.

67
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

mudaria de ideia, e que não só entraria no convento, como


chegaria a ser uma grande religiosa.
Veremos, no decorrer destas páginas, que o Pe. Paiva foi
profeta, pois o seu vaticínio plenamente se realizou.

***

Passaram-se alguns anos. Vitória tem agora 25 prima-


veras e reluta ainda, na escolha de sua vocação. Entretan-
to, Nosso Senhor, que já lhe havia concedido inspiração
para que ela se decidisse, continua a favorecê-la com al-
guns sonhos ou visões, que a impressionam deveras. Num
desses sonhos, o Menino Jesus lhe aparece, em companhia
de Nossa Senhora, mostrando-lhe belíssimas e perfumadas
flores. Vitória pediu-Lhe algumas e Jesus lhe disse que, se
queria daquelas flores, as fosse colher no campo do Dester-
ro, porque lá as havia com abundância. Vitória retorquiu:
— Pois com essa condição eu as recuso.
Resistia ela, assim, à vontade divina!
Em outras ocasião, tornou a sonhar que andava por um
campo colhendo flores, juntamente com o Divino Infante;
e guiando-a Jesus por um caminho desconhecido, pergun-
tou-lhe Vitória qual o objetivo da jornada. Disse-lhe Nosso
Senhor que a encaminhava para o Convento do Desterro, e
a futura monja respondeu:
— Meu Menino, para o Desterro ide Vós, se quiserdes,
mas eu, não.
Em seguida abandonou a Jesus e fugiu correndo para
casa.
Mais tarde concedeu-lhe Deus outros sonhos, mas de
forma aterradora. Certo dia, após um desses sonhos terrífi-
cos, foi Vitória prostrar-se aos pés de seu pai, pedindo-lhe
encarecidamente que, com a maior brevidade, tratasse de
fazê-la entrar, com sua irmã, no Convento de Santa Clara

68
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

do Desterro. O pai abraçou-a, comovido, prometendo-lhe


agir com solicitude para a realização de tão santo ideal.
Agradecendo a Deus a mudança que se operara na alma
de Vitória, deu logo passos para satisfazer-lhe a vontade. A
29 de setembro de 1686, pelas sete horas da manhã, Vitó-
ria e Maria da Conceição deram entrada no noviciado das
religiosas clarissas.
Um ano depois, já concluído o noviciado, no qual Vitó-
ria ofereceu a mais eloquente demonstração de verdadeira
vocação, professou com sua irmã, proferindo os sagrados
votos de castidade, pobreza e obediência.
Quão admiráveis foram as virtudes praticadas pela
Serva de Deus, desde o noviciado até o fim da existência!
Tal era a sua humildade que, contando-nos o seu biógrafo,
varria os dormitórios, cozinha e quintais; limpava os canos,
recolhendo o lodo com sua próprias mãos, tão contente e
alegre, como se nunca em sua vida se tivesse visto em maio-
res limpezas. Levantava-se de madrugada, como a solícita
mas não turbada Marta, a ajudar as moças na cozinha em
todos os seus ministérios, empregando-se melhor naqueles
em que sentia maior repugnância. Certa ocasião, chegou a
Serva de Deus a comer com um cão no mesmo prato!
Era ela tão paciente que, se acontecia alguém descari-
dosamente lhe atirar alguma injúria, respondia com imper-
turbável semblante:
— Vá, minha irmã, vá por diante, que ainda não diz
tudo.
Nomeada provisora do mosteiro, com a máxima di-
ligência desempenhava esse cargo, que lhe proporcionou
ocasiões para acrescentar novo brilho às suas acrisoladas
virtudes.
Certa vez em que repartia a carne para mulheres reco-
lhidas que não faziam parte da comunidade, sofreu gravís-
sima afronta da escrava de uma dessas, a qual, insatisfeita da

69
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

porção que coubera à sua senhora, atrevidamente prorrom-


peu em palavras injuriosas. A santa monja ia ouvindo tudo,
pacientemente, sem se alterar; mas nem assim acalmou a
escrava, que, ainda mais furiosa, num gesto brutal, arremes-
sou o pedaço de carne contra o rosto da Madre Vitória. As
pessoas presentes indignaram-se com o caso, mas a Serva de
Deus resignadamente recebeu a ofensa, dizendo apenas:
— Isto, que vem a ser? Assim sucede.
Uma religiosa aconselhou-lhe que se fosse queixar à
prelada, a fim de que a agressora recebesse o merecido cas-
tigo, mas a santa monja terminantemente se opôs, dizen-
do-lhe:
— Que casta de cara é a minha, ou que vem a ser isto
para queixar-me? Diferente pararam as minhas culpas à
Face do meu Criador, e ademais Ele se não queixou nunca
de quem o tratou mal.
Só mesmo uma santa podia sofrer com tal serenidade e
pronunciar tão edificantes palavras, reveladoras do seu alto
espírito de humildade, caridade e paciência. Para que as
outras suas irmãs de hábito não percebessem a lesão que
recebeu, a Serva de Deus atou ao rosto um lenço. Assim
não deu lugar a que chegasse o fato ao conhecimento da
abadessa, poupando à escrava o merecido castigo.
Em 1693, grassava na Bahia com intensidade apavo-
rante uma esquisita epidemia denominada, então, “peste
das bichas”. Não sabiam os médicos qual a origem nem o
tratamento dessa moléstia. Vidas preciosas eram ceifadas
diariamente, enlutando inúmeros lares e lançando o terror
por toda parte.
Pela feliz inspiração de um sacerdote jesuíta, instituiu-
-se na cidade do Salvador uma associação de Lausperene,
ou adoração permanente a Jesus Sacramentado, a fim de
suplicar-Lhe a cessação do flagelo. O Santo Padre Inocên-
cio XII aprovou a associação com dois breves: um conce-

70
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

dendo privilégio para o altar do Santo Cristo, da catedral,


e outro, enriquecendo de indulgências a mesma instituição.
Madre Vitória jubilosamente tomou o encargo de cin-
quenta horas, distribuídas por vários dias e noites do ano,
sendo ela a zeladora da associação em seu mosteiro. Foi
começar a adoração perpétua a Jesus-Hóstia, e a epidemia
entrou logo em declínio, voltando a paz aos lares.
É que Nosso Senhor não podia deixar de atender a tão
fervorosas súplicas e a tão sinceras demonstrações de fé do
povo baiano, especialmente de uma alma puríssima como a
de Madre Vitória. Caridosa em extremo, não houve entre
as suas irmãs de hábito quem a superasse.
Achando-se atacada de gravíssima enfermidade uma
escrava do convento, todas dela se afastavam, não só re-
ceosas do contágio, como também devido ao estado repug-
nante a que ficara reduzido o seu corpo. A Serva de Deus,
condoída da pobre doente, tomou a si a incumbência de
tratá-la. Para tal fim removeram a escrava para um peque-
nino e escuro cômodo, distante dos compartimentos ocu-
pados pela comunidade. O lugar era triste e soturno, perto
do cemitério. Sem nada a temer, aí passava Madre Vitória
dias e noites, servindo em tudo à enferma.
Algumas religiosas perguntaram-lhe um dia como se
animava ela a passar as noites, sozinha, ao lado da enferma,
naquele local tenebroso. E Vitória respondeu prazenteira:
— Não está só quem está com suas amigas, e tão boas
amigas que me acompanham e fazem tudo quando lhes peço.
As amigas da santa monja eram as benditas almas do
Purgatório, pelas quais tinha ela a maior devoção. E Nosso
Senhor permitiu muitas vezes que as almas libertas pela
oração e penitência da Serva de Deus lhe levassem agra-
decimento. Outras vezes, Madre Vitória obteve dessas suas
amigas assinalados favores para si e para a comunidade do
seu mosteiro.

71
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Continuou a santa monja a tratar da enferma, até o mo-


mento em que os médicos aconselharam que a removessem
para fora do convento. Foi a doente para a casa de Dona
Luiza Bixarxe, onde veio a falecer, cercada dos cuidados da
veneranda matrona.
Enlouqueceu uma escrava parda, que estava no mos-
teiro, em companhia de Madre Vitória, e que por ser boa
cristã, gozava de geral estima. Durante quase seis meses,
serviu-lhe de enfermeira. Às vezes, a louca, em furioso
acesso, dava gritos estridentes. Os médicos julgaram o caso
incurável. Entretanto, Madre Vitória esperava que Deus
fizesse mais um milagre, e, assim pensando, dizia:
— Deus é grande e ainda pode restituir-lhe o juízo.
Não se alimentando quase nada, chegou a enferma a
tal estado de fraqueza que, temendo-se o pior, lhe admi-
nistraram a Extrema-Unção. Em dado momento começou
a doente a gritar que queria ir para a cassa de sua senhora,
Dona Luiza Bixarxe. Então Madre Vitória pediu à abades-
sa que mandasse levar a louca para a casa de sua mãe, no
que foi logo atendida.
Oito dias depois, eis que se apresenta sozinha, à porta
do mosteiro, pedindo que a deixassem entrar, pois estava
curada. Ninguém dava crédito às suas palavras, lembrando-
-se todos de que os médicos a tinham desenganado. Insis-
tia a mulher, dizendo que se a não deixassem entrar, daí só
a tirariam depois de morta.
Sabedora do caso, Madre Vitória interviu para que fosse
a escrava recebida, afirmando que não tornaria ela a perder
o uso da razão. Era tal a confiança que a comunidade depo-
sitava nas palavras da santa religiosa, que obtiveram licença
da prelada para que fosse satisfeito o desejo da miraculada.
Penetrando na clausura, foi a escrava diretamente ao
coro, onde rendeu graças a Deus pelo restabelecimento da
sua saúde.

72
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

Madre Vitória modestamente dizia:


— Tudo isso são milagres de Nosso Senhor dos Passos,
por intercessão de minhas amigas.
Vejamos mais alguns casos reveladores das heroicas vir-
tudes de Madre Vitória.
No cargo de porteira, ou rodeira, teve Vitória ocasião
de praticar a caridade com inúmeros pobres, aos quais so-
corria, ora com alimentação, ora com esmolas que obtinha
do pessoal do mosteiro. Se acontecia de depositarem algum
cadáver de indigente no átrio do convento, logo providen-
ciava a Serva de Deus para o seu pronto sepultamento.
Perto de vinte anos viveu Madre Vitória numa pequena
cela de 12 palmos de comprimento por 6 de largura. Seu
leito era um banco de três palmos de largura, servindo-lhe
de travesseiro um cepo. A roupa consistia num lençol de
algodão e numa pequena manta. E bem pouco tempo go-
zou Madre Vitória desses miseráveis objetos da sua cela,
porque certo dia desprendeu-se de tudo isso para socorrer
um pobre que julgava mais necessitado que ela, passando
daí por diante, até o fim da vida, a dormir numa simples
esteira, no chão.

***

A sua ardentíssima devoção pela Paixão de Jesus Cristo


fê-la instituir no seu mosteiro a procissão anual do Senhor
dos Passos, adquirindo para esse fim uma linda imagem.
Todos os anos, no dia apropriado, fazia-se no claustro a
solene procissão, indo sempre a Serva de Deus atrás do an-
dor, com uma coroa de espinhos na cabeça e uma cruz no
ombro, caminhando de joelhos em todo o percurso.
Numa dessas ocasiões, pediram-lhe duas freiras que lhes
emprestasse a cruz, no que foram atendidas. Terminada a
procissão, restituindo a cruz à santa religiosa, exclamaram:

73
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

— Madre, nunca mais; pois não quer Deus que nos ma-
temos; não sabemos como pode com ela!
E Madre Vitória respondeu sorrindo:
— Ela pesa? Nunca lhe achei peso.
E tinha razão a Serva de Deus. Como podia ela achar
pesada essa cruz, se o seu amor por Jesus não tinha limites,
e o seu desejo de tudo sofrer por Ele era insuperável?
Quando a comunidade se reunia para as recreações
permitidas pelo regulamento do mosteiro, Madre Vitória
sempre se deixava ficar no coro da igreja, com o olhar fixa-
do no Sacrário ou na grande imagem do Jesus Crucificado.
As mortificações de Madre Vitória eram de tal sorte, que só
as podemos comparar às dos maiores santos penitentes. Além
dos seus jejuns rigorosíssimos, usava habitualmente os mais
mortificantes cilícios. Com exceção das horas em que devia
acompanhar a comunidade nos exercícios regulamentares, o seu
lugar costumeiro era o coro, onde permanecia durante muitas
horas do dia e da noite, de joelhos, com os braços em cruz, ou
prostrada com a face no chão, regando-o com abundantes lá-
grimas. Várias vezes por dia e à noite, fazia a santa monja os
exercícios da Via Sacra. Às sextas-feiras, especialmente, ao rea-
lizar esses exercícios, colocava na cabeça a sua amada coroa de
espinhos e no ombro a pesada cruz. Em cada estação parava,
disciplinando-se por longo tempo; e batia no rosto com tal vio-
lência, que suas faces ficavam cobertas de hematomas.
Em um dia de Ano Novo, disciplinou-se tanto que o
sangue, escorrendo com abundância, manchou o assoalho
do coro e, por mais que lavassem, as manchas permaneciam
vivas. Foi, por isso, necessário que a prelada mandasse um
carpinteiro raspar a tábuas, como de outras vezes já tinha
mandado caiar as paredes desse mesmo local, por se acha-
rem salpicadas de sangue.
Certa ocasião – no meio da madrugada – Vitória casti-
gava o seu corpo. Os golpes da disciplina ecoavam por toda

74
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

a igreja; e fora, quem passasse junto às sagradas paredes,


havia de perceber, a quebrar o silêncio da noite, estranho
rumor. Eis que nesse instante passa unido ao mosteiro cer-
to indivíduo que deixara o lar e se dirigia a um antro de
perdição.21
Ao defrontar a igreja, soa-lhe aos ouvidos esquisito
ruído. O homem para, aplica o ouvido, e fica atônito ao
certificar-se que tais pancadas são golpes de disciplina.
E exclama, então:
— É possível que uma delicada donzela se esteja dis-
ciplinando com tanto rigor, e eu miserável pecador não só
não faço outro tanto, senão que ainda vou ofender a Deus?!
Não será assim por certo.
E desistindo do seu pecaminoso propósito, voltou para
casa, com a firme resolução de se emendar e praticar daí
por diante a castidade.

***

Tão extraordinário era o seu desejo de alcançar o Céu e


contemplar, face a face, o Divino Jesus, que continuamente
dizia:
— Não há coisa melhor que a morte, porque ela dá fim
aos males desta vida e princípio aos bens da outra.
De tanto repetir essas palavras, perguntaram-lhe:
— E se morrendo começam os males que merecemos
por nossos pecados?
— Ainda então é de estimar, porque com ela deixa-
mos finalmente de ofender a Deus, e satisfazemos a Divina
Justiça.
Sábia resposta, digna de um coração tão abrasado no
amor de Deus, como era o seu, disse Dom Sebastião da
Vide.

21. Isto é, a um prostíbulo. (N. E.)

75
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Durante seis anos, sofreu Madre Vitória de contínuas


hemorragias, que aos poucos iam debilitando seu orga-
nismo, já tão enfraquecido pelas mortificações de todo o
gênero. Os medicamentos ora lhe davam alívio, ora eram
improfícuos.
Quando já se aproximava o sétimo ano de tanto padecer,
cessaram as hemorragias, mas se lhe formou internamen-
te um tumor. Depois, cobriu-se-lhe todo o corpo de sarna,
cuja coceira irresistível lhe deixava chagas; e, para cúmulo
do sofrimento, permitiu Deus que lhe aparecessem várias
infecções na pele. A santa monja, à semelhança de Jó, sem
murmurar um queixume, pacientemente tudo suportava.
Num dia em que a Igreja celebrava a festa da Ascensão,
notaram as freiras a dificuldade com que Madre Vitória se
dirigiu ao coro para ouvir a Missa. Foi quase se arrastando
e demonstrava na alterada fisionomia as dores terríveis que
a afligiam.
Mandou, então, a abadessa chamar os médicos do mos-
teiro, os quais, após o exame, declararam o fim iminente da
Madre Vitória. Entristeceram-se as religiosas com a opi-
nião deles, mas não assim a nossa heroína, que ansiava voar
para o Céu.
Levaram-na para a cela de sua irmã carnal, pois no seu
pobre cubículo não existia cama em que se pudesse recos-
tar. Aí continuou a sofrer, e, por obediência, ingeria os me-
dicamentos, tudo aturando com a maior edificação.
Se parecia às religiosas que as drogas produziam algum
alívio a Madre Vitória, demonstravam-lhe sincero conten-
tamento; mas a enferma lhes dizia:
— Não se enganem, minhas irmãs, que este mal é de
morte, e o remédio é só morrer.
Se insistiam para que ela se alimentasse, tal era o seu
fastio e tão desprendida estava do mundo, que pronunciava
estas palavras:

76
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

— Esta boca não apetece senão a terra à qual em breve


se há de tornar.
No dia de Corpus Christi pediu à prelada que lhe dei-
xasse fazer uma confissão geral e comungar, a fim de ga-
nhar o júbilo das horas de adoração, sendo-lhe satisfeito
esse desejo. Queria também comungar no dia de Nossa
Senhora do Carmo (16 de julho), mas, na véspera, entre
onze horas e meia noite, demonstrou tal ansiedade, que as
religiosas supuseram ter chegada a sua última hora.
Chamada imediatamente, a abadessa aproximou-se
de Madre Vitória e perguntando-lhe se queria receber o
Viático, obteve a resposta de que no dia seguinte O rece-
beria. Afligiram-se as monjas e instaram para que a Serva
de Deus recebesse o Pão dos Anjos. Ela, porém, tranquili-
zou-as, dizendo que Deus havia de lhe permitir chegar ao
dia seguinte.
Agravando-se os padecimentos da santa freira, a aba-
dessa fez-lhe sentir a conveniência de receber com pres-
teza o sagrado Viático, mesmo porque estavam já no dia
de Nossa Senhora do Carmo, e poderia satisfazer a sua
devoção.
Imediatamente atendeu Vitória aos conselhos de sua
prelada e tendo recebido a Nosso Senhor Sacramentado,
pediu a Extrema-Unção.

***

Recebida a bênção da abadessa, começou Madre Vi-


tória a fazer suas últimas recomendações. Pediu que a não
colocassem em caixão e que lhe deixasse moer e quebrar
aqueles ossos que nunca souberam servir a Deus como de-
viam. Desejava também que a amortalhassem num hábito
bem velho, que seria pedido por esmola à religiosa que o
possuísse. Pediu mais, que lhe não ornassem a cabeça com

77
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

capela de flores, nem tão pouco lhe pusessem a palma


simbólica na mão. Em vez desses enfeites, deviam colocar-
-lhe à cabeça uma coroa de espinhos e na mão um pedaço
de cana, para imitar Nosso Senhor em sua Paixão.
Finalmente, como última disposição, rogava que seu
corpo fosse carregado para a sepultura pelas moças do con-
vento. Algumas religiosas lhe objetaram que este pedido
não podia ser satisfeito, porque as servas não entravam em
comunidade. Disse-lhes, então, Madre Vitória, em tom
profético:
— Se me não carregarem as moças, de nenhum outro
modo me poderão levar à sepultura.
Numa sexta-feira, três dias após a festa de Nossa Se-
nhora, indo o médico visitá-la, disse-lhe a Serva de Deus
que dispensava os seus cuidados, pois de nada valiam eles,
uma vez que Nosso Senhor queria levá-la para a Eternida-
de. Agradeceu ao médico todo o seu trabalho e dedicação
para curá-la, reconhecimento esse tão afetuoso que como-
veu o dedicado profissional.
Quase ao meio-dia, perguntou a irmã enfermeira se
Madre Vitória sabia que horas eram, ao que ela respondeu:
— Estamos na hora em que foi o Senhor crucificado.
Indagando também a religiosa se seria aquela a última
hora da Serva de Deus, esta respondeu-lhe que não, porque
lhe restava que padecer nessa vida.
Continuava Vitória a agonizar, dizendo repetidas vezes
esta jaculatória:
— Jesus, filho de Maria, havei misericórdia de mim.
Depois de despedir-se da comunidade e de todas as
moças e servas do mosteiro, às quais deu salutares conse-
lhos, abraçou finalmente a sua irmã carnal, que entre lá-
grimas e gemidos a custo se desprendeu de seus braços.
Terminadas as despedidas, pediu que a erguessem do leito,
o que suas irmãs de hábito atenderam com carinho; mas

78
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

daí a instantes pediu que a deitassem de novo, renovan-


do-se esta cena por três vezes. Seria talvez, como diz o seu
biógrafo, para imitar as quedas de Jesus Cristo, durante o
caminho do Calvário.
Passado algum tempo, novamente rogou a santa freira
que a levassem e que a pregassem à parede. Então uma das
moças fê-la recostar-se sobre o seu peito. Assim reclinada,
a Serva de Deus abriu os braços em forma de cruz e que-
dou-se imóvel.
Pouco antes das 3 horas da tarde, chegaram ao mosteiro
alguns padres jesuítas, a fim de lhe assistirem a morte, e,
ouvindo ela o som da campainha, que, como é de praxe as
religiosas tangem quando alguma pessoa de fora penetra
na clausura, pediu – por acenos, visto não mais poder falar
– que lhe cobrissem a cabeça com o véu. Daí a instantes,
disse-lhe a religiosa assistente:
— Somos, minha irmã, chegadas à hora Noa;22 pare-
ce-lhe que expirará nela por imitar o seu Divino Esposo?
A isto anuiu com a cabeça, levantando os olhos ao Céu,
atendendo com muito sossego e quietude ao ofício da Ago-
nia, que de joelhos lhe rezavam os Padres, e o Credo, que
lhe cantavam as religiosas, e chegando esta com o cântico à
última palavra: “Amém”, largou o crucifixo e a vela que ti-
nha nas mãos, as quais cruzando sobre o peito, e inclinando
a cabeça, deu a Madre Vitória da Encarnação o seu ventu-
roso espírito ao Criador, coroando com tão santa morte a
vida que com tanto fervor empregara em servi-Lo.
Eram 3 horas da tarde, de 19 de julho de 1715.
Ficou o corpo exalando tão maravilhosa fragrância, que
ainda antes de entrar na cela se deixava perceber, julgando-se
como mais que natural. Tendo as mãos muito grosseiras do
contínuo trabalho em que as exercitava, lhe ficaram muito

22. Isto é, a hora Noa do Ofício Divino (Liturgia das Horas), que corresponde à
“nona hora” (mais ou menos 3 da tarde), em que Cristo expirou.

79
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

brandas e delicadas, flexíveis e tratáveis, que lhe abriam e


fechavam dedo por dedo, como se estivessem ainda com
vida. Sucedeu porém, que daí a sete horas lhe começou a
inchar, e denegrir o rosto de tal sorte, que causava horror a
quem a via. Admiravam-se as que até então estavam como
suspensas e embebidas com a sua boa presença, mas durou-
-lhes pouco a admiração, lembrando-se, que muito tempo
antes lhes dissera a defunta: que depois de morta ficaria
muito feia e horrorosa.
No dia seguinte, terminado o ofício, quando as religio-
sas seguraram na alça do caixão para levar o venerado corpo
à sepultura, não conseguiram carregá-lo, tal era o seu peso.
Lembradas, então, da profecia da santa monja, chamaram
algumas moças que facilmente puderam levar o esquife.

***

Nos 28 anos que Madre Vitória viveu no Mosteiro de


Santa Clara do Deserto podemos dizer que nenhum dia
deixou ela de glorificar a Deus, demonstrando sempre o
seu grande amor por Jesus Eucarístico e a sua imensa cari-
dade para com o próximo.
Assim como em vida, fez a santa freira muitos prodí-
gios após sua morte. As pessoas que invocavam sua prote-
ção obtinham favores sem conta.
Para encerrar este capítulo, narraremos um fato estu-
pendo. Achava-se gravemente enferma, com um tumor
na garganta, uma das freiras do Mosteiro de Santa Clara.
Os médicos já se mostravam desanimados com a marcha
acelerada da moléstia, que zombava dos recursos da medi-
cina. Sofrendo dores horríveis e vendo inúteis os esforços
dos médicos para curá-la, lembrou-se a doente de recor-
rer à proteção de Madre Vitória, pois esta lhe prometera
interceder por ela, quando estivesse na presença de Deus.

80
MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO (1661–1715)

E mandando buscar um bocadinho de terra da sepultura


da Serva de Deus, ingeriu-a, dissolvida em água. Imedia-
tamente as dores foram diminuindo e a enferma entrou
em profundo sono. No dia seguinte, ao despertar, sentiu-se
completamente sã! E para maior testemunho do valor da
intercessão de Madre Vitória, permitiu Deus que a xícara
em que estivera depositada a água com a terra da sepultura
exalasse suavíssimo perfume.

81
SOROR MARIA DA SOLEDADE23
(1668–1719)

A biografia de soror Maria da Soledade foi escrita pela


Serva de Deus madre Margarida da Coluna, sua irmã de
hábito e inseparável companheira de vigília, diante do San-
tíssimo Sacramento.
Frei Jaboatão, transcrevendo para o Novo Orbe Seráfi-
co o trabalho de madre Margarida, limitou-se, conforme
declara, a dividi-lo em capítulos e suprimir repetições des-
necessárias.
Da nossa parte, faremos um resumo do que aí encontramos.

***

Nasceu soror Maria da Soledade na capital da Bahia,


a 24 de agosto de 1668, à 1 hora da madrugada. Era filha
do capitão João Borges de Macedo e dona Maria de Bar-
ros, ambos de ascendentes nobres e muito conceituados na
sociedade de sua terra. Foi soror Soledade batizada a 8 de
setembro do mesmo ano, na igreja Catedral de Salvador.
Quando ainda criança já era extraordinária a sua pieda-
de, tendo-lhe a boa mãe ensinado a rezar o terço de Nossa
Senhora, com as devidas meditações. Aos dez anos, fez a
santa menina perpétuo voto de virgindade, em louvor de
Maria Santíssima.
Sua maior ocupação era fazer rendas para toalhas de
altar e cultivar as mais belas e perfumosas flores para orna-
mentar as igrejas. E assim crescendo, cada dia mais virtuo-
sa, era a Serva de Deus o anjo do seu lar.

23. Cf. Frei Jaboatão, Op. cit., vol. III, part. 2, pp. 747–70.

82
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Quando seu pai faleceu, contava Maria da Soledade


dezenove anos de idade. Estava, pois, no esplendor da sua
mocidade. Quiseram seus irmãos fazê-la casar com um no-
bre cavalheiro vindo da Índia, ao que ela se opôs fortemen-
te, manifestando a todos que ambicionava outras núpcias:
as núpcias espirituais com Nosso Senhor Jesus Cristo.
A Serva de Deus revelou a sua mãe o voto que havia
feito, quando menina. Alegrou-se a virtuosa matrona com
essa revelação, tratando logo dos preparativos para a entra-
da da santa donzela no claustro de Santa Clara do Deserto,
onde fez a profissão a 15 de Fevereiro de 1688, e de tal
sorte ordenou sua vida de perfeita religiosa e com tal fervor
continuou a servir a Deus, que, sendo tão jovem, parecia ser
a mais antiga entre as religiosas; e as suas muitas virtudes a
faziam respeitada e venerada.
Era tão rigorosa e amiga das mortificações, que, desde
sua entrada no claustro, somente com sua mãe falava no
parlatório, uma ou duas vezes por ano. As maiores devo-
ções da Serva de Deus eram a santa Missa, a comunhão e
a visita a Jesus Eucaristia. Pode-se dizer que durante quase
33 anos que viveu no Mosteiro de Santa Clara, ouviu todas
as Missas que aí se celebraram, deixando de fazê-lo somen-
te nos três dias em que guardou o leito, quando atingida
pela mortal enfermidade que a levou para a melhor vida.
No dia em que estava o Senhor exposto, ainda que fosse
por todo o dia, não se afastava do coro, indo pelas cinco
horas para nele assistir ao Ofício Divino, e só saía acom-
panhando a comunidade; e indo as demais irmãs para o
refeitório, tornava para o coro até chegar as Vésperas; ou de
joelhos, ou em pé, levava o dia até se encerrar o Senhor, e
depois de tudo acabado ia então para a cela a tomar alguma
refeição; porque até aquelas horas estava em jejum, coisa
que admirava as outras religiosas.

83
SOROR MARIA DA SOLEDADE (1668–1719)

Quando comungava, não dizia palavra alguma, nem


fora do coro por reverência ao Senhor, até depois de uma
hora de sair do coro dos seus costumados exercícios, e de-
pois só falava o necessário. Era tal o amor e devoção de
Soror Soledade por Nosso Senhor Sacramentado, que no
dia em que O recebia em sua alma, notava-se-lhe no ros-
to uma transformação extraordinária; pois lhe saíam pelas
faces rosas encarnadas, e de tal sorte andava enlevada, que
parecia estar-se rindo só; e quando recebia o Senhor reco-
lhia-se a um canto, coberta com seu véu e ali ficava até se
acabar o ato, e quando descia o véu para tomar o lavatório,
para o qual a chamavam muitas vezes, a viam tão formosa
e rosada, que parecia resplandecer-lhe o rosto.
Obtendo soror Soledade a necessária permissão da
autoridade eclesiástica, mandou vender todos os bens
que possuía, a fim de aplicá-los na compra de um rico
tabernáculo para a capela do seu mosteiro. Como o
dinheiro apurado não chegasse para o fim a que o destina-
ra, pediu a santa freira a uma religiosa que arranjasse esmo-
la para tal fim, pois era costume ocultar todas as boas ações,
sendo depois adquirido em Portugal um artístico sacrário
de prata.
O contínuo trabalho da Serva de Deus era bordar pa-
ramentos, fazer hábitos para suas companheiras e todas as
costuras destinadas à Igreja. Para si mesma nunca costurou,
pedindo, quando necessitava , a outrem que o fizesse, pois
destinava os trabalhos de suas mãos só para o seu amado
Senhor e os que O serviam.

***

Achava-se em reforma o coro da igreja. As monjas, te-


mendo que soror Soledade fosse vítima de algum desastre,
pois podia desprender-se dos andaimes alguma pedra ou

84
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

pedaço de madeira, aconselharam-lhe que se abstivesse de


frequentar esse local. Mas a venerável religiosa tinha profunda
fé e confiança na bondade de Deus, e assim lhes respondeu:
— Não fio eu tão pouco do meu Senhor Sacramenta-
do, que sabendo eu ali me dirigir por seu amor, me queira
matar; não por certo enquanto estou ouvindo Missa ou em
Sua presença.
Nas noites de luar costumava soror Soledade passar lon-
gas horas contemplando as belezas do firmamento, chaman-
do, muitas vezes, as suas companheiras de claustro para com
ela apreciarem tal magnificência da Criação. Falava-lhe, en-
tão, das grandezas do Céu, de que o firmamento estrelado é
uma imagem. Lembrava-lhes, afervorando-as, o gozo eter-
no dos santos que, tendo passado a existência no despren-
dimento das coisas da terra, na prática heroica das virtudes
e mortificações, amando e servindo a Deus, agora O con-
templam face a face; ao passo que tantas e tantas criaturas
racionais, desprezando os dons da graça, viviam em tristís-
simo estado, idolatrando as coisas da terra, mergulhadas nos
vícios, calcando aos pés os mandamentos divinos, e, por isso,
arriscadas à perda dos bens celestes e ao sofrimento eterno.

***

A 27 de outubro de 1719, agravando-se os padecimen-


tos da Serva de Deus e não podendo mais o seu debilitado
corpo suportar a violência da febre, teve de recolher-se ao
leito. Antes, porém, pediu licença à prelada para despe-
dir-se de Jesus Sacramentado. Tinha ela pressentimento,
como declarou às demais religiosas, que essa visita seria a
última. Recolhendo-se à cela, recebeu o médico que, pela
primeira vez, a vinha examinar. Deixou-se pacientemente
sangrar, sofrendo mansa e resignadamente a moléstia, que
a martirizou por mais três dias.

85
SOROR MARIA DA SOLEDADE (1668–1719)

***

Sentindo-se piorar de momento a momento, pediu às suas


dedicadas enfermeiras que lhe fizessem uma cama no chão,
onde desejava morrer. Depois, lançou ao pescoço o rosário da
Virgem, que ela chamava o seu precioso colar de quinze joias.
Tardando o sacerdote em lhe administrar os Sacramentos, co-
meçou a Serva de Deus a recitar o ato de contrição. Depois se
abraçou com as imagens de Jesus Crucificado e Maria Santís-
sima, esperando o seu último momento.
Nesse instante chegou o padre a quem rogou que em
seu nome, pedisse perdão, mais uma vez, à comunidade, se
lhe dera algum mal exemplo, ou lhe fizera alguma ofensa,
de que se não lembrava.
Abençoada pela abadessa, e após ter-lhe implorado por
esmola um hábito para se amortalhar, recebeu o sagrado
Viático e a Extrema-Unção.
Quando o sacerdote terminou a oração pelos agonizan-
tes, expirou suavemente a santa monja Maria da Soledade,
às 10 horas da noite, de 19 de outubro de 1719, à idade de
51 anos, dois meses e seis dias.
Estando (seu corpo) tão quebrado e consumido das pe-
nitências e mortificações, que à vista parecia um cadáver em
vida, ficou depois da morte tão formoso que parecia estar na
primeira idade dos seus anos; e não sendo de cor muito alva,
então ficou sendo.
Lacrimosas e lamentando a perda de um tal tesouro, as
religiosas colocaram o corpo de soror Soledade num esquife,
conduzindo-o para a capelinha do Senhor dos Passos, onde
ficou depositado durante a noite. Ao amanhecer, rezadas aí
mesmo as Matinas pela comunidade, realizou-se o enterro
da Serva de Deus, cuja fisionomia conservava tão agra-
dável presença, que parecia estar viva pela extraordinária
formosura de que se achava revestida.

86
FREI BERNARDO
DA CONCEIÇÃO24
(1676–1727)

Por graves que sejam os pecados de um homem; por mais


vergonhosas que tenham sido as suas quedas, tenha ele per-
corrido a escala dos vícios, viva embora com a alma envol-
ta nas trevas do erro, se, atendendo às inspirações celestes,
converte-se, faz penitência de seus pecados e daí por diante
corresponde perfeitamente aos dons inigualáveis da graça,
está apto a atingir os cumes da santidade.
Sua alma, antes morta para o Céu, ressurgindo por um
estupendo milagre da misericórdia divina, segue radiosa
pela estrada reta da virtude; estrada cheia de urzes, é verda-
de, mas em cujo percurso ela usufrui inefáveis consolações.
A história eclesiástica está repleta de nomes convertidos
célebres, que se tornaram santos. Frei Bernardo da Concei-
ção, que no século se chamou Bernardo da Silva Barreto,
foi também um deles. Ovelha perdida, quando ele voltou
ao redil da Igreja, sinceramente convertido, tornou-se forte
e resoluto para combater e vencer todas as paixões. E, as-
sim, Bernardo correspondeu ao chamado do divino Pastor,
que o ergueu do abismo do pecado para fazê-lo santo.

***

Nascendo na Bahia, no ano de 1676, teve Bernardo


por pais Gaspar de Andrade Reis e Dona Inácia Gomes
Assunção.

24. Cf. Jaboatão, Op. cit., vol. II, livro IV, cap. III, pp. 546–53.

87
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Aos 22 anos de idade, tinha Bernardo o coração cor-


rompido. Nessa época, ele e um amigo da mesma idade
entregavam-se a todos os divertimentos da vida solta e li-
cenciosa. Viviam esquecidos dos mandamentos de Deus,
que transgrediam, na satânica ilusão dos prazeres impuros.
Certo dia, porém, Deus iluminou as suas almas, com
os clarões da graça. A mudança radical dos seus costumes
e as frequentes idas às igrejas com que Bernardo e seu
companheiro Francisco de Mendonça Mar demonstravam
achar-se convertidos, foram logo notadas por seus parentes
e conhecidos, que não podiam atinar com o motivo de tão
repentina conversão.
Após algum tempo nessa pública demonstração de fé
e reparação do seu deplorável passado, resolveram os dois
amigos se entregar totalmente ao serviço de Deus. Lançan-
do sorte sobre o estado religioso que deviam abraçar, tocou
a Bernardo fazer-se frade, e a Francisco buscar a solidão.
Francisco vestido de grosseiro hábito, ausentou-se da ci-
dade, embrenhando-se pelo sertão longínquo. Depois de
muitas léguas de penosíssima peregrinação, parou à mar-
gem do rio São Francisco e aí passou a viver numa lapa, que
mais tarde foi transformada em santuário.25
Decorridos alguns anos de ásperas penitências, deixou
ele o seu amado retiro, com o fim de ordenar-se sacerdote.
Satisfeito esse ideal, e saudoso da sua vida de anacoreta,
para aí regressou, onde santamente terminou os seus dias.
Bernardo Barreto seguiu rumo diverso. Foi ter ao
Convento de Paraguaçú, onde o admitiram como noviço,
fazendo a profissão de irmão leigo, a 8 de dezembro de
1699, com a idade de 23 anos já completos.
Foi Religioso além dos dotes sobrenaturais da alma,
25. O célebre santuário de Bom Jesus da Lapa, fundado pelo arcebispo da Bahia
Dom Sebastião Monteiro da Vide. O primeiro a habitar esse santuário foi o Pe.
Francisco da Soledade (cf. Domingos Loreto Couto, Op. cit., vol. 1, livro 4,
cap. 9, p. 260).

88
FREI BERNARDO DA CONCEIÇÃO (1676–1727)

com que edificava a todos no humilde, pacífico, pobre e


ainda no aspecto exterior da pessoa enriquecido de muitas
graças da natureza. Sendo Fr. Bernardo inteligente, habili-
doso e entendendo um tanto de medicina, começou a tratar
dos religiosos enfermos. E tais curas ia ele fazendo, que
a todos deixava admirados, correndo logo a fama de tais
prodígios, os quais, em muitos casos, tinham a aparência
de milagrosos.
Começaram, então, a afluir ao convento numerosos
doentes, e crescendo dia a dia o número destes, que de
longe vinham, resolveram os religiosos fundar um hospital
fora dos muros do Convento. Não faltaram esmolas para a
pronta execução de tal empreendimento, de modo que, no
espaço de pouco tempo, foi erigido o edifício do hospital.
Aí eram tratados pelo Servo de Deus, tanto os religiosos,
como os seculares.
O Pe. João Honorato, que foi provincial dos jesuítas,
achando-se atacado de grave enfermidade, internou-se
nesse estabelecimento de caridade, onde se retirou comple-
tamente restabelecido. Pois bem, esse sacerdote afirmava
que fôra testemunha não só dos atos de virtudes de Fr Ber-
nardo, como também de algumas curas por este operadas,
que ele considerava sobrenaturais.
Fr. Ludovico da Purificação, que por quatro anos resi-
diu no Convento de Paraguaçú, consagrava alta veneração
à memória do Servo de Deus.
Quando gravemente enfermo, teve Fr. Ludovico de
passar uma temporada no hospital dirigido por Fr. Bernar-
do, aí presenciou entre outros, um grandioso milagre, cujo
minucioso relato ele entregou a Fr. Jaboatão, que por sua
vez o transcreveu no seu Novo Orbe Seraphico.

***

89
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Às 8 horas da noite de 5 de setembro de 1727, com


alma confortada pelos últimos Sacramentos, faleceu o san-
to Fr. Bernardo da Conceição, deixando consternados to-
dos quantos se haviam habituado a venerar-lhe as virtudes
e a receber a mãos cheias, os inapreciáveis benefícios do seu
coração de apóstolo da caridade.

90
PADRE CAETANO DE LIMA26
(† 1723)

Em 1713, Caetano Pereira de Lima partiu de Recife, sua


terra natal, para a Bahia, onde recebeu o presbiterato, se-
guindo depois para o Rio de Janeiro. Conhecendo-lhe as
virtudes e aptidões, o bispo do Rio de Janeiro nomeou-o
vigário da vara da freguesia de Sabará, em Minas Gerais.
Muito humilde, empregou esforço para afastar de seus om-
bros tal honraria; entretanto, por obediência ao prelado,
teve de aceitar o cargo.
Assumindo a vigaria, viu logo o bom Pe. Caetano não
lhe convir uma longa permanência em Sabará, onde os ha-
bitantes, em geral, fartos de ouro, viviam no meio do fausto
e dos prazeres. Poucos eram os pobres com que pudesse re-
partir esmolas. Sentiu natural repugnância pelas grandezas,
e com a alma cada vez mais atraída pela solidão, resolveu o
santo sacerdote renunciar o cargo.
Via o Servo de Deus ser arriscada a demora, e temen-
do engolfar-se no abismo de conveniências temporais, sem
mais interpor dilações, com heroico desprezo do que pos-
suía de bens terrenos, sai das minas sem mais roupas que
uma roupeta que cobria muitos cilícios; a pé e descalço,
com a cabeça exposta aos rigores do tempo, caminha para a
lapa do Rio São Francisco.
Aí estabeleceu sua morada, vivendo como anacoreta, longe
do mundo, entregue à meditação e à maceração do corpo. Seu
leito era de pedra; sua alimentação consistia em legumes.
Mas, na maravilhosa lapa em que vivia, transformada
anos antes em santuário da Virgem da Soledade, não pôde

26. Cf. Dom Domingos de Loreto Couto, Op. cit., vol 1, livro 4, cap. 9, pp. 257–62.

91
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

o Servo de Deus esquivar-se ao trato com os homens. Era


tão apurado o seu espírito de paciência e mansidão que,
certa vez, recebendo de um clérigo os mais grosseiros in-
sultos, não se alterou o santo sacerdote, aceitando a humi-
lhação com toda a serenidade.

***

Muitos eram os milagres que se operavam naquele san-


tuário e, por isso, os forasteiros indo de Minas para a Bahia
e Pernambuco, preferiam passar junto da lapa, por um ca-
minho novo que abriram para encurtar a viagem. Todos, aí
chegando, queriam ver o santo solitário. Quebrada, assim,
a solidão desse deserto, tratou Pe. Caetano de transferir a
sua residência.
Consultando o seu confessor, aconselhou-o este a
entrar para a Ordem de São Bruno (cartuxa). Com esse
propósito seguiu o Servo de Deus para a Bahia, e, não en-
contrando na cidade do Salvador nenhum navio prestes a
partir, embrenhou-se num bosque, fugindo da convivência
dos seus parentes nobres e ricos. Aí esteve até a chegada da
embarcação que o transportou a Portugal.
Em 1718, por cartas que dirigiu a sua mãe e a um religioso
carmelita, sem dizer por que deixara de entrar na Ordem dos
Cartuxos, manifestava o propósito de servir em um hospital.
Em Portugal, prosseguiu fazendo ao Céu copiosos ser-
viços até o ano de 1723, que foi o de sua ditosa morte, na
qual com muitos sinais de salvação coroou os merecimen-
tos da vida.

92
PADRE SIMÃO COELHO27
(† 1741)

As poucas coisas que conseguimos saber da vida e virtudes


de Simão Nunes Coelho, sacerdote secular e irmão terceiro
franciscano, basta para que possamos julgá-lo um verda-
deiro Servo de Deus. Este era o pensar unânime dos seus
contemporâneos, que o buscavam nas horas de amargura e
seguiam os seus conselhos, venerando-o como santo.

***

Nascido em Ipojuca, território de Pernambuco, teve o


Servo de Deus por pais Simão Álvaro de Souza e dona Iza-
bel Coelho Machado. Muito piedoso desde menino, e com
decidida vocação para o sacerdócio, recebeu o presbiterato,
e, daí por diante, dedicou toda a sua existência à santifica-
ção da sua alma e bem do próximo.
Aprisionado pelos piratas, suportou humilhante e dolo-
roso cativeiro por muitos anos, só conseguindo a liberdade
à custa de ingentes sacrifícios. O tempo que lhe sobrava das
ações caridosas, em socorro aos enfermos, aos desvalidos da
fortuna e a encaminhar as almas pelo caminho da virtude,
empregava-o Pe. Simão nos mais fervorosos colóquios com
Jesus Sacramentado.

***

Saía ele todos os dias, à hora do sol a pino, com a cabe-


ça descoberta, a bater de porta em porta, pedindo esmolas

27. Cf. Frei Jaboatão, Op. cit., vol. II, parte II, cap. XXX, pp. 473 e 474, e Enciclopédia
e Dicionário Internacional.

93
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

para mandar celebrar sufrágios pelas almas do Purgatório.


Humílimo como era, comprazia-se em receber afrontas.
Amigo do silêncio, só falava quando necessário, e às per-
guntas curiosas respondia com uma inclinação de cabeça.
A sua caridade ia a ponto de não permitir que em sua pre-
sença se dissesse nenhuma palavra em detrimento a honra
e boa fama do próximo.
Além do uso contínuo dos cilícios e disciplinas, jejuava
o Pe. Simão amiúde, dormindo pouco, sobre uma estreita
tábua de cinco palmos de comprimento, servindo-lhe de
travesseiro um duro cepo.
Deus concedeu-lhe, entre outros, o dom de penetrar os
segredos dos corações.

***

A última enfermidade do Pe. Simão Coelho fê-lo sofrer


muitíssimo, dando ele, mais uma vez, eloquente demons-
tração de quanto tinha arraigado em sua alma as virtudes
da paciência e resignação.
Faleceu este santo sacerdote na cidade de Recife, a 20
de dezembro de 1741, sendo sepultado na Igreja do Orató-
rio de São Felipe Néri.

94
JOANA DE JESUS28
(† 1754)

Esta célebre penitente, de


cor parda, nasceu em Recife,
Pernambuco. Não tendo re-
cebido de seus pobres pais a
necessária educação religiosa,
Joana de Jesus, tornando-se
moça e desamparada, viveu
alguns anos entregue a uma
vida impura.
Mudando-se para a vila de Goiana, aconteceu entrar
numa igreja, onde pregava missão o Pe. Gabriel Malagrida.
As palavras do santo jesuíta penetraram no coração da pe-
cadora e operaram a sua conversão.
Com uma confissão geral, verdadeira contrição e pro-
pósito firme de nunca mais ofender a Deus, desbaratou em
um só conflito todo o infernal exército das suas culpas; e
com uso dos Sacramentos e exercício de penitência des-
truiu as depravadas inclinações da natureza.
Atendendo-lhe as súplicas, o Pe. Miguel Rodrigues de
Sepúlveda, fundador e administrador do Recolhimento da
vila de Igarassu, admitiu-a como doméstica no mesmo ins-
tituto. Julgando-se indigna de habitar com as demais reco-
lhidas, com suas próprias mãos a Serva de Deus edificou
uma casinha de taipa, junto do edifício do Recolhimento, e
aí passava as noites.

28. Vide Dom Domingos de Loureto Couto, obr. cit. vol. 2°, livr. 7°, cap. 10°,
pp. 147–149.

95
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Praticou sempre as mais rigorosas mortificações. Cin-


giam-lhe o corpo vários cilícios e diariamente disciplina-
va-se. Dormia sobre o chão, com a cabeça apoiada a um
tosco madeiro.
Além de muitas demonstrações de seu amor a Nossa
Senhora, não podia Joana ouvir pronunciar o seu sagrado
nome sem cair logo com os dois joelhos em terra.
Atacada de hidropisia, muito padeceu a venerável pe-
nitente, nunca se lhe tendo ouvido uma queixa, ou notado
sequer um sinal de impaciência.
No dia 11 de janeiro de 1754, sábado, quando todos a
supunham pior de sua moléstia, levantou-se Joana de Jesus,
indo juntar-se às outras recolhidas para cantar o ofício de
Nossa Senhora. Com o rosto revestido de rara beleza e os
sinais de mais viva alegria, empregou a Serva de Deus todo
esse dia em entoar louvores a Deus e a Maria Santíssima.
Assombradas as Recolhidas com sucesso tão maravilho-
so, lhe perguntavam pela causa de tão repentina melhora, e
pelo motivo de tanto prazer; ao que respondia: porque lhe
concedia Deus a morte para descanso dos trabalhos da vida
temporal, e que não era razão que estivesse triste, quando
lograva a seguridade da glória, e nela todas as felicidades,
cujo contentamento alentava de tal modo o seu espírito, que
pôde vencer a fraqueza do corpo. Toda noite de sábado pas-
sava em contemplações celestes abrasada nos incêndios do
amor divino, e, como eram excessivas as chamas que estavam
ateadas no seu coração, no rosto reverberavam as suas luzes.
Os últimos Sacramentos foram-lhe administrados às 6
horas da manhã de domingo. Depois, até às 3 horas da tar-
de, em que faleceu, passou em colóquio com Jesus Crucifi-
cado e Nossa Senhora, assim terminando a sua edificante
vida de santa penitente.
Seu corpo tornou-se flexível e o rosto de uma beleza
surpreendente.

96
JOANA DE JESUS († 1754)

***

Muitos meses após sua morte, sentiu-se na casinha em


que habitava um cheiro tão suave, que excedia ao dos aro-
mas e flores mais fragantes.

97
SOROR JACINTA DE SÃO JOSÉ29
(1715–1768)

A 15 de outubro de 1715, nasceu no Rio de Janeiro a


Serva de Deus Jacinta de São José. Seus pais, José Ro-
drigues Aires e dona Maria Lemos Pereira, piedosamen-
te a educaram. Jacinta desde menina demonstrou o mais
elevado pendor para as coisas celestiais, tornando-se alvo
da estima e veneração de todos quantos com ela convi-
viam.
Cresceu-lhe com a idade o fervor de voltar-se a
Deus; cedo compreendeu José Rodrigues Aires as pie-
dosas inclinações que demonstrava a sua filha, e longe
de contrariá-la, condescendeu com as suas súplicas e
lhe deu de presente uns cilícios. Animada pela condes-
cendência paterna, entregou-se de todo ao exercício da
penitência. Desde então muitas vezes a surpreenderam
a se martirizar com as disciplinas, que ainda hoje se con-
servam em sua cela, no seu convento. Corria depois a via
sacra, coroada de espinhos e curvada ao peso da cruz que
levava aos ombros, parte de qual ainda subsiste.
Entretanto, sua mãe que se preocupava muitíssimo ao
ver a delicada menina ausentar-se de sua presença, para em
lugar retirado se entregar durante horas à prece e à mortifi-
cação, procurava dissuadi-la desse procedimento, talvez por
julgá-lo excessivo em tão verdes anos.
Muita vezes ia sua mãe surpreendê-la, e então lhe ar-
rancava das mãos ensanguentadas os instrumentos da
penitência.

29. Cf. J. Norberto, Brasileiras Célebres, pp. 100–118.

98
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Desde os onze anos de idade, sofreu Jacinta de graves


moléstias, sempre paciente e resignada com a vontade de
Deus, e sem nunca abandonar os seus exercícios de piedade
e mortificação.

***

Tendo falecido seu pai e passando sua mãe a segundas


núpcias, pôde a santa donzela entregar-se sem mais entra-
ves à prática de suas devoções. Atraída para a vida do claus-
tro, tratou Jacinta de adquirir, com o auxílio de um seu tio,
a chácara da Bica, contígua ao monte da capela da Senhora
do Desterro, e dela tomou posse no mês de março de 1742,
e na madrugada de 27 do mesmo mês se retirou para lá,
levando consigo a imagem do Menino Deus. E em com-
panhia de sua virtuosa irmã Francisca, aí ficou residente.
Trataram então, as duas Servas de Deus, de erigir uma
capela em honra de Jesus-Menino, e, com produto da ven-
da das joias de Jacinta, foi iniciada a construção almejada.
Difundiu-se logo, diz o historiador Baltasar da Silva Lis-
boa, por toda a cidade o suave aroma das virtudes daquelas
Servas de Deus, que causou tão agradável sensação ao gover-
nador Gomes Freire de Andrade, o exemplo dos bons gover-
nadores, que se lhe acendeu no espírito eficazmente proteger
aos seus pios desejos, ajudando a levantar a capela, dando-lhe
uma mesada, que José Gonçalves (irmão de ambas) ia rece-
ber do brigadeiro Alpoim. Suscitaram-se, como é de costu-
me, contradições e dificuldades na recepção das esmolas, fa-
zendo-se necessário ir o próprio José Gonçalves recebê-las,
dizendo-se-lhe que o general a havia de ajudar e confiassem
em Deus, que ele pagaria por junto. Não pararam as obras
da capela, e o bispo Dom Frei João da Cruz deu a autori-
zação conveniente, parecendo milagroso o adiantamento, e
tal a atividade de Jacinta na sua conclusão, que até o próprio

99
SOROR JACINTA DE SÃO JOSÉ (1715–1768)

trabalho aumentava, indo nas tardes frescas e nas noites de


luar com sua irmã carregar pedras em companhia do referido
José Gonçalves, este em carrinho, seus escravos à cabeça, e Ja-
cinta e Francisca em um saco, conforme podiam.
Essa capela se inaugurou a 31 de dezembro de 1743.

***

Aumentando o número de donzelas que desejavam se-


guir o exemplo da Serva de Deus, tratou esta da edificação
de um convento que pudesse comportá-las. Pediu, então,
Jacinta a proteção do conde de Bobadela, que, de boa von-
tade se entendeu com o prelado diocesano, para levarem a
efeito a nova edificação.
Iniciou-se logo a construção do convento e, quando já
se achava concluída uma parte do mesmo, aí se tranferiram
a irmã Jacinta e suas companheiras, a 24 de julho de 1751.

***

Querendo adotar para si e a comunidade que dirigia a


regra de Santa Teresa de Jesus, em vez da de Santa Clara,
como desejava que elas praticassem, o bispo Dom Frei João
da Cruz enviou a santa religiosa para Portugal, a fim de
pedir os bons ofícios do Rei D. José I, com quem pretendia
amparar a sua pretensão junto da Santa Sé.
Saindo do Rio de Janeiro a 14 de novembro de 1753,
chegou depois de feliz viagem a Lisboa, juntamente com
seu irmão, o Pe. Sebastião Rodrigues Aires e mais dois
sacerdotes. Foi Jacinta apresentada ao rei, que a recebeu
muito bem, prometendo-lhe auxiliá-la.
Impetrando a Serva de Deus ao Sumo Pontífice a bula
de autorização das regras de Santa Teresa para o seu con-
vento, o Papa Bento XIV lha concedeu a 22 de dezembro

100
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

de 1755. Vendo coroado de pleno êxito o seu trabalho, re-


gressou Jacinta para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro, a
17 de abril de 1756.
As obras do convento prosseguiram daí por diante ani-
madamente, e estava a Serva de Deus pronta para com suas
companheiras fazer a solene profissão religiosa, quando o
anjo da morte veio cortar o fio de sua existência.
A 2 de outubro de 1768, faleceu santamente a fun-
dadora das carmelitas descalças do Rio de Janeiro, a feliz
criatura a quem Deus cumulara de dons de virtudes e de
milagres, Madre Jacinta de São José.

101
MADRE HELENA
(1736–1775)

Dentre as santas monjas que mais enalteceram os claus-


tros brasileiros, podemos nomear madre Helena Maria do
Espírito Santo, a quem Deus inspirou a fundação de um
mosteiro em São Paulo,30 e cujo entendimento das coisas
espirituais era tão profundo, que Frei Antônio de Sant’Ana
Galvão chegou a afirmar: “Sua sabedoria mais parece divi-
na do que humana”.31
A pena que se propôs a suave tarefa de reavivar nas pá-
ginas de um livro a memória de tantos brasileiros que me-
receram a denominação de santos, vai agora narrar a vida e
as virtudes desta nossa eminente compatriota, predestinada
pelo Criador para a excelsitude da Glória.

***

A 2 maio de 1736, no sítio de seu pais Francisco Vieira


Calassa e dona Maria Leme, em Apiaí (capitania de São Paulo),
nasceu Helena. Sobre a casa de Calassa, naquela noite sere-
na e estrelada, os vizinhos observaram um fenômeno, que
os encheu de assombro: uma nuvem branca, muito branca,
pairava no espaço, contornando a vivenda abençoada, que
os vagidos de Helena enchiam de intenso júbilo.
30. “Convento da Luz” é como o povo se habituou a chamar o mosteiro fundado
por madre Helena e Frei Galvão, pelo motivo de se achar esse pio instituto erigido
no local onde antigamente existiu a ermida de Nossa Senhora da Luz. Em nota
ao capítulo que dedicamos a Frei Antônio Galvão, tratamos minuciosamente desse
assunto, demonstrando qual a verdadeira denominação desse instituto.
31. Cf. manuscrito de Fr. Antônio de Sant’Ana Galvão: “Relação breve e sucinta
da Serva de Deus Helena Maria do Esp. S., fundadora do novo Recolhimento de
N. Sr. da Cons. Da Divina Provid. e falecida na mesma casa de sua fundação, com
grandes créditos de virtude” (doc. do arquivo da mesma instituição).

102
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Movidos de curiosidade, no dia seguinte, acompa-


nhando o lavrador Francisco de Paiva, homem fidedigno
e bom católico,32 foram visitar a casa de Calassa certos de
que o fenômeno observado na noite anterior anunciava
uma graça enviada por Deus àquele lar cristão. Disfarçan-
do o motivo da visita, perguntaram a Calassa se havia ali
alguma novidade, e quando o ditoso pai lhes comunicou
o nascimento de Helena, exatamente à hora em que ob-
servaram o fenômeno da noite precedente,33 logo se con-
venceram de que à recém-nascida estavam reservados os
favores do Céu.
Tudo contaram, então, aos pais da inocente criancinha,
e, quando esta lhe foi apresentada, exclamaram cheios de
contentamento: “Parece que esta menina há de ser uma
grande mulher!”34

***

Algumas notícias já publicadas referentes à madre He-


lena dão erradamente o seu nascimento como ocorrido em
22 de maio de 1740.
Agora podemos esclarecer este ponto, servindo-nos de
um documento do máximo valor: a certidão do seu batis-
mo, encontrada há poucos meses, pela veneranda abadessa
madre Maria Benedita, após rigorosa busca no arquivo do
seu mosteiro.
***

Desde os primeiros dias do seu nascimento, demons-


trou a Serva de Deus quanto havia de brilhar em virtude,
32. Cf. manuscrito: “Notícia da fundação deste Recolhimento e da vida da sua
fundadora” (doc. do arquivo já cit.).
33. Cf. carta endereçada a Fr. Antônio de Sant’Ana Galvão, a 18 de julho de 1783,
por dona Maria Ferreira de Jesus, residente em Paranapanema (doc. do arquivo cit.).
34. Ibidem.

103
MADRE HELENA (1736–1775)

particularmente no espírito de mortificação. Nos dias as-


sinalados pela Igreja para se jejuar, e mesmo nas sextas-
-feiras e sábados, Helena só aceitava o peito uma vez por
dia, ainda que sua mãe instasse com ela mais vezes.35 Logo
depois do seu nascimento, seus pais fixaram residência em
Paranapanema. Aí, à medida que ia crescendo, continuava
a angélica menina a dar indícios da sua “futura santidade”.36
Era muito diferente das outras meninas de sua idade;
muito devota de Nossa Senhora, muito humilde, obediente
e de muitas doces conversações.37
Contava Helena apenas sete anos quando teve de
acompanhar seus pais a uma descoberta de ouro, distante
muitas léguas de Paranapanema. Com tão pouca idade, já
era ela um portento de mortificação. Não podendo durante
a fatigante viagem – por duros caminhos através de inter-
mináveis florestas – fazer os seus habituais exercícios de
devoção, aproveitava as horas adiantadas da noite, em que
todos repousavam nos improvisados ranchos, para, no in-
terior da mata, disciplinar-se com rigor.38
No decorrer de sua infância e juventude, devido ao seu
nenhum temor em andar sozinha pelas selvas, quer fos-
se dia ou noite, a fim de mais livremente entregar-se aos
colóquios com Deus, aconteceu encontrar-se Helena com
muitos animais ferozes, sem que desses encontros lhe tives-
sem resultado qualquer dano.
Certa vez, ao penetrar na mata, defrontou com uma
onça enfurecida. Helena fitou o animal sem o mínimo te-
mor, pronunciando o nome de Jesus, e assim conseguindo
afugentar a fera.39

35. Cf. “Notícia da fundação, etc.,” já cit.


36. Cf. Fr. Antônio Galvão, doc. cit.
37. Cf. carta de dona Maria Ferreira de Jesus, já cit.
38. Cf. Fr. Antônio Galvão, doc. cit.
39. Ibidem.

104
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Não sabemos se Helena era já moça, ou ainda criança,


quando se deu o caso extraordinário que vamos narrar.
Cansada de longa viagem sob um sol abrasador, sentiu
a nossa heroína as torturas da sede. Nenhum rumor de ca-
choeira ou murmúrio de regato quebrando o silêncio deso-
lador daquelas paragens; investigando com o olhar toda a
região que a circundava, não lograra a santa donzela divisar
um tênue fio de água, ou gotejar de pequenina nascente;
por toda a parte era a terra tórrida.
Quase desfalecida, prestes a sucumbir presa de tamanha
angústia, Helena eleva o coração a Deus, invocando a sua mi-
sericórdia. No mesmo instante aparece um mancebo formo-
síssimo, que lhe oferece uma vasilha de água cristalina e fresca.
Ela recebe o inesperado presente que o Céu lhe enviava, bebe
sofregante e sente que lhe renasce a energia perdida.
Procura o generoso jovem para restituir-lhe a vasilha e
agradecer-lhe tamanho socorro, mas o seu misterioso sal-
vador tinha desaparecido.
E desde aquele momento até o último de sua existência,
nunca mais sentia sede a santa criatura, que, entre os es-
plendores da graça, trilhava o caminho da perfeição cristã.40

***

Em 1755, contando a Serva de Deus 19 anos, veio para o


Recolhimento de Santa Teresa, em São Paulo, na qualidade
de moça servente, por ser muito pobre. Nesse pio insti-
tuto foi-se adiantando a santa donzela de tal modo nos
exercícios de perfeição evangélica, que à toda comunidade
edificava com o irrepreensível desempenho dos seus de-
veres achando ainda tempo para se entregar à prática de
múltiplos atos de piedade e mortificação.

40. Cf. “Notícias da fundação, etc.”, já cit.

105
MADRE HELENA (1736–1775)

A sua devoção por Jesus-Hóstia a todos encantava. Ao


receber a sagrada Partícula e durante a ação de graças, de-
monstrou sempre singular fervor.
Das suas longas horas de oração, assim como das suas
mortificações e preciosíssimos dons com que Deus en-
riqueceu sua alma, o leitor terá notícias mais adiante, na
transcrição das suas próprias palavras, escritas por ordem
do seu santo confessor.
Possuía a Serva de Deus o dom de êxtase. A caridade
que sentia em seu coração a transportava muitas vezes pu-
blicamente fora dos sentidos.41
Usava a santa donzela as mais grosseiras vestes, e tal
era o seu espírito de pobreza e desprendimento dos bens
terrestres, que rejeitava as esmolas que lhe ofereciam as
pessoas devotas e os seus próprios confessores.42
Durante quinze anos foi seu confessor o virtuoso padre
Dr. Manuel José de Vaz,43 ilustre sacerdote, que em São
Paulo ocupou altos cargos na hierarquia eclesiástica.44 Ten-
do particularíssimo conhecimento da grandiosidade e soli-
dez das virtudes de Helena e prevendo quanto bem pode-
ria ela fazer à comunidade de Santa Teresa, como religiosa,
ofereceu-lhe o Pe. Vaz o dote necessário, o qual consistiu
em uma morada de casas, avaliadas por seiscentos mil réis.45
Assim pôde Helena entrar para o noviciado, o que
se realizou a 25 de janeiro de 1769. Decorrido um ano,
a 25 de janeiro de 1770, proferiu os votos regulamentares.46
Deixou assim a Serva de Deus a modestíssima condição de
“moça servente” das religiosas, na qual sempre se manteve

41. Cf. frei Antônio Galvão, doc. cit.


42. Ibidem.
43. Ibidem.
44. Doc. do arquivo da Cúria Metrop. de S. Paulo.
45. Vide “Livro de Registro de Religiosas do Recolhimento de Santa Tereza”.
46. Ibidem.

106
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

com alegria em seu coração, por ser o ofício de servente o


mais humilde entre elas.47
Era seu confessor nesse tempo o Servo de Deus Fr.
Antônio de Sant’Ana Galvão48, cuja santidade de vida já
nessa época os paulistas admiravam. Vejamos, pois, o que
nos diz esse venerável religioso sobre a extrema modéstia
de madre Helena:
“Era admirável na compostura dos olhos, que por nun-
ca os levantar não conhecia o confessor senão pela fala, o
que pela experiência que tive, observei sem a mínima exa-
geração.”49
Depois que Helena se tornou religiosa, começou Nosso
Senhor a lhe conceder várias revelações para que ela fun-
dasse um convento.
De tudo dava ela contas ao seu pai espiritual. E, como
critério e prudência de que era dotado, e o perfeito conhe-
cimento da teologia , ia Frei Galvão estudando os casos
que madre Helena lhe narrava, aguardando o momento
oportuno para decidir em tão delicado assunto. Continuava
madre Helena a esperar pacientemente pela resolução do
diretor de sua alma, a fim de poder cumprir com as deter-
minações divinas.
Como remate às revelações, Nosso Senhor Jesus Cristo
se dignou de lhe aparecer um dia rodeado de ovelhas, umas
nos braços, outras pelos ombros, outras tentando subir pelo
seu Corpo, e lhe disse:
— Eis aqui estas minhas ovelhas que procuram um
aprisco para se recolher e não o encontram, pois vós, po-
dendo, não quereis subministrar-lhes um, fundando um
convento em cumprimento de minha vontade.50

47. Cf. “Notícias da fundação, etc.”, já cit.


48. Cf. frei Antônio Galvão, doc. cit.
49. Cf. “Notícias da fundação, etc.”, já cit.
50. Ibidem.

107
MADRE HELENA (1736–1775)

Sabedor do caso, Frei Galvão, após estudá-lo madura-


mente, julgou-o sobrenatural, comunicando-o ao governa-
dor do bispado, cônego Toledo Lara, que incumbiu outros
mestres eclesiásticos51 de darem a sua opinião. Estes exa-
minaram todas as revelações que madre Helena recebera,
concluindo por julgá-las divinas.
Com o consentimento e instruções do seu confessor,
que se dispusera a arcar com a responsabilidade da arrojada
empresa, começou o Serva de Deus a dar os primeiros pas-
sos para a fundação do novo convento.
Depois de obtida a permissão da autoridade eclesiásti-
ca, era necessária ainda a autorização do governo civil, para
que se pudesse fundar a projetada instituição. Assim sendo,
Helena, em 14 de novembro de 1773, enviou, ao governa-
dor da capitania de São Paulo, capitão-general Dom Luiz
Antônio de Souza, por intermédio de Frei Galvão, uma
carta que bem revela as heroicas virtudes da Serva de Deus.
A 25 de dezembro do mesmo ano, o capitão-general
respondeu à madre Helena, em extensa e atenciosa car-
ta, concedendo-lhe a licença solicitada e desejando que a
dita instituição tomasse por protetora a Nossa Senhora
dos Prazeres, que já era padroeira da sua Casa de Mateus,
em Portugal; bem como que houvesse na capela do novo
convento a adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento.52
Por essa resposta vê-se claramente que o ilustre homem
que governava São Paulo era católico fervoroso e de ação.
Para que se tornasse logo realidade o ideal de madre
Helena, prontificou-se também o governador a fazer todas
as despesas com a adaptação dos edifícios em que devia se
instalar a nova comunidade.
Ao demônio não podia passar despercebido o favorá-
vel despacho que tiveram as petições da santa religiosa, e,

51. Ibidem.
52. Cf. Frei Antônio Galvão, doc. cit.

108
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

prevendo a guerra sem tréguas que lhe iriam fazer as


monjas do novo mosteiro, começou a aparecer à Serva de
Deus, em horrendas formas, para que ela desistisse de levar
adiante a almejada fundação. Já de outras vezes se lhe tinha
manifestado, tomando a forma de seus confessores mas
pelo discernimento grande de que era dotada e auxílios do
Céu, nunca o demônio a iludiu, e sempre dele triunfou.53

***

Corria o ano de 1774, quando, a 2 de fevereiro, antes


que os raios do sol rompendo as nuvens iluminassem a ter-
ra, já se achava à portaria do Recolhimento de Santa Te-
resa ilustre comitiva, formada do governo do bispo cônego
Antônio de Toledo Lara, o governador da capitania, capi-
tão-general Dom Luiz de Souza, o ouvidor José Gomes,
o cura da sé, Pe. José Xavier, Frei Antônio de Sant’Ana
Galvão e mais pessoas de destaque na sociedade paulista-
na. Acompanhados até a portaria pela madre regente desse
convento, daí se retiraram madre Helena e sua sobrinha, a
irmã Ana da Conceição, tomando assento em duas cadeiri-
nhas. Depois seguiram todos, em demanda do sítio da Luz.
Aí chegados, Dom Luiz Antonio entregou ao veneran-
do Frei Galvão as chaves da ermida de Nossa Senhora e da
casa anexa, onde ficaram residindo as religiosas, regressan-
do a comitiva à cidade, rumo da catedral, a fim de tomar
parte nas festividades da Purificação.54 Estava fundado o
novo mosteiro.
A 8 de setembro desse mesmo ano, o bispo de S. Paulo,
dom Fr. Manoel da Ressurreição impôs o hábito de Nos-
sa Senhora da Conceição não só à madre Helena e sua

53. Cf. “Notícias da fundação, etc.”, já cit.


54. Cf. “Notícias da fundação, etc.”, já cit.

109
MADRE HELENA (1736–1775)

sobrinha, como também a mais sete donzelas que já tinham


entrado para o noviciado, ficando assim a comunidade
composta de nove religiosas, sob a regência da fundadora.
Oito dias depois, mandou o mesmo prelado ao guardião
dos franciscanos, Fr. Fernando, que recebesse a profissão de
madre Helena, realizando-se nesse dia as festividades em
honra de Nossa Senhora, correndo as despesas por conta
do governador da capitania.

***

Como Santa Teresa de Jesus e outras santas, também


madre Helena foi obrigada, em obediência ao seu confes-
sor, a escrever a sua vida espiritual. E para que sua alma
verdadeiramente humilde não sofresse nenhum constran-
gimento, em descrever os dons com que Nosso Senhor a
agraciara, disse-lhe Frei Galvão estas palavras:
— Irmã, isto é para eu aprovar, ou reprovar, conforme
me parecer melhor.55
Então a santa monja, com a simplicidade e candura de
uma criancinha, deu cumprimento ao que o diretor de sua
alma lhe ordenava, descrevendo sua opulenta vida interior.
Fez madre Helena também a discriminação das suas devo-
ções, como por exemplo, do Rosário da Virgem, dizendo
minuciosamente quais as intenções por que rezava. E con-
tinua: “Jejuo cada dia, domingos e dias santos, e os ofere-
ço pelo que me parece (…), o mais deles é pelos pecados
do mundo, em particular pelos da gula, para que Deus me
livre, e (…) peço virtude de abstinência, e obediência. To-
mava disciplina todos os dias, por espaço de três Miserere;56
primeiro pelos que estão em pecado mortal, o segun-
do pela necessidades da Igreja, o terceiro pelas almas do

55. Ibidem.
56. O Salmo 50 (51).

110
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Purgatório (…), nomeio aquelas que quero. Trazia cilícios


todos os dias por alguns anos, sem tirar de dia, nem de noi-
te, dormia na terra sem mais forro nem coberta que a roupa
do corpo, depois na tábua do sobrado, agora algumas vezes
na cama, que não parece uma cama: outras mortificações
por tempos e dias diferentes, de não comer nada um dia in-
teiro, um , dois e três; até cinco já chegou, e em alguns dias
mais devotos, como de Quaresma, dias ou festas de Nossa
Senhora, do Espírito Santo, alguns santos mais de minha
devoção, que são muitos no ano, aumentava e dobrava mais
todas as devoções e mortificações.
“Como não me concediam andar descalça, como dese-
java, e algumas vezes andava, quando me calçava era com
pedrinhas entre os sapatos, coroas de espinhos, cordas de
sedenho, cruz e espinhos, para vários exercícios, com mais
ou menos genuflexões, prostrações, andar de rastos, pela
cela, ou coro, (…) outras vezes com bofetadas, que quando
eu não sentia me ficavam as faces denegridas, que supu-
nham melancolias, e batendo no peito como ainda agora
faço, que algumas vezes parecia que quebrava o peito com
a força da dor, que pouco mais ou menos sempre a tenho, e
quanto mais tenho mais desejo ter para amar mais, e mais a
Deus, tudo para a Sua glória e honra, para que seja cada vez
mais honrado e engrandecido por Suas criaturas.
“Comungo todos os dias, como não sei dizer, cento e
cinquenta vezes pouco mais ou menos, espiritualmente
com outros tantos atos, antes, e depois de cada uma das
vezes (…).
“Os atos não me detenho de dividir quais são: por se-
rem muitos e os mais próprios para receber, e em ação de
graças, que às vezes no primeiro se repetem todos juntos,
de uma vez, e outros muitos de virtudes diversas diferen-
tes mistérios da Vida, Paixão, Morte, Ressurreição, Ascen-
são, do Espírito Santo, de Nossa Senhora e mais atributos

111
MADRE HELENA (1736–1775)

divinos e humanos; faço quarentenas, dezenas, novenas,


trezenas e outras muitas novenas que não posso dizer todas
as vezes, atos, e miudezas, com que as faço; por que só a da
Conceição há de acabar papel se eu me puser a explicar, e
assim faço mais ou menos em outras festividades, nove-
nas das solenidades das mais festas, renovando os votos, e
devoções, e acrescentando outras muitas orações agora na
Quaresma (…).
“Do Ofício Divino – Não sei como entro a falar em
coisa que só o nome me enche a alma de consolação; e cada
palavra dele é como um botão, ou chama de fogo, que arde,
ou se ascende na minha alma e coração, que me faz como
ressuscitar da morte à vida, me sustenta, me alegra, e me
consola, me faz como sarar (…).
“No primeiro noturno57 tenho oferecido a toda a San-
tíssima Trindade em ação de graças por aquele amor eter-
no, e infinito, com que nos amou desde a Eternidade, ama
e amará para sempre, para sempre”.58
A gravíssima enfermidade que acometeu a Serva de
Deus e pôs termo aos seus preciosos dias, foi motivo para
ela deixar por terminar o seu manuscrito, que, concluído,
nos revelaria ainda mais os inapreciáveis tesouros de sua
alma.

***

A 23 de fevereiro de 1775, com a idade de 40 anos in-


completos, depois de receber todos os Sacramentos, tendo
sofrido durante oito dias uma dor aguda, como de cólica,59
faleceu santamente madre Helena Maria do Espírito Santo.

57. Os noturnos são cada uma das três divisões da hora das Matinas no Ofício
Divino.
58. Ibidem.
59. Cf. Frei Antônio Galvão, doc. cit.

112
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Sua morte felicíssima foi assistida por suas amadas discí-


pulas e por seu confessor, que nos afirma que ela deu alguns
indícios de sua morte; nela se conheceram aqueles mesmo
sinais que a história de alguns santos fazem admiráveis.60
No dia seguinte, em que se realizou o sepultamento da
santa monja, seu corpo se conservava flexível. Seus dedos
estralavam, quando se os comprimiam.
“Eu mesmo”, disse frei Galvão, “com a máxima diligên-
cia, dei 35 estralos nos referidos dedos, e tão altos, que fo-
ram ouvidos por todos que se achavam na igreja: o sangue
de uma cissura que se fez 8 horas depois do seu trânsito,
sem ser em veia, saiu fluido; dele se serviu a piedosa devo-
ção dos circunstantes, e de algumas relíquias que se pude-
ram decorosamente extrair”.61

***

A 10 de maio de 1788, foram transladados para o novo


edifício do mosteiro, já quase concluído pela operosidade
sem limites de Frei Antônio Galvão, os osso de madre He-
lena, os quais, com licença de dom Fr. Manuel da Ressur-
reição, foram desenterrados pelas próprias monjas e depois
colocados em um esquife por Frei Galvão.
Mais tarde, porém, foram aqueles preciosos restos mor-
tais encerrados em uma urna de mármore, como estão até
nossos dias conservados pelas continuadoras da sua obra,
as freiras do Convento de Nossa Senhora da Conceição.
Pena é que se não tenham registrado e autenticado os
milagres recebidos por intercessão de madre Helena, logo
após a sua morte. Sabemos que Nosso Senhor atendeu aos
que Lhe pediram graças por intermédio da nossa heroína,
porque disto nos fala Frei Galvão, assim se exprimindo:

60. Ibidem.
61. Ibidem.

113
MADRE HELENA (1736–1775)

“Dizem que tem feito muitos prodígios, eu sou testemunha


de vários, porém de um com admiração notável”.62

***

Em pouco mais de um ano que a Serva de Deus dirigiu


o novo convento, teve oportunidade de desenvolver toda a
sua aptidão de mestra espiritual, encaminhando suas discí-
pulas pelo mais seguro caminho da santidade, formando-
-lhes a alma e o coração, segundo os preceitos evangélicos,
para que elas se tornassem dignas de corresponder à voca-
ção que Deus lhes concedera; e até hoje, as religiosas do
seu mosteiro conservam o mesmo espírito de piedade, e se-
guem os seus passos sustentados sempre pela fé, que vivifi-
ca, pela esperança, que anima, e pela caridade, que conforta.
E aqui terminamos este capítulo, bendizendo a memó-
ria imperecível de madre Helena Maria do Espírito Santo.

62. Ibidem.

114
FREI GALVÃO63
(1739–1822)

Tendo ocorrido, a 23 de de-


zembro de 1922, o primeiro
centenário da morte de Frei
Antônio de Sant’Ana Galvão,
os católicos de São Paulo co-
memoraram brilhantemente
essa data.
Mas, qual o motivo de tais
homenagens? Vejamos. Se é
grande e merece a gratidão dos seus compatriotas, o esta-
dista que com mão firme governou uma nação, felicitando-
-a; ou o general, que heroicamente defendeu a terra que lhe
foi berço; ou o sábio que fez ecoar bem longe a fama do seu
saber, enaltecendo, assim, o nome de sua pátria; também é
grande, e maior que esses, e por isso mesmo mais digno do
nosso reconhecimento, o homem em cuja fronte esplende a
auréola de um santo e infatigável benfeitor da humanidade.
Ele é o “sal da terra e a luz do mundo” (Mt 5,13 e 14).
Assim foi certamente Frei Galvão, cuja biografia, embo-
ra imperfeitamente, traçaremos no decorrer deste capítulo.

***

63. Para a composição do presente capítulo, nos aproveitamos, em grande parte, do


que sobre a personalidade venerável do Frei Antônio de Sant’Ana Galvão havíamos
publicado em diversos números do “Correio Paulistano” (seção religiosa) de fins de
outubro e começo de novembro de 1921, e na polianteia que se distribuiu a 23 de
dezembro de 1922, em comemoração do 1° centenário da morte de tão valoroso
Servo de Deus.

115
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, que no século se


chamou Antonio Galvão de França, nasceu na então vila de
Guaratinguetá, capitania de São Paulo, em cuja matriz foi
batizado no ano de 1739. Foram seus pais Antonio Galvão
de França, natural de Portugal, capitão-mor de Pindamo-
nhangaba e Guaratinguetá, com foro de cavaleiro, e dona
Izabel Leite de Barros, natural da mesma vila.
Ainda menino, contando apenas treze anos, deixou a
casa paterna, seguindo para a Bahia, onde foi internado
no modelar seminário que a Companhia de Jesus fundara
havia 66 anos em Belém,64 para onde as principais famí-
lias brasileiras enviavam seus filhos, que ali recebiam sólida
instrução e aprimorada educação cristã.

***

Quando passamos da infância à juventude, quão dife-


rente se nos antolha a existência! Antes, é um gozar de rios
e brincos infantis, na venturosa despreocupação da vida.
Depois, à medida que os anos vêm chegando, vão desa-
parecendo, um por um, os devaneios, o contínuo voo do
pensamento pelas floridas regiões da fantasia. E então, o
64. O Seminário de Belém (Bahia) foi fundado em 1686, pelo célebre jesuíta
Alexandre de Gusmão, em cuja reitoria permaneceu até 25 de Março de 1724,
dia em que faleceu. Aqui julgamos oportunamente transcrever estas interessantes
referências sobre a “criação dos meninos”, no mesmo seminário: “vivem em clausura
ao som de campainha, com suma obediência (…), não há entre eles opiniões de
espíritos nobres ou timbres do mundo, todos são criados no espírito de Cristo.
Não usam de criados ou escravos nem de vestidos de seda; todos se servem a si,
e aos outros sem questão ou reparo. Todos os dias que cessam das classes, tem
práticas espirituais em que principalmente lhes intiman o temor, pureza de alma
e mais bons costumes, com a devoção à Nossa Senhora, e aos domingos se lhes
ensina a doutrina de Cristo. Todas as festas de Cristo e da Senhora comungam, e
não poucos frequentam a comunhão cada oito dias. As classes são dentro de casa,
nem se admitem nelas estudantes de fora (…), nem falam com eles, ou saem de
casa sem licença do reitor, que se não concede mais que rara vez a casa dos pais ou
semelhantes pessoas. Passam de quinhentos os meninos que neste seminário tem
entrado. Destes têm saído muitos para várias religiões (congregações religiosas)
e estado sacerdotal” – Pe. Alex. de Gusmão, “Rosa de Nazaré”, IV parte, cap. 4).

116
FREI GALVÃO (1739–1822)

jovem de sentimentos puros, educado na escola do Evan-


gelho, pensa seriamente no futuro, estuda as inclinações do
seu coração, medita e ora para que Deus o ilumine. Há
para ele várias carreiras a seguir, e, em qualquer delas, tem
o dever máximo de salvar a alma.
O jovem Antônio Galvão, depois de muito orar e me-
ditar, escolheu a do sacerdócio, que é o mais útil, o mais
nobre e o mais santo dos ministérios. As aspirações da sua
juventude forma sempre impregnadas de místicos perfu-
mes. Nunca o seduziu o amor terreno, embora espiritua-
lizado pela Religião. Nunca atingiu seus coração o sopro
das paixões carnais. Sua alma, qual formoso lírio, toda se
voltava para o Céu, donde recebia o orvalho da graça. Jesus
Cristo era o alvo de seu amor.
Suspirava o piedoso jovem pelo momento de deixar
para sempre o mundo com suas pompas e suas vaidades,
para viver na pobreza, na obediência e na castidade; para
pisar as lajes frias do claustro, onde continuamente dobra-
ria os joelhos a orar por seus irmãos.
Suspirava ainda pelo instante em que pudesse, encerra-
do no confessionário, estender a mão sagrada para perdoar
e abençoar os pecadores, reconciliando-os com Deus; em
subir à tribuna da verdade para doutrinar o povo; celebrar
o santo Sacrifício da Missa, enfim, a sua mais veemente e
santa aspiração.
A 15 de abril de 1760, contando 21 anos, entrou o
esperançoso jovem para o noviciado dos franciscanos, no
Convento de São Boaventura, de Macacu, capitania do Rio
de Janeiro, aí trocando as vestes do mundo pelo burel de
religioso.

117
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

A 16 de abril do ano seguinte, fez a solene profissão


religiosa, sendo depois transferida para o Convento de São
Francisco, em São Paulo, onde a 24 de julho de 1762, foi
admitido no curso de filosofia.
Concluído esse estudo, voltou para o Rio de Janeiro,
onde em 1763, com letras do provincial Fr. Manoel da En-
carnação, recebeu a ordem de presbítero, das mãos de dom
Fr. Antônio do Desterro.
Removido novamente para S. Paulo, ficou residindo no
convento de sua Ordem; e, daí por diante, a sua vida foi
um desdobrar ininterrupto de atos maravilhosos. Em pou-
co tempo, irradiando-se suas virtudes por toda a capitania,
de longínquas paragens acorriam os fiéis para com ele se
confessar, implorar suas orações, em busca de conselhos e
de conforto espiritual.

***

Vamos agora discorrer sobre a fundação do Recolhi-


mento de Nossa Senhora da Conceição – a obra máxima
do Servo de Deus. De tal maneira Frei Galvão ligou sua
existência ao novo mosteiro, que não podemos falar nessa
instituição, sem que o seu nome nos venha logo à memória;
bem como não podemos nos referir ao santo religioso sem
nos lembrarmos desse convento.
Falamos sobre madre Helena e a instalação provisória
da nova comunidade, assim se exprimiu o Servo de Deus:
“Nesta Capela de Nossa Senhora da Luz, muito antiga em
sua fundação, e por este motivo arruinada, foi posta a pri-
meira pedra deste espiritual edifício a Serva de Deus, e logo
depois concorreram algumas donzelas pobres e devotas para
suas companheiras; e como os corredores da dita capela são
estreitos e neles se formaram as celas para moradia daquela
pobre comunidade, ficaram elas totalmente incomodadas,

118
FREI GALVÃO (1739–1822)

sendo os cômodos de poucos palmos de largo, e as celas pelo


mesmo conseguinte ainda que com muita satisfação da fun-
dadora a quem lhe bastava uma cova para sua morada.65

***

Tendo falecido sua gloriosa cooperadora, não desani-


mou o Servo de Deus com essa irreparável perda; antes,
redobrou esforços para que prosseguisse a comunidade no
mesmo espírito de madre Helena.
Iam as religiosas continuando nos seus exercícios de
virtude, trabalho e mortificação, quando um golpe terrível
e inesperado veio ferir suas almas e a de seu pai espiri-
tual: foi a ordem emanada da autoridade diocesana para
que se fechasse o mosteiro, devendo as religiosas partir para
a casa dos seus progenitores. E essa ordem, quem lhe as
transmitiu foi o próprio Frei Galvão. Algumas monjas saí-
ram, como foi a sobrinha e companheira da fundadora que
tornou para o seu Recolhimento de Santa Teresa, as mais
ficaram esperando a Divina Providência em que sempre
confiaram.66
Desse dia até se reabrir oficialmente o mosteiro, pas-
saram as religiosas que aí permaneceram, dias de amar-
gura e provação. As pessoas devotas e protetoras do con-
vento, vendo-o de portas fechadas, supunham que aí não
mais existissem religiosas, e, por isso, se abstiveram de
favorecê-las.
Faltou-lhes pois os mais simples gêneros com que se
alimentarem, e a própria água para beberem só a obtinham
quando chovia. Deus, entretanto, não podia deixar pere-
cer suas fiéis servas, tanto mais quanto, era ilimitada a fé e
esperança em sua Providência.

65. Cf. Frei Galvão, “Relação breve e sucinta, etc.” já cit.


66. Cf. “Notícias da fundação deste recolhimento, etc.”, já cit.

119
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

E, por isso, Deus as favoreceu de modo miraculoso67


podendo elas se manter até a reabertura do convento. Mas,
por que o piedoso bispo dom frei Manoel usou de tanto ri-
gor, mandando dissolver uma comunidade virtuosa e santa
como a que habitava a histórica ermida de Nossa Senhora da
Luz? 68
Não existe no Convento da Conceição, nenhum docu-
mento que explique o motivo do seu fechamento.
A explicação, encontramos em Azevedo Marques, que
assim diz: “A criação do Recolhimento não foi autorizada
pelo poder competente, pelo que houve, logo depois, or-
dem para ser fechado; mas o capitão general Francisco da
Cunha Menezes (?) e o bispo D. Frei Manoel da Ressurrei-
ção insistiram pela conservação, que afinal foi tolerada.”69
É que não tinha havido ordem diretamente emanada
do Rei D. José I para se fundar a nova instituição.
Apoiados num documento escrito por uma religiosa
contemporânea de madre Helena, podemos afirmar que o
Convento da Conceição foi fechado a 29 de junho de 1775,
e reaberto no fim de agosto ou começo de setembro do
mesmo ano. Reaberto o mosteiro, com indizível satisfação
das religiosas, do clero e do povo em geral, começou ele de
novo a prosperar.
Vendo Frei Antônio Galvão que tanto a ermida de
Nossa Senhora, como a casa anexo, além de não comporta-
rem maior número de religiosas, ameaçavam ruir, traçou o

67. Ibidem.
68. “Viveiro de Santas”, é como o cronista franciscano do Convento de Santo
Antônio do Rio de Janeiro intitulou o Recolhimento de Nossa Senhora da
Conceição, pela fama de heroicas virtudes das religiosas que o habitavam.
Ainda hoje se podem ler os apontamentos deixados pelas antigas monjas, nos quais
se declara que a primitiva comunidade desse recolhimento vivia na mais absoluta
pobreza. As religiosas disciplinavam-se e jejuavam frequentemente e faziam toda
a sorte de mortificações. Dormiam sobre esteiras, no chão, tendo por travesseiros
pedaços de madeira. (N.A.)
69. Op. cit. 2° vol., pag. 130.

120
FREI GALVÃO (1739–1822)

plano do novo edifício, disposto a todos os sacrifícios para


levar a efeito o seu arrojado projeto.
Com esse objetivo, empreendia longas viagens pelo
interior da capitania, angariando esmolas e ao mes-
mo tempo distribuindo às almas o conforto da Religião.
Guaratinguetá, Itú, Porto Feliz, Indaiatuba, Pindamo-
nhangaba, Mogi das Cruzes, Sorocaba e tantas outras lo-
calidades, foram teatro dos seus apostólicos labores.
Regressando, confundia-se com os operários na cons-
trução do novo edifício,70 cujas paredes iam subindo, orva-
lhadas pelos seus suores e fortalecidas com as suas bênçãos.
Que admiráveis rasgos de humildade e devotamento!
Quando a obra ia pela metade, assim escreveu ele a um
tenente-coronel seu amigo: “tem este edifício de comprido
270 e tantos palmos e de largo 140 e tantos, com uma área
grande no meio, uma cerca extensa, etc., obra da Providên-
cia, que tem causado admiração aos srs. paulistas, famige-
rada e notória às capitanias circunvizinhas. Tem se gasto
na construção dessa obra mais de 13.000 cruzados, e julgo
que ainda levará e gastará outro tanto, (…) quem deu e fez
com tanta facilidade e liberalidade dará o mais para glória
da sua admirável Providência.
Fica a dita obra com 22 celas em círculo das 3 faces que
olham para os campos, ficando as outras faces correspon-
dentes a áreas livres, sem celas para maior desafogo.
As religiosas para cuja habitação é a mencionada obra
tem por instituto o viverem a Divina Providência: Razão,
e cantam o ofício Divino a imitação das religiosas francis-
canas, vão a semelhança destas a meia noite ao coro, fazem
outros exercícios eclesiásticos e religiosos, que deixo de
referir por brevidade.
Tem a misericordiosa mão de Deus socorrido a elas na boa
fama que geralmente tem merecido. A Divina Providência
70. Doc. do Convento de Nossa Senhora da Conceição.

121
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

não aparte os seus olhos daquelas que desejam ser verda-


deiras servas, e mereçam pelas suas obras na aceitação do
mesmo Senhor a glória e decoro de suas fiéis esposas.71
Até o fim da vida o santo varão despendeu energias
em prol da sua obra grandiosa. Quase à morte, traçou ele,
numa parede, junto ao seu leito de dor, o desenho do fron-
tispício da parte superior da capela, que só foi concluída
em 1844.
O Convento de Nossa Senhora da Conceição é, pois,
uma obra admirável que bem demonstra o zelo insuperável,
a perseverança, a fé ardentíssima, a energia inquebrável do
seu benemérito e venerável fundador.

***

Tão considerado era Frei Galvão pelos seus irmãos de


hábito, que várias vezes o elegeram para os mais elevados
cargos.
Consultando o livro de assentamentos de missas do
Convento de São Francisco, deparamos à página 42 ver-
so, em seguida a data de 10 de maio de 1775, a assinatura
do Servo de Deus, na qualidade de comissário visitador do
provincial Frei Cosme de Santo Antônio.
No capítulo celebrado de 6 de outubro de 1781, na
cidade de Rio de Janeiro, foi o santo religioso eleito pre-
sidente e mestre de noviços do Convento de São Boaven-
tura, porém não chegou a tomar posse desse cargo, devido
à interferência do bispo de São Paulo, Dom Frei Manoel
da Ressurreição, que se dirigiu, por escrito, ao provincial
da Ordem, pedindo-lhe que destituísse Frei Galvão desse
cargo, a fim de o conservar na capelania do Convento de
Nossa Senhora da Conceição, e não privar a sua diocese de
tão santo sacerdote.

71. Cf. Frei Galvão, “Relação breve e sucinta, etc.” já cit.

122
FREI GALVÃO (1739–1822)

A 24 de setembro de 1796, por unânime decisão do


“Definitório e Diretório” da sua Ordem, recebeu Frei Gal-
vão o privilégio de uma guardiania. Eis o que a respeito
consta o livro do Tombo, III, p. 136 verso, no arquivo do
Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro: “Que aten-
dendo aos relevantes serviços e aos anos que tem de Reli-
gião o Irmão Pregador Fr. Sant’Anna Galvão e ao grande
desvelo e trabalho com que fundou o Recolhimento da
Conceição no subúrbio de São Paulo e exemplar proce-
dimento com que tem edificado a todos, se lhe concede
o privilégio de uma residência e uma guardiania, ficando
assim habilitado para os mais empregos da Religião como
se de fato os tivera exercido”.
Na congregação intermédia, de 24 de fevereiro de 1798,
elegeram Frei Antônio Galvão para o cargo de guardião
do Convento de São Francisco, da capital de São Paulo. O
bispo dom Matheus de Abreu Pereira, não se conformando
com essa eleição, dirigiu-se ao provincial Fr. Joaquim de
Jesus Maria, por meio de um ofício, pedindo pela renúncia
da guardiania. Secundando o pedido do referido prelado, a
Câmara Municipal oficiou ao dito provincial, em nome das
religiosas e da população de toda a capitania de São Paulo.
Convencidos, porém, de que a eleição de Frei Galvão foi
unicamente devida aos seus altos méritos, e atendendo-se aos
ótimos serviços que poderia ele prestar a sua Ordem, como
guardião, ficaram todos em paz e conformados com tal fato,
tanto mais que ao Servo de Deus foi permitido que conti-
nuassem no seu ministério de capelão até chegar o tempo do
novo capítulo, no qual teria de tomar parte como vogal.
Chegando esse tempo, partiu o santo frade a pé para
o Rio de Janeiro, em apostólica viagem, pregando nas po-
voações onde passava, a pedido dos párocos. Encerrando a
reunião capitular, ei-lo de novo em São Paulo, continuando
na direção do Mosteiro.

123
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

A 28 de março de 1801, foi novamente eleito guardião


do Convento de São Francisco. Por um breve do núncio
apostólico, a pedido do provincial Fr. Antônio de São Ber-
nardo Monção, foi galardoado com o privilégio de defi-
nidor.72 Por outro breve foi constituído visitador geral e
presidente do capítulo, em 1808, cargo que renunciou por
justa causa.
Embora conste no “Livro de Registro de Religiosos de
Filiação do Brasil” que Frei Galvão foi por três vezes, em
1777, 1792 e 1799, nomeado comissário da Ordem Ter-
ceira de São Francisco, da cidade de São Paulo, somos de
opinião que, de fato, só em uma época exerceu ele tal cargo.
Pelas pesquisas que fizemos no arquivo da mesma Ordem,
conseguimos saber que o Servo de Deus tomou posse do
aludido cargo em 1776 e nele permanecendo até 1780. A
data de 1777, como sendo da primeira nomeação, está evi-
dentemente errada.
Quanto às outras duas nomeações do Servo de Deus
para o mesmo cargo, supomos que ele não as aceitou, pois
além de não encontrarmos o registro de sua posse, não mais
vimos a sua assinatura nos assentamentos de novos irmãos.
O cargo de comissário-visitador foi exercido de 1792 a
1798, por Fr. Joaquim da Santíssima Trindade Neto, e, de
1799 a 1801, por Fr. Miguel de Jesus Maria e Fr. Bernardo
da Pureza Claraval.

***

Frei Galvão teve grande papel na fundação do Recolhi-


mento de Santa Clara, em Sorocaba. Esse pio estabelecimento
foi fundado em 1804 e aprovado por provisão régia de 22
de junho de 1810, apesar da oposição que lhe fez o gover-
nador e capitão-general Antônio José da Fonseca e Horta,

72. Definidor: cargo de conselheiro ou assessor de autoridade religiosa.

124
FREI GALVÃO (1739–1822)

em data de 5 de julho de 1805, informando a represen-


tação da Câmara de Sorocaba, que pedia ao governo que
houvesse de deferir a petição dos fundadores, que foram
D. Manoel, D. Rita e D. Ana, filha do alferes Francisco
Xavier de Oliveira Leme.73
A fim de organizar a comunidade do Recolhimento de
Santa Clara, partiram do Recolhimento de Nossa Senhora
da Conceição, para Sorocaba no dia 14 de agosto de 1810,
Frei Galvão e as irmãs Rita do Coração de Jesus, Domicia-
na Maria de Assunção e Izabel da Purificação.
Depois de dirigir espiritualmente as religiosas, durante
um ano, regressou o Servo de Deus para São Paulo, em
companhia das irmãs Rita e Domiciana, a 22 de agosto de
1811; ficando em Sorocaba, como primeira regente do Re-
colhimento de Santa Clara, a irmã Izabel da Purificação.74

***

No citado “Livro de Registro dos Religiosos de Filiação


no Brasil”, há este trecho bem significativo sobre a vida do
Servo de Deus: “Tudo quanto se pode dizer deste religioso
está lançado nesta folha com toda a individuação [porme-
nores]. O que se pode acrescentar-lhe é que em nada tem
diminuído os créditos devidos à sua virtude, antes cada vez
mais tem merecido o respeito dos povos, que olham para
ele como um varão apostólico, ornado de todas as virtudes:
o conceito que dele formam é sem dúvida o de um santo.
O seu nome é em São Paulo, mais que em outro qualquer,
ouvido com grande confiança e não uma só vez, de lugares
remotos muitas pessoas o vinham procurar nas suas neces-
sidades. Assim se conservou até os últimos anos de sua vida

73. Cf. Azevedo Marques, Apontamentos históricos e geográficos da Província de S.


Paulo, vol. 2, p. 130.
74. Doc. do arquivo do Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição.

125
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

em que foi atacado de gravíssima enfermidade, pelas quais


deu as últimas provas de sua conformidade, principalmen-
te em os últimos três anos, em cujo estado servia assim
mesmo de sustentáculo à boa ordem daquele Convento (da
Conceição) de quem foi o seu fundador”.
Perdeu-se infelizmente, a maior parte dos manuscritos
de Frei Antônio Galvão. Entretanto, suas filhas espirituais
conservam alguns, como preciosas relíquias, de cujos dizeres
altamente edificantes vamos transcrever diversos trechos.
Termina assim uma oração, ou melhor, consagração
do santo religioso a Nossa Senhora, escrita num dia em
que se achava arroubado de amor pela Divina Mãe: “e para
que conste que esta minha determinação foi feita em meu
perfeito juízo, faço esta cédula de minha própria letra e
assinada com o sangue de meu peito, hoje dia do patrocí-
nio da minha Senhora e Mãe de Deus, 9 de novembro de
1766. De minha Senhora Mãe Santíssima indigno servo.
Frei Antônio de Sant’Anna”.75
Indicando , por escrito, à madre Helena quais as peti-
ções especiais que devia fazer em suas orações, Frei Galvão
termina com palavras reveladoras da sua entranhada hu-
mildade, pedindo-lhe que rezasse também por ele, “mise-
rável religioso seu confessor”.76
Agora, alguns períodos de uma carta que o santo fran-
ciscano escreveu em 1781, quando em viagem para o Rio
de Janeiro: “Me. Regente e todas as irmãs do Recolhimen-
to da Conceição. A Deus, em quem só devemos esperar.
Tende paciência, filhas, agora é a ocasião de vossas carida-
des terem sofrido muito, tende ânimo pelo amor de Deus:
vivei unidas, vivei unidas, vivei unidas; guardai a glória de
Nosso Senhor vivendo na Sua Providência esperando n’Ele
só, filhas, vivei unidas, vivei unidas. Já vossas caridades tem

75. Ibidem.
76. Ibidem.

126
FREI GALVÃO (1739–1822)

vivido seis anos dando a Deus a glória nessa Providência


em que vivem, peço que sigais continuando nessa vida para
mais sua glória. Sede fortes, confiai em Deus que não vos
há de faltar. Todas tende paciência, tende paciência, desen-
ganei-vos do mundo, que tudo é nada. Não tenhais amizade
com pessoas de fora. Peço-vos isso pelo Sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Enquanto aos confessores, Deus há de
arrumar, não vos desconsoleis, pode ser que Deus permita
que eu brevemente venha. Adeus a M. Regente, Irmã Iza-
bel de Sant’Anna, Irmã. Maria da Conceição, Irmão Anna
do Sacramento, Irmã Anna Maria do Espírito Santo, Irmã
Anna de S. José, Irmã Florinda, Irmã Izabel Maria, Irmã
Domiciana, Irmã Mariana; que todas são minhas filhas e
as amo em Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando quiserdes
escrever, remetei as cartas muito seguras, eu vou para o Rio
de Janeiro. Portai-vos constantes e tende ânimo que tudo se
acaba, e adeus. Irmão de vossas caridades. Pe. Fr. Antônio”.
Existem também no Recolhimento de Nossa Senho-
ra da Conceição um caderninho, em que uma das monjas
contemporâneas ao Servo de Deus escreveu os 46 conse-
lhos ou recomendações por ele proferidos, sobre o cumpri-
mento dos deveres das religiosas, a prática das principais
virtudes, etc.
Lendo essas páginas em que Frei Galvão se mostra se-
guro mestre da vida espiritual, páginas de uma simplicida-
de encantadora, nossa alma se volta para o passado longín-
quo, sentindo extraordinária emoção ao aspirar o perfume
de santidade que delas emana.

***

Que diremos do patriotismo de Frei Antônio Galvão?


Sendo a religião católica a mais admirável escola de disci-
plina, de paz, de ordem e de progresso, é, ao mesmo tempo,

127
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

a inigualável inspiradora do patriotismo. Não, certamente,


do patriotismo frouxo e tagarela, mas do que enobrece e
dignifica, fecundo em obras meritórias, que não recua ante
o sacrifício, que não desanima ante os insucessos, mas que,
perseverante e valoroso, vence todas as barreiras; do patrio-
tismo sincero e verdadeiro, que salve e redime.
No Brasil, desde a época do seu descobrimento, até aos
nossos dias, vemos padres empenhados no seu engrandeci-
mento, tanto espiritual, como material. Na catequese dos ín-
dios, na formação da nossa nacionalidade, nas guerras contra
o estrangeiro, nas revoluções civis, nos dias prósperos e de
infortúnio, na política e nos cargos de administração sem-
pre os sacerdotes demonstraram o mais ardente patriotis-
mo. Quem mais amou o Brasil que os apóstolos – Manoel
da Nóbrega, Anchieta, Manoel de Paiva, Leonardo Nunes,
Aspicuelta Navarro, João de Almeida, Inácio de Azevedo,77
Pedro Corrêa,78 Joaquim Pinto,79 Malagrida,80 Frei Pedro
Palácios81 e tantos outros?
Eduardo Prado, o polemista eminente, o brilhante au-
tor da Ilusão Americana, ao falar sobre os jesuítas, nos legou
esta página magnífica: “Nas vastas solidões do Brasil, nas

77. A 15 de junho de 1570, foi o santo padre Inácio de Azevedo e seus 39


companheiros martirizados pelos protestantes franceses, a bordo da nau “Santiago”,
quando em viagem para o Brasil (cf. Pe. Simão de Vasconcelos, Op. cit., livro IV,
nn. 1 a 111).
78. O irmão Pedro Corrêa foi martirizado pelos índios, aos quais estava catequizando
(cf. Pe. Simão de Vasconcelos, Op. cit., livro 1, nn. 70, 170, 174, 175, 176 e 181).
79. O padre Joaquim Pinto foi martirizado em serviço de catequese, no ano de 1608
(cf. Pe. Antônio Franco, Op. cit., pp. 90 e 91).
80. O Pe. Gabriel Malagrida, apóstolo do Maranhão, foi uma das muitas vítimas da
perversidade diabólica do Marquês de Pombal. Aquele santo jesuíta foi martirizado
em Lisboa, a 20 de setembro de 1761. “Consumado o sacrifício, foi queimado o
corpo, sendo as suas cinzas lançadas no Tejo” (cf. Cristóvão Teófilo de Murr,
História dos jesuítas do ministério do marquês de Pombal, nova edição corrigida por
J. B. Hafkmeyer S. J., pp. 197–212; e Almeida Silvano, O Marquês de Pombal, pp.
159–192).
81. Cf. Frei Jaboatão, Op. cit., vol 2, livro anteprimeiro, pp. 32, 33, 37, 44 e 48.

128
FREI GALVÃO (1739–1822)

baixadas dos campos ressecados, oculta entre o verde pro-


fundo de ouro das laranjeiras, à beira do pequeno canavial,
há a casa isolada do caboclo margeada do rego d’água, no
silêncio dormente e abrasado do sol, que quebram, a espa-
ços, a pancada surda e o lento gemido do monjolo. Ali, vive
ele na pobreza, tirando o alimento de uma terra que nem
sempre é da fertilidade que os nossos economistas, poetas
e oradores apregoam. Vive ali simples, rude e enérgico na
sua calma o descendente do mameluco e do índio, que hoje
tem teto, tem família e tem Deus, porque os jesuítas civili-
zaram os seus avós”.82
Quem nesta formosa terra foi mais patriota que Frei
Caneca, Frei Sampaio, Frei Monte Alverne, Padre Ilde-
fonso Ferreira, Padre Diogo Feijó, Padre Pires da Motta,
dom Antônio Joaquim de Mello, dom Sebastião Pinto do
Rego,83 dom Frei Vital, Padre “Chico”, Padre Júlio Maria,
dom Silveiro Pimenta, e tantos outros embaixadores de
Cristo, cujos nomes dão às páginas gloriosas da nossa his-
tória, religiosa e civil, inexcedível fulgor?

82. Eduardo Prado, Conf. “O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização


do Novo Mundo”.
83. Deste ilustre e virtuoso prelado, que foi o 7° bispo de São Paulo, possuímos uma
“circular” assinada pelo seu próprio punho, dirigida aos párocos, recomendando-lhes,
em frases vibrantes de fé e patriotismo, que fizessem ver aos seus paroquianos o
dever que a cada um se impunha, de se alistar no novo batalhão de voluntários, para
marchar em defesa da pátria, atacada ferozmente pelas tropas fanáticas do ditador
do Paraguai.
A rica bandeira de um grupo de senhoras paulistas ofereceu ao 7° batalhão de
voluntários, foi benta na catedral, por esse mesmo prelado, em 9 de julho de 1865.
Quando o 7° de voluntários regressou do Paraguai, essa gloriosa bandeira, assinalada
com o sangue de nossos heróis, foi levada para a catedral e colocada ao lado do altar-
mor, onde a 27 de abril de 1870, com a igreja repleta de representantes de todas as
classes sociais, foi cantado solene “Te Deum”, proferindo oração no ato memorável
aquele que nessa época já era considerado o maior luzeiro do púlpito paulista – o
Padre “Chico”.
Daí por diante ficou a dita bandeira sob a guarda do Cabido Diocesano, achando-se
presentemente depositada no palácio da Cúria. (N.A.)

129
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Quem jamais sentiu na alma, com tanta intensidade o


santo entusiasmo de oferecer a vida em holocausto pela
religião e pela pátria, como a mártir insigne – soror Joana
Angélica de Jesus?
Ó Santa Igreja Católica! Mãe gloriosa e imortal, em
cujos seios puríssimos beberam o leite da Divina Graça os
maiores heróis de que se orgulha a humanidade! Salve!
Filho dileto da Igreja, Frei Galvão, dela aprendeu a unir
em seu coração três diferentes amores: o amor a Deus, o
amor ao próximo e o amor à terra natal. A que altura, pois,
se não elevaria o seu patriotismo!
Tendo vivido quando o Brasil se preparava para tor-
nar-se independente, quanto não lhe crucificaria a alma de
eleito, ver seus compatriotas oprimidos e chacinados a cada
grito de liberdade que lhes irrompia do peito! É Tiradentes
a primeira vítima. Depois é o Pe. Abreu Lima; depois é Frei
Caneca; depois é o Pe. Roma; depois são tantos e tantos
outros, arrastados ao patíbulo pelo crime de serem os arau-
tos de tão sublime ideal.
Frei Galvão sonhava, certamente, com o Brasil livre do
jugo estrangeiro, a caminhar com agigantados passos pela
senda do progresso. E com que fervor elevaria o santo reli-
gioso suas preces ao Céu, pedindo pela pátria querida!
Quanto não teriam sido profícuos os luminosos con-
selhos do ilustre filho de São Francisco aos que se lhe
achegavam confiantes, para se orientarem nos grandes em-
preendimentos?
Sua força moral sobre o governo e o povo de São Paulo
eram extraordinários, porque o consideravam santo. Todos
prestavam ao excelso religioso as homenagens da mais ab-
soluta confiança, carinhosa estima e profunda veneração.
Todos os amavam como pai, mestre e guia incomparável.

***

130
FREI GALVÃO (1739–1822)

Os últimos três anos de existência, passou-os o Servo


de Deus no sofrimento de graves enfermidades, com a pa-
ciência e resignação peculiares às almas habituadas a imitar
em tudo o Divino Modelo – Nosso Senhor Jesus Cristo. É
que, para a alma do justo, a dor tem mais doçura que para a
boca do pecador um favo de mel.
Que alegria infinita não gozaria Frei Galvão, após ter
passado a existência na prática heroica de todas as virtudes,
na mortificação, no trabalho e na prece, ao ver concluída a
sua missão no mundo, próximo o termo da sua vida terrena!
Eram dez horas da manhã do dia 23 de dezembro de
1822, quando expirou placidamente o Servo de Deus,
voando sua alma para o Céu, a receber o eterno galar-
dão. Morreu o santo religioso com 84 anos incomple-
tos, após a recepção dos últimos Sacramentos e assisti-
do pelo guardião de São Francisco, Fr. João do Espírito
Santo, Fr. Inácio de Santa Justina, Pe. Joaquim Ribeiro,
Pe. Joaquim Francisco de Abreu e Pe. Francisco de Assis
Ribeiro. O local em que faleceu, foi uma salinha anexa
à sacristia da capela do Mosteiro da Conceição, onde
ficara em tratamento nos seus últimos dias, a instância
das religiosas, com permissão do prelado diocesano e do
superior da sua Ordem. As monjas prestaram, assim, ao
seu querido pai espiritual as homenagens de altíssima
gratidão.
Quando os sinos dobraram, dando ao povo a triste
nova, a consternação foi geral. Um luto imenso envolveu
todos os corações. E as homenagens que todas as classes
sociais prestaram ao grande morto se transformaram em
eloquente apoteose. Rezado o ofício de corpo presente, foi
celebrada solene Missa de Réquiem, ficando o corpo em
exposição para que os fiéis o visitassem.
O padre guardião desejava que o sepultamento se fizes-
se no Convento de São Francisco, mas o povo requisitou e

131
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

obteve do bispo dom Matheus permissão para que o corpo


do Servo de Deus repousasse na capela do mosteiro.
À tarde desse dia, depois da encomendação com o ofí-
cio, foram os despojos mortais de Frei Galvão inumados
numa sepultura que se abriu no centro do presbitério da
capela, sendo pouco tempo depois colocada sobre ela uma
lápide de pedra com a seguinte inscrição: Hic jacet Fr. Anto-
nius a Sant’Ana Galvão huius almae domus inclytus fundator
et director qui animam suam in manibus suis semper tenens
placide obdormivit in Domino die 23 decembris anno 1822,
a significar: “Aqui jaz Frei Antônio de Sant’Ana Galvão,
ínclito fundador e reitor desta casa, que tendo sua alma
sempre em mãos, placidamente adormeceu no Senhor, no
dia 23 de Dezembro do ano de 1822”. Como o passar dos
anos, de tanto os devotos retirarem pedacinhos da lápide
para guardarem como relíquias, ficou ela imprestável, sen-
do necessário substituí-la por outra, de mármore, que con-
serva os mesmos dizeres da primeira.

***

Deus dotou Frei Galvão dos preciosos dons da virtu-


de e dos milagres. O santo religioso, conforme a tradição,
curava enfermos repentinamente, penetrava o íntimo das
consciências, bilocava-se, isto é, algumas vezes estava si-
multaneamente em dois lugares; operava conversões, etc.
Vamos narrar, embora palidamente, alguns fatos miraculo-
sos que lhe são atribuídos, parte dos quais tivemos a ventu-
ra de ouvir da boca de ouro do Padre Chico.84

84. O genial e santo monsenhor Dr. Francisco de Paula Rodrigues (Pe. Chico) foi
em ordem cronológica o 13° sucessor de frei Galvão, na capelinha do Recolhimento
de Nossa Senhora da Conceição da Divina Providência, contando-se como tendo
existido um só capelão, no tempo decorrido de 1856 a 1879, em que prestaram
serviços a esse convento, indistintamente, sob as ordens do seu superior, os frades
capuchinhos professores do Seminário Episcopal. (N.A.)

132
FREI GALVÃO (1739–1822)

Certa vez, tocando Matinas à meia noite, no Convento


de São Francisco, deram pela ausência de Frei Galvão, que
só apareceu no coro quando já ia adiantado o ofício. O pa-
dre guardião interrogou-o:
— Onde esteve, Frei Galvão? Procuramo-lo por todo
o convento!
— Fui confessar um doente em Parnaíba, respondeu-
-lhe o Servo de Deus.
— Impossível! A estas horas?
— É a pura verdade, padre guardião, e a prova está no
meu hábito todo molhado…
Num antigo prédio dos “quatro cantos”,85 ora recons-
truído, residia um homem rico. Certa manhã para aí se
dirigiu Frei Galvão. Batia ainda, quando de longe, cami-
nhando pela rua de São Bento, avistou-o um transeunte.
Não estando ainda convencido das virtudes do religioso,
pensou ele: “Tão cedo e já Frei Galvão a adular os ricos!”.
Ao defrontar, porém, o dito prédio, chamou-o o Servo de
Deus, e disse-lhe:
— Meu irmão, não faça juízo temerário do próximo!
Eu não vim aqui para adular o dono desta casa, mas uni-
camente pedir uma esmola para o Recolhimento de Nossa
Senhora da Conceição.
Imagine-se a confusão e o espanto do admoestado, que
certamente se convenceu da santidade do servo de Deus.
Indo o Padre Chico confessar um enfermo, este chamou
sua atenção para um belo crucifixo que se achava em seu
quarto, narrando-lhe o seguinte: o avô do enfermo, que era
médico, passou certa manhã pelo Recolhimento de Nossa
Senhora da Conceição, a fim de visitar Frei Galvão. Este,
terminada a visita, ofereceu ao amigo a veneranda imagem,

85. O local em que se achava esse prédio é na rua de S. Paulo, canto da rua Direita,
à esquerda de quem sobe para o largo de S. Francisco. Há poucos anos, no prédio
anterior ao atual, funcionou o “Grande Hotel de França”. (N. A.)

133
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

dizendo que a levasse para que se encaminhassem melhor


os seus negócios espirituais e temporais. O médico agra-
deceu o precioso presente, pedindo, porém, ao Servo de
Deus, que o guardasse até regressar das visitas que ia fazer
a alguns doentes. Cumprindo seu dever profissional, seguiu
o médico para casa, esquecendo-se de voltar ao convento.
Ao penetrar no consultório, cuja chave trazia consigo, viu
ele, com a maior e comovedora surpresa, sobre a mesa de
trabalho, o crucifixo de Frei Galvão!
Existiam, em Itu, duas famílias, em completa inimi-
zade, cujos chefes se odiavam mortalmente. Sabendo Frei
Galvão desse caso, para lá se dirigiu, e convidou o povo
para ir a determinada igreja, onde pregaria um sermão. No
dia e hora aprazados, os fiéis encheram o templo, compare-
cendo também as duas famílias inimigas, com seus respec-
tivos chefes. Subiu ao púlpito e por longo tempo discor-
reu sobre a caridade. Vendo, porém, que suas palavras não
moviam para a paz aqueles rancorosos inimigos, disse-lhes
humildemente:
— O culpado de vós não vos reconciliardes, sou eu, por-
que não soube dizer-vos com a pobreza da minha palavra,
quanto é grande, quanto é divina a caridade!
E tirando de sob o hábito uma disciplina, começou a
flagelar-se fortemente. O argumento era por demais valo-
roso para que se não comovesse o auditório, até as lágrimas,
e mais ainda as duas famílias inimigas, que fizeram as pazes
e viveram daí por diante em santa harmonia.
Noutra ocasião, achando-se Frei Galvão na mesma ci-
dade, pediu-lhe certa mãe aflita que orasse por seu filho,
moço de gênio irascível e péssima conduta, que costumava
ausentar-se dias e dias do lar. Frei Galvão consolou a pobre
mãe e lhe disse que confiasse em Deus, pois seu filho vol-
taria logo completamente transformado. Pediu-lhe porém,
que nada dissesse ao moço, sobre a sua conversa. Poucos

134
FREI GALVÃO (1739–1822)

dias após, regressou o filho pródigo, radicalmente outro, no


falar e no proceder, e foi daí em diante a alegria de sua mãe.
Em Potunduva, município de Jaú (São Paulo), tra-
balhava no mato, com alguns companheiros, o roceiro
Manoel Portes, que desastradamente se feriu com profun-
do golpe de faca. Percebendo que ia morrer, o pobre ho-
mem rogou a Deus que lhe enviasse Frei Galvão para o
amparar na hora extrema. Decorrido algum tempo, pediu a
seus companheiros que se retirassem do rancho em que se
acolhera, porque aí se achava o Servo de Deus para ouvi-lo
em confissão. Atenderam-no, supondo que o enfermo deli-
rava. Qual não foi seu espanto, quando ao regressarem, ins-
tantes depois, e deparando Manoel Portes já morto, nota-
ram que uma caixa de roupas que deixaram ao lado dos pés
daquele, então prostrado sem vida em uma rede, achava-se
agora misteriosamente ao lado em que o mesmo tinha a
cabeça! Alguém, pois, aí estivera. Quando isso se passava,
Frei Galvão estava em, São Paulo, pregando numa igreja
e, em certo momento, interrompendo o sermão, pediu aos
fiéis que rezassem com ele uma Ave-Maria por intenção
de um enfermo que se achava longe, em ponto de morte.
Ajoelhou-se o Servo de Deus e o seu piedoso auditório.
Algum tempo depois, o orador levantou-se e concluiu o
sermão. Para comemorar o acontecimento, os moradores
do lugar aí colocaram uma cruz, que mais tarde foi substi-
tuída por outra. Em 1900, ainda existia uma dessas cruzes,
antiquíssima, com significativa inscrição. Ao lugar, até hoje
acorrem pessoas devotas, que vão cumprir promessas por
graças recebidas.
Um dia Frei Galvão encarregou a uma habilidosa mon-
ja86 do convento que dirigia, de fazer uma imagem de San-
to Antônio, a fim de colocá-lo num dos altares da capela.

86. Trata-se da irmã Izabel da Purificação, segundo a tradição constante entre as


religiosas do mesmo convento.

135
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Pronta a imagem, entregaram-na a Frei Galvão para


benzê-la. Viu, porém, o Servo de Deus que a imagem ti-
nha uma notável imperfeição: o Menino Jesus, que devia
estar voltado para o santo, fôra colocado noutra posição.
Entristeceu-se a piedosa escultora que, para remediar o
defeito apontado, tinha que fazer nova imagem. Frei Gal-
vão consolou-a, e pegando na imagem do Senhor Menino,
voltou-lhe graciosamente a cabecinha para a de Santo An-
tônio, como está até hoje.
Cantavam as religiosas no coro da capela, quando, em
certo ponto, esqueceram a música, para elas fato único e
inexplicável. Desanimadas, iam parar o canto, quando apa-
receu no meio da capela, a essa hora fechada, o seu diretor,
que começou a cantar, e, vendo que suas dirigidas acertaram
o tom, desapareceu, deixando-as santamente edificadas.
Uma vez recorreram ao santo religioso para que acu-
disse a uma senhora que se achava gravemente enferma,
num parto laborioso. O Servo de Deus sendo devotíssimo
da Santíssima Virgem, escreveu num papelzinho este ver-
sículo: Post partum Virgo Inviolata permansisti: Dei Genitrix
intercede pro nobis – que significa: “Depois do parto, ó Vir-
gem, ficaste intacta: Mãe de Deus, intercede por nós!” –
entregando-o bem enrolada à enferma para que o tomasse
num copo d’água. O efeito foi maravilhoso, pois a doente
teve um parto felicíssimo e recuperou a saúde.
Fr. Francisco de Monte Alverne, que foi contempo-
râneo de frei Galvão, costumava narrar o seguinte fato:
Encontrava-se o Servo de Deus no Rio de Janeiro, onde fôra
tomar parte do capítulo provincial, na qualidade de guardião
do Convento de São Francisco, desta cidade. Aconteceu que
certa mulher moradora numa fazenda, distante algumas lé-
guas de São Paulo, caiu enferma nas aperturas de melindro-
so parto. Pediu ela ao marido que fosse chamar o venerável
religioso, o único que lhe podia dispensar eficaz intercessão.

136
FREI GALVÃO (1739–1822)

Vendo a convicção da esposa, sem demora partiu o homem


a cavalo, em demanda de Frei Galvão. No Convento de São
Francisco disseram-lhe que o Servo de Deus estava no Rio
de Janeiro. Desanimado regressou para casa, chegando no dia
seguinte. Qual não foi sua surpresa, ao encontrar a esposa li-
vre de todo o perigo e a proclamar as virtudes do seu grande
benfeitor Frei Galvão! Contou-lhe, então, a boa mulher, como
o Servo de Deus lhe havia aparecido, durante a noite muito
chuvosa, estando completamente enxuto; ouviu-lhe a confis-
são, e mandando vir um copo com água, abençoou-a e deu-
-lhe a beber, sendo isto o bastante para que ela recuperasse a
saúde. Impressionado o marido com tal acontecimento, partiu
imediatamente para o Rio de Janeiro, a fim de agradecer ao
santo frade o seu extraordinário rasgo de caridade. Chegando
ao Convento de Santo Antônio, expôs minuciosamente ao
guardião tudo quanto ocorrera com a esposa, e qual o fim da
sua visita. O guardião disse-lhe admirado:
— Como é possível ter-se dado esse fato, se durante
todo esse tempo Frei Galvão não arredou o pé daqui?!
Chamado entretanto Frei Galvão, e interrogado sobre
o caso, respondeu:
— Como se deu, não sei; mas é verdade que naquela
noite lá estive.87

***

87. Resposta que muito se assemelha a uma fornecida pelo Padre Pio, quando
questionado acerca de suas famosas bilocações. “Não sei como acontece ou qual a
natureza desse fenômeno – e certamente não penso muito sobre isso – mas de fato
estive na presença desta e daquela pessoa, neste e naquele lugar”, in: Padre Pio – A
história definitiva, publicada no box nº 28 da Minha Biblioteca Católica, p. 252. (N.E.)

137
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Frei Galvão continua a ser especial protetor das partu-


rientes. Não se passa um só dia, e isso vai para mais de cem
anos, sem que à portaria do Convento de Nossa Senhora
da Conceição cheguem pedidos da pequenina oração que o
santo religioso compôs, em benefícios das que vão ser mães.
Os favores divinos alcançados por intercessão do Servo de
Deus são inúmeros. Disso dão testemunho as veneráveis
monjas do mesmo convento e o seu virtuoso capelão.
No “Echo Seraphico”, a bem redigida revista francisca-
na que se publica em Petrópolis, encontraram os leitores o
relato de importantes graças que numerosos fiéis de todos
os pontos do Brasil têm alcançado por intercessão do Servo
de Deus, Frei Antônio de Sant’Anna Galvão.88

88. Merece especial registro o seguinte fato: na manhã de 5 de julho de 1924, ao


propalar-se por todos os recantos da ordeira e progressista capital de São Paulo a
notícia da sedição militar, longe estava a sua população de imaginar até que ponto
poderia chegar a luta. Entretanto, já no dia 6 foi-se percebendo a gravidade do caso.
Durante os tristes dias em que a mesma cidade foi transformada em formidável
praça de guerra; dias de indizíveis apreensões de espírito, de dor, de lágrimas e de
luto em muitos lares, grande foi o êxodo daqueles que, residindo nas zonas mais
perigosas, abandonaram as suas casas, retirando-se para bairros afastados ou para o
interior do Estado.
Houve, porém, muitos, que se não puderam retirar, ou por falta de recursos, ou por
prudência na impossibilidade em que se viam de sair à rua, onde se arriscariam a ser
metralhados durante a fuga.
Nesta última condição se encontrou a veneranda comunidade do Mosteiro de
Nossa Senhora da Conceição. Confiando em Deus e na intercessão de Frei Antônio
Galvão aguardavam as religiosas que arrefecessem o bombardeio, para se retirarem,
pois temeridade seria permanecer num edifício cercado de quartéis, donde a boca
flamejante dos canhões vomitava fogo.
O capelão, o revmo. Pe. Francisco Cipullo, nem por um momento abandonou o seu
posto de honra. Ora na sacristia, ora na igreja, animava com sua palavra cheia de
unção a toda a comunidade. Um dia, celebrava ele no altar-mor, e, quando a Missa ia
em meio, eis que ressoa por toda a igreja o fragor de granadas, que explodiam sobre o
teto. Passado o momento de natural espanto, serenamente prosseguiu o capelão, até
finalizar esse ato sacrossanto.
E a heroica figura de madre Maria Benedita, seguindo os passos da Serva de Deus
madre Helena, conservou-se a venerável abadessa sempre no meio das suas irmãs de
hábito, transmitindo a todas os altíssimos sentimentos de virtudes que se acrisolaram
em sua alma privilegiada.
As 37 habitantes do Mosteiro de N. Senhora da Conceição comungavam todos os
dias em forma de Viático, pois, resignadas esperavam a morte. Não cessavam, porém,

138
FREI GALVÃO (1739–1822)

de implorar ao Servo de Deus Frei Galvão, cujas relíquias se achavam bem perto
delas, que intercedesse junto ao trono do Divino Salvador, por suas caríssimas filhas
espirituais e pela conservação do vetusto monumento que ele construiu com a sua
operosidade apostólica, cada dia mais admirável.
Certa ocasião, caminhavam as virgens do Senhor por um dos corredores, para
irem à igreja, quando à sua passagem aí caiu uma granada… Pois bem, nesses dias
de constantes sobressaltos, a ouvir o sibilar das balas de carabina, o pipocar das
metralhadoras e o terrificante troar dos canhões; arriscadas a morrer de um a outro
momento, fisicamente nada sofreram as abnegadas monjas.
Mais uma vez Frei Antônio de Sant’Anna Galvão demonstrou quanto é poderosa
a sua intercessão, salvando a vida das sua dignas filhas espirituais e preservando da
destruição o convento que lhe custou tantas lágrimas e tantos suores. (N.A.)

139
MADRE ANGÉLICA89
(1762–1822)

Madre Joana Angélica de Jesus, a grande mártir de que o


Brasil se ufana, nasceu em 1762, na capital da Bahia, tendo
por pais José Tavares de Almeida e dona Catarina Maria da
Silva. Em 1782, contando vinte primaveras, entrou a Serva
de Deus para o Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição,
da Lapa, fundado na mesma capital em 7 de dezembro de
1744.
A 18 de maio de 1783, fez a jovem noviça profissão
solene, tornando-se, então, esposa do Senhor. Tendo verda-
deira vocação para a vida do claustro, ia soror Joana desem-
penhando otimamente os seus deveres, cada dia mais esti-
mada pela comunidade. Em 1797, foi eleita para o cargo de
escrivã, que exerceu até 1801. De 1812 a 1814 desempe-
nhou as funções de vigária. Em 1815 foi eleita abadessa e,
finalmente, em 1821, reeleita para o mesmo cargo.
Dispensando às suas irmãs de hábito os carinhos de
mãe, vivia a santa religiosa toda entregue ao cumprimen-
to exato de suas obrigações, em amorosos colóquios com
Jesus Sacramentado e cuidando, cada vez mais, do aper-
feiçoamento espiritual de toda a comunidade, quando um
acontecimento inesperado veio perturbar a doce paz do
mosteiro.

***

89. Cf. Frei Basílio Rower, Madre Joana Angélica; J. Norberto, Brasileiras célebres,
e Prof. Dr. Bernardino José de Souza, Joana Angélica.

140
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Estamos em 1822. De um extremo a outro da nossa


pátria, o povo anseia por libertar-se do jugo estrangeiro.
O governo português vai-se tornando impotente para
sufocar as explosões de patriotismo dos brasileiros cujos
corações fremem de entusiasmo pelo santo ideal da inde-
pendência, que tem meses depois o seu glorioso desfecho,
na colina histórica do Ipiranga.
A antiga capital do Brasil, que havia aderido à procla-
mação da constituição portuguesa agitava-se ainda, e pa-
tenteava na sua efervescência tendências mais ou menos
pronunciadas para a emancipação nacional; as nuvens esta-
vam cheias de eletricidade, quando o vento compelindo-as
deu lugar ao choque e apareceu a explosão.
A rivalidade dos partidos dos generais Madeira e Ma-
noel Pedro atingiu o seu auge e correu às armas quando
chegou àquela cidade (de Salvador) a designação vinda de
Lisboa do general Madeira para comandante das armas,
em prejuízo da causa nacional, que seria no exercício da-
quele posto pelo general Manoel Pedro a expressão popular
simbolizada pelo voto da junta provisória, que dirigia então
os destinos da província.
“A junta, pretextando a ilegalidade do título conferido
ao general português, instalou um conselho militar para
comandar as tropas; mas estas compostas pela maior parte
de soldados de além-mar, procuravam lisonjear o amor-
-próprio do seu general, levando-o a não ceder; os brasilei-
ros reagiram e os dois partidos acharam-se em hostilidade
aberta no meio das ruas da cidade, entre as habitações dos
seus pacíficos moradores, que ficaram expostos a todas as
calamitosas vexações da guerra civil.”90

90. Cf. J. Norberto, Op. cit., pp. 200–4.

141
MADRE ANGÉLICA (1762–1822)

Na manhã de 20 de fevereiro,91 numeroso contingente


de tropa portuguesa ataca o Mosteiro da Lapa. Arrombada
a porta externa, facilmente os assaltantes penetraram no
pátio interno, e já iam profanar a clausura, quando os en-
frentou, valorosa e altiva, embargando-lhes o passo, a nobre
figura da abadessa!
— Para trás, bárbaros! Respeitai a casa de Deus. Antes
de conseguirdes os vossos infames desígnios, passareis por
cima do meu cadáver.
Embriagada de cólera, estremece a horda ululante da-
quelas feras ante a coragem inaudita da heroína brasileira,
e logo uma baioneta lhe atravessa o peito. A santa mon-
ja vacila, pende à frente para o solo sagrado que se tinge
do seu sangue generoso, e, suavemente se desata dos laços
terrenos, voando para o Céu, a alma abençoada de madre
Joana Angélica de Jesus.

91. O prof. dr. Bernardino de Souza, em seu substancioso trabalho, já citado, corrigiu,
à luz de documentos irrefutáveis, vários erros em que caíram alguns historiadores, ao
se referirem aos acontecimentos desenrolados na Bahia em 1822, e os biógrafos de
madre Joana Angélica. (N.A.)

142
PADRE JOSÉ
GONÇALVES92
(1771–1856)

Pautando a sua vida segundo


os ensinamentos de Nosso
Senhor Jesus Cristo, foi o Pa-
dre José Gonçalves um após-
tolo da caridade, um valoroso
conquistador de almas para o
Céu. Em Minas Gerais, terra
de seu berço e teatro dos seus
feitos memoráveis, o seu nome até hoje é lembrado, como o
de um santo benfeitor dos desventurados, e particularmen-
te como o amparo e guia dos negros, que viviam na triste
condição de escravos.

***

Filho dos abastados fazendeiros Francisco Gonçal-


ves Pereira e Dona Ana Maria da Conceição, nasceu José
Gonçalves em Caeté, a 11 de novembro de 1771. Depois
que aprendeu as primeiras letras, confiaram-no seus pais
aos cuidados do Pe. Joaquim Anastácio Marinho da Silva,
provecto educador e mestre de latim. Terminando o seu
estudo de latim, seguiu o inteligente jovem para Mariana,
onde cursou filosofia.
Falecendo seu pai, regressou José ao lar, e aí o piedo-
so jovem pouco depois se entretinha na caça aos veados,
abundantes nessa região. Um dia, após seu costumeiro di-

92. Cf. Pe. Joaquim Silveiro de Souza, Op. cit., pp. 45–129.

143
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

vertimento, sentara-se José à beira da estrada quando, por


aí passando o virtuoso padre Sá, velho amigo de sua famí-
lia, assim lhe falou:
— Que faz vossa mercê aqui que não vai se ordenar?
— Senhor – respondeu José Gonçalves – não tenho
mais ânimo de ordenar-me porque vivo muito doente.
— Ora, vá-se daí – tornou o padre. – E doente? Pois
sirva à Igreja como doente: nem todos podem ser sãos. Que
pena! Estar aqui enterrado na roça e a caçar veados quem
tantos dotes tem para caçar almas! Se Deus não foi servido
que desse esse gosto a seu pai, que tanto desejava, a sua
mãe o dê… e nada mais me diga e nem objete… Siga para
Mariana, e adeus!
Imediatamente partiu José para casa, referindo à sua
mãe o que acabava de suceder, e a resolução firme que to-
mara de se ordenar. E como havia o Servo de Deus de pro-
ceder de outro modo, se ele recebera os conselhos do Padre
Sá, como o de um mensageiro vindo direto do Céu?
Mais tarde, falando aos seus amigos sobre tal sucesso,
dizia o Pe. Gonçalves:
— Parecia que me havia falado um ente sobrenatural, a
cuja voz não me era dado resistir.
Dias depois do seu providencial encontro com o Padre
Sá, seguiu o Servo de Deus para Mariana, prestou exames e
obteve demissórias para se ordenar. Regressando à fazenda
de sua mãe, logo partiu para o Rio de Janeiro, onde recebeu
todas as ordens, inclusive a de presbítero, das mãos do vir-
tuoso prelado dom José Joaquim Justiano de Mascarenhas
Castello Branco.

***

Fixando residência em Roças Novas, Minas Gerais, no


ano de 1800, aí se deparou ao novo sacerdote um campo

144
PADRE JOSÉ GONÇALVES (1771–1856)

vastíssimo para a evangelização do povo. Embora preven-


do que iria granjear desafetos entre os ricos senhores de
escravos dessa região, encetou desassombradamente o seu
apostolado em prol dos pobres cativos.
“Para aí onde era mais profundo a miséria, lançou-se o
estrênuo lutador com os ímpetos irresistíveis da caridade.
Para os escravos foram os primeiros eflúvios do seu paterno
amor. Eram mais infelizes, e por isso mesmo mais sagrados
os seus direitos.”
Conseguindo de muitos fazendeiros autorização para
que seus escravos se apresentassem na povoação, aos do-
mingos e dias santos, a fim de ouvirem missa, aproveitava o
Pe. Gonçalves para lhes ministrar o pão da palavra divina.
Após a missa, reunia-os o Servo de Deus em sua casa, onde
em insuperável carinho lhes ensinava a doutrina cristã.
Mas não somente às almas dos escravos se irradiava a
caridade do apóstolo. Ele procurava também favorecê-los
materialmente, conseguindo que alguns senhores lhes con-
cedessem um ou dois dias por semana para trabalharem
nas suas lavouras em seu exclusivo proveito.
Tão abençoados foram os trabalhos abnegados do Ser-
vo de Deus, que numerosos escravos se tornaram cristãos
modelares: obedientes, resignados, castos… E esse pro-
gresso espiritual dos escravos impressionava de tal sorte os
seus senhores, que não pouco dentre estes buscavam o Pe.
Gonçalves, suplicando-lhe que também lhes ensinasse o
caminho do Céu.
Quando senhores ou feitores de escravos, famosos por
sua crueldade, se chegavam ao santo sacerdote, pedin-
do que os ouvissem em confissão, não os atendia ele, sem
primeiro lhes fazer ver quais as suas obrigações para com
Deus e com o próximo. E com enérgica constância lhes
requeria promessa de serem humanos daí em diante. Assim
conseguiu que muitos senhores em Roças Novas e outra

145
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

freguesias, de cruéis se tornassem não só humanos, senão


até caridosos e benignos.

***

Quando já em idade avançada, recordava essa cruzada


santa em prol dos cativos, dizia o Pe. Gonçalves:
— Que sinceros não são os negrinhos! Uma vez con-
vencidos da necessidade de observar-se a lei de Deus, di-
fícil é arrancá-los daí. Tive pretinhos, cujas virtudes, amor
de Deus, rigidez de penitências, por muitas, muitas, vezes
invejei; e hoje ainda consola-me a ideia que muitos lá estão
no Céu, pedindo a Deus por mim.
A solidão foi sempre um salutar atrativo para as almas
predestinadas. Nenhum lugar se deparava ao Pe. Gonçal-
ves tão propício à meditação e à prece, como a ermida da
Virgem, erigida no cimo da Serra da Piedade. Frequentan-
do-a assiduamente, quão alto aí se não elevaria sua alma na
contemplação das coisas celestes! O amor imenso que pela
conversão dos pecadores inflamava o coração do Servo de
Deus, inspirou-o a instituir, nessa histórica ermida, a práti-
ca dos exercícios espirituais para o povo. Apenas difundiu-
-se a fama de tão excelente prática, acenderam-se todos os
corações em desejo de a frequentarem.
De longes terras acudia o povo; vilas e cidades circunvi-
zinhas abalavam-se e, deixados os negócios, desertas as ca-
sas, iam habitar por alguns dias as assomadas da Serra; aca-
nhado era o templo para conter o povo, e já transbordava
fora ondeando pela esplanada exterior e declives da Serra.
Brilhantes conversões se anunciaram desde logo, e mui-
tas foram as pessoa que, lançando-se aos pés de tão irresis-
tível adversário do vício, lhe segredaram aos ouvidos torpes
mazelas que na consciência abafavam anos e anos.

***

146
PADRE JOSÉ GONÇALVES (1771–1856)

Disposta a regressar à prática dos Sacramentos, de que


vivia afastada, uma respeitável senhora, residente em Sa-
bará, foi, certa ocasião, acompanhada de suas filhas, até a
ermida de Nossa Senhora. Recebida paternalmente pelo
Servo de Deus, animou-se logo a fazer-lhe a confissão ge-
ral dos seus pecados.
O santo confessor soube tão bem infundir na alma des-
sa penitente sentimentos de contrição e amor de Deus, que
ela saiu do tribunal sagrado com a inabalável resolução de
nunca mais ofender a Nossa Senhora.

***

Tendo de regressar ao lar, após tantas horas de gozo es-


piritual aos pés de Maria Santíssima, na união íntima com
Jesus, ela penetrou de novo no santuário, e, debulhada em
lágrimas, dirigiu esta súplica à Virgem da Piedade: “Mãe
minha, e Mãe de meu Deus, se descendo a Serra hei de
novamente sucumbir na desdita de ofender vosso Filho,
permiti que deste lugar não me possa mais erguer”.
Terminada esta invocação, caiu a penitente sobre o as-
soalho da igreja. Correram os circunstantes para erguê-la.
Estava morta. A Virgem atendera os seus rogos tão sinceros.

***

A casa do Pe. José Gonçalves era um refúgio dos neces-


sitados. Quantas a quantas vezes suas portas se não abri-
ram, para receber enfermos, ou forasteiros! Fosse dia ou
noite, estava o santo varão sempre disposto a todos acolher
com a máxima caridade.
Uma vez, certo indivíduo, penetrando no quintal da
mesma casa, começou a colher mantimentos, depositando-
-os num jacá. Quando ia retirar-se, tentando pôr aos ombros

147
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

a pesada carga, avistou-o o venerável sacerdote que, para


ele encaminhando os passos, assim lhe falou: “Meu filho,
para que te expôs a rebentar com este peso? Leva o que
comodamente puderes agora, e volta a buscar o que ficar.
De boa vontade te dou, pois não desejo que manches a
consciência com pecado e fique Deus mal contigo. Anda,
não temas. E sempre que houver fome, encaminha-te para
minha casa, e eu hei de despedir-te, de mãos vazias”.
Depois, humildemente auxiliou o ladrão a pôr às costas
o jacá. Esse pecador não pôde resistir a tão santa lição, con-
vertendo-se e tornando-se virtuoso.

***

Sofreu o Padre Gonçalves, com angélica resignação,


muitas calúnias e perseguições de gratuitos inimigos, mas
a todos perdoava.
Um dos mais rancorosos detratores do Servo de Deus
tinha um escravo favorito, que, ao passar certo dia por uma
estrada, caiu do animal que montava, fraturando uma perna.
Sabedor do caso, apressou-se o santo sacerdote em fazer re-
mover o doente para sua casa, encanando-lhe a perna, e ficou
sendo o seu enfermeiro. Restabelecido o escravo, mandou-o o
Padre José para a fazenda do seu inimigo. Este teve a ousadia
de escrever ao Servo de Deus, perguntando quanto lhe devia
pelo favor. O inclíto varão respondeu-lhe humildemente que
“só queria ter nova ocasião de prestar-lhe serviços”.
Refletindo na má ação que praticava e arrependendo-se
de todo o mal que havia feito ao padre Gonçalves, tornou-
-se o fazendeiro, daí em diante, seu amigo e venerador.

***

148
PADRE JOSÉ GONÇALVES (1771–1856)

Além da relação das heroicas virtudes do Pe. José Gon-


çalves, o seu preclaro biógrafo também nos fala das suas
devoções. Uma das principais era meditar na sagrada Pai-
xão do Redentor.
Mesmo avançado em anos, não deixava ele de a mani-
festar publicamente. Repleta a igreja de povo, revestia-se
o venerável sacerdote de alva e cordão, punha aos ombros
uma cruz, e lá se ia percorrendo as estações da Via Sacra,
dando, assim, aos fiéis o mais precioso exemplo de piedade.

***

Com 84 anos já completos, faleceu o Pe. José Gonçal-


ves, a 3 de março de 1856. As lágrimas de quantos o tra-
taram, os soluços e gemidos com que era constantemente
interrompida a oração fúnebre que lhe fez o Padre Jacinto
José de Almeida, o extraordinário concurso do povo, e clero
às suas exéquias a veneração que prestam até hoje à sua
memória, são seguro penhor da sua felicidade no Céu e cá
embaixo seu mais pomposo padrão de glória.

149
IRMÃ GERMANA
(1782–1856)

Dentre as maravilhas com que o Criador enriqueceu a


natureza brasileira, podemos citar a Serra da Piedade, tão
enaltecida por cientistas de renome, como Saint-Hilaire,
Martius, Spix e outros. No píncaro dessa formosa serra se
destaca, como refúgio de paz e manancial de bênçãos, a
branca ermida da Virgem, aí erigida há quase dois séculos,
pela devoção do fidalgo Bracarena.93
Para esse lugar bendito, habitado outrora por piedosos
ermitãos,94 convergiram, durante os trinta anos em que aí
residiu a irmã Germana, milhares de romeiros; não somen-
te por devoção a Nossa Senhora, mas para verem a santa
em seus êxtases singulares.

***

Germana Maria da Purificação nasceu num recanto de


Minas Gerais, a 2 de fevereiro de 1782. De humilde condi-
ção social, aí vivia ela pobremente, sofrendo desde menina,
uma moléstia que lhe tolhia os movimentos e só lhe permi-
tia locomover-se engatinhando.
Extremamente piedosa, cada vez que Germana con-
templava a Serra da Piedade, intenso véu de tristeza lhe
envolvia a alma. É que ela divisava, inteiramente abando-
nada, a ermida de Nossa Senhora, erguida naquelas para-
gens majestosas em tempos de ardente fé, para o culto da
Mãe de Deus. Bem poderia ela habitar ao lado da vetusta

93. Cf. Pe. Joaquim Silveiro de Souza, Op. cit., pp. 24, 40, 41, 42, 43 e 346.
94. Loc. cit.

150
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

igrejinha, da qual seria solícita zeladora, vivendo ali os dias


breves ou longos da sua peregrinação terrestre, entregando-
-se às suas prediletas e piedosas meditações.
Ao impulso de tão santos desejos, e depois de ouvir o
seu virtuoso confessor e obtida a necessária licença da au-
toridade eclesiástica, foi Germana residir na casa anexa à
ermida da Piedade, tendo por única companheira sua irmã
Dionísia.
Metade da existência ali passou a Serva de Deus, trans-
portando-se depois para o Recolhimento de Macaúbas, a
17 de setembro de 1843,95 onde serenamente fluíram os
últimos treze anos de sua vida admirável. Os fenômenos
que por tantos anos se deram com a virtuosa donzela, mo-
tivaram fortes discussões pela imprensa.
Vários médicos a examinaram, em diferentes épocas,
tendo dois dentre eles, os Drs. Antônio Pedro de Souza e
Manoel Quintão da Silva afirmado por escrito, que os êx-
tases da Serva de Deus eram cientificamente inexplicáveis;
opinando, por isso, pelo seu caráter sobrenatural.96
Outro clínico, o Dr. Antônio Gonçalves Gomide, pu-
blicou, em 1814, um opúsculo, no qual, contestando os
argumentos desses seus colegas, procurou provar que os
fenômenos eram de origem cataléptica.97 Censurável foi
o procedimento deste médico, que audaciosamente emitiu
sua opinião, sem dar-se ao trabalho de fazer uma visita à
enferma e estudar os seus êxtases.98
O milagre é um fato, tanto na ordem física, como na
ordem moral e intelectual. A sua realização reveladora da
onipotência divina é, pois, uma humilhação para o orgulho

95. Ibidem.
96. J. Norberto, Op. cit., p. 137.
97. Cf. Pe. Joaquim Silveiro de Souza, Op. cit., p. 345; e J. Norberto, Op. cit.
pag. 137.
98. J. Norberto, Op. cit., p. 140.

151
IRMÃ GERMANA (1782–1856)

dos cientistas ímpios, que tudo pretendem explicar natu-


ralmente. Em face de um milagre físico, que é a mais evi-
dente prova do sobrenatural, esses materialistas ainda mais
se desorientam, e, não podendo negá-lo, sofismam.
Houve também quem julgasse a irmã Germana uma
histérica. Ora, comparando as manifestações psicológicas
das histéricas com as da Serva de Deus, notamos existir en-
tre elas profundo antagonismo. “A histérica (ou histérico)”,
disse o eminente médico Dr. Felício dos Santos, “é eivada
de mitomania – a mentira automática, projetando em ob-
jetivo real o subjetivo simplesmente imaginado. Dá a si e
a quanto pensa uma importância extravagante, chegando,
às vezes, a julgar-se autora ou causa de acontecimentos em
que é estranha. É dramática, procura chamar a si a atenção,
exagerando a cena dos seus fenômenos físicos e morais; daí
o aforismo clássico – que em todo histerismo há 90% de
comédia. Tem um horizonte acanhado em suas concepções
sempre apaixonadas e não raro delirantes. É filauciosa, tei-
mosa, desobediente, orgulhosa…”.99
A irmã Germana, ao contrário das histéricas, era o pro-
tótipo da humildade, da modéstia, da paciência, da obe-
diência e da caridade. Tinha sincero horror ao exibicionis-
mo. Seu maior prazer era viver oculta, longe do mundo,
toda entregue à meditação das coisas celestes.
Em vista dos documentos que consultamos, não tre-
pidamos em afirmar que, durante os 50 anos em que se
repetiram semanalmente os êxtases da Serva de Deus, e até
hoje, ninguém pôde demonstrar com bases sólidas serem
eles motivados por qualquer enfermidade. Foram esses êx-
tases, portanto, humanamente inexplicáveis.

***

99. Cf. Dr. A. Felício dos Santos, “Casos reais a registrar”, p. 147.

152
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

O sábio naturalista Augusto Saint-Hilaire assim se


exprimiu, numa descrição que fez da sua visita à ermida
da Piedade, onde teve ocasião de observar atentamente os
êxtases da irmã Germana:
“Quando ali cheguei, havia já muito tempo que ela se
não levantava mais da cama, e a dose de alimentos, que
tomava diariamente, apenas excedia a que se dá aos recém-
-nascidos. Não comia carne e rejeitava igualmente todos os
alimentos gordurosos, e não podia sequer levar um caldo.
“Pedi que me mostrassem a enferma, e conduziram-me
a um pequeno quarto, onde jazia continuamente deitada.
Vi-lhe o rosto dentre um lenço, que lhe encobria a cabeça,
e não me pareceu ter mais de 34 anos de idade, que era a
que com efeito se lhe atribuía. Sua fisionomia simpática e
agradável indicava grande magreza e extrema debilidade.
“Perguntei-lhe como estava, e respondeu-me, com voz
quase extinta, que estava melhor do que na realidade o
merecia. Tomei-lhe o pulso, e surpreendeu-me a sua forte
aceleração.
“Tendo subido de novo na sexta-feira, pedi que me
conduzissem outra vez ao seu aposento. Estava deitada em
sua cama e tinha a cabeça envolta num lenço. Seus braços
estavam abertos, sendo que a parede impedia que um deles
se estendesse livremente e o outro saía além do leito, e era
sustentado por um tamborete. Tinha a mão extremamente
fria, os dedos polegar e indicador estendidos e os outros
encolhidos: os joelhos curvos e o pés encurvados. Nesta
posição conservava a mais completa imobilidade; sentia-
-se-lhe apenas o pulso, e podia-se supô-la sem vida, se pelo
efeito da respiração o seu peito não fizesse elevar-se leve-
mente a sua colcha.
“Procurei por vezes dobrar-lhe os braços, mas inutil-
mente; a rigidez dos músculos aumentava na razão dos
meus esforços, e creio que não poderia empregar mais

153
IRMÃ GERMANA (1782–1856)

força sem inconveniente para a enferma. Verdade é que fe-


chei uma e mais vezes as suas mãos, mas logo que as deixa-
va, tomava a sua postura de costume.
“A sua irmã, que velava quase sempre ao seu lado, e que
se achava presente nesta ocasião, me disse que nem sem-
pre esta pobre se mostrava tranquila em seus êxtases, como
estava então, e que na verdade os pés e braços ficavam
constantemente imóveis, mas que ela arrancava suspiros e
gemidos, batia com a cabeça sobre o travesseiro, e que pelas
três horas da tarde manifestavam-se-lhe movimentos con-
vulsivos: era esse o momento em que Jesus Cristo soltara o
derradeiro suspiro.”100
Anos depois, quando a irmã Germana vivia no Re-
colhimento de Macaúbas, outro ilustre cientista, o Dr.
Pascoal Pacini, professor de história natural do museu de
Palermo e diretor da academia da mesma cidade, teve tam-
bém ocasião de visitá-la, com permissão do santo bispo de
Mariana, dom Antônio Ferreira Viçoso. O Dr. Pacini foi
acompanhado pelo virtuoso Pe. Luiz Antônio dos Santos,
mais tarde arcebispo da Bahia, e depois de acuradamente
examinar a Serva de Deus, empregou todos os meios para
magnetizá-la. Infrutíferos, porém, foram os seus esforços.
Deu-se esse fato a 19 de agosto de 1844.101
Saint-Hilaire já havia feito a mesma experiência, mas
inutilmente.102
Por ocasião dos seus êxtases, somente os sacerdotes e,
mais tarde, as madres regentes do Recolhimento, podiam
mover os braços hirtos da Serva de Deus.103
Os homens de ciência bem tentaram fazê-lo, mas com
resultado negativo.

100. Cit. por J. Norberto, Op. cit., p. 139–142.


101. Cf. Pe. Joaquim Silveiro de Souza, Op. cit., pp. 145, 344, 345, 346, 349, 353 e 354.
102. Ibidem.
103. Ibidem.

154
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

***

Era admirabilíssimo o espírito de mortificação da


irmã Germana. Não comia coisa alguma que houvesse
padecido morte, dizem as pessoas que a conheceram.
Ovos, algum leite, arroz temperado com óleo de amen-
doim, eis sua alimentação, e tão parca, tão diminuta que
assombrava a todos que não se finasse de inanição.104
E até o fim da vida, apesar de enferma nunca modificou
sua alimentação.
Nenhuma religiosa do seu tempo jamais a suplan-
tou na exata observância dos estatutos do seu convento.
Todos a consideravam santa, e cada dia mais crescia a
legião dos que a veneravam e a ela se dirigiam pedindo
orações. Muitos casais em desarmonia, depois que ou-
viram seus conselhos, passaram a viver em paz. Mais de
um venerando prelado costumava recorrer às orações da
Serva de Deus.
Dom Antônio Ferreira Viçoso, ao ser eleito bispo de
Mariana, escrevendo ao seu amigo Pe. Luiz Antônio dos
Santos, terminou com o seguinte P.S.: “Diga ao senhor Pa-
dre Gonçalves e à Irmã Germana que o nosso direito às
suas orações é superior a toda a expressão verbal.”105
Referindo-se ao Recolhimento de Macaúbas, disse o
insigne dom Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Ja-
neiro: “É ponto de grande honra para esta casa, que Ger-
mana nela residisse.”106
Já vimos que à Serva de Deus, durante muitos anos, não
era possível andar e somente engatinhava; pois bem, veja-
mos agora como começou ela andar em posição natural.

104. Ibidem.
105. Ibidem.
106. Ibidem.

155
IRMÃ GERMANA (1782–1856)

Realizava-se no Convento de Macaúbas a cerimônia


em que devia Germana tomar o hábito. Em certo pon-
to, quando o sacerdote, esquecido da enfermidade de que
sofria a virtuosa postulante, lhe disse: “Levanta-te, sobe e
vem receber o hábito”, ela avançou, manquejando, mas an-
dando ereta, e nunca mais engatinhou.107
No claustro de Macaúbas, levaram-na as irmãs para o
coro alto da igreja, ou para a capela contígua, dedicada ao
Senhor dos Aflitos, e aí deixaram-na assistida por outras
ao anoitecer da quinta-feira, pois começava a crucificação
ao soar no relógio a hora da meia-noite. Então admirava a
todos o caso estupendo que passo a referir.
Depois de ter ficado muitas horas em estado de cruci-
ficação, quando na Sexta-feira Santa, chegava o meio-dia,
Germana erguia-se crucificada como estava, e encostada à
parede da capela ficava com os braços estendidos em cruz,
e firmando-se apenas por um dos dedos polegares do pé, a
que se sobrepunha o outro, neste estado permanecia até as
três horas da tarde, voltando então para a esteira, na qual
continuava crucificada até o dia seguinte.
Não menos para assombro é o que contam pessoas de fé,
e foi averiguado pelo Dr. José Marcellino da Rocha Cabral.
Ainda quando crucificada, e ao parecer alheada dos
sentidos, a levaram na mesma esteira, onde jazia, para a
igreja à hora da celebração do Santo Sacrifício da Missa.
Em estado de crucificação aturava Germana até a hora da
consagração. Mas assim que o celebrante, voltando-se para
o povo, e tendo nas mãos a vítima da Propiciação, proferia
as palavras: Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit, etc., ei-la a sú-
bitas que aparecia de joelhos, prestes a receber Nosso Se-
nhor, conservando os braços abertos, os pés na posição dos
crucificados. Enleados de pasmo, atalhados de admiração,
os circunstantes acabavam por acreditar sobre-humano o
107. Ibidem.

156
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

prodígio, pois, por mais que fixassem a atenção, impossível


lhes era descobrir como se operava em Germana tão con-
tínua mutação, sem ponto de apoio, e sem que lhe fosse
necessário descruzar os pés, menear os braço ou firmar-se
neles para levantar-se.”108

***

A obediência foi uma das peregrinas virtudes da Serva


de Deus. Numa terça-feira em que se repetia o fenômeno
de ficar em êxtase com as mãos para trás, como o Divi-
no Mestre, atado à coluna, ordenou-lhe a madre regente
que não mais ficasse nessa posição. Prontamente obedeceu
Germana, e nunca mais em seus êxtases ficou em tal po-
sição.109
A devoção por Jesus Sacramentado tinha no coração de
Germana profundas raízes. Passava ela horas a fio diante
do Tabernáculo, humildemente prostrada, orando e suspi-
rando. Comungava frequentemente, só deixando de fazê-lo
quando o seu confessor, para mais aumentar sua virtude,
lho proibia. Com paciência evangélica, tudo sofria a Serva
de Deus, nunca tendo demonstrado, mesmo quando atin-
gida por dolorosas enfermidade, o menor gesto de enfado.

***

A 14 de janeiro de 1856, depois de estar enferma du-


rante três semanas, e de receber todos os Sacramentos, em
seu perfeito juízo, entregou Germana a sua santa alma ao
Criador.110

108. Ibidem.
109. Ibidem.
110. Ibidem.

157
IRMÃ GERMANA (1782–1856)

E até hoje, no mosteiro de Macaúbas, se conserva ca-


rinhosamente, a memória de tão extraordinária Serva de
Deus, que foi durante meio século, como disse ilustre autor:
“um quadro vivo da sagrada Paixão de Nosso Senhor Jesus
Cristo”.111

111. Cf. Leituras Populares da Sagrada Paixão, por um sacerdote da Congregação da


Missão, 2ª ed., 1883, p. 533.

158
PADRE IBIAPINA112
(1805–1883)

A memória deste Servo de


Deus é venerada, não só no
Ceará, seu berço natal, mas
em outros Estados do nor-
deste do Brasil, como Per-
nambuco, Rio Grande do
Norte, Piauí e Paraíba. Ainda
existem numerosos fiéis que
o conheceram de perto, nos
últimos anos de sua existência e que dão testemunho das
duas excelsas virtudes; tendo, talvez, muitos, dentre eles,
presenciado os prodígios que se realizam durante as mis-
sões do santo sacerdote.

***

Nasceu o ínclito varão a 6 de agosto de 1805, na po-


voação de Ibiapina, antiga aldeia de índios da tribo dos
Tabajaras. Desde menino revelou o Servo de Deus robusta
inteligência; e nos colégios que frequentou, ocupou sempre
lugares de destaque entre os seus companheiros de estudo.
Com decidido pendor para o ministério sacerdotal,
entrou para o seminário de Olinda, mas, por várias cir-
cunstâncias, teve de interromper seus estudos eclesiásticos,
sendo uma delas, o ter ficado órfão de pai e ser obrigado a
assumir a chefia de sua família, que se compunha, então, de
sua mãe, três irmãs e um irmão menor.

112. V. Cônego José Paulino Duarte da Silva. “Padre Ibiapina” (Notas sobre a sua
vida, extraídas do arquivo da “Casa da Caridade” da Santa Fé).

159
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Em vista de tais entraves à carreira sacerdotal, começou


o Servo de Deus a frequentar o curso jurídico de Olinda, e
aí recebeu o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais.
Mesmo no meio da sociedade, não se deixou Ibiapi-
na prender por nenhuma sedução que a sua consciência
de piedoso cristão reprovasse. Foi advogado acatadíssimo
e íntegro juiz de direito. Impulsionado pelo amor à pátria
e supondo poder prestar-lhe maiores serviços como polí-
tico, consentiu que o elegessem deputado em 1834; mas,
em pouco tempo, cheio de decepções, abandonou a carreira
política, abrindo novamente o seu escritório de advocacia.
Um dia, porém, rotos os liames que o prendiam ao
mundo, e sentindo-se cada vez mais atraído para o divi-
no serviço, como Santo Afonso de Ligório, trocou a toga
pela batina. Entrando para o seminário de Olinda, depois
de concluídos alguns estudos que lhe faltavam, recebeu o
presbiterato das mãos do bispo dom João da Purificação
Marques Perdigão, a 3 de julho de 1853. Conhecendo-lhe
as virtudes e aptidões, convidou-o esse prelado, pouco tem-
po depois, para seu vigário geral e professor de eloquência
sagrada do seminário de Olinda.
Somente por extrema obediência aceitou o Padre Ibia-
pina esses cargos, pois o seu ideal era tornar-se missionário,
para arrebanhar as almas que, aos milhares, viviam afasta-
das dos caminhos de Deus.
Depois de exercer cargos por algum tempo, conseguiu
o venerando sacerdote que o prelado o dispensasse, e, uma
vez exonerado, iniciou as suas pregações admiráveis. De po-
voação em povoação, de vila em vila, de cidade em cidade,
por toda a parte, enfim, o santo sacerdote arrastava as mul-
tidões fascinadas pela sua palavra eloquente, inflamada de
fé e caridade. Ao ouvi-lo, milhares de assistentes se dispu-
nham logo a emendar a vida: os bons cristãos tornavam-se
mais fervorosos, e os viciados corriam, arrependidos, a seus

160
PADRE IBIAPINA (1805–1883)

pés, chorando as suas culpas, em busca do perdão sacra-


mental.
Notava-se logo em todos os povoados que tinham a
graça de acolher o santo missionário, uma radical mudança.
Havia mais sossego nos lares, mais sinceridade nas afeições,
mais pureza nos costumes. O povo se regenerava.
“Quando em 1862, os homens se entregavam aos ex-
cessos da política, em que cada um via ameaçada a própria
vida, sem que se respeitasse sequer o santuário da família,
súbito lhes apareceu o santo missionário, como o anjo bom
do lar, e com a sua palavra ungida de ternura e mansidão
evangélica, acalmou as paixões, fez esquecer as rivalidades,
amenizou os costumes e restituiu-os à paz e à amizade de
irmãos.”113
Durante a sua vida de missionário, o Servo de Deus
construiu numerosas igrejas, asilos, orfanatos e hospitais.
Somente na então província do Ceará, fundou o intrépi-
do sacerdote, as casas de caridade de Crato, Missão-Velha,
Barbalha, Sant’Anna, Milagres e Sobral.
Para beneficiar o povo na época tremenda das secas,
construiu vários açudes. Conta-se que se deram vários pro-
dígios, com pessoas enfermas, que após beberem da água
de alguns desses reservatórios recuperaram a saúde.
Um convertido do padre Ibiapina, o “irmão” Inácio, foi
o seu infatigável auxiliar, como esmoleiro para maior di-
fusão dos seus institutos de caridade. Durante o período
em que reinou uma formidável seca, de 1878 a 1879, foi o
“irmão” Inácio à corte, a mandado do Servo de Deus, e aí
conseguiu apreciáveis auxílios para matar a fome de milha-
res de indigentes.
Para dirigir os seus hospitais e asilos, instituiu o Padre
Ibirapina uma congregação de irmãs, com regulamento por
ele mesmo elaborado. E até nossos dias, prestam as boas
113. Cf. Antônio Bezerra, Notas de viagem ao monte do Ceará, pp. 58 e 59.

161
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

religiosas os maiores serviços à causa dos infortunados.


Basta-nos citar a “Casa de Caridade”, de Santa Fé, onde
a dedicação dessas irmãs paira acima de qualquer elogio.
Quando o santo padre Ibiapina chegava a um dos seus
orfanatos, enchia de carícias as suas queridas orfãzinhas e
ordenava que se preparasse a mesa das refeições com pra-
tos mais delicados, distribuindo ele mesmo o alimento às
criancinhas. Nos hospitais, animava os enfermos e tratava-
-os como o melhor dos pais. Nas igrejas, antes e depois das
suas frutuosíssimas pregações, sentava-se no confessioná-
rio, onde passava muitas horas a ouvir e absolver penitentes.
Era tão amigo da mortificação que, mesmo velho e en-
fermo, não era raro ficar no confessionário, desde a manhã
até uma hora da tarde, em que se levantava para ingerir
algum alimento.

***

Ao começar o ano de 1883, foi o santo padre Ibiapina


visitar a sua Casa de Caridade de Santa Fé, em Paraíba do
Norte. Aí se lhe agravaram as antigas enfermidades, e, a
19 de fevereiro do mesmo ano, pressentindo que chegara
o seu último dia, pediu e recebeu os Sacramentos que lhe
foram administrados pelo vigário dessa paróquia, Pe. José
Eufrosino de Maria Ramalho, e entre 2 e 3 horas da tarde,
entregou sua alma ao Criador.
Contava, então, esse apóstolo insigne e ardoroso patrio-
ta pouco menos de 78 anos de idade.
No dia seguinte, às 6 horas da manhã, foi celebrada a
Missa de corpo presente, ficando depois o cadáver do Ser-
vo de Deus em exposição aos fiéis. O seu sepultamento rea-
lizou-se às 2 horas da tarde, sendo o esquife acompanhado
pelo reverendíssimo vigário, o Pe. José Januário, e enorme
multidão, onde se viam também as suas filhas espirituais,

162
PADRE IBIAPINA (1805–1883)

diretora e demais irmãs da Casa de Caridade. As lágrimas


e soluços dos que tomaram parte nesse imponente cortejo
eram bem a prova do amor que consagravam ao santo ben-
feitor do povo e grande apóstolo de Jesus Cristo.

163
NHÁ CHICA114
(1808–1895)

Francisca de Paula de Jesus,


uma mulher de quem se pode
dizer que nomen est omen – “o
nome foi o destino”. Dedica-
da aos pobres, qual o santo de
Assis; esposa de Cristo, por
ser verdadeiramente de Jesus,
essa mulher nasce da carne
no ano de 1808 e para a Igre-
ja em 1810, ao receber o sacramento do batismo. Filha e
neta de escravos, Francisca nasce num povoado de São João
Del-Rei, cidade histórica de Minas Gerais. Ainda menina,
muda-se com a mãe para outra cidade do mesmo estado:
Baependi. Aos dez anos de idade fica órfã, mas sua cuida-
dosa mãe, antes de morrer, confia a filha às mãos de Nossa
Senhora, recomendando à menina que permaneça solteira
durante toda a vida e seja uma leiga consagrada à causa do
Senhor.
Popularmente conhecida como Nhá Chica, seu apelido
provém da corruptela de “sinhá”, que por sua vez é corrup-
tela de “senhora”. É também dessa forma simples e cari-
nhosa que a santa de Baependi se refere à Virgem Maria:
“a minha sinhá”. Numa época em que a escravidão ainda
era vigente no país, Francisca, filha de uma escrava liberta
e, consequentemente, uma moça livre, não tinha medo de
se declarar escrava, por amor de Nossa Senhora.

114. A presente mini-biografia não constava da edição original e, como os demais


relatos do Apêndice a seguir, foi produzida como conteúdo exclusivo da Minha
Biblioteca Católica.

164
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Nhá Chica dava atenção a todos que a procurassem:


políticos, gente do povo; não fazia acepção de pessoas e
rezava por qualquer um que pedisse sua intercessão. Ainda
em vida alcançou fama de santidade, e quando lhe pergun-
tavam como alcançava tantas graças, respondia simples-
mente: “é porque eu rezo com fé”. Mulher humilde, não
sabia ler, mas apesar disso conhecia muitas passagens bí-
blicas, pois pedia que lessem para ela. Sua vida era voltada
ao serviço cristão, sempre disposta a rezar e dar esmolas.
Conta-se também que às sextas-feiras intensificava suas
orações, especialmente às três horas da tarde, em honra da
morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz. Nesse dia
não fazia atendimentos, pois era seu dia de ter intimidade
com o Senhor. Sua simplicidade era natural e em sua vida
aplica-se o que Cristo disse no Evangelho de São Ma-
teus: Deus revela as Suas coisas àqueles que são pequenos
(cf. Mt 11,25).
Um dos pedidos que a Santíssima Virgem lhe confiara
fora a construção de uma capela em honra de Nossa Se-
nhora da Conceição, de quem Nhá Chica era muito devo-
ta. Mulher pobre, duvidava-se que conseguiria construir o
edifício, mas Nhá Chica era fervorosa: um pedido feito por
Nossa Senhora não seria negligenciado e certamente a Si-
nhá daria um jeito de realizar a obra. A santa de Baependi
recebe uma herança do irmão e aplica parte do dinheiro
na ornamentação de ouro do altar da igreja local. A outra
parte do dinheiro investe na construção da capela pedi-
da por Nossa Senhora. Percebe-se, daí, a relação de Nhá
Chica com as coisas deste mundo: os bens materiais eram
usados para a maior glória de Deus. Inicia-se a construção
da capela, mas o mestre de obras transmite uma notícia
desanimadora: a quantidade de tijolos não era suficiente!
Nhá Chica, no entanto, não se deixa abater e confia na Pro-
vidência divina. E o milagre acontece. Não faltou e nem

165
NHÁ CHICA (1808–1895)

sobrou sequer um tijolo para a construção da capela. Havia


a quantidade exata para a edificação do templo.
Mas os milagres não pararam por aí! Nhá Chica rece-
beu um pedido de Nossa Senhora: um órgão para a capela.
A beata não sabia o que era esse objeto, mas comunicou
ao padre local o pedido da Virgem. O sacerdote explica
que o órgão é um instrumento musical muito caro e que
provavelmente não haveria como adquirir um. Nhá Chi-
ca, contudo, não desanima. Um pedido de Nossa Senhora
não pode ser ignorado! A santa entra em contato com o
maestro Francisco Raposo, um músico que já tocara para o
imperador, e Raposo realiza a compra do instrumento na
cidade do Rio de Janeiro. O transporte de um órgão não é
fácil, e no século XIX era ainda mais complicado. Levado
de trem até a cidade de Barra do Piraí, no interior flumi-
nense, o instrumento segue viagem até Minas Gerais num
carro de bois. Chegando em Baependi, todos aguardavam
para ver o órgão ser dedilhado pelo maestro, mas qual não
foi a surpresa no dia da grande inauguração: as teclas do
órgão não funcionavam. Nhá Chica fica triste, mas agar-
ra-se em Nossa Senhora, reza com fé e faz uma profecia: o
órgão funcionaria perfeitamente no dia seguinte. E a pro-
fecia se cumpre. O maestro Raposo dedilha habilmente o
instrumento, que espalha seu som majestoso pela capela,
deixando todos admirados.
Nhá Chica faleceu em 14 de junho de 1895 e pessoas
que estiveram em seu velório testemunharam odor de rosas
exalar de seu corpo. O mesmo odor foi sentido quando da
exumação para o processo de beatificação, em 1998. Per-
cebe-se, assim, os sinais de Deus confirmando a santidade
de Sua serva. A beatificação ocorre em de 4 de maio de
2013, após a comprovação de um milagre realizado por sua
intercessão na vida da professora Ana Lúcia Meirelles Lei-
te, que foi curada de um problema congênito no coração.

166
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Em 1995, Ana Lúcia sofreu uma isquemia e precisou fa-


zer uma série de exames médicos, que constataram uma
alteração cardíaca. Um dia antes da cirurgia a professora
fica com febre, o que a impossibilita de ser operada. Uma
nova data é marcada para o procedimento e novos exames
são realizados, que demonstram não mais ser necessária a
operação, pois o coração de Ana Lúcia estava restaurado e
funcionando normalmente, por obra divina alcançada me-
diante a intercessão de Nhá Chica.
A capela construída por Nhá Chica, em honra de Nos-
sa Senhora da Conceição, ainda existe, assim como a casi-
nha simples onde viveu a santa de Baependi. Sua fama de
santidade espalha-se mais e mais pelo país, que aguarda
ansiosamente o dia em que essa simples mulher ganhará a
honra dos altares.

167
DOM VITAL
(1844–1878)

“No silêncio de minha prisão,


além das doces consolações
que me inundam o coração,
ao contemplar, cá do fundo
do meu forçado retiro, a pro-
digiosa transformação que,
pela reação se vai de dia em
dia operando na cara terra de
meu berço, um pensamento
há que diminui consideravelmente e equilibra o peso da
minha cruz, destila-me na alma a mais serena alegria, pres-
ta-me certa força e favor tal que não sei definir, leva-me,
em uma palavra, a preferir mil anos de cárcere, se possível
fora, com os mais cruciantes tormentos, a mil séculos de
liberdade com todos os aconchegos e regalos da vida, por
um só ato de fraqueza.
“Este pensamento que tamanho vigor e tão suave doçu-
ra me infunde na alma, é a plena certeza de que o gloriosos
Vigário de Jesus Cristo, o Mestre infalível da verdade, o
órgão de Deus sobre a Terra, aprova todos os meus atos
episcopais, me abençoa com infusão de amor, e ora por mi-
nha humilde pessoa ao Pai das eternas Misericórdias.”
São estas palavras de Dom Vital, em carta endereçada a
dom Frederico Aneiros, arcebispo de Buenos Aires.
Quem se dispuser a discorrer sobre a vida de uma das
mais gloriosas figuras do episcopado brasileiro – o bispo-
-mártir dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira – há
de, forçosamente, valer-se da mais completa e eloquente

168
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

de suas biografias, escrita em francês, por um seu irmão de


hábito.115
Assim procedemos. Entretanto, quando tivemos de ci-
tar palavras pronunciadas ou escritas em nosso idioma pelo
ínclito confessor da fé, nos servimos principalmente do va-
lioso trabalho de Antônio Manoel dos Reis.116
Dom Vital! Que bispo, que herói e que exemplo!
Os episódios mais edificantes de sua vida, os lances do
mais puro heroísmo e da mais purificada fé, decorreram
singularmente nos tristes dias da chamada questão religio-
sa. Para cumprir o seu dever de pastor zeloso do rebanho
que lhe fora confiado, numa época em que a maçonaria
tinha adeptos em todas as classes sociais, inclusive nas fi-
leiras do clero, e em que o imperador Dom Pedro II, chefe
de uma nação católica, se rodeara de maçons, sujeitando-se,
apesar de católico,117 aos perversos intuitos da seita; teve

115. P. Luis de Gonzague, O. M. C., Monseigneur Vital (Antonio Gonçalves de


Oliveira), Frère Mineur Capucin – Evêque D’Olinda.
116. O bispo de Olinda D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira perante a história.
117. Se como brasileiros admiramos a memória do Sr. Dom Pedro II, insigne
compatriota que, durante o seu longo e fecundo reinado, se tornou amado do seu
povo pelas sobejas demonstrações de honradez inatacável, de retidão de caráter e de
sincero patriotismo – como católico, contudo, e escrevendo sobre um acontecimento
histórico, não podemos deixar de lamentar a sua atuação na chamada questão
religiosa, permitindo que o seu governo fosse um joguete dos maçons para guerrear
a Igreja.
Estava nas mãos do grande monarca não consentir na perseguição aos dois bispos,
que foram processados, condenados e presos injustamente. Entretanto, a errada
noção que o saudoso imperador tinha da liberdade e a sua ignorância do espírito
satânico da maçonaria muito concorreram para que ele assim procedesse.
O lema de um estadista verdadeiramente católico não pode ser outro, senão o do
imortal García Moreno: “Liberdade para tudo e para todos, menos para o mal
e os malfeitores”. Assim não entendia, porém o imperador do Brasil, com o seu
defeituoso espírito de tolerância, como passaremos a demonstrar.
Numa conferência com dom Antonio de Macedo Costa, em 19 de julho de 1872 (cf.
“Lutas e Vitórias”, por F. de Macedo Costa), o imperador defendeu a maçonaria e
acusou dom Vital e outros bispos como imprudentes…
Passaram-se os anos, e o Sr. dom Pedro II teve de reconhecer as duras verdades
que, delicada, mas destemerosamente, lhe dissera dom Macedo Costa. Dom Pedro
II afirmara ao ínclito bispo do Pará que a maçonaria no Brasil era “inteiramente

169
DOM VITAL (1844–1878)

o santo prelado olindense de sofrer as mais duras humi-


lhações, os mais grosseiros insultos, tragando até a última
gota o cálice da amargura. Dom Vital, entretanto, nunca
se deixou abater. Com ânimo heroico, tudo suportou, para
salvar a dignidade da Igreja no Brasil.
Para que os leitores bem avaliem a grandiosidade da
sua alma, a firmeza da sua fé, a nobreza do seu caráter e a
fortaleza da sua vontade, relembraremos as palavras que ele
dirigiu ao ministro do império, conselheiro João Alfredo:
“Mas, desde que para obedecer às ordens de Sua Ma-
jestade Imperial me seja preciso fazer o sacrifício da minha
consciência de Bispo Católico Apostólico Romano, e de-
sobedecer ao augusto Vigário de Jesus Cristo, não vacilarei
um só instante em responder com o santo e exímio Bispo
de Milão [Ambrósio]: “Se sua Majestade me pedir as mi-
nhas faculdades, o serviço da minha obscura pessoa, até a
própria vida, tudo, tudo está à sua disposição; tudo abando-
narei, porque a nada tenho apego. Com sumo prazer derra-
marei o meu sangue pela pátria. Quanto, porém, ao sagrado
depósito que me foi confiado e que pertence a Deus e à sua
Igreja, não posso, nem devo ceder e jamais cederei.”

***

Na vila de Pedras de Fogo, Pernambuco, nasceu o Servo


de Deus, a 27 de fevereiro de 1844, recebendo na pia batis-
mal o nome de Antônio. Seu pai, o capitão Antônio Gon-
çalves de Oliveira, abastado fazendeiro, gozava de estima
geral, pela sua bondade e honradez. Dona Antônia Albina
de Albuquerque, mãe do futuro bispo-mártir, tinha todas
qualidades da mulher forte de que fala Salomão.

inofensiva”. Pois bem, essa mesma seita tramou em suas lojas a queda do trono,
levada a efeito em 15 de novembro de 1889, banindo o imperador e fazendo-o
morrer no exílio!

170
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

A sua atividade não se limitava a auxiliar o esposo na


direção da sua fazenda. A educação dos filhos era a sua
maior preocupação, a que ela emprestava o melhor do seu
tempo e de sua alma. Educava-os para que se tornassem
cristãos modelares. Herdeiro do caráter meigo e enérgico
da sua mãe, Antônio soube sempre corresponder aos seus
desvelos.
Amável, afetuoso, mas reservado nos brinquedos a que
se entregava com seus irmãos, ele se inclinava por instin-
to para os divertimentos onde a bondade tinha a melhor
parte. Então, dava o exemplo e assumia a direção do movi-
mento, com uma decisão de bom augúrio.
Desde menino revelou Antônio que a caridade evan-
gélica, plantada em sua alma por seus ótimos genitores, ia
medrando cada dia mais, tais as ações generosas que prati-
cava. Tão pequenino, e sua alma não podia tolerar que em
sua presença se oprimissem os pobres escravos, usando-se
para com eles de injustiça.
Um exemplo: certa tarde, brincando Antônio com
seus irmãos, observou que um seu tio ia bater numa escra-
va negra de seus pais. Que fez, então, o caridoso menino?
Muniu-se de uma acha de lenha, e, ao erguê-la, devido ao
seu grande peso desprendeu-se de sua delicada mão e caiu
sobre o braço de seu tio, imobilizando-o. Foi quanto bastou
para que a escrava fugisse, livrando-se de injusto castigo.

***

Tendo o Servo de Deus quase dez anos, resolveram seus


pais proporcionar-lhe uma instrução de acordo com a po-
sição de sua família. Colocam-no para esse fim, num colé-
gio eclesiástico que, havia pouco tempo, fora transferido de
Recife para Benfica.

171
DOM VITAL (1844–1878)

A precoce austeridade do seu caráter, docilidade e apli-


cação nos estudos deram motivo a que Antônio se des-
tacasse logo entre os condiscípulos, ocupando o primeiro
lugar na sua turma. Ao entrar para o colégio já o piedoso
menino se sentia atraído para o serviço divino. “No de-
correr dos seus estudos”, disse Manoel dos Reis, “ele ou-
viu mais claramente o chamado do alto, convidando-o ao
ministério dos altares”. Firme nesse santo propósito, sem
encontrar obstáculos que o impedissem de realizá-lo, co-
meçou o Servo de Deus o curso de filosofia. Em novembro
de 1859, com a idade de quinze anos.
A 16 de dezembro de 1860, recebeu a tonsura, que lhe
foi conferida na capela do palácio episcopal de Olinda pelo
respectivo prelado, dom José Perdigão. Quando Antônio
apareceu no meio dos seus condiscípulos, revestido de ba-
tina, foi geral a surpresa; pois ele soubera guardar segredo
de sua vocação, e, muito embora seus companheiros esti-
vessem habituados a observar sua extraordinária piedade,
nunca supuseram quisesse ele ser padre.
Depois de estudar filosofia pelo espaço de dois anos,
mantendo-se sempre na dianteira de seus colegas, entrou
Antônio para o Seminário de Olinda, em 1861. Aí perma-
neceu durante um ano.
Em setembro de 1862, sentindo-se com vocação para
a vida do claustro, seguiu para Recife, onde procurou o
convento dos capuchinhos, pedindo admissão. Anteven-
do quão proveitosos seriam ao talentoso jovem os estudos
num centro de maior cultura, os religiosos lhe aconselha-
ram que fosse para a França, e se apresentasse aos seus con-
frades de Paris.
Obediente a esse conselho, obteve Antônio o assenti-
mento dos seus superiores, e, depois de uma visita à terra
natal, partiu para aquele país. Em 21 de outubro de 1862,
era acolhido com vivas simpatias no Seminário de São

172
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Sulpício, afamado estabelecimento, onde o Servo de Deus


recebeu dos professores e alunos, durante o tempo de sua
permanência, as mais carinhosas atenções.
Mais tarde, falando a seu respeito, assim se exprimiu
Romualdo de Seixas Barros, seu colega de estudos no refe-
rido seminário: “De espírito calmo, eminentemente lógico,
sincero indagador da verdade, o jovem Antônio Gonçal-
ves, com o trabalho aturado, o versar dos mestres com mão
diurna e noturna, alentou as disposições da natureza”.
Diz Montaigne que as nossas almas revelam aos vinte
anos o que hão de ser depois, e desde então prometem as pos-
ses que hão de ter. Foi o que se deu com Antônio Gonçalves.
Era o mais lindo desabrochar de rosas a prometerem aromas.
Depois de uma peregrinação, a pé, de São Sulpício à
basílica de Nossa Senhora do Chartres, para colocar-se sob
a proteção de Maria Santíssima, o piedoso jovem, ansioso
por pertencer à apostólica milícia do glorioso São Francis-
co de Assis, dirigiu-se a cidade de Versalhes, em busca do
convento dos capuchinhos, onde passou a residir.
Três semanas mais tarde, a 15 de agosto, dia da Assun-
ção de Nossa Senhora, recebia Antônio o hábito francisca-
no, trocando o seu nome de batismo pelo de Vital, ao qual
acrescentou o de Maria, por devoção à Santíssima Virgem.
No noviciado teve Vital ocasião de aumentar muitas
flores à coroa de suas virtudes. O padre vice-mestre de no-
viços usava de esquisitos meios para experimentar a vo-
cação religiosa de Vital. Uma vez, por exemplo, num dia
de inverno rigoroso, quando o Servo de Deus tomou uma
cadeira e foi sentar-se junto dos seus companheiros que
se aqueciam ao fogão, ordenou-lhe que fosse procurar um
espanador para limpar as teias de aranha da sala em que
se achavam. O santo jovem não hesitou um só instante.
Levantou-se, espanou todos os lugares indicados, sem, en-
tretanto, observar nenhuma teia de aranha.

173
DOM VITAL (1844–1878)

Depois de espanar todas as paredes, supondo já ter sa-


tisfeito a ordem recebida, foi novamente sentar-se esten-
dendo as mãos sobre o fogão. O seu mestre quis ainda uma
vez experimentar-lhe a paciência, e lhe disse: “Ide acabar o
vosso trabalho; o serviço está mal feito”. O noviço levan-
tou-se e foi de novo procurar as teias de aranha.
Vendo-o tão calmo, paciente e resignado, o sacerdote
entusiasmou-se tanto que não pôde conter-se, e, à vista de
todos, rompeu nestas elogiosas palavras: “Vejo que não é
possível vos fazer encolerizar”.

***

Assim santamente se preparava Vital para sofrer as ino-


mináveis humilhações futuras.
Durante o noviciado escolheu Frei Vital para seu con-
fessor a Fr. Apolinário. Este, mais tarde, falando sobre o seu
querido filho espiritual, assim se exprimiu: “Tive, então, a
consolação de penetrar até o fundo da sua consciência e ler
claramente em sua alma. Jamais ela estava turbada. E sua
calma me parecia mais admirável quanto mais eu o sabia
sensível.
“A fonte desta imperturbável serenidade, eu a via numa
virtude e inteligência tão elevadas, que todas as pequenas
misérias ou faltas de que ele se julgava culpado, ou vítima,
não eram evidentemente, a seus olhos, mais que brinque-
dos de crianças e combates de formigas. Este jovem de de-
zenove anos, de aparência tão débil e digna, era, entretanto,
superior a todos os homens que o rodeavam e a todos os
acontecimentos que o atingiam.
“Ele parecia mais moço do que de fato era. Não tinha
ainda o talho elevado que nós lhe observamos depois, e
que tornava tão majestosa em sua pessoa a dignidade epis-
copal. Sua cabeça apresentava um desenvolvimento muito

174
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

desproporcionado à magreza das suas espáduas. Mas ele


tinha na figura, nas palavras, no gesto e no andar uma
aparência de candura virginal, que eu nunca observei sem
experimentar alguma emoção e quase um sentimento de
veneração.”
Em seus estudos de filosofia, Frei Vital teve como pro-
fessor o mesmo Fr. Apolinário, que pôde avaliar a força do
seu privilegiado talento. São ainda deste ilustre e virtuoso
capuchinho estas palavras sobre o Servo de Deus: “Tive
ocasião de observar que ele estudava com a facilidade de
que eu não tive senão raríssimos exemplos. Mais tarde, seu
professor de teologia não viu nele senão uma inteligência
comum; mas minha convicção é que, se o nosso jovem ir-
mão tivesse sido menos modesto, menos doentio e mais
abundante em palavras, teria facilmente espantado o seu
professor”.

***

Estava Frei Vital no noviciado havia mais de quatro


anos, e em vésperas de proferir os votos de religioso, quan-
do foi visitá-lo um amigo que, anos depois, traçando a sua
biografia, assim nos diz qual a sua impressão ao encon-
trar-se com o Servo de Deus: “Em agosto desse ano, fui
dar-lhe um abraço em Versalhes. Pobre, trajando um hábi-
to remendado, parecia deliciar-se nas privações que o cer-
cavam. Que importava o corpo, se em redor dele tudo era
livre, tudo alegria, persuasão e amor? O júbilo do coração
se lhe estampara no rosto.
“Ouçamo-lo falar da sua próxima [iminente] profissão:
— Sem dúvida não ignora, caro amigo, as obrigações
perpétuas que eu vou contrair pela profissão solene. Esses
votos solenes de obediência, pobreza e castidade, são três
fortíssimos laços que me vão atar, ou para melhor dizer,

175
DOM VITAL (1844–1878)

são três agudíssimos cravos que me vão pregar na Cruz do


Divino Mestre Jesus. São, ao mesmo tempo, três espadas,
que devem matar e aniquilar em mim o homem velho, e
três remédios que devem ressuscitar-me poderoso contra o
demônio pelo voto de obediência, contra o mundo pelo da
pobreza e contra a carne pelo da castidade. Rogo-lhe, pois,
que ore e faça orar por mim, a fim de que com seguro passo
siga constantemente até o meu último suspiro os santís-
simos vestígios que Jesus se dignou traçar-nos. Suplique
com seus amigos à Santíssima e Imaculada Virgem Maria,
nossa boa Mãe do Céu, queira tomar-me sob a sua valiosa
proteção; faça deste seu indigno servo um perfeito religio-
so, um santo capuchinho, um verdadeiro filho do Serafim
Chagado de Assis, e um imitador e fiel discípulo de seu
Benditíssimo Filho Jesus Cristo Nosso Senhor.”
No Convento de Tolosa recebeu frei Vital o subdia-
conato, a 8 de dezembro de 1867, e o diaconato, a 6 de
junho de 1868. A 2 de agosto do mesmo ano, o arcebis-
po de Tolosa, Dom Desprez, lhe conferiu o presbiterato.
Essa cerimônia realizou-se na igreja dedicada à Imaculada
Conceição, de quem o Servo de Deus era devotíssimo. No
dia imediato ao de sua ordenação, celebrou frei Vital a pri-
meira Missa.
Em outubro regressou o santo religioso ao Brasil, com
ordens de seus superiores de residir no Seminário Epis-
copal de São Paulo, entregue, nesse tempo, à direção dos
padres capuchinhos. Nesse estabelecimento Frei Vital foi
encarregado de lecionar filosofia, encantando a todos os
seus colegas e discípulos pelas demonstrações do seu pere-
grino talento e invulgar erudição.

***

176
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Por decreto imperial de 21 de maio de 1871, foi Frei


Vital nomeado bispo de Olinda, sendo preconizado no
consistório de 23 de dezembro do mesmo ano.
Aqui começa a fase principal da vida do egrégio prínci-
pe da Igreja. Tinha ele, então, pouco mais de 27 anos. Sur-
preendido com a indicação do seu nome para tão honrosa
investidura, Frei Vital relutou em aceitá-la. Não que ele
temesse os espinhos da mitra, pois as sua excelsas virtudes
lhe não permitiam recusar os sofrimentos que redundariam
em glória para Deus e santificação para a sua alma; mas,
em sua humildade, julgava não possuir as qualidades e me-
recimentos necessários para bem exercer tão alto encargo,
repleto de gravíssimas responsabilidades.
A sua obediência ao supremo Chefe da Igreja, fê-lo, afi-
nal, deixar de parte os seus escrúpulos e aceitar a nomeação.
Pio IX, de santa e gloriosa memória, dirigiu-lhe em 22
de janeiro de 1872, o seguinte breve:
“O caráter das cartas que nos enviastes nos faz crer mais
ainda, que Deus, apesar da vossa pouca idade, vos chama
ao alto cargo do episcopado. Com efeito, vossa humildade,
o temor que experimentais em vista desta honra terrível,
o vosso cuidado em afastar a dignidade que vos é ofere-
cida, vossa submissão inteira às decisões de Deus de vos-
sos superiores, preparam vossa alma para o exercício desta
grave missão e vos tornam abundantemente merecedor
dos socorros do Céu. Os acentos da vossa fé para com a
Igreja e a Santa Sé, vossa dor em vista da abominável guer-
ra empreendida contra elas, a vossa vontade de lhes ficar
sempre estreitamente ligado e de lutar por elas; tudo vos
mostra disposto a trabalhar com ardor pela causa de Deus,
graças à força que Ele vos comunica. Tudo nos persuade
que vós não negligenciareis nada para procurar a salvação
e o progresso espiritual do rebanho que vos está confiado.
Confiai em Deus; com Ele sereis todo-poderoso. Depositai

177
DOM VITAL (1844–1878)

em Deus todos os vossos cuidados. Invocamos sobre vós,


para esse efeito, a abundância dos favores celestes; destes
vos damos o penhor e ao mesmo tempo a segurança da
nossa benevolência, concedendo-vos com amor a bênção
apostólica.”
Apresentado ao governo imperial o documento ponti-
fício nomeando dom Vital, foi dado o placet118 pela augusta
e piedosa princesa dona Isabel, regente do império na au-
sência de Dom Pedro II.
A sagração do grande bispo de Olinda teve lugar na
catedral de S. Paulo, a 17 de março de 1872.
Frei Luiz de Gonzaga ouviu, certo dia, da boca de um
distinto magistrado brasileiro, o seguinte elogio ao bispo-
-mártir: “Era um homem de grande elevação de pensa-
mento. Teve sempre cuidado da verdade; entretanto, mui-
tos acreditam que ele se tinha enganado. Ninguém o pôde
acusar de ter transgredido seus princípios, de que cada um
reconhecia a inflexibilidade. Eu o tenho ouvido pregar. Sua
alta estatura, sua voz doce e simpática, feriam desde o iní-
cio; era-se logo conquistado por outras qualidades: o lado
literário de sua palavra e o amor que testemunhava ao seu
auditório.”
Falemos agora, embora ligeiramente, do espírito de
oração e mortificação do Servo de Deus.
Dom Vital foi um homem de ação, na mais alta acepção
da palavras, e essa preciosíssima qualidade, ele a obteve cer-
tamente orando e meditando. Pouco dormia o santo prela-
do, entretendo-se, até tarde da noite, no estudo e na oração.
Muitas vezes foi visto prosternado junto ao altar da capela
do seu palácio, com a face contra a terra, entregue à oração.
Quando chegou a Pernambuco, recusou-se a dormir so-
bre um colchão, pretextando-se ser isso anti-higiênico em
clima quente, e preferiu uma simples esteira sobre o leito.
118. Sanção; cf. nota abaixo sobre o conceito.

178
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Sempre usou cilícios, e quando lhe não impediam as


enfermidades, disciplinava-se três vezes por semana, com
uma disciplina de malha de ferro, como é de uso na Or-
dem dos Capuchinhos. Quando esteve na Europa, depois
de bispo, hospedado nos conventos da sua Ordem, dava
o Servo de Deus a maior prova de humildade, juntando-
-se à comunidade nas suas penitências, disciplinando-se às
sextas-feiras. Dedicava-se também às mais humildes tare-
fas, como varrer o refeitório, servir à mesa, lavar a louça
na cozinha, etc. Muitas vezes foi surpreendido a caminhar
descalço pelos corredores do claustro, sem ligar importân-
cia à intensidade do frio, praticando a sublime devoção da
Via Sacra.

***

Chegou agora o momento de discorrermos sobre a cha-


mada questão religiosa e os pretextos de que se serviu a
maçonaria para combater a Igreja em nossa pátria.
Existiam no Brasil, no tempo do império, dois “Gran-
des Orientes”, ambos com sede na corte: o do Vale dos Be-
neditinos, e o do Vale do Lavradio. Aquele era reconhecido
pela maçonaria francesa, e este pela maçonaria italiana.
Do “Oriente” do Lavradio era grão-mestre o Visconde
do Rio Branco, chefe do governo imperial. A 3 de maio de
1872, esta última corporação maçônica realizou uma ses-
são solene para homenagear o seu grão-mestre, talvez pela
aprovação da lei chamada do “ventre-livre”, que declarava
alforriados todos os filhos de escravos nascidos após a sua
promulgação.
Tomou parte nessa festa e pronunciou um discurso em
estilo maçônico, que os jornais publicaram, o padre por-
tuguês Almeida Martins, infeliz sacerdote que, esquecido
dos seus sagrados deveres, ostensivamente se filiara à seita.

179
DOM VITAL (1844–1878)

Dom Pedro de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, procurou


por meio de admoestações caridosas, chamar o Pe. Mar-
tins à retratação do seu erro. Vendo, porém, inúteis os seus
esforços, suspendeu-o das ordens, e o padre perseverou na
apostasia. O “Oriente” a que ele estava ligado, para mais es-
timular a sua rebeldia, reuniu-se extraordinariamente, deli-
berando dar início a uma luta terrível contra o episcopado.
Ao “Oriente” do Lavradio, juntou-se, a convite des-
te, o dos Beneditinos, a fim de iniciarem a campanha.
A imprensa maçônica começou, então, a publicar os
mais agressivos artigos contra a Igreja, seus bispos e sa-
cerdotes. Em linguagem violenta e desrespeitosa, ataca-
vam também os dogmas sacrossantos da fé católica.
A luta generalizou-se, em seguida, por várias pro-
víncias brasileiras. Saldanha Marinho, grão-mestre do
“Oriente” dos Beneditinos, começou pela imprensa, sob
o pseudônimo de Ganganelli, uma série de artigos irre-
verentes, heréticos e blasfemos. Outros jornalistas segui-
ram-lhe os passos.
Em princípio de junho do mesmo ano, iniciaram os
maçons de Pernambuco a publicação de um jornal in-
titulado: “A Família Universal”. Neste e em outros jor-
nais da seita, foi publicada a notícia de que no dia de
São Paulo, na mesma igreja que lhe é consagrada, seria
celebrada uma Missa em comemoração do aniversário
da fundação da certa loja. Reservadamente, Dom Vital
mandou uma circular ao seu clero, ordenando que ne-
nhum sacerdote celebrasse a anunciada Missa.
Despeitados os maçons por verem falhado o seu pla-
no provocador, entenderam investir mais atrevidamente
contra o zeloso príncipe da Igreja, desafiando-o a “sair
dos bastidores; ter coragem; assumir as responsabili-
dades dos seus atos; declarar se era bispo brasileiro ou

180
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

ultramontano;119 empregado do governo ou agente da


Cúria Romana, etc., etc.”
Anunciaram, em seguida, uma Missa a ser celebrada a
4 de julho, pela alma de um maçom. Em virtude de nova
proibição de Dom Vital, esse sufrágio não foi celebrado.
Continuaram os sectários na sua faina de denegrir o clero,
chegando à inaudita ousadia de arremessar contra a Vir-
gem Mãe de Deus as frases mais ímpias e desrespeitosas.
Protestando contra esse gesto inominável dos maçons,
o heroico bispo de Olinda, a vibrar de santa indignação, di-
rigiu-se ao clero, ordenando que se celebrassem cerimônias
de desagravo a Nossa Senhora.
Na circular de 21 de novembro de 1872, disse dom Vital:
“A solicitude com que devemos apascentar o mimoso
rebanho cometido à nossa vigilância, e a estrita obrigação
que nos incumbe de preservá-lo de pastos envenenados,
não nos permitem guardar por mais tempo o silêncio, a
que até o presente fomos forçados por mais de um motivo
valioso. Agora esta solicitude e obrigação nos impelem a
rogar-vos instante e encarecidamente, premunais as vos-
sas queridas ovelhas contra as doutrinas perniciosas, que
por aí correm com tanta injúria para a nossa Santa Reli-
gião, quanto detrimento das almas fracas e inexperientes.
Parece que, de certo tempo a esta parte, abriram-se as por-
tas dos abismos, para dar livre curso a uma aluvião de erros
e heresias que, fazendo erupção em vários pontos do Brasil,
ameaça invadi-lo em toda a sua extensão.
“A todos vós é bem patente e conhecido, irmãos muito
amados, que em algumas províncias do império tem surgido

119. Durante o Império, a Igreja tinha que submeter seus atos à aprovação do
governo, inclusive as papais, que só eram aplicadas à Igreja no Brasil se o governo
a elas anuísse. O ultramontanismo é um movimento originalmente francês surgido
no séc. XIX que dava grande ênfase à autoridade do Romano Pontífice, e por isso
aqui a oposição entre "bispo brasileiro" e "ultramontano". Cf. nota sobre placet
mais abaixo. (N. E.)

181
DOM VITAL (1844–1878)

(do íntimo da alma deploramos) uma imprensa inteira-


mente ímpia, assalariada pela seita tenebrosa, já tantas ve-
zes fulminada pelo Vigário de Jesus Cristo, Mestre e Dou-
tor infalível na doutrina, por quem o Filho de Deus orou
para que jamais falecesse a sua fé.
“Essa imprensa sacrílega e herética não cansa de mover
guerra sem tréguas à bela e santa Religião que nos lega-
ram os nossos antepassados, única verdadeira, pregando
princípios heterodoxos, assoalhando doutrinas errôneas e
alterando horrosamente o ensino puro e salutar da Igreja
Católica, cujo esplendor tenta com furor insano embaciar.
“Infelizmente foi a nossa cara diocese um dos pon-
tos assinalados na escolha da seita perversa, para um dos
centros da sua propaganda anticatólica. Sim, com grande
mágoa, irmãos muito amados, temos testemunhado o que
alguns espíritos desvairados pela vertigem do erro, à seme-
lhança daqueles que o grande Apóstolo, com toda a energia
de sua frase intitulara – lupi rapaces non pascentes gregi (At
20,29) – têm escrito contra a divina Religião de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo, ora negando um, ora outro dos seus dog-
mas sacrossantos, ora fazendo alarde de atassalhar as mais
veneráveis disposições da Igreja Universal, ora dando a seu
Chefe supremo, o Romano Pontífice, os epítetos os mais
ofensivos e indecorosos, ora finalmente menosprezando o
que, nestes últimos tempos, foi divinamente inspirado no
Concílio Ecumênico do Vaticano.
“Mas ah! Bem longe estávamos nós de supor que ho-
mens alimentados com o leite desta mesma religião, nas-
cidos no seio de um povo eminentemente religioso, e que
se dizem católicos, ousassem ferir e ultrajar o que no ca-
tolicismo há de mais doce, mais suave, mais consolador e
sobremodo caro a todo o coração católico – a Santíssima e
Imaculada Virgem Maria, nossa terna Mãe do Céu!

182
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

“Chegaram ao ponto, diletíssimos irmãos, de negar à nos-


sa Mãe Santíssima uma das prerrogativas que, segundo a lin-
guagem do melífluo São Bernardo, é o mais precioso brilhante
da sua coroa de glória: negaram a sua virgindade perpétua!”

***

Em seu número do mês de maio de 1872, já o boletim


do “Grande Oriente do Brasil” publicara uma circular di-
rigida à todas as lojas, cientificando-lhes do programa de
combate à Igreja. Essa circular foi reproduzida em todos os
jornais maçônicos de Pernambuco.
O jornal “A Verdade” fomentava uma luta entre Dom
Vital e as irmandades. Entretanto, o santo bispo prudente-
mente silenciava. Disse o mesmo jornal: “O bispo não quer
acreditar na existência dos franco-maçons nas confrarias;
pois bem, nós vamos convencê-lo, e, para isso, publicarmos
os nomes dos nossos adeptos”.
A mencionada folha maçônica cumpriu a sua ameaça.
Depois, publicou o nome de Aires Gomes, um dos seus
principais redatores e venerável da loja do Recife, que fora
eleito provedor da irmandade da Soledade!

***

Das irmandades, maçonizadas, duas se submeteram


às ordens de Dom Vital, desligando-se da seita maçôni-
ca; outras, porém, responderam-lhe com pesados insultos.
Esgotados os meios que a prudência e a caridade aconse-
lhavam, viu-se o santo prelado na dolorosa contingência de
suspender as irmandades rebeldes. Além disso, dom Vital
lançou o interdito contra as igrejas e capelas administradas
pelas irmandades contaminadas de maçonismo.

183
DOM VITAL (1844–1878)

Ante a energia do Servo de Deus, que não temia amea-


ças, os maçons redobraram as provocações escandalosas e
sacrílegas. Penetrando nas capelas interditas, aí celebraram
festas a seu talento.
“Os ofícios foram cantados sem padre; os confrades
mais audaciosos ousaram celebrar um simulacro de Mis-
sa; todos multiplicavam-se para assistir aos enterros e
procissões.”
Depois de ameaçar os sacerdotes que celebrassem atos
religiosos e administrassem Sacramentos sem a sua presen-
ça, os maçons roubaram os vasos sagrados, de várias igrejas,
bem como as chaves dos sacrários, obrigando, assim, os vi-
gários a lhes pedirem, quando precisavam acudir às neces-
sidades espirituais dos moribundos. Quando algum padre a
eles recorria, para tal fim, respondiam-lhe: “Dar-vos-emos
as chaves se nos permitirdes acompanhar-vos com as nos-
sas insígnias maçônicas”.
Tolhidos, assim, alguns padres, de exercerem o seu
ministério sagrado, deu-lhes Dom Vital autorização para
tomarem o Santíssimo Sacramento das igrejas que não es-
tavam interditas, das capelas dos conventos e da do palácio
episcopal.

***

Em sua carta pastoral de 2 de fevereiro de 1873, depois


de citar trechos de uma alocução de Pio IX condenando
a maçonaria, Dom Vital acrescentou o seguinte: “À vista
de tantas condenações emanadas do Chefe Supremo do
Catolicismo, será porventura digno do nome de católico
o infeliz que, com formal desprezo de todas as proibições
eclesiásticas, inicia-se nas sociedades maçônicas? Terá di-
reito aos privilégios e prerrogativas de filho da Santa Igreja
aquele que assim lhe resiste em face?

184
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

“Por certo que não: porquanto desse nome e desse di-


reito só é credor filho dócil, submisso e obediente. Tanto
mais que, irmãos e filhos caríssimos, razões muito pode-
rosas e de sobra tiveram os Sumos Pontífices para assim
proceder. Quando mesmo milhares de fatos tristíssimos e
lamentáveis não provassem, à toda luz da evidência, que
a maçonaria tende a banir da face da Terra até a ideia
do Cristianismo, aí estão os seus regulamentos, os seus
cerimoniais, e os escritos abomináveis de seus órgãos os
mais genuínos, e acreditados.
“Ouçamos a confissão ingênua que, por permissão divi-
na tem escapado a alguns dos escritores mais abalizados da
seita hipócrita. Só temos o embaraço da escolha.
“O irmão Fischer diz que ‘à exceção de algumas lojas
particulares, a grande maioria da Ordem não só não ad-
mite o Cristianismo, como até combate-o a todo o transe.
A prova está, diz, na admissão dos judeus nas lojas inglesas,
francesas, americanas, belgas e, há pouco, nas lojas de toda
a Alemanha’ (“Revista Maçônica”, janeiro de 1848, p. 31).
“O irmão Bizouart se exprime ainda com mais clareza e
energia: ‘Cumpre descatolicizar o mundo, diz ele; conspire-
mos unicamente contra Roma; revolucionar a Igreja é desmo-
ronar o trono e as dinastias. Para combater os príncipes e os
beatos (católicos) todos os meios são bons. Tudo é permitido
para aniquilá-los: a violência, a traição, o ferro, o veneno e o
punhal (Des Rapports de l’homme avec le démon, Tom. 6, p. 757).
“Nada mais peremptório nem mais evidente que a recente
declaração do Grande Oriente de Paris: ‘O sumo e único fim
da nossa sociedade acha-se consignado na instrução secreta e
geral da Loja Suprema, e é o mesmo que foi proclamado por
Voltaire e pela Revolução Francesa; isto é, a eterna destruição
do catolicismo até a abolição da ideia cristã, a qual, se ficar
sobre as ruínas de Roma, pode depois renascer e facilmente
perpetuar-se’ (Mgr. de Ségur, La Revolution, p. 28).

185
DOM VITAL (1844–1878)

“Outros muitos documentos iguais e estes apresentar-


-vos-íamos, irmãos e filhos muito amados, se não temês-
semos enfadar-vos. Eis aqui um espécime da linguagem e
dos intuitos dos maçons da Europa que, em abono da ver-
dade cumpre dizer, tem incontestavelmente o merecimento
de ser mais francos, e mais consequentes que os do Brasil;
pois reconhecem e até confessam, que não se pode ser ao
mesmo tempo maçom e católico (“Le monde maçonique”,
maio de 1866).
“A doutrina herética do placet,120 como vós bem sabeis,
irmãos e filhos caríssimos, já tem sido inúmeras vezes fe-
rida de anátema por vários Sumos Pontífices, tais como,
por exemplo, Inocêncio X, Alexandre VII, Clemente XI,
Clemente XIII, Leão X, Bento XIV, e outros muitos, cujos
nomes omitimos por amor à brevidade.
“O atual Pontífice121 gloriosamente reinante, além de
outras ocasiões declarou no Consistório de 3 de novembro
de 1855, falsa, perversa, funestíssima, claramente oposta ao
divino Primado e já condenada a opinião que ensina, que o
plácito régio [regium placet] é necessário para Rebus Espiri-
tualibus et Ecclesiasticis Negotiis.
“E, ultimamente, com aprovação do Sacrossanto Con-
cílio Ecumênico do Vaticano, onde reuniram-se os bispos
das cinco partes do mundo, de países católicos, protestan-
tes, cismáticos e até infiéis; onde também legislou o Epis-

120. Refere-se ao Regium placet, o direito do Estado de vetar ou restringir e execução


de um ordenamento eclesiástico, incluindo bulas, cartas e outros documentos da
Igreja, dentro dos seus domínios territoriais. É conceito que se desenvolve a partir
do final da Idade Média, quando se acentua a cisão entre a religião católica e a
estrutura política dos Estados-nações. Por ferir a independência da Igreja, o placet
foi condenado por diversos papas desde aquele período.
Especificamente no caso brasileiro, durante o Segundo Reinado, o placet se torna
o centro de tórridas disputas, pois, com a penetração cada vez mais acentuada da
doutrina maçônica na vida política do país, os grandes católicos como Dom Vital
se vêem obrigados a combater em campo aberto a ingerência estatal nos ditames da
vida eclesiástica. (N.E.)
121. Refere-se a Pio IX.

186
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

copado Brasileiro quer imediatamente por si, quer por inter-


médio de seus representantes, assim falou o Grande Pontí-
fice: ‘Daquele supremo poder do Romano Pontífice de go-
vernar a Igreja universal, segue-se que, no exercício desse seu
ministério, tem ele o direito de livremente comunicar com
os pastores e com os rebanhos de toda a Igreja para que os
mesmos possam ser ensinados e dirigidos nos caminhos da
salvação. Portanto, condenamos e reprovamos – damnamus
ac reprobamus – a doutrina daqueles que asseveram poder-se
licitamente impedir esta comunicação do supremo Cabeça
com os Pastores e com os rebanhos, ou que a tornem sujeita
ao poder secular, a ponto de sustentarem que tudo quanto
pela Sé Apostólica ou com autoridade dela se estabelece para
o governo da Igreja, não tem força nem valor, senão quando
é confirmado pelo beneplácito do poder secular’.122”
Finalmente, dom Vital terminava condenando o jor-
nal “A Verdade”, proibindo aos fiéis a sua leitura, sob pena
de pecado grave; recomendava ao clero que esclarecesse o
povo sobre a questão maçônica e declarava excomungados,
ipso facto,123 todos os membros das irmandades filiados às
lojas, os quais deviam, para continuarem pertencendo às
mesmas irmandades, abjurar a seita maçônica.

***

O presidente de Pernambuco, Henrique Pereira de Lu-


cena, maçom graduado, dirigiu a Dom Vital uma carta em
caráter confidencial, pedindo-lhe que suspendesse várias
de suas prescrições, especialmente as que obrigavam o clero
pernambucano a instruir o povo sobre a questão maçônica.

122. Constituição Dogmática Pastor Aeternus, que estabeleceu o primado da


Infabilidade Papal, em face da interferência crescente dos Estados modernos nas
decisões que a Igreja tomava para seu próprio rebanho. Cf. nota 120 acima.
123. Isto é, no mesmo ato, sem necessidade de juízo.

187
DOM VITAL (1844–1878)

Em 15 de fevereiro, o ministro do Império, João Alfre-


do Corrêa de Oliveira enviou a Dom Vital uma longa car-
ta, que transcrevemos na íntegra, porque ela esparge uma
luz curiosa sobre a mentalidade de um grande número de
brasileiros naquela época; ver-se-ão aí as ilusões em que se
embalavam os homens de Estado e a sua preocupação de
harmonizar ideias inconciliáveis:
“Permita-me V. Excia. falar-lhe com a franqueza devi-
da entre amigos e exigida pelas circunstâncias.
“Muito me inquieta a questão maçônica. Infelizmente
noto que a ação do tempo nada modificou; temo que as
manifestações de resistência e a resolução de V. Excia. per-
sistam, e perturbem a ordem pública na Província. Temo
ainda que V. Excia. seja forçado pelos acontecimentos a es-
tender a todas as confrarias da Província as medidas toma-
das relativamente a algumas; e, se isto acontecer, só Deus
sabe o que resultará.
“Prevendo que V. Excia. terá contra si quase toda a
população do Recife, animadas pelas adesões que chegam
e excitadas por outras manifestações de resistência, sinto
muito os motivos de consciência que V. Excia. invoca para
a execução desses atos que levantaram tantos clamores, e o
meu mais sincero desejo é não estar em divergência com V.
Excia., no tocante às medidas que me são solicitadas e que
eu devia conceder; mas a sua posição é muito difícil, por-
que, segundo o nosso direito, não podem ser cumpridas no
Império as bulas que não recebam o placet. Ouvi a opinião
de pessoas insuspeitas, de bispos, de sacerdotes respeitáveis.
Todos reconhecem que V. Excia. não se afastou da conduta
traçada pelas regras canônicas, mas pensam que podia ser
outra a aplicação feita até o presente.
“Os jornais propalaram que eu sou maçom, e não di-
zem a verdade, porquanto, se me iniciei há quinze anos,
somente compareci a três ou quatro sessões, tendo prati-

188
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

cado depois o que era suficiente para tranquilizar a minha


consciência de católico. Não sou, portanto, suspeito, quando
penso com muitos outros que a Maçonaria é inocente e de
certo modo benfazeja. Assim, as sociedades que estão neste
caso, e que contam em seu seio pessoas notáveis e das mais
influentes, não deveriam ser tratadas com um rigor que, sem
proveito para a Religião, acarreta desordens e o dissentimento.
“Estas sociedades existem em todos os países católicos; o Esta-
do as tolera, os bispos as deixam em paz, apesar das proibições
da Igreja. A nossa constituição permite todas as religiões com
seu culto pessoal ou público. Sociedade compostas de estran-
geiros que se organizam com fim religioso diferente do nosso;
autorizadas pelo poder civil funcionam livremente. Em face
destes fatos não compreendo como poderia o Estado proibir
o funcionamento das sociedades maçônicas compostas de ca-
tólicos, cujo fim não é contrário à religião do Império, e que,
quando tenham tal escopo, não trabalham senão em segredo.
“O que V. Excia. diz a respeito da confrarias é exato;
mas também é certo que o poder civil tem competência
para conhecer da sua organização; além disto, elas se gover-
nam a si próprias, em virtude de acordo estabelecido entre
o Governo e a Igreja. Por isso quase todas as pessoas, por
mim consultadas, duvidam da legitimidade do ato de V.
Excia. que expulsou de tais confrarias os membros maçons;
muitos o reprovam. Até agora nenhuma resolução foi to-
mada pelo Governo imperial.
“Tenho evitado fazê-lo, por deferência a V. Excia. a
quem consagro grande estima devida a um bispo. Não sei,
entretanto, até quando poderei abster-me da intervenção
que me é solicitada e que os fatos poderão tornar indispen-
sável e urgente.
“Em face do exposto, venho pedir a V. Excia. verdadei-
ramente impressionado, as medidas que podem remediar a
situação: modere V. Excia. o seu ardor!

189
DOM VITAL (1844–1878)

“Com o tempo e a reflexão, graças ao emprego de meios


prudentes, desaparecerão os perigos que ameaçam a ordem
pública, e o governo não se verá mais na necessidade de os
conjurar. O tempo é um grande remédio; medidas, que em
determinada época levantam clamores gerais e provocam
resistências, mais tarde são executadas com a maior facili-
dade. Para isto, muitas vezes é bastante um gesto, ou uma
única palavra.
“Falo a V. Excia. como um filho obediente e amigo de-
dicado. Os meus sentimentos são desinteressados, e a mi-
nha carta é uma súplica.
“Resta-me a íntima confiança de que a prudência e o pa-
triotismo de V. Excia. estarão à altura dos acontecimentos”.
A essa carta cheia de lábia maçônica assim respondeu o
heroico príncipe da Igreja.
“Do íntimo da alma agradeço V. Excia. a franqueza e
a delicadeza de sua carta; pedindo-lhe que me permita,
com a mesma singeleza e sinceridade, expor-lhe algumas
curtas reflexões, com o intuito de patentear os meus sen-
timentos e sem pretender a defesa da minha causa. Jamais
duvidei dos embaraços e graves dificuldades que a questão
maçônica está causando a V. Excia. Bem os compreendi e
ponderei, sabendo das circunstâncias particulares em que
se acha V. Excia.
“Católico, V. Excia. fez parte de um ministério, cujo
presidente é grão-mestre de um dos principais grupos ma-
çônicos do Império. Previ, pois, as contrariedades que V.
Excia. deve experimentar. Mas qual a atitude que me im-
punha o dever?
“Após a minha chegada, as manobras das lojas, logo me
preparam este dilema: ou cumprir o meu dever de bispo,
aceitando a luta, e então passar por imprudente e irrefle-
xivo (reconheço que, assim, muitas vezes procedem os de
minha idade); ou fechar os olhos a tudo, transigir com a

190
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

minha consciência e resignar-me a não ser mais que um


bispo negligente, pusilânime e culposo. Nestes termos os
próprios maçons formularam o dilema. Era forçoso tomar
um alvitre e por ele moldar a minha conduta.
“Antes de me pronunciar, contemporizei quanto possí-
vel sem me tornar culpado diante de Deus.
“Mas afinal vi-me na dura necessidade de escolher; op-
tei pela primeira parte do dilema, como o dever me orde-
nava. Tivesse eu oitenta anos e me restassem poucos dias
de vida, não trairia os deveres da minha augusta missão;
esta obrigação não é muito mais premente para mim, que
tenho talvez uma longa carreira a preencher? Que terrível
perspectiva, Excelência, a de um longo episcopado de ver-
gonha e crime, porque fraco e covarde!
“Se a maçonaria se contentasse em trabalhar nas suas
lojas, secretamente, como diz V. Excia., nenhuma dificul-
dade teria sobrevindo; mas ela criou um jornal para agredir
o bispo e prodigalizar-me insultos, negando os dogmas de
nossa santa Religião, conforme a demonstração da minha
carta pastoral de 2 de fevereiro.
“Depois, os maçons tiraram a máscara e publicaram
os nomes dos seus adeptos, que espionavam a conduta da
Igreja nas confrarias em que eram numerosos. Não fui in-
comodar os maçons nas suas lojas; mantive-me nos limites
do direito canônico, de que sou guarda.
“Nada tenho com os maçons, mas tão somente com
as confrarias. Não pretendo destruir a maçonaria; nem
isto conseguem os próprios monarcas; somente Deus
poderia fazê-lo. Desejo apenas que as confrarias reali-
zem os fins para que foram criadas. Em verdade, a ma-
çonaria deveria ser mais lógica consigo mesma. Desde
que não quer entendimento com a Igreja (e isto ela
proclama bem alto!) ao menos seja coerente nos ata-
ques; que os seus adeptos saiam da Igreja e deixem o

191
DOM VITAL (1844–1878)

cuidado desta àqueles que se honram de ser seus filhos


obedientes.
“Certo é que as confrarias vivem de conformidade
com estatutos aprovados pelos dois poderes – espiritual
e temporal - mas só o primeiro lhes confere um caráter
religioso sem o qual, incontestavelmente, seriam socieda-
des puramente civis. V. Excia. perdoará a minha franqueza,
dizendo-lhe que em matéria religiosa o poder temporal
é radicalmente incompetente. Peço permissão a V. Excia.
para não discutir as opiniões de bispos e sacerdotes, que
entendem dispensáveis a aplicação das Bulas que conde-
nam a maçonaria. Apesar da recusa do placet, a maçonaria
foi muitas vezes condenada por numerosas razões que me
será grato expor a V. Excia. noutra ocasião. Limitar-me-ei
a lembrar-lhes a condenação contra ela lançada, mesmo
onde é tolerada, pelo Soberano Pontífice Pio IX, na alo-
cução de 25 de setembro de 1865. Isto basta a um católico.
“A maçonaria, Excelência, revolveu céus e terra, redigiu
protestos e desafios, pôs em jogo todos os meios ao seu
alcance para me abater. Mas eu recebi numerosas cartas
de adesão subscritas por milhares de leigos, e a meu lado
está a melhor e maior parte da minha cidade. Confiante na
justiça da causa que defendo e nos sentimentos religiosos
de V. Excia., tenho até agora guardado silêncio; mas a sua
carta me veio provar que calar-me por mais tempo seria
prejudicar os interesses da Igreja.
“A carta de V. Excia., se bem a compreendi, avisa-me de
que tenho de modificar a linha de conduta mantida até o
presente, sob pena de arriscar-me a decisões desfavoráveis
do governo. Se está iminente tal eventualidade, rogo a V.
Excia., na qualidade de amigo, que prepare imediatamente
um decreto de exílio ou de prisão, porque o auxílio prestado
pelo governo imperial à maçonaria não me fará recuar um
passo, e lamentáveis conflitos infalivelmente produziria.

192
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Em tudo isto há uma questão de vida ou morte para a Igre-


ja do Brasil. Tenho o dever de lutar sem medir os maiores
sacrifícios. Sem dúvida procederei sempre com muita cal-
ma e prudência; mas ceder ou mesmo deixar de caminhar
para a frente, não me é possível. Se V. Excia. não me pode
dar o seu apoio e se a minha resistência vai provocar con-
flitos, é o tempo ainda de conjurar a tormenta. Para isto só
vejo um meio: suplico ao governo imperial e à Santa Sé que
me façam voltar quanto antes ao meu convento.
“Não creio, entretanto, que esta solução aproveite ao
governo. Se eu fosse homem político ou de idade avançada,
poderia predizer iminentes e perigosas perturbações para
o Brasil.
“A prudência dos nossos homens de Estado não poderá
evitá-las. Mas sobre isto falarei pessoalmente a V. Excia.,
quando nos encontrarmos. Peço a V. Excia. que me descul-
pe esta grande franqueza. Neste momento não me dirijo
ao Ministro do Império, escrevo confidencialmente a um
amigo, a quem devo expor a verdade nua e crua.
“A questão é muito importante, muito elevada, e eu não
poderia tratar de outro modo.”124

***

A 14 de maio, um grupo de maçons, aos quais se junta-


ram muitos capangas, certos de não serem tolhidos em seus
atos vandálicos, encaminharam-se para a capela dos padres
jesuítas, a essa hora lindamente adornada para as festivida-
des do mês de Maria, e, aí penetrando, quebraram os púlpi-
tos, os confessionários, e a mesa da Comunhão. Os quadros,
as imagens dos santos e até a da Santíssima Virgem foram
derrubados, pisados e mutilados. Deixaram a capela em
completa desordem e despojada de certos objetos preciosos.

124. Cf. Pe. Luiz de Gonzaga, Op. cit., p. 93 e ss.

193
DOM VITAL (1844–1878)

Em seguida, a horda penetrou no colégio anexo à capela,


dispersou os alunos e arrancou das celas os indefesos religio-
sos, que foram feridos a pauladas. Um dos religiosos, que se
achava de cama, gravemente enfermo, foi apunhalado.
Daí se dirigiu o grupo de malfeitores para o colégio de
Santa Doroteia, dirigindo insultos às irmãs e bradando que
chegaria a vez de Dom Vital.
Pouco depois, uma parte do bando se apresentou diante
do palácio da Soledade; a porta principal foi forçada. Anoi-
tecia. Monsenhor Vital mandou iluminar todos os cômo-
dos e quis avançar até a frente dos energúmenos; alguns
muito excitados o ameaçavam com as suas armas.
A polícia julgou então, chegado o momento de intervir.
Os oficiais, negando-se, até então, ao restabelecimento da
ordem, a que foram convidados, deram a entender que não
eram os senhores da situação: a sua inação, evidentemente
resultava de ordem superior. O principal culpado, que to-
dos os homens de bem acusavam – o Presidente Lucena
– não apareceu naquele momento, em que a sua presença
era tão necessária.
A irmandade do Santíssimo Sacramento, da matriz de
Santo Antônio do Recife, tendo interposto recurso à coroa
contra o ato de Dom Vital que lhe lançara o interdito, o
governo reuniu os conselheiros do Estado para deliberarem
a respeito. Das opiniões emitidas nessa reunião somente foi
inteiramente favorável a Dom Vital a do visconde Abaeté.
Do brilhante parecer deste valoroso estadista transcreve-
mos apenas o que se refere à maçonaria, deixando à parte a
sua opinião sobre a face jurídica da questão.
Disse Abaeté: “Pela minha parte confesso que pertenço
ao número daqueles que veem e reconhecem a existência
de uma propaganda contra a religião católica; e sendo as-
sim quaisquer que possam ser as consequências, declaro,
como cidadão e como católico, que hei de opor-me tanto

194
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

quanto puder a uma tal propaganda. Em matéria de re-


ligião a minha é a do berço e a da família e sigo a fé do
carvoeiro. Pertenci em 1830 ou 1831 a uma loja maçôni-
ca, mas desde 1834, isto é, há 40 anos, retirei-me da as-
sociação, não conhecendo nenhum dos seus segredos, se é
que os tem. Para isto muito concorreu uma circunstância
que vou revelar. Nunca ali ouvi pronunciar a palavra Deus.
Esta suavíssima palavra é substituida por uma circunlocu-
ção – Supremo Arquiteto do Universo”.
Por aviso de 12 de junho de 1873, o governo impe-
rial intimou o heroico Dom Vital a levantar o interdito
lançado contra a irmandade do Santíssimo Sacramento, da
igreja de Santo Antônio do Recife.
No mesmo dia e hora em que o santo prelado recebia
a intimação do governo, por uma feliz e memorável coin-
cidência, era-lhe entregue o breve Quamquam dolores, em
que o Sumo Pontífice aprovava plenamente o seu proce-
dimento.

***

Pretendendo o governo imperial justificar-se perante


a Santa Sé e o povo brasileiro, quanto ao seu vergonhoso
procedimento no decorrer da chamada Questão Religiosa,
e mais, muito mais, para obter de Pio IX a condenação de
Dom Vital, enviou a Roma, em missão especial, o barão de
Penedo, adepto ferrenho da maçonaria.
O diplomata sectário usou de tais ardis junto a Pio IX,
para convencê-lo de que o jovem prelado de Olinda agira
injusta e temerariamente, que conseguiu, embora por pou-
co tempo, fazer com que o Sumo Pontífice se iludisse.

***

195
DOM VITAL (1844–1878)

Resolvida pelo governo a prisão de Dom Vital, foi este


recolhido ao arsenal de marinha de Recife, às 3 horas da
tarde do dia 2 de janeiro de 1874. Dias depois, de um vaso
de guerra que o transportou à Bahia, foi removido para o
transporte “Bonifácio”, velho e imprestável navio, em que o
santo prelado viajou sem comodidade alguma.
Por ocasião de ser conduzido preso para bordo do na-
vio aludido, aconteceu um fato que merece registro. Dis-
cutiam dois homens, vizinhos de casa, sobre o sensacio-
nal acontecimento, procurando um deles refutar a opinião
francamente maçônica do outro. Ria-se o ímpio por ver
triunfante as manobras da maçonaria. Disse-lhe o católico:
“Ri, ri quanto quiseres; em breve chorarás. Desejo que ne-
nhum mal caia sobre a tua casa, bem como sobre todos
quantos perseguem o nosso bispo”.
Naquele mesmo instante, a mulher do adversário de
Dom Vital soltou um grito; estando a costurar, muito cur-
vada sobre o trabalho, porque tinha a vista excessivamente
curta, aconteceu enterrar a agulha no nariz. Pouco depois,
sentia dores intoleráveis; do nariz a inflamação se propaga-
ra a todo o rosto e, apesar dos cuidados que lhe foram pro-
digalizados, faleceu ao fim de dois dias, no meio de atrozes
sofrimentos.
O transporte “Bonifácio” chegou ao Rio de Janeiro no
dia 13 de janeiro, à noite. Às 6 horas da manhã seguinte,
um delegado de polícia e o comandante da polícia mili-
tar da corte, apresentaram-se a bordo do navio com um
mandado de prisão assinado pelo presidente do Supremo
Tribunal.
Em um carro, acompanhado por seu secretário, o Padre
Lima e Sá, foi Dom Vital transportado ao arsenal da mari-
nha, na ilha das Cobras, tudo debaixo do maior segredo, de
modo que ninguém na cidade soube da sua chegada.

196
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Três cômodos do presídio mandara o comandante do


arsenal pôr à disposição do bispo-mártir. Dom Vital re-
solveu adaptar para capela o melhor dos três aposentos,
reservando os restantes para servirem de salas de visita, re-
feitório e dormitório. À porta principal desses aposentos
foi posta uma sentinela.

***

Arrastado Dom Vital, injustamente, à barra de um


tribunal incompetente para julgá-lo; após acalorada dis-
cussão entre os representantes do governo e os defensores
espontâneos do heroico bispo, conselheiro Zacarias e sena-
dor Cândido Mendes, foi na segunda sessão do Supremo
Tribunal de Justiça, realizada a 21 de fevereiro de 1874,
lavrada a sua condenação a 4 anos de prisão com trabalho
e custo! Um voto apenas foi proferido a favor da inocen-
te vítima. Fê-lo desassombradamente o ministro barão de
Pirapama.
Por decreto de 21 de março, foi comutada a pena im-
posta ao santo bispo, em 4 anos de prisão simples na for-
taleza de São João; tendo lugar a sua remoção do arsenal
para a fortaleza, às 9 horas da manhã do dia 21 do dito mês.
Em sua nova prisão Dom Vital recebia inúmeras visitas
de personalidades de todas as classes sociais, que lhe iam
prestar homenagem. Certo dia, recebeu o heroico prelado
um visitante, cuja atitude de católico exagerado nos ata-
ques contra o ministério, o tornou mais reservado que de
costume. Assim que o visitante se retirou, Dom Vital disse
ao seu íntimo amigo cônego Esberard: “Tenho razão para
desconfiar desse homem. Não me poderia você fornecer in-
formações sobre ele?”. O cônego Esberard exclamou: “Mas
é um excelente católico, Sr. bispo: ele se ocupa ativamente
da propaganda religiosa. Vive na intimidade de dom Pedro

197
DOM VITAL (1844–1878)

de Lacerda e do Núncio Apostólico”. “Posso estar engana-


do, replicou dom Vital, mas não me agrada o seu semblante
e eu me pergunto que interesse pode ter ele em acusar o
governo de crimes imaginários”.
O cônego Esberard conhecia um rapaz muito chega-
do ao tal visitante. Interrogou-o habilmente e e adquiriu a
certeza de que eram fundadas as suspeitas de Dom Vital.
Esse pretenso inimigo do ministério Rio Branco era um
desses dignatários das lojas, que aceitam voluntariamente
o papel de espião junto aos católicos, para surpreender os
seus segredos e prevenir os maçons contra os seus ataques.
Dias depois, voltou o miserável e pretendeu renovar a
cena anterior. Grande foi o pasmo das pessoas presentes,
quando ouviram esta resposta de Dom Vital: “Conheço
maçons que tomam a atitude de católicos fervorosos. Lo-
bos disfarçados em cordeiros aproximam-se dos bispos e
entram na sua intimidade. O Núncio Apostólico não tem
amigo e conselheiro mais esclarecido. Eles vêm visitar o
bispo de Olinda em sua prisão; ninguém mais que eles lhe é
devotado; mas, os seus primeiros passos, depois desta visita,
se encaminham para a loja maçônica. Lá eles transmitem
aos irmãos as palavras, os fatos e os gestos dos prelados,
de quem momentos antes eram amigos dedicados. Sabe o
senhor que dias atrás, um deles pretendeu arrastar um ra-
paz para a loja da qual é um dos dignatários? Por aí poderá
julgar, meu caro senhor, a que ponto às vezes se engana”. E
Dom Vital, narrando este caso, acrescentava: “O semblante
do homem tomou todas as cores do arco-íris; o suor cor-
ria-lhe da fronte; imediatamente me cumprimentou e se
retirou. Nunca mais me apareceu”.
O comandante da fortaleza de São João, oficial maçom,
procurava por todos os meios humilhar o santo prisionei-
ro. Proibiu a Dom Vital ter qualquer comunicação direta
com os soldados da guarnição, dizendo-lhe que, em caso

198
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

de necessidade espiritual de algum enfermo, o chamaria na


ocasião oportuna.
Pouco depois, o mesmo oficial mandou chamar o dig-
no prelado para atender a um enfermo. Apressou-se Dom
Vital em dispensar os seus cuidados ao moribundo. Mas, já
era tarde; o soldado tinha morrido horas antes.
Esta mentira bárbara renovou-se várias vezes. Uma
noite, o comandante dirigiu ao bispo um chamado urgente,
pelo mesmo motivo; e, quando o viu entrar na enfermaria,
desatou a rir. Dom Vital retirou-se sem manifestar a menor
emoção. Talvez desejasse não exasperar o seu algoz com re-
preensões aliás bem merecidas, mas que teriam prejudicado
o seu apostolado.

***

Em um breve de 1º de abril, disse Pio IX a dom Vital:


“Jamais duvidamos da vossa submissão, e nosso maior de-
sejo é fazer cessar imediatamente as vossas inquietações a
este respeito. Melhor ainda nos comprazemos de louvar o
vosso zelo sacerdotal na defesa da causa da religião, pela
qual foste injustamente condenado.
“Na vossa carta de 24 de janeiro, declarais-vos disposto
a executar as ordens que vos dirigimos pelo nosso Cardeal
secretário de Estado, mas pedis explicações sobre certos
pontos, para segura execução.
Eis o que julgamos oportuno dizer-vos: estas instruções
não podem ser aplicadas, em vista da situação em que vos
achais; não tendes nenhuma liberdade de ação; estas ordens
são certamente, senão inúteis, ao menos inoportunas nas
circunstâncias atuais, pois a sua execução reclama vossos
cuidados e vossa vigilância pessoal.”
Ao venerando dom Antônio de Macedo Costa, heroico
bispo do Pará, o Sumo Pontífice dirigiu, a 10 de junho, o

199
DOM VITAL (1844–1878)

seguinte breve: “O caráter deste conflito não pouco tinha


sido obscurecido por aquele que no-lo veio relatar;125 os
acontecimentos posteriores mostram o crédito que mere-
ciam. Também não somente confirmamos tudo o que es-
crevemos, no mês de maio precedente, ao vosso venerável
colega, o bispo de Olinda, que tão digno se mostra de sua
função; mas, já que nada vemos na vossa conduta de con-
trário aos santos cânones, e que constatamos que em tudo
agistes com tanta ciência e reflexão, nós vos aprovamos, nós
vos exortamos a mostrar a mesma firmeza na guerra levan-
tada pela maçonaria; não vos deixeis abater pelos ataques
nem pelas ameaças dos poderosos.”

***

A 17 de setembro de 1875, o novo ministério presidido


pelo Duque de Caxias decretou a anistia dos heroicos bis-
pos de Olinda e do Pará. Saindo da prisão, onde permane-
ceu dezoito meses, Dom Vital recolheu-se ao convento dos
capuchinhos, no morro do Castelo; e aí esteve até o dia 4
de outubro, em que embarcou para a Europa.

***

Chegando a Roma no dia 9 de novembro, logo no dia


imediato o Servo de Deus solicitou uma audiência com o
Sumo Pontífice. Pio IX, em cujo espírito ainda se não ti-
nham desvanecido algumas dúvidas a respeito do procedi-
mento de Dom Vital, devido às maquinações do barão de
Penedo, recebeu-o com certa reserva, o que o bispo-mártir
não pôde deixar de estranhar.
Em outras audiências concedidas a Dom Vital pelo
santo Papa Pio IX, o egrégio prelado expôs pormenores

125. O Barão de Penedo.

200
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

da questão maçônica, de modo que, aos poucos, as coisas


foram tomando outro rumo.
Na audiência de 28 de dezembro, Pio IX recebeu o
bispo-mártir de maneira inteiramente diversa da de outras
vezes. Suas dúvidas já se tinham dissipado por completo.
Ao receber, pois, a visita do confessor da fé, o chefe da
Igreja abraçou-o e beijou-lhe a fronte paternalmente, di-
zendo-lhe: “Aprovo tudo quanto fizeste desde o começo; a
tua conduta foi a de um verdadeiro bispo; cumpriste o teu
dever com coragem e prudência até o fim”. Ao terminar
a audiência, quis Pio IX, mais uma vez, demonstrar o seu
afeto, presenteando-o com um rico missal.
Partindo de Roma, Dom Vital se dirigiu a França, onde
permaneceu até 3 de maio de 1876. Achando-se novamen-
te em Roma, a 5 de maio, foi o Servo de Deus recebido
pelo Sumo Pontífice em audiência especial.
Pio IX recebeu-o com as maiores demonstrações de
carinho, abraçando-o demoradamente. O Papa assegurou-
-lhe que toda obscuridade desde aquele momento desapa-
recera; o clero brasileiro, e à sua frente os bispos de Olinda
e do Pará, tinham bem merecido da Igreja, e todos os seus
atos de autoridade igualmente recebiam uma aprovação
completa.
Antes de deixar Roma, a fim de regressar ao Brasil, ain-
da uma vez se encontrou Dom Vital em presença do chefe
da Igreja: foi a 13 de maio, dia da festa natalícia do sucessor
de São Pedro. Dom Vital entregou-lhe, então, uma carta na
qual pedia ao Santo Padre para aceitar a cruz peitoral e o
anel que dom Lacerda lhe oferecera no dia da sua sagração.
“O presente é mínimo”, dizia ele, “mas é a prova da mi-
nha afeição e piedade para com vossa santidade. Desejava
oferecer a vossa santidade alguma coisa de mais precioso;
procurei, e nada encontrei, nos tesouros da minha pobreza
seráfica, mais digno de vossa santidade.”

201
DOM VITAL (1844–1878)

Pio IX, muito comovido, aceitou o presente do jovem


prelado, assegurando-lhe que suas preces segui-lo-iam no
cumprimento do seu dever pastoral; e entregou-lhe uma
casula magnífica, bordada com fios de ouro, a qual é con-
servada como relíquia no palácio da Soledade, em Recife.

***
Dom Vital regressou ao Brasil, a 20 de setembro de
1876, chegando a Pernambuco na tarde de 6 de outubro,
recebido pelos seus diocesanos com as mais vivas demons-
trações de respeitoso afeto. A 12 do mesmo mês, seguiu o
egrégio prelado para o Rio de Janeiro, a bordo do “Guadia-
na”, desembarcando no dia 18. A 9 de novembro, o bispo-
-mártir pisava novamente a terra pernambucana. A 25 de
abril de 1877, o santo prelado voltou ao Rio de Janeiro, de
onde partiu para a Europa no dia 1º de maio.

***

Dia a dia se acentuavam os progressos da enfermidade


que vitimou o Servo de Deus. Dom Vital aceitava todos os
sofrimentos com heroica resignação.
“Monsenhor”, disse-lhe um dia o irmão Vicente, “eu não
sou nada sobre a terra, não tenho missão a cumprir, não sou,
conseguintemente, útil a ninguém. Vou pedir a Deus que
vos cure, que vos dê minha força e saúde; a mim Ele dará os
vossos sofrimentos, vossa doença e a morte mesmo”.
Dom Vital respondeu vivamente: “Guardai-vos bem,
meu irmão, de pedir tal coisa; tudo o que vos permito pedir
é que a vontade de Deus se cumpra em mim; e depois, não
creiais que não tendes missão cá embaixo; ela é, ao contrá-
rio, muito bela; sofrer, fazer penitência, oferecer-vos como
vítima pelos pecados dos povos. Que quereis mais? Deixai
agir o bom Deus; Ele sabe melhor do que nós aquilo que
nos é necessário”.

202
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

Um outro dia o santo prelado externava o seu desejo


de morrer, dizendo estas palavras: “Crede em um pobre
bispo doente; tudo é vaidade aqui embaixo; é melhor estar
com Deus do que com os homens; mas é preciso me-
recê-lo. Vim aqui para aqui morrer. Verei que eu digo a
verdade”.
No dia 3 de julho, Dom Vital mandou chamar Fr.
Apolinário, e, depois de com ele se confessar, pediu-lhe
os últimos Sacramentos. O Pe. Apolinário e o enfermeiro
quiseram protestar. “Vou morrer, eu o sei”, disse dom Vital,
“dai-me a Extrema-Unção”.
Em seguida, o Servo de Deus entregou ao seu confessor
uma soma de 800 francos, que ele pedia remeter ao padre
Exupèro; era isto o produto dos donativos que vieram se
juntar aos honorários de uma estação quaresmal pregada
em Narbonne, e que o padre Exupèro tinha enviado ao pre-
lado, de quem era admirador devotado.
Perguntaram ao santo bispo se queria fazer testamento,
ao que ele respondeu: “Eu sou irmão menor capuchinho e
quero morrer na pobreza de que fiz voto. Aliás, que testa-
mento poderia eu fazer? Eu nada tenho”.

***

Amanheceu, e os sofrimentos tornavam-se intole-


ráveis; o irmão Vicente tentou apaziguá-los segundo as
prescrições do Dr. Ozanam; não o conseguiu. A todo o
momento os padres Crisóstomo e Marcel iam vê-lo e ad-
miravam sua energia e paciência. Mais tarde, M. Jobin
penetrava no seu quarto. Atirou-se aos pés do seu bispo
bem amado; ele não podia falar, os soluços embargavam-
-lhe a voz.
Às 9 horas Dom Vital tomou o seu lenço das mãos
do enfermeiro e, depois de escarrar, afirmou o irmão Vi-

203
DOM VITAL (1844–1878)

cente, “ele me disse com um acento de convicção, que eu


jamais esquecerei: ‘Isto, isto é o veneno’”.126
Dom Vital procurava alguma coisa em seu peito, narra
o irmão Vicente: “Perguntei-lhe se era a imagem da San-
tíssima Virgem, que ele trazia sempre consigo, o que ele
queria. Fez-me sinal que sim. Apresentei-lha; ele tomou-a
e apertou-a contra o seu coração! Entrou em agonia. O
Padre Patrício deu-lhe a última absolvição e, com o enfer-
meiro, recitou a ladainha de todos os Santos. Até aí o mori-
bundo soltava gemidos. Sua voz tornou-se de súbito clara.
Exclamações de alegria e felicidade pareciam anunciar a
vitória ganha, após violento combate. Sua figura iluminou-
-se; a boca entreabriu-se, e tornou-se radiosa. Soltou três
suspiros; ao terceiro, morrera. Sua alma deixara a terra. Era
na quinta-feira, dia 4 de junho, às 11 horas e 20 minutos da
noite e no dia em que se celebra, no Brasil, a festa de Santa
Isabel, Rainha de Portugal, que a Ordem Terceira Francis-
cana se gloria de ter entre os seus membros”.
Dom Vital contava 33 anos, 9 meses e 8 dias; estava no
15º ano de sua profissão religiosa e 7° de seu episcopado.

***

O corpo do Servo de Deus, revestido dos ornamentos


pontificais, foi exposto no grande parlatório do convento
dos capuchinhos, onde foi visitado por numerosos fiéis.
Depois de embalsamado levaram-no para a capela. Duran-
te todo o domingo, dois religiosos ocuparam-se em tocar
no corpo do bispo-mártir, com os objetos apresentados

126. É crença geral que o santo bispo de Olinda morreu em consequência de ter sido
envenenado pelos maçons. Ele, como já vimos, estava convencido desse fato; e também
assim pensavam os médicos que o trataram e as pessoas que mais intimamente
privavam com o heroico prelado. No livro do Pe. Luiz de Gonzaga, já citado, às pp.
359 a 363, o leitor encontrará uma minuciosa exposição dos motivos que deram lugar à
crença de que não podia ter sido outra a causa da morte de Dom Vital. (N.A.)

204
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

pela multidão de fiéis. Rodeando o ataúde havia braçadas


de flores e muitas coroas com as seguintes inscrições: “Ao
defensor dos direitos da Igreja”; “Ao mártir da nossa fé”,
etc., etc.
A cerimônia fúnebre, no dia 8 de junho, teve iní-
cio às 8 horas da manhã, sendo cantada a Missa de Ré-
quiem, às 9 horas, com a igreja repleta, notando-se entre os
assistentes o encarregado de negócios do Brasil, o vice-côn-
sul, muitas famílias brasileiras e personalidades de destaque
da sociedade parisiense. Tomaram parte nas cerimônias o
cardeal arcebispo de Paris, o núncio apostólico, os bispos de
Vannes (França), o de Galveston (Estados Unidos) e dom
Ordonez, de Riobamba (Equador).
Terminada a Missa foi proferida tocante oração fúne-
bre pelo venerando Monsenhor de Ségur que, apesar de
cego, quis prestar essa homenagem à memória do glorioso
confessor da fé, falando com tal eloquência e sentimento,
que arrancou muitas lágrimas do auditório.
Terminadas as absolvições do ritual, foi o corpo trans-
portado para Versalhes, sendo depositado na capela do
convento onde o saudoso bispo fizera o noviciado. Depois
de cantadas as Vésperas pelos religiosos e feita a nova en-
comendação pelo vigário geral de Versalhes, transportaram
os restos mortais do Servo de Deus para o cemitério da
mesma cidade, onde foram inumados numa das sepulturas
reservadas aos padres capuchinhos.127

127. A 6 de julho de 1882, o cônego Francisco do Rego Maia, regressando de sua


viagem à Europa, trouxe para Pernambuco os restos mortais de Dom Vital, que
foram inumados na cripta da igreja da Penha (cf. História Eclesiástica de Pernambuco,
pelo cônego José do Carmo Barata).

205
PADRE CÍCERO128
(1844–1934)

Há certos nomes que soam


fortes e combinam com a
personalidade de quem os
possui: Cícero Romão Batis-
ta é um desses casos. Nascido
em 1844 na cidade de Crato,
no Ceará, esse nordestino é
venerado até os dias de hoje
e sua história é uma das mais
interessantes do catolicismo no Brasil.
Cícero, também chamado carinhosamente de Padim
Pade Ciço, escolheu a vida consagrada e celibatária aos doze
anos de idade, após ler a biografia de São Francisco de Sa-
les. Impressionado pelo exemplo do sacerdote francês, o
menino também decide seguir a vida religiosa e em 1865
ingressa no Seminário da Prainha, em Fortaleza. Por ser
órfão de pai, sua família passava por dificuldades financei-
ras, mas isso não foi impedimento para que o jovem entras-
se no seminário, pois seu padrinho de crisma lhe ajudaria a
levar o curso adiante.
Em 30 de novembro de 1870, Cícero recebe a orde-
nação sacerdotal e em 1872 começa a evangelizar a cida-
de de Juazeiro do Norte, no Ceará. Há relatos que des-
crevem uma razão mística para a ida de Padre Cícero à
cidade de Juazeiro do Norte: ele teria sonhado com Jesus,
acompanhado de seus doze apóstolos, rodeados por pobres.

128. O presente relato não constava no original, e, como as demais mini-biografias


do Apêndice a seguir, é conteúdo produzido exclusivamente pela Minha Biblioteca
Católica.

206
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

No sonho, o Salvador profere uma frase que marca o padre:


“Você, Padre Cícero, tome conta deles!”, diz o Senhor refe-
rindo-se aos pobres.
O apostolado de Padre Cícero em Juazeiro do Norte
procurava aliviar as agruras materiais e espirituais sofri-
das por aquela gente. O alcoolismo e a prostituição foram
combatidos na cidade e uma irmandade leiga foi formada
com a ajuda de senhoras viúvas e solteiras, a fim de prover
ajuda aos mais pobres. Padre Cícero também desenvolveu
trabalho missionário na região, rezando missas, atendendo
confissões, pregando e aconselhando. Dessa forma, seguiu
o conselho de Cristo: “Assim, brilhe vossa luz diante dos
homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem
vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16).
Certo dia, no ano de 1889, enquanto administrava o
sacramento da Eucaristia para uma senhora beata de nome
Maria de Araújo, a hóstia verteu sangue. Todos ficaram
admirados com o possível milagre, mas o clero local quis
certificar se o ocorrido fora realmente obra divina. Uma
comissão de padres e profissionais de saúde foi formada
e constatou, em 1891, a veracidade do fato. No entanto,
o bispo local não se dava por convencido e instituiu uma
nova comissão julgadora, que declarou falso o milagre da
hóstia. Padre Cícero, então, passou a ser perseguido e acu-
sado de manipulação da fé, sendo punido com a suspensão
da ordem.
Apesar de destituído de sua investidura sacerdotal,
não nutriu ódio pela Igreja e continuou a ajudar os po-
bres como pôde. Para tanto, envolveu-se na política local,
chegando inclusive a aconselhar o cangaceiro Lampião a
abandonar a vida do crime. Por ter realizado um aposto-
lado com obras sociais e por ter se envolvido na política,
alguns o consideravam adepto das ideias comunistas. No
entanto, em entrevista concedida ao jornal “O Povo”, em

207
PADRE CÍCERO (1844–1934)

1931, declarou o seguinte aos jornalistas Paulo Sarasate e


Alpheu Aboim: “O comunismo foi fundado pelo demônio.
Lúcifer é o seu nome e a disseminação de sua doutrina é a
guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei
que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus
contra o Criador e Seus filhos”.
Padre Cícero faleceu em 20 de julho de 1934 e não teve
a alegria de ver sua reconciliação com a Igreja. No entanto,
entre 2001 e 2006, uma comissão foi formada para investi-
gar a vida de Padre Cícero e decidiu-se, em 2015, pela sua
absolvição. Padre Cícero finalmente estava de volta ao seio
da comunhão e recebeu post mortem um pedido de descul-
pas.
Anualmente, milhares de pessoas vão à cidade de Jua-
zeiro do Norte para prestar homenagens a Padre Cícero,
além de relatar graças recebidas por sua intercessão. Há
nessa cidade um santuário em honra dessa grande figura
nordestina, que ajudou a edificar o nordeste do Brasil e en-
trou para a história do país.

208
APÊNDICE
BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ
DO SÉCULO XX

Conteúdo exclusivo
MBC
PADRE LEONEL
FRANCA
(1893–1948)

A Igreja, desde os tempos


primitivos, sofre ataques do
inimigo das almas, que deseja
espalhar discórdias e heresias.
São Pedro, o primeiro Papa, já
alertava da necessidade de es-
tarmos aptos a defender a fé, o
que se dá por meio da oração
e do estudo sincero da Palavra, do Magistério e da Tradição.
A capacidade intelectual é desmerecida em alguns meios,
que concebem o amor a Cristo e à Igreja como algo pura-
mente sentimental; contudo refinar a inteligência em prol
da defesa da fé é um ato de amor. Conforme as palavras
de Cristo em São Lucas 10,27, devemos amar a Deus com
todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e
com todo o entendimento. E houve um brasileiro que amou
a Deus com sua inteligência: o padre Leonel Edgard da
Silveira Franca. Jesuíta, padre Leonel Franca honrou a
tradição de sua ordem, que consiste na obra missionária
da propagação do Evangelho por meio da catequese e da
educação.
Nascido em 06 de janeiro de 1893 na cidade de São
Gabriel, no estado do Rio Grande do Sul, Franca ingressou
na Companhia de Jesus com apenas quinze anos de idade.
Primeiramente estudou em Nova Friburgo, cidade serrana
fluminense, e posteriormente mudou-se para Roma, onde
obteve graus em Teologia e Filosofia. Retorna ao Brasil,
onde leciona no Colégio Santo Inácio, instituição tradi-

210
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

cional no Rio de Janeiro, e no Colégio Anchieta, em Nova


Friburgo, a mesma escola onde iniciou sua vida de estudos
e formação religiosa.
Podemos definir a vida do padre Leonel Franca da se-
guinte forma: amor à Verdade, vocação à docência e dom
da escrita. Numa época em que a educação escolar era mais
prestigiada, padre Franca notabilizou-se como grande edu-
cador. Participou da fundação da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sendo o primeiro
reitor dessa instituição de ensino superior, e também fez
parte do Conselho Nacional de Educação.
No que diz respeito aos seus escritos, notabilizam-se
as obras de cunho filosófico, pedagógico e as objeções às
heréticas doutrinas protestantes. Em defesa da fé católica,
publicou O protestantismo no Brasil, A Igreja, a Reforma e a
Civilização, e Catolicismo e protestantismo.
Padre Leonel Franca foi fiel à Igreja de Cristo, pois
certamente cria na promessa de Nosso Senhor de que as
portas do inferno não prevalecerão contra a barca de Pedro.
Faleceu no Rio de Janeiro em 03 de setembro de 1948,
deixando o legado de suas obras às futuras gerações, que
certamente se beneficiarão da vastidão intelectual desse
sacerdote que amou a Deus com toda a sua inteligência e,
consequentemente, com todo o coração.

211
FREI DAMIÃO
(1898–1997)

Aparência frágil, porém ho-


mem forte: assim era Frei
Damião. O contraste entre
seu físico e suas palavras era
notório. Quem diria que um
simples capuchinho teria pa-
lavras tão contundentes ao
pregar em praças públicas?
Nascido no interior da Itália
em 05 de novembro de 1898, Pio Giannotti dedicou-se
à evangelização no Brasil e é venerado como santo, espe-
cialmente na região nordeste, onde viveu de 1931 até a sua
morte, em 31 de maio de 1997.
Ainda adolescente, esse filho de camponeses decidiu pela
vida religiosa ao ingressar na Ordem dos Frades Menores
Capuchinhos, e aos dezessete anos confirmou sua decisão ao
proferir os votos religiosos. Sua vida foi marcada pelas guer-
ras de natureza temporal e espiritual: aos dezenove anos foi
convocado para lutar na Primeira Guerra Mundial e no res-
tante de sua vida combateu nas fileiras da Igreja, conclaman-
do o povo ao arrependimento e fielmente administrando os
sacramentos. Após a grande guerra, retornou aos estudos
religiosos e em 1920 ingressou na Pontifícia Universidade
Gregoriana, em Roma, para cursar Teologia. Recebeu a or-
denação sacerdotal em 1923 e em 1931 foi enviado ao Brasil
para exercer sua vocação missionária.
Frei Damião fixou-se em Recife, mais precisamente no
Convento de Nossa Senhora da Penha, e empregou a vida
nas Santas Missões. Saía pelas cidades do interior nordestino,

212
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

qual um São João Batista na aridez do deserto a anunciar


a salvação. Suas homilias tinham como tema principal o
horror ao pecado, e com firmeza dizia: “Homens sem Deus,
mergulhados na lama do pecado. Amancebados! Mentiro-
sos! Adúlteros! Arrependei-vos dos vossos pecados!”. Mui-
tas vezes somos tentados a achar que palavras melífluas são
as que devem ser utilizadas em sermões, mas não era assim
que Frei Damião agia. Ele não tinha medo de chamar o
pecado pelo nome e seus apelos levavam multidões à mu-
dança de vida, tanto é que durante 66 anos empenhou-se
em dar testemunho da Palavra, sendo acolhido com amor
e reverência em todos os lugares. Acontecia com esse frade
capuchinho o mesmo que se dava com seu irmão de ordem
e de nacionalidade, S. Padre Pio de Pietrelcina: o povo an-
siava pela presença desse religioso destemido, e é digno de
nota que os membros do clero que marcam gerações sejam
os mais corajosos.
Conta-se que em suas peregrinações havia sempre
oportunidade para muitas confissões, pois Frei Damião
certamente sabia que um sermão poderoso deveria ser
acompanhado de momentos para reflexão e perdão.129
A simplicidade desse homem arrastava multidões seden-
tas pela Verdade, que viam nos sermões daquele frade
um reflexo da sabedoria de Deus em Provérbios 1,20–23:
“A sabedoria clama nas ruas, eleva sua voz na praça, clama
nas esquinas da encruzilhada, à entrada das portas da cida-
de ela faz ouvir sua voz: e até quando os que zombam se
comprazerão na zombaria? Até quando, insensatos, ama-
reis a tolice e os tolos odiarão a ciência? Convertei-vos às
minhas admoestações, espalharei sobre vós o meu espírito,
eu vos ensinarei minhas palavras”.

129. Frei Damião chegou a desenvolver uma deformidade, de tanto permanecer com
o pescoço baixo e curvado para ouvir confissões.

213
FREI DAMIÃO (1898–1997)

Ainda em vida, Frei Damião ganhou louvores: uma


estátua em sua homenagem na cidade de Sousa (PB) e o
título de Cidadão de Pernambuco são alguns dos reconheci-
mentos que recebeu. Quando de sua morte, foi decretado
luto oficial de três dias pelo governo de Pernambuco e pela
prefeitura de Recife. Devoto de Nossa Senhora das Gra-
ças, seu corpo encontra-se sepultado na capela que honra
essa aparição da Virgem Maria, no Convento São Félix, em
Recife. Em 2004, a cidade de Guarabira (PB) ergueu um
santuário em sua memória, ponto turístico de peregrina-
ções religiosas no nordeste.
Recentemente, em 08 de abril de 2019, o Papa Fran-
cisco declarou que Frei Damião é venerável, em mais uma
etapa do processo de canonização, aberto em 2013. O povo
brasileiro aguarda ansiosamente a canonização de Frei Da-
mião, a fim de que esse santo homem receba as honras dos
altares.

214
SERVA DE DEUS
LOLA
(1912/3–1999)

A Igreja Católica tem por


tradição o uso de velas em
sua liturgia, pois esse objeto
simboliza a luz de Cristo no
mundo e indica a vitória de
Deus sobre a morte. É tam-
bém costume acender velas ao
rezarmos, o que demonstra fé
e esperança na obtenção de graças. As velas são pouco a pou-
co consumidas, e seu fogo, apesar de brando, tem capacidade
de iluminar bem um recinto totalmente escuro. Cristo, no
Sermão da Montanha, disse: “Vós sois a luz do mundo. Não
se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha
nem se acende uma vela para colocá-la debaixo do alquei-
re, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que
brilhe a todos os que estão em casa” (Mt 5,14–15). Deus
nos chama para iluminarmos o mundo dando testemunho
da Verdade revelada em Seu Filho, e há algumas pessoas que
Ele escolhe para serem como velas, morrendo devagarinho,
abrasadas pelo fogo do Espírito Santo numa vida de comu-
nhão e penitência.
Floripes Dornelas de Jesus, apelidada de Lola, foi uma
dessas pessoas. Nascida em Mercês, Minas Gerais, a data
de seu nascimento confunde-se com sua data de batismo.
Não se sabe ao certo o dia, pois algumas fontes registram
a data de 27 de junho de 1912, outras dizem que nasceu
em 09 de junho de 1913, e há ainda a data de 27 de junho
de 1913. O que se sabe é que ainda pequena mudou-se

215
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

com a família para a cidade de Rio Pomba, na zona da


mata mineira. Vivia de maneira simples, como era de se
esperar numa moça interiorana, até que sua vida mudou
completamente na juventude. Alguns dizem que ela tinha
dezoito anos, outros dizem que tinha mais de vinte; fato é
que caiu de uma árvore e ficou paraplégica. “Triste condi-
ção para uma jovem com todo um futuro pela frente!”, uns
poderiam dizer; outros pensariam que Lola se entregaria à
depressão e desejaria a morte. Mas não foi nada disso que
aconteceu. Lola tomou partido de sua nova condição para
dedicar-se à vida de oração.
Devota do Sagrado Coração de Jesus, Lola confiou
inteiramente em Nosso Senhor e nunca foi desamparada.
Aos poucos, sua existência se tornou incompreensível para
a medicina, pois sua única fonte de alimento era a Sagrada
Eucaristia, que recebia regularmente. Quem duvidasse desse
milagre poderia comprová-lo pessoalmente, pois Lola aco-
lhia em sua casa muitos romeiros. Comprovou-se, também,
que além de não comer e beber, ela também não dormia. Tal
qual uma vela, lentamente deixou-se consumir em oração
ininterrupta por quem lhe pedisse intercessão junto a Cristo.
Como aumentassem as visitas à sua casa, o arcebispo
local, Dom Oscar de Oliveira, proibiu as peregrinações à
sua habitação. Lola, muito fiel às ordens superiores da Igre-
ja, não hesitou em obedecer. Embora não tivesse mais a
presença dos devotos a seu redor, Lola ainda recebia cartas
com pedidos de oração, que respondia sempre com uma
palavra de incentivo e fé no Sagrado Coração de Jesus.
Por mais de sessenta anos dedicou-se à propagação do
amor divino, vindo a falecer em 9 de abril de 1999. Uma
pessoa muito querida, seu velório contou com a presença
de milhares de pessoas. Desde 2005, Lola é considerada
Serva de Deus, e esperamos com fé a canonização dessa
mulher simples e de vida extraordinária.

216
IRMÃ DULCE
(1914–1992)

Anjos são criaturas espiri-


tuais que servem tanto como
mensageiros quanto proteto-
res. Cada um de nós recebe
um anjo da guarda ao nascer
e, indo além, sabe-se que há
anjos da guarda protetores de
países também. Um exemplo
disso é visto na história de
Nossa Senhora de Fátima, cuja aparição às crianças viden-
tes foi precedida pelo anjo de Portugal. No Brasil temos
o hábito de chamar de “anjo” aqueles por quem temos ca-
rinho, mas houve uma mulher que recebeu esse apelido
por ter qualidades celestiais: a Irmã Dulce, o anjo bom da
Bahia.
Nascida em Salvador no dia 26 de maio de 1914, Maria
Rita de Sousa Brito Lopes Pontes era uma menina de clas-
se média que poderia viver alheia ao sofrimento humano.
No entanto, desde cedo demonstrou o desejo de ajudar os
mais pobres. Aos treze anos de idade começou a discer-
nir sua vocação religiosa, mas foi recusada no Convento
de Santa Clara do Desterro por ser muito nova. Durante
a adolescência, passa a acolher os desvalidos de sua região,
abrindo as portas de casa para aqueles que não tinham
um lar. Pouco antes de completar dezenove anos, forma-
-se professora primária e logo em seguida tenta mais uma
vez ingressar na vida religiosa, dessa vez na Congregação
das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe
de Deus, onde é aceita. Faz os votos perpétuos em 1933 e

217
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

adota o nome de Irmã Dulce, em homenagem à sua mãe,


que assim se chamava.
Formalmente, sua obra social inicia-se em 1936, quando
ajuda a fundar a União Operária São Francisco. Esse projeto
foi, de certa maneira, fruto da encíclica Rerum Novarum,
publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII, cujo objetivo era
delinear o papel da Igreja nas questões sociais e nas condi-
ções dos trabalhadores, em contrapartida a ideias comunistas
ou liberais. Devota de Santo Antônio, em 1939 Irmã Dulce
participa da inauguração do Colégio Santo Antônio, e anos
mais tarde inaugura o Hospital Santo Antônio.
A história do Hospital Santo Antônio é digna de um
romance. Irmã Dulce exercia um trabalho assistencial
em localidades carentes de Salvador e desejava abrigar os
doentes que resgatava nas periferias. A fim de acomodá-
-los, invadiu cinco casas, mas logo foi expulsa dos endere-
ços. Por uma década peregrinou de local em local tentando
alojar as pessoas, até que decidiu acolher a todos no espaço
destinado ao galinheiro do Convento Santo Antônio. Em
1960, o antigo galinheiro dá lugar ao Albergue Santo An-
tônio, e em 1983 o Hospital Santo Antônio finalmente é
inaugurado. Essa casa de saúde faz atendimentos gratuitos
e é fruto da oração de uma freira que perseverou por mais
de trinta anos até ver o complexo hospitalar erguido. Em
1980, na primeira visita do Papa São João Paulo II ao Bra-
sil, Irmã Dulce foi agraciada com um rosário dado pelo
Pontífice, que a encorajou a continuar seu trabalho.
Irmã Dulce também teve uma impressionante vida de
penitência. Qualquer um de nós se sente desgastado ao ter
uma noite desconfortável, e quando há noites sucessivas
de sono ruim, a saúde e o humor são afetados. Pois Irmã
Dulce dormiu durante trinta anos numa cadeira de ma-
deira, em agradecimento por sua irmã ter conseguido le-
var adiante uma gravidez de alto risco, em 1955. Como se

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IRMÃ DULCE (1914–1992)

não bastasse o desconforto de dormir numa cadeira, Irmã


Dulce só descansava cerca de quatro horas por noite, o que
faz seu sacrifício ser ainda mais admirável. Seu amor ao
próximo a fez realizar tamanho ato de penitência, que só
foi interrompido a contragosto, em cumprimento a ordens
médicas.
Em outubro de 1992, quando da segunda visita de São
João Paulo II ao Brasil, Irmã Dulce já estava bem adoenta-
da. O Papa não esquecera aquela freira caridosa que encon-
trara anos antes, e fez questão de visitá-la e abençoá-la no
leito de dor. Cinco meses depois, em 13 de março de 1992,
ela vem a falecer.
Irmã Dulce foi beatificada em 27 de outubro de 2010,
após o reconhecimento da recuperação miraculosa de
Cláudia Cristiane dos Santos Araújo, uma jovem senhora
que sofrera hemorragias fortíssimas após o parto de seu
segundo filho. A fim de estancar o sangramento, Cláudia
foi submetida a três cirurgias em apenas dezoito horas, mas
a hemorragia não cessava. Só um milagre poderia salvar sua
vida. E o milagre ocorreu: o Pe. José Almi de Menezes, que
fora chamado para dar a unção dos enfermos em Cláudia,
pediu a intercessão de Irmã Dulce e foi atendido. A he-
morragia de Cláudia estancou e ela sobreviveu.
O milagre que permitiu a canonização de Irmã Dulce
também é impressionante, pois nos faz perceber que as his-
tórias bíblicas de curas instantâneas, operadas por Cristo,
ainda acontecem. José Maurício Bragança Moreira estava
cego há quatorze anos, e certa noite sofria muito com dores
causadas por conjuntivite. Cansado e ansioso por uma boa
noite de sono, rogou a Deus, por intercessão de Irmã Dul-
ce, que as dores fossem embora, mas Deus foi além e curou
José Maurício da cegueira. No dia seguinte ele voltou a
enxergar. E o mais admirável nisso tudo é que os exames
oftalmológicos realizados periodicamente constatam que

219
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

os nervos ópticos de José Maurício são os de uma pessoa


cega. A medicina se vê incapaz de explicar esse fato sobre-
natural.
Irmã Dulce foi canonizada no dia 13 de outubro de
2019 e recebeu a honra dos altares sob o nome de Santa
Dulce dos Pobres.

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ODETE VIDAL DE
OLIVEIRA
(1930–1939)

O Rio de Janeiro, na década


de 1930, fazia jus ao epíte-
to de Cidade Maravilhosa.
A arquitetura de influên-
cia europeia predominava
na cidade, a natureza era
mais exuberante e a cri-
minalidade não dominava
a região. Nesse ambiente, quem poderia se lembrar de
Deus? Odete Vidal de Oliveira, a Odetinha, se lembrou.
Nascida numa família abastada em 15 de setembro de
1930, Odetinha era filha de pais portugueses que faziam
parte da classe média alta do Rio de Janeiro. Seu pai fa-
leceu meses antes do nascimento da filhinha e sua mãe
casou-se novamente com um senhor, também português,
que era dono da maior distribuidora de carnes da cidade.
A menina morava em Botafogo, área nobre da cidade, e
cresceu cercada de mimos e luxos. Ela não tinha razões
para se preocupar com o auxílio aos pobres e com obras de
caridade, mas desde cedo demonstrou tal cuidado.
Suas obras de piedade impressionavam a todos. Ode-
tinha gostava de “brincar de missas”, conforme o relato de
sua babá. Arrumava uma mesa e convidava um amiguinho
para interpretar o papel de padre. Também é digno de nota
que não fazia distinção entre crianças pobres e ricas: todas
recebiam a mesma atenção e amor. Aluna do Colégio Sion,
tradicional escola católica no Rio, tratava bem as colegas
abastadas; em casa, convidava as filhas dos empregados de

221
SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

sua família para dormirem na mansão. Além disso, não se


importava de almoçar na mesa dos empregados, atitude co-
rajosa para uma menina rica nos anos 30.
A pequena carioca desejava que a família fizesse uso dos
bens para ajudar os necessitados. Para tanto, incentivava a
mãe e o padrasto a promoverem almoços solidários aos sá-
bados. Por sua influência, obras sociais foram realizadas na
cidade de Nova Iguaçu e também na cidade do Rio de Janei-
ro. Conta-se que a menina tinha grande devoção por Jesus
Eucarístico, e aos quatro anos de idade já adorava a hóstia,
que recebeu pela primeira vez aos sete anos. Seu amor pela
Sagrada Comunhão também é relatado em uma história que
só as crianças são capazes de protagonizar: certo dia pediu
para ficar um pouco na sacristia da capela do Colégio São
Marcelo, em companhia de uma freira, a fim de ver como era
a preparação dos utensílios da missa. A garotinha virou-se
para a freira e disse: “Irmã, a hóstia só será consagrada ama-
nhã. Posso, então, dar beijinhos na hóstia para que Nosso
Senhor consagre esses beijinhos?”. Essa é a simplicidade de
que Cristo fala no Evangelho de Mateus, quando nos con-
clama a sermos como crianças (Mt 18,3).
Devemos ter o coração puro e viver a religião sem afeta-
ções, tal qual Odetinha. As pessoas por vezes ignoram a ca-
pacidade das crianças de entender os mistérios da fé, achan-
do que a simplificação extrema, quase beirando a tolice, é o
que atrairá os pequeninos e os jovens à religião. Odetinha é a
prova contrária disso. Há pessoas que julgam a fé dos antigos
como obscura e interpretam a missa como uma celebração
enfadonha, desejosos de acrescentar pirotecnias à celebração,
a fim de que as crianças se sintam atraídas à igreja. A vida de
Odetinha demonstra que a Verdade vivida e proclamada é o
que atrai pessoas ao catolicismo.
Sua intimidade com Jesus também a fez perceber que
não ficaria por muito tempo neste mundo. Certo dia, foi à

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ODETE VIDAL DE OLIVEIRA (1930–1939)

escola e falou com as amigas: “Hoje é meu último dia na


escola porque logo vou morrer”. Logo depois cai doente,
vítima de tifo e meningite. Seu sofrimento durou quarenta
e nove dias, durante os quais dizia: “Eu vos ofereço, meu Je-
sus, todos os meus sofrimentos pelas missões e pelas crian-
ças pobres”. No dia de sua morte, em 25 de novembro de
1939, Odete recebeu a Eucaristia e disse: “Meu Jesus, meu
amor, minha vida, meu tudo”.
A devoção à menina intensificou-se a partir da déca-
da de 70, mas seu primeiro milagre aconteceu anos antes,
quando, por sua intercessão, a senhora Alice Vidal, mãe de
Odetinha, ficou curada de um ferimento na perna causado
por um atropelamento de bicicleta. O processo de beatifi-
cação de Odete Vidal foi aberto em 18 de janeiro de 2013
e atualmente seus restos mortais encontram-se na Basíli-
ca da Imaculada Conceição, em Botafogo, onde é possível
ver muitas placas de agradecimento por graças alcançadas
através da intercessão da santinha carioca.

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GUIDO SCHÄFFER
(1974–2009)

Jovem, bonito, médico, ca-


rismático, surfista e com boa
situação financeira. Guido
Vidal França Schäffer teria a
seu dispor todas as tentações
para se desviar da vida cristã,
mas agiu diferentemente, de-
monstrando que o caminho
rumo ao Céu é moldado pela
consagração da vida a Cristo. Nascido em 22 de maio de
1974 na cidade de Volta Redonda, no estado do Rio de
Janeiro, Guido mudou-se para a capital durante a infância.
O menino cresceu em Copacabana, na zona sul carioca, e
passou a frequentar a Paróquia de Nossa Senhora de Copa-
cabana, onde fez Primeira Comunhão e Crisma.
Guido sabia que as boas novas do Evangelho não de-
veriam ficar restritas a ele, então sempre convidava amigos
para tomarem parte na catequese de Crisma. Além disso,
a vida de Guido foi o reflexo de uma boa criação religio-
sa, pois seus pais, católicos devotos, preocuparam-se em
transmitir o valor da religião para o filho. Sua mãe coorde-
nava um grupo mariano e o filho, inspirado pelo exemplo
doméstico, criou um grupo de oração no começo da vida
adulta.
Em 1998, Guido forma-se em Medicina pela Fun-
dação Técnico-Educacional Souza Marques e começa a
exercer a profissão na Santa Casa de Misericórdia do Rio
de Janeiro. Logo toma parte na Pastoral da Saúde e pas-
sa a usar da medicina como ferramenta para curar tanto o

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SELETA BRASILEIROS HERÓIS DA FÉ

corpo quanto a alma. Relata-se que em sua monografia de


conclusão de curso apresentou a Eucaristia como remédio
para o corpo e para a alma; além disso, os testemunhos das
pessoas que trabalharam com ele atestam sua preocupação
com a vida integral de cada paciente, sem restringir-se às
questões fisiológicas.
Certo dia, ao assistir a uma pregação na comunidade
Canção Nova, foi tocado pela seguinte passagem bíblica:
“Não te desvies de nenhum pobre, pois, assim fazendo, Deus
tampouco se desviará de ti” (Tb 4,7). A reflexão provocou
uma mudança na vida de Guido, que se arrependeu das
vezes em que não havia ajudado os mais necessitados. Daí
em diante sua trajetória tomou novo rumo. O jovem rapaz
abdicou da possibilidade de receber glórias com a profissão
e seguiu a ordem do Mestre, juntando-se ao trabalho assis-
tencial das Irmãs Missionárias da Caridade: Guido passou
então a fazer atendimentos da população de rua.
Após algum tempo, discerne sua vocação e decide pela
vida religiosa. Ingressa no Instituto de Filosofia e Teologia
do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, onde cur-
sa Filosofia e Teologia. Concomitantemente à preparação
para o sacerdócio, Guido continuou a atuar como médico-
-missionário na Santa Casa de Misericórdia e na casa das
Missionárias da Caridade. Também era convidado a pregar
a Palavra, atividade que sempre desempenhou com amor e
afinco, como é possível constatar em vídeos gravados dis-
poníveis na internet.
Guido era um jovem como qualquer outro de sua idade:
tinha amigos, fez faculdade, praticava esporte. Criado pró-
ximo à orla do Rio de Janeiro, sua atividade física preferida
era o surfe. Certo dia, em seu último ano como seminaris-
ta do Seminário São José, foi à Praia do Recreio, na zona
oeste do Rio de Janeiro, surfar com seus amigos. Fazia um
dia ensolarado e as ondas estavam ótimas para a prática do

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GUIDO SCHÄFFER (1974–2009)

esporte. Numa manobra na água, Guido perdeu o controle


da prancha e teve uma contusão na nuca, que causou um
desmaio e morte por afogamento. Era 1º de maio de 2009.
Seus amigos relataram que Guido tinha a vontade de fale-
cer no mar, pois era onde sentia bem a presença de Deus.
Sua intimidade com o Salvador era tanta que teve seu pe-
dido atendido. Pouco a pouco, a dor causada pela morte de
Guido deu lugar à alegria pela santidade desse rapaz. Seu
processo de beatificação foi aberto em 2014 e atualmente
Guido tem o título de Servo de Deus.
Guido poderia ter sido um grande sacerdote, mas Deus
percebeu que Seu servo faria muito mais pela vida dos ou-
tros atuando no Céu. Desde 2016, em todo 1º de maio,
há um evento no trecho da praia onde Guido faleceu, que
foi rebatizada de Praia do Guido. Nesse dia há sermão
na areia, reza do terço, música e exposição do Santíssimo.
A memória de Guido permanece e a veneração a ele
torna-se cada vez mais popular.

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