Etica Intercultural - E-Book
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ÉTICA INTERCULTURAL
(Re) Leituras do Pensamento
Latino-Americano
Tradução e revisão:
Dilnéia Tavares do Couto
e
Jovino Pizzi
2a edição
E-book
OI OSEDITORA
São Leopoldo
2021
Título original:
Ética Intercultural. Ensayos de una ética discursiva para contextos culturales conflictivos.
(Re) Lecturas del pensamiento latinoamericano. Santiago de Chile: Ediciones UCSH, 2003.
Editoração: Oikos
Tradução e revisão: Dilnéia Tavares do Couto e Jovino Pizzi
Capa e diagramação: Roberto dos Reis
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
De forma muito especial, quero agradecer aos colegas que me destinaram co-
mentários relevantes para que fosse possível construir o argumento deste livro, ao Dr.
Jean de Munck da Universidade Católica de Louvain, por sua acolhida e suas perspica-
zes observações ao primeiro rascunho deste texto, em minha última estada no inverno
de 2003. Meu especial agradecimento ao Dr. Raúl Fornet-Betancourt, da Universidade
de Aachen, por seu estímulo para a finalização deste trabalho e por escrever o prólogo
deste livro. Não gostaria de deixar de mencionar o quão motivador que foram os diálo-
gos sobre hermenêutica, ética e modernidade com alguns colegas hispânicos, entre os
que cabe citar, sobretudo, a José María Mardones, do CSIC, a Jesús Conill e Agustín
Domingo Moratalla, da Universidade de Valência.
1
Por patologia social se relaciona aos novos aspectos conjunturais relacionados às ciências em geral,
mas que permeiam e afetam a convivência social. As patologias sociais referem-se, pois, às anomias
que geram sofrimento, exclusão, humilhações e denigrem o conjunto das relações sociais. Por isso,
os termos diagnóstico e patologia não se limitam a um estado de ânimo pessoal ou à pessoa como
tal, pois sua abrangência se vincula aos contextos sociais e ao ambiente em geral. Como diagnóstico
social, as patologias estudam as situações que geram transtornos aos diferentes grupos de cidadãos,
ocasionando mal-estar e sofrimentos ao viver e ao conviver. Deste modo, o termo patologia se
relaciona a situações “psíquicas e físicas” de anormalidade que, do âmbito social, produz profundos
e complexos transtornos sociais. O estudo mais aprofundado está no e-book, organizado por PIZZI, e
CENCI, Glosario de Patologías Sociales. Pelotas: Editora da UFPEL, 2021, em: <http://guaiaca.ufpel.
edu.br:8080/handle/prefix/7723>.
2
Cf. SALAS ASTRAIN, R. Para pensar tópicos e temporalidades do encontro-desencontro na filosofia
intercultural. Em: PIZZI, J. Pensamento crítico-Educativo IV: Mundo da vida, Interculturalidade e Educação,
Pelotas, Gráfica e Editora Universitária, 2013, p. 119-138.
3
Organizada pelo professor Ricardo, a obra foi editada em três volumes, com 76 conceitos do pensamento
latino-americano. São mais de 80 autores, de diversas nacionalidades (Estados Unidos, Europa e
América Latina). O meu conceito relaciona-se às éticas aplicadas. Cf. PIZZI, J. Ética aplicada. In:
SALAS ASTRAIN, R. Pensamiento Crítico Latinoamericano. Conceptos fundamentales. Santiago: Ediciones
Universidad Católica Silva Henríquez, 2005, V. I, p. 301-313.
4
PIZZI, J. El mundo de la vida. Husserl y Habermas. 2 edición ampliada. Santiago: Ediciones Universidad
Católica Silva Henríquez, 2016, p. 171-206.
5
Cf. LAKATOS, I. Escritos filosóficos 1. La metodología de los programas de investigación científica. 1. reimp.
Madrid: Alianza Editorial, 2010.
6
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Marau>. Acesso em 27 de julho de 2021.
7
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Marau>. Acesso em 27 de julho de 2021.
8
Cf. <http://www.pmmarau.com.br/conheca-marau/historia-de-marau>. Acesso em: 27 jul. 2021.
9
<https://www.youtube.com/watch?v=Rd_6-ITHhaQ>. Acesso em: 29 jul. 2021.
10
Cf., por exemplo, CARVALHO, J. M. de. Formação das almas. O imaginário da república no Brasil. 10
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
11
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 29 jul. 2021.
12
BRASIL. Base Nacional C9omum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.
br/a-base>. Acesso em: 29 jul. 2021.
Jovino Pizzi
Universidade Federal de Pelotas (Brasil)
Julho de 2021
O prefácio deste livro salienta três aspectos dignos de apreço. Em primeiro lu-
gar, o tema da ética intercultural; em segundo, a contribuição do trabalho realizado pelo
autor, principalmente no exercício de colocar frente-a-frente autores com perspectivas,
por assim dizer, incompatíveis; por fim, a relação do tema com o mundo da vida, aspec-
to importante na discussão a respeito da realidade social e política de nosso tempo.
Jovino Pizzi
É possível que seja, simplesmente, a inércia dos hábitos de pensar, criados e fo-
mentados por uma deformação profissional racionalista e elitista a que fez com que nos
acostumássemos a compreender mal a distinção entre pensamento e vida, entre teoria e
prática. Em um nível mais acadêmico, trata-se da separação entre razão teórica e razão
prática o que, ao final de tudo, explica melhor porque, até os dias atuais, constata-se,
na filosofia, uma forte tendência de desconectar a atividade filosófica em relação aos
mundos de vida, bem como de suas práticas culturais concretas, comumente chamados
“os sujeitos em suas culturas” ou “a gente”.
Esta tendência, que se agrava com a modernidade européia, embora seja mais
antiga que ela, se manifesta através de um longo e complexo processo que é, por sua
vez, a base das múltiplas implicações no desenvolvimento da filosofia. Como é óbvio,
não podemos nos deter aqui em uma análise sobre o tema. No entanto, nos permitiremos
recordar, de forma sintética, duas das referidas implicações.
Sem dúvidas, o fato de destacar, nesse momento, as duas implicações, não sig-
nifica polemizar com Hegel. Trata-se mais precisamente porque são elas as que, com
maior clareza, contornam a constelação da filosofia intercultural enquanto corrente que
propõe uma alternativa para transformar nossos modos de praticar a filosofia. Em ou-
tras palavras, essa perspectiva significa uma “provocação” no sentido de mudar o rumo
da filosofia, defendendo, precisamente, a recontextualização da atividade filosófica nos
mundos de vida, nas culturas vivas das “gentes”. Além disso, como conseqüência do
primeiro aspecto, o foco está em defender que todo exercício sábio da inteligência hu-
mana não pode culminar na razão ou em uma compreensão meramente conceitual de
nossos tempos e de seus contextos. Na verdade, trata-se de mostrar seu auxilio para
Raúl Fornet-Betancourt
O título deste livro, Ética Intercultural, parece ser instigante. Por isso, em uma
época de transformações culturais, ele pode despertar muitas expectativas, de modo
especial naqueles que já começaram a compreensão reflexiva da dinâmica dos sentidos
culturais. O intercultural aparece, atualmente, em polifacéticos campos de estudo: nas
culturas étnicas e populares, nos estudos culturais, nos encontros entre religiões, nos
meios de comunicação, nos modelos educativos e de gestão ou, simplesmente, torna-se
vitalmente perceptível nas pessoas que buscam aprofundar os sentidos intrincados con-
cernentes às próprias tradições culturais e religiosas em que nascemos. O intercultural
é, então, uma preocupação pelas novas formas culturais emergentes, pelo sentido no
qual se desenvolve a agitada vida cotidiana em tempos de globalização e, até mesmo,
de exclusão. Os sujeitos reflexivos deveriam ser, então, os primeiros potenciais leitores
desta cogitação. Assim, para não despertar-lhes expectativas que não pudéssemos cum-
prir satisfatoriamente, desejamos indicar os alcances e limitações do argumento central
e os conteúdos temáticos essenciais deste livro.
A proposta ética, formulada com este nome, refere-se, dessa maneira, a um cam-
po heterogêneo de questões atuais, teóricas e vitais, que preocupam aos filósofos que,
na atualidade, estudam os dinamismos dos valores culturais e os problemas associados
à desregulamentação crescente que afeta a vida social no marco da globalização, em
especial, em um horizonte latino-americano. Em efeito, este é um texto que sintetiza e
recapitula uma série de problemáticas teóricas de filósofos e cientistas sociais, em torno
das vivências morais e discursos a respeito da eticidade, do ethos, do agir, do relativis-
mo, etc. Algumas delas já foram bastante difundidas, enquanto outras, infelizmente, não
são suficientemente conhecidas fora dos estudos latino-americanos. O livro que reúne
uma parte do debate em torno dos problemas associados à ética contemporânea e passa
às mãos algumas contribuições para entender os significados básicos da ética e da moral
presentes na filosofia latino-americana atual.
Por último, ele representa o esboço de uma ética intercultural com arraigamen-
tos latino-americanos. De modo especial, ela pode ser estimulante para os jovens e
os demais sujeitos sociais emergentes, no sentido de revelar que as questões morais e
éticas não estão afastadas dos problemas cotidianos que os afetam e, menos ainda, em
acreditar que os problemas culturais e sociais, que as sociedades contemporâneas atra-
vessam, podem ser resolvidos apelando para princípios teóricos. Na verdade, eles estão
na retaguarda de um saber viver dos homens e mulheres em seus contextos. As subjeti-
vidades emergentes devem ser entendidas como aquelas que não encontram espaço em
um modelo homogeneizado. Nesses contextos de exclusão, encontramos os pobres, os
indígenas, os jovens, os campesinos expulsos e emigrantes.
1 De forma especial, gostaria de mencionar as redes acadêmicas do Cone Sul da América Latina, entre
as quais cabe mencionar a Associação de Cientistas Sociais de religião do Mercosul, o Corredor das Idéias
e a Associação Sul-Americana de Filosofia e Teologia Intercultural (ASAFTI).
2 Uma análise das categorias atuais pode ser encontrada na importante Enciclopedia Iberoamericana
de Filosofía, sob a responsabilidade do CSIC e editada pela Editora Trotta de Madrid, com mais de 30
volumes. Nela, colaboram conhecidos filósofos ibero-americanos. Outras cinqüenta categorias filosóficas
fundamentais podem ser consultadas na obra mancomunada de filosofia latino-americana, localizada em
uma Antología de Concepos Latinoamericanos, no Boletim de Filosofia-UCSH, N. 9, 1997-8, 3 volumes.
Cf. os sites web: www.polylog.org e www.fil.org.
3 É imprescindível salientar que a perspectiva aqui elaborada, não é uma interpretação exaustiva da
obra dos filósofos mencionados, mas uma leitura interpretativa que reúne um material terminológico e con-
ceitual, necessário para esboçar os elementos centrais de uma ética discursiva, introduzida na composição
teórica de uma hermenêutica dos relatos e de uma justificação normativa racional.
4 ESTERMANN, 1998, p. 292.
Além disso, essa questão apresenta ainda outra linha de intersecção. O debate
deve atentar para a vigência ou a perda das tradições em uma sociedade policêntrica,
na qual surgem modos díspares de valorizar o pensamento tolerante ou intolerante.11
A perspectiva neo-conservadora insiste em reabilitar as tradições morais, aspecto vin-
culado à idéia da insuperabilidade do mundo de vida como base do ethos. Todavia, é
mister indicar, simultaneamente, a impossibilidade de aceitar sua interpretação negativa
das mudanças da vida social como sendo uma crise moral civilizatória. Por outro lado,
os autores de cunho liberal e pós-moderno insistem em que nos encontramos, antes, na
presença de mudanças culturais significativas. Elas geram novas formas de vida humana,
sem poder introduzir formas de condução social, nem de protagonismo moral. De certa
forma, há uma meia verdade. É correto afirmar que a sociedade policêntrica admite cada
vez mais a heterogeneidade cultural. Todavia, contra o mero diagnóstico sociológico
destas sensibilidades heterogêneas, deve-se afirmar que existe sempre um pressuposto
da ‘vida em comum’, alimentado a partir de um estilo de vida particular. Ao assumir que
a vida humana se vincula estreitamente à conflitividade, a heterogeneidade ou, então, a
diversidade cultural não é algo problemático. A complexidade consiste em oferecer as
condições que assegurem os esforços mútuos de convivência. O essencial da ética, que
supera o diagnóstico cultural de cunho pós-moderno, está em abrir-se ao debate dos mo-
dos de vida. Frente à discussão e deliberação dos estilos de vida emergentes, é essencial
definir os registros discursivos que assegurem a reconstrução de um mundo humano, isto
é, que ao menos ele seja bastante ‘melhor’, ‘bom’ e ‘justo’ do mundo que recebemos.
Nossa convicção segue a linha dos que nos precederam no mundo da filosofia
e no mundo da vida. Sem dúvida, o bom e o justo advêm somente como parte de uma
ação, livre e comprometida, no seio de heranças e memórias que nos permitem visu-
alizar novos horizontes para o agir. Embora isso ressoe como a reivindicação de um
determinado utopismo, podemos afirmar que a ética se sustenta, necessariamente, na
esperança do advir de novas configurações da razão e das razões da vida. Trata-se, es-
pecialmente, daquelas formas que assumem a razão e das razões da vida, em particular
daquelas formas que a razão prática assume em situações conflitivas, no sentido de gerar
as condições de possibilidade para o diálogo exigido à vida em comum. Esse é um pres-
suposto ético que provêm de um a priori antropológico, que, como afirma Roig, não é
antropológico, mas eminentemente axiológico.
O segundo pressuposto salienta que esta proposta tem raízes em contextos cul-
turais, constituídos através das ricas experiências históricas de testemunhos, de inicia-
tivas, de lutas e mobilizações de pessoas, de sujeitos históricos, de minorias étnicas
e religiosas e de comunidades latino-americanas de vida, na defesa da construção de
identidade e da justiça. Trata-se, então, de uma aposta teórica dialógica, em vista da
reconstrução de tradições morais, isto é, da reconstrução de memórias definidoras dos
caminhos a serem recorridos para alcançar uma mútua inclusão entre universalidade e
diferença. Esse processo garantiria as novas interdependências entre os povos, cujos
sentidos culturais das minorias articulam o conflito essencial com o fim de alcançar um
determinado mundo comum para maiorias e minorias. Nesse sentido, o projeto ético
não representa a mera tolerância, mas um novo modo intercultural de conviver recipro-
camente.
A conflitividade
Na nossa discussão intercultural, a categoria conflitividade tem relevância na
formulação dos problemas históricos e sócio-culturais dentro dos quais cabe situar os
problemas éticos. Todavia, não se trata de uma idéia de conflito entendida como um
elemento estrutural e bipolar da sociedade de classes, mas de um conflito inerente às
sociedades humanas. Essa conflitividade se “apresenta como um processo dinâmico
de acordos e desacordos em diversos níveis.”14 Além do mais, o conflito é considerado
como um elemento fundamental da deliberação humana e, portanto, fator chave para a
compreensão do agir humano em sociedades concretas. O conflito é um elemento de-
cisivo para as ciências humanas e a filosofia, que interagem em diversos âmbitos. Com
certeza, o modelo do conflito contém implicações político-sociais, cujo reconhecimento
é imprescindível. No entanto, assim como se reconhece o papel crucial do conflito, nem
tudo pode ser reduzido ao conflito. Por isso, essa categoria também apresenta limita-
ções: Sem dúvida, “o esforço para superar os obstáculos pode ser considerado como
uma forma ou momento da sociabilidade, precedido por uma convivência que foi rom-
pida ou cuja experiência da reconciliação seja dela resultante.”15 Não se trata de exage-
rar o papel do conflito, mas de assumi-lo como um novelo de Ariadne.
Embora seja uma ética que delineia, antes de mais nada, a possibilidade de
resolução de conflitos, ela não consegue distinguir, suficientemente, as es-
truturas conflitivas da realidade social. Tais estruturas não determinam os
conflitos concretos contingentes, porque permanecem – como um a priori
– além de sua solução. Assim, como o racional se vincula, sem dúvida, à
solução (ou à minimização) de conflitos, constitui-se, ainda assim, na única
instância a partir da qual essa conflitividade a priori pode ser reconhecida
(inclusive por meio de ‘reflexão pragmático-transcendental’).17
Como é possível perceber, o conflito deve aparecer como uma estrutura cons-
tituinte do diálogo intercultural. Ele será entendido como um determinado a priori da
ação contextualizada, de forma que deveria ser entendido, então, sempre de forma plu-
ral frente a contextos heterogêneos e, de uma forma ainda mais palpável, assumindo
crescentes formas díspares e sendo plasmado em diferentes níveis discursivos. Nesse
sentido, Kusch salienta que “o problema da América é a falta de tolerar possíveis racio-
nalidades diferentes, quem sabe para encontrar uma racionalidade mais profunda, ou
melhor, mais próxima a nossos conflitos.”18 É imprescindível reconhecer não apenas
os conflitos que desarticulam os mundos de vida presentes em cada uma das socieda-
des latino-americanas – que as morais emergentes presenciam. É necessário evidenciar
também os múltiplos conflitos os povos e as comunidades vivenciam em suas relações
com outros aglomerados, em um mundo econômico internacional que, se, por um lado,
Este exercício teórico não pode ser completamente construído, dado o predomí-
nio de um tipo de racionalidade monocultural, proveniente de um modo etnocêntrico de
compreender a razão em sua totalidade e, ainda, dos interesses estratégicos fácticos das
aglomerações poderosos.
A reflexividade discursiva
Através deste texto, destacamos não ser habitual e evidente que, na América
Latina, o desenvolvimento de uma proposta ética em torno da pluralidade de bens em
confrontação possa ser assumida a partir da forma interpretativa na compreensão dos
valores. Inclusive, o enfrentamento destas divergências a partir, univocamente, da ex-
plicitação dos melhores argumentos não é tão explícito assim. É freqüente encontrar,
nas culturas e no terreno do que se deve fazer, as chaves simbólicas enraizadas nas nar-
rativas, sejam nos mitos, nos relatos populares, nas canções de protesto e outras formas
discursivas, como novelas e ensaios, os quais propiciam a reflexividade do ethos tradi-
cional. A respeito dessa linguagem ética, eminentemente simbólica, “são os símbolos
(assim como os relatos populares de implicações simbólicas e os ritos que os atualizam)
os que articulam, na totalidade da linguagem humana, esse pensar sapiencial e práxico,
cujo sujeito é comunitário: o povo.”21 No entanto, nas culturas é possível também en-
contrar princípios e critérios que permitem justificar, de certo modo, os valores substan-
tivos que os sujeitos vivenciam.22
Nesse sentido específico, a ética intercultural não aceita a tese do contexto como
elemento substantivo determinante da vida moral, porque é preciso sempre aceitar uma
ruptura, a qual nos conduz na direção de um tipo de vida humana plenamente autên-
tica. Não é, inclusive, aceitável a concepção da universalidade que, necessariamente,
dependa da auto-reflexão filosófica. Face à primeira, é preciso denunciar o caráter, às
vezes, etnocêntrico dos contextos culturais, tal como salientam Dussel, Roig e Lopez.
Em relação à segunda, deve-se salientar que a absoluta universalidade aparece sempre
arraigada nos contextos dos mundos de vida de comunidades religiosas e culturais, pers-
pectiva nutrida por Kusch, Morandé e Scanonne. No decorrer dos capítulos do livro, a
ética intercultural procura evidenciar que os valores e as normas exigem uma proposi-
ção teórica que permita apreendê-los em seus processos contextuais, ou seja, relativos
aos estilos específicos de vida e a uma racionalidade crítica que permite penetrar espe-
culativamente nas profundidades do real universal, mas em um sentido específico, que
deveremos descrever.
Para tornar o livro mais atraente, anexamos uma relação com as principais fon-
tes bibliográficas e outras obras consideradas como relevantes, as quais permitem reunir
uma breve, mas, seleta panorâmica bibliográfica para continuar outros estudos atrevidos
em torno da ética do discurso.
A ÉTICA INTERCULTURAL
Esse aspecto da ética, que se vincula com o “saber viver” cultural, é aceito e
reconhecido pela tradição filosófica. No entanto, ele também é questionado, no sentido
estrito, por ser parte do âmbito específico da própria e peculiar matriz cultural. Isso sus-
cita a questão de ela ser universalmente humana. Aqui surge, então, um problema ético
próprio do entreculturas, porque o saber viver é parte de uma experiência humana, uma
espécie de ante-sala da ética e que não pode ser monopolizada pelas teorias filosóficas.
Em outras palavras, nenhum ser humano deve ter aguardado pelas teorias filosóficas
para resolver seus problemas morais. Todavia, isso não implica que os universos concei-
tuais dos filósofos da ética não tenham ajudado a compreender se essa problemática é,
realmente, relevante para entender a retidão e validez universal, como ainda destacam,
inclusive atualmente, diferentes filósofos.
33 Este ponto é o que permite visualizar o problema ético da modernidade que supõe o privilégio de
uma determinada tradição de valores e normas em desmedrança de outras formas apoiadas em convicções
religiosas existentes nos mundos da vida. Cf. MARDONES, 1998, p. 91.
34 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993; Cf. também CALEFFI, In: SIDEKUM, 2003.
39 LADRIÉRE, Prefácio a GÓMEZ-MULLER, 1999, p. 11; Cf. também BERTEN et al, 1994, p. 9-12.
40 MALIANDI, 1994, p. 11.
41 FERRY, 2002.
42 HABERMAS, 1984, p. 302.
A ética intercultural ou, como diz Ferry, uma ética reconstrutiva, é, de fato, per-
tinente desde o ponto de vista da ética contemporânea, porque ela responde às diversas
relações que os contextos apresentam nos processos de des-estruturação axiológica e
des-regulamentação. Particularmente, ela explica a forma em que os contextos se trans-
formam para oferecer respostas aos processos sociais e culturais conflitivos. Não é uma
ética pensada para responder somente aos conflitos inter-étnicos ou inter-comunitários,
mas responde ao próprio âmago da diversidade inerente às sociedades modernas multi-
culturais. Na verdade, ela pressupõe, efetivamente, a questão de como poder dar conta à
relação com o outro, não entendido somente como o pobre e o excluído dentro de minha
própria formação social, mas também ao estrangeiro, porque é ele que, na radicalida-
de, possui ‘outras razões diferentes às minhas’. Esse esclarecimento reporta-se ao fato
de que, a partir dessa modalidade intercultural da ética, o reconhecimento e o hetero-
reconhecimento não podem ser separados. Ao definir categorialmente a questão da ética
através da reação do si mesmo e do outro, estamos indicando não somente o problema
cognoscitivo de como se abrir às vivências e valores do outro, mas também às múltiplas
estratégias de fechamento e de exclusão do outro na vida concreta.
Uma vez delineada, dessa forma, a relação entre os dois tipos de discurso, é ne-
cessário apresentar uma tese que conduz à inter-relação existente entre os processos de
simbolização dos mundos de vida e a estruturação dos sistemas normativos. Do nosso
ponto de vista, a pragmática contextual, que Maesschalck vêm desenvolvendo, contri-
buir com muitos esclarecimentos a respeito dessa necessária articulação:
Nossa tese não contradiz essas observações críticas, pois o predomínio da lin-
guagem não implica sua redução à pura linguagem, de maneira que reconhecemos a
existência de uma justa crítica à redução dos problemas éticos às questões discursivas,
tendo claro, no entanto, que a eticidade não é unicamente discurso. É justamente essa
explicação que encontramos operante em quase todos os autores latino-americanos.
Eles destacam as formas de compreensão de significados e sentidos – com ou sem fun-
damentação – dos valores e normas. Em outras palavras, existe um ‘giro lingüístico’ na
filosofia latino-americana na medida em que ela se propõe à elucidação dos significa-
dos, valorações e fins específicos dos mundos de vida. Eles se manifestam em variados
processos simbólicos, discursivos, narrativos, textuais, que implicam na aceitação de
um modelo consistente, baseado na linguagem em um sentido amplo.52 Na continuação,
desejamos mostrar, de um modo reconstrutivo, como as categorias elaboradas permitem
organizar um projeto discursivo da ética intercultural sem levar a uma ruptura taxativa
entre narração e argumentação.
Em todos esses estudos, embora proponham questões teóricas que tocam o ‘uni-
versalismo’ ético, subjazem o caráter intercultural da luta pelo reconhecimento. Além
disso, há o questionamento de um pensar a relação de reciprocidade e da alteridade,
supondo que os problemas morais de uma filosofia intercultural sempre fazem alusão a
“uma expressão profunda do humanum, encarnado nesta cultura particular.”54 A recu-
peração da categoria do “humano” na ética atual, deveria ser, no entanto, discutível por
parte daquelas formas extremas de pensamento pós-moderno, que visualizam, na sua
utilização, a recuperação de “figuras de humanidade” e, inclusive, a equivocada noção
incapaz de dar conta das deturpações do humano e dos descaminhos cometidos, no sé-
culo XX, em nome do “humanismo”.
Conceito de cultura
Com a finalidade de delinear um esboço introdutório a respeito dos problemas
vinculados à noção de cultura, pode-se afirmar que ela remete a uma questão teóri-
ca, na qual convergem as ciências humanas e a filosofia, enquanto fazem alusão aos
macro-conceitos sobre os quais se construíram as diversas ciências sociais e humanas.
As categorias como sociedade, cultura, Estado, etc., foram modeladas sobre as bases
da terminologia fornecida pelo positivismo e pelo cientificismo. Sabemos que estas
grandes categorias omniabarcantes são específicas de uma prática científica associada
aos afazeres epistêmicos do século XIX. Hoje, seria mais pertinente reconstruir a noção
da cultura a partir da perspectiva de uma hermenêutica e pragmática da cultura. Assim,
ela se define como a trama de sentidos e significados transmitidos por símbolos, mitos,
acontecimentos, relatos, práticas e reconstruções que expressam uma compreensão e
reconstrução do sentido da totalidade da existência e dos sujeitos entre si. As culturas
não somente são relativas a uma compreensão e explicação do ser humano (momento
epistemológico), pois se abrem a uma dinâmica da existência, constituída na dialética
tica seguida pelos Congressos de Filosofia Intercultural, organizados pelo Instituto Missio de Aachen.
57 FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 47.
58 DE VALLESCAR, 2000, p. 8-9.
No campo cultural, cabe distinguir, por sua vez, os valores, as normas, as repre-
sentações, as relações expressivas e simbólicas. Em Ladrière, a cultura aparece como
o conjunto de elementos formados pelos sistemas de representação, normativos, de ex-
pressão e de ação. A cultura pode ser considerada, desse modo, como o conjunto das
representações que os indivíduos têm do mundo e de si mesmos, dos valores a partir dos
quais as ações são apreciadas, das modalidades materiais e formais desde as quais as re-
presentações e valores encontram suas projeções concretas e, por último, das mediações
técnicas e sociais. Parece-nos que essas teses metodológicas são imprescindíveis para
compreender as questões éticas da proposta filosófica intercultural.
Conceito de interculturalidade
O novo espaço no qual se ergue, atualmente, a categoria de interculturalidade
pressupõe, inicialmente, a crítica sistemática dos usos monocêntricos da cultura, no en-
tanto, de forma especial, à des-centralização do contexto em si como ponto privilegiado
para observar os outros. Esse é o modo como, a partir de um questionamento, recente-
mente lançado do lugar e da operação escritural, a antropologia, a etnologia e a história
conseguiram romper a noção predominante da racionalidade hegemônica. Assim, elas
61 É possível entender outras formas de entender a cultura “Ética Intercultural” em autores hispânicos:
em um marco de um cognitivismo desenvolvido como o propõe Bilbeny, 2001, introdução, sob a reinter-
pretação do universalismo apeliano em Cortina, 1999 e sob a forma de um espaço moral no marco de uma
ética da alteridade de inspiração levinasiana. ARNAIZ, 2002, p. 77-106.
62 Cf. GUARIGLIA, 1996, p. 224.
63 MALIANDI, 1994, p. 30.
64 Cf. RICOEUR, 1996, p. 174.
BASES HERMENÊUTICAS
PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL
Esse debate salienta também a questão do ethos cultural, pois se relaciona es-
treitamente às teorias identitárias em torno das raízes próprias e da crítica aos processos
de transformação coloniais vinculados à imitação inautêntica de outras culturas, consi-
deradas superiores. Da mesma forma, é necessário mostrar o vínculo mítico-sapiencial e
cúltico das demais culturas indígenas, afro-americanas e populares. Inclusive, a própria
noção de ethos será objeto de análise de modo diferenciado pelos autores. Nesse senti-
do, cabe frisar apenas que, em grego, ela remetia a significados concernentes à morada,
o lugar em que se habita. Por ethos cultural, buscar-se-á precisar os elementos ou traços
simbólicos, narrativos e interpretativos que configuram um mundo de vida.
Identidade e Modernidade
A discussão ética sobre valores e normas poderia ser entendida, de forma es-
quemática usual, entre dois pólos permanentes, aspecto bem trabalhado no horizonte da
história das idéias latino-americanas, acrescentando um terceiro esboço em gestação.
Esses três modos de aproximar-se à identidade cultural fomentam, de certo modo, o tipo
de análise ético contextual, aspecto a ser desenvolvido neste livro sobre Ética Intercul-
tural. Segundo Devés, o pensamento latino-americano oscilou entre duas posições, ou
seja, a busca de modernização e o reforço à identidade.72 Essa tensão oscilante de nosso
pensamento a respeito do agir, leva-nos a presumir que existem três modalidades possí-
veis para entender este vínculo entre universalismo e contextualismo:
A Ética Intercultural analisa essas três formas de conceber a relação entre mo-
dernidade e identidade. Todas elas configuram o perfil intercultural da questão da auten-
ticidade, nesse caso, não do pensamento ou da cultura, mas dos valores assumidos em
nossos estilos de vida. Esses modos de entender a identidade são inerentes ao discurso
moral, contextualizado histórico-culturalmente.
Sem mais delonga, evidencia-se uma primeira questão filosófica, relevante nos
pensadores latino-americanos, que chamam a atenção a respeito dos processos his-
tóricos e das lógicas de exclusão e de negação dos outros. Frente à proposta de uma
comunidade ideal de comunicação, pressuposta pela ética da discussão, propõe-se, de
forma imediata, uma referência às comunidades reais de vida, as quais se deparam com
as dificuldades em assumir tais dificuldades. São sociedades nas quais coexiste uma
multiplicidade de bens, que se enfrentam no seio das modernidades latino-americanas.
Nesse sentido, é possível perceber que a perspectiva idealizadora de uma comunida-
de de discussão apresentará um forte rechaço, pois a suspeita é de que o modelo de
condições ideais não responde às especificidades históricas dos povos. A comunidade
histórica se caracteriza pela freqüência da hegemonia fática de uns sobre outros, onde
prima a efetiva assimetria, constatada em diferentes épocas, nas quais as condições
reais para o diálogo são quase inexistentes. Há, nisso, uma disjuntiva: ou, às vezes, isso
se transforma em um “diálogo de surdos”, onde cada interlocutor fala de si mesmo; ou,
então, às vezes, se manipulam regras e sistemas discursivos estratégicos, que procuram
reduzir as diferenças de acordo com os interesses dos poderosos.
Essa proposição remete ao símbolo do viver e da vida, aspecto que será anali-
sado a seguir.76
Esse esforço, por valorizar o estar dos modos de vida indígenas, apresenta-se,
de forma paralela, à crítica do cidadão ou imigrante ocidental, cujos modos de vida se
A posição de Kusch frente à modernidade, que aduz objetos, pode ser analisada
a partir da subjetividade inerente a um dizer mítico, que jamais se reduz à linguagem,
podendo ser mostrado como parte dele. A perspectiva de Kusch, sobre a eticidade e sua
crítica à moral moderna do trabalho, permanece em evidência no esforço por descobrir
e evidenciar as possibilidades e limites da linguagem para compreender a questão es-
sencial da cultura americana, de modo especial na distinção entre o ser e o estar, já des-
tacado anteriormente.90 Para poder dar conta do homem americano, deve-se “recuperar
a fala original, anterior a qualquer idioma que sirva de comunicação.”91 Por certo, “não
é em vão que o pensamento popular prefere o gesto à palavra.”92
Nestas suas análises, a maior parte delas fruto de seus trabalhos de campo, é
possível contatar uma preocupação relevante no estudo dos mitos indígenas do Altipla-
no. Kusch vai rastreando as distinções peculiares das línguas indígenas e as narrativas
populares dos campesinos, as quais questionam a ética da cidade e do burguês. A esse
respeito, há uma manifestação salientando o sentido de que todo “mito é amoral, porque
O tema era de que nossa classe média seguisse a onda da dinâmica social
ocidental, baseada no indivíduo como fundamento da sociedade, abando-
nando a doutrina da economia da indigência […], na vigorosa convicção de
que a espécie humana alcançaria, com o liberalismo, sua salvação final.96
Essa é a chave que lhe permite mostrar as diferenças entre as classes médias
peruanas e bolivianas e os estilos de vida indígenas. Sem dúvidas, “um dos motivos
mais profundos, que afastam a classe média boliviana e peruana da indígena, está no
fato de que aquela controla os pontos contrários a este. Ela contrapõe a comunidade, o
individualismo, o domicílio, a solidão e a irracionalidade à racionalidade.”97 Trata-se da
alienação de sua classe média intelectual e dos critérios por ela utilizados, no sentido
de dar proeminência à questão do mero agir. Para Kusch, “o compromisso é uma saída
de o simples encontrar-se no âmbito dos objetos que se possui e como o possuir ocorre
em um âmbito visual, contradizendo com o que existe de profundo nessa consciência de
estar, com esse afã de plenitude, que lhe é implícito.”98
99 A síntese dessas críticas está agrupada sob o título: “Los buscadores del ‘color local’ y
nuestro etnocentrismo”, em ROIG, 1993, p. 146-149.
100 Morandé, 1984, p. 11. Uma crítica deste conceito de identidade cultural pode ser encon-
trada em LARRAÍN, 1996, de modo especial os capítulos V e VI.
O epítome disso nos leva a confrontar tais teses com as de Kusch. A perspec-
tiva intercultural indagaria o âmbito moral aprisionado ao terreno de uma fé expressa
como moral, sobretudo definida através da lógica da instituição religiosa, aspecto que,
na modernidade, é reforçado com a lógica da cidade e do esforço individual. Daí, sua
crítica radical à moral cidadã e burguesa do protestantismo, estribada sobre os objetos.
Contudo, qualquer “moral reprime, porque separa a vida boa da má.”111 Mesmo assim,
o âmbito moral é útil à moral burguesa dos mercadores e do mecanicismo. Conforme
Kusch, “moral e máquina – os puritanos associavam moral e trabalho – eram, desta
maneira, correlativas.”112 Nesse sentido, ele continua: “os objetos se comportam bem,
porque nós perdemos o sentido da boa conduta da cidade […] Por isso, na sociedade ci-
vil ou cidadã – porque somente se dá em uma cidade – vive-se a liberdade simplesmente
como direito de votar ou de comercializar, mas nunca como salvação interna.”113
Antes de terminar esse ponto, é preciso destacar que Morandé desenvolve sua
proposta sociológica também no terreno das implicações filosóficas do debate ético con-
temporâneo. Por exemplo, ele coloca em evidência a “dramaticidade do existir contin-
120 Scannone faz referências explícitas ao texto “Fenomenologia da crise moral”. Sabedoria da
experiência dos povos, de Carlos Cullen, Cf. SCANNONE, 1984, p. 61 ss.
121 Cf. SCANONNE, 1990, p. 203.
122 SCANNONE, 1990, p. 236.
Nesse caso, necessário reconhecer que nos encontramos frente a uma categoria
central, que exige ser matizada e, assim, tornando possível discernir os projetos históri-
cos e questionar, por exemplo, o ethos cultural da modernidade. Em reiteradas ocasiões,
o texto que sintetiza o Colóquio de Paris – onde se reuniu o grupo argentino com al-
guns filósofos e teólogos europeus – desenvolve a questão do ethos. Scannone enfatiza
a pertinência de distinguir entre éthos e ethos.129 Assim, para entender a eticidade da
sabedoria popular, é essencial entender o ethos encarnado no êthos. Dada a relevância
que a questão terminológica assume para a proposta das noções básicas de uma ética
intercultural, transcrevemos uma longa citação, na qual Scannone delimita o uso de suas
equivalências entre as expressões:
O uso conferido por Scannone em seus textos, deixa claro que ele não pode redu-
zir a dimensão ética ao morar humanamente no mundo. Nesse sentido, Levinas contribuiu
no sentido de mostrar, ao pensamento latino-americano, que o ético não faz referência
propriamente ao arraigamento (dimensão tectônica ou telúrica), mas a uma interpelação
radical frente ao outro, circunstância da qual surgiria o propriamente ético (dimensão
escatológica).131 Nesse aspecto, Scannone está precisamente orientando a construir as me-
diações especulativas indispensáveis, que lhe permitiriam articular ‘o propriamente ético’.
Em outras palavras, ele toma em consideração a proposta de Levinas, através da interpe-
lação e a intermediação do outro, ou seja, do pobre, com as dimensões histórico-éticas de
um ‘nós estamos’, ligado à sabedoria popular, trazida á tona por Kusch.
Nesse sentido, é relevante mostrar que a análise simbólica da cultura será cla-
ramente influenciada pela hermenêutica de Ricoeur. Desse modo, se trata de estabele-
cer, fundamentalmente, uma análise dos símbolos a partir de um jogo semântico entre
duas significações. A partir disso, é possível buscar compreender a sabedoria popular
expressada em um nós, manifestada na extraordinária narrativa dos sujeitos populares
como, por exemplo, no caso do Martín Fierro. Nisso, destaca-se a precariedade ética e
histórica, ou seja, “no Martín Fierro, por exemplo, a ênfase está assentada na injustiça.
Todo o poema é um canto pela justiça.”140
Para Scannone, essa situacionalidade ética faz referência ao fato de que nunca é
possível prescindir do saber comunitário e que, por isso, não é possível entendê-la como
um saber absoluto.
O ‘saber’ dessa sabedoria não é saber absoluto, nem a práxis aberta por ela
é práxis total, pois se trata de um universal. Todavia, é eticamente situado
na comunidade do nós. Contudo, trata-se de um universal e incondicio-
nado. Ele também se exime de qualquer relativismo, historicismo ou do
simples perspectivismo hermenêutico.141
Nesse aspecto, parece que nem todos os filósofos concordam com tais reco-
mendações especulativas. São evidentes os questionamentos em torno do uso da razão
e do logos142 em torno aos nexos entre o logos científico e o logos sapiencial. A dúvida
refere-se ao fato de eles serem suficientes para especificar, adequadamente, a validez
dos diferentes discursos e a necessidade de assumir um aspecto normativo, tal qual foi
elaborado pela ética discursiva.143 Nesse mesmo sentido, outras críticas coincidem em
Essa longa citação mostra justamente como a proposta teórica de Scannone não
pode ser catalogada em uma hermenêutica das tradições ou da vida boa, pois requer
estabelecer as condições da justiça para todos. Por isso, ele estabelece mediações com
a proposta de uma ética discursiva de Apel, enquanto admite ser possível estabelecer
vasos comunicantes entre a ética levinasiana e a ética apeliana. Nesse sentido, ele reco-
nhece que “a comunidade de comunicação é, na verdade, ética somente se ela respeitar
a irredutível alteridade ética do outro no seio do nós.”148 Isso permitiria especificar uma
genuína compreensão “da comunidade e da comunicação a partir da relevância do nós
ético-histórico.”149 Essa mudança requer determinadas mediações institucionais: “a li-
berdade passa a ser intermediada através de figuras estruturais, ou seja, em instituições,
que deveriam (eticamente) ser instituições da liberdade (tanto no sentido objetivo como
subjetivo), e, em decorrência – dado seu caráter essencialmente social – de justiça, de
solidariedade e de amizade social.”150
De forma bastante resumida, pode-se salientar que, no seu livro Teoria e crítica
do pensamento latino-americano (1981), Roig recorre à Hegel para falar a respeito da
idéia de que a auto-reflexão do sujeito é relevante. Todavia, ele objeta que ela somente
seja interpretada a partir da subjetividade, sem fazer referência a seu caráter plural. Nes-
se sentido, ele afirma que “o sujeito que se afirma como valioso […] não é um sujeito
singular, mas plural, conquanto as categorias de ‘mundo’ e ‘povo’ fazem referência jus-
Nesse sentido, fica evidente, desde o início, que a proposta de Roig é uma críti-
ca a todo pensamento que procura afirmar valores identitários arqueológicos, como é o
o discurso moral, qualquer seja sua posição, está como que grudado sobre
a pele dos fatos e em cada um deles, a responsabilidade intelectual dos
grupos humanos que o sustentam é jogada sobre seus ombros, com uma
claridade que outros campos teóricos não lhe oferecem.165
Em outras palavras, segundo Roig, estas morais de protesto são sempre expres-
sões heterodoxas e ideológicas, que se desenvolveram dentro da normal conflitividade
social dos processos emancipatórios latino-americanos. Para o autor, “as sucessivas mo-
rais objetivas foram entrando em crise. Isso ocorreu por obra de uma subjetividade que
conta com a energia de um agente histórico e cuja capacidade de mudança advém-lhe,
precisamente, de sua inserção no universo conflitivo de uma determinada sociedade.”168
Entre muitas outras, pode-se mencionar a sugerida por Bohórquez, as morais da primei-
ra independência (Simón Bolívar), morais anti-teológicas (Roscio, Francisco Bilbao),
morais do dever (Eugenio María de Hostos), morais universalistas (José Martí).
A Ética, no sentido aqui por nós conferido, tem, basicamente, seu lugar
no direito. A moral, enquanto aspecto subjetivo da moralidade, isto é, lo-
gicamente, não é alheia à eticidade, mas, de alguma forma, ela é anterior
na medida em que é já na consciência de cada um, quando aceitamos ou
recusamos o estabelecido, o regulamentado e o controlado a partir do Es-
tado.170
assumem o que, para Hegel, era o árduo trabalho da eticidade em sua luta
contra o que considerava como o princípio do particular e do arbitrário, a
subjetividade. Agora, ao contrário, trata-se do ‘duro trabalho da subjetivi-
dade’, contra as formas negativas da eticidade, em uma sociedade organi-
zada estruturalmente sobre a injustiça social.171
Nesse sentido, há, em Roig uma partilha com os autores discutidos anterior-
mente. Refere-se ao fato de que a modernidade latino-americana estaria marcada pela
permanente busca de auto-afirmação do princípio de que cada pessoa vale pelo fato de
ser um fim e não um meio. Esse princípio reitor não aceita o egoísmo, nem a instru-
mentalização de nenhum homem ou mulher. No entanto, isso não deve ser entendido de
maneira ingênua. Na verdade, a modernidade é um processo histórico, com começos e
reinícios, os quais podem ser rastreados em toda a complexa história latino-americana.
Por exemplo, aspectos semelhantes podem ser encontrados de Bolívar a Martí. Nesse
percurso, “podemos ir seguindo-os e assumindo-os a partir do imperativo de afirmar-
nos para nós mesmos, como sendo valiosos, constituindo o a priori absolutamente sine
qua non de tudo o que possamos ou queiramos fazer-nos com nós próprios.”173
5. Recapitulação
Este capítulo coloca em evidência as categorias hermenêuticas, elaboradas por
diversos autores latino-americanos. Eles desenvolveram propostas teóricas sobre a iden-
tidade latino-americana, iniciativas relevantes para elaborar uma ética intercultural. De
modo geral, uma primeira aproximação permite mostrar como a maior parte dessas ca-
tegorias em debate se encontram centradas em uma discussão interdisciplinar (história,
antropologia, sociologia, teoria da linguagem). Todavia, o destaque principal gira ao
redor de um marco de análise histórica das sociedades, iniciando com as origens pré-co-
lombianas, passando pela chegada dos conquistadores, as origens dos Estados nacionais,
e, acima de tudo, as atitudes críticas assumidas na avaliação das transformações sociais,
políticas e econômicas dos anos 70. A contribuição de tais teorias se relaciona com um
processo histórico de autoconscientização do filósofo em torno às complexas formas
contextuais que os processos de socialização apresentam; confluências e resistência pro-
duzidas entre as diferentes comunidades históricas durante cinco séculos.
É possível afirmar que as duas últimas posições envolvem uma maior complexi-
dade na assunção das modalidades conflitivas das estruturas sociais e culturais de nossas
sociedades. No entanto, a proposição dos dois primeiros autores introduz uma vivaz re-
flexão histórica de tipo hermenêutica em torno do viver e do conviver humanos. Através
dela, os valores humanos exigem que a questão intercultural seja internamente introdu-
zida frente à modernidade, destacando as diversas formas de participação que os sujeitos
criam, da mesma maneira que as formas de resistência e a capacidade de propor um pro-
jeto de emancipação, ou libertação, ou de esperança. No caso dos quatro autores citados
previamente, parece que as teses esboçadas levariam a destacar uma filosofia contextual,
porquanto exigem o reconhecimento da especificidade dos processos míticos, cultuais,
narrativos e discursivos que caracterizaram o ethos ou os ethos desta América indígena,
africana e mestiça. Em todos eles, embora não impeçam a busca efetiva do diálogo de
uns com os outros e destaquem o vínculo entre particularidade e universalidade, ainda
que neles às vezes existam posições teóricas contraditórias, todas mantêm uma valoriza-
ção das tradições próprias; para alguns serão míticas, para outros cúltico-religiosas, para
outros ainda, discursos que respondem a uma praxis de subjetividades emergentes.
PERSPECTIVAS PRAGMÁTICAS
PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL
1. Considerações prévias
Com este terceiro capítulo, pretende-se sistematizar as contribuições de filo-
sóficos sob o âmbito da pragmática do discurso, as quais permitem justificar uma ética
intercultural. Em um primeiro momento, não se trata de um esboço dos registros dis-
cursivos míticos e dos relatos identitários, mas, fundamentalmente, dos princípios do
discurso argumentativo e de suas características auto-implicativas. Nesse segundo as-
pecto, ressaltar-se-á a tendência de uma justificação universal dos enunciados éticos. Tal
enfoque provém de uma perspectiva filosófica da linguagem, ou seja, da teoria lógico-
-argumentativa, que o vincula, estritamente, à pragmática da comunicação, elaborada
no marco das éticas da discussão. A tese deste capítulo sugere uma via intermediária,
pretendendo acoplar internamente os dois planos através de uma mediação dos registros
discursivos já explicitados, ou seja, o estreito vínculo existente no processo do sentido
entre as perspectiva pragmática e hermenêutica.
Essa nossa tese é assumida como sendo indispensável para uma ética intercul-
tural, porque permite recorrer o amplo panorama atual da filosofia pragmática em um
marco filosófico mais complexo. Este marco assume, clara e explicitamente, a polifa-
cética proposta do giro lingüístico. Trata-se da filosofia analítica, da hermenêutica e da
pragmática do discurso, que também é desenvolvida no interior do pensamento latino-
americano, tal foi salientado desde o início. Ela pode ser considerada como uma tese no
nível do discurso que, embora mantenha as características compreensivas próprias de
uma hermenêutica histórica e cultural, se concentra na indicação de formas racionais.
Elas permitam alcançar uma validade do discurso ético, âmbito que exige discutir uma
nova forma a pretensão de universalidade dos enunciados morais. A proposta de uma
ética discursiva, redesenhada neste livro, está vinculada às contribuições e observações
críticas, surgidas no pensamento latino-americano, a respeito da recepção, no mundo
ibero-americano, daquilo que foi denominada com sendo ética do discurso ou ética
discursiva. Ela encontra nos filósofos Apel e Habermas seus principais mentores.
Existe outra maneira de entender tal controvérsia. Ela aponta para os filósofos
alemães que estão na base da justificação de princípios e normas universais. É sabi-
do que Apel prossegue, de forma clara, a veia ilustrada iniciada pela ética de Kant. É
também muito provável que, neste litígio entre Habermas e Apel, o núcleo central do
conflito surge no modo de elaborar a releitura semiótica de Kant, bem como no modo de
entender a reflexividade da consciência que provêm da tradição hegeliana. Para Apel, a
discussão em torno da questão kantiana se relaciona com uma ética do dever universal,
que pode ser definida no horizonte de uma comunicação ideal, advinda da necessidade
de torná-la análoga a uma comunidade de pesquisadores, tal como se encontra em Pier-
ce. No caso de Habermas, embora, às vezes, não destaque suficientemente a categoria
do mundo da vida (Lebenswelt), ele não apenas tem uma base husserliana, mas, além
dela, é a maneira de reaproximar o diálogo com a herança hegeliana da básica eticidade
Nos últimos anos, essa disputa técnica entre Apel e Habermas transferiu-se da
coordenação de ações no mundo da vida para a configuração de uma racionalidade
prática. O resultado apresenta teses do tipo: até que ponto o agir comunicativo pode
desvincular-se do pano-de-fundo cultural. Ou então, de que modo se pode demonstrar
que o agir comunicativo plenamente válido pode ser somente definido no nível reflexivo
da argumentação filosófica. Para Apel, é necessário reconhecer que a história da moral
sempre esteve presente na vida humana e as normas práticas podem e devem também
“conectar-se à eticidade concretizada historicamente às correspondentes formas de vida.
No entanto, a ética discursiva não pode, nem deseja renunciar ao ponto de vista do dever
ideal que Kant propôs.”192
Por outro lado, Sobrevilla julga que, atualmente, não se deve supervalorizar a
importância da ética universal, pois as éticas etnocêntricas nacionais ou culturais pre-
valecerão por um tempo indeterminado.200 Michelini, seguindo a tese em torno da con-
flitividade de Maliandi, admite que a pragmática transcendental reclame um aprofunda-
mento do vínculo entre o consenso e o dissenso.201 Roig, por sua vez, destaca que não
haveria divergências relevantes com Apel, sempre que esta ética ajude a criticar o pen-
samento débil, atualmente em expansão, e sempre que a concepção do giro lingüístico
permita compreender a discursividade não como um simples exercício de compreensão
do sentido, isto é, que permita passar a âmbito do translingüístico.202 A maior parte das
dúvidas e críticas já citadas, poderiam ser re-situadas a partir de outras explanações, nas
Dussel também empreende uma tarefa ética, que aponta para reconhecimento
das culturas populares e indígenas. Ela é relevante para entender a história dos pobres e
das vítimas, mas isso não implicaria, de forma alguma, a aceitação a-crítica dos saberes
morais particulares. Diante disso, em determinadas ocasiões, ele aceita a consideração
positiva da hermenêutica histórica, no sentido que o “Outro oprimido e excluído não é
uma realidade formal vazia, mas um mundo repleto de sentido, uma memória, uma cultu-
ra, uma comunidade, um ‘nós-estamos-sendo’ como realidade re-sistente.”216 Trata-se da
possibilidade de um “des-cobrir-se en-coberto dos ignorados e afetados-negados, condu-
zindo a tomar-consciência do si mesmo positivo.”217 No entanto, o mais crucial refere-se
a esse primeiro passo no sentido de “des-cobrir-se a si mesmos (nós), porém como en-
cobertos.”218 Este é o valor do testemunho histórico e cultural de Rigoberta Menchú e dos
processos de libertação gestados pelo movimento indígena zapatista.
Esta concepção parece ser relevante para a ética que faz do diálogo intercultural
uma questão central, ou seja, que procura compreender as razões dos outros a partir de
princípios e normas materiais e formais originárias do mundo real dos oprimidos e das
vítimas do sistema-mundo – sem grandes possibilidades de participar plenamente em
uma comunidade de comunicação.
Ainda que, neste plano, a crítica seria muito mais forte contra as teses cultu-
ralistas da eticidade, porque uma “sabedoria afirmada ingenuamente como autônoma
(estando concreta e historicamente reprimida, destruída em seu núcleo criador, sendo
marginal e dificilmente reproduzível, ignorar estes fatos seria cair em uma ‘ilusão’.”240
5. Recapitulação
A ética do discurso, no modo apeliano, parece que pode persuadir as filosofias
críticas latino-americanas ao centrar sua discussão no idealismo contra-fático, quando
o relevante seria introduzir as condições que assegurem ser possível desenvolver um
diálogo simétrico. Por isso, o esforço do ecomunitarismo de López é relevante, porque
pretende definir uma estrutura lógico-argumentativa dos enunciados, sem descuidar do
vínculo desta teoria da QRC com as condições sociais e históricas de nossas comuni-
dades de vida. Com relação às teses em torno da fundamentação lógico-lingüística dos
enunciados éticos de López Velasco, parece ser crucial tentar determinar a estruturação
dos enunciados obrigacionais, como um caminho para esclarecer os enunciados que
podem ser discutidos racionalmente, em uma sociedade moderna plural. Sem dúvida,
afigura-se deveras possível que, a partir dos pressupostos lógicos, seja factível elaborar
uma proto-norma, que destaca o caráter obrigatório de qualquer enunciado que trate
do que ‘devo/devemos fazer x’. Essa proto-norma é, sem dúvida, de caráter formal,
e pode constituir-se na discussão da base lógica da reflexividade dos obrigacionais
nas diversas línguas conhecidas, ou, ao menos, que deve demostrar-se para as línguas
conhecidas atualmente. No entanto, a aproximação das ciências é fáctica ou a priori.
Desse modo, subsistiria a dificuldade de se os princípios e normas derivadas têm, ne-
cessariamente, que ver com a derivação puramente formal, ou, então, se reivindicam,
necessariamente, a assunção do caráter incoativo dos contextos culturais. Ao que pa-
rece, a introdução, sobretudo, de uma norma ecológica, como reconhece o próprio
autor, garante o assentamento em um terreno concreto da atividade humana, a qual é,
claramente, de índole material e não formal. Mesmo assim, isso suscita, contingente-
239 DUSSEL, 1994, p. 154. Cf. a crítica de Roig à ‘ética da libertação’ de Dussel atravé da
interpretação mística do ‘rosto do pobre’, in: ROIG, 1993, p. 208.
240 DUSSEL, 1994, p. 155.
Por outro lado, é louvável o esforço teórico de Dussel, pois apresenta um senti-
do normativo, à medida que a precariedade da vida humana dos excluídos dos sistemas-
mundo não pode ser completamente defendida, através da justificação de um princípio
formal transcendental. Em um marco dusseliano, é consistente assumir a justificação de
um princípio material, que, a partir de dentro de todas as culturas, permita questionar a
exclusão dos sistemas dominantes. Dussel acredita conseguir fundamentar, histórica e
formalmente, uma ética com um critério e princípio material, a qual consegue respon-
der, de forma crítica, à situação do oprimido e de seu projeto de libertação histórica,
invocando um principio material. Porém, parece que as articulações entre a ordem da
simbolização, inerente à eticidade, com a ordem da reflexividade, não resultam facil-
mente visíveis.
No nosso ponto de vista, a idéia de uma derivação lógica das normas, que fazem
alusão aos enunciados obrigativos, é uma contribuição relevante, a qual complementa a
teoria apeliana. De fato, ela possibilitaria estabelecer pontos de contato mais próximos
entre a parte A e a parte B. No entanto, não há como perceber, de um modo claro, se é
possível conseguir fundamentar todos os enunciados, exigidos pelos sujeitos para argu-
mentar e contra-argumentar, a respeito de tudo o que seu agir requer, diante de situações
mutáveis de um capitalismo, o qual apresenta novas iniqüidades à vida humana e gera
difíceis vicissitudes diárias para as comunidades de vida.
ÉTICA DISCURSIVA
E DIÁLOGO INTERCULTURAL
1. Aspectos introdutórios
O capítulo anterior exibiu as categorias pragmáticas, gestadas no pensamento
latino-americano, através do diálogo e do debate com a ética do discurso, especialmente
com Apel. Essa idéia nos oferece precisões e destaques que nos levarão a estabelecer
critérios básicos imprescindíveis para oferecer uma ética intercultural, sem provocar a
dissociação dos registros discursivos, nem a ruptura entre a ordem contextual e os enun-
ciados normativos universais.
É possível que, nessa perspectiva, a questão central seja: em que sentido o abran-
gente âmbito da discursividade remete a um conglomerado de aspectos valorativos e
normativos que configuram as dimensões fundamentais originadas na eticidade? Será
possível mostrar o processo discursivo em que os registros narrativos se abram aos dis-
cursos racionais? A justificação de uma consideração filosófica intercultural exige ex-
plorar, então, a forma de imbricamento que as funções discursivas abrigam, desde seus
níveis básicos até os mais complexos. Desse modo, um conceito essencial para a ética
intercultural ganhar destaque recebe o nome de reflexividade presente em cada cultura,
cujas pistas se pode seguir, como já foi destacado, através de suas expressões discursivas.
2. A discursividade e o inter-logos
É plausível afirmar que os enfoques, destacados nos dois capítulos anteriores,
apresentam vitalidades e debilidades. A atitude hermenêutica é forte justamente no ter-
reno em que as teses procedimentalistas apresentam dificuldades em mostrar os pro-
cessos de aplicação das normas aos contextos. Os valores aprendidos pelos sujeitos
nos mundos de vida são parte de sustentáculos simbólicos e narrativos, com os quais a
argumentação, que responda às exigências dos contextos, deve contar. De certo modo,
isso já está demonstrado no atual pensamento latino-americano. Nesse sentido, Miche-
lini afirma: “Por isso, quando discutimos seriamente é porque queremos resolver algum
problema do mundo da vida. Não se trata, portanto, de contrapor artificialmente a vida
à argumentação, o viver ao argüir…”245
O diálogo intercultural, que pressupõe a aceitação das ‘razões dos outros’, pre-
sume aceitar, então, que a reflexividade humana não seja algo exterior aos processos
produtivos dos contextos. Essa reflexividade reaparece operante internamente, através
da articulação das formas discursivas, exigindo a aceitação dos acordos essenciais sobre
as regras e procedimentos. Esse nexo entre reflexividade contextual e processos de me-
diação normativos não pode ser estritamente determinado de acordo aos usos específi-
cos de cada cultura, pois isso não asseguraria o entendimento de alguém com os demais,
de modo especial entre aqueles que não compartilham os mesmos mundos de vida.
Por isso, a então debatida matéria das ‘razões dos outros’ não pode ser radi-
calizada a partir de um modelo de sua diferença, nem subsumida sob o mesmo logos
universal, já pré-definido pela própria tradição ocidental. Como indicou Picotti, isso dá
como verdadeiro o reconhecimento explícito da “construção histórica do logos humano
como interlogos.”249 Em outras palavras, trata-se da possibilidade de entender os outros
em suas razões a partir de uma poli-fonia de logos, através da qual somos conscientes da
modalidade de meu logos cultural e de como pode abrir-se a outros logos.
A crítica das dimensões etnocentristas, que predominou nas ciências das cultu-
ras e no racionalismo ocidental, parece ser compartilhado pelos filósofos da pragmática
e da hermenêutica, que discutem esse ponto. No entanto, o enfoque intercultural agrega
mais uma questão ao associar a crítica a racionalidade imperante como um exercício
de des-fundação da racionalidade, não em contra da racionalidade, mas de um projeto
hegemônico associado à modernidade ocidental. Não se pode sustentar que, frente à ne-
gação permanente do outro – especial nestes últimos cinco séculos na América Latina –
seja validada a tese de que as formas de racionalidade associadas à hegemonia ocidental
estão, irremediavelmente, esgotadas. E mais, que tal hegemonia ocidental, implantada
sobre os outros mundos de vida, inabilita a recuperação das diferentes formas críticas
nelas encontradas. Uma tese desse tipo estaria condenando os discursos críticos a sua
incomunicação. Em outras palavras, esse tipo de proposta arruinaria a possibilidade de
compreender o exercício das formas discursivas que asseguram o sentido da ação huma-
na que não se enquadra na relação estratégica e de cálculo. Além disso, ela impede até
mesmo o esforço em reverter as assimetrias, incorporando as diferenças geoculturais.
Embora isso resulte difícil de ser aceito pelas elites e pelos teóricos do desen-
volvimento sustentável, preconizado pelas sociedades dominantes do planeta, o agir
humano, de qualquer mundo de vida de uma comunidade indígena ou outra, permite
o desenvolvimento de uma determinada plenitude de ser humano e de seus vínculos
valorativos com os outros seres humanos, permitindo construir um mundo humano.
Nesse sentido, a proposta da eticidade de Kusch é irrepreensível, pois os modos de vida
articulam processos de sentidos intersubjetivos constitutivos de uma comunidade, não
somente fechada em si, mas aberta aos demais.
No entanto, neste ponto, é preciso estabelecer uma breve conexão com o tema
da incomensurabilidade.255 Desde nossa perspectiva intercultural, é necessário conse-
guir um conceito mais preciso de incomensurabilidade, como o que propõe R. Berstein,
de modo a evitar resolver a questão apostando entre dois extremos. Esta problemática se
relaciona com duas posições discutíveis acerca do diálogo intercultural. Por um lado, o
relativismo radical, que tende a fechar o diálogo, na medida em que pretende denunciar
a racionalidade dominante que asfixia os componentes reflexivos do mundo de vida.
Nesse sentido, a incomensurabilidade permite sustentar a defesa da resistência às cultu-
ras hegemônicas e invasoras. Por outro lado, o universalismo radical integra o conjunto
Nesse sentido, há, em Pannikar, uma significativa contribuição, pois ele sus-
tenta que a contraposição grega clássica entre logos e mythos conduziu ao conceito
ocidental da razão através de uma perversão racionalista, impedindo-lhe de situar a cen-
tralidade da narrativa no seio da cultura, ao invés de ajudar a reconhecer suas diversas
vozes, na sua polifonia.256 Isso é, particularmente, verídico no âmbito do que se poderia
denominar a razoabilidade ou a reflexividade, uma das categorias chaves do ponto de
vista de uma ética intercultural, pois ela surge a partir dos níveis simbólicos e narrativos
fundamentais de uma cultura humana. Isso conduz a discutir se é possível considerar a
evolução moral a partir de suas formas cognitivas, sem fazer referência às formas dis-
cursivas presentes na cultura, ponto de vista que poderia ser desenvolvido tomando o
outro aspecto, ou seja, o da discursividade.
Contudo, a resposta à ameaça deste fracasso prático – que, às vezes, pode ser
trágico – deve ser ética, isto é, assumir a responsabilidade de escutar atenta-
mente e, assim, usar nossa imaginação lingüística, emocional e cognitiva para
captar o que é expresso e dito em tradições ‘estranhas’. Isso deve ser feito de
maneira a evitar a dupla tentação, tanto de assimilar superficialmente o que
outros dizem em nossas próprias categorias e na linguagem, sem fazer justiça
ao que é genuinamente diferente e pode ser incomensurável ou, então, consi-
derar o que o ‘outro’ está afirmando como um disparate incoerente. Também
devemos resistir ao duplo perigo da colonização imperialista e do exotismo
inautêntico – que, às vezes, é denominado ‘viver como os indígenas’.264
Uma vez esclarecido isso, pode-se inferir que o diálogo intercultural está longe
de reformular a tese da plena compreensão ideal da ética discursiva (horizontalidade),
muito menos se pode aceitar a incompreensão histórica discursiva dos contextos latino-
Essa idéia parece ser capital para, justamente, entender alguns dos problemas,
anteriormente destacados, evocados pela aplicação das normas. Outro problema que se
delineia a este tipo de ética intercultural, configurada hermenêutica e pragmaticamente,
radica nas dificuldades para aceitar o processo de fundamentação das normas, que nos
conduzem aos momentos concretos da ação. Isso tem relação com a famosa parte B da
ética do discurso, segundo a terminologia apeliana, esboçada no modo de derivar as re-
gras específicas que se ajustem ao nível da situação e que daria conta dos conflitos que
emanam no nível da eticidade e do encontro-desencontro entre os mundos de vida. No
final deste capítulo, iremos propor ‘princípios de equidade discursiva’ capazes de ajudar
a evitar a desconexão entre a derivação de regras e a situação específica da vida mate-
rial. No entanto, isso requer fazer um passo prévio intrínseco ao modelo da tradução.
3. O modelo da tradução
A referência ao modelo de tradução nos permite tornar compreensível a ne-
cessidade de consentir as regras específicas necessárias para construir espaços comuns
de intercompreensão. Elas dão conta de dois códigos lingüísticos e culturais, capazes
de articular a significativa ‘fusão de horizontes’, de modo a conseguir compreender os
sentidos e os significados na forma mais recíproca possível.266 Nesse sentido, o tema
da tradução se torna em intermediador da compreensão da linguagem do outro a partir
das possibilidades que minha própria linguagem, de modo a conseguir acessibilidade à
linguagem do outro. Trata-se de reconhecer a existência de certas condições, que pre-
param o trabalho de distância e de pertença, embora apresente, mesmo assim, riscos e
limitações. Conforme Panikkar,
Em um plano histórico, esta idéia nos parece relevante para responder aos mo-
dos discursivos dos evangelizadores, que assumiram, desde a conquista até nossos dias,
as formas de contato assimétrico, horizonte da multiplicidade de configurações sociais
e culturais. No mesmo sentido, Ricoeur delineia:
Sem dúvida, essa tradução envolve também uma ética, ou seja, a ‘ética do
discurso intercultural’ e a ‘unidade’ do problema do discurso ético por si
mesmo. É possível conseguir certa habilidade limitada de tradução (trans-
latability) entre elas apenas sob as condições de não-domínio entre cultu-
ras. Não menos importante seria atender a construção de uma mutualidade,
exigida por ser uma terceira dimensão implementada em cada cultura. De
fato, há a indicação de distintos paradigmas de traduzibilidade mútua, con-
duzindo a incrementar a equivalência ou a igualdade (sameness) entre as
culturas.269
269 DE VALLESCAR em ARNAIZ, 2002, p. 146; outra perspectiva em MEEHAN, p. 371 ss.
270 Cf. CORTINA (2000, p. 186) e MALIANDI (1996) fazem uma ótima síntese da discussão de DUS-
SEL e APEL, deste ponto, p. 156 ss.
Pelo visto, este segundo critério regulador é decisivo para a análise dos diversos
discursos que tratam de dar conta do aspecto a-simétrico inerente à realidade sócio-cul-
tural e a ação ético-política dos sujeitos e das comunidades de vida latino-americanas.
Em outro capítulo, destacou-se as histórias plurais encontradas em nossos povos, que,
no plano social, econômico e político, caracterizadas por não haver sido realizadas “as
condições de possibilidade para uma organização solidária da responsabilidade.”272 Em
outras palavras, poder-se-ia destacar que um critério regulador decisivo para o diálogo
intercultural. Trata-se, pois, de assumir um dos desacordos relevantes entre a ética do
discurso e a filosofia latino-americana a respeito do trágico, aspecto relacionado com a
característica calamitosa de nossas sociedades, nas quais a fome, a injustiça, a violência,
a exclusão e a discriminação são sempre partes significativas de nosso entorno socio-
cultural. Esse aspecto medular do conflito exige definir um terceiro critério regulador,
porquanto todo diálogo intercultural deve partir dos interesses dos diversos sujeitos e
comunidades em discrepância em uma escala histórica, de modo a situar sempre os
interesses divergentes de todos os implicados: passados, atuais e potenciais.
De acordo ao que foi formalizado anteriormente, tudo indica não existir somen-
te uma oposição frontal entre ambas as posições, mas uma mútua abertura. Em efeito,
elas apresentam um tipo de exigência imprescindível no sentido de poder estabelecer
uma ética da comunicação intercultural. No entanto, não se trata de fazer uma síntese
apressurada entre elas, mas em reconhecer a contribuição afetiva, por parte de cada uma
delas, para a compreensão dos discursos éticos em contextos conflitivos. Nesse sentido,
Salvat reconhece que:
Este novo universalismo ético que necessitamos não pode, então, partir de
uma idéia de razão autocentrada, solipsista e autoritária. Ele deve realizar-
-se a partir uma racionalidade dialógico-comunicativa, isto é, de uma ra-
zão prática intrinsecamente intersubjetiva e aberta ao outro, a qual, desde
os seus contextos e das situações dadas é capaz de produzir, no entanto,
entendimentos normativo-universalistas sobre o que podemos e devemos
expressar, hoje, por direitos humanos, sociedade justa ou democracia po-
lítica. Tais entendimentos deliberativos são admitidos como capazes de
transcender as culturas e/ou contextos particulares, na medida em que
também articulam um poder ético-racional manifestado através da fala,
do discurso, da argumentação, de todos e de quem quer que seja, enquan-
to falantes capazes de competência comunicativa. Através disso, podemos
assumir as diferenças, sem cair na incomensurabilidade das linguagens e
culturas entre si.278
Ao que tudo indica, este universalismo suscitado pela ética intercultural, plas-
mada ao som do debate latino-americano, encontrou uma enorme fecundidade, porque
critica as deformações das astúcias da razão instrumental técnico-científica e das ‘ló-
gicas’ dos poderes fáticos. Ela delineia, principalmente, a questão de fundo, a saber,
como podemos discutir sobre temas que não estamos de acordo. Ao mesmo tempo, que
podemos fazer, de forma discursiva, para conseguir encontrar respostas no sentido de
evitar que as divergências terminem transformando-se em conflitos, inerentes às lógicas
dos poderes da violência e da sem-razão.
Ao que tudo indica, estes cinco critérios reguladores levam em conta os cinco
aspectos básicos que devem ser cuidados em uma comunicação a-simétrica, tal como
foi indicado nos dois capítulos precedentes. De fato, é preciso definir mutuamente o
proceder da intercompreensão, reconhecendo os processos de diferenciação dos envol-
vidos. Desse modo, consegue-se resolver os conflitos, tomando em consideração os in-
teresses e os prejuízos divergentes, sem apelar à força fática, nem à violência da guerra.
Trata-se, pois, de reconhecer que todo processo de resolução dos conflitos é sempre uma
determinada mediação entre o particular e o universal.
Embora essa enunciação seja visível, resulta bastante complexa frente às si-
tuações conflitivas que afetam as diversas comunidades latino-americanas de vida e,
sobretudo, aos enormes problemas econômicos, sociais e culturais que perpassam e en-
trecruzam suas realidades. Em outras palavras, cabe perguntar em que sentido uma éti-
ca intercultural, que admite critérios reguladores universais, pode conduzir a um novo
modo de pensar a resolução dos conflitos?
Ao dizer isso, desejamos afirmar a contribuição que este tipo de ética discursiva
realiza, pois ela gera uma troca na relação com o outro e contemplar os diversos siste-
mas de exclusão gestados nos ‘mundos de vida’. Assim, a ética intercultural se realizada
seguindo a idéia que estabelece uma propriedade analógica entre os mundos de vida, de
modo a permitir a articulação entre ‘identidade’ e ‘diferença’, ‘pertença’ e ‘distância’.
Nesse sentido, a ética intercultural busca alçar vôo no terreno difícil e complexo da
analogia, assim como elucidou Beuchot:
Como último aspecto, creio ser importante ressaltar que estes cinco critérios
reguladores conservam, ao que tudo indica, propriedades específicas. Todavia, elas são
essencialmente complementárias, porque explicitam aspectos inerentes a cada uma de-
las, ou seja, a relação entre o fático e o contrafático não implica a aceitação da mútua
tradução. O direito às diferenças não deriva de um modelo baseado na tradução. O
mesmo ocorre com este critério regulador e a forma de mediar os conflitos. Provavel-
mente, o quinto critério esteja contido no quarto. Todavia, parece-me que a explicitação
contribui no sentido de apresentar um critério específico na forma de ajuizar tanto os
conflitos entre as comunidades de vida ou entre os sujeitos, evitando, desse modo, que
os desacordos sejam resolvidos de um modo injusto, seja quem for o concernido.
Este livro pretendeu resumir o debate ético na filosofia e nas ciências sociais e
humanas, as quais vêm elaborando uma teoria da ação contextualizada em uma socieda-
de moderna. Pelo visto, a proposta em torno do nexo entre discurso e ação, relativa aos
diversos contextos culturais, contribui para evidenciar o fundo teórico da ética discur-
siva que, atualmente, tem um destaque planetário. No entanto, a perspectiva adequada
não deprecia as profundas relações existentes entre hermenêutica e pragmática. Nesse
sentido, é possível afirmar que, apesar de alguns vieses, existe, entre os pensadores
latino-americanos mencionados, uma reflexão, alimentada durante mais de três décadas,
em torno da ética e da moralidade em crise. Isso não ocorreu à retaguarda do realizado
em outras tradições filosóficas, como a européia continental e a anglo-saxônica, onde é
possível constatar, algumas vezes, as mesmas contraposições e convergências entre o
valorativo e o normativo e, em alguns casos, elaborações mais sutis que dão conta da
complexidade dos contextos a-simétricos.
O problema central do sentido faz menção a uma questão que é, ao mesmo tem-
po, hermenêutica e pragmática. De acordo com o que foi salientado ao longo do texto,
a ética intercultural se mantém no interior de uma teoria do discurso, sem reduzir, no
entanto, a vida moral à estruturação discursiva. O sentido da linguagem moral é jogado
dentro da teoria das práticas humanas. A estrutura básica dos enunciados morais salienta
que eles apresentam um sentido. Todavia, eles também realizam algo dizendo, indican-
do que a linguagem não apenas afirma. Isso não apenas representa, mas é também parte
de uma forma de vida. A envergadura das teses de uma ética intercultural, iluminada
hermenêutica e pragmaticamente, evidencia que os enunciados têm um enraizamento na
eticidade concreta e, por isso, supõem um movimento semiótico expresso na gestação
dos registros discursivos, dos quais brotam os critérios reguladores já explicitados. A
hermenêutica da linguagem moral tem implicações para o sentido da vida moral con-
creta e universal.
De forma muito especial, nossa tentativa foi defender a noção de que a dinami-
cidade está associada ao conflito normativo e valórico, aspecto não apenas relacionado
às diferentes culturas, mas também presentes no interior da própria cultura na qual se
nasce. O conflito não é algo lesivo para o futuro da vida humana, mas é a forma per-
tinente a partir do qual se pode alcançar um projeto de humanidade o mais universal
possível, de acordo com as limitações específicas de mundos de vida dissimiles.
Este giro pragmático da ética pode ser resumido em quatro aspectos medulares,
os quais permitem pensar a mediação contextual da ação humana.
A ética que assume a discussão dos conflitos a partir dos próprios contextos
culturais – onde existe tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade do processo
sociocultural e político – sustenta que eles são fonte de novas virtualidades da ação. Os
contextos não são totalmente delimitados, nem no seu início, nem no desenvolvimento
posterior, permanecendo, portanto, abertos em suas eventuais projeções e ao seu restabe-
lecimento, através de uma ação razoável por parte dos sujeitos. Certamente, a construção
de redes internacionais da economia massifica determinados processos e valores homo-
gêneos, que podem ser impositivos para a humanidade. Todavia, surgem, nesses mesmos
contextos, , ao mesmo tempo, processos interpretativos específicos que permitem re-si-
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