Construindo o Relevo Terrestre Os Primordios Da Ge

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CONSTRUINDO O RELEVO TERRESTRE: OS PRIMÓRDIOS DA


GEOMORFOLOGIA NAS OBRAS DE BURNET, BUFFON E HUTTON

Article in Geography Department University of Sao Paulo · January 2012


DOI: 10.7154/RDG.2012.0024.0005

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William Z Bertolini
Universidade Federal da Fronteira Sul
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Construindo o relevo terrestre: os primórdios da geomorfologia nas obras de Burnet, Buffon e Hutton
William Zanete Bertolini 0

CONSTRUINDO O RELEVO TERRESTRE: OS PRIMÓRDIOS DA GEOMORFOLOGIA NAS OBRAS DE


BURNET, BUFFON E HUTTON

William Zanete Bertolini 1

Resumo: O estudo das formas da superfície terrestre possui raízes nas cosmosgrafias dos
séculos XVII e XVIII e passa gradativamente a um estágio mais científico com os trabalhos
desenvolvidos no contexto da história natural dos séculos XVIII e XIX. Esta é a ideia que se
defende e que se tenta demonstrar neste trabalho a partir das concepções sobre a origem e
estruturação da superfície da Terra de Thomas Burnet (1635 - 1690), Buffon (1707 - 1788) e
James Hutton (1726 - 1797).

Palavras-Chave: Geomorfologia; Geologia; Geociências.

Building earth’s relief: the rise of geomorphology in the works of Burnet, Buffon and
Hutton

Abstract: The study of landforms has roots in the cosmographies of the seventeenth and
eighteenth centuries, and gradually goes to a stage more scientific with the works
undertaken in the context of the natural history of the eighteenth and nineteenth centuries.
This is the idea that defends and tries to show that this work, from the conceptions about the
origin and structure of the surface of the Earth by Thomas Burnet (1635 - 1690), Buffon (1707
- 1788) and James Hutton (1726 - 1797).

Key-Words: Geomorphology; Geology; Geosciences.

INTRODUÇÃO

É difícil precisar os princípios da história do estudo do relevo terrestre. Entretanto, e apesar


de pouco conhecidas e frequentemente esquecidas, algumas ideias bastante antigas sobre
essa questão remontam ao Renascimento com as ideias de Leonardo Da Vinci (séc. XV) sobre
o trabalho fluvial e a gênese dos vales. Destaca-se também o trabalho do médico e
matemático italiano Domenico Guglielmini sobre a natureza e hidráulica dos rios (1697).
No entanto, é a partir do século XVIII e principalmente no XIX que se desenvolvem com
maior vigor as ideais acerca das formas e origens do modelado. A tarefa de maior fôlego do
estudo da gênese e dinâmica das formas da superfície terrestre encontra suas raízes nas
ideias concebidas por estudiosos como o bispo anglicano Thomas Burnet, Buffon e James

1
Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado em Geografia e Análise Ambiental pelo Instituto de
Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorando em Geografia Física pela Universidade de São Paulo. Email:
[email protected]
DOI: 10.7154/RDG.2012.0024.0005

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Hutton em suas teorias da Terra, num contexto em que história natural, cosmografias e
preceitos religiosos se misturavam.
O período entre os séculos XVII e XIX foi fértil em termos de ideias que explicaram o
desenvolvimento da crosta terrestre e das formas do seu relevo. Tais ideias foram
fundamentais ao progresso das Ciências da Terra, especialmente da moderna Geologia e
Geomorfologia. Situadas em um contexto no qual o raciocínio científico se mesclava com o
arraigamento da doutrina mosaica preconizada pela Bíblia, essas ideias se ligavam muito
mais à construção do que se poderia chamar de cosmogonias (ou cosmologias) do que
propriamente a um edifício científico formal das Ciências da Terra baseado no empírico e no
observável. Contudo, tais ideias constituem a raiz da moderna geomorfologia.
Do ponto de vista científico, geomorfologia e história natural se confundem em suas raízes.
Desse ponto de vista, pode-se pensar que a geomorfologia se individualiza disciplinarmente
como uma das Ciências da Terra. No entanto, encarado como um aspecto importante na
organização do espaço, o relevo desempenha função importante nas relações entre
sociedade e natureza, o que o aproxima de uma abordagem mais próxima das ciências
humanas ou daquelas que se encontram no limiar entre as humanidades e a Natureza como
a geografia. Abreu (1985) sintetiza de forma sensata esta questão da delimitação da
geomorfologia enquanto ciência.
Se por um lado é inegável que a geomorfologia constitui-se realmente em
uma geociência, paralela a tantas outras, como a estratigrafia e a
sedimentologia, por exemplo, é inegável, igualmente, que ela nada mais é
do que uma das faces assumidas pela Ciência, possuindo limites que
transgridem o campo de outras disciplinas em função da perspectiva e do
objetivo com que se considera o relevo. Encarada desta forma a
geomorfologia poderá ser vista tanto como um ramo da geografia física
como da geologia, bem como uma disciplina em si mesma. Tudo dependerá
da perspectiva em que se coloca o estudo do relevo e não da realidade
filtrada por uma estrutura acadêmica e curricular do conhecimento (ABREU,
1985, p.154).

Construindo a Paisagem Terrestre a Partir das Formas da Superfície da Terra:


algumas ideias vindas dos primórdios das ciências da terra

Davies (1968) apresenta em sua história da geomorfologia britânica um levantamento e uma


análise minuciosos sobre os primórdios desse campo de conhecimentos. Entre o final do
século XVI e início do século XVIII, encontram-se trabalhos esparsos que constituem o que o

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autor chama de periodo pré-Huttoniano da literatura geomorfológica. Guiados sobretudo


pela inspiração bíblica e pelas palavras do livro do Gênesis, os escritos desse período podem
ser delineados em três teorias distintas, porém não mutuamente excludentes. A primeira
afirma que o relevo da Terra é e sempre foi da forma como o vemos atualmente, tendo sido
moldado pelas próprias mãos de Deus no terceiro dia da Criação (DAVIES, 1968). A segunda
afirma que houve um relevo primitivo, anterior ao Dilúvio, e que após o Dilúvio um novo
relevo foi moldado em função das águas. E por último, a teoria de que a atual topografia
terrestre é o resultado de grandes convulsões sísmicas (DAVIES, 1968).
Autores como Arcebispo Ussher (1581 – 1656), Thomas Burnet (1635 – 1690) e Nicolaus
Steno (1648 – 1686), embora tivessem uma preocupação com o observável e suas
causalidades construíram seus modelos baseados em princípios religiosos ditados pela Bíblia
como, por exemplo, o Dilúvio. Seus esforços foram no sentido de encaixar os irrefutáveis
mecanismos das leis naturais dentro da teologia mosaica, aliando o pensamento causal com
a beleza e a bondade da obra de Deus na Terra.
O Dilúvio teve nesse período inicial das Ciências da Terra um papel explicativo de grande
amplitude. Foi, por muitos autores, considerado como a principal causa geológica da
esculturação da crosta terrestre.
Do mito ao pensamento construído sobre a razão e a experiência, mas sem romper com a
obra de Deus, é interessante notar como o papel das águas diluvianas é empregado por
alguns autores na explicação da natureza e origem das paisagens continentais. Destacam-se,
assim, Thomas Burnet (1635 – 1690), Georges Louis Leclerc (Conde de Buffon) (1707 – 1788)
e James Hutton (1726 – 1797).

Thomas Burnet e a Sagrada Teoria da Terra

Thomas Burnet foi um bispo anglicano, autor da Sagrada Teoria da Terra (Sacred Theory of
the Earth – 1684). Numa época em que ciência e religião não eram de todo separadas,
Burnet buscou uma física das causas naturais que concordasse com o único documento que
se julgava infalivelmente verdadeiro – a Bíblia (GOULD, 1991).
Dentro dos limites dessa concordância, Burnet empreendeu uma estratégia que o
incluiu entre os racionalistas (os ‘mocinhos’ no futuro desenvolvimento da
ciência...). Como peça central da sua lógica, Burnet insiste repetidamente que a
história da Terra, conforme especificada nas Escrituras, só será adequadamente
entendida quando identificarmos as causas naturais de toda a panóplia dos
acontecimentos bíblicos (GOULD, 1991, p. 37).

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O dilúvio tem papel fundamental em sua Teoria da Terra. Para Burnet, é por meio do colapso
da crosta provocado pelo dilúvio que teve origem a atual superfície da Terra (Figura 1).
Antes das águas diluviais cobrirem a superfície, a face da Terra era lisa, regular e uniforme,
sem montanhas e sem o mar (BURNET, 1816, p.61-62). Emergindo do caos, a matéria fluida
foi se precipitando, segundo as leis naturais, em diferentes camadas concêntricas
componentes da Terra. As massas d’água se precipitaram em uma camada exterior, abaixo
da crosta sólida e lisa, sem, contudo, possuírem a forma e a profundidade dos oceanos como
as conhecemos (BURNET, 1816).
Burnet tentou calcular a quantidade de água dos oceanos, embora tenha subestimado tanto
em extensão quanto em profundidade as medidas médias dos oceanos.
Ao concluir que os mares não conseguiriam cobrir os continentes, ao
calcular que quarenta dias e noites de chuva acrescentariam pouco e ao
rejeitar a criação divina de novas águas como algo metodologicamente
destrutivo a seu programa racional [Deus criou o mundo perfeito; de modo
que não precisaria intervir continuamente para mantê-lo assim], Burnet
teve de buscar essas águas em outra fonte. E fixou-se numa camada
mundial de água, subjacente e concêntrica à crosta original da superfície da
Terra. O dilúvio, declarou, ocorreu quando essa crosta original rachou,
permitindo que a grossa camada de água subterrânea subisse do abismo
(GOULD, 1991, p. 39-40).

Figura 1 – Esquema explicativo do Dilúvio e da formação das montanhas e demais formas da superfície da
Terra. Da esquerda para direita, a primeira figura representa a camada exterior do planeta que, ao se rachar,
permite que as águas abissais saiam do seu confinamento e inundem toda a Terra, mostrada na segunda figura.
Ao recuarem, as águas deixam para trás uma crosta repleta de escombros relacionados ao atual relevo e os
oceanos como os conhecemos atualmente.

A interpretação do dilúvio proposta por Burnet explica a atual superfície da Terra, sem,
contudo, se remeter aos processos que fazem com que as paisagens mudem
constantemente. Sua teoria da Terra não considera a atuação constante dos processos

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naturais como responsáveis pela transformação e evolução da paisagem ao longo do tempo,


como se reconhece nas modernas ciências da Terra. Ele apenas especifica o estado da Terra
antes e depois do dilúvio explicando e justificando a morfologia atual em função desse
evento. Seu modelo prescinde de uma dinâmica processual, inerente à natureza. No
entanto, reconhece a atuação de causas naturais como os ventos e as chuvas na
esculturação da superfície terrestre, ainda que estejam submetidas a um plano divino
(DAVIES, 1968).

Buffon e as Épocas da Natureza

Georges Louis Leclerc, o Conde de Buffon, foi o naturalista encarregado da administração do


Jardin des Plantes Du Roi (futuro Museu de História Natural de Paris) a partir de 1739. Sua
obra-prima, História natural, geral e particular com a descrição do gabinete do rei, redigida
em dezenas de volumes, apresenta em seu primeiro volume (publicado em 1749) uma
história e teoria da Terra, incluindo textos chamados pelo autor de provas da teoria da Terra.
Entre os suplementos à sua História Natural, publicados posteriormente, Buffon apresenta,
em 1779, um intitulado As Épocas da Natureza, que, de certa maneira, sintetiza em uma
sequência de fatos a sua História e Teoria da Terra.
Suas ideias e observações acerca da origem e evolução do planeta demandaram um recuo
no tempo maior que aquele calculado segundo os critérios bíblicos que estabeleceram a
idade do planeta entre 5000 e 6000 anos. Ele, então, organizou os fatos naturais em
diferentes épocas da Natureza, de acordo com a seguinte sequência (BUFFON, 1778):
 1ª Época: Quando a Terra e os outros planetas tomaram suas formas;
 2ª Época: Quando da matéria tendo se consolidado deu origem às rochas do interior
do planeta e das grandes massas duras na sua superfície;
 3ª Época: Quando as águas cobriram os continentes;
 4ª Época: Quando as águas recuaram e os vulcões começaram a atuar;
 5ª Época: Quando os elefantes e outros animais povoaram as terras do Norte;
 6ª Época: Quando houve a separação dos continentes;
 7ª Época: Quando a força dos homens se aliou à da Natureza.

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Com relação ao modelado da superfície terrestre ganham destaque os fenômenos descritos


na segunda, terceira e quarta épocas da sua história natural.
Na 2ª época, a origem das rochas do interior do planeta e das grandes massas rochosas na
sua superfície deve-se aos “efeitos naturais produzidos por uma causa tão simples e natural,
ou seja, pelo resfriamento da matéria em fusão, quando se consolidava sobre a superfície”,
afirma Buffon (1778, p.72). Ao contrário do que supunha Burnet, a superfície original da
Terra não seria perfeita, lisa e sem irregularidades. As rugosidades ou as montanhas
primitivas produzidas à superfície do globo são os produtos da tomada de consistência e de
forma da matéria incandescente em processo de resfriamento (BUFFON, 1778). Um grande
número de montanhas, vales, cavernas e anfractuosidades se formaram a essa época nas
camadas exteriores da Terra (BUFFON, 1778, p. 71).
A partir do momento quando a superfície se tornou suficientemente amena (em termos de
temperatura) para receber e manter a água líquida sobre si (3ª época), as águas
“preencheram todas as profundidades, cobriram todas as planícies, todos os intervales que
se encontram entre as saliências da superfície do globo” (BUFFON, 1778, p.93). Nas palavras
de Buffon (1778, p. 147) “é a água que, como causa geral e subsequente à do fogo primitivo,
levou a cabo a construção e a forma da superfície atual da Terra”.
Dessa maneira, Buffon também admitiu a existência de uma quantidade de água que
recobriu toda a Terra até uma altura de cerca de 3600 metros (deux mille toises). E durante o
tempo em que essas águas se mantiveram sobre os continentes, “o movimento do fluxo e
refluxo e aquele das correntes, mudaram a disposição e a forma das montanhas e dos vales
primitivos” (BUFFON, 1778, p.448).
Esses movimentos teriam formado colinas nos vales, eles teriam recoberto
e disposto novas camadas de terra nos sopés e nas bordas das montanhas;
e as correntes teriam escavado veios e vales, cujos ângulos se
correspondem; é a estas duas causas [fogo e água], uma bem mais antiga
que a outra, que se deve a forma exterior que apresenta a superfície
exterior da Terra (BUFFON, 1778, p.448).

Na 4ª época têm papel importante os vulcões. Eles são responsáveis pelo fissuramento da
crosta e por fazer com que, ao reorganizar as águas da superfície em novos mares e
oceanos, fosse possível o desenvolvimento dos grandes animais nas terras emersas por esse
meio. Em suas ideias do fissuramento da crosta e da sua movimentação, responsável pela
separação dos continentes, estão os primórdios da concepção da deriva continental.

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Na teoria da Terra de Buffon, a natureza opera sob dois mecanismos principais: a dissolução
pelas águas e a liquefação pelo fogo (BUFFON, 1778). Seu modelo de evolução do planeta e
da sua crosta é baseado nesses dois mecanismos. As paisagens primitivas foram forjadas
pela incandescência primitiva da matéria, através de suas leis físicas. Quando a superfície foi
se resfriando o papel da água líquida pôde se fazer presente mantendo-se, entretanto, o
fogo interior do planeta vivo e bem mais ativo que o calor proveniente do Sol. Esse calor
interior foi o responsável, por meio da atuação dos vulcões, pelo remanejamento de terras e
águas na superfície do planeta.

James Hutton e a Máquina Mundo

James Hutton é considerado um empirista e pai da geologia moderna – e da geomorfologia


por alguns como Davies (1968) – embora, na opinião de Gould (1992), ele também
pertencesse à grande tradição da abrangente (e em parte especulativa) construção de
sistemas que explicavam a origem e desenvolvimento da Terra.
Sua Teoria da Terra, publicada pela primeira vez em 1788, admite um infindável ciclo de
processos que se repetem ao longo da história do planeta. Sua concepção a-histórica
preconiza que os processos que atuam hoje em dia, se considerados num lapso de tempo de
milhares de anos, seriam capazes de dar à superfície terrestre a sua forma atual. Quando
interpretou a estratigrafia de um vale próximo a Jedburgh e percebeu a mudança brusca na
disposição dos estratos (Figura 2), entendeu que só um lapso de tempo muito extenso
poderia ter sido capaz de compor aquela paisagem. Nesse exemplo de Jedburgh e sua
inconformidade, Hutton explicou o desenvolvimento da paisagem, supondo a seguinte
sequência de eventos. Primeiro, o local onde hoje se acham expostas as camadas foi o fundo
de um mar, no qual os sedimentos vindos do continente se depositaram e se consolidaram
horizontalmente. Então, posteriormente, essas camadas foram soerguidas acima do mar de
modo que tal força fez com que elas, originalmente horizontalizadas, fossem torcidas e
verticalizadas. A erosão contínua fez com que parte desse material soerguido fosse
novamente depositado horizontalmente no fundo do mar. Um período de subsidência se
seguiu e esse material foi consolidado em uma nova camada rochosa sobre a anterior.
Finalmente, um novo soerguimento fez com que as camadas pudessem aparecer em terra
firme novamente mediante a ação fluvial que as desenterrou.

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A água também tem um papel importante na concepção da sua “máquina terrestre”. Não no
sentido do dilúvio, mas sim pelo lento e contínuo movimento das águas correntes que
desnudam as terras emersas em direção aos oceanos. Todas as terras emersas foram
originadas no fundo dos mares segundo sua concepção.
O ciclo repetitivo responsável pelo modelamento da superfície é composto por erosão –
deposição – consolidação – soerguimento. Primeiro o solo é desgastado pela erosão. Em
seguida, o material erodido é depositado nas profundezas dos oceanos onde, num terceiro
estágio, as camadas de sedimentos são compactadas e consolidadas por pressão e pelo calor
interno da Terra. Em um quarto estágio, a crosta é fraturada e soerguida pelas forças
telúricas para formar novos continentes, expostos outra vez aos processos erosivos.

Figura 2 – Inconformidade próxima a Jedburgh. (From Hutton, Theory of the Earth, vol. 1, Edinburgh, 1795,
plate 3.) Fonte: www.openlearn.open.ac.uk. Acesso em 25 de novembro de 2011.

Embora Hutton tenha tratado o papel das águas em sua teoria de maneira muito
semelhante à que hoje lhe atribui como importante agente morfogenético, ele também
considerou que a maior parte da superfície sólida da Terra teria sido formada no fundo dos
mares (HUTTON, 1788, p. 223). Seu questionamento a partir disso foi o de saber quais forças
foram responsáveis por erguer os continentes acima do nível do mar. Ao analisar a
disposição das camadas rochosas no litoral da Inglaterra voltou sua atenção para o fato de
que a não horizontalidade daquelas camadas só poderia ter se dado mediante a atuação de

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uma “força expansiva” capaz de soerguê-las acima do mar, fraturando-as e deslocando-as


(HUTTON, 1788, p. 266). Em sua teoria, fogo e água são elementos fundamentais na
esculturação do relevo terrestre. O primeiro manifestado através das forças telúricas do
interior da Terra e o segundo através do trabalho fluvial das águas superficiais e marinhas.
Embora também fosse uma pessoa crente em Deus, sua Teoria da Terra, diferentemente de
Buffon, não recorre a uma interpretação metafórica da Bíblia para explicar os mecanismos
de estruturação da superfície terrestre (KENNEDY, 2006). A este respeito, Kennedy (2006, p.
18) afirma que “um fator crítico que talvez ajudasse a explicar a independência de Hutton
em relação à cronologia mosaica fosse o de que, enquanto um deísta, considerasse que seria
a Terra e não a Bíblia a reveladora da proposta e do trabalho de Deus”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da gênese e dinâmica das formas da superfície terrestre atribuída modernamente


à geomorfologia pode ser relacionada, guardadas as devidas ressalvas científicas, às ideias
concebidas por estudiosos como Burnet, Buffon e Hutton em suas teorias da Terra, num
contexto em que história natural, cosmografias e preceitos religiosos se misturavam. Apesar
do cerceamento pela ideologia religiosa, desenvolvia-se a compreensão do planeta Terra e
do seu relevo baseada em uma racionalidade de pensamento vinculada à observação e ao
estabelecimento de relações causais entre os fatos e fenômenos naturais observados.
Depois de Hutton, três linhas de pensamento iriam se distinguir claramente: a dos
netunistas, a dos plutonistas e a dos fluvialistas.
Os netunistas, representados sobretudo pelas ideias de Abraham Gottlob Werner (1749 –
1817), encaravam o papel das águas, na forma de um oceano primitivo, como essencial à
formação das rochas e feições da superfície terrestre. Werner acreditava que, ao retroceder,
esse oceano primitivo deixou expostas as rochas formadas em seu fundo e sobre elas se
acumularam rochas novas, produtos da erosão, que se instalaram em camadas sucessivas
(MAGNANI e MOLEDO, 2009). Esta ideia de um oceano primitivo já estava presente no
trabalho de Gottfried Leibniz (1646 – 1716) que, em substituição ao dilúvio bíblico, admitiu
que o planeta esteve coberto por um imenso oceano no fundo do qual os minerais
dissolvidos se precipitaram e formaram as rochas existentes (MAGNANI e MOLEDO, 2009).

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As ideias de Buffon e Hutton são, em grande medida, o alicerce da linhagem plutonista


alavancada por Charles Lyell no século XIX. Os adeptos do plutonismo se contrapunham aos
netunistas pelo fato de considerarem o papel do fogo e das forças internas da Terra,
manifestas através dos vulcões, por exemplo, como um importante fator na gênese das
rochas e na sobrelevação do que havia sido formado no fundo do mar às alturas da
superfície.
A linhagem fluvialista, enquanto uma linhagem de pensamento talvez só possa ser
estabelecida com os trabalhos desenvolvidos pelos norte-americanos no contexto da
expansão para o oeste dos Estados Unidos. No entanto, Hutton já sabia que os rios eram
importantes agentes dentro da “máquina mundo”, levando os sedimentos de volta para o
fundo dos mares, onde seriam petrificados.
Todavia, é interessante notar que as ideias fluvialistas parecem ter tido pouca força até o
desenvolvimento e disseminação dos trabalhos de Surell nos Alpes (1841) e dos norte-
americanos no século XIX. Broc (1975) afirma que apesar da genialidade das ideias de
Hutton e Playfair a esse respeito, repousou na ignorância do papel fluvial sobre o modelado
o “bloqueio metodológico que impediu a compreensão da evolução do relevo terrestre”
(BROC, 1975, p.36). Baulig (1950) também atesta tal visão do relevo, ignorante do papel
fluvial e ainda muito ligada a ideias catastróficas; ao relevo como resultante de
fraturamentos e movimentos bruscos da crosta: “para a maior parte dos contemporâneos de
Playfair, rios e vales não possuíam ligações genéticas: o rio drenava uma depressão que ele
não havia criado” (BAULIG, 1950, p.7).
As águas, no papel do Dilúvio bíblico ou na concepção de um grande oceano que
progressivamente retrocedia, ainda eram, direta ou indiretamente, o principal
acontecimento geológico nas ciências naturais até a metade do século XIX.
Esta breve apresentação de diferentes visões do relevo oferece a possibilidade de perceber
que o empírico e o ideológico se associam nos primórdios das Ciências da Terra,
especialmente nos domínio das idéias geológico-geomorfológicas e na visão que se tinha da
estruturação da paisagem terrestre. Se o apelo científico, por um lado, tornou
inquestionável o papel dos elementos naturais como fatores causais na constituição e
desenvolvimento da superfície terrestre, a moralidade religiosa, por outro, manteve-se
durante muito tempo ao lado de um raciocínio parcialmente científico criando uma visão de

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mundo em que natureza e cultura se fundem na busca e aprimoramento do conhecimento


geocientífico.

AGRADECIMENTO

O autor agradece a leitura crítica realizada pelo professor Adilson Avansi de Abreu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Adilson A. de. A Teoria Geomorfológica e sua Edificação: Análise Crítica. Revista
Brasileira de Geomorfologia, ano 4, n.2. p.51-67. 2003.

BUFFON, Georges Louis Leclerc, Comte de. Histoire naturelle, générale et particulière –
supplément: tome neuvième. Imprimerie Royale. Paris. 1778.

BAULIG, Henri. Essais de Géomorphologie. Publications de la Faculté des Lettres de


l’Université de Strasbourg. Fascicule 114. Paris. 1950.

BURNET, Thomas. The Sacred Theory of the Earth. Published by T. Kinnersley, Acton Place,
Kingsland Road. London. 1816.

BROC, Numa. Les débuts de la géomorphologie en France: le tournant des années 1890.
Revue d’histoire des sciences. Tome 28, nº 1, p.31-60. 1975.

DAVIES, Gordon L. The Earth in decay: a history of British Geomorphology 1578-1878.


London: Macdonald & Co. 1968.

GOULD, Stephen J. Seta do tempo, ciclo do tempo: mito e metáfora na descoberta do


tempo geológico. Companhia das Letras. São Paulo. 1991.

GOULD, Stephen J. A galinha e seus dentes e outras reflexões sobre história natural. Paz e
Terra. Rio de Janeiro. 1992.

Revista do Departamento de Geografia – USP, Volume 24 (2012), p. 80-91.


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Construindo o relevo terrestre: os primórdios da geomorfologia nas obras de Burnet, Buffon e Hutton
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HUTTON, James. Theory of the Earth; or an investigation of the laws observable in the
Composition, Dissolution, and Restoration of Land upon the Globe. Transactions of the Royal
Society of Edinburgh, vol. I, Part II, pp.209-304, plates I and II. 1788.

KENNEDY, Barbara. Inventing the Earth: ideas on landscape development. Blackwell


Publishing. 2006.

MAGNANI, Esteban.; MOLEDO, Leonardo. Dez teorias que comoveram o mundo. 1ª ed.
Editora Unicamp. 2009.

Artigo recebido em 23/03/2012.

Artigo aceito em 12/06/2012.

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