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Felipe
Silvana Vilodre Goellner (orgs.)
6 a reimpressão, 2018.
034011 CD-370.11
EDITORA
Indices para catálogo sistemático:V VOZES
Discurso é aqui entendido a partir do sentido que Michel Foucault atribuiu a este termo
quando afirma referir-se a um conjunto de enunciados de um determinado saber
articulados entre si. Saberes estes que são historicamente construídos em meio a disputas
de poder (FOUCAULT, 1995).
Um corpo não é apenas um corpo. É
também o seu entorno. do que um conjunto de
músculos, ossos, vísceras, reflexos sensaçÖeS, o corpo é
também a roupa e os acessórios que o adornam, as
intervenções que nele se operam, a imagem que se
produz, as máquinas que nele se acoplam, os
sentidos nele se incorporam, os silêncios que por ele
falam, os vestí-
que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim,
é sem limite de possibilidades sempre reinventadas e a
serem descobertas. Não são, portanto, as semelhanças
biológicas que definem mas, fundamentalmente, os
significados culturais e que a ele se atribuem.
O corpo é também o que dele se diz e aqui estou a
afirmar o corpo é construído, também, pela linguagem.
Ou seja, a linguagem não apenas reflete o que existe. Ela
própria cria o existente e, com relação ao corpo, a
Mais e linguagem tem o poder de nomeá-lo, classificá-lo,
definir-lhe normalidades e anormalidades, por exemplo,
dele que o que é considerado um corpo belo, joe saudável.
gios um Representações estas que não são universais mesmo
fixas. São sempre temporárias, efêmeras, inconse
o sociais variam conforme o lugar/tempo onde este corpo
circuvive, expressa-se, produz-se e é produzido. E
também onde educa porque diferentes marcas se
que incorporam ao corpo a de distintos processos
educativos presentes na escola, não apenas nela, visto
que há sempre várias pedagogias circulação. Filmes,
instituir, músicas, revistas e livros, imagens, propagandas são
também locais pedagógicos que estão, o tempo a dizer
vem nem
de nós, seja pelo que exibem ou pelo que ocultam.
tantes Ia,
também de nossos corpos e, por vezes, de forma tão
se partir
sutil nem mesmo percebemos o quanto somos
mas em
capturadas/os e produzidas/os pelo que lá se diz.
todo, Falar do corpo é falar, também, de nossa identidade dada
a centralidade que este adquiriu na cultura contemporânea
Dizem que
cujos desdobramentos podem ser observados, por exemplo,
no cresmercado de produtos e serviços relacionados ao
corpo, a construção, aos seus cuidados, a sua libertação e,
também,
ao seu controle. Pensemos nos investimentos da
denominada indústria da beleza e da saúde, cuja
cente sua
ampliação não cessa de acontecer. Adornos, cosméticos, Marc Bloch e Lucien Febvre. Essa corrente possibilitou a emergência de novos temas,
problemas e abordagens à pesquisa historiográfica, dentre eles as pesquisas sobre a
roupas inteligentes, tatuagens, próteses, dietas, suplementos historicidade do corpo.
alimentares, academias, cirurgias estéticas, medicamentos e de na definição do que seja um corpo nem mesmo tomam a
drogas químicas fazem parte de um sem-número de saberes, biologia como definidora dos lugares atribuídos aos diferentes
produtos e práticas a investir no corpo produzindo-o corpos em diferentes espaços sociais. Ou seja, não é pela biologia
diariamente. que se justificam determinadas atribuições culturais como outrora
Pensar o corpo da maneira como estou pensando, falando, foi comum no pensamento ocidental moderno e, diga-se de
escrevendo e sentindo pressupõe saberes ancorados em passagem, ainda é em algumas perspectivas contemporâneas de
determinados referenciais teóricos e políticos. Saberes que análise do corpo.
possibilitam, permitem e criam esse olhar sobre o corpo,
afirmando-o como um constructo histórico e cultural que, longe de Vejamos: por muito tempo as atividades corporais e esportivas (a
ser inquestionável, é um território de onde e para onde emergem ginástica, os esportes e as lutas) não eram recomendadas às mulheres
sempre outras e novas dúvidas, questionamentos, incertezas, porque poderiam ser prejudiciais à natureza de seu sexo considerado
inquietações. como mais frágil em relação ao masculino. Centradas em explicações
biológicas, mais especificamente, na fragilidade dos órgãos reprodutivos
Dois campos teóricos estão a subsidiar este texto. Os e na necessidade de sua preservação para uma maternidade sadia, tais
Estudos Culturais e a História do Corpo . Mesmo que estes proibições conferiam diferentes lugares sociais para mulheres e para
sejam campos difíceis de serem sumariamente explicitados, homens onde o espaço do privado - o lar - passou a ser reconhecido
inclusive pela abrangência que cada um possui, é pertinente como de domínio da mulher, que nele poderia exercer, na sua plenitude,
destacar que ambos possibilitam olhar o corpo de forma a as virtudes consideradas como próprias de seu sexo tais como a
desnaturalizá-lo, ou seja, de forma a questionar saberes paciência, a intuição, a benevolência, entre outras. As explicaçöes para
considerados pela teorização tradicional como verdadeiros tal localização advinha da biologia do corpo, representado como frágil,
não pela tenacidade de seus músculos, pela sua maior ou menor
ou, por vezes, únicos.
capacidade respiratória ou, ainda, pela envergadura de seus ossos, mas
Vale ressaltar que estes campos teóricos ao enfatizarem a pelo discurso e pelas representações de corpo feminino que nesse
dimensão cultural do corpo não negam sua materialidade biológi32 ca. No momento se operam.
entanto, não conferem a esta materialidade a centralida-
Ainda que essa fosse uma visão com muita circulação, por
exemplo, na sociedade brasileira do século XIX, é necessário dizer
que a vida escapa e que as fronteiras da interdição foram e são
3. Os Estudos Culturais têm sua origem a partir da fundação do Centro de Estudos
frequentemente rompidas. Naquele tempo, diferentes mulheres
Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra, na década de 60. do campo e da cidade inseriram-se em diferentes práticas
Este texto está fundamentado na vertente dos Estudos Culturais que contempla a corporais, esportivas ou não, cuja demanda de esforço físico era
perspectiva pós-estruturalista ancorada na produção de autores como Michel Foucault e
Jacques Derrida. Sobre este tema ler: SILVA, 1995, 1999; COSTA, 2000.
intensa, não só nas atividades de trabalho como nas de lazer.
Carregar peso, limpar, fazer longos percursos a pé, atuar nas
4, Considerado como uma abordagem da historiografia contemporânea, historicizar o colheitas, manejar maquinário pesado, jogar futebol, lutar, fazer
corpo se tornou possível a partir da corrente historiográfica denominada Nova História piruetas e lançar-se ao vazio num voo de trapézio eram atividades
cuja origem se dá na França no início do século XX em especial através dos trabalhos de
rotineiras de um grande número de mulheres que nem por isso
questão. zação que
práticas narrativas
da sua anatomia
serem infinitas luta
uma certeza:
cultural e histórica.
deixaram de ser mulheres ou sucumbiram frente às exigências Problematizar, por exemplo, os significados e a
Percorrer sente,
valoride força física. determinadas culturas atribuem a alguns identificar corpos,
truir as a eles associados, as hierarquias
Seus corpos colocaram em tensão diferentes possibilidadesque a representações, partir
ciar se estabelecem. Enfim, suas análises
de viver o ser mulher, portanto, podemos ler neles formas deanunciam
os diferentes rentes as histórias sobre os corpos ainda
romper com determinados essencialismos atribuídos, por espaços mos o que cadaque seja absoo corpo é ele mesmo uma
cultura e por cada contexto histórico, para o que seja, por exem- hoje aceitável. construção social, PIO,
masculinidade e feminilidade. histórias, procurar mediações tórias, mas que deentre
Desestabilizar verdades preconcebidas e romper com os es- excluir, mento de passado e prevestígios e ruÞturas, alargar olhares,
sencialismos são algumas das contribuições do campo outros. vo, teóricodesconsdesnaturalizar o corpo de forma
saudável e to de a
dos Estudos Culturais. E também das abordagens historiográfi- mulheres evidendiscursos que foram e são cultivados, em
difecas críticas que têm tomado o corpo como o locus de individuais investigae tempos, é imperativo para que
compreendação, seja pela ótica da medicina, da estética, da arte, da nutrição, é designado como sendo um
Este olhar
corpo desejável e da mídia, da psicologia, do lazer, da moda, etc.
mento, não é várias
intervenções hoje
vivenciamos,
momento histórico
culo XVIII e se corpo
adquire os
indivíduos.
vergir o que se
Esse período
mos o corpo
consolidaram
nossos corpos,
tância se dá, po
que, ao
Referências
CORBIN, Alan (1989). O território do vazio — A praia e o imaginário
ocidental. São Paulo: Companhia das Letras.
COSTA, Marisa V. (org.) (2000). Estudos Culturais em educação: mídia,
arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre:
UFRGS.
e sexualidade
e o "excêntrico"*
3 geralmente nos
confrontados com as ideias de
sentimos
às
O corpo como objeto de consumo
O corpo, tal como a vida, está em constante
mutação. As aparências físicas demonstram de
modo exemplar esta tendência: elas nunca estão
prontas, embora jamais estejam no rascunho. [...]
Cada corpo, longe de ser apenas constituído por leis
fisiológicas, supostamente imutáveis, não escapa à
história (SANT'ANNA, 2000: 50).
Significativas transformações - políticas, econômicas, sociais, culturais - ocorridas principalmente a partir do século XVIII em relação aos
conceitos de infância e sua respectiva educação, família, instituições educativas, em combinação com o acesso infantil a informações sobre
o mundo adulto, especialmente com o surgimento de novas tecnologias nas últimas décadas, como os meios de comunicação de massa e a
internet, têm mudado drasticamente as vivências infantis, acarretando o que alguns autores e autoras têm chamado de crise da infância
contemporânea ou até mesmo seu desaparecimento (POSTMAN, 1999; STEINBERG, 2001; CORAZZA, 2002; BUJES, 2003).
As representações de pureza e ingenuidade, suscitadas peIas imagens infantis, têm convivido com outras imagens, extremamente
erotizadas, das crianças, especialmente em relação às meninas (WALKERDINE, 1999; LANDINI, 2000; NECKEL, 1999, 2002). Tal processo
merece ser examinado com maior atenção e se constitui em um dos principais objetivos das pesquisas que venho desenvolvendo nos últimos
anos . Procuro discutir e pro-
1. Atualmente, coordeno a pesquisa "Infância, sexualidade e gênero: discutindo a 'pedofilização' da sociedade e o consumo de corpos infantis", que conta com a participação das pesquisadoras
Bianca Salazar Guizzo, Graciema de Fátima da Rosa e Judite Guerra. Em pesquisa anterior, concluída em dezembro de 2002, intitulada "E foram mais ou me-
rarquizá-los, a partir de suas diferenciações mais visíveis e invisíveis.e Com o surgimento dos veículos de comunicação de
Em nossa cultura os corpos constituem-se no abrigo de nossas massa, especial a TV, as crianças passaram a ser vistas
identidades (de gênero, sexuais e de raça). como pequeconsumidores, e a cada dia são alvos
Para Mary Del Priore (2000: 96), a construção social de uma constantes de propaAo mesmo tempo em que elas têm
dial.
identidade feminina está calcada, nos dias atuais, "quase que sido vistas como veí-
para de consumo, é cada vez mais presente a ideia da infância
exclusivamente na montagem e escultura desse novo corpo[...] um
corpo cirúrgico, esculpido, fabricado e produzido, corpo que é o centro objeto a ser apreciado, desejado, exaltado, numa espécie
das atenções e fetiche de consumo". Tal preocupação tem atingido "pedofilização" generalizada da sociedade. Tatiana Landini
(2000: chama atenção para o fato de haver uma "erótica
não só as mulheres, mas também as meninas, pois é comum
vel infantil" é, uma erotização da imagem da criança amplamente
observarmos em suas falas e comportamentos uma grande
templar veicupela mídia. "Não é difícil encontrar propagandas e
preocupação com a aparência. Recentemente, uma menina de seis
anúncios a criança é mostrada em pose sensual ou em um
anos disse à sua mãe que gostaria de comer apenas alface para não contexto sedução". Ao mesmo tempo em que se condena
correr o risco de engordar. Outra menina de apenas dois anos recusou- para
qualquer tipo relação sexual envolvendo um adulto e uma
se a colocar o casaco para não parecer gorda. O constante apelo à criança, como senforma mais terrível de violência sexual, vive-
beleza, que se expressa através de um corpo magro e jovem, e em se em uma culque produz constantemente imagens erotizadas
que, para se manter dentro desses padrões, precisa cada vez mais se nos das crianem especial de meninas.
submeter a sacrifícios cuidados, tem encontrado acolhida não só entre gandas. Os corpos vêm sendo instigados a uma crescente
mulheres mais maduras, mas também entre as jovens e meninas. Elas
erotizaamplamente veiculada através da TV, do cinema,
frequentam cada vez mais cedo as academias de ginástica, submetem-
da músidos jornais, das revistas, das propagandas,
se a cirurgias plásticas, fazem dietas, estabelecem pactos entre as
outdoors, e, mais recentemente, da internet, tem sido
amigas (ficar dois meses sem tomar refrigerantes, por exemplo), tudo 29) possível vivenciar novas modalidades de exploração dos
em nome da beleza. Se observamos as propa56 gandas de brinquedos isto corpos e da sexualidade. Tal processo de erotização tem
dirigidas às meninas, veremos que elas investem de forma importante lada produzido efeitos significativos na construção das
na ideia de cultivo à beleza como algo inerente ao feminino, aliada
onde identidades de gênero e identidades sexuais das crianças,
sempre ao supérfluo, ao consumo desenfreado, ou seja, não basta ter
especialmente em relação às meninas, como apontou
apenas a boneca tal, é preciso ter todos os modelos e variações da
Walkerdine (1999). Segundo ela, garotinhas atraentes e
mesma boneca e seus respectivos acessórios. Outros itens se somam
aos brinquedos, tais como produtos de maquiagem, roupas e a altamente erotizadas têm sido visibilizadas em
tura propagandas, cujas imagens têm mais similaridade com
calçados, perfumes, etc., na tentativa de reafirmar a beleza e a
ças, imagens provenientes da pornografia infantil do que com
vaidade como algo natural (NECKEL, 1999). dutos tos,
imagens psicoeducacionais.
Shirley Steinberg (1997, 2001) chama atenção para o fato de as
crianças terem sido descobertas como consumidoras em potencial a Também é interessante perceber o quanto os vários
partir da década de 50 do século XX, com o surgimento novas discursos em torno da sexualidade costumam colocá-la
tecnologias produzidas após a Segunda Guerra MunDesde então, uma como central à nossa existência, através de um discurso
série de produtos tem sido direcionada elas nos mais variados naturalizante e universal, produzindo assim poderosos
segmentos (indústria de brinquedos entretenimentos em geral, efeitos de verdade. No entanto, Jeffrey Weeks (1999)
vestuário, calçados, acessórios, prode higiene e limpeza - fraldas, observa que a sexualidade, embora tendo como suporte
cremes, xampus -, alimenmóveis, revistas e livros, dentre outros). um corpo biológico, deve ser vista como uma construção
Além disso, é possíobservar que os espaços têm sido planejados de social, uma invenção histórica, pois o sentido e o peso que
modo a conesse segmento da população (cf., por exemplo, os lhe é atribuído são modelados em situações sociais
culo como
supermercados e shoppings, que já dispõem de um lugar específico as
concretas.
crianças ficarem enquanto os pais vão às compras).
Sexualidade, pedofilia: algumas implicações pederastia (também chamada de efebofilia ) que consiste na relação
sexual de adulto com adolescente.
A tentativa de dessexualizar as crianças é um fenômeno
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pedofilia pode ser recente na história ocidental, pois até meados do século XVII
definida como a ocorrência de práticas sexuais entre um indivíduo meninos e meninas conviviam com o mundo adulto em todas
maior de 16 anos com uma criança na pré-puberdade (13 anos ou as suas nuances. Em outras sociedades, como na Grécia Antiga,
menos), classificando como doente a pessoa que as pratica. No a relação sexual entre adultos e jovens fazia parte de um
entanto, nem sempre foi assim. Na sua origem grega a palavra processo pedagógico. Na Índia Antiga, a casta dos nagar
"pedófilo" é composta pelo substantivo grego pais, que significa estimulava experiências sexuais de meninas antes da primeira
criança, e pelo verbo phileo, que corresponde a amar. Segundo menstruação. Sabe-se também que uma das esposas de
Landini (2002), com essa base, são encontrados dois substantivos Maomé tinha apenas 8 anos quando se casou com ele, já com
em grego antigo: paidophilos = aquele que ama as crianças, e 53 anos. Durante a Ida-
paidophilès = aquele que ama os meninos. Se recorrermos aos
dicionários poderemos perceber mudanças significativas em
relação ao conceito. Em dicionários mais antigos, datados da primeira
metade do século XX , por exemplo, encontraremos o termo "pedofilia" O termo "efebo" surgiu entre os gregos para designar o jovem do sexo masculino que
era iniciado na vida sexual e social por um homem mais velho. O casamento heterossexual
como sinônimo de tinha apenas efeitos práticos, uma vez que a relação amorosa considerada mais autêntica
se dava entre rapazes e homens mais velhos.
de Média e o Renascimento, o ideal de beleza feminina
2.O termo sexualidade é aqui empregado no sentido que lhe confere Weeks (1999), como estava calcado em atributos tipicamente característicos da
uma descrição geral para a série de crenças, comportamentos, relações e identidades sociais
e históricos. Cf. especialmente Michel Foucault (1993), em História da sexualidade.
infância daquela época, tais como: cabelos longos e louros,
maçãs do rosto salientes e uma atitude displicente. Vale
3. No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (1986), lembrar que grande parte das mulheres contraía núpcias
ainda é possível encontrar a mesma definição para pedófilo, ou seja, aquele que gosta de
crianças, e pedofilia é definida como qualidade ou sentimento do pedófilo. muito jovens, em geral com homens bem mais velhos.
amor às crianças e "pedófilo" como aquele que gosta muito de crianças. No Provavelmente, muitas de nossas avós e bisavós casaram-
entanto, nas versões mais recentes, "pedófilo" aparece como aquele que se ainda meninas. Portanto, as práticas sexuais entre
sofre de pedofilia, assumindo assim um crianças e adultos foram durante muito tempo, e em
caráter negativo, de doença, de anormalidade. "Pedofilia" é definida diversas culturas, toleradas e até mesmo estimuladas.
como um "[...]desejo forte e repetido de práticas sexuais e de Mesmo nos dias atuais, em dezenas de sociedades tribais da
fantasias sexuais com crianças pré-púberes" (FERREIRA, 1999). Melanésia, ainda se pratica o ato sexual com adolescentes, pois
No campo da medicina e psicologia há divergências quanto à imagina-se que, através da transmissão do sêmen de homens
forma de classificação e às estratégias de combate à pedofilia. Trata- adultos para as crianças, elas crescerão fortes e possuirão a
se, portanto, de um conceito amplo o bastante para explicar desde semente da vida. Em muitas regiões pobres do Brasil, bem como
práticas sádicas com crianças até a contemplação de fotos sensuais em outros países com populações miseráveis, as famílias
de meninas e adolescentes. costumam oferecer suas crianças, especialmente as meninas,
em troca de algum dinheiro. Caberia então perguntar quais
Como ressalta Luiz Mott (1989: 33), ao considerarmos a criança como
foram as condições que possibilitaram tais mudanças, fazendo
um ser inocente e indefeso, "aproximá-la dos prazeres eróticos equivaleria
com que determinadas práticas passassem a ser consideradas
a profanar sua própria natureza - a dessexualização da infância e
adolescência impõe-se como um valor humano fundamental da civilização impróprias, sendo alvo de controle por parte das autoridades
judaico-cristã". O autor observa que dentre as práticas sexuais mais médicas, religiosas e jurídicas. De que forma isto se deu e quais
repelidas pela sociedade ocidental contemporânea estão a pedofilia e a as implicações dessas mudanças?
Foucault ( 1993) observa que mecanismos específicos de 5. Camphausen (2001: 256) considera perverso aquilo que uma pessoa faz a outra sem seu
consentimento. "No contexto erótico/sexual pode ser qualificado como perverso a
conhecimento e poder centrados no sexo se conjugaram, desde o violação, a tortura, a clitoridectomia e todas as formas de sadismo e incesto em que se
século XVIII, através de uma variedade de práticas sociais e técnicas força uma pessoa ou animal sem seu consentimento.
de poder. Desta forma, a sexualidade de mulheres e crianças, o
No sentido foucaultiano, "governo" deve ser entendido em seu sentido político de
controle do comportamento procriativo e a demarcação de perversões regulação e controle, não se restringindo ao campo meramente administrativo ou
sexuais, vistas somente sob a ótica de patologia individual, produziram, burocrático.
ao longo do século XIX, quatro figuras submetidas à observação e ao
controle social, inventadas no interior de discursos reguladores: a
mulher histérica, a criança masturbadora, o casal que utiliza formas
artificiais de controle da natalidade e o "pervertido", especialmente o
homossexual. Cabe ressaltar, porém, que a definição do que deve ser
considerado perversão, anormal, abjeto, depende quase inteiramente
do marco de referência de uma determinada cultura, seja em nome da
religião, da boa e adequada educação, etc. Nossa sociedade vai
mudando de geração em geração também no que diz respeito aos
costumes e moralidades sexuais, como lembra Camphausen (2001)5.
Práticas até então vistas como naturais e comuns foram consideradas e
classificadas como problemáticas, necessitando, portanto, de controle
minucioso, através de tratamentos ou até mesmo de punições. Era preciso
governar os corpos e uma das principais características modernas de
governo é a sua vinculação e dependência a determinadas formas de
conhecimento sobre a população a ser governada6. Como refere Tomaz
Tadeu da Silva:
As modernas formas de governo da conduta humana
dependem, assim, de formas de saber que definem e
determinam quais condutas podem e devem ser
governadas, que circunscrevem aquilo que pode ser
pensado sobre essas condutas e que prescrevem os
melhores meios para torná-las governáveis.
O controle externo da conduta - aquilo que Foucault chamou
de "tecnologias da dominação" - combina-se com o
autocontrole - aquilo que Foucault chama de "tecnologias do
eu" - para produzir o sujeito autogovernável das sociedades
modernas. A produção desse sujeito autogovernável é
precisamente o objetivo da ação de instituições como a
educação (o currículo), a Igreja, os meios de comunicação de
massa, as instituições de "terapia"... Se para governar é preciso
conhecer os indivíduos a serem governados, para
autogovernar-se é necessário conhecer-se a si próprio (1995:
191-192).
Desta forma, o conhecimento produzido sobre a infância a
partir do século XVIII, suas características e necessidades,foi
consolidando aos poucos a ideia da criança como sujeito dedi.
reitos, merecedora de dignidade e respeito, devendo ser
preservada em sua integridade física e emocional. No século XIX nacionalidade são —
foram criadas várias leis para garantir proteção e bem-estar à tituintes de) redes de
infância, implicando um maior controle do Estado, inclusive em do poder, todas o das
relação à sexualidade infanto-juvenil. Passou-se, então, da sofrem sua ação.
jogos políticos, ou em
indiferença para com os abusos e práticas sexuais envolvendo
meio a relações
crianças, durante vários séculos, à vigilância constante da
sexualidade infantil, bem como de outras sexualidades, vistas a A partir da perspectiva teórica Estudos
partir de então como potencialmente doentias e perigosas. Culturais, creio ser fundamental estamos
Segundo Landini (2000) uma das principais preocupações relacionadas sendo subjetivadas por corpo e da
à sexualidade, atualmente, refere-se ao uso e à exploração sexual de sexualidade, permeados processo de
crianças, em suas mais diversas formas: pornografia, prostituição, estupro, erotização da sociedade femininos.
pos
incesto, etc. Estes temas apresentam-se, portanto, como um importante
desafio às instâncias de produção de saber, bem como aos responsáveis pela
elaboração e cumprimento das leis em defesa da infância e da juventude. encantamento adulto pela
Em janeiro de 1999 mais de 300 especialistas ligados à proteção de menores
e às empresas de comunicação se reuniram na sede da Unesco, em Paris, A história da humanidade, nos
para discutir a questão da pedofilia, o que demonstra a importância desta culturas, está repleta de situações geral
temática na atualidade. em
homens mais velhos - e riormente. Tais
Apesar de reconhecer a relevância destas discussões em torno práticas, que sinalizam infância e à
das leis de proteçäo à infância, especialmente no que diz respeito juventude, tem ganhado sociedades
à sua integridade física, emocional e moral, não é minha intenção,
ocidentais, tornando-se, vel de mercado.
nos limites deste capítulo, discutir aspectos pertinentes à
legislação sobre o tema, mas pretendo chamar a atenção para A partir da década de produtos ligados à
questões em torno da construção das identidades de gênero e sexuais prática sexual ceu com enorme rapidez.
na infância. Como argumenta Guacira Louro: Já na mente 300 mil jovens com menos
Ao afirmarmos o caráter relacional e múltiplo das comércio da pornografia só nos tou a
identidades, sua fluidez e sua inconstância, estamos reportagem da revista Super como Sri
sugerindo uma abordagem muito mais complexa. Lanka, Filipinas, República milhões com o
Articulando-se em variadas combinações, as turismo sexual de asiáticos, meninas têm
identidades de gênero, raça, classe, sexualidade,
religião,
sua virgindade
todas - constituídas por (e conspoder. Não há identidade fora exercitam e, Segundo artigo da revista Super Interessante, 2002,
simultaneamente, toAs identidades fazem parte dos melhor, as identidades se p. 39-46), em 1977 havia no mercado editorial
fazem políticas (2000: 68). envolvendo nudez de crianças, além de filmes Em um
dos programas de busca da web, se de 500 mil sites que
comercializam o erotismo
dos Estudos Feministas e dos analisar de que forma esses discursos
em torno do por um constante e crescene, em especial, dos cor-
infância
seus mais diversos países e sexuais envolvendo adultos crianças, como
apontei anteuma espécie de culto à cada vez mais espaço nas inclusive,
uma fonte rentáde 60 do século XX a oferta envolvendo menores
cresdécada seguinte, aproximadade 16 anos participavam do Estados
Unidos, conforme apon-
Interessante (2002) 7. Países Checa e Brasil arrecadam crianças. Em
alguns países leiloada em locais fre-
intitulado "Infância roubada" (maio/ americano mais de 250 publicações em que havia a
participação de menores. digitarmos teen nude, encontraremos mais infantil.
quentados por pedófilos. Tais práticas evidenciam um fascínioa
dos adultos pelas crianças na sua mais completa radicalidade.
Esse encantamento tem alimentado inúmeros romances, filmes,
minisséries, novelas e músicas. 1
1 . Segundo Camphausen (2001), as ninfas (do grego nymphae) simbolizavam o gozo sexual 2.Cf., por exemplo, a crônica de Vinícius de Moraes (1966), intitulada "Para uma
feminino. Antigamente eram vistas como belos espíritos da natureza que viviam em árvores, menina com uma flor"
nos cursos de água, montanhas, etc. No entanto, a palavra "nínfica" significa também
"demoníaca".