53-68JOliveiraCasa Do Alentejo FINAL3 REVISTO

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MEMÓRIAS JUDAICAS NO ALENTEJO

Jorge de Oliveira *
Beatriz Felício*

É agora a Casa do Alentejo uma instituição centenária. Se já, anteriormente, pela natureza dos
seus “pergaminhos” e dos que dela, ao longo dos tempos, a souberam cuidar era e é uma insti-
tuição prestigiada e respeitada, agora a sua responsabilidade acresce pelo peso da sua sempre
rejuvenescida idade. Que melhor forma de perpetuar uma efeméride do que divulgá-la, tam-
bém, em forma de livro. E quere-se um livro que, de um modo geral, retrate a razão de ser de
uma “Casa do Alentejo” na capital do País; isto é, um livro no qual se registe, de diferentes
formas, a razão para a existência dessa “Casa”, o Alentejo, na sua cultura, nos seus saberes, na
sua história, nas suas tradições, enfim, nas gentes que vivem e viveram neste vasto Alentejo.
Coube-nos a nós retratar, de uma forma abreviada, as memórias materiais e imateriais que
ficaram dos tempos em que os judeus, de uma forma livre ou tolerada, permaneceram no
Alentejo até à sua expulsão ou conversão forçada ao cristianismo, ao tempo do reinado de
D. Manuel I. Diluídas, intensionalmente apagadas, ou escondidas, traços dessas memórias
ainda subsistem e marcam identitariamente este Alentejo, passado que é mais de meio século
sobre a sua aparente total inceneração.

Pedra de anel romano


com símbolos judaicos de Ammaia (FCA)

* Univ. de Évora / CHAIA


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Durante séculos, mas especialmente após o Édito de Expulsão, grande parte dos testemunhos
materiais das comunidades judaicas em Portugal foram camufladas ou destruídas. A intolerância
religiosa da maioria cristã a isso conduziu. Na segunda metade do séc. XIX uma nova forma de
ver o mundo permite alguma liberdade de culto a outras confissões para além da historicamen-
te dominante. Nesse contexto sociocultural assiste-se à entrada em Portugal de alguns des-
cendentes de judeus expulsos por via do édito que D. Manuel I promulgou em 5 de dezembro
de 1496. Com a abertura que o Liberalismo permitiu estabelecem-se em Portugal, maioritaria-
mente, judeus ligados à indústria e ao comércio, assim como gente de ciências e letras, oriundas
do centro da Europa e do norte de África. Foi, contudo, como consequência da 1.ª e, especial-
mente, da 2.ª Grande Guerra e do ambiente de intolerância religiosa e étnica que à data
emergia, particularmente na Europa central, que a Portugal acorrem muitos judeus que se
estabelecem nas grandes cidades ou em zonas onde a indústria, sobretudo a ligada aos lanifí-
cios, estava mais enraizada. Germina assim, ainda que muito pontualmente, uma nova vaga de
culto judaico em Portugal e consequentemente os estudos sobre o seu passado começam a ser
aprofundados depois de séculos de esquecimento. Naturalmente que a temática religiosa e a
genealógica foram as que mais se desenvolveram, especialmente a partir da implantação da
República. Os testemunhos materiais ficaram sempre algo esquecidos até à chegada a Portugal
de Samuel Schwarz, em 1914. Este Engenheiro de Minas, natural da Polónia, procura refúgio em
Portugal e aqui aplica os seus conhecimentos na exploração de volfrâmio tão necessário
à indústria metalúrgica que o esforço de guerra exige. Embora a sua formação de base fosse a
engenharia de minas o desejo de conhecer o passado dos seus prováveis antepassados judeus
em Portugal leva-o a encetar uma pesquisa crescente sobre testemunhos antigos, especialmente
materiais, das velhas comunas judaicas em Portugal. Samuel Schwarz torna-se assim, assumida-
mente, no primeiro investigador de Arqueologia Judaica em Portugal. A identificação, aqui-
sição, estudo e valorização da Sinagoga Medieval de Tomar, assim como a sua reabilitação
enquanto espaço de oração e museu, para além da constituição da sua vasta biblioteca especiali-
zada, foi o objetivo seguido por este erudito até à sua morte, em 1953.

Lucerna romana com símbolos judaicos (Museu de Évora)

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CASA DO ALENTEJO – CULTURA, LIBERDADE E SOLIDARIEDADE

Samuel Schwarz inicia, desta forma, uma nova área de investigação em Arqueologia, que após a
sua morte ficou muitos anos esquecida e que só foi seriamente retomada em 1984, exatamente
na sua Sinagoga de Tomar, com as escavações arqueológicas aí realizadas por Maria La Salete
da Ponte.
Se o estudo do património material judaico tem início ainda na primeira metade do século XX,
é só na segunda metade desse século que os estudos sobre essa temática se desenvolvem e de
forma pouco consistente e em zonas geográficas muito específicas. Depois de Samuel Schwarz,
seguem-se os trabalhos de La Salete da Ponte, igualmente sobre a Sinagoga de Tomar, os de
Adriano Vasco Rodrigues com identificação de testemunhos materiais em judiarias na zona da
Beira Alta, assim como, ainda que indiretamente, para o interior norte do País, especialmente
em Belmonte, os desenvolvidos por Maria Antonieta Garcia. São, pois, muito restritos os
estudos arqueológicos diretos e também os indiretos sobre este tema. Chegamos, deste modo,
aos últimos anos da década de oitenta do século XX.

Lápide funerária judaica de Mértola


do séc. V (CAM)

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Se as investigações sobre o mundo material das comunidades judaicas são, como vemos, muito
restritas, já no que se reporta a estudos baseados em documentação escrita, eles pululam prati-
camente desde que o Liberalismo se implanta e, consequentemente, a Igreja Católica perde
algum poder e capacidade persecutória. É bem verdade que desde as bem expressas e despre-
zíveis referências sobre os que a partir das “pedras” tentam conhecer o passado, proferidas por
Fernando Oliveira em relação ao seu mestre André de Resende, quase todos os que investigam
o passado a partir da documentação escrita teimam em ignorar as fontes materiais. Even-
tualmente, também por essa razão, os estudos sobre os testemunhos materiais judaicos são tão
escassos e restritos. Chegamos, desta forma, aos finais dos anos oitenta do século XX. Por essa
altura somos quase que coagidos a iniciar uma campanha de escavações de salvamento na de-
nominada Sinagoga Medieval de Castelo de Vide. Esse edifício, ainda na posse de um privado,
começa a ser recuperado e envernizado a partir dos finais da década de setenta, claramente com
o objetivo de se transformar num polo de atração turístico, como se de uma original sinagoga
medieval se tratasse. Localizado em plena judiaria de Castelo de Vide, com portas ogivais, numa
delas abre-se uma mezuzah igual a outras que na mesma zona se conhecem, em especial na
casa em frente, onde duas se rasgam na mesma ombreira. Para além da mezuzah, no seu interior,
em frente à porta principal e escavada na parede, uma muito argamassada estrutura é divulgada
após as obras de recuperação do imóvel nos finais da década de setenta do seculo XX. Este
armário e peanha anexa são apelidados pelos que recuperaram o imóvel de “tabernáculo” e o
espaço divulgado como Sinagoga Medieval. Se a estrutura mais não for do que uma “bilheira”
ou “pilheira” como recorrentemente se apelidam estes populares armários, denominar-se-ia de
Hekhal, ou Aron Hakodesh.

Cabeceira de sepultura medieval de Marvão


com Menorah (MMM)

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CASA DO ALENTEJO – CULTURA, LIBERDADE E SOLIDARIEDADE

Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos na denominada Sinagoga de Castelo de Vide embora


nada tivessem permitido identificar diretamente relacionado com a comunidade judaica, para
além da mezuzah e da sua localização em pleno coração da zona mais antiga da judiaria instala-
da naquela vila alentejana, incentivaram o desenvolvimento de um projeto de investigação
pioneiro em Portugal tendo em vista a identificação de testemunhos judaicos, primeiramente só
no Alentejo e numa fase posterior em toda a raia portuguesa e nalgumas povoações da atual
Espanha, que reconhecidamente apresentavam maiores comunidades judaicas. Num primeiro
momento este projeto foi subscrito por mim e por Carmen Balesteros e numa fase subsequente
apenas por esta investigadora, constituindo-se no seu tema de tese de doutoramento, mas que
por motive do seu prematuro falecimento não chegou a ser concluída. Esse projeto de investi-
gação, ainda que não tivesse chegado ao fim, permitiu identificar diversas sinagogas, tais como
a de Estremoz, Cabeço de Vide, Elvas, Évora, Campo Maior ou Arronches, escavar as sinagogas
medievais de Valência de Alcântara e a de Évora e delimitar materialmente várias judiarias,
como a de Castelo de Vide, Covilhã, Castelo Branco, Belmonte, Valênciade Alcântara, Santarém,
Évora, Trancoso, Estremoz, Alpalhão, Elvas, Portalegre, entre outras. Foi na Sinagoga Medieval
de Évora, conhecida como a “Grande”, local que hoje acolhe uma unidade hoteleira, a Pensão
Portalegre, que promovemos escavações arqueológicas. Diz-nos a documentação escrita que
após a expulsão/conversão dos judeus em Portugal a Sinagoga de Évora terá sido de imediato
incendiada e o seu espaço terá passado para a posse do Bispo de Ceuta que, à data teria residên-
cia em Évora e aqui terá erguido uma habitação. A edificação que hoje aí existe, a Pensão Por-
talegre, parece ter recuperado a edificação do Bispo de Ceuta, cujas memórias se resumem hoje
apenas a um nicho e a uma cruz a encimar uma segunda entrada. Ocupa a estrutura principal
da Pensão Portalegre apenas uma parte do espaço que pertenceria à sinagoga. Um jardim e um
quintal, que ao tempo da sinagoga seriam áreas cobertas, tanto mais que é no muro delimitador
externo deste espaço que se observa uma porta ogival com marca na mezuzah e uma concavi-
dade paramentada viradas a nascente, seriam os espaços que permitiriam proceder a sondagens
arqueológicas para identificar eventuais testemunhos que nos possibilitassem melhor conhecer
a organização da Sinagoga Grande de Évora. Autorizados pelo proprietário da Pensão Portale-
gre procedemos à abertura duma pequena sondagem arqueológica na zona central do quintal,
por entre as laranjeiras que aí florescem. Sob uma camada de terra humosa identificaram-se
diversos níveis de aterros onde ocorriam pedras argamassadas, com sinais de fogo, madeiras
queimadas e abundantes manchas de cinza, pregos e fragmentos cerâmica de vários períodos,
balizáveis entre os finais da Idade Média e o século XVIII. Com recursos financeiros muito
reduzidos e limitados a um espaço restrito entre laranjeiras não foi possível alargar a sondagem,
que pouco nos veio a elucidar quanto à organização do antigo templo. Na área do jardim não
procedemos a qualquer sondagem porque a área disponível entre as laranjeiras era muito re-
duzida. Contudo, no jardim identificaram-se um capitel e uma base de coluna de grandes di-
mensões. A decoração do capitel aponta para uma cronologia dos finais da Idade média e a
coluna a que pertenceriam estes elementos, que se conservam no local a servir de mesa, pode-
riam fazer parte de uma das quatro colunas que comumente caracterizam o espaço central das
sinagogas sefarditas. No seguimento do projeto de estudo sobre testemunhos materiais judai-
cos, iniciou-se o levantamento de marcas de mezuzot e outras grafias religiosas como os cruci-
formes e os vulgares riscados, igualmente em ombreiras de porta que, na grande maioria, se
concentram nas zonas que foram habitadas por judeus, permitindo estabelecer uma conexão
natural entre a expressão de uma nova fé, geralmente forçada, com as mezuzot e desta forma
reconhecer a mais que provável ligação a habitações de cristãos-novos, cuja distribuição

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geográfica coincide, de sobremaneira, com as judiarias medievais e, preferencialmente, nas


localidades que maior número de judeus expulsos pelos Reis Católicos acolheram. Se estes
testemunhos materiais foram objeto de estudo, também os cemitérios das comunas judaicas
foram procurados e encontrados, como o de Évora, Castelo de Vide, ou mesmo o de Elvas,
embora muito dissimulados ou totalmente destruídos. Para além de cabeceiras de sepultura
expressamente judaicas como as de Marvão, onde a Menorah é bem evidente, também as decora-
das com hexalfas, pentalfas e outros símbolos identitários destas comunidades foram registados
em diversas povoações, particularmente as raianas do Alentejo, por ter sido aí que se concen-
trou a grande maioria os judeus perseguidos pelos reis Fernando e Isabel.

Inscrição funerária com caracteres hebraicos


do Museu de Évora (SMT)

Portas da “Sinagoga” medieval


de Castelo de Vide com marca
na mezuzah.

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Se os testemunhos materiais judaicos em espaço urbano foram o principal objeto deste projeto,
o outro mundo material do Alentejo guardado em arquivos, bibliotecas e museus não foi es-
quecido. Entre estes haverá que destacar as já referidas cabeceiras de sepultura medievais de
Marvão, a Mezuzah de pergaminho protegido por uma cana e a lucerna judaica, ambas de
Évora, as lápides sepulcrais de Mértola, ou a pedra de anel da Ammaia, entre outros. Contem-
plava ainda este estudo a compaginação da informação material com a documentação escrita,
especialmente a preservada junto aos Processos da Inquisição, fundamental para a clarificação e
delimitação das judiarias ou para o reconhecimento de práticas rituais e seus instrumentos. A
toponímia em geral foi outro dos aspetos contemplados nesta investigação determinante no
reconhecimento de muita informação material. Topónimos tão comuns e presentes em tantas
povoações de origem medieval, como Rua da Judiaria, da Sinagoga, da Esnoga, da Escola, do
Banho, do Poço, do Pocinho, do Mercado, da Fonte, do Físico, do Judeu, do Mestre (disto e
daquilo), do Açougue, da Porta, da Cancela, etc, etc, foram igualmente registados e sinalizados.
A presença de lápides, maioritariamente parietais urbanas, com a informação “CABIDO”, por
norma aplicadas em fachadas de casas anteriormente pertencentes a judeus e posteriormente à
sua expulsão apropriadas pela Igreja Católica, foram também tidas em conta e determinantes
na definição das judiarias. A métrica de 20 côvados, por 20 côvados, correspondente às me-
didas do Santo dos Santos do Templo de Salomão, na medieval e errónea equivalência entre
cúbitos e côvados, transposto para as dimensões das sinagogas sefarditas, que convertida em
metros corresponde a valores que variam entre os 8 e os 10 metros, dependendo da oscilação
dos côvados ao longo dos tempos e que permitiu confirmar a existência de sinagogas na malha
urbana de algumas vilas e cidades e até determinar a data das suas construções. Outros ele-
mentos arquitetónicos foram registados, como a presença de frisos, mais ou menos decorados,
duas portas na mesma frontaria, ogivais ou não, uma de acesso ao piso superior e outra à
venda no piso inferior, elementos decorativos como leões, aves, temas vegetalistas tais como
palmas, pinhas, ou romãs, ou caracteres do alfabeto judaico, juntos ou dispersos. Os colunelos
encimados por esferas, gravados ou, destacados nas duas jambas das portas como os que, recen-
temente identificámos em Alter do Chão, em memória das duas colunas, a Boaz e a Jaquim, que
ladeavam a porta do templo de Salomão e que também neste caso identificam a presença de uma
sinagoga, com planta muito adulterada, mas ainda mantendo uma permanente nascente no seu
interior, foram sempre tidos em conta e devidamente inventariados.
São pois estes os principais testemunhos materiais das comunidades judaicas ou cripto-
-judaicas que se preservaram no País, mas sobretudo no Alentejo, mais ou menos adulterados,
dissimulados ou intensionalmente fraturados e que nos permitem ainda hoje reconhecer a
presença destas comunidades que se estabeleceram na maioria das povoações mais comerciais e
industriais portuguesas e especialmente da zona raiana, por aí se terem fixado muitos dos judeus
expulsos pelos Reis Católicos e que se juntaram aos que já em Portugal se encontravam. Por esse
motivo, todo o Alentejo está pejado destes testemunhos, especialmente as povoações raianas, ou
nos maiores centros urbanos onde o comércio pululava ou as gentes endinheiradas necessitavam
dos saberes, artes e dinheiro dos judeus, como foram os casos de Évora, Elvas e Beja.
Terá sido este projeto, abruptamente interrompido, o maior impulso que a investigação so-
bre os testemunhos materiais judaicos em Portugal alguma vez conheceu, depois do percursor
trabalho de Samuel Schwarz. Esta investigação, parada há mais de 15 anos, recebe agora novo
fôlego com os estudos sobre esta temática desenvolvidos por Beatriz Felício a partir do espólio
científico de Carmen Balesteros, que agora se guarda no Laboratório de Arqueologia da Uni-
versidade de Évora.
J.O
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Porta com duas mezuzot junto


à “Sinagoga” de Castelo de Vide.

Interior do espaço onde se ergueu


a Sinagoga grande de Évora,

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Os vestígios materiais judaicos e o seu interesse na sociedade portuguesa foram resultados de


séculos de História da presença judaica na Península Ibérica. O mesmo ocorre com as imateria-
lidades, cuja prevalência ultrapassa conceções religiosas e culturais conscientemente associadas
ao judaísmo. A verdade é que a cultura e a religião da minoria influenciaram a maioria cristã, da
mesma forma que o cristianismo e o contexto histórico-cultural ibérico influenciaram o ju-
daísmo sefardita. Chegam-nos assim testemunhos das práticas e costumes judaicos, memórias
que permanecem nas vivências portuguesas, verificáveis na região do Alentejo.
Já acima mencionámos o contributo de Samuel Schwartz, sendo que não podemos desconside-
rar a sua importância também para a recuperação e divulgação da memória judaica. Na década
de 1920, ao contactar com as populações da Beira Baixa e de Trás-os-Montes, o engenheiro
descobre comunidades marranas que mantêm secretamente ligações ao judaísmo apesar dos
séculos de intolerância, destacando-se o caso de Belmonte. As descobertas de Schwartz, e mais
notavelmente a obra Os Cristãos-Novos em Portugal no século XX (1925), têm impacto a nível
nacional e internacional. As décadas de 20 e 30 do século XX assistem a um movimento de
“recuperação” destas comunidades marranas – a Obra do Regate, protagonizada por Barros
Basto, procura a identificação e normatização religiosa dos grupos que, impedidos de prati-
carem abertamente o culto, adaptaram práticas e crenças judaicas ao contexto que a centenária
intolerância religiosa proporcionava (Martins, 2021, 540).

Porta da Sinagoga Medieval


de Alter do Chão com os dois
colunelos em memória das colunas
do Templo, Jaquim e Boaz.

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Assim, verifica-se que as reminiscências judaicas são também imateriais e contemporâneas.


Porém, não necessitam de ser integradas nas práticas e comunidades judaicas ou marranas,
estendendo-se além do seio das mesmas, penetrando na vivência da maioria. A presença de
judeus no espaço português foi impactada por diversas atitudes face ao judaizante, o qual se
adaptou às realidades socioculturais do seu tempo, influenciando-o a agir de determinada
forma perante a religião. A tolerância e coexistência de credos no Portugal medieval, o Édito
manuelino, a assimilação, a instalação do Tribunal do Santo Ofício, a conversão forçada, a
manutenção da crença em segredo e na diáspora, o contacto com judeus estrangeiros, as al-
terações do paradigma político, social e religioso dos séculos XIX e XX... Tudo isto concedeu
contornos específicos ao judaísmo português e à sua perceção pela sociedade, deixando marcas
na cultura e quotidianos. Ao refletirmos sobre vestígios judaicos, refletimos também sobre
vestígios da cristã-novice, do marranismo e do criptojudaísmo.

Sinagoga Medieval de Estremoz


vendo a marca na mezuzah.

Estes contextos e os seus impactos têm sido alvo de estudos pela academia, sobretudo a partir
da segunda metade do século XX. Consideremos autores como Meyer Kayserling, Maria José
Ferro Tavares, Jorge Martins ou Esther Mucznic, que analisaram não apenas a História das
comunidades judaicas em Portugal, mas também os seus impactos. Da política e cultura à
economia e sociedade, tornou-se inegável a importância do judaísmo para o espaço português.
Porém, estas tendem a ser abordagens históricas, que não se propõem a focar as manifestações
atuais da presença judaica na cultura popular e tradicional. Para isso, há que recorrer a análises
etnográficas e antropológicas, destacando-se contributos como o de José Leite Vasconcelos,
com vasta produção na primeira metade da centúria de 1900, ou de Teófilo Braga, os quais
encontraram origens semita, hebraica e/ou judaica em algumas tradições regionais portuguesas.
No estudo das reminiscências imateriais judaicas, as principais análises têm vindoa integrar-se
no contexto da História Regional e Local no Norte Interior, espaço que, como vimos já, é
central para a identidade e História judaica em Portugal, assim como em Tomar e Lisboa. Mas
também as análises sobre memórias sefarditas na diáspora têm conseguido tração nas últimas
décadas, com nomes como Anita Novinsky a salientarem o impacto da presença de judeus e
cristãos-novos no Brasil, deixando aí práticas e costumes que se conservam até à atualidade.
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CASA DO ALENTEJO – CULTURA, LIBERDADE E SOLIDARIEDADE

No caso específico do Alentejo, e apesar do crescente interesse pelas suas realidades cul-
turais, não tende a abordar-se o impacto da presença judaica nas vivências desta região. Não se
deteta aqui um fenómeno semelhante ao “resgate” dos marranos das Beiras e de Trás-os-Montes,
ainda que a importância da minoria no espaço alentejano seja evidente e comprovada, como
vimos já, pelos vestígios arqueológicos. Note-se que as comunidades judaicas alentejanas foram
centrais às trocas económicas, levando a um contacto próximo com judeus castelhanos, os
quais encontraram refúgio deste lado da fronteira após o Édito de Expulsão dos Reis Católicos.
Simultaneamente, foi em Évora que se estabeleceu o Tribunal do Santo Ofício, em 1536, incen-
tivando à perseguição e ao combate ao judaísmo. Logo, este espaço não esteve marginalizado na
História dos Judeus em Portugal – pelo contrário, foi-lhe central. Porém, um levantamento
exaustivo da influência judaica na cultura portuguesa e, particularmente, na Alentejana, não foi
ainda efetuado, sendo uma proposta árdua e de complexa concretização.
Porém, estes vestígios imateriais são expressivos no nosso quotidiano. Na língua, nas
tradições, na gastronomia, na arte ou na antroponímia, a identidade e experiência judaicas
contribuíram para a formação das identidades portuguesa e alentejana como as conhecemos
hoje. Não sendo o nosso propósito levantar herculeamente todas as reminiscências imateriais
do judaísmo no Alentejo, deixamos algumas das instâncias em que a memória desta minoria se
manifesta na cultura e nas vivências populares.

Cruciformes em ombreira de porta da


Judiaria Medieval de Alpalhão.

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CASA DO ALENTEJO – 100.º ANIVERSÁRIO

A utilização coloquial do “fazer judiarias” ou “judiar”, por exemplo, e com significados de


“fazer mal” ou “maldades”, evoca uma conotação negativa do judaísmo, associada à perseguição
do judeu e à violência de que era alvo. Já expressões como “abracadabra” são por vezes associa-
das ao misticismo judaico, ou Kabbalah, ainda que tal origem não seja comprovada.

Bolos fintos pascais de tradição


judaica de Marvão.

Por outro lado, a memória de determinados momentos históricos impactantes para esta comun-
idade está embrenhada em expressões como “ficar a ver navios” – significando desilusão –, que,
entre outras explicações, poderá remontar aos judeus que, aquando da expulsão em 1497, não
conseguiram abandonar o reino por mar. A também comum utilização de “servir a carapuça”,
indicando culpa, poderá ser reminiscente da experiência judaica. Primeiramente, pela Kipá
usada pelos judeus na cabeça, com simbologia religiosa, e, ainda, pela carapuça que o Tribunal
do Santo Ofício fazia vestir aos seus condenados.

Diferentes doces pascais


de tradição judaica de Marvão

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CASA DO ALENTEJO – CULTURA, LIBERDADE E SOLIDARIEDADE

Permanecem ainda hebraísmos na língua portuguesa, mas em associação ao catolicismo e à


cultura greco-latina, sendo o caso de “Páscoa”, “amém” ou “sábado”. Já a expressão “pensar na
morte da bezerra” – referindo-se a um estado contemplativo e distraído –, invoca as imagens
veterotestamentárias da adoração do bezerro de ouro no êxodo (Êxodo 32:4) e do sacrifício a
Deus (Levítico 9:2).
A nível onomástico, é crença popular que determinados apelidos indicam ascendência se-
fardita de uma família ou de um individuo, tanto mais tratando-se de nomes de plantas, que
teriam sido adotados pelos judeus convertidos em 1497 – “Silva”, “Silveira”, “Oliveira”, “Perei-
ra” ... Não obstante, esta noção não se pode tomar por factual ou normativa, uma vez que estes
eram já comuns na língua portuguesa e utilizados por cristãos-velhos. Todavia, verificaram-se
efetivamente mudanças, uma vez que, num reino que se desejava religiosamente unido por um
só credo após a expulsão dos judeus e muçulmanos, os cristãos-novos não puderam manter os
seus nomes judaicos.
Em vez de associados à cristã-novice, alguns apelidos relacionam-se com crenças judaicas,
não deixando, por isso, de permanecer na onomástica portuguesa. É o caso de “Gadelha” ou
“Guedelha”, cuja origem pode ser detetada em Gedaliah (ou “Gedalias”, protetor de Jeremias),
podendo também ser utilizado em associação aos cabelos dos judeus, com os seus penteados
específicos, advindos da prática de não cortar ou rapar aslaterais do cabelo nem a barba (Levíti-
co 19:27). Outros exemplos surgem no Alentejo, com nomes próprios ou de família claramente
inspirados no judaísmo, como Sigagoga, Sinoga ou Esnoga, Já nomes próprios como Jacob,
Ester, Isaque ou Saul advêm do Antigo Testamento, muitos originalmente aramaicos, mas
alusivos à tradição hebraica.

Cachafrito pascal de tradição judaica


de Marvão (cabrito frito / estufado).

Paralelamente, algumas das tradições praticadas no Alentejo são evocativas da religião judaica,
tais como o costume de pensar o sábado como dia de descanso. É uma reminiscência do Shabat,
dia reservado pelos judeus ao repouso e à oração por mandamento de Deus (Êxodo 20:9-10).
No judaísmo, este dia começava a ser preparado na sexta-feira, garantindo-se então a limpeza
das casas, o banho e as roupas lavadas. No Alentejo permanece esta prática de reservar a ma-
nutenção e limpeza do lar para o ultimo dia-útil da semana, por vezes com uma particularidade
– a de limpar a casa para dentro a partir da porta da rua, de forma semelhante ao que manda a
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tradição judaica, por respeito à mezuzah. Muitas comunidades rurais alentejanas, e particular-
mente na zona raiana, reservam para estes dois dias da semana – sexta-feira e sábado –, os pro-
cedimentos de limpeza doméstica e higiene própria, como o banho, o fazer a barba, cortar as
unhas, num conjunto de hábitos que, ainda que não seguindo exatamente os mandamentos
judaicos, poderá encontrar nas tradições sefarditas a sua origem.

Marca do Cabido (da Sé) em casa


da Judiaria de Évora.

Ocorre ainda que, em algumas famílias alentejanas, se desencoraja, especialmente aos mais no-
vos, olhar o céu noturno, procurando evitar a observação da lua e das estrelas. A relação entre
este costume e o judaísmo, que possui um calendário lunar, foi mencionada por Teófilo Braga
na sua obra O Povo Português (1885). Segundo o autor, o entendimento de “sina” na cultura
portuguesa estará relacionado com a observação dos atros pelos povos semitas. Num desfeche
negativo, daqui resultaria o termo “desastre”, remetendo-nos novamente para a memória
linguística. (Braga, 1986, 37-177). Contudo, esta prática terá sofrido os impactos da perse-
guição inquisitorial – de forma a calendarizarem as suas celebrações, os judeus guiavam-se
pelos astros, prática que lhes foi associada e que por cristãos-novos e cristãos-velhos procurou
ser evitada para desassociação com o credo proibido.
Igualmente evidência do sincretismo cultural, a gastronomia sefardita foi fortemente influen-
ciada pela portuguesa e vice-versa, numa complexa fusão que nem sempre é evidente. A inte-
gração da alheira, enchido preparado por cristãos-novos judaizantes que procuravam evitar o
consumo de porco, nos pratos portugueses é exemplo disso. Já o costume mediterrânico de
valorizar a presença do pão e sal numa mesa à refeição aproxima-se da valorização destes nas
receitas e refeições judaicas. Não esqueçamos, ainda, a comum reticência em consumir carne
com sangue, a qual evoca os preceitos da alimentação Kosher. Aliás, a prática de sangramento
dos animais, por vezes publicamente e com um momento de oração, é comum em algumas
localidades alentejanas, como Castelo de Vide ou Marvão, onde o sangue é reaproveitado na
confeçãode pratos para os mais pobres.
No Alentejo, os costumes judaicos podem ser associados não só aos rituais de preparação de
alimentos, mas também à preferência face a alguns alimentos, como o borrego, consumido
habitualmente na Páscoa católica. A lebre, por outro lado, e apesar da sua abundância na
região, não é um alimento preferencial, o que poderá relacionar-se com os preceitos judaicos,
que condenam o consumo de animais necrófagos e bípedes, por isso menos puros. Também na
Páscoa, e com grande expressão no Alto Alentejo, os típicos bolos fintos, de massa ou folares
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evocam a gastronomia judaica, nomeadamente o pão ázimo, sem fermento e com a utilização
de ervas aromáticas, ou o pão Challah.
Por fim, note-se a diversidade da cultura alentejana, portuguesa e mediterrânica, nas quais a
presença de diversos povos e religiões impactaram os símbolos e crenças. Disse José Leite
Vasconcelos que “quando um símbolo aparece numa terra como a nossa, pisada por tantos e tão
variados povos que o possuíram, tais como Romanos, judeus e Árabes, não de torna coisa fácil
determinar com precisão a proveniência imediata do mesmo símbolo” (Vasconcelos, 1996, 49-
-111). A crença popular no mau-olhado é exemplo disso, assim como alguns dos amuletos e
talismãs para o combater – pensemos na Hamsa, importante tanto à religião judaica como à
islâmica. Bastante evidente é também a utilização da estrela de cinco bicos enquanto motivo,
que imediatamente poderíamos associar à estrela de David ou de Salomão. Porém, é utilizada
fora da tradição judaica, principalmente na maometana, com significados e origens diferentes,
que remontam a um período anterior à romanização. No Alentejo, a mais evidente utilização
deste símbolo é o brasão de armas de Viana do Alentejo. Este contém dois signos de Salomão
ou estrelas de David, os quais, de acordo com Francisco Baião “testemunham provavelmente a
existência, logo na fundação da vila, de uma expressiva comunidade judaica que se manteve,
pelo menos, até ao início dos século XVI” (Baião, 2017, 46).

Bênção dos borregos


em Castelo de Vide de
tradição judaica.
(Veludo Azul)

Ainda que nem sempre conscientes ou claros, os vestígios da presença judaica permanecem
em Portugal e no Alentejo enquanto parte de uma memória e identidade coletiva formada ao
longo dos séculos. Não constituindo um conjunto material arqueológico, estas reminiscências
integram um património cultural que importa registar, estudar e preservar. Mais que um levan-
tamento extensivo das reminiscências imateriais do judaísmo no Alentejo, fica patente a im-
portância da memória das comunidades judaicas na construção do cultural, quotidiano e
popular nesta região.

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CASA DO ALENTEJO – 100.º ANIVERSÁRIO

Bibliografia citada
BAIÃO, Francisco. (2017). “O nascimento de Viana.” in Farrica, Fátima e Baião, Francisco, Os Forais Manue-
linos de Aguiar e de Viana do Alentejo. Lisboa: Caleidoscópio. 29-79.
BRAGA, Teófilo. (1986). “Superstições Populares Portuguesas.” in O Povo Português II. Lisboa: Etnográfica
Press. 37-177. books.openedition.org/etnograficapress/3996
MARTINS, Jorge. (2021). “O fenómeno marrano em Portugal.” in Os Judeus em Portugal. Lisboa: Âncora
Editora. 523-559.
VASCONCELOS, José Leite de. (1996). “Signum Salomonis: Sumário.” in Signum Salomonis – A Figa – A Barba
em Portugal. Lisboa: Etnográfica Press. 49-111. books.openedition.org/etnograficapress/4380

Bibliografia recomendada

BALESTEROS, Carmen. (2013). Arqueologia dos judeus peninsulares: os casos do Alentejo e Extremadura
espanhola no contexto peninsular. In C. G da Silva (coord.), Judiarias, Judeus e Judaísmo – atas do XV En-
contro de Turres Veteras. Lisboa: Edições Colibri. 165-182.
BALESTEROS, Carmen. (1992). Menorot em Cabeceiras de Sepultura Medievais de Marvão. Ibn Maruán –
Revista Cultural do Concelho de Marvão, n.º 2, 113-120.
BALESTEROS, Carmen. (1994-1995). A Sinagoga Medieval De Évora (elementos para o seu estudo).
A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal de Évora. II, série I.179-211.
BALESTEROS, Carmen e OLIVEIRA, Jorge. (1993). A Judiaria e a Sinagoga de Castelo de Vide. Ibn Maruán –
Revista Cultural do Concelho de Marvão, n.º 3, 123-152.
MARTINS, Jorge. (2021). Os Judeus em Portugal. Lisboa: Âncora Editora. MUCZNIK, Esther (2021). Judeus
Portugueses. Lisboa: Manuscrito Editora. TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. (1982). Os Judeus em Por-
tugal no Século XV.Lisboa: Guimarães e C.ª Editores.
SKOLNIK, Fred (Ed.). (2006). Encyclopaedia Judaica. 22 vols. Nova Iorque: Macmillan.

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