Pajaro Corrigida
Pajaro Corrigida
Pajaro Corrigida
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2022
MARIANA VIEIRA PAJARO
Versão corrigida
(Versão original encontra-se na unidade que aloja o Programa de Pós-graduação)
São Paulo
2022
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Banca Examinadora
Ao meu marido, meu maior suporte e grande incentivador nessa vida. Pela compreensão,
amor e admiração que sempre me mantiveram focada nesse sonho - apesar de todo o desafio e
concessão que sua execução nos impôs. E, agora, ao nosso bebê, nosso maior sonho
concretizado, que dá um novo sentido à toda a minha existência.
Aos meus pais e minha irmã, que tanto acreditam em mim e fizeram o impossível para que eu
pudesse persistir nessa conquista. O suporte de cada um deles foi determinante para que eu
conseguisse chegar até aqui.
Aos meus amigos, que tanto respeitaram minhas ausências, e me incentivaram, torcendo para
que eu pudesse concluir esse projeto de vida.
Aos amigos gestalt-terapeutas, com quem pude dividir minhas angústias nessa caminhada e
dos quais recebi encorajamento e força incessantemente.
Ao meu orientador, Andrés, por ter aceitado me orientar e por ter permitido recomeçar minha
pesquisa e seguir nos caminhos que acreditava – agradeço a confiança.
Ao meu coorientador, Adriano, por ter me permitido crescer com seus questionamentos e
desconstruções e por ter, com suas orientações, me desafiado a ser melhor – saio maior do que
entrei, muito obrigada.
A Leopoldo Fulgencio, professor que me recebeu na Usp e por quem sinto muita gratidão por
ter me apresentado D. Winnicott através de seu olhar de admirador e do grande estudioso que
é.
A cada membro da banca, pelas contribuições de cada um, pela oportuna discussão e
ampliação de ideias nas etapas de qualificação e de defesa da tese.
(Safra, 2004)
Resumo
Prefácio …….…………………………….…………………….……..………..………… 14
1. Introdução …………………………………………………………………….….……… 16
1.1 Problema de pesquisa ………………………………………..……………..…….…….. 16
1.2 Justificativa …………………………………………………..……………..….…….…. 20
1.3 Objetivos ……………………………………………………..……….…….………….. 23
2. Metodologia ……………………………………………..……………..………….……. 24
São mais de 10 anos desde que me formei e iniciei meus atendimentos sob a
perspectiva da Gestalt-terapia. Em meu primeiro trabalho, o qual conciliava com a clínica,
foi no Hospital da Polícia Militar de Goiás atendendo crianças, filhos (as) e netos (as) de
policiais militares. Em paralelo, no consultório particular, também trabalhava com o
público infantil e suas demandas, em um contexto aparentemente mais “leve” do que o
mundo policial. Desde então, já com formação na abordagem gestáltica, me sentia insegura
na atuação para além da inexperiência natural do momento, sentia-me carente de um
suporte teórico mais amplo dessa abordagem na prática clínica.
A sensação era de poucos escritos, alguns deles sem uma conexão clara entre
fundamentos teórico-filosóficos e sua práxis, o que me fez sentir, em partes desamparada,
em partes instigada a criar e explorar esse caminho. Foi então que, no meu mestrado, pude
me dedicar à investigação sistemática da produção teórica no Brasil no que tange à clínica
com crianças na Abordagem Gestáltica. Com esse levantamento, pude constatar avanços e
lacunas significativas, na literatura brasileira, que me permitissem apontar e sugerir
caminhos e perspectivas possíveis para o crescimento desse saber.
Dentre as direções possíveis, uma delas apontava para a escassa discussão e
atualização do modelo de desenvolvimento humano fundamentado na Gestalt-terapia.
Concomitantemente, me intrigava o vazio (fértil) da comunidade gestáltica brasileira frente
às efervescentes discussões a respeito do bebê e da primeira infância. Foi então, que me
direcionei aos estudos dessa fase por meio de disciplinas do departamento de Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano (PSA), na USP.
Os estudos de Winnicott, e a teoria do desenvolvimento emocional do ser, se
conectaram ao que revelava minha experiência clínica com crianças e seus cuidadores.
Embora com significativos distanciamentos epistemológicos, teóricos e filosóficos,
confirmavam a minha experiência de que, há algo do início da vida, que, das mais
inalcançáveis formas, se presentificam no aqui-e-agora das relações familiares e que se
revelam no campo terapeuta-cliente. Tratava-se de um fundo relevante do qual se
destacavam figuras pregnantes, somente compreensíveis nessa fluida interconexão entre
passado, presente e futuro.
Ignorar essa constatação seria, no mínimo, irresponsável para com uma abordagem na
qual percebo e vivencio tamanho potencial. Seria como fechar os olhos e ignorar uma
realidade captada e apreendida com tanto sentido. Impossível. A trajetória que se mostrou
possível, então, foi a interlocução do existente com a possibilidade do existir… Gestalt-
terapia, desenvolvimento humano, Winnicott… uma solitária e desafiadora caminhada
pelos riscos, imbróglios e possibilidades de alcançar aquilo que de mais essencial
configura o desenvolvimento humano: o crescimento… Por um crescimento da ciência, por
um crescimento da abordagem, por um crescimento pessoal, fruto dos sucessivos processos
de desorganização e reorganização de ideias, que possam dar suporte ao objetivo primeiro
dessa pesquisa: contribuir, direta ou indiretamente, com o crescimento de seres humanos.
Como isso é possível? É o que pretendo refletir aqui…
16
1. Introdução
A clínica – e o contato com clientes das mais variadas idades – revelou, de modo
particular, diversos processos de interrupção no fluxo de crescimento humano. Histórias
únicas que compartilham de um aspecto comum: a impossibilidade de continuar se
desenvolvendo de modo fluido e criativo. Fruto disso, decorre um sofrimento significativo
que, embora aponte para a singularidade de cada pessoa, retrata uma tendência humana de
integração e continuidade que encontra dificuldades em seguir acontecendo. Uma gestalt
aberta, interrompida, que clama visceralmente por fechamento.
Do início ao fim da vida, é possível deparar-se com impedimentos no
desenvolvimento de uma pessoa, sendo a clínica uma espécie de laboratório que propicia
visualizar essa ocorrência de modo encarnado naquele que se apresenta diante do
psicoterapeuta. Há um fluxo contínuo, mesmo antes do nascimento e até a morte, que é
inerente à condição humana, a que chamamos de desenvolvimento humano. Entretanto, essa
continuidade não é garantida, visto que necessita de algo/alguém para além da pessoa, relativo
ao ambiente, para que possa apresentar-se e acontecer de modo satisfatório. Caso contrário,
diferentes configurações de funcionamentos, ou mesmo de sintomas, denunciarão essa
inviabilidade.
De uma perspectiva clínica, é, portanto, fundamental compreender como se dá esse
processo naquilo que o constitui de modo comum e geral ao humano. Dessa forma, é possível
alcançar o entendimento de suas dificuldades ou interrupções e, consequentemente, da
viabilidade de sua retomada, qualquer que seja o momento da vida. É fundamental conhecer o
curso do desenvolvimento humano para uma prática psicoterapêutica que possa ser capaz de
identificar o que está acontecendo com uma pessoa, quais recursos lhe faltaram ou lhe
17
desafiaram e do que ela precisa em dado momento para resgatar o seu fluxo de crescimento.
Isso conduz à indagação sobre o que é e como acontece o desenvolvimento humano, o que
pode ser respondido por diferentes concepções e sob diferentes enfoques.
Historicamente, o estudo das teorias do desenvolvimento humano floresceu com o
intuito de apresentar padrões comportamentais característicos a determinada idade ou fase,
pautados em parâmetros que fossem capazes de explicar o que, como e por que algumas
mudanças acontecem ao logo da vida de uma pessoa, tendo como base a subdivisão em
estágios específicos que enfatizam diferentes aspectos: orgânicos, cognitivos, afetivos,
motores, sexuais, morais, sociais, histórico e culturais (Aspesi, Dessen & Chagas, 2008). A
princípio, a psicologia do desenvolvimento contemplava somente a chamada infância, sem
qualquer correlação dessa com o processo de crescimento posterior a essa fase (Aspesi et al.,
2008; Papalia & Olds, 2006), fragmentando e isolando o ser humano em seu percurso de
amadurecimento, sem evidenciar o continuum de transformações às quais esse vivencia.
Por volta da segunda metade do século XX, em uma sociedade pós-moderna e pós-
industrial, emerge um paradigma para o estudo do desenvolvimento humano, caracterizado
por um modelo relativista, integrador e contextual, com ênfase no valor da cultura e dos
contextos sociais (Aspesi et al., 2008; Dasen & Mishra, 2000). Desde o final do último
século, a evolução marcada nesses estudos direcionou para uma compreensão mais
integradora e complexa, com um realce na interação organismo/ambiente como o "contexto
interpessoal, histórico e cultural no qual o indivíduo se insere, interage e se constrói" (Aspesi
et al., 2008; Papalia & Olds, 2006).
Neste mesmo século, verificou-se uma avanço nos estudos no campo da Psicanálise,
sobretudo voltados para o bebê, a vida intrauterina e os primeiros anos, com ênfase na
constituição da subjetividade sob diferentes enfoques. Mas, houve um ponto em comum: o
reconhecimento da primordialidade da relação com o outro, seja no papel materno ou de
cuidador, para a tecitura humana que se desenrolará por toda a existência. Nesse âmbito,
destacam-se autores e estudiosos como Sigmund Freud, Anna Freud, Melanie Klein, Donald
Winnicott, René Spitz, Daniel Stern, John Bowlby, além de nomes contemporâneos como
René Roussillon, Françoise Dolto, Bernard Golse, entre outros. Com o avanço dessas teorias,
foi se construindo um olhar que privilegia a relação como dimensão substancial, para o que
18
princípio norteia a compreensão sobre sua experiência de contato com o mundo de modo mais
amplo. Isso não exprime uma proposição determinista, que seria incongruente com a proposta
teórico-filosófica da Gestalt-terapia, mas afirma uma correlação inegável entre passado,
presente e futuro. Esse entrelaçamento permite pensar uma série de experiências que, ao
serem vividas, impactam, alteram e reacomodam as anteriores, num movimento
impermanente de atualização no aqui-e-agora e de projeção no porvir. Isso legitima as marcas
e ressonâncias inquestionáveis das experiências iniciais (e seguintes) para a continuidade do
crescimento humano.
No que se refere às experiências iniciais, essas são tomadas como parte de um todo,
que se integra num contínuo de desenvolvimento, e não produz necessariamente A ou B, mas
compõe um fundo de experiências em constante acomodação e reacomodação. À medida que
uma nova experiência é vivida e assimilada como parte, o todo é criativamente reconfigurado.
Nesse sentido, a apropriação da história e das experiências iniciais vividas é sempre um
rearranjo único e imprevisível, ao passo que inegável. E o mesmo acontece com todas as
experiências que se dão ao longo da vida. Como ilustração, Perls (2002) vale-se da metáfora
do caleidoscópio: o presente é a coincidência de muitas “causas”, sempre mudando, nunca
idênticas.
O desenvolver diz respeito a um processo complexo1 que se dá em perspectivas. Nesta
pesquisa, faremos o recorte sobre a dimensão que abarca a interação organismo/ambiente,
sobretudo na relação entre o eu e o não-eu, como fator que favorece ou dificulta, desde a mais
tenra idade, a possibilidade de crescer. Com o reconhecimento da influência do meio para o
desenvolvimento global (Aspesi et al., 2008; Papalia & Olds, 2006) e tendo em vista a
concepção interacional da Abordagem Gestáltica, esta pesquisa questiona: de que modo a
relação organismo/ambiente corrobora com uma compreensão do desenvolvimento à luz da
Gestalt-terapia?
Epistemologicamente num terreno distinto, a teoria do desenvolvimento emocional de
Winnicott ressalta o papel do ambiente, sobretudo representado pela da mãe (em referência à
figura de um cuidador), que oferece cuidados suficientes em diferentes momentos da vida,
configurados por diferentes níveis de dependência desse bebê ou criança pelo outro. Sendo
1 Quando aqui é mencionado o termo “complexo”, diz respeito à concepção de complexidade como
referente a diversos aspectos ou elementos interligados que funcionam como um todo, seguindo
numerosas relações de interdependência, excluindo qualquer possibilidade de simplificação.
20
assim, o diálogo com tal teoria sinaliza um caminho de reflexão sobre aproximações que
possam contribuir com o aprofundamento da compreensão do desenvolvimento sob a
perspectiva gestáltica. O ponto de interlocução será a interação do eu com o outro, com base
nesses diferentes enfoques.
1.2 Justificativa
se coloca em conformidade com a noção de que uma teoria do desenvolvimento “fornece uma
linha geral e sistemática que pode conduzir ao entendimento dos problemas
humanos” (Fulgencio, 2016), desenhando-se também como uma proposta de modelo de
saúde.
No que se refere às primeiras experiências, o pediatra e diretor do CDC em Harvard,
Dr. Jack P. Shonkoff (2009), afirma que “desde a gravidez e ao longo da primeira infância,
todos os ambientes em que a criança vive e aprende, assim como a qualidade de seus
relacionamentos com adultos e cuidadores, têm impacto significativo em seu
desenvolvimento cognitivo, emocional e social”. Tem sido evidenciado que o cérebro do bebê
e da criança se constitui a partir das experiências iniciais de interação, como a do "dar e
receber”, isto é, de troca com os pais ou cuidadores, com interferências diretas nos circuitos
cerebrais. Isso reitera a perspectiva holística do organismo como um todo, possibilitando
reconhecer o potencial relacional, inclusive a nível cerebral.
Reconhecer a potência da relação na constituição humana permite amplificar a
urgência de se atentar, sobretudo, às primeiras relações que se estabelecem. Nesse sentido,
esta tese reflete sobre a história de vida como uma construção ininterrupta que compõe e
interfere no todo. Perls (2002) atenta para o risco de negligenciar o passado, sobretudo se
desconsideradas as situações inacabadas presentes. Em uma psicoterapia centrada no aqui-e-
agora, a compreensão do processo de desenvolvimento humano possibilita integrar, em
termos clínicos, o “lá e então” ao momento vivido no presente, alicerce único e fundamental
do passado e futuro (Fernandes, 1995; Perls, 2002).
Esta tese se debruçará sobre a reflexão de um princípio básico no qual se baseia o
processo de crescimento, a saber, a relação que se dá no campo organismo/ambiente. Isso se
opõe a um determinismo explicativo e simplista, e oportuniza pensar, nos diversos campos de
saber, possibilidades de cuidado com o humano em uma diversidade de contextos – dada a
complexidade de fatores e influências que estão em jogo em dado momento. Um campo de
atuação que se beneficia de tal compreensão é o trabalho psicoterapêutico com gestantes e
puérperas, bem como suas famílias e/ou pessoas que lhes são significativas, posto que elas
atravessam um momento de extrema fragilidade e vulnerabilidade e compõem, ao mesmo
tempo, o ambiente primordial do bebê e de seu desenvolvimento – com destaque ao nível
cerebral. Nesse caso, é preciso ampliar a compreensão desse universo, de modo que se possa
23
1.3 Objetivos
2. Metodologia
enunciar uma proposição teórica, baseada no incremento daquilo que já existe e que se
encontra aqui enunciado e contextualizado. Como bem pontua Whetten (2003), uma teoria
não nasce do zero, é fruto, geralmente de um trabalho na melhoria do que já existe. Em
concordância, Laurenti & Araujo (2006) enfatizam que uma pesquisa conceitual, para além de
um a explicitação metodológica, precisa produzir conhecimento novo, respondendo a uma
pergunta de pesquisa. Sendo assim, essa pesquisa se realizou em três etapas principais, melhor
descritas a seguir.
2 Termo adotado na Gestalt-terapia, sobretudo nos textos originais, para se referir ao processo de
desenvolvimento.
3Essa escolha deve-se ao fato de que tal material selecionado, somado ao resultante das demais etapas
da pesquisa, gerou um montante de análise extenso que, em função do tempo disponível para
conclusão da mesma, requereu um recorte necessário. Sendo assim, as obras em inglês do mesmo
autor não foram incluídas nesse estudo.
26
Portanto, neste caso foram adotadas fontes primárias, que se caracterizam pelo trabalho e
conhecimento original do autor (Pizzani et al, 2012). A partir dos critérios de inclusão
descritos, foram selecionados para a discussão: 1. Ego, fome e agressão: uma revisão da
teoria e do método de Freud; 2. Gestalt-terapia; 3. Gestalt-terapia explicada; 4. A
Abordagem Gestáltica e a testemunha ocular da terapia e 5. Escarafunchando Fritz: dentro e
fora da lata de lixo.
É preciso esclarecer notoriamente que, muito embora a autoria de Ego, fome e agressão
cite unicamente o nome de Fritz Perls, deve-se evidenciar a participação ativa e fundamental
de Laura Perls em tal obra4, sob forte influência de sua pesquisa sobre desmame e introdução
alimentar e sua experiência de maternidade com a filha Renate (Helou, 2013). Tal
reconhecimento público neste trabalho tem por objetivo dar visibilidade às suas relevantes
contribuições teóricas da autora para a construção da Gestalt-terapia — por vezes ainda
silenciadas. Sendo assim, embora Ego, fome e agressão referencie Fritz, sempre que aqui
mencionado, deve ser considerado como um texto de autoria do casal Perls.
4 De acordo com Helou (2013): "Já no final de sua vida, L. Perls (1992) revelou que a obra foi um
trabalho em conjunto do casal: 'O trabalho era feito numa comunicação contínua entre nós, e eu não
consigo me lembrar quem pensou primeiro. (...) Na África do Sul, inicialmente, éramos só Fritz e eu,
quando eu colaborei com tudo sobre Ego, Fome e Agressão (...) nós discutíamos suas ideias nos finais
de semana em casa' (L. Perls, 1992, pp. 11-12). Além disso, Laura afirma que dois capítulos do livro
são integralmente de sua autoria, 'O complexo de fantoche' (capítulo 6 de Metabolismo Mental) e 'O
significado da insônia' (capítulo 13 da Terapia de Concentração). Perls nunca se pronunciou a respeito
e não reconheceu a contribuição de Laura no tema da obra, na elaboração dos capítulos, nem sua
autoria nos referidos capítulos” (p.35).
27
A busca nas bases de dados se justifica pela intenção de alcançar trabalhos mais
recentes sobre tema em estudo, propiciando um olhar histórico que descreva a construção do
saber ao longo do tempo até o presente momento. Ela aconteceu pela combinação dos
descritores do grupo 1 (Gestalt-terapia; Abordagem Gestáltica; Terapia Gestalt) e do grupo 2
(desenvolvimento; desenvolvimento humano; crescimento). Para empregar o critério de
inclusão ou exclusão a esta pesquisa, realizou-se a leitura dos resumos e, em caso de dúvida,
do texto por inteiro para que fosse avaliada a adequação aos critérios elencados. Na busca
realizada, foram encontrados 17 artigos na Scielo e 15 na PePSIC, totalizando 32 publicações.
Dessas, apenas três atenderam ao critério de inclusão que delimitava algum recorte na seara
do desenvolvimento infantil com enfoque da Gestalt-terapia (ver tabela 1). Os demais 29
artigos, embora relacionassem os termos especificados, não abordavam qualquer exploração
da temática de interesse desta pesquisa e, por isso, foram excluídos dos resultados.
30
2020 Compreensão do binômio segurança e risco: perspectivas Rafael Cidrão Campos; João
em diálogo Vitor Moreira Maia
Os resultados detalhados por Pajaro (2015) revelaram que as produções brasileiras sobre
o tema do desenvolvimento começam a ser publicadas a partir de 1995, fruto dos esforços de
um grupo de gestalt-terapeutas de São Paulo que se debruçava sobre estudos da infância nessa
abordagem. Isso revela o pioneirismo desse grupo no Brasil5, no que diz respeito ao empenho
de inaugurar na literatura brasileira reflexões acerca da criança e de seu desenvolvimento.
Abordar essa lista de artigos permite dar visibilidade a um material que retrata uma
produção existente, porém, indisponível no formato on-line. Por se tratar de arquivos
unicamente impressos, encontram-se atualmente, em sua maioria, nas bibliotecas de institutos
de formação em Gestalt-terapia pelo país. Representam uma parte da história da abordagem
no Brasil, um caminho construído na direção de discutir e ampliar o tema do desenvolvimento
5 Myriam Bove Fernandes, Sandra Regina Cardoso, Cláudia Rinaldi Nogueira, Eviene Abduch
Lazaros e Tereza Cristina Pedroso Ajzenberg. Retirado de Pajaro (2015).
32
humano nesta abordagem. Ultrapassando a análise que fora realizada na busca de Pajaro
(2015), um detalhamento atual dos resultados revela que, do total de 48 produções
encontradas naquela pesquisa, 12 delas abordam a temática do desenvolvimento – sendo 11
artigos e um livro. Portanto, no intervalo pesquisado de 34 anos, uma a cada quatro
publicações ligadas à temática infantil diz respeito a questões relativas ao desenvolvimento.
Isso parece sinalizar, ao menos, uma inquietação da comunidade gestáltica relativa ao tema.
Um comparativo entre esses dados da pesquisa de Pajaro (2015) em relação aos dados
encontrados na atual busca permite observar como vem se comportando as publicações deste
tema até o presente momento. Nos achados atuais, com a busca nas principais bases de dados,
chama atenção o total de três artigos encontrados com esse recorte. Ou seja, de uma busca que
totalizou 32 textos, apenas três de fato expõem o tema referido num espaço temporal de
quatro anos. Tais dados revelam que essa discussão é ainda incipiente e sinaliza a necessidade
de ampliação. Duas reflexões são pertinentes perante a tendência de pesquisa e publicação
nessa abordagem. A primeira delas leva em consideração o “tempo de vida” da Gestalt-
terapia, uma abordagem de 70 anos que vem se expandindo no que tange a seu alcance,
retratado pelo crescente número de profissionais e de produções.
A segunda reflexão reverbera um apontamento historicamente conhecido, a saber, uma
crítica à Gestalt-terapia no que tange à produção de conhecimento com estudos e pesquisas
que se traduzam em publicações. Ainda que de posse de uma vasta fundamentação, a Gestalt-
terapia esteve por muito tempo associada a uma visão predominantemente técnica,
desconectada de sua fundamentação teórica. Nasce e dá seus primeiros passos alicerçada em
uma dicotomia teórico-prática que reverbera em seu desenvolvimento posterior e que ressoa,
ainda hoje, como desafio a ser constantemente refletido e respondido pelos gestalt-terapeutas
(Pajaro, 2015).
A etapa seguinte consistiu em realizar o levantamento das obras originais que
comporiam a base da compreensão do objeto de estudo. Reconhecendo a amplitude das obras
originais de Fritz Perls, e dados os limites de extensão da pesquisa, optou-se por realizar um
recorte que abarcasse unicamente as obras de autoria e coautoria de Fritz Perls, considerado
um dos principais fundadores da Gestalt-terapia. Com isso, foram incluídos cinco livros,
conforme descrito na tabela 3.
33
Fritz Perls
1942 Ego, fome e agressão
6Em referência ao texto Gestalt-terapia, de 1951/1997, em coautoria com Ralph Hefferline e Paul
Goodman.
34
mergulho pôde suscitar. Algumas perguntas foram respondidas, outras deram origem a novas
indagações.
O levantamento realizado nessa pesquisa revelou que o termo "desenvolvimento" é
usado de forma ínfima na literatura de Perls. Em lugar disso, verificou-se que se encontram
mais explicitados os conceitos de crescimento e de maturação. A primeira questão que se
apresentou foi a possibilidade de haver discrepância em relação à tradução desses termos. No
entanto, indo diretamente aos textos originais em inglês, pôde-se constatar que não se trata de
um equívoco na transposição das palavras, mas de fato uma escolha do autor por adotar
growth e maturation. Tendo em vista disso, pode-se entender que desenvolvimento,
crescimento e maturação na Gestalt-terapia fazem referência a processos similares? Para
responder, serão apresentadas as concepções do autor.
Perls pensava a Gestalt como uma teoria viável e apropriada à sua época (Perls, 1979),
e os achados demonstram que não há uma teoria do desenvolvimento, ao menos assim
intitulada e explicitada em sua bibliografia. Todavia, ao longo de sua obra, menciona uma
série de elementos que ele interrelaciona aos processos de crescer e de amadurecer. A
teorização que mais se aproxima de como uma pessoa se desenvolve pode ser encontrada na
metáfora do metabolismo mental, um modelo explicitado por Perls em referência ao processo
de crescimento.
Os conceitos e processos descritos por Perls em seus textos fornecem elementos básicos
para a construção de uma compreensão de desenvolvimento à luz da Gestalt-terapia. Mas essa
concepção não está enunciada de modo organizado e claro em seus textos. São como peças de
um quebra-cabeça, que possuem sentidos em si mesmas, mas não estão dispostas formando
um todo unificado, isto é, uma teoria7 ou perspectiva de compreensão – ao menos não
explicitamente.
Como pílulas que retratam pequenas doses do conhecimento, a figura 1 ilustra onde e
como aparecem as discussões pulverizadas nas obras originais sobre crescimento, maturação e
desenvolvimento. São conceitos e processos humanos que descrevem o funcionamento do
organismo/ambiente. Portanto, cada uma dessas concepções a serem apresentadas, dizem
necessariamente de uma interrelação do organismo/ambiente em ação.
Figura 1- Elementos de compreensão da temática destacados por obra de Perls (1942 - 19738)
Para fins de sistematização dos dados, cada subitem encontrado e destacado das obras
de Perls nessa pesquisa serão denominados "elementos de compreensão da temática”. Eles
serão apresentados a seguir, de acordo com o texto ao qual pertencem, mantendo o critério de
ordem cronológica das publicações.
A Gestalt-terapia nasce de um processo criativo de diferenciação com a Psicanálise.
Fritz e Laura Perls, dois de seus principais fundadores, eram psicanalistas de formação e,
junto às contribuições de Paul Goodman, gestaram o que viria a ser essa nova modalidade de
psicoterapia (Alvim, 2007). A obra de Perls Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e do
método de Freud, publicada em 1942 na África do Sul, origina-se de seu afastamento crítico
em relação à Psicanálise, fruto de seu mal-estar com a teoria psicanalítica, levando-o a propor
8Data da primeira (1942) à última publicação (1973) original. Optou-se por referenciar o ano de tal
modo a fim de ilustrar a ordem cronológica de suas obras.
36
dental”, caracterizado pela amamentação. Agora o bebê é responsável pela própria respiração
e por incorporar o alimento líquido, mesmo que não haja ainda a necessidade de destruir algo
sólido (Perls, 2002) – o que começa a lhe conferir um novo papel. Há nesse momento uma
ação de sugar, isto é, um movimento de retirar do ambiente aquilo que lhe é necessário.
Configura-se assim, uma espécie de parasitismo (Perls, 2002). O alimento é incorporado
ainda passivamente, engolido exatamente como chega, sem demandar qualquer tipo de
quebra.
Com a chegada dos primeiros dentes, tem início o "estágio incisivo", que diz respeito à
inauguração da capacidade de morder no bebê. Perls (2002) dirá que essa nova configuração
permite que se possa atacar o alimento sólido, destruindo a sua estrutura bruta e, muitas vezes,
tornando os mamilos da mãe algo para ser mordido. Para ele, a tarefa dos dentes cumpre a
função de destruir a estrutura bruta do alimento. Agora é possível, e até necessário, quebrar
aquilo que se recebe, em vez de engolir como antes.
É equivocado, no entanto, presumir que ter dentes, por si só, garante o morder. É
preciso sustentar a energia agressiva necessária a esse ato pois, “quanto mais a atividade de
morder é inibida, menos a criança desenvolverá a habilidade de enfrentar um objeto, se e
quando a situação exigir” (Perls, 2002, p. 167). Há fatores, portanto, que podem interferir no
morder, favorecendo-o ou dificultando-o, sejam eles próprios do organismo ou advindos do
ambiente. As inibições nesse processo natural podem gerar cristalizações ou interrupções
relevantes decorrentes delas. Outra informação significativa é que, nesse momento, a criança
pequena não é capaz de distinguir entre mundo interno e externo, o que caracteriza um
período de natural confluência e indiscriminação.
No estágio "molar", ativa-se a capacidade de morder e mastigar, por meio da
destruição e trituração dos alimentos. É possível agora, pela completa mastigação, propiciar
ao organismo a diferenciação entre aquilo que lhe é nutritivo ou tóxico, pelos processos de
nutrição e alienação (Perls, 2002). O autor enfatiza que "o uso dos dentes é a principal
representação biológica da agressão" (p. 74) e, com isso, indica uma semelhança estrutural
entre os processos mentais e físicos.
A palavra “agressão" está no título dessa obra e é, sem dúvidas, um elemento
fundamental para toda esta proposição. Perls (2002) defende a premissa de que o uso dos
dentes é, na verdade, a principal representação biológica da agressão, isso porque
38
operacionaliza a função destrutiva que permite quebrar algo que é diferente do eu, advindo do
meio. Sem transformar aquilo que recebe, o organismo é impedido de realizar um processo de
digestão.
A agressão exerce função importante na teoria de Perls et al. (1997) visto que considera
que a aniquilação e a destruição, a iniciativa e a raiva, são fundamentais para pensar o
crescimento, a partir da elaboração de um novo todo. Segundo os autores, a recusa pela
destruição poderia significar um processo de introjeção do self que, perdendo o contato com
sua necessidade, engole sem assimilar. É importante ressaltar que, para Perls et al. (1997), self
diz respeito ao sistema de contatos em qualquer momento; é o sistema de respostas, flexível e
variável, pois varia conforme as necessidades prementes.
A dentição favorece o processo de assimilação e destruição daquilo que é diferente do
eu, daquilo que lhe é estranho (Perls, 2002). A assimilação acontece quando, pelo processo de
destruição, algo se torna parte desse eu (Perls, 1979). Ao mastigar e destruir, é possível jogar
fora o que lhe é rejeitável e assimilar o que lhe é nutritivo. A questão é o que garante essa
capacidade de mastigar, do ponto de vista psicológico? O que é preciso para que o indivíduo
conquiste a possibilidade de usar sua energia agressiva de modo a destruir, podendo,
posteriormente, assimilar algo e crescer? Seria a agressão uma capacidade inata que exigiria
uma sustentação do meio para que possa se manifestar?
Ao examinar a natureza da agressão, mais à frente, Perls (2002) diz estar convencido de
que ela não é uma energia, mas uma função biológica, uma função do instinto de fome. Para
ele, é fundamental reestabelecer essa função biológica, de modo que a agressão possa ser
aplicada. Caso contrário, ela pode ser retrofletida, isto é, em vez de dirigida do indivíduo para
o mundo, muda sua direção, voltando-se para si mesmo (Perls, 2002).
Um bloqueio na energia agressiva configura, portanto, um empecilho ao curso do
desenvolvimento. Se não é possível entrar em contato com essa energia agressiva e, em vez
disso, tentar se livrar dela, haverá dificuldades em morder e mastigar – um impedimento no
processo de alienação ou assimilação. Fruto disso, ou nada é assimilado e torna-se parte do
eu, fazendo-o crescer, ou nada é alienado, mantendo-o imerso na toxidade.
A metáfora do metabolismo mental tem alguns problemas significativos. Perls atribui ao
nascimento dos dentes a inauguração da capacidade no bebê de quebrar e assimilar o
alimento, operacionalizando tal metabolismo. É curioso que Perls fosse médico neurologista,
39
portanto, conhecia minimamente (mesmo que à época) algo de química e de biologia. E essa
metáfora desconsidera que o bebê, mesmo dentro do ventre, já metaboliza, consome e excreta.
Há nela também a ideia de um ser passivo no útero materno, apenas receptor do alimento via
cordão umbilical. Esta é outra presunção errônea, mas, convenhamos, adequada à época.
Especialmente na segunda metade do século XX, os avanços nos estudos sobre o bebê
fizeram ruir a ideia de passividade que lhe era atribuída.
Outro elemento questionável é o papel do ambiente nessa formulação. A concepção de
que morder propicia o crescer não deixa claro o que garantiria essa capacidade do ponto de
vista emocional. A agressão é representada pelo nascimento do dente, dando início à
capacidade de morder. Com isso, o papel do ambiente nesse processo não é explicitado, o que
faz com que ele perca espaço na discussão das capacidades que vão sendo despertadas no
organismo. Fala-se sobre a metabolização desse ambiente, mas omite-se qual o seu papel no
sentido de propiciar ou impedir a energia agressiva. Tendo em vista todos esses pontos, é um
modelo questionável de descrever o crescimento, com falhas em sua sustentação teórica.
O livro Gestalt-terapia, de 1951, é uma obra escrita a seis mãos: Perls divide a autoria
com Ralph Hefferline e com Paul Goodman. Nela é possível observar uma escrita apresentada
de modo pouco sistematizado – talvez por comportar as proposições iniciais de uma nova
teoria. Anos depois, em um workshop em 1979, ao ser questionado por um participante sobre
a leitura desse livro, o próprio Perls disse que estava aprendendo outras maneiras de transmitir
sua mensagem numa linguagem que fosse mais simples. Explorar essa obra impôs como
desafio a esse trabalho a necessidade de uma mínima organização que buscasse atender a uma
lógica conceitual.
O primeiro capítulo do livro chama-se “A estrutura de crescimento”. Nele, os autores
tomam como ponto de partida o conceito de contato, como realidade primeira e mais simples,
como o funcionamento da fronteira entre o organismo e seu ambiente (Perls et al., 1997).
Afirmam que organismo e ambiente compõem um campo de interação do qual decorre toda
função humana. O que evidenciam com isso? A impossibilidade de pensar o indivíduo
isolado, em si mesmo, e a afirmação de que todo acontecimento está em função da interação
desse todo.
Em Perls et al. (1997), o contatar é descrito em seu caráter de resposta motora, que
envolve um duplo movimento de apetite e rejeição, de aproximação e afastamento. Para os
40
e deselegantes sinalizam uma falta de contato que denuncia algo no ambiente, no qual uma
necessidade vital não está sendo expressa.
As necessidades – de qualquer que seja a ordem – surgem como perturbações no
organismo que, pelo processo de homeostase, levam ao contato em busca de reequilibração. A
autorregulação organísmica diz de um processo natural, livre e espontâneo do organismo de
se reequilibrar frente a uma inquietação (Perls et al., 1997). Quando uma necessidade
desponta, como figura, o organismo entra num estado de perturbação que o moverá na direção
de retomar sua condição de repouso. Para tanto, o movimento do organismo se guiará pela
figura dominante, em busca de satisfação e do consequente retraimento.
Quando um bebê sente fome, ainda que não saiba cognitivamente nomear ou identificar
como fome, seu organismo sai do estado de repouso e fica excitado frente a uma demanda que
carece ser atendida. O excitamento crescente, sensitivo e interessado é contato e formação
figura-fundo, ao passo que aquilo que não é de interesse não é psicologicamente real (Perls et
al., 1997). A criança um pouco maior, por exemplo, que busca pela bola e já possui maturação
biológica suficiente para tal, poderá ensaiar os primeiros passos diante da vontade de buscar o
brinquedo que chutou para longe de si e que agora deseja, configurando assim uma figura
emergente para ela.
O movimento, o contato que amplia a fronteira, ocorre em função de algo em questão
(Perls, 1977). Isso reitera que “o interesse e o excitamento da formação figura-fundo são
testemunhos imediatos do campo organismo/ambiente” (Perls et al., 1997, p. 48). A excitação
é produzida quando o organismo demanda uma atividade, sobretudo, motora (Perls, 2002),
como recurso indispensável para a ação direcionada a algo. Quando essa atitude encontra uma
satisfação, o organismo se reequilibra e retorna a um estado de repouso. Caso contrário,
experimenta a sensação de algo inacabado, não retomando o repouso, podendo gerar
ansiedade e frustração.
O organismo que não cresceu, pelo contato com a satisfação e fruto da assimilação,
repete a atitude para o mesmo esforço, sinalizando um organismo que tenta, novamente,
encontrar uma solução (Perls et al., 1997). A atitude fixada, portanto, para esses autores, nada
mais seria do que uma tentativa do organismo de se resolver em uma situação inacabada, que
busca por uma solução satisfatória – movimento para o crescimento.
42
As tentativas repetidas podem virar hábitos, o que Perls (1979) descreve serem gestalten
integradas e dispositivos econômicos da natureza. O que ele explica é que, se inicialmente
uma tarefa é desempenhada de modo que demanda maior tempo e concentração, a repetição
pode torná-la automática, tornando-se um hábito: “hábitos bons são parte de um processo de
crescimento, a realização de uma aptidão em potencial” (p. 68). Do mesmo modo que um
bebê, ao ensaiar os primeiros passos, experiencia o cair, até que comece a andar e em seguida
correr: a repetição gerou um hábito que foi integrado nessa criança. Todo esse processo
significa crescimento.
Em suma, compreendemos que, na fronteira, ocorre o contato do eu com o não-eu, do
organismo com o ambiente. Desse contato, surge uma excitação no organismo que o retira do
estado de repouso: uma figura começa a se energizar e se destacar do fundo configurando
uma necessidade. Pelo processo de homeostase, visando reestabelecer seu equilíbrio, o
organismo visa ajustar-se criativamente na busca por uma satisfação. Quando sua necessidade
real é satisfeita, pode assimilar e crescer com a experiência. Nesse momento, sua energia cai e
retrai. Quando não satisfeita, a gestalt fica aberta, configurando uma situação inacabada.
Em 1977, na obra Gestalt-terapia Explicada, Perls afirma que o objetivo dessa
abordagem é amadurecer e crescer. E então, o que é amadurecer? Em suas palavras,
“amadurecer é transcender do apoio ambiental para o autoapoio” (Perls, 1977, p. 49). Há,
portanto, uma progressão do autoapoio que vai substituindo, cada vez mais, a ajuda de fora,
afastando-a (Perls, 1979). Isso significa que, à proporção que uma pessoa cresce, aumenta a
sua sustentação em si mesma e diminui, gradativamente, sua necessidade de amparo externo.
O apoio ambiental refere-se a todo apoio advindo de fontes externas. Isso permite
afirmar que o crescimento pode ser compreendido como uma transição contínua do
heterossuporte, quando o amparo provém do meio, para o autossuporte, quando esse lhe é
próprio. Tendo em vista disso, Perls reitera que o objetivo da terapia é "fazer com que o
paciente não dependa do outro” (Perls, 1977, p.50). Aqui cabe questionar se esse tem sido, de
fato, um norte no trabalho dos gestalt-terapeutas atuais. Trata-se de um convite a meditar
sobre essa proposição.
Ao refletir sobre dependência do outro, há de se tomar cuidado com os extremos, seja o
de uma depe‘dência absoluta ou de uma independência absoluta do outro e do meio. A
completa ausência de dependência incorre no risco de subjetivismo, que isola o organismo em
43
si mesmo, como numa autossuficiência sedutora, porém ilusória. Mas o que o autor parece
chamar atenção é para a conquista gradual de uma condição de amadurecimento que permita à
pessoa sustentar a si próprio sem que precise manipular o ambiente para que sejam atendidas
suas necessidades.
No ponto em que o apoio ambiental não é mais suficiente, e em que o autoapoio
autêntico ainda não foi obtido acontece o impasse – ponto crucial da terapia e do crescimento
(Perls, 1977). Ao encontrar-se nesse ponto, depara-se com a falta e essa torna-se uma grande
oportunidade de mobilizar energia e os próprios recursos para buscar uma saída. Esse
caminho envolve o risco do desconhecido, o novo, e o contrário dele é permanecer na segura
mesmice, na qual a pessoa em nada é demandada a se movimentar. O crescimento se dá,
justamente, fora do equilíbrio e na falta do apoio (Perls, 1977).
Isto posto, a imaturidade diz respeito a uma condição de resistência ao sofrimento que
leva à manipulação do ambiente como evitação da dor do crescimento (Perls, 1977). O
autoapoio tem a ver com a descoberta de que aquilo que se espera e se tenta obter do ambiente
pode, por vezes, ser encontrado em si mesmo. Para tanto, é necessário assumir a
responsabilidade pelo próprio processo, que não está dado e exige um movimento ativo de
responsabilização.
Perls reconhece que a própria pessoa tem responsabilidade pela progressão no seu
processo de crescimento. Para ele, autenticidade, maturidade, responsabilidade pelos próprios
atos e pela própria vida são uma única e mesma coisa (Perls, 1977). O conceito de
responsabilidade é um ponto central no pensamento de Perls e encontra-se bastante discutido
nesta obra. Ele o define como uma habilidade se responder, de sentir, de ser totalmente
responsável por si mesmo e por mais ninguém : “eu creio que esta é a característica básica da
pessoa madura" (Perls, 1977, p. 141).
O neurótico, na concepção de Perls, diz respeito à pessoa que necessita de apoio vindo
de fontes externas e que usa do seu potencial para manipular os outros em vez de crescer
sozinho (Perls, 1979). Ainda que em qualquer momento da vida exista alguma demanda de
suporte para além do eu, o que Perls parece sublinhar é que no neurótico há uma
predominância de buscar sustentar no outro e no mundo sua necessidade – e não em si
mesmo. Assim o faz “porque não pode sustentar as tensões e frustrações que acompanham o
44
crescimento” (Perls, 1979, p. 28). Há nele uma inabilidade para responsabilizar-se por si
mesmo, posto que isso lhe impõe frustração e sofrimento.
A frustração, para Perls (1977), é uma força propulsora para o crescimento à medida
que, sem ela, não existe necessidade nem razão para mobilizar os próprios recursos e para
descobrir as próprias necessidades. Para ele, os pais são aqueles que podem ou não permitir a
frustração de uma criança. Quando não é frustrada, ela aprende a manipular o próprio
ambiente (Perls, 1977). Essa colocação traz à luz a relevância do ambiente, aqui em destaque,
dos pais, de favorecer ou dificultar o processo de crescimento, o que põe em questão os
recursos disponíveis deles próprios, que se colocam a serviço do processo de amadurecimento
da criança. Sendo assim,
(…) cada vez que o mundo adulto impede a criança de crescer, cada vez que ela é
mimada por não ser frustrada o suficiente, a criança está presa. Assim, em vez de usar
seu potencial para crescer, ela agora usará seu potencial para controlar o mundo, os
adultos. Em vez de mobilizar seus próprios recursos, ela cria dependências. Ela investe
sua energia na manipulação do ambiente para obtenção de apoio. Ela controla os adultos
começando a manipulá-los, ao discriminar seus pontos fracos. (Perls, 1977, p. 55)
Portanto, para Perls (1977), somente pelo processo de crescimento é possível mobilizar
o potencial humano e isso incorre, necessariamente, em desprazer. Antes de mais nada, para
favorecer isso no cliente, é necessário que o próprio psicoterapeuta tolere o enfrentamento
dessa condição a ser mobilizada na relação terapêutica. É preciso que ele compreenda onde se
torna fóbico ao tentar evitar a dor (Perls, 1977), e que então medite sobre sua real
disponibilidade para esse tipo de conduta: isto é fazer Gestalt-terapia. Crescer é despertar o
potencial que existe, o próprio suporte, a possibilidade de equilibrar-se nas próprias pernas.
Para fazê-lo com o cliente, precisa o psicoterapeuta amparar a si mesmo. Isto posto, a questão
que se desdobra (e fica sem resposta) é se a frustração e o desprazer são possibilidades únicas
de crescimento.
Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata de lixo é uma obra biográfica publicada
em 1979 na qual Perls ilustra suas influências, pensamentos e experiências ao longo da vida
que o levaram, não sozinho, à construção do que denominou Gestalt-terapia. Um dado curioso
é que neste texto, por exemplo, a palavra desenvolvimento é citada uma única vez, quando
colocada ao lado dos termos crescimento e maturação, mas sem qualquer conceituação
específica. Isso aponta uma paridade entre tais termos verificada em toda sua obra.
Dentre as influências relatadas por Perls, está Kurt Goldstein e seu pensamento, visto
que fora seu assistente. Embora explicite sua atração pelo trabalho de Goldstein com os
soldados com lesão cerebral, relata que não compreendia o modo como o professor
compreendia a autorrealização. Ainda assim, uma influência da teoria organísmica fica
evidente na asserção de Perls (1979) de que o “organismo é um todo; (…) qualquer
modificação, em qualquer esfera, produz modificações em qualquer outro aspecto
correspondente” (p. 148).
Como um todo que é, para compreender o processo de crescimento, é preciso tomar
como ponto de partida a emersão de uma figura, que se apresenta como uma necessidade ao
organismo. Para Perls, uma grande contribuição dos gestaltistas9 era a diferenciação da
fundamental que o clínico observe essa dinâmica em seu cliente, no aqui-e-agora da relação
psicoterapêutica. No entanto, é necessário expandir essa asserção para a afirmação de que o
modo como uma pessoa vive a relação organismo/ambiente e necessidade-satisfação será
fundamental para alcançar também suas interrupções, impedimentos ou dificuldades no fluxo
de desenvolvimento.
Pode-se então propor que o organismo cresce e se desenvolve à medida que progride na
satisfação de sua necessidade por meio do ambiente; e que, quando satisfeita, é assimilada e
integrada ao eu. A sucessão deste processo gera crescimento e traduz uma perspectiva de
crescimento. Indo mais um pouco, pode-se dizer que, para que o organismo se desenvolva, é
preciso considerar os processos de percepção, hierarquização e satisfação de necessidade.
Uma quebra ou interrupção em uma dessas partes poderá dificultar o crescimento do todo.
A neurose, em Perls (1979), é compreendida como um sintoma de maturação
incompleta. Ele sugere, inclusive, que o termo neurose seja substituído por desordem do
crescimento. E diz mais: “eu encaro cada vez mais a ‘neurose' como um distúrbio do
desenvolvimento” (p. 49). Aqui Perls menciona desenvolvimento explicitando a neurose em
contraposição ao movimento de crescer, um impedimento a essa tendência natural.
Wilson Van Dusen, psicólogo existencialista de quem Perls era próximo, é citado por
ele em razão de uma de suas contribuições: a descoberta, à época, de que o paciente
esquizofrênico possui "buracos na personalidade" (Perls, 1979). O fato é que essa ideia de
buracos foi ampliada por Perls, levando-o à formulação de que a maioria dos neuróticos não
têm centro: “Wilson e eu alegamos que há muito mais buracos responsáveis pelo fato de o
paciente estar incompleto” (Perls, 1979, p.127). De acordo com Perls (1977), a ideia de centro
diz respeito às emoções e sentimentos. Para ele, todos têm furos e o gestalt-terapeuta deve
preencher os buracos da personalidade do cliente, tornando-a novamente inteira e completa.
O que seriam esses “buracos na personalidade”? Em Perls (1979; 1977), eles parecem
descrever um nível de adoecimento, uma condição contrária à tendência de completude, que
decorre da satisfação e assimilação. Sendo assim, pode-se pensar que esses buracos sinalizam
a inviabilidade da inteireza. Nessa direção, compreender ou, antes mesmo disso, reconhecer a
existência de tais buracos incorreria não somente numa tarefa ao gestalt-terapeuta, mas,
principalmente, na afirmação de que há buracos e falhas: sendo assim, poderiam eles ser
49
quem está fazendo o que a quem, e o retroflexo faz consigo o que gostaria de fazer aos
outros. (Perls, 2012, p. 54)
Seja engolindo o meio indiscriminadamente, seja usando-o para negar o que é seu, seja
não se diferenciando dele ou mesmo fazendo ao outro o que gostaria de receber, há sempre
uma distorção na relação eu/não-eu. Está instaurada, em cada um deles, uma dificuldade na
fronteira de contato, no contorno, o que leva a Perls a denominá-los de “distúrbios de
limites” (Perls, 2012). Isso indica que o processo de crescimento implica, inevitavelmente,
uma construção de limites na fronteira de contato, na relação do eu com o mundo.
A confusão de identificação é o que Perls (2012) define como neurose e qualquer um
desses mecanismos por ele descritos representa, à sua forma, uma desintegração da
personalidade. Tomando essa sua asserção, pode-se supor fortemente que a neurose configura
furos no curso de integração de uma pessoa. Desse modo, retomar o fluxo de crescimento tem
a ver com apurar seu sistema de identificação, que se encontra “desregulado” pelas falhas na
delimitação entre o si mesmo e o meio.
Algumas questões decorrem dessa elaboração. No processo de crescimento, como se
constroem os limites, as fronteiras? Por conseguinte, o que as distorce? Qual o papel do meio
nessa construção/desconstrução/reconstrução? E, por fim, qual o papel da psicoterapia perante
essa identificação desregulada do cliente? Dando um passo atrás, há algo que possa ser
ambicionado pelo psicoterapeuta no que diz respeito à neurose de seu cliente? Pode soar
óbvio, mas responder a essas questões pode não ser tão simples. Mas há aqui o princípio de
uma resposta:
Na terapia temos que reestabelecer a capacidade do neurótico de discriminar. Temos que
ajudá-lo a descobrir o que ele é e o que não é… temos de guiá-lo para a integração…
Compreendendo agora, como compreendemos, os mecanismos através dos quais o
neurótico se impede de ser ele mesmo, podemos começar a tentar remover os
obstáculos, um por um. Porque isso é o que deveria acontecer na terapia… (Perls, 2012,
p. 56)
Nos estudos sobre neuróticos, Perls (2012) estabelece dois aspectos que são de extrema
relevância ao tema dessa pesquisa. O primeiro deles diz respeito ao fato de que o cliente
busca a psicoterapia quando não possui suporte suficiente em si para lidar com suas
necessidades existenciais. O segundo aspecto, extremamente conectado ao primeiro, é sua
asserção de que o terapeuta deverá facilitar o desenvolvimento necessário ao seu cliente para
53
que ele possa vir a sustentar por si só aquilo que lhe é significativo, seus objetivos e
necessidades – sejam elas quais forem. A todo momento, Perls elucubra sobre o que deve ser
feito com o cliente num processo psicoterapêutico de orientação gestáltica em relação à
retomada de seu crescimento; no entanto, não desenvolve proposições de como fazê-lo.
Certamente, para isso, precisaria se sustentar num modelo descritivo de como se dá o
desenvolvimento como um todo, configurando, com isso, uma lacuna significativa em sua
teoria.
Uma vez mais, vemos Perls trazer à luz um objetivo da Abordagem Gestáltica, que seja
aspirar por uma condição de maturidade tal que o cliente possa gradativamente sustentar a si
mesmo. Essa é uma caminhada complexa, desafiadora, mas que deve ser tomada pelo gestalt-
terapeuta como um claro objetivo em sua atuação, em seu modo de olhar e de se colocar
perante o outro. É preciso, antes de tudo, ter fé, no sentido de acreditar que há nele um
potencial. Isso poderá nortear seu trabalho entre uma linha tênue que comporta o acolhimento
e a responsabilização.
E, então, o que fica desse denso mergulho? O que foi possível digerir e assimilar dessa
meticulosa investigação? A primeira coisa que se pode afirmar é que, a alimentação física,
seus processos e desdobramentos, são a perspectiva pela qual o casal Perls se aproxima do
que seria o processo de desenvolvimento à luz da Gestalt-terapia. Embora não esteja
anunciada como uma teoria do desenvolvimento, como encontramos em outras escolas de
psicologia, há na literatura perlsiana elementos conceituais que ajudam a pensar uma
compreensão desse processo nessa abordagem, porém, insuficientes e pouco articulados entre
si.
A metáfora do metabolismo mental não é suficiente como analogia ao crescimento;
poderia no máximo, ser considerado um primeiro esboço, tímido e, aos olhos de hoje, por
vezes equivocado. Considerando Ego, fome e agressão um pré-texto, o modelo em questão
deve ser tomado como ponto de partida, e não como chegada, nessa abordagem. Isso significa
reconhecer nessa obra sua condição de diferenciação da Psicanálise, que denuncia seu caráter
incompleto, dotado de contradições - assim como reconhece o próprio Perls (2002). Pode-se,
portanto, considerar a proposição do metabolismo, um passo inicial no percurso de
amadurecimento teórico da própria Gestalt-terapia.
54
Certamente não havia um interesse da parte de Perls em propor de modo mais articulado
uma compreensão do processo de crescimento, especialmente por seu viés mais prático que
teórico, ou mesmo por sua epistemologia. Além disso, vinha do questionamento e
rompimento com a Psicanálise, onde havia uma teoria estruturada por Freud, à qual fez
incessantes críticas. O que, portanto, se desdobrou como uma necessidade a muitos gestalt-
terapeutas – inclusive até os dias atuais – não era um propósito para Perls. Ele discorre sobre
uma série de conceitos e processos à revelia, que podem germinar uma leitura do
desenvolvimento quando dispostos de modo coerente, organizado e preenchendo as lacunas
existentes. E, de fato, essa forma não representa Perls.
Não era uma característica de Perls a sistematização de seus textos, de suas ideias. Ao
escrever, ele pensava alto, dava voz ao seu pensamento. Isso não é, em absoluto, uma crítica à
sua teoria, mas um reconhecimento de seu modo de apresentá-la ao mundo – tão original
como ele mesmo se propunha ser. Não se pode negar, no entanto, a progressão em sua
argumentação que, com o passar do tempo, mostrou-se gradativamente mais clara e melhor
apresentada – Perls reconhece e concorda com isso em um de seus seminários. Se
inicialmente a busca por essa compreensão era acompanhada por uma sensação de vazio e
ausência, quase de orfandade, o estudo de suas obras revelou que muitas sementes estão
lançadas, mas, neste terreno do desenvolvimento, sem articulação e com lacunas importantes
a serem trabalhadas. Em consequência, isso faz com que não esteja explicitado nas obras
basilares dessa abordagem o que seria o caminho psicoterapêutico para o crescimento.
Os resultados encontrados também permitem afirmar que Perls usa de modo análogo os
termos crescimento, maturação e desenvolvimento. Verificou-se, dentro eles, uma predileção
pelas palavras crescer e crescimento. Todos eles se desdobram num processo de progressão ao
longo do vida, marcado por novas capacidades que se traduzem, especialmente, na
possibilidade de maior autonomia e responsabilidade. As dificuldades e impedimentos nesse
contínuum são as chamadas neuroses. Com isso, podemos pensar num processo de saúde
quando “tudo vai bem” e num processo de adoecimento quando há falhas ou interrupções que
dificultam o ser humano a prosseguir em direção à sua integração. A seguir serão apresentadas
algumas propostas de pesquisadores e estudiosos do tema que ou contemplam uma leitura
própria do desenvolvimento nessa abordagem, ou discutem sobre o tema. Agora, com a
palavra, outras vozes da Gestalt-terapia.
55
Por outro lado, reconhece que, possivelmente, a maior contribuição de Perls para a
teoria do desenvolvimento – talvez a única – consista no desenvolvimento dos dentes da
criança (Miller, 2002). Confirmando e ampliando essa concepção, o autor sugere pensar esse
processo como um caminho, uma passagem do nascimento até a morte, que se configura pela
sequência: confluência, introjeção, projeção e retroflexão. Com isso, afirma haver uma
sucessão de funcionamentos nesse processo.
A grande contribuição da proposta de Miller (2002) é a de que o delineamento de uma
sequência do desenvolvimento, que inclui a confluência, introjeção, projeção e retroflexão,
não significa que esses funcionamentos se limitem a um único momento do crescimento. Ao
contrário disso, eles seguem acontecendo ao longo de toda a vida. O que ocorre é que eles se
desenham como uma “forma de desenvolvimento dominante durante um período” (Miller,
2002, p. 23) e, com isso, caracterizam a predominância de um momento nesse fluxo contínuo
– ver figura 2.
!
Fonte: Miller (2002).
de sua energia agressiva disponível e do recurso físico do dente. Isso seria um raciocínio
linear e causal: uma nova habilidade levando necessariamente ao seu exercício e, com isso,
concluindo uma etapa do desenvolvimento com sucesso. Ou, dizendo de outro modo: o
nascimento dos dentes produzindo o efeito de destruir o que é recebido. Não necessariamente.
Há de se considerar como exemplo famílias que não permitem a diferenciação entre seus
membros, e isso pode ser um desafio, mesmo quando já existe a capacidade de diferenciar-se.
O que está sendo posto é o fato de que o desenvolvimento não se faz unicamente pela
disponibilidade cada vez mais complexa de habilidades, mas pelo resultado único da interação
desses recursos com o meio. É, em último nível, um movimento na fronteira de contato,
decorrente do ajustamento possível da função organismo-meio.
A mudança e os desapontamentos exercem uma propulsão fundamental para o
crescimento (Miller, 2002). A vida, marcada por uma sucessão de desapontamentos, guarda
neles a oportunidade do ser humano se recriar e buscar novas configurações. Isso porque o
contato com o novo favorece a mobilização do potencial humano ao exigir que novos
ajustamentos aconteçam na fronteira de contato organismo/ambiente. Pode-se pensar,
portanto, uma correlação entre o que Perls denomina frustração e o que Miller nomeia como
desapontamento. Em ambos os casos, a pessoa é forçosamente desviada de suas expectativas.
Em contraposição ao desapontamento, está a criatividade que, para Miller (2002), é o
motor do desenvolvimento humano. É a criatividade que move o self em direção ao mundo, é
o pontapé da descoberta, da abertura ao contato com o novo. Ela abre a porta para a novidade
da experiência, diferente do já assimilado, do já integrado ao organismo. Miller (2002) afirma
que ela é inata e que o aprendido é não ser curioso:
Eu acho que a curiosidade é aquilo que nos permite fazer a ligação entre o
desenvolvimento infantil e o adulto, devido ao fato de que continuamos nos
desenvolvendo ao longo de toda nossa vida, ou por tanto quanto conseguirmos manter a
capacidade de ser curiosos. (Miller, 2002, p.29)
aquisições geram, por conseguinte, códigos experienciais que vão sendo inseridas ao modo de
ser-com no aqui-e-agora. Essa progressão de conquistas experienciadas possibilita que esse
fundo se organize, gradativamente, num nível de maior complexidade – disponível para o
organismo.
Do mesmo modo que a psicopatologia contemporânea compreende o comportamento
num pêndulo entre a normalidade e gravidade, a experiência de contatar é tomada num
continuum que progride da espontaneidade à excitação bloqueada (Spagnuolo-Lobb, 2012).
Em se tratando dos domínios como capacidades de contato, a autora discorre sobre sua
proposta de desenvolvimento valendo-se dos domínios de ser confluente, da introjeção, da
projeção, da retroflexão e do egotismo.
O mapa gestáltico do desenvolvimento polifônico de domínios, de Spagnuolo-Lobb
(2012), propõe uma intersecção entre o desenvolvimento e os domínios, na qual a experiência
se dá na junção da situação aqui-e-agora. Nele estão contidos os modos de contato e as
capacidades deles decorrentes (ver figura 3). Este mapa propõe a ser um modelo que oferece
elementos que norteiam o terapeuta sobre os modos de contato do cliente, possibilitando
observá-los na experiência presente do campo fenomenológico terapeuta-cliente.
11Figura elaborada com base no artigo de Spagnuolo-Lobb (2012). Não retrata a figura proposta pela
autora na íntegra (no artigo, figura 2), visto que, aqui, optou-se por acrescentar partes do texto em sua
composição que ampliassem a compreensão do leitor.
64
Figura 5: Suporte para as experiências constitutivas no ciclo de contato da criança - Poppa (2018)
A grande novidade parece estar na ideia de domínios (Spagnuolo-Lobb, 2012; 2018) por
ampliar as proposição do metabolismo mental de Perls, quando contraria a concepção de
sequência e traz os modos de contato como propulsores de habilidades cada vez mais
complexas. As habilidades conquistadas em cada domínio podem ser desenvolvidas ao longo
de toda a vida. As já adquiridas retornam ao fundo e ficam disponíveis como recursos do
organismo.
Podemos, portanto, pensar no processo de desenvolvimento à luz da Gestalt-terapia com
base na metáfora de uma colcha de retalhos. Os retalhos são as experiências vividas ao longo
de toda a vida e que vão sendo costuradas na colcha, isto é, as novas figuras e experiências de
contato que, quando satisfatórias, são como pedaços de tecido que são incorporados à trama já
existente. Quando pensamos nessa imagem, é importante considerar que a colcha é diferente
de retalhos simplesmente somados: ela tem uma configuração própria como um todo e se
atualiza na totalidade sempre que um novo retalho é adicionado. Podemos pensar o mesmo do
humano: a cada nova experiência vivida, a história de vida como um todo se atualiza com
base no processo de assimilação, integração do novo e, consequentemente, crescimento.
Essa concepção é fundamental para pensarmos o desenvolvimento sob a ótica de um
processo ininterrupto ao longo de toda a vida. Isso é diferente de conceber o desenvolvimento
como um processo de adultecer da criança em direção ao adulto, visto que considera
igualmente relevante os processos que se iniciam com o bebê dentro do útero materno e que
se finalizam somente com a morte da pessoa. Desde a década de 80, as próprias teorias da
psicologia do desenvolvimento vêm sofrendo uma mudança significativa ao transitar do
enfoque da criança se tornar adulto para uma perspectiva de “psicologia do ciclo de vida” na
qual considera que as mudanças acontecem durante toda a vida (Spagnuolo-Lobb, 2012).
Ao enfatizar um modelo relacional de desenvolvimento, tendo a interação eu-outro
como primordial para a dimensão humana, é oportuno pensarmos o início de todo esse
processo, uma vez que ele deixa marcas em todo o processo subsequente. Ainda que não
determine o curso da vida, o começo da vida é constitutivo, inclusive, do ponto de vista
cerebral: "quando nasce um bebê, antes mesmo que a mãe o abrace, o olhe ou o toque, já se
iniciou neste novo indivíduo um célere processo de desenvolvimento. Principalmente em seu
cérebro” (Cunha, 2018, p.1).
70
trocas com a mãe que já estão acontecendo desde então. Para ele, o nascimento é vivido como
uma grandiosa mudança que marca um movimento ativo em direção à sobrevivência.
Como homem se iniciando,
Recebe sustento – sim, todo sustento
Dentro do útero da mãe
(…)
Nascimento doloroso, tremenda mudança;
Acabou-se o abrigo, calor e oxigênio
Agora é preciso respirar
Pois a vida é respiração.
E surge a primeira necessidade
De se autossustentar
Você quer viver, então respire
(…)
Pois haverá morte se você não se arriscar
Começando a respirar sozinho.
(Perls, 1979, p. 27)
faça isso por si só (Ajzenberg et al., 1995; Poppa, 2018). A criança pequena, em especial o
bebê, vive um estado de descoberta em relação ao que se passa consigo mesmo. A princípio
faz contato com sensações, mas não compreende o que elas significam, pois as experiencia
como perturbações em seu organismo. Não sendo capaz de identificá-las, demanda um
ambiente que seja capaz de decodificar o que se passa e, tão importante quanto, que dê conta
de atender sua necessidade manifesta.
Quando a criança, que não tem noção da totalidade da mãe, tem uma necessidade e é
satisfeita pela mãe ou cuidador, a criança completa o ciclo e associa a figura da mãe boa à
sensação de bem-estar e, então, sua figura retorna ao fundo (Fernandes, 1995). Diferente
disso, esclarece a autora, a criança se agita e pode sentir ansiedade pela não satisfação que
impede o repouso do organismo.
O bebê começa a crescer e precisa ainda de cuidado, aos poucos desenvolve novas
capacidades que o levam a mobilizar cada vez mais o seu potencial e recursos internos (Perls,
1977). Concordando com Perls, Miller (2002) afirma que à medida que este bebê vai
descobrindo sua separação do ambiente, suas capacidades vão tomando forma e lhe
auxiliando a atravessar essa separação: "quando a fusão da confluência não pode mais operar
então precisamos ser criativos” (Miller, 2002, p.8). Valendo-se dos recursos disponíveis, o
afastamento da separação começa a tornar-se tolerável.
As experiências de frustração são necessárias, em diferentes doses, ao longo de toda a
vida. Há, no entanto, famílias ou meios em que a frustração da criança também é vivida como
uma frustração pelo responsável, que trabalha contra esse acontecimento (Perls, 1977). Isso
faz considerar que o modo como os pais se colocam depende sobretudo da sua qualidade de
contato: pais precisam de um bom contato, na identificação e satisfação (Gaspar & Abreu,
2018).
Quando é reconhecido o lugar essencial dos pais ou cuidadores e da família, sobretudo
nos primeiros anos de vida, fica evidente que, valendo-se especialmente da introjeção, são
eles quem apresentam o mundo ao bebê e à criança. O mundo que será por eles engolido –
por inteiro. Em contrapartida à importância dessa influência, pouco se discute em relação às
condições nas quais a família se encontra com a chegada do bebê.
Possivelmente o passo seguinte a uma compreensão de desenvolvimento em Gestalt-
terapia cada vez mais difundida seja o início da discussão sobre pais e cuidadores. É urgente
74
voltar-se para esse ambiente, sobretudo à sua reconfiguração perante o nascimento. Trata-se
de um nascimento duplo: do bebê e daqueles que o cuidarão. Portanto, o campo é povoado de
recém-nascidos de idades e condições maturacionais diferentes.
É fundamental lembrar que a mãe, que é quem recebe o bebê e é a intermediária dele
com o mundo, também está passando por transformações e desorganizações físicas,
hormonais e afetivas (Zinker, 1995). Se nos afastarmos um pouco mais, de modo a ampliar o
alcance da percepção, veremos outras pessoas significativas no entorno dessa mulher também
vivendo alterações importantes com a chegada do novo integrante. Isso reafirma a premissa
de que, quando uma parte do todo muda, todo o campo se reconfigura.
O nascimento é um momento de intensas e, possivelmente, de uma das mais profundas
reconfigurações que acontecem ao longo da vida. No entanto, ainda hoje, pouco é enunciado
sobre tais transformações e, ainda menos, sobre os cuidados que são demandados nessa fase.
Zinker (1995) afirma que temos dois seres humanos em transformação e que, na verdade, essa
transformação incide sobre o ambiente como um todo, que vivencia trocas e se ajusta a cada
novidade que surge.
O suporte de quem suporta, ou o autossuporte do heterossuporte: esse chão precisa ser
construído na Gestalt-terapia. Mas de fato apoiando-se numa compreensão que lhe dê sentido
– e ele se sustenta na compreensão do desenvolvimento. Se é de fato tão importante que os
pais ofereçam condições de suporte, a questão que se atravessa é: eles as têm? Qual o
processo eles mesmos atravessam nesse momento? Precisariam eles de alguma espécie de
cuidado para que ofertem isso a seus filhos? Podemos pensar em melhores condições de
crescimento tendo em vista os cuidadores (e não somente os que demandam cuidados)? Este
caminho precisa ser asfaltado, mas, a exemplo de como o desenvolvimento se dá, a integração
se faz do básico ao mais complexo.
É impossível questionar sobre a relevância do outro significante na vida do bebê. E,
nesse sentido, uma diálogo com Winnicott tem muito a contribuir. Portanto, para contemplar
os objetivos propostos neste trabalho, serão descritos a seguir os pontos fundamentais da obra
e pensamento de Winnicott. Cabe ressaltar que, diante de uma teoria extensa e profunda, fora
necessário fazer um recorte dando destaque aos aspectos que se interrelacionam com a
pergunta norteadora da tese, isto é, o aspecto da relação organismo/ambiente para a
compreensão do processo de desenvolvimento.
75
Após uma breve contextualização de seu pensamento, será explorada com mais
especificidade a teoria do desenvolvimento emocional e o jogo de espátulas, elementos
chaves para o diálogo aqui proposto. A questão que norteia esse intercâmbio de saberes deve
ser sempre o questionamento sobre de que forma outro conhecimento contribui para pensar
um dado fenômeno sem que haja uma transposição irrefletida ou indiscriminada, de modo que
essa abordagem se atualize e cresça. Deste modo, ao debruçar sobre os estudos de Winnicott e
sua extensa obra sobre os primeiros anos de vida do bebê, tem-se por objetivo realizar uma
troca que possa fomentar novas perspectivas e reflexões ainda inexploradas.
A despeito dessas trocas, Miller (2002) reitera que a Gestalt-terapia pode aprender
com a Psicanálise, tomando emprestado alguns conceitos, desde que possa transformá-los em
algo que seja de sua própria epistemologia. Ginger & Ginger (1995) consideram Winnicott
um dos psicanalistas contemporâneos cujas teses mais se aproximam das teses da Gestalt.
Delacroix (1984) citada por Ginger & Ginger (1995) observa algumas semelhanças
importantes presentes no pensamento winnicottiano: sua influência da Fenomenologia; uma
clínica baseada nas relações entre a criança pequena e o seu meio; o espaço que concede às
necessidades; o valor significativo que dá à experiência e ao processo; o privilégio ao jogo e à
criatividade; entre outros. Essa proximidade, ainda que fundamentadas em alicerces díspares,
dá sentido às interlocuções já existentes encontradas, por exemplo, em Karpen (2018) e Poppa
(2013; 2016; 2018).
76
Até a década de 70, o bebê era concebido como um ser passivo, depositário das falhas
maternas, dotado das capacidades de alimentar e evacuar. Ao final dessa década, novas
pesquisas, fundamentadas em observações microscópicas da relação mãe-bebê, evidenciaram
– e revolucionaram o conhecimento – ao atribuírem ao bebê uma dimensão ativa e
intersubjetiva, alicerçada na existência de uma disponibilidade inata para a relação.
Historicamente, após a segunda guerra mundial, e em função do crescente número de
bebês e crianças acometidas pelo abandono decorrente das mortes de seus responsáveis,
iniciou-se a observação das reações infantis frente a tais perdas (Guerra, 2014). René A. Spitz,
psicanalista austríaco, fora o primeiro a identificar nas condições institucionais do pós-guerra
a qualidade dos cuidados e do investimento na relação como fatores fundamentais para a
sobrevivência e saúde psíquica do bebê (Crespin, 2016). Os estudos e observações realizadas
neste contexto, enfatiza Guerra (2014), levaram a uma mudança na mentalidade e concepção
acerca do bebê, agora concebido como uma pessoa em construção, ativa e, principalmente,
dotada de potencialidade interativa.
Pensar o bebê como coparticipante de seu processo de subjetivação é algo relativamente
novo, pois, desde o início da Psicanálise, fora tomado em sua impotência, como portador de
uma dependência absoluta do outro (Guerra, 2014). Freud enfatizava que o bebê só poderia
constituir-se graças ao encontro com o outro, realçando, assim, necessidades além do aspecto
biológico. O realce freudiano sobre a existência de uma instância psíquica atribuía, no
entanto, pouca participação do bebê em seu processo de constituição (Saboia, 2006).
Alvarez e Golse (2009) enunciarão o bebê como portador de uma aparelho fisiológico e
psicológico que lhe permitirá, desde a vida fetal, estabelecer uma rede de comunicação com o
seu meio ambiente. Aversa à metáfora de “aparelho”, a literatura da Gestalt-terapia enuncia o
bebê como um ser de contato desde a vida intrauterina, quando “o contato existe enquanto
estimulação sensorial e resposta motora ao ambiente” (Ajzenberg et al., 1995, p. 91), sem um
aparato cognitivo desenvolvido. Por assim ser, segundo as autoras, não só o bebê, como
também o feto, disporiam de um processo peculiar de formação e destruição de figuras, em
77
À medida que vai crescendo, a criança pequena amplia sua condição de autonomia,
reduzindo, assim, a condição de dependência. O aspecto da condição inerente de dependência
progressiva é o ponto de partida plausível para uma "conversa" com a teoria do
desenvolvimento emocional do ser, de D. Winnicott. Segundo Fulgencio (2018), Winnicott se
opõe à ideia de que existe uma predisposição inata à relação (Teoria do Attachmant- Bowlby)
por uma questão biológica, pois acredita que o apego é carregado de significações ligadas ao
outro como possibilidade de ser e continuar sendo. Para Winnicott, “todos os processos de
uma criatura viva constituem um vir-a-ser, uma espécie de plano para a
existência” (Winnicott, 1983, p. 82).
Dentre as razões para se conhecer sobre o desenvolvimento emocional, para Winnicott
(1993), está a importância de que profissionais que trabalham com o início da vida saibam,
desde o primeiro momento, em que seu trabalho está interferindo e de que forma, sobretudo
de posse de informações decorrentes do avanço do conhecimento nos últimos anos. Além
disso, reconhecendo a dificuldade de muitas mães em fornecerem condições suficientemente
boas, o profissional deverá ter conhecimento específico que o possibilite reconhecer o que
está acontecendo, não só com a mãe, mas também com seu bebê – o que aumenta a chance de
diagnósticos e intervenções precoces.
Pensando em termos de saúde e doença, é fundamental debruçar-se, não somente sobre
o processo como um todo, mas especialmente sobre o primeiro ano de vida que, para
78
Não se pode negar o que é herdado, como, por exemplo, as tendências patológicas, mas
toda a evolução do processo de maturação está interligada à provisão do ambiente (Winnicott,
1983). E esse é um ponto central da discussão, o lugar do ambiente no processo de
desenvolvimento de uma pessoa: “podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o
progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na
melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial” (Winnicott, 1983, p. 81).
O que Winnicott afirma, portanto, é a premissa de um ambiente que possibilite o
crescimento da criança, posto que o contrário disso seria interrompê-lo ou bloqueá-lo. E esse
é o ponto crucial de interesse nessa tese: discutir a relação organismo/ambiente. Obviamente,
a teoria de Winnicott é mais extensa e mais profunda do que tal recorte adotado nesse estudo:
a compreensão desenvolvida pelo autor acerca da relevância que ele atribui ao ambiente no
processo de maturação é a interlocução pretendida nessa pesquisa.
A maturação é um processo impulsionado pelo sentido da integração de algo cada vez
mais complexo à medida que o lactente cresce (Winnicott, 1993). Não é viável pensar na
maturação de uma pessoa sem pensar no que isso repercute em termos de realização e das
condições mínimas necessárias para tal. Tomando a dependência como um fluxo contínuo, em
maior ou menor grau, a progressão para uma maior complexidade – como, por exemplo, a
percepção de si mesmo e do outro – são decorrentes de integrações cada vez mais complexas.
A integração não é algo automático, vai se desenvolvendo pouco a pouco, e manifesta-
se gradualmente, partindo de um estágio primário não-integrado e seguindo para a
constituição de um self (Winnicott, 1993) – self na conceituação psicanalítica representa a
totalidade da própria pessoa. Com o crescimento, impulsionado por condições ambientais que
o favoreçam, o nível de dependência gradativamente diminui e, à mesma proporção, as
integrações tornam-se possíveis.
Como numa jornada que é preciso ser percorrida de um ponto a outro, segundo a
perspectiva winnicottiana, o processo de desenvolvimento compreende três estágios: 1. da
dependência absoluta, que compreende do nascimento até os quatro primeiros meses; 2. da
dependência relativa, que abarca da última fase até aproximadamente um ano e meio e; 3.
período rumo à independência, que segue da fase anterior até a morte (Winnicott, 1983). Em
80
cada um deles está descrito um nível de dependência e modo de percepção, tomando o bebê
como ponto de partida e a morte como ponto final dessa caminhada.
Na fase de dependência absoluta, há a completa dependência do bebê em relação à sua
mãe, seguindo a mesma dinâmica de quando ainda estava no útero e sem qualquer vestígio de
uma consciência dessa dependência (Winnicott, 1983; 1993). Entretanto, diferente do período
da gestação, o bebê não é mais atendido automaticamente e depende de algo além dele que
seja capaz de atendê-lo – o que demanda uma série de ações do ambiente. Exige, então, de
alguém uma interpretação/compreensão das necessidades da criança, como uma necessidade
existencial. Nessa fase, o bebê não existe sozinho (ele morre se assim estiver) e é quando se
começa a dar sentido ao corpo-psique por meio de registros sensoriais (Fulgencio, 2018).
Nesta etapa de absoluta dependência, o bebê não tem a capacidade afetiva e cognitiva
de desejar algo, mas possui necessidades urgentes que traduzem o querer algo em algum
lugar. Ao sentir fome, por exemplo, Fulgencio (2018) elucida que, do ponto de vista do bebê,
o seio aparece como se derivasse da sua necessidade, como um processo natural – ilusão/
experiência de onipotência (a necessidade é criada e encontra a satisfação). Segundo o autor,
neste ponto, não há lugar para uma realidade não-self, isto é, não é capaz de perceber algo
como diferente dele.
Quando nesse estado, o ambiente representado especialmente pela figura da mãe precisa
sintonizar-se ao lactente como numa frequência em que se conectam e, então, a necessidade
do bebê pode ser percebida e atendida por ela. O modo como Winnicott percebe e descreve a
mãe é importante para pensar a nova realidade que se instaura com o nascimento de um bebê.
Para o autor, a mãe também experimenta a condição de estar dependente e vulnerável e, assim
como o bebê, precisa de cuidados num momento em que ela sozinha é o ambiente. Ela
consegue se conectar ao bebê de tal modo, por já ter sido um, vive as lembranças de já ter
sido cuidada e isso pode ajudá-la ou atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe
(Winnicott, 2012).
No que tange à própria mãe, Winnicott descreverá o que denomina como “preocupação
materna primária”, isto é, um estado de extrema identificação, devoção, preocupação e
cuidado dessa com seu neném, no qual a mãe desvia o interesse do seu próprio self para o
bebê (Winnicott, 1983; 1993). Essa condição se inicia ao final da gravidez e se estende até as
primeiras semanas de vida. É justamente essa condição que permite à mãe a capacidade de
81
captar as nuances de seu filho, colocando essa mãe numa condição de vulnerabilidade e de
recíproca dependência em relação a ele (Winnicott, 1983; Fulgencio, 2016).
Em complemento à noção freudiana, Winnicott corrobora com a concepção de que o
bebê e sua mãe vivem um processo de constituição mútua: o bebê constitui sua mãe do
mesmo modo em que é por ela constituído, como um o par que realiza uma dança, no qual a
mãe segue o ritmo apresentado pelo bebê (Safra, 1999). Sendo assim, não há um sem o outro,
o que há é a relação, isto é, uma “dupla dependência” (Winnicott, 1993). Essa fusão inerente,
caracterizada pela dependência, demanda que o ambiente seja suportivo às necessidades do
bebê que, quando atendidas, configuram o que Winnicott denominou de “ambiente
suficientemente bom”, o que reitera a primordialidade do cuidado por ele ofertado.
Para engajar na tarefa de cuidar, a mãe necessita de apoio – seja do pai da criança, de
sua mãe, da família ou social – visto que é ela quem apresenta continuamente o mundo à
criança (Winnicott, 1983). Haveria, portanto, tanto o ônus da mãe de apresentar o mundo ao
bebê, quanto daqueles que a auxiliam, de proteger esse processo (Phillipis, 2006). Nesse
sentido, garantir a melhor devoção do mãe para com seu bebê implica dar a ela as condições e
cuidados necessários para que ela possa cuidar. Uma vez mais, o ambiente se faz presente
como suporte.
Winnicott enfatiza sobremaneira o potencial da mãe12: descreve uma experiência na
qual ela sabe muito bem das necessidades de seu bebê e que é capaz de segurá-lo; mas isso
exige um alto grau de adaptação (Winnicott, 1983; 2012). Ele diferencia que nos primórdios
da psicanálise o termo adaptação dizia respeito a satisfazer as necessidades instintivas da
criança, mas que, diferente disso, está em jogo a capacidade de satisfazer, para além de
tensões instintivas, as necessidades de desenvolvimento do ego (Winnicott, 1983).
O que parece ser explicitado por Winnicott é a proposição de que essa mãe se adapta
não somente às necessidades instintivas, mas às necessidades desse bebê como um todo.
Como no exemplo por ele citado, está a mãe que não é boa em dar de mamar, mas que
rapidamente é capaz de suprir com a mamadeira e fórmula (Winnicott, 1983). Tomando tal
exemplo, pode-se conceber uma mãe adaptada a seu bebê a ponto de captar sua fome, sua
12 Será preservada a terminologia original da obra de Winnicott, na qual o autor se refere à palavra e
pessoa mãe (Winnicott, 1983; 1993; 2012). Ainda que nos últimos anos essa noção tenha sido
expandida para qualquer pessoa capaz de exercer essa função – função materna – optou-se por manter
a originalidade da perspectiva winnicottiana. Também se refere à mãe por lactante, e ao bebê por
lactente.
82
necessidade, e mesmo não podendo satisfazê-la de um modo, busca outra alternativa que lhe
proveja satisfação. Portanto, adaptação desdobra da possiblidade de captar esse bebê em suas
necessidades de toda ordem.
A mãe é capaz de proteger o vir-a-ser do bebê, seu plano existencial. Não se trata de
perfeição – “perfeição pertence a máquinas” (Winnicott, 1983, p. 83) – pois isso seria
incoerente com qualquer construção de humanidade. Em sua perspectiva, não há a
possibilidade de não falhar nunca, e a falha ocupa um lugar importante no próprio
desenvolvimento do lactente. No entanto, o autor faz referência às falhas de adaptação
recorrentes, que naturalmente desencadeiam reações no bebê; sua preocupação é quando as
irritações consequentes a elas são o padrão daquela criança e colocam em risco sua tendência
de se tornar uma unidade integrada, o seu vir-a-ser e as bases para sua saúde mental futura
(Winnicott, 1983).
O conhecimento materno não se trata de um conhecimento formal, mas é fruto de uma
atitude sensível adquirido na medida em que a gravidez avança, e vai se perdendo à proporção
que a criança cresce, se desenvolve e afasta (Winnicott, 1993). A "mãe suficientemente boa" é
aquela que pode devotar-se ao seu bebê, se conectando a ele, captando suas necessidades e
atendendo-as num prazo suportável para ele: somente na presença dessa "mãe suficientemente
boa" a criança pode iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real (Winnicott, 1993).
Para o autor, a mãe é a cuidadora com maior potencial para essa conexão.
Na fase da dependência relativa, Winnicott (1983) dirá que o lactente começa a se tornar
consciente de sua dependência em relação à mãe ao senti-la como necessária – noção essa que
faz referência ao início de um processo de percepção e diferenciação. O bebê começa a ter a
experiência de que nem tudo é subjetivo, isto é, de que nem tudo advém dele (Fulgencio,
2018), como no momento anterior. O objeto deixa de ser algo criado e encontrado pela
criança, existindo mesmo quando não há necessidade de sua parte.
Quando o lactente se torna uma unidade, uma pessoa completa, com uma delimitação
entre eu e não-eu, seu crescimento toma forma de um intercâmbio contínuo entre a realidade
interna e externa, uma enriquecendo a outra (Winnicott, 1983). Havendo realidade externa e
objetos externos, configura-se uma fase de uso do objeto, na qual existe um modo de relação
“sou-diferente-de”: a realidade externa surge ao mesmo tempo em que surge o eu (Fulgencio,
2016). Em torno dos dois anos, em decorrência de todo esse processo, a criança começa a ter
83
condições de lidar com a perda, uma vez que desenvolve a compreensão da mãe como tendo
uma existência pessoal e separada – isso faz com que a criança permita gradativamente sua
falta de controle frente os acontecimentos (Winnicott, 1983).
Ainda neste estágio, vive-se a adaptação à falha na adaptação (Winnicott, 1983). O que
Winnicott quer dizer com isso é que aquela mãe, anteriormente altamente adaptada a seu
bebê, precisa prover uma desadaptação gradativa (Winnicott, 1983), uma vez que seu
processo de desenvolvimento lhe permite agora que ele possa suportar a espera por não ser
prontamente atendido como antes. O que o autor chama de uma desadaptação gradativa pode
ser compreendido como um processo de afastamento da mãe no que diz respeito à sua
devoção ao seu bebê. Deste modo, o mundo começa a ocupar mais espaço.
O terceiro período enunciado por Winnicott diz respeito à fase “rumo à independência”,
caracterizada pela introjeção da noção de cuidado, na qual a criança se sente gradativamente
capaz de se defrontar com o mundo (Winnicott, 1983; Fulgencio, 2016). Nesse momento
ganha espaço o processo de socialização e vemos a criança de fato se colocando no mundo.
Esse processo perdurará até o final da vida, em seus diferentes momentos: da idade pré-
escolar à adolescência, passando pela vida adulta até a velhice.
O ponto central que merece destaque é a asserção de que “o processo maturativo
depende para a sua evolução da provisão do ambiente” (Winnicott, 1983, p.81). Winnicott, ao
longo de sua experiência com bebês, crianças, suas mães e famílias, estava atento ao que o
ambiente poderia fornecer como condição para a jornada de maturação e desenvolvimento do
ser.
A ênfase na importância do outro merece especial destaque em na obra winnicottiana
por realizar o próprio modo de ser humano: ser-com-o-outro-no-mundo (Fulgencio, 2016). A
noção de um potencial herdado para a relação, considera a existência de um apetite não só
fisiológico, mas um “apetite pelo outro” (Winnicott, 1988, citado por Saboia, 2006). Tal
aspecto ratifica a importância dos cuidados ambientais, das relações primárias que se
desenvolvem, no estabelecimento da saúde emocional dos indivíduos (Fulgencio, 2016).
Assim discorre Winnicott (2015):
Para que os bebês se convertam, finalmente, em adultos saudáveis, em indivíduos
independentes, mas socialmente preocupados, dependem totalmente de lhes seja dado
um bom princípio, o qual está assegurado na natureza, pela existência de um bom
vínculo entre a mãe e seu bebê: amor é o nome desse vínculo. (p. 17)
84
Em seu longo período atendendo bebês acompanhados de suas mães e/ou cuidadores,
Winnicott pôde observá-los em sua prática clínica como pediatra. Para a discussão desta
seção, será dada especial ênfase ao texto winnicottiano que retrata o jogo da espátula. Nele, é
descrita uma situação que se repetia nas consultas Winnicott: ele dispunha de um objeto
brilhante (uma espátula) sobre sua mesa no consultório ao iniciar a consulta com as mães e
seus bebês. Estava especialmente interessado em observar a sequência de eventos que
aconteciam quando lactantes, de 5 a 13 meses, entravam na sala e viam tal objeto. Isso lhe
permitiu observar o movimento natural do bebê e daquele que o acompanhava na consulta
perante aquele estímulo (Winnicott, 1978; Safra, 1995).
No momento das observações, diante da espátula na mesa e o bebê ali presente,
Winnicott cuidava para que ele e a mãe interviessem o mínimo possível na situação,
aguardando um período de tempo pela reação espontânea do bebê (Winnicott, 1978). Essa
espera possibilitava permitir que o seu ritmo natural do lactente emergisse, assim como o jeito
e o funcionamento natural de seu cuidador (na maior parte das vezes a mãe). Uma situação
clínica que revelava o funcionamento da dupla mãe-bebê.
Winnicott percebeu, de modo geral, que os bebês vivenciavam uma inevitável atração
pelo objeto e descreveu uma sequência de três estágios desse processo. No primeiro deles, há
um movimento de interesse do bebê em direção à espátula, atraindo-se por ela, e dando
origem a um conflito provocado pelo seu desejo. O estágio dois é marcado pelo dilema entre
o surgimento do impulso e sua inibição, configurando o chamado período de hesitação. Nesse
momento o corpo experimenta um estado imóvel, que só pode ser transposto pela aceitação da
85
realidade. Quando acontece, faz surgir um estado de autoconfiança vigorosa que leva a
criança a brincar e manipular o objeto (Winnicott, 1978).
O estágio três acontece quando, manuseando a espátula, o bebê a deixa cair por
engano e alguém lhe devolve. Ao jogá-la repetidamente, sinaliza a vontade de descer até o
chão e, lá estando, manifesta interesse por um novo objeto (Winnicott, 1978). Nesse ponto,
Winnicott correlaciona o ato da criança de jogar a espátula com o jogo do carretel descrito por
Freud. Compreende que, ao livrar-se da espátula (semelhante a jogar o carretel), o bebê
demonstra a relação com sua mãe interna e, de modo mais amplo, exprime suas relações com
coisas e pessoas dentro e fora de si mesmo (Winnicott, 1978).
A sequência dos três estágios refere-se a um processo contínuo e descreve um
comportamento normal até por volta dos 13 meses de vida. Neste mesmo trabalho, Winnicott
ilustra casos de alguns bebês que, na mesma situação clínica, reagiam de formas diferentes ao
esperado e, com isso, evidencia a suscetibilidade da criança em relação aos fatores do seu
ambiente (Winnicott, 1978). Destaca que a mais significativa variação acontece em relação à
hesitação inicial, pontuando alguns casos em que a espátula é agarrada em segundos, e outros
em que há hesitação por um grande intervalo, podendo inclusive retratar um desinteresse
persistente. Essas são variações extremas e opostas para o que o autor compreende como
normal.
O jogo da espátula descrito por Winnicott pode ser compreendido como uma interface
entre o impulso, sinalizado pelo desejo do bebê de levar o objeto à boca, e sua inibição,
representada pelo período em que hesita em fazê-lo, experimentando um estado de corpo
imóvel que precede a entrega a tal prazer, quando sua boca saliva e ele então manipula a
espátula de modo a levá-la até sua boca.
A hesitação é uma manifestação do superego e configura um passo anterior e
necessário ao ganho de confiança para o movimento de posse. Indica um conflito, ou mesmo
uma fantasia – já presente nessa idade. Dizem respeito não somente ao ambiente externo, mas
aos fragmentos de pessoas que estão sendo incorporados pelo bebê que também já é capaz de
absorver as qualidade de coisas boas ou más em sua realidade interna (Winnicott, 1978).
A criança em seus estágios mais iniciais vivencia uma significativa condição de
vulnerabilidade: se sua condição inicial faz com que o bebê seja mais sensível aos riscos de
fatores ambientais negativos (Winnicott, 1978), na mesma proporção ela é suscetível aos
86
impactos das intervenções realizadas em seu ambiente. O que Winnicott elucida por meio de
suas observações do jogo da espátula é que elas lhe fornecem uma base importante para a
compreensão do desenvolvimento emocional do bebê, uma vez que evidencia a relação desse
com o seu ambiente, em seu movimento exploratório.
O primeiro ano de vida é fundamental para o desenvolvimento da capacidade da
criança de construir sua relação com outras pessoas para além de sua mãe, central na
possibilidade de estabelecer tríades, o que desdobra em sua inserção familiar e relações
futuras (Winnicott, 1978). Portanto, algumas aquisições que se tornam ou não possíveis nesse
momento tão inicial da vida de um bebê influenciam no curso de seu desenvolvimento
subsequente e impactam no mundo interno da pessoa, isto é, no seu modo de sentir e perceber
o mundo, assim como no modo em que estabelece relação consigo mesma e com o outro.
As complexas aquisições que permeiam o desenvolvimento emocional do bebê
envolvem um fundo voraz de sentimentos contraditórios e impulsos que se apresentam e
demandam serem satisfeitos. Isso compreende o processo em que emerge uma excitação e,
em contrapartida, defesas que a controlam gerando a hesitação (Winnicott, 1978). Isso
significa que, quando num ambiente que tolera tais contradições experimentadas pelo bebê, é
possível vivenciar o que Winnicott (1978) denomina como lição de objeto, isto é, quando sua
experiência tem um valor mais amplo que o puro imediatismo, constituindo um valor
terapêutico mais amplo para a criança:
Não apenas na idade considerada, como através de toda a infância, uma tal experiência
não tem um poder apenas temporário de renovar a confiança: o efeito acumulativo de
experiências felizes e de uma atmosfera estável a amistosa à volta de uma criança é o
desenvolvimento de sua confiança nas pessoas e no mundo externo e de seu sentimento
geral de segurança. (…) Não será surpreendente, portanto, se eu fizer a reivindicação de
que, ao fazer minhas observações, também provoco algumas mudanças na direção da
saúde. (p. 158)
Winnicott tinha razão em se atentar ao modo como as mães e seus bebês chegavam até
ele, naquele longo percurso do corredor da sala de espera até seu consultório. O trajeto lhe
permitia estabelecer contato visual com a mãe e com seu bebê, recordando-o de sua história
ou mesmo reconhecendo se era um paciente novo. Todas as suas observações foram a base
para a construção de sua teoria e lhe possibilitaram atentar-se para as sutilezas que se
revelavam nas crianças, nos bebês, nas mães e na relação entre todos esses elementos entre si,
e com ele.
A compreensão do desenvolvimento emocional de Winnicott, portanto, oferece
subsídios para pensar não só o processo de constituição psíquica em si, bem como possibilita
refletir sobre os desdobramentos dessa compreensão na prática clínica. Assim ele ressalta:
Minha tese é que, na terapia, tentamos imitar o processo natural que caracteriza o
comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança. Se a tese estiver correta
deduz-se que é o par mãe-criança que pode nos ensinar os princípios básicos sobre os
quais deve fundar-se nosso trabalho terapêutico, quando estivermos tratando de crianças
cuja primeira relação com a mãe não foi "boa o suficiente”, ou foi interrompida .
(Winnicott, 1993, p. 28)
Portanto, este é um ponto chave para a perspectiva clínica: pensar de que modo o
conhecimento desse processo pode ser útil com pacientes em diferentes pontos do processo do
desenvolvimento, em qualquer idade e momento da vida.
89
O que se observa é que essa é uma construção que caminha e necessita de uma melhor
sistematização conceitual – o que pode caracterizar um desafio, dada a herança de pouca
pesquisa e estudo que, por vezes, persiste nessa abordagem. Muitos desses trabalhos exploram
conceitos específicos da teoria da Gestalt-terapia ligados ao desenvolvimento, mas sem muito
avançar sobre o que já está posto. Por outro lado, alguns autores e pesquisadores das gerações
seguintes a Perls mostraram-se inclinados a discutir e ampliar o tema.
Dentre os pesquisadores do desenvolvimento na Abordagem Gestáltica, merece
destaque o trabalho de Spagnuolo-Lobb, com o conceito de desenvolvimento polifônico de
domínios (2012; 2018). Observa-se em sua proposta um avanço consistente, permeado por um
cuidado epistemológico constante de adequação à Abordagem Gestáltica, que fornece ao
gestalt-terapeuta uma compreensão do processo de crescimento baseado nos modos de
contato e defende uma aplicação clínica desse conhecimento. Isto é, a autora fundamenta sua
proposta e elucida porque um clínico precisa saber sobre desenvolvimento, tornando esse
conhecimento aplicável. Dentre os achados, essa teoria pautada em domínios é uma
contribuição significativa e inédita nesta temática.
Pode-se observar como ponto comum que muitas das proposições sobre o
desenvolvimento em Gestalt-terapia se fundamentam no princípio do contato. Assim, tomam
um modo de contato e ilustram uma espécie de caminho de crescimento à medida que se
avançam para os modos de funcionamento seguintes. Isso implica que haveria uma certa
“ordem natural” de funcionamento, em que um modo sucede o outro, superando o anterior, e
avançando no processo – equivale a pensar, por exemplo, que a confluência antecede a
introjeção. Entretanto, não está clara a ocorrência ou a recorrência, ao longo da vida, numa
idade mais avançada, de um modo mais “primitivo”13 de contato.
Facilmente encontra-se como ilustração o exemplo do recém-nascido em confluência
com sua mãe, entretanto, pouco se discute, em termos de desenvolvimento, casos em que se
verifica um adulto em intensa confluência com seu cônjuge. Nos dois casos temos a
confluência como modo de contato, porém, o fato de se darem em momentos de vida
completamente distintos pode contribuir – ou mesmo bagunçar – a reflexão sobre o
crescimento. Isso significa que esse adulto não cresceu? Que é emocionalmente similar a um
13 Primitivo no sentido de primeiro, inicial; relativo aos primeiros modos de contato de uma sequência.
91
bebê de poucos dias de vida? Um bebê num corpo de adulto? Seria a confluência uma espécie
de estágio inicial a ser superado nos primeiros anos de vida?
Tendo em vista o processo de crescimento de uma pessoa, os modos de contato não
são restritos a um único momento da vida. Em que pese a ideia de uma progressão em termos
de complexidade, é fundamental afirmar que o desenvolvimento não é um processo linear – o
que seria uma equivocada simplificação. Ainda que os diferentes modos de contato aconteçam
por toda a vida, pouco se discute sobre a continuidade e/ou recorrência deles ao longo da vida
e o que isso tem a ver com crescimento. Parece óbvio afirmar que a pessoa amadurece desde o
nascimento até a morte, mas nem tão óbvio assim atentar-se que o processo de
desenvolvimento segue seu curso para além dos primeiros anos.
Em relação a uma perspectiva de desenvolvimento na Abordagem Gestáltica,
Spagnuolo-Lobb (2012) defende a ideia de que, em vez de pensar fases, poderíamos pensar
em domínios como processos e competências para fazer contato que habitam o pano de fundo
da experiência; por assim ser, está pronto para se tornar uma figura em determinados
momentos e interagir com outras capacidades ou domínios existentes. E, se estão de fundo e
podem tornar-se figura, existe uma dinamicidade que interessa ao gestalt-terapeuta não só de
crianças, mas de qualquer público, pois é ele uma testemunha desse processo. Porém, não
poderá ele somente testemunhar, é preciso conhecer, lançar um olhar sobre o que acontece e
refletir sobre os desdobramentos clínicos dessa compreensão. O próprio psicoterapeuta é, em
dado momento, o ambiente a favorecer ou não o processo de crescimento de seu cliente.
É preciso reconhecer que todo o caminho asfaltado até aqui sobre leituras do
desenvolvimento à luz da Gestalt-terapia é fundamental para que seja possível refletir ou
mesmo fazer novas conjecturas nessa seara. De algum modo, eles refletem e até mesmo
exemplificam, a dificuldade em avançar num conhecimento tão complexo, permeado por
nuances que desafiam a apreensão de sua totalidade. Deste modo, “conversar" com Winnicott,
com parte de sua teoria, vislumbra que se possa avançar um pouco mais ou, no mínimo,
formular novas perguntas, inquietar-se com inéditos questionamentos. É lançar novas
sementes, sem garantias do que irá florescer.
92
Organismo e ambiente não são a mesma coisa, ao passo que são inseparáveis. Essa
diferença delimita-se pela fronteira, isto é, um contorno flexível que se expande e recua no
contato com o ambiente, a própria diferenciação entre o self e o outro (Perls, 1977). Isso
evidencia que há uma diferenciação entre um e outro, embora não exista um sem o outro. O
campo organismo/ambiente significa que qualquer teorização sobre impulsos ou instintos se
refere sempre a um campo interacional, e nunca a um animal isolado (Perls et al., 1997).
93
Como numa jornada, está posta uma progressão semelhante entre Winnicott e Perls. Se
Winnicott descreve uma caminhada da condição de dependência rumo à independência, Perls
a caracteriza como sendo do estado de heterossuporte ao autossuporte. Para Perls (2012), o
suporte diz respeito às formas de contato adquiridas ao longo da vida. Define maturação como
"a transferência do apoio ambiental para o autoapoio” (Perls, 1977, p.50). Já Winnicott (1983)
define o amadurecimento como uma mudança gradual que parte da dependência em direção à
independência. A esse respeito, reitera que "a independência nunca é absoluta. O indivíduo
normal não se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se possa
dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes” (Winnicott, 1983, p. 80). A paridade
entre essas perspectivas consiste no reconhecimento da relação de dependência do ambiente,
que vai se diferenciando ao longo da vida, ora maior, ora menor.
De acordo com Andrade (2014), o indivíduo saudável desenvolve seu autossuporte em
contato com o ambiente. Partindo desse ponto, é importante questionar de que modo o
ambiente pode favorecer a construção desse autossuporte? O que está na base de sua
constituição? Como ele se desenvolve? Certamente estamos falando de um processo contínuo,
que se dá ao longo de toda a vida, mas que tem um princípio, e perguntas como essa não estão
respondidas no campo da Gestalt-terapia. Tomando o processo de crescimento, o
desenvolvimento do autossuporte é mencionado, mas parece ainda não ter sido explorado a
fundo, deixando sem respostas provocações sobre como se constitui, o que o favorece, o que o
interrompe, isto é, como ele começa a ser construído na vida de uma pessoa.
Nesta discussão, é oportuno questionar: como alguém chega ao ponto de sentir ser
capaz de confiar em si mesmo e nos próprios recursos frente a uma situação que lhe desafia?
Yontef (1998) dirá que o autossuporte inclui autoconhecimento e autoaceitação, e Andrade
(2014) assinala que, numa situação de psicoterapia, nem sempre o cliente conseguirá entrar
em contato com tais aspectos sem a ajuda do psicoterapeuta. Quando a autora menciona a
dupla, incluindo o clínico na tarefa de desenvolvimento do autossuporte de seu cliente,
elucida a participação de alguém para além do si mesmo, do “auto”, havendo um outro capaz
de acompanhá-lo nessa construção na qual ambos têm um papel ativo. Tem destaque o outro,
como ambiente, num papel primordial no crescimento do eu. Para Winnicott, esse é o
princípio fundamental do desenvolvimento emocional de uma pessoa.
95
aberta que não se fechou? Como uma necessidade basilar não satisfeita? Haveria uma
condição de dependência necessária de ser atendida para que, então, deixasse de ser figura?
Uma pessoa poderá transitar, durante toda a sua jornada de vida, em busca da realização dessa
sua necessidade, numa condição de maior ou menor dependência, de acordo com sua história
de vida e com a situação presente, demandando maior ou menor suporte externo.
Uma contribuição fundamental da teoria do desenvolvimento do ser de Winnicott diz
respeito à primordialidade das experiências iniciais para o fluxo de crescimento que se segue
ao longo da vida. O homem é indissociável de sua história e de seu ambiente. Não há um
aqui-e-agora desconectado de um passado (nem de um futuro), tampouco um homem isolado
em si mesmo. Em ambos os casos, estamos sublinhando a correlação intrínseca que o
constitui como homem-no-mundo e homem têmporo-espacial. Há momentos em que as
fronteiras do passado e do presente se dissolvem, e ambos se encontram como uma
experiência concreta e real no aqui-e-agora. Acessar a história de vida, o fundo do qual se
destacam novas figuras, é fundamental no contexto clínico, visto que revela o fio de vida e a
existência única de uma pessoa.
É preciso superar o passado como determinista e linear, recolocando-o no seu lugar de
história, de fundo que sustenta a figura atual e, como tal, tem interferências em sua
configuração, tem sua marca, seu registro. Diferente da maior parte das teorias (sobretudo
psicanalíticas), não há uma relação causal entre o passado e o presente, e tampouco um
caráter de obviedade entre esses elementos (Miller, 2002). Uma diferenciação significativa
entre essas perspectivas é apontada por Perls em sua crítica:
O grande erro da psicanálise é assumir a lembrança como realidade. Todos os assim
chamados traumas, as supostas raízes das neuroses, são invenção do paciente para
preservar sua autoestima. Nunca foi provada a existência de nenhum trauma. Eu nunca
vi um caso de trauma infantil que não tenha sido falsificação. São mentiras às quais se
apega firmemente para justificar a falta de vontade de crescer. Amadurecer significa
assumir a responsabilidade pela própria vida, de ser por si só. A psicanálise promove o
estado infantil considerando que o passado é responsável pela doença. O paciente não é
o responsável, não; o trauma é o responsável, e assim por diante. (Perls, 1977, p. 67)
A subdivisão temporal é mera abstração, mas do ponto de vista clínico é relevante que o
psicoterapeuta se sinta curioso e interessado pela história de vida de seu cliente. Não se trata
de acessar uma outra dimensão pois aconteceu há longínquos anos, mas de uma abertura às
experiências que constituem aquele que se encontra diante de si, compreendendo-o em sua
97
do afeto, do aconchego que seus corpos outrora não puderam experimentar. Apresentam
falhas acentuadas em seu senso de eu, pois não tiveram a oportunidade de se sentirem vistos e
reconhecidos como um eu. Demandam integrações primárias que desencadeiam significativas
interrupções em seus modos de contato. Neste caso, o trabalho será no sentido de resgatar a
possibilidade de se desenvolver. Sem essa compreensão, que passa tanto pela via humana
quanto teórica, corre-se o risco de negligenciar o verdadeiro sentido de cuidado.
Toda dependência é patológica? Se não, como diferenciar? Como intervir? A que tipo de
dependência não pode o terapeuta responder e a que tipo de dependência, sem responder,
impedirá esse o crescimento do cliente? Podemos pensar numa dependência que denuncia
uma não integração? Nesse caso, não responder a tal necessidade seria uma omissão do
profissional? A máxima de não se deixar manipular pelo cliente perante um sinal de
dependência não deixaria o terapeuta míope para a identificação de uma necessidade real que
demanda ser olhada? Para isso, seria preciso ter uma concepção mais clara de dependência em
relação ao processo de crescimento.
Está evidente que há uma relação direta entre desenvolvimento e dependência. O que
Perls (1977) evidenciou foi uma certa "dependência neurótica" que, segundo ele, é criada para
evitar o crescimento, numa tentativa de manipular o ambiente para obtenção de apoio, como
forma de controle. Nesse caso, está posta como um impedimento de crescer, um sinal de
imaturidade. No entanto, o que Winnicott nos permite ampliar é a clareza de que nem toda
dependência é patológica – em dados momentos, ela é extremamente saudável e, sobretudo,
vital. Sendo assim, uma generalização nessa seara pode confundir e aniquilar o que está se
revelando ser algo ainda mais complexo. Pode-se questionar, então, em relação à
dependência: quando ela é condição sine qua non do desenvolvimento e quando ela é sua
própria interrupção?
Esse questionamento guarda uma difícil e desafiadora sutileza do contexto clínico. Com
frequência, nos deparamos com casos em que se verifica uma condição de dependência do
cliente em relação ao ambiente. Dentre eles, é possível notar uma diferença importante: há
clientes que demandam sustentação enquanto outros demandam responsabilização. O que os
difere? A clareza de que, em dado momento, suas necessidades são distintas. E uma questão
norteadora fundamental ao psicoterapeuta é responder: qual é a necessidade real emergente
daquele cliente no seu aqui-e-agora.
100
que entra em choque com o avanço dos estudos sobre o bebê e, posteriormente, da
neurociência, que decorrem dos últimos 50 anos.
Como um terreno fértil que é o estudo sobre o processo de crescimento na Abordagem
Gestáltica, bem como seu impacto na perspectiva clínica, essa tese se propõe a apresentar uma
lente sobre a qual se possa olhar para o desenvolvimento, alicerçada numa articulação pessoal
da autora fundamentada nas obras originais de Perls, no trabalho de outros pesquisadores da
Gestalt-terapia com esse enfoque e nos diálogos com Winnicott. Não pretende com isso,
encerrar a discussão, mas, ao contrário, lançar sementes que possam ser férteis para o avanço
dessa discussão à luz da Gestalt-terapia. Esta pesquisa, e a proposição de um novo modelo,
tem por objetivo responder à questão inicial dessa tese: de que modo a relação organismo/
ambiente corrobora com uma compreensão do desenvolvimento à luz da Gestalt-terapia?
Reconhecemos que a compreensão de domínios polifônicos, proposta por Spagnuolo-
Lobb (2012; 2018), é uma contribuição significativa para a Gestalt-terapia, posto que organiza
e sistematiza de modo criativo e coerente uma proposição – ou, dizendo em suas palavras, um
“mapa mental” – que auxilia o clínico a se situar sobre o processo de seu cliente manifestado
no aqui-e-agora do atendimento clínico. A autora enfatiza sobremaneira como o campo
fenomenológico, como palco onde o contato organismo/ambiente acontece, gerando
experiências que se somarão ao fundo já existente e irão interagir com outros domínios lá já
coexistentes (Spagnuolo-Lobb, 2012). No entanto, esta proposta não explora de que modo
esses domínios se articulam desde o nascimento, descrevendo um caminho de crescimento ao
longo da vida.
A teoria do desenvolvimento emocional do ser, de Winnicott, por sua vez, nos brinda
com a clareza de que a provisão ambiental é fundamental para o processo de desenvolvimento
humano (Winnicott, 1983, 1993, 2012; Fulgencio, 2016; Phillips, 2006). Portanto, não se
pode pensar no desenvolvimento de uma pessoa sem considerar o campo organismo/
ambiente, que se traduz pela experiência de contato entre o eu e o não-eu. Antes mesmo do
nascimento físico propriamente dito, o processo de desenvolvimento tem início, ainda no
útero da mãe. Ali já há uma relação, já existe interação e troca com o mundo. Com isso,
delineia-se um processo interação organismo/ambiente que é anterior ao próprio nascer,
quando já se configuram as primeiras experiências da vida de uma pessoa.
105
percebida por ele) para que atenda às suas necessidades vitais físicas e emocionais. A
integração do eu vai acontecendo necessariamente na relação com o outro, no campo
organismo/ambiente. O cuidado e o suporte não são e não podem ser tomadas como ações
mecânicas, puramente automáticas; há algo para além de puramente sanar a fome ou esse tipo
de necessidade, que diz respeito ao ato de uma mãe segurar o seu bebê (Winnicott, 2012).
Sobre tal relação, Robine (2006) enuncia:
O bebê tem um certo número de necessidades, desejos, apetites cuja característica é
serem vagos. Antes de ser um "objeto" de contato, a mãe será aquilo que dará sentido às
mensagens do bebê, que criará formas a partir do pouco material formal emitido. (p.
143)
um suporte em si mesmos. Quando se sentem assim, a dependência não diz respeito a uma
resistência, ou mesmo a uma manipulação do ambiente pura e simplesmente, como Perls por
vezes comentou ao se referir sobre a neurose. Pessoas que estão fixadas pois não
ultrapassaram essa condição, demandam vivenciar o processo de se sentirem seguramente
sustentadas pelo seu psicoterapeuta, de modo que favoreça a possibilidade de um senso de
totalidade, de unidade. Metaforicamente, do ponto de vista do crescimento, é como se o
clínico estivesse diante de um bebê – independentemente de sua idade cronológica. Não
parece razoável que sua intervenção seja alheia a esse fato, ou do mesmo modo quando diante
de uma pessoa que se sinta inteira. Assim sendo, é preciso que o gestalt-terapeuta se localize
em relação ao aqui-e-agora do cliente, que se revela no campo da relação terapeuta-cliente,
para que possa semear a possibilidade de crescimento – ou de sua retomada.
A ideia de Winnicott (1993), que coaduna com o que está sendo defendido nesta tese,
é de que, na psicoterapia, o psicoterapeuta tenta imitar o processo natural que caracteriza o
comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança. Não se trata de grosseiramente
colocar-se no lugar de mãe de um cliente, mas de, quando necessário, guiar-se por
intervenções que sejam suportivas o bastante para propiciar a possibilidade de crescimento do
cliente. Ele precisa sentir-se sustentado ao menos por esta pessoa, seu psicoterapeuta, pelo
menos no tempo em que se encontram durante a sessão. O clínico deve olhá-lo de modo
verdadeiramente interessado, curioso, como quem ali busca um eu a florescer. Quando o
cliente se encontra nessa posição em relação ao fluxo de desenvolvimento, introjeções lhe
podem ser úteis, visto que têm por objetivo dar a ele uma espécie de "repertório" que ainda
não possui, apresentando-lhe possibilidades.
A dinâmica figura-fundo representa que o organismo experimenta uma excitação
referente ao surgimento de uma figura, instaurando, uma necessidade. Quando o ambiente,
por meio da figura da mãe ou de um cuidador, sustenta o ciclo de contato, identificando e
atendendo a necessidade emergente, a satisfação gera assimilação e pode ser integrada. Ao
contrário, quando persiste no excitamento que não encontra um caminho, uma possibilidade
sustentada pelo ambiente, faz com que essa gestalt permaneça aberta. Quando esse organismo
é satisfeito, sente satisfação e assimila o cuidado como experiência e começa a perceber que
há algo que lhe é diferente. E isso, gradativamente, favorecerá sua chegada ao momento
seguinte, quando começará a perceber-se. A não satisfação repetida, isto é, sucessivas
110
experiências de não satisfação, levam a uma situação inacabada que poderá gerar interrupções
e dificuldades no processo seguinte – o de diferenciação.
Sim, afirmamos com isso a existência de uma sequência no processo de crescimento, e
ela é inegável quando considerado que o organismo caminha assimilando graus de
complexidade cada vez maiores. Parece lógico pensar que um bebê não pode se
responsabilizar por si mesmo – o que lhe exigiria um grau avançado de autonomia que ainda
não possui. Essa perspectiva guarda em si um padrão de que o organismo, à medida que
cresce, evolui de níveis menos para mais complexos. E neste caso, a complexidade é
diretamente proporcional à condição de autossuporte, ou seja, a complexidade traduz o grau
de maturidade alcançado e representa a busca pela autossustentação.
Quando acontece a percepção do eu, inaugura a possibilidade de diferenciação daquilo
que é não-eu. Este é o cerne do desenvolvimento da fronteira de contato, quando o organismo
começa a construção da delimitação entre ele e o mundo. A fronteira de contato é o
“contorno" que protege e delimita fatores psicológicos, delimitação entre o eu e o não-eu.
Para Perls et al. (1997), o self é a fronteira-de-contato em funcionamento; por assim ser, o self
é o integrador. Este momento talvez marque a primeira grande frustração quando,
percebendo-se como um eu, percebe também a existência “separada” do outro. Instaura-se
com isso a possibilidade de sustentar essa diferenciação, pela constituição da fronteira.
Quando em um momento de diferenciação, uma pessoa pode se defrontar, então, com
a frustração, fruto da diferença eu-outro. É bastante comum que crianças que se percebem
como um eu, e que comecem a se perceberem diferentes do outro, lutem pela afirmação de si
mesmas por meio da prevalência de suas vontades. Para Perls (1977) a frustração é um força
propulsora de crescimento à medida que mobiliza no organismo os próprios recursos. Ao
passo que denuncia um sinal de crescimento, requer inevitavelmente uma intervenção
ambiental de contenção, de colocação de limites pela experiência de frustração: quando uma
criança, por exemplo, não é frustrada, aprende a manipular o próprio ambiente (Perls, 1977).
Podemos desdobrar dois movimentos comuns à delimitação da fronteira: na ausência do
contorno eu-outro, poderá colocar esse limite demasiadamente recuado em si mesmo, vivendo
uma condição de ser invadido, ou demasiadamente para além de si, numa posição de invasor
do outro.
111
Clientes que estão vivendo esse movimento de limites para “dentro de si” estão em
vias de delimitar os próprios contornos em relação a si mesmos e ao mundo, alicerçados em
questionamentos de “quem sou eu”, “o que eu gosto”, “o que eu não gosto”, “o que permito
ou não”, “o que me invade”… Em todas esses questionamentos há sempre a possibilidade de
emersão de um eu. Neste caso, o psicoterapeuta deve fomentar uma postura que instigue o
cliente sobre suas percepções, construindo um caminho no qual possa ficar curioso sobre seus
limites e extensão, conforme suas experiências de contato no campo organismo/ambiente.
Aquele que, por sua vez, se coloca com a fronteira expandida em relação ao mundo,
invadindo-o, precisa experienciar a frustração no sentido de limite, de contorno e contenção,
de modo a construir por meio da relação terapêutica a percepção da demarcação em relação a
si mesmo, ao outro e ao mundo. Nesse percurso, inicia-se com isso, uma transformação da
extensão do heterossuporte em relação ao autossuporte, na qual o primeiro começa a diminuir
enquanto o segundo realiza uma expansão.
À medida que tais delineamentos vão sendo postos, esse eu começa a se apropriar,
com contornos cada vez mais claros e cada vez mais nitidamente desenhados sobre si. Essa
apropriação, agora possível, possibilitará que uma pessoa possa se responsabilizar por si
mesma e por suas escolhas. Para Perls, isso significa uma habilidade em responder, de sentir e
ser totalmente responsável por si mesmo (Perls, 1977) – aqui está o que ele descreve como a
“pessoa madura”. Podemos tomar "madura" aqui, no sentido de que pôde alcançar um nível
de crescimento que a possibilitou se autossustentar, o que de fato não é um percurso dado,
tampouco, simples de ser conquistado. Nessa construção, a pessoa se sentirá cada vez mais
livre para fazer suas escolhas à medida que puder se responsabilizar por elas, bancando
sustentá-las. Nessa construção, transcendendo a si mesma, poderá inclusive conquistar a
capacidade de responsabilizar-se de modo diferenciado também pelo outro e pelo mundo,
integrando-se cada vez mais a ele.
A atuação do psicoterapeuta deverá ser no sentido de trabalhar tal responsabilização,
como via de fortalecimento do próprio autossuporte. Diferente de responsabilizar um bebê
pelo seu crescimento como um todo – o que é absolutamente inapropriado e humanamente
impossível – quando um cliente se encontra nesse ponto de amadurecimento, o gestalt-
terapeuta falhará se não trabalhar sua autorresponsabilização. Neste ponto do processo, o
cliente não só tem condições de se sustentar, como deve ser provocado e instigado pelo seu
112
terapeuta a fazê-lo – cada vez mais. Essa condição de maior autossuporte não significa uma
condição de independência absoluta, uma vez que esse lugar é irreal, mas quer dizer que há
autonomia suficiente para se sustentar na própria vida, com bases nas próprias escolhas.
Repetindo Perls, essa é uma pessoa madura, em crescimento, capaz de sustentar-se nas
próprias pernas que tem – e que, neste instante, sabe que tem.
O "modelo processual de integração do eu” é uma perspectiva que tem a integração do
eu como ponto central do processo de crescimento. Fundamenta-se na premissa de que a
leitura de onde o cliente se encontra orienta o gestalt-terapeuta em sua compreensão sobre a
figura e o fundo de experiências que se revelam e presentificam no aqui-agora da relação
psicoterapêutica. Ao evidenciar uma progressão no nível de complexidade que atravessa o
desenvolvimento de uma pessoa, elucida haver um fluxo de crescimento que, no entanto, não
é linear à medida que pode ser vivenciado em qualquer momento da vida.
Como ondas, são experiências que vão e vem, de acordo com o que se apresenta na
fronteira organismo/ambiente, e evocam do fundo as experiências que ali estão disponíveis.
Na prática, isso significa que um eu integrado pode, em dada situação, sentir-se sem suporte
para lidar com algo que se lhe apresenta circunstancialmente. Mas, já havendo tal integração,
certamente não recairá sobre um funcionamento tão inicial, posto que sua integração é uma
experiência assimilada e que compõem sua história de vida. Essa constatação por si só
diferencia a compreensão, os caminhos e as intervenções.
113
6. Considerações finais
No que se refere a Fritz Perls, os achados demonstraram que o autor de fato não se
debruçou amplamente sobre uma conceituação ou teorização acerca do desenvolvimento
humano. Há de se considerar que, como um psicoterapeuta de adulto, possivelmente não
tenha sido de seu interesse explorar mais à fundo essa seara. Ainda assim, muito importante
foi a clarificação dos termos por ele adotados que mais se aproximam desta conceituação: os
resultados permitem inferir que Perls usa crescimento de modo análogo a desenvolvimento e
se refere a amadurecimento como o processo dele decorrente. Esta nomenclatura fora
pesquisada na língua original das publicações para que fosse verificada a possibilidade de
qualquer interferência da tradução, o que não se confirmou. Estes são, na tradução literal, os
termos destacados por ele.
A herança do casal Laura e Fritz Perls, por meio da proposição do metabolismo
mental, mostrou-se incipiente e, por vezes, equivocada para uma compreensão desse
fenômeno. Tendo em vista a premissa de que toda abordagem cresce e se desenvolve na
crítica, a defesa dessa leitura na tese intenciona contribuir com o engrandecimento da Gestalt-
terapia, resguardando a pluralidade de compreensões que lhe são possíveis. Isso posto,
evidencia-se aqui o caráter inicial de tal proposição, fruto de um pré-texto que é a obra Ego,
Fome e Agressão, como uma perspectiva do crescimento que não se sustenta atualmente,
principalmente por não abarcar em seu escopo a complexidade do processo de crescer e
amadurecer. Quando enfatiza a capacidade de morder, por meio do surgimento dos dentes,
parece sinalizar, no máximo, uma possibilidade de ação, de não-passividade, decorrentes da
energia agressiva.
A proposição da mastigação torna evidente o movimento de diferenciação deste
pensamento em relação à teoria freudiana, tendo em vista que fora apresentada especialmente
em um momento de clara reformulação e ruptura dele com a Psicanálise. Evidência disso é o
fato de que essa proposta foi abandonada por Perls posteriormente em sua caminhada teórica,
não mais sendo desenvolvida e referenciada em suas obras seguintes, e sem quaisquer
avanços que lhe dessem maior robustez. Sendo assim, o metabolismo mental pode ser citado
como um primeiro esboço sobre a noção de desenvolvimento, ponto a partir do qual as
discussões devem avançar.
Quando Perls sinaliza o caráter incompleto deste texto de entrada (Perls, 2002), abre
espaço para que avanços sejam feitos em relação à diferenciação dele mesmo e de seu
115
não somente no modo como vai compreender as figuras e o fundo que se revelam na situação
terapêutica, como também em como se colocará nessa relação, por meio de sua postura e
intervenção.
Se falamos em heterossuporte ou em provisão ambiental, estamos necessariamente
intimados a pensar o lugar do terapeuta no processo de crescimento do seu cliente. E refletir
sobre isso só é possível se considerado o processo de crescimento como um todo. Os diálogos
entre autores da Gestalt-terapia e Winnicott permitiram a formulação de uma proposta de
compreensão do desenvolvimento na Abordagem Gestáltica, à qual denominou-se Modelo
processual do integração do eu. Ele contempla uma leitura que se esforça por abarcar os
principais momentos que marcam integrações importantes ao complexo processo de
desenvolvimento e integração do eu. São eles: 1. cuidado e suporte ambiental; 2.
diferenciação, delimitação da fronteira de contato e frustração; e 3. apropriação e
responsabilização. Compõem uma sequência de acontecimentos que, ao serem possibilitados,
significam a assimilação e consequente integração cada vez mais complexa do eu,
favorecendo a possibilidade de alguém se perceber e sentir-se inteiro.
Como num processo, numa continuidade, a pessoa pode encontrar-se interrompida em
qualquer um desses momentos descritos. Compreender o lugar em que ela se encontra permite
ao psicoterapeuta localizar-se sobre o processo de crescimento do cliente. Lança-se, com isso,
a possibilidade de uma leitura diagnóstica processual à medida que permite ao clínico
acompanhar e atualizar onde a pessoa está a cada momento. Quando Perls (1977) menciona
que na Gestalt-terapia trabalhamos para promover o processo de crescimento e desenvolver o
potencial humano, incumbe o gestalt-terapeuta da responsabilidade de conhecer tal processo,
seus impedimentos ou dificuldades e, consequentemente, suas possibilidades de retomada. E,
para dar conta de tal processo de crescimento, fez-se necessário sanar uma lacuna nessa
abordagem no que tange às primeiras experiências e seu papel fundamental para a
continuidade do desenvolvimento.
O diálogo com Winnicott lança luz sobre um aspecto importante pouco explorado na
Abordagem Gestáltica, certamente decorrente da falta de um olhar próprio e consistente para
o desenvolvimento: o reconhecimento de um momento inicial, basilar, que está intimamente
ligado ao nascimento de um condição de existência do eu, o qual o autor descreve como
sendo uma condição de dependência absoluta (Winnicott, 1983). Nele se destaca tanto o fato
117
14Curso oferecido pelas professoras Letícia Brodoloni e Patricia Camps, do Instituto Gestalt de São
Paulo, intitulado “O cuidado com a mulher no puerpério".
118
O segundo desdobramento, como uma espécie de produto desta tese, é o projeto Casa
Puer. Será inaugurado como um centro de suporte a famílias desde a gestação à primeira
infância. Por meio do atendimento transdisciplinar, terá por objetivo oferecer cuidados ao
bebê e também àqueles que o cuidam, e contará com médico obstetra, psicólogo, pediatra,
fisioterapeuta, dentre outros profissionais, dedicados ao cuidado com cada dupla ou família. A
ideia desenvolvida nessa proposta é que uma pessoa tenha disponível uma equipe de
profissionais que possam acompanhá-la conforme sua necessidade, oferecendo-lhe o suporte
do qual necessita, num momento marcado por grande vulnerabilidade, que é a chegada de um
bebê, e suas transformações. Futuramente, tem a intenção de que se torne um centro de
pesquisa dedicado ao estudo e trabalho com esse público, visando, pelo trabalho de clínica-
escola, ampliar seu alcance à população menos privilegiada e que carece sobremaneira de
cuidados.
Tanto o Materneser quanto a Casa Puer são projetos em diferentes pontos de
execução que estão aqui referidos como produtos dessa tese, pois derivaram diretamente dos
estudos e resultados aqui apresentados, dos quais decorre a clareza da relevância de
intervenções cada vez mais precoces quando se trata dos cuidados primordiais entre os
cuidadores e seus bebês. Se o olhar da mãe, como apontou Winnicott, é fundante para o eu do
bebê, é fundamental voltar-se para ela. Isso pode ser ofertado tanto pela psicoterapia
individual, da dupla (mãe-bebê) quanto dos grupos psicoterapêuticos. É urgente cuidar de
quem cuida, da presentificação da interação organismo/ambiente. Frente ao avanço nos
estudos sobre o bebê nos últimos anos, fechar os olhos para essa realidade não é só desumano,
é uma negligência.
No que tange à Gestalt-terapia, essa tese pôde contribuir com a clarificação do
caminho conceitual percorrido no tema do desenvolvimento humano tanto nas obras originais
de Fritz Perls quanto nos artigos incluídos no estudo. Isso permitiu identificar pontos a serem
ampliados teoricamente, dialogar com outros sistema de conhecimento e, como aqui proposto,
sugerir um modelo de compreensão que referencie o profissional sobre o aqui-e-agora de seu
cliente – Modelo processual de integração do eu. Deste modo, tomamos a clínica como sendo
o território/palco das interrupções do processo de crescimento humano e da possibilidade de
integração ao longo de toda a vida, qualquer que seja a idade do cliente que busca a
psicoterapia. A continuidade no processo de crescimento não é algo garantido, pois envolve
119
sempre uma complexa dinâmica organismo/ambiente, mas pode e deve ser semeada pela
postura do psicoterapeuta.
O valor clínico do problema da tese consiste na possibilidade de compreender o
processo de desenvolvimento para que o gestalt-terapeuta possa alcançar, de modo mais claro
e fundamentado, quando ele sofre interrupções e rupturas, que o dificultam de seguir num
fluxo de continuidade. E, alicerçado nessa apreensão, concede ao clínico a oportunidade de
trabalhar com os recursos terapêuticos disponíveis para favorecer a retomada do caminho de
crescimento, isto é, de amadurecimento do cliente – qualquer que seja sua idade ou momento
de vida.
Tendo em vista o conceito parte e todo, oriundo da psicologia da Gestalt, quando uma
parte é alterada, o todo se reconfigura. Isso é um princípio básico fundamental para se pensar
o fundo de experiências de uma pessoa, que quando é tocado, no contato com uma nova
experiência, toda sua história é atualizada por inteiro. Por isso uma experiência vivida em
qualquer momento da vida pode “mudar" a história toda, sua assimilação implica uma
reconfiguração do todo, à qual não se pode alcançar os efeitos e desdobramentos. Se esse
fundo fosse estático, imutável, a própria psicoterapia não teria função alguma, visto que tudo
estaria previamente determinado. Mas é justamente essa imprevisibilidade que oportuniza o
trabalho psicoterapêutico visando a retomada do crescimento: a fé – no sentido de acreditar –
de que algo novo é possível. E é isso que deve mover o gestalt-terapeuta a se guiar no aqui-e-
agora: sua crença na ampliação das possibilidades do cliente no mundo. Uma pessoa é
necessariamente marcada por sua história, mas não é pré-determinada por ela.
Para além de um empenho em teorizar e corroborar com a ampliação da teoria na
Abordagem Gestáltica, essa tese se propôs o exercício de compreender a complexidade
originária do humano e seus ajustamentos subsequentes ao longo de toda a vida. Esta pesquisa
permitiu um aprofundamento nas obras originais da Gestalt-terapia, que serviu de apoio para
uma série de questionamentos e de acomodações, dentre eles, sobretudo, o papel do ambiente
no processo de desenvolvimento. Considerando o ambiente, destaca-se os pais ou cuidadores
principais, que são pessoas de destaque nesse processo, e o terapeuta, que trabalha pelo
crescimento de seu cliente por meio da relação psicoterapêutica. Os achados aqui descritos
traduzem que o ambiente pode favorecer ou dificultar o desenvolvimento humano, isto é, o
processo de crescimento.
120
imersos. Ainda que nos limites desse recorte, essa pesquisa lançou luz para o papel de um
outro significativo na integração do eu, isto é, primordial para seu amadurecimento e
crescimento contínuos por toda a existência.
Esta tese, por fim, não é um estudo direcionado ou restrito à clínica infantil ou ao
psicoterapeuta de crianças uma vez que não se restringe a uma pesquisa sobre o bebê ou a
criança – é antes de tudo um olhar sobre o humano. Se configura como uma proposição sobre
o fundamento das relações: a perspectiva interacional no fluxo de crescimento existencial
humano. Nisso se desdobram duas direções primordiais e caras à expansão da Abordagem
Gestáltica, fruto do aprimoramento teórico-conceitual aqui proposto sobre o desenvolvimento
ou o crescimento para a Gestalt-terapia. Primeiramente, o que a tese pôde apresentar torna
inquestionável a necessidade que o gestalt-terapeuta conheça sobre o processo de
desenvolvimento e amadurecimento para que possa trabalhar pelo processo de crescimento de
seu cliente. Isso fundamenta seu olhar, sua compreensão, sua prática e o reconhecimento de si
como outro perante o eu de seu cliente.
Em segundo lugar, a conceituação aqui defendida no modelo proposto pela autora, traz
uma ampliação teórica que abre as portas para a proposição e fundamentação do trabalho
clínico com bebês e suas famílias. Ou seja, se põe a questionar de que modo a perspectiva
gestáltica pode contribuir com a base do desenvolvimento, no momento em que a
dependência e a confluência imperam. É possível trabalhar com cuidadores e seus bebês? Que
tipo de atendimento pode beneficiar uma família que vivencia os momentos da gestação ou do
puerpério? Em que se apoiar quando essas demandas se fazem presentes no aqui-e-agora dos
clientes? É possível, desde os primórdios, trabalhar na relação do cuidador com o bebê ou
mesmo na rede de apoio do cuidador? Tais questionamentos favorecem ampliar da interação
bebê-cuidador para abarcar um contexto e campo cada vez mais amplos. Perguntas lançadas
com o objetivo de provocar o leitor, no anseio de serem refletidas e, quem sabe, respondidas
por futuras pesquisas. Essa tese finda convidando psicoterapeutas, sejam eles gestalt-
terapeutas ou não, ao corajoso exercício de pensarem além do que está posto e, de modo
consistente e epistemologicamente embasado, construírem novos caminhos de cuidado.
122
REFERÊNCIAS15
Aguiar, L. (2014). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Summus.
Araújo, M. G. C. (2002). Prefácio à edição brasileira. In Perls, F., Ego fome e agressão (pp.
11-18). São Paulo: Summus.
Aspesi, C. C., Dessen, M. A., & Chagas, J. F. (2008). A ciência do desenvolvimento humano:
uma perspectiva interdisciplinar. In Dessen, M. A. & Costa Junior, (Orgs.), A ciência do
desenvolvimento humano (pp. 19-36). Porto Alegre: Artmed.
Crespin, G. (2016). A escuta de crianças na educação infantil. São Paulo: Instituto Langage.
Cunha, I. (2018). A neurociência e o bebê de zero a três anos: aspectos relativos ao papel das
emoções, da comunicação, da sedução e do desejo no crescimento do cérebro em
desenvolvimento. Recuperado de http://wwws.sbp.com.br/sbpciencia/files/_pdf/a-
neurociencia-e-o-bebe-de-zero-a-tres-anos.pdf
Dasen, P. R. & Mishra, R. C. (2000). Crosscultural views on human development in the third
millennium. International Journal of Behavioral Development, 24, 428-434.
Fernandes, M. B., Nogueira, C. R., Lazaros, E. A., Zinker, S. R. C., Ajzenberg, T. C. P. &
Maffei, C. M. (1998). A gênese da construção da identidade e da expansão de fronteiras na
criança. Revista de Gestalt, 7, 43-48.
Ginger, S. & Ginger, A. (1995). Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo: Summus.
Guevara, A. (2020). Gestação para além do útero. Revista Viva Saúde. Recuperado de https://
www.spsp.org.br/PDF/Materia-exterogestacao.pdf
Pajaro, M. V. (2015). Gestalt-terapia com crianças: uma análise de sua produção teórica no
Brasil (Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília).
Recuperado de http://repositorio.unb.br/
bitstream10482/19080/3/2015_MarianaVieiraPajaro.pdf
Papalia, D. E., Olds, S. W. & Feldman, R. D. (2006). Desenvolvimento humano. Porto Alegre:
Artmed.
Perls, F., Hefferline, R. & Goodman, P. (1951/1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.
Perls, F. (1942/2002). Ego, fome e agressão:uma revisão da teoria e do método de Freud. São
Paulo: Summus.
Perls, F. (1969/1979). Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata de lixo. São Paulo:
Summus.
125
Philippson, P. (2018). Self e o outro. In Robine, J. M. (Org), Self: uma polifonia de gestalt-
terapeutas contemporâneos (pp. 355-368). São Paulo: Escuta.
Poppa, C. C. (2016). O suporte para o contato: uma proposta de ampliação para a clínica
gestáltica de crianças. (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://tede2.pucsp.br/bitstream/
handle/19583/2/Carla%20Cristina%20Poppa.pdf
Poppa, C. C. (2018). O suporte para o contato: Gestalt e infância. São Paulo: Summus.
Spagnuolo-Lobb, M. S. (2018). O self como contato. O contato como self. Uma contribuição
à fundamentação da experiência na teoria do self em Gestalt-terapia. In Robine, J. M.
(Org), Self: uma polifonia de gestalt-terapeutas contemporâneos (pp. 271-302). São Paulo:
Escuta.