Etica Intercultural - E-Book

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ÉTICA INTERCULTURAL

(Re) Leituras do Pensamento


Latino-Americano

Ricardo Salas Astrain – 1


Ricardo Salas Astrain

ÉTICA INTERCULTURAL
(Re) Leituras do Pensamento
Latino-Americano

Tradução e revisão:
Dilnéia Tavares do Couto
e
Jovino Pizzi

2a edição
E-book

OI OSEDITORA

São Leopoldo
2021

2 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


© Ricardo Salas Astrain – 2021

Título original:
Ética Intercultural. Ensayos de una ética discursiva para contextos culturales conflictivos.
(Re) Lecturas del pensamiento latinoamericano. Santiago de Chile: Ediciones UCSH, 2003.

Editoração: Oikos
Tradução e revisão: Dilnéia Tavares do Couto e Jovino Pizzi
Capa e diagramação: Roberto dos Reis
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Conselho Editorial (Editora Oikos)


Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (Universidade da Caxias do Sul)
Elcio Cecchetti (UNOCHAPECÓ e GPEAD/FURB)
Eunice S. Nodari (UFSC)
Haroldo Reimer (UEG)
Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)
João Biehl (Princeton University)
Luiz Inácio Gaiger (Unisinos)
Marluza M. Harres (Unisinos)
Martin N. Dreher (IHSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raúl Fornet-Betancourt (Aachen/Alemanha)
Rosileny A. dos Santos Schwantes (Uninove)
Vitor Izecksohn (UFRJ)

Editora Oikos Ltda.


Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
93120-020 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848
[email protected]
www.oikoseditora.com.br

S161e Salas Astrain, Ricardo


Ética intercultural: (re) leituras do pensamento latino-americano [E-book] / Ricardo
Salas Astrain; Tradução e revisão: Dilnéia Tavares do Coutro e Jovino Pizzi. – 2. ed. – São
Leopoldo: Oikos, 2021.
167 p.; 16 x 24cm.
ISBN 978-65-5974-021-5
1. Filosofia latino-americana. 2. Ética intercultural. 3. Ética discursiva. 4. Multicul-
turalismo. 5. Filosofia. I. Título.
CDU 1(7/8=6)
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

Ricardo Salas Astrain – 3


SUMÁRIO

Prefácio à segunda edição: A noção de triangularidade intercultural................. 7


Prefácio da edição brasileira............................................................................. 15
Prefácio da edição chilena................................................................................ 19
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 22

CAPÍTULO I: A ÉTICA INTERCULTURAL.................................................. 43


1. Aproximações preliminares à ética................................................... 44
Ética, discurso e conflitividade............................................... 47
Giro linguístico e ética discursiva........................................... 51
Éticas da vida humana ........................................................... 54
2. Aproximações fundamentais à interculturalidade............................. 57
Conceito de cultura................................................................. 58
Conceito de interculturalidade................................................ 61
3. O que se entende por ética intercultural...................................... 64

CAPÍTULO II: BASES HERMENÊUTICAS


PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL. 69
Identidade e Modernidade.................................................................... 70
1. A contribuição de R. Kusch a uma ética intercultural...................... 73
2. Ethos, cultura e modernização em P. Morandé................................. 78
3. Scannone: esboçando uma teoria dos valores e normas
interpostos na cultura latino-americana............................................ 84
4. A moral da emergência e a eticidade do poder em A. A. Roig......... 92
5. Recapitulação.................................................................................... 99

4 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


CAPÍTULO III: PERSPECTIVAS PRAGMÁTICAS
PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL...................................................... 102
1. Considerações prévias.................................................................... 102
A controvérsia entre Apel e Habermas.................................. 103
2. Algumas contribuições e observações gerais à ética
do discurso de Apel......................................................................... 107
Críticas à ética do discurso de Apel...................................... 112
3. A teoria dos Quase-Raciocínios-Causais (QRC)
em Sirio López Velasco.................................................................. 114
4. Dussel e a ética da libertação em tempos de globalização
e de exclusão................................................................................... 117
5. Recapitulação.................................................................................. 124

CAPÍTULO IV: ÉTICA DISCURSIVA E DIÁLOGO INTERCULTURAL...... 128


1. Aspectos introdutórios.................................................................... 128
2. A discursividade e o inter-logos...................................................... 130
A compreensão e as razões do outro..................................... 134
A assimetria vertical e horizontal.......................................... 141
3. O modelo da tradução..................................................................... 144
4. O esboço de cinco critérios para o diálogo intercultural................ 147
Uma racionalidade prática para contextos conflitivos.......... 150
CONCLUSÕES.............................................................................................. 155
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 160

Ricardo Salas Astrain – 5


AGRADECIMENTOS

Este livro de ética discursiva é produto do estudo realizado no marco do Pro-


jeto Fondecyt 1010718-2001: Discurso, contexto cultural e ação humana na filosofia
hermenêutica. Em particular, este fruto intelectual amadureceu no calor de encontros
acadêmicos e estudos desenvolvidos baseados no espírito de uma filosofia intercultural.
Durante os anos 2002 e 2003, participamos do Encontro Ibero-americano de filosofia
pelo Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), em Alcalá de Henares, onde
apresentamos as principais teses deste livro. Em março de 2003, compartilhamos, em
Sevilha, um primeiro esboço do manuscrito. Além disso, beneficiamos-nos das contri-
buições teóricas e estimulantes conversas pluri-lingüísticas que surgiram entre os filó-
sofos e filósofas participantes do V Congresso de Filosofia Intercultural, organizado por
Missionswissenshaftliches Institut Missio de Aachen.

De forma muito especial, quero agradecer aos colegas que me destinaram co-
mentários relevantes para que fosse possível construir o argumento deste livro, ao Dr.
Jean de Munck da Universidade Católica de Louvain, por sua acolhida e suas perspica-
zes observações ao primeiro rascunho deste texto, em minha última estada no inverno
de 2003. Meu especial agradecimento ao Dr. Raúl Fornet-Betancourt, da Universidade
de Aachen, por seu estímulo para a finalização deste trabalho e por escrever o prólogo
deste livro. Não gostaria de deixar de mencionar o quão motivador que foram os diálo-
gos sobre hermenêutica, ética e modernidade com alguns colegas hispânicos, entre os
que cabe citar, sobretudo, a José María Mardones, do CSIC, a Jesús Conill e Agustín
Domingo Moratalla, da Universidade de Valência.

De maneira especial, valorizo o apoio de todos os meus colegas e amigos que


corrigiram as diversas versões deste livro, particularmente a Villega Méndez, Marc Ma-
esschalck, Sirio López Velasco, Fernando Longás e Cecilia Aguayo. Além de um re-
conhecimento às diversas amizades, de diferentes etnias e nações, que me confiaram,
nesses últimos anos, uma parte de seu saber viver e conviver. Eles motivaram existen-
cialmente parte de minhas reflexões sobre as novas formas de eticidade. Agradeço ain-
da, as minhas filhas Francisca e Macarena e a seus amigos, que me acompanham com
sua criatividade e vitalidade.

Agradeço, por fim, à Universidade Católica Cardeal Raúl Silva Henríquez


(UCSH), que patrocinou este projeto de investigação e apoiou esse encargo e as viagens
acadêmicas, que me permitiram encontrar tempo para escrever este livro. Além também
ao professor Manoel Loyola, da UCSH, pelo cuidado com esta edição.

6 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO:
A NOÇÃO DE TRIANGULARIDADE INTERCULTURAL

A segunda edição deste livro em português enseja algumas considerações


especiais. Em uma década, o pensamento crítico latino-americano evidenciou novos
contornos significativos. As questões econômicas e políticas continuam como dois
âmbitos instrumentalizados pelo sistema financeiro e pelo comércio internacional,
gerando novos colonialismos e novas formas ideológicas e políticas da globalização,
tanto na área interna dos países como também na submissão de interesses externos.
Frente a isso, é importante ressaltar os aspectos críticos e reflexivos dos conceitos
de multiculturalismo e de interculturalidade – assim como foram expostos na primeira
edição do livro (p. 17 a 20 desta edição). Eles oferecem um marco referencial para o
diálogo intercultural, tão necessário nesse tempo de patologias sociais desconcertantes.1
Por isso, este novo prólogo simplesmente remete àquele texto, porque, agora, desejamos
realçar uma noção de “triangularidade”, ou seja, a necessidade de uma epistemologia
triangular. Ela abre as portas para compreender o contexto latino-americano desde uma
geoculturalidade capaz de entender as vicissitudes concernentes aos distintos matizes
que compõem a mestiçagem atual. Essa mudança re-situa o eixo de interconexões, para
retomar o Atlântico como centro das vinculações entre três continentes: as Américas, a
África e a Europa.
As coordenadas do diálogo intercultural abrem caminho para compreender a
constituição afro-ibérica e ameríndia dos povos latino-americanos, fruto do encontro
entre mundos europeus com povos originários ameríndios e as gerações africanas, seja

1
Por patologia social se relaciona aos novos aspectos conjunturais relacionados às ciências em geral,
mas que permeiam e afetam a convivência social. As patologias sociais referem-se, pois, às anomias
que geram sofrimento, exclusão, humilhações e denigrem o conjunto das relações sociais. Por isso,
os termos diagnóstico e patologia não se limitam a um estado de ânimo pessoal ou à pessoa como
tal, pois sua abrangência se vincula aos contextos sociais e ao ambiente em geral. Como diagnóstico
social, as patologias estudam as situações que geram transtornos aos diferentes grupos de cidadãos,
ocasionando mal-estar e sofrimentos ao viver e ao conviver. Deste modo, o termo patologia se
relaciona a situações “psíquicas e físicas” de anormalidade que, do âmbito social, produz profundos
e complexos transtornos sociais. O estudo mais aprofundado está no e-book, organizado por PIZZI, e
CENCI, Glosario de Patologías Sociales. Pelotas: Editora da UFPEL, 2021, em: <http://guaiaca.ufpel.
edu.br:8080/handle/prefix/7723>.

Ricardo Salas Astrain – 7


no plano das vinculações às ancestralidades ou às transformações mestiças. Não se trata
apenas de uma analogia ou simples resgate oriundo do comércio triangular (Triangular
trade), porque a conformação de uma epistemologia triangular requer a rememoração e a
reinterpretação de aspectos ocultos, visibilizados, rechaçados e muito mal interpretados.
Até hoje em dia, muitos deles permanecem presentes na cotidianidade de nossas vidas.
Por isso, mais que tudo, trata-se de compreender e, ao mesmo tempo, buscar um ponto de
intersecção entre os mundos de vida afro-indígena-latinos e euro-ibéricos das Américas.
Na América Latina, os cinco séculos de encontros e desencontros foi referência
para questões comerciais entre países de diferentes continentes, mas também serviu de
palco para conflitos, opressões e escravidão.2 A noção “cosmopolita” de hospitalidade
foi, sem dúvidas, um desejo voltado a superar as inospitalidades. No entanto, diante
das espoliações, escravagismo e sujeições unilaterais, as reivindicações por justiça
exigem uma reflexão que vai além das questões comerciais, sem o que a hospitalidade
seguirá como uma simples quimera. Na verdade, as grandes disparidades realçam a
conflitualidade entre as pessoas, grupos e matizes étnicos. Nesse sentido, as respostas
às questões iniciais remetem à contextualização cujo eixo de interconexão é o Atlântico.
A reinterpretação dessa triangularidade exige, pois, um fundamento ético-
filosófico que consiga fazer frente ao espírito comercial de usurpação e da tirania
monopolista e monolíngue. Trata-se, então, do esforço voltado a reconsiderar as relações
a partir de exigências da justiça equitativa e na garantia da convivência hospitaleira com
base para o diálogo intercultural. Por isso, o tema não se refere ao comércio em si, mas
na compreensão geocultural desembaraçada da inospitalidade patológica e patogênica,
resultado da escravidão, de invisibilidades, negacionismos e da usurpação.
A caminhada pessoal, os quase 20 anos de meu doutoramento – em julho de
2022 – evidenciou que a noção de mundo da vida permitiu-me visualizar um leque
extraordinário de possibilidades. O título da tese foi Lebenswelt y acción comunicativa,
apresentada e defendida na Universidade Jaume I (UJI), cidade de Castellón de la Plana,
onde tive a oportunidade de regressar por diversas vezes (a última, foi como professor
visitante, fevereiro a julho de 2020). Os dez capítulos da tese foram divididos em dois
livros. O primeiro publicado no Chile, reunindo os capítulos relacionados aos conceitos
de Lebenswetl em Husserl e as críticas de Habermas.
Entre o final de meu doutoramento e meu primeiro livro publicado no Chile, houve
um acontecimento crucial. Em 2004, em Lima (no Peru), aconteceu o XV Congresso
Interamericano de Filosofia e II Congresso Iberoamericano de Filosofia. Na ocasião, o

2
Cf. SALAS ASTRAIN, R. Para pensar tópicos e temporalidades do encontro-desencontro na filosofia
intercultural. Em: PIZZI, J. Pensamento crítico-Educativo IV: Mundo da vida, Interculturalidade e Educação,
Pelotas, Gráfica e Editora Universitária, 2013, p. 119-138.

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encontro com o professor Ricardo Salas marcou o início de um diálogo e de uma relação
que perdura até os dias atuais. No ano seguinte, ele estava na Universidade Católica de
Pelotas, protagonizando o lançamento da obra Pensamiento Crítico Latinoamericano.
Conceptos fundamentales.3 Em 2006, acontece, em Santiago do Chile, o Seminário
Internacional Fenomenología y Ciencias Sociales, coordenado pelo professor Ricardo.
No mesmo embalo, é publicado o livro El mundo de la vida: Husserl y Habermas
(2005), patrocinado pela Editora da Universidade Silva Henríquez, IES na qual o
professor Ricardo Salas então trabalhava. As interlocuções seguiram avançando e,
diante disso, segunda edição do meu livro saiu com um capítulo a mais: Lebenswelt:
una noción apropiada para dar cuenta del mundo latinoluso y afroamericano de vida.4
Diante disso, é possível ressaltar que a transformação do Atlântico em ponto de
intersecção entre distintos continentes vai além do aspecto comercial. Nesse sentido,
a perspectiva epistemológica de Imre Lakatos também foi decisiva. Ela exige um
“núcleo” capaz de reunir distintas teorias (ainda que rivais), sem denegar nenhuma
de suas bases ou referências. A metodologia reconstrutiva de Lakatos apresenta um
“núcleo consistente”, cuja heurística positiva corrobora em assegurar “um cinturão de
hipóteses auxiliares”, sem rechaçar as possíveis anomalias”. Daí, então, o quadro de
interpretações em torno às diversas situações que envolvem a temática em foco. Deste
modo, a análise do tema não se limite a uma determinada proposição (ou hipótese), mas
na intersecção entre todas as proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas.5
Na perspectiva do diálogo intercultural, a epistemologia triangular tem como núcleo
consistente, ou seja, o eixo de interconexão o Atlântico, de forma a assegurar a intersecção
e, ao mesmo tempo, as múltiplas dimensões desse encontro-desencontro entre mundos de
vida afro-ibérico e ameríndio.
Essa referência é, sem dúvida, uma das fontes a sustentar a noção afro-ibérica
e ameríndia, que depois foi caracterizada como uma fecunda aproximação. Em outras
palavras, essa epistemologia possibilita dar sentido ao horizonte de mundos de vida
latino-afro e ameríndio. Este é o aspecto geocultural de uma epistemologia voltada a
responder ao “sentido” desses mundos de vida. Trata-se, então, de afiançar a interconexão
entre as culturalidades europeias com as africanas e com a dos povos originários. Ela

3
Organizada pelo professor Ricardo, a obra foi editada em três volumes, com 76 conceitos do pensamento
latino-americano. São mais de 80 autores, de diversas nacionalidades (Estados Unidos, Europa e
América Latina). O meu conceito relaciona-se às éticas aplicadas. Cf. PIZZI, J. Ética aplicada. In:
SALAS ASTRAIN, R. Pensamiento Crítico Latinoamericano. Conceptos fundamentales. Santiago: Ediciones
Universidad Católica Silva Henríquez, 2005, V. I, p. 301-313.
4
PIZZI, J. El mundo de la vida. Husserl y Habermas. 2 edición ampliada. Santiago: Ediciones Universidad
Católica Silva Henríquez, 2016, p. 171-206.
5
Cf. LAKATOS, I. Escritos filosóficos 1. La metodología de los programas de investigación científica. 1. reimp.
Madrid: Alianza Editorial, 2010.

Ricardo Salas Astrain – 9


trata de reconhecer a mudança de eixo, pois o ponto de intersecção amplia e aprofunda
o significado dos cinco séculos de ligações entre os três continentes. Não se trata
simplesmente de um marco geo-comercial, mas nas vicissitudes dos encontros e
desencontros entre povos e culturas que, atualmente, aparecem estampados nos rostos
das gentes, nas formas e estilos de vida e na cultura, às vezes em tom amistoso, mas, em
muitas ocasiões, manifestando ódios, discriminações e humilhações.
A perspectiva de uma epistemologia triangular nada mais é do que a busca de
uma compreensão capaz de dar sentido à pluridiversidade de seus mundos de vida.
Não se trata, pois, de um simples conceito estático ou estatístico, muito menos como o
reconhecimento de uma diversidade sincrônica ou da justaposição a caminho de uma
homogeneização unilateral. A perspectiva triangular exige, em decorrência, a memória
e a historicidade dos elementos constituintes desse processo de interação, ao tempo que
procura reinterpretar os esquecimentos (propositais ou não) de elementos inerentes aos
encontros-desencontros afros, latinos e ameríndios. Desse modo, o reconhecimento não
condiz com a invisibilidade – como já tive a oportunidade de frisar – mas da visibilidade
existente, ainda que negada.
Nesse itinerário, a base filosófica se manteve próxima à fenomenologia
husserliana e à teoria do agir comunicativo de Habermas. Depois, outros autores foram
dando suporte, dos quais pode-se destacar Honneth e Forst, salientando as exigências
da dialogicidade comunicativa, mas de forma situada, ou seja, vinculadas aos contextos
do mundo da vida (Lebenswelt). Com as referências na teoria do agir comunicativo, o
caráter crítico da epistemologia triangular fornece as sendas e recursos para compreender
as idiossincrasias das atuais inospitalidades e, ao mesmo tempo, no delineamento de
justificativas que afiançam ideais de justiça, propiciadores de uma convivência na
hospitalidade. Sem dúvida, esse é o grande desafio de um pensamento periférico.
A nova edição do livro, agora em forma de e-book, não apenas consolida essa
caminhada, mas reafirma o compromisso com o pensamento crítico latino-americano em
vistas a reconstruir as condições de um diálogo na sua radicalidade. Ou seja, um esforço
para compreender os diferentes mundos de vida, suas origens e os sentidos e, com
isso, reconstruir o habitat e os lugares de convivência ainda subjugados a colonizações
inescrupulosas. Como há muito tempo destaca a perspectiva habermasiana, a colonização
do mundo da vida não é decorrência, propriamente, de uma modernização inacabada,
mas da tecnificação e da cientificização nefastas, que instrumentalizam o agir humano.
No Brasil, essa tendência se processa através da colonização interna, iniciada
com o povoamento e a exploração da faixa litorânea e do sul do país. Aos poucos,
essa população se encarrega de devastar as florestas litorâneas e avançar em direção
ao centro, destruindo não apenas os biomas naturais, mas escravizando indígenas
e populações locais. Até o final do século XIX, a escravidão serviu para explorar e

10 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


arrebatar os recursos naturais, segundo os interesses dos colonizadores ibéricos. Com
o tempo, foi-se implantando um estilo de vida alheio aos povos originários, traduzida
como uma cultura do desprezo e da humilhação. Deste modo, consolida-se a divisão
entre a empáfia de um senhorio desprovido de qualquer senso de humanidade e a
submissão despersonalizada e constantemente vexada.
No sul, o povoamento é consequência do tratado de Ildefonso (1777), levando
à monarquia portuguesa a incentivar a colonização de áreas brasileiras fronteiriças
com o Uruguai e a Argentina. Em pouco tempo, essa região foi sendo devastada e
seus habitantes originários violentamente expulsos, perseguidos ou assassinados.
Entre muitos, um exemplo típico desse genocídio relaciona-se ao município gaúcho de
Marau, colonizado por imigrantes italianos. O fato remete ao século XIX, com o trágico
assassínio do cacique Maraú, líder de um povo indígena da região.
Conforme texto do popular Wikipédia, desde as primeiras incursões, os brancos
europeus (tropeiros, soldados de fronteira e, depois, os estancieiros) se depararam
com a população originária local, considerados como “empecilho à vinda de mão-de-
obra europeia em migração patrocinada pelo império e já bem sucedida no caso dos
alemães”.6 O assassinato do cacique Maraú ocorreu às margens de um rio, caçado como
se fosse um animal, a tiros de espingarda. O que resta, hoje, desse trágico episódio é o
nome do rio e do próprio município.
A versão conquistadora menciona o assassinato do cacique Maraú como um feito
bravio, de modo a salientar os saques e mortalidade ocasionada pelos habitantes nativos
indígenas, reconhecidos apenas como selvagens. Na verdade, os informes da época
apontam a morte de apenas uma única família de colonos. Por isso, a versão apresentada
pelo Wikipédia está permeada de um unilateralismo sintomático, com qualificativos
específicos para os nativos. Vejamos:
Nesse contexto, o extermínio do bando chefiado pelo temido cacique Marau
era inevitável. Por volta de 1840, acusados de trucidar dois moradores da
aldeia Passo Fundo das Missões, os índios foram perseguidos por uma
escolta que atravessou o rio Capingüi e, às margens de um arroio, depois
chamado de Mortandade, travaram a primeira batalha. Ainda no encalço
dos índios fugitivos, a expedição prosseguiu em direção ao sudeste,
exterminando o bando às margens de um rio maior. Esse batismo de
sangue nomeou-o de rio Marau e com o mesmo nome também passou a ser
chamada a região adjacente, povoada por caboclos.7

6
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Marau>. Acesso em 27 de julho de 2021.
7
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Marau>. Acesso em 27 de julho de 2021.

Ricardo Salas Astrain – 11


Fruto do “trabalho árduo dos colonizadores”, os núcleos habitacionais foram
crescendo, a ponto de transformar o município de Marau em um “dos municípios mais
promissores do Rio Grande do Sul”.8 Os primeiros colonizadores, livres do bando de
“trucidadores”, deram início à ocupação regional, deixando para trás o sangue derramado
e, então, livrando-se dos verdadeiros “donos” dessas terras. Com o tempo, a expansão
desse processo de colonização foi avançando em direção ao norte do Rio Grande do
Sul, ocupando, posteriormente, Santa Catarina e o Paraná e, pouco a pouco, rumou em
direção ao centro-oeste brasileiro, destruindo os biomas e eliminando as populações
autóctones.
O filme A Missão (1986)9 pode, em boa medida, ser citado como uma fonte
incriminadora desse genocídio. Aos poucos, essa colonização se transforma em gênese
e inspiração para o agronegócio. Por isso, atualmente ninguém tem dúvidas de seu
potencial destruidor dos biomas, da eliminação dos povos dessas regiões e, no avançar
desse processo, a decorrente favelização das médias e grandes cidades brasileiras. Essa
favelização significa o amontoamento de um grande contingente de pessoas, expulsas de
suas terras, passando a confinar-se nas periferias das cidades. O impacto dessa migração
evidencia o total despreparo, cuja marginalização transforma-se em confinamento de
humanos na busca diária da subsistência. Enfim, da expulsão do campo foi o primeiro
grande processo de migração, pois o segundo refere-se à submissão a um confinamento
desassistido pelo Estado, criando, então, as condições para a implantação de milícias e
grupos de caráter eminentemente maliciosos e nefastos.
A análise desse processo salienta um tipo de liberalismo brasileiro, com o qual
foi possível sustentar a ascendência da minoria, assumindo o controle não apenas da
posse e propriedade das terras, mas, e principalmente, colonizando ou expulsando
grande parte da população (indígenas, afrodescendentes e agricultores locais). Essa
versão liberal já pressionava a monarquia portuguesa, revelando-se como uma das
tendências que interfere na formação da república.10 Atualmente, a tendência obriga,
tanto aos pequenos como grandes agricultores, a assumirem um caráter empresarial,
uma propensão que denigre a própria característica do homem rural. Esse seria o rosto
de um necro-empreendedorismo maléfico e patológico.
A referência histórica e a situação atual evidencia uma defasagem enorme
em relação às políticas públicas em geral. Em outras palavras, é sintomático que as
políticas atuais não consigam atender os afrodescendentes e os indígenas. No que tange

8
Cf. <http://www.pmmarau.com.br/conheca-marau/historia-de-marau>. Acesso em: 27 jul. 2021.
9
<https://www.youtube.com/watch?v=Rd_6-ITHhaQ>. Acesso em: 29 jul. 2021.
10
Cf., por exemplo, CARVALHO, J. M. de. Formação das almas. O imaginário da república no Brasil. 10
reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

12 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


à legislação, a Lei das Diretrizes e Bases Nacionais da Educação Brasileira Nº 9394/96,
no Art. 26-A e seus dois parágrafos, advoga como obrigatório o estudo das questões
afro-brasileira e indígenas, a ser ministrado no âmbito de todo o currículo escolar.11
A legislação rege que os currículos escolares devem ter uma base comum e uma parte
diversificada.
Nessa linha, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC é um
“documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os
alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica”.12
Nele, as questões étnico-culturais aparecem desde 2017, quando iniciou a construção do
documento para a educação infantil e anos iniciais e, em 2018, para o ensino médio. Em
diferentes momentos, o texto reafirma a obrigatoriedade dos conteúdos étnico-culturais
em todos os níveis da educação nacional. A bem da verdade, o pedagogismo unilateral
impede que a própria legislação seja aplicada, salientando aquele bordão: para inglês
ver. Em outras palavras, a prática demonstra ineficácia da grande maioria dos docentes,
sem, portanto, agenciar uma educação intercultural na sua pluridiversidade. Essa recusa
delata a ditadura pedagógica com base em um único paradigma monocultural.
Para além dos compromissos legais e da legislação vigente, urge a necessidade
de uma reviravolta prática, em todos os setores da vida social brasileira. Embora
contemplados quantitativamente em algumas áreas, persiste um modelo desenraizado.
Essa perspectiva se mostra incapaz de superar a autocompreensão monolíngue,
egocêntrica e monocultural. O monolinguismo realça, pois, uma epistemologia de um
único paradigma, sustentando uma anomia idiossincrática, pois exige a compreensão de
mundo e a interpretação dos matizes étnico-culturais a partir de uma única referência: o
pedagogismo monolíngue eurocêntrico, mormente monocultural.
Nesse sentido, este livro de Ricardo Salas – assim como as demais publicações
dele – é um extraordinário exemplo de como se deveria avançar no tema da
interculturalidade crítica e reflexiva, no sentido decolonial. Ou seja, na necessidade de
assumir a diversidade no horizonte de uma geoculturalidade de três grandes vertentes
(com suas múltiplas nuances) e, então, encontrar o sentido de uma hospitalidade que
permita a convivência entre distintos estilos de vida e que, ao mesmo tempo, presume
o enfrentamento dos profundos conflitos que, ainda hoje, geram anomias sociais. Essa
perspectiva exige a compreensão das características étnico-culturais de nossas gentes,
isto é, sua formação pluridiversificada de povos ameríndios, afro e afrodescendentes,

11
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 29 jul. 2021.
12
BRASIL. Base Nacional C9omum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.
br/a-base>. Acesso em: 29 jul. 2021.

Ricardo Salas Astrain – 13


europeus e suas múltiplas diversidades. Ampliando o leque, esta geoculturalidade
requer também um olhar a outros matizes, pois, em maior ou menor escala, compõem
as gentes de um país que está muito longe de agregar e congregar a diversidade desde
uma perspectiva hospitaleira e convivial.
O assumir essa perspectiva ibérica-afro e ameríndia permite, pois, afiançar a noção
de interculturalidade que começa no Atlântico e que, pouco a pouco, vai modificando
o significado de Lebenswelt eurocêntrico. Deste modo, o resgate e, ao mesmo tempo, a
reinterpretação dos matizes étnico-culturais, seus enfrentamentos e a projeção de uma
convivialidade hospitaleira, requer o reconhecimento da violência do egocentrismo
eurocêntrico, promovedor de etnocídios sem precedentes. Daí, a radicalidade frente
à escravidão e de qualquer forma de colonialismo (interno ou externo), bem como a
recusa da submissão, exploração, ameaças, humilhação ou outras formas de violência
causadora de sofrimentos. Em outras palavras, da colonização do mundo da vida, uma
constante ameaça etnocídia e genocidas, destruidoras de biomas e dos habitats da
pluridiversidade.
O Brasil está longe de uma epistemologia voltada à heterocompreensão. Por isso,
a perspectiva da interculturalidade, presente na obra de Ricardo Salas, se insere em uma
gramática pluridimensional dos matizes étnico-culturais americanos, uma possibilidade
plausível para o repensar do filosofar ocidental. A alternativa pós-colonial representa,
portanto, uma compreensão epistemológica da composição de todas as suas matizes,
reiterando “outras” perspectivas possíveis de mundos de vida. Essa atitude renova a
compreensão-interpretativa frente às gentes norte- centro e sul americanas, sem perder
a noção global das interações e da convivialidade hospitaleira.

Jovino Pizzi
Universidade Federal de Pelotas (Brasil)
Julho de 2021

14 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

O prefácio deste livro salienta três aspectos dignos de apreço. Em primeiro lu-
gar, o tema da ética intercultural; em segundo, a contribuição do trabalho realizado pelo
autor, principalmente no exercício de colocar frente-a-frente autores com perspectivas,
por assim dizer, incompatíveis; por fim, a relação do tema com o mundo da vida, aspec-
to importante na discussão a respeito da realidade social e política de nosso tempo.

O primeiro aspecto refere-se à ética intercultural, temática que aproxima,


atualmente, pensadores de vários continentes. Ela tem em vista a complexidade das
relações entre filosofia e mundos de vida. O foco da discussão remete à diversidade
epistemológica de um mundo em globalização e com acentuada tendência à homogenei-
zação. A ética intercultural examina o sentido da vida cotidiana frente ao dogmatismo
de alguns saberes acreditados como exclusivos. Em razão disso, o debate rearticula as
definições de cultura, de interculturalidade e as próprias bases hermenêuticas para a
ética intercultural.

A interculturalidade não se confunde com o conceito de multiculturalismo. De


modo geral, o multiculturalismo se relaciona à tentativa de caracterizar a diversidade de
culturas coexistentes em uma sociedade, e de seus traços característicos. A diversidade
cultural não é, evidentemente, motivo de inquietação. No entanto, ela pode transformar-
se em estratégia voltada à manutenção da assimetria entre as distintas culturas. A cultura
epistemológica dominante reveste-se de uma pespectiva “tradicional” de mundo e de
saberes. Sua hegemonia rechaça a multiplicidade de constelações e até mesmo a plura-
lidade epistemológica.

Embora o multiculturalismo postule pelo reconhecimento, respeito e tolerân-


cia às diferenças, ele expõe dois perigos. O primeiro refere-se ao risco de consagrar uma
cultura ou determinados padrões como hegemônicos e, em decorrência, defender que os
demais representam características de nível inferior, destituídas de bom senso e, portan-
to, desprezíveis. O segundo perigo advém da tentativa de afirmar a hegemonia de uma
cultura com o fim de consagrar a coesão em torno a certas características culturais. Esse
procedimento procura salientar o triunfo e/ou a exaltação nacionalista, considerando a
cultura como um modelo ideal a seguir. Nesse caso, a diversidade cede lugar ao requinte
de uma padronização e da uniformização cultural.

Ricardo Salas Astrain – 15


A interculturalidade, além de reconhecer as diferenças, destaca aspectos que
proporcionam o diálogo e a interação mútua entre as culturas. Não se restringe, portanto,
a mera co-existência da diversidade e na descrição das características específicas, mas
em redimensionar o diálogo, no sentido de construir mais mundos de vida para todos.
Vale dizer, uma convivência de paz; e não de guerra, perseguição, violência e de morte.

Nesse sentido, o diálogo intercultural torna-se imprescindível, por dois moti-


vos: a) porque, através da identificação, da estima e do apreço, reconhece e respeita a
diversidade de culturas na sua uberdade; b) e, ao mesmo tempo, porque esse fato exige
um diálogo através qual os atores sociais podem discernir quais valores e costumes
merecem ser reforçados – isto é, cultivados e destacados – e quais se deve esquecer (ou
seja, deixá-los de lado).

O diálogo, intercultural pressupõe uma simetria sem qualquer forma de dogma-


tismo. A ética intercultural se insere, pois, em um contexto pluralista. Ela advoga por uma
razão pública, através da qual cada sujeito, grupo, comunidade ou instituição contribui
para a convivência saudável. Os contornos do diálogo intercultural, em um mundo globa-
lizado, não podem diluir-se em uma síntese cultural ou na tentativa de eliminar o diferen-
te, o alheio ou o estranho. O diálogo intercultural presume que todos os sujeitos podem
sentirem-se pertencentes a uma comunidade. O pertencimento e o sentir-se pertencente
(ou membro) de uma comunidade significa, portanto, cultivar determinados sentimentos
que, por um lado, nos comprometem com a herança e a identidade da tradição na qual nos
engajamos e, por outro, remetem a princípios que ultrapassam os limites dessa tradição
particular. Uma compreensão intercultural apresenta, portanto, uma dimensão mais ampla
que a provincialidade e o horizonte de cada cultura, etnia, crença religiosa etc., a fim de
contribuir produtivamente para a tolerância e o respeito mundial, cuja harmonia se encon-
tra no fato de conseguirmos conviver com quem é diferente da gente.

O pertencimento a um grupo, associação ou comunidade particular não signifi-


ca mera benevolência, ou um simples reconhecimento, algo indulgente ou magnânimo,
mas um princípio de solidariedade. Tal princípio implica no reconhecimento do outro
como pertencente a um grupo e cujos interesses e necessidades permitem a qualquer um
sentir-se como integrante de uma comunidade. O fato de não podemos separar a exigên-
cia de universalidade com a comunidade de vida é a expressão de que a sociedade não
deve garantir apenas o reconhecimento de todos, mas criar adesão. É nesse sentido que
a proposta de um diálogo intercultural supõe a interação com o diferente e o estranho.

O segundo aspecto desse preâmbulo relaciona-se ao autor do livro. Ricardo


Salas se insere no contexto da filosofia contemporânea, não apenas em relação às suas
publicações, mas de modo especial na discussão em torno aos distintos modelos episte-
mológicos. As mudanças que a filosofia vem sofrendo não são mais alheias a ninguém.

16 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Mesmo antes da guinada linguística, a filosofia desmontou a cultura cristã hierarquizada,
sedimentada em um ordenamento teocêntrico. A concepção clássica também passou por
uma revisão, reformulando o tipo de saber integrado a um ideal de sabedoria eminente-
mente cosmológico. A representação moderna de um saber cientificizado, relacionado
a uma forma de conhecimento perfeito e mecanicamente sincronizado, gerou – e está
causando – uma enormidade de suspeições. Além do mais, esses modelos possuiam – ou
ainda possuem – uma lógica predominantemente androcêntrica, dissimulada em forma
de antropologia, com status de ciência, simplesmente para outorgar ao homem um saber
encarregado de organizar idealmente o mundo conforme os padrões masculinos.

A aproximação de Ricardo Salas com a epistemologia inicia com sua tese de


doutorado sobre a linguagem, hermenêutica e símbolos religiosos. Nela, utilizou a teo-
ria de Paul Ricoeur para expor o universo religioso mapuche. Os estudos sobre herme-
nêutica abriram caminho para questionar o modelo hermenêutica das ciências humanas,
permitindo, inclusive, sua aproximação com diversos pensadores atuais.

Na sua audácia e persistência, Salas transformou suas idealizações de estudante


em proposta de ação. Hoje, ele é um dos participantes ativos da ASAFTI (Associação
Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais). Trata-se de um fórum amplo e
permanente para estudar a interculturalidade. São temas do fórum: a filosofia, a teo-
logia, a literatura, a pedagogia, a história, a antropologia, o estudo de gênero, numa
perspectiva intercultural. Essa rede se amplia com o Corredor de las Ideas del Cono
Sur que, em 2010, focaliza o tema do Bicentenário da independência de muitos países
latino-americanos. O Corredor deseja fomentar a criação de redes intelectuais que ar-
ticulem setores universitários entre si e com outras áreas, tanto governamentais como
da sociedade civil. É uma rede voltada à difusão de atividades relativas à integração
acadêmica (mestrados e doutorados) entre pensadores do Cone Sul.

Além do mais, Ricardo Salas é efusitvo atuante do Programa de Diálogo Norte-


Sul. O último seminário foi realizado na EST (Escola Superior de Teologia), em São Le-
opoldo (18 a 20 de maio de 2010). O tema do XIV Seminário Internacional do Programa
de Diálogo Norte-Sul foi Vida cotidiana: Lugar de intercâmbio ou de nova colonização
entre o norte e o sul. A revista Concordia é um dos veículos primordiais dessa discussão
(www.druckservice-aachen.de ou www.verlag-mainz.de).

Como é possível perceber, há vários enlaçamentos de uma rede de estudo e


intercâmbio, reunindo pesquisadores de distintas áreas, sem limitar-se a pensadores e a
tema estritamente latino-americanos. Aberto à diversidade e à pluralidade, Ricardo Sa-
las se articula nessa ampla e complexa constelação epistemológica, e sua contribuição
não se limita ao resgate da capacidade crítica da filosofia, mas em recapacitar a própria
filosofia na busca de outras epistemologias possíveis.

Ricardo Salas Astrain – 17


O terceiro aspecto deste prefácio diz respeito à obra Ética intercultural. (Re)
Leituras do Pensamento latino-americano. Assim como a ética intercultural é polifa-
cética, esse livro também revela essa característica. Nesse sentido, é preciso destacar o
esforço do autor em redefinir conceitos como cultura, interculturalidade e ética intercul-
tural, bem como em aproximar autores latino-americanos com pensadores como Apel
e Habermas, entre outros. Em outras palavras, ele procura realizar uma hermenêutica
das principais categorias filosóficas e mostra como elas são trabalhadas pelos diferentes
autores. Nessa direção, Ricardo Salas insiste que é preciso arrostar o binômio universa-
lismo versus contextualismo, como sendo duas interfaces da filosofia intercultural. Em
razão disso, a pragmática dialógica é uma condição imprescindível para levar adiante
a proposta de uma ética intercultural preocupada com a universalização das exigências
normativas, com o multifacético mundo da diferença e em relações que presumem a
conflituosidade entre sujeitos-atores.

Essa discussão se associa à temática do mundo da vida (Lebenswelt). Não é por


azar que o tema do mundo da vida esteja vinculado à interculturalidade. O assunto não
se limita aos seguidores de Husserl. Além de pesquisadores sociais, a questão envolve
também estudiosos de Habermas e de Ricoeur, por exemplo. Apesar das dificuldades,
Habermas sempre menciona, em seus textos, o termo Lebenswelt. Na América Latina,
pode-se destacar Raúl Velozo, Alcira Bonilla, Alejandro Moreno, Iván Canales Valen-
zuela, Ricardo Salas, entre muitos outros. A listagem é contingencial. Todavia, o debate
assume proporções significativas, tanto na critica à cientificidade moderna presente na
ciência, como na compreensão de outros mundos. Nesse sentido, o tema é fundamental,
aspecto que a filosofia não pode perder de vista.

Trata-se de um pressuposto teórico-filosófico peculiar – que se compreende pela


chamada tradição e filosofia da diversidade cultural – e de memória como filosofia. Por
isso, a releitura proposta por Ricardo Salas é um esforço para levar adiante essa pers-
pectiva filosófica para compreender a realidade social e política de nosso tempo a partir
de uma hermenêutica compreensiva da realidade. Sem dúvida, a leitura do livro permite
compreender como é possível recontruir as condições discursivas fundamentais exigi-
das por um diálogo que assegure o vínculo e a reciprocidade entre os diferentes mundos
de vida e as distintas percepções de bem viver. Enfim, a obra indica a continuidade da
preocupação filosófica de um debate que a modernidade não conseguiu concluir.

Jovino Pizzi

18 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


PREFÁCIO DA EDIÇÃO CHILENA

É possível que seja, simplesmente, a inércia dos hábitos de pensar, criados e fo-
mentados por uma deformação profissional racionalista e elitista a que fez com que nos
acostumássemos a compreender mal a distinção entre pensamento e vida, entre teoria e
prática. Em um nível mais acadêmico, trata-se da separação entre razão teórica e razão
prática o que, ao final de tudo, explica melhor porque, até os dias atuais, constata-se,
na filosofia, uma forte tendência de desconectar a atividade filosófica em relação aos
mundos de vida, bem como de suas práticas culturais concretas, comumente chamados
“os sujeitos em suas culturas” ou “a gente”.

Esta tendência, que se agrava com a modernidade européia, embora seja mais
antiga que ela, se manifesta através de um longo e complexo processo que é, por sua
vez, a base das múltiplas implicações no desenvolvimento da filosofia. Como é óbvio,
não podemos nos deter aqui em uma análise sobre o tema. No entanto, nos permitiremos
recordar, de forma sintética, duas das referidas implicações.

Em primeiro lugar, refiro-me à contextualização e descontextualização do saber


filosófico; e, em segundo, à ampla aceitação – provavelmente devido à influência de He-
gel – da idéia de que a filosofia deve aplicar-se primordialmente à compreensão lógico-
conceitual de sua época correspondente e/ou da história. Recordemos aquela idéia de
que filosofia é elevar a realidade ao conceito.

Sem dúvidas, o fato de destacar, nesse momento, as duas implicações, não sig-
nifica polemizar com Hegel. Trata-se mais precisamente porque são elas as que, com
maior clareza, contornam a constelação da filosofia intercultural enquanto corrente que
propõe uma alternativa para transformar nossos modos de praticar a filosofia. Em ou-
tras palavras, essa perspectiva significa uma “provocação” no sentido de mudar o rumo
da filosofia, defendendo, precisamente, a recontextualização da atividade filosófica nos
mundos de vida, nas culturas vivas das “gentes”. Além disso, como conseqüência do
primeiro aspecto, o foco está em defender que todo exercício sábio da inteligência hu-
mana não pode culminar na razão ou em uma compreensão meramente conceitual de
nossos tempos e de seus contextos. Na verdade, trata-se de mostrar seu auxilio para

Ricardo Salas Astrain – 19


sermos responsáveis neles e com eles, isto é, de posicionar-nos eticamente nesses con-
textos e, assim, a orientar-nos na resposta à pergunta de como devemos nos comportar,
se desejarmos que as nossas ações sejam atualizações do humano.

A razão não representa um fim em si mesma. Ela é um meio a serviço da hu-


manidade do ser humano e da plena realização de sua dignidade. Com esse critério, um
tanto universalizável, o movimento da filosofia intercultural busca promover a trans-
formação da filosofia, cuja função central é o reencontro com as culturas. O diálogo
com elas e entre elas permite aprender a diversidade na qual a diversidade fala sobre
o humano, lutando por isso com o fim de aprimorar esse diálogo. São estas memórias
de humanidade – sobre as quais já falava, sem dúvidas, Paul Ricoeur – as que a filoso-
fia intercultural quer estabelecer conexão, para ajudar na manifestação do humano em
toda sua diversidade. Além disso, e acima de tudo, deseja-se contribuir, sobre a base
da interação e da assistência corretora recíproca, para o desenvolvimento das relações
realmente humanas entre as distintas memórias ou culturas em que a humanidade diz
e realiza sua plural diversidade. A partir dessa articulação, na tarefa da comunicação
intercultural entre as culturas e os contextos de vida “das gentes” que a filosofia inter-
cultural compreende seu próprio desenvolvimento, como filosofia que renasce a partir
das muitas superfícies culturais e, de modo especial, das relações entre elas.

Entendida dessa forma, a filosofia intercultural se apresenta e se projeta como


um movimento aberto de relações, um diálogo entre diálogos passados e presentes, em
cujo curso se redimensionam as tradições, as culturas e as memórias que marcam os res-
pectivos pontos iniciais nas relações que se estabelecem. Por isso mesmo, é um diálogo
que “move” ou “flui” esses pontos que consideramos iniciadores, ao tornar patente sua
relatividade, ou seja, sua “relacionalidade”.

A filosofia intercultural é compreendida a partir desse diálogo, pois entende que


nele, tudo é exercitado. De fato, é a partir do diálogo que será decidido se somos ca-
pazes, ou não, de caminhar em direção de uma cultura de convivência, cultivada como
“bem universal”, porque nela todos e todas escrevem a universalidade elucidando a
relacionalidade das diferenças, construtoras de nossa diversidade.

Por outro lado, compreendo, ao menos à primeira vista, a importância signi-


ficativa que a filosofia intercultural concede a este processo de diálogo entre culturas.
Todavia, isso pode transformar-se em alto um tanto exagerado se decidimos apostar
tudo nele. Por isso, permito-me esclarecer ainda mais esta afirmação, com a seguinte
definição: é decisivo, para o futuro da realização do humano, em toda sua variedade,
este diálogo porque, segundo a perspectiva da filosofia intercultural, se trata, no fun-
do, de um complexo diálogo entre eticidades, que nos deve colocar em condições de

20 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


reencontrar-nos com a “medida” da convivência solidária, como medida de todas as
medidas, que nossas memórias culturais contextuais nos transmitem.

Enfim, creio que é, precisamente, esta base – pois o diálogo intercultural é,


fundamentalmente, um diálogo de eticidades – o que nos ajuda a compreender e a es-
clarecer este novo livro de Ricardo Salas Astrain. Trata-se de um livro que exercita esta
chave da interculturalidade, dialogando com as eticidades da América Latina e suas in-
terpretações ou propostas em contextos de práticas culturais, muitas vezes, antagônicas
com outros esquemas axiológicos. O livro exercita o diálogo e nos mostra pistas inova-
doras, para que a América Latina aprofunde a interatividade e a solidariedade com sua
própria diversidade. Enfim, além de ser um livro que embasa o exemplo do pensamento
latino-americano atualmente comprometido, nos anima a praticar a filosofia como es-
forço e componente de uma cultura humana de convivência.

Raúl Fornet-Betancourt

Ricardo Salas Astrain – 21


INTRODUÇÃO

O título deste livro, Ética Intercultural, parece ser instigante. Por isso, em uma
época de transformações culturais, ele pode despertar muitas expectativas, de modo
especial naqueles que já começaram a compreensão reflexiva da dinâmica dos sentidos
culturais. O intercultural aparece, atualmente, em polifacéticos campos de estudo: nas
culturas étnicas e populares, nos estudos culturais, nos encontros entre religiões, nos
meios de comunicação, nos modelos educativos e de gestão ou, simplesmente, torna-se
vitalmente perceptível nas pessoas que buscam aprofundar os sentidos intrincados con-
cernentes às próprias tradições culturais e religiosas em que nascemos. O intercultural
é, então, uma preocupação pelas novas formas culturais emergentes, pelo sentido no
qual se desenvolve a agitada vida cotidiana em tempos de globalização e, até mesmo,
de exclusão. Os sujeitos reflexivos deveriam ser, então, os primeiros potenciais leitores
desta cogitação. Assim, para não despertar-lhes expectativas que não pudéssemos cum-
prir satisfatoriamente, desejamos indicar os alcances e limitações do argumento central
e os conteúdos temáticos essenciais deste livro.

Desde o início, é pertinente determinar que a ética intercultural represente ser


uma proposta filosófica enraizada. Por isso, no seu surgimento há, no mínimo, um duplo
interesse cognoscitivo e acadêmico: o interesse do pesquisador em pensar as relações
interculturais e intraculturais que afetam a vida cotidiana e as dinâmicas existenciais
das subjetividades emergentes, nas quais estivemos trabalhando durante vários anos; e
diante da necessidade crescente, que experimentamos como professores, de aproximar
as discussões éticas contemporâneas aos estudantes universitários e a outros públicos
não universitários. Trata-se, então, de um esforço de abertura da ética filosófica a outras
formas de reflexão da moral, as quais foram dando conta de nossos pluriformes estilos
de vida.

Uma parte importante destas idéias já foi proposta em comunicações e em se-


minários universitários de graduação e de pós-graduação, que proferimos a respeito de
“filosofia e ética latino-americanas”. Tais reflexões, tal qual se condensam aqui, foram
acrisoladas a partir de um pensar e um viver a convivência intercultural, mas é, sobre-
tudo, o produto final de uma prática investigativa interdisciplinar da ética em contextos

22 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


culturais conflitivos. O subtítulo de uma ética discursiva para contextos culturais con-
flitivos responde a tudo isso.

A proposta ética, formulada com este nome, refere-se, dessa maneira, a um cam-
po heterogêneo de questões atuais, teóricas e vitais, que preocupam aos filósofos que,
na atualidade, estudam os dinamismos dos valores culturais e os problemas associados
à desregulamentação crescente que afeta a vida social no marco da globalização, em
especial, em um horizonte latino-americano. Em efeito, este é um texto que sintetiza e
recapitula uma série de problemáticas teóricas de filósofos e cientistas sociais, em torno
das vivências morais e discursos a respeito da eticidade, do ethos, do agir, do relativis-
mo, etc. Algumas delas já foram bastante difundidas, enquanto outras, infelizmente, não
são suficientemente conhecidas fora dos estudos latino-americanos. O livro que reúne
uma parte do debate em torno dos problemas associados à ética contemporânea e passa
às mãos algumas contribuições para entender os significados básicos da ética e da moral
presentes na filosofia latino-americana atual.

Por último, ele representa o esboço de uma ética intercultural com arraigamen-
tos latino-americanos. De modo especial, ela pode ser estimulante para os jovens e
os demais sujeitos sociais emergentes, no sentido de revelar que as questões morais e
éticas não estão afastadas dos problemas cotidianos que os afetam e, menos ainda, em
acreditar que os problemas culturais e sociais, que as sociedades contemporâneas atra-
vessam, podem ser resolvidos apelando para princípios teóricos. Na verdade, eles estão
na retaguarda de um saber viver dos homens e mulheres em seus contextos. As subjeti-
vidades emergentes devem ser entendidas como aquelas que não encontram espaço em
um modelo homogeneizado. Nesses contextos de exclusão, encontramos os pobres, os
indígenas, os jovens, os campesinos expulsos e emigrantes.

Antes de mais nada, é preciso clarificar alguns aspectos desses interesses no


marco do argumento central do livro. Em um primeiro plano, trata-se de uma proposta
filosófica específica, que assume os conteúdos éticos a partir de uma reformulação inter-
disciplinar. No meio acadêmico-universitário, isso é um tanto atípico, porque conden-
sa uma pluralidade temática, evidenciada, especialmente, no modo dialógico de apro-
fundar seu desenvolvimento conceitual, fazendo alusões a tradições diversas. Ela não
se enquadra, portanto, apenas dentro de uma tradição disciplinar clássica (a filosofia),
muito menos a partir de uma matriz cultural específica (um ponto de vista nacional, no
caso, o chileno). Essa obra se abre, efetivamente, a um diálogo inter-disciplinar e inter-
-nacional dos discursos éticos, tal como pode ser encontrado em redes acadêmicas que
estão surgindo, nas quais participamos e que consolidaram estas novas temáticas.1

1 De forma especial, gostaria de mencionar as redes acadêmicas do Cone Sul da América Latina, entre

Ricardo Salas Astrain – 23


Características de uma ética latino-americana
Este marco de interação de tradições apresenta uma elaboração filosófica de
cunho europeu e latino-americano, destinado a professores, estudantes e leitores sem
formação filosófica. De modo especial, serão explicitados os principais pontos temáti-
cos da ética e do pensamento de filósofos latino-americanos que, nos últimos 30 anos,
realizaram contribuições teóricas, com vistas a compreender os vínculos entre os prin-
cípios éticos e/ou os valores humanos universais na sua relação com os contextos cul-
turais. Em particular, far-se-á menção a pensadores que já se destacam, de um modo
prototípico, no debate atual. Entre eles, dar-se-á realce a filósofos como Dussel, Kusch,
Fornet-Betancourt, López Velasco, Maliandi, Michelini, Roig, Scannone, entre outros.
O último subtítulo do livro – Leituras do pensamento latino-americano – indica uma
referência bastante particular às obras desses filósofos.

É importante aclarar esse caráter latino-americano, para que seja assumido de


forma adequada. Primeiramente, nas principais categorias éticas podem ser encontradas,
nas obras citadas destes autores, com duas fontes teóricas: a que responde a uma reflexão
filosófica européia atual e outra que remete às temáticas específicas da ética latino-ameri-
cana, oriunda da análise ética de situações conflitivas dos últimos 30 anos. A maior parte
das discussões destes filósofos latino-americanos refere-se, sem dúvidas, a categorias de
filósofos europeus, que marcaram o debate metodológico e ontológico da ética. Trata-se
da primeira corrente, na qual se destacam filósofos como Kant, Hegel, Marx, Husserl,
Heidegger, Levinas, Habermas, Apel, Searle e Ricouer. Esses seriam alguns nomes mais
relevantes. A segunda fonte reúne categorias e referências teóricas que fazem alusão a
uma tradição específica de filósofos e pensadores latino-americanos. Essa última contri-
buiu para consolidar as categorias éticas de uma ética discursiva e contextual, procurando
avançar na explicação dos processos culturais e políticos específicos, vividos na América
Latina, e as universalizaram no campo de domínio racional.2

Em um segundo momento, este livro tratará de introduzir os leitores uma breve


panorâmica, salientando duas formas que, nos estudos filosóficos, se tornaram clássicas
na compreensão dos problemas éticos e morais. Por um lado, será exposta a hermenêu-

as quais cabe mencionar a Associação de Cientistas Sociais de religião do Mercosul, o Corredor das Idéias
e a Associação Sul-Americana de Filosofia e Teologia Intercultural (ASAFTI).
2 Uma análise das categorias atuais pode ser encontrada na importante Enciclopedia Iberoamericana
de Filosofía, sob a responsabilidade do CSIC e editada pela Editora Trotta de Madrid, com mais de 30
volumes. Nela, colaboram conhecidos filósofos ibero-americanos. Outras cinqüenta categorias filosóficas
fundamentais podem ser consultadas na obra mancomunada de filosofia latino-americana, localizada em
uma Antología de Concepos Latinoamericanos, no Boletim de Filosofia-UCSH, N. 9, 1997-8, 3 volumes.
Cf. os sites web: www.polylog.org e www.fil.org.

24 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


tica dos registros míticos e narrativos, nos quais os valores em seus conceitos sociais e
culturais estão situados, e, por outra, será apresentada uma pragmática que reitera a jus-
tificação dos enunciados éticos a partir de princípios universais. Nos dois casos, trata-se
de apresentar algumas categorias básicas, de apresentar algumas observações críticas e,
especialmente, na busca de valorizar essa dupla perspectiva filosófica, considerando-as
como teorias pertinentes para construir as bases de uma ética discursiva de cara aos
contextos culturais específicos, especialmente como os conflitivos em que a América
Latina se encontra. Ao longo deste texto, indicar-se-á a vitalidade da discussão ética
universalista existente no meio filosófico latino-americano, explicitando as concepções
éticas relevantes que os autores citados consagraram e que permitem dar conta de uma
ética capaz de responder aos conflitos sociais e culturais.3

A ética intercultural, de origem latino-americana e que será aqui debatida, re-


presenta uma proposta teórica que nasce, na maior parte das vezes, no diálogo com os
filósofos já mencionados. A leitura, a análise e a re-elaboração de suas teses teóricas e
categóricas, consideradas pertinentes para a elaboração do argumento deste livro, é de
nossa exclusiva responsabilidade. No entanto, ela não é apenas uma proposta teórico-
acadêmica, porque se vincula profundamente às convicções humanas fundamentais,
presentes na vida de nossos povos e nos filósofos mencionados, constituindo o hori-
zonte do mundo da vida. Tais convicções conformam parte da valorização reflexiva
e crítica, a partir do pensar filosófico, das formas de saberes e de práxis inerentes aos
processos de emancipação e de lutas histórico-culturais, permanentemente presentes
nessa América indígena, negra e mestiça. Trata-se, então, de estabelecer as condições
do “diálogo ou polilogos intercultural. No fundo, não é um debate entre ‘idéias’ e
universos simbólicos, mas entre pessoas que vivem dentro destas idéias e universos.
Não podemos falar ‘sobre’ algo, se não falamos com alguém.”4 Em relação a isso, sen-
timo-nos vinculados a esta vitalidade pré-reflexiva e teórica do inter-logos em que os
filósofos, nas suas buscas de um diálogo entre sabedorias, contribuem, a partir de suas
perspectivas, a estabelecer mediações teóricas – e confirmam criticamente também
sua importância –, com o objetivo de alcançar o reconhecimento mútuo das sabedo-
rias das comunidades humanas. Ao mesmo tempo, este saber filosófico contribui para
desvelar os projetos hegemônicos que ocultam a diferença e a estigmatizam. Trata-se
de compartilhar esforços para pensar uma crítica ético-política das condições sociais
e culturais opressivas e injustas, de modo especial àquelas que afetaram comunidades
indígenas e afro-americanas. São diversos setores sociais segregados e, por isso, é

3 É imprescindível salientar que a perspectiva aqui elaborada, não é uma interpretação exaustiva da
obra dos filósofos mencionados, mas uma leitura interpretativa que reúne um material terminológico e con-
ceitual, necessário para esboçar os elementos centrais de uma ética discursiva, introduzida na composição
teórica de uma hermenêutica dos relatos e de uma justificação normativa racional.
4 ESTERMANN, 1998, p. 292.

Ricardo Salas Astrain – 25


indispensável denunciar as antigas e as novas práticas de dominação que afligem as
subjetividades humanas. Em particular, trata-se de uma crítica aos pressupostos ine-
rentes aos modos de segregação e exclusão, resultantes da racionalidade instrumental
(eficiente e eficaz) e, inclusive, de um modelo econômico que não reconhece e nem
valoriza a vida e a atividade humana como valores primordiais das pessoas.

Desafios éticos da sociedade moderna:


universalismo ou contextualismo?
A ética intercultural refere-se, pois, às enormes transformações sócio-culturais,
refletidas na linguagem cotidiana sob as expressões de crise moral, relativismo moral
e individualismo. Em termos mais específicos, ela se relaciona ao amplo e complexo
debate filosófico atual sobre o sentido da vida em comum, onde se constatam transfor-
mações relevantes dos âmbitos valorativos e normativos das sociedades pluricêntricas
modernas, particularmente das que conhecemos mais: as européias e as latino-ameri-
canas. No entanto, isso pode ser atualmente relacionado ao conjunto da humanidade.
Nestas sociedades, marcadas pela diversidade cultural, os sujeitos convivem e, às vezes,
somente sobrevivem, em meio a crescentes controvérsias a respeito de suas certezas e
crenças morais. Nesse horizonte, é possível constatar – no dizer de alguns autores – uma
crise civilizatória continuada e modificadora dos sentidos. Com isso, a compreensão e
valoração do sentido cultural, subjacentes à existência humana em meio de uma univer-
salidade fáctica, tornam-se muito mais problemáticas. Trata-se de uma universalidade
fáctica que remete à “estruturação das formas de vida existentes no planeta”, os quais
aparecem, atualmente, como “um fato incontroverso, do qual nenhuma forma de vida
de nosso planeta permanece alheia.”5

Os processos sociais, econômicos e culturais, que internamente perpassam estas


sociedades – já atestados pelas pesquisas das ciências humanas e sociais desde princí-
pios do século XX –, propõem os problemas éticos da anomia e do politeísmo valorativo
da sociedade capitalista. Eles representam as novas formas ideológicas de conceber uma
sociedade que não valoriza o trabalho para todos e, inclusive, dando lugar a sucedâneos
significados aos costumes, como o passatempo e o entretenimento, que aparecem como
o motor fundamental do âmbito cultural, ao menos da maneira como o mostram os
meios de comunicação, para os quais a moralidade aparece como uma farsa.

No entanto, esse diagnóstico crítico de uma modernidade ocidental européia


não representa o variado conjunto das experiências morais, que surgem em muitos indi-

5 COROMINAS, 2000, p. 33; Cf. também BIAGINI, 2000, p. 50 ss.

26 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


víduos de nossas constelações culturais americanas. Na verdade, a questão imprescin-
dível a delinear a perda do sentido em uma sociedade que valoriza o agir responsável
da atividade humana não se relaciona somente à perda de seu caráter ético social. A
exigência está em assumir o aniquilamento do aspecto vinculador do agir social – coti-
diano – e as tentativas de domesticação dos mundos da vida em que os saberes e práticas
cotidianas dos sujeitos são formadas. A partir da perspectiva desta ética intercultural, a
perda do sentido da atividade humana e a desregulamentação do agir moral cotidiano
não podem ser consideradas como um fato apocalíptico. É preciso ter em vista que os
sujeitos viventes assumem suas práticas através da criação de outras ações, que reivin-
dicam o sentido de ser sujeitos viventes.

No entanto, a relevância da nova forma de emanar a ação do sujeito vivente e da


individualidade contemporânea, somente pode ser teoricamente compreendida fazendo
referência aos contextos culturais, a partir dos quais nascem valores, sentidos, símbolos
e práticas. O horizonte de arraigo da vida humana comum é o húmus, a partir do qual é
possível entender as transformações valorativas e normativas. Nesse sentido, embora na
linguagem cotidiana de alguns sujeitos urbanos seja possível admitir que a moral seja
algo de cada um, existe, na própria experiência vital, o reconhecimento de que o valor
não é individual, porque nasce a partir de uma relação. Nesse plano, o reconhecimento,
no seu sentido pleno, forma parte das comunidades de vida e nasce a partir da linguagem
da família humana. Assim, por mais que exista uma determinada moda, oriunda de uma
sensibilidade pós-moderna, exagerando ao definir a prerrogativa da individualidade, em
seu sentido latente, ela precisa ser entendida em um pano-de-fundo das tradições mo-
rais, cuja centralidade ética está na pessoa humana, no homem e na mulher, no gênero
humano em toda sua grandeza e debilidade. A respeito destes discursos prevalecentes,
Parker se pergunta:

Quantos discursos econômicos ou políticos foram expatriados de seu lé-


xico, como atavismos ineficazes, palavras como amor, bem comum, festa
e vida feliz? Quantos destes discursos se vêem compelidos – pelo código
retórico que aparece como imperativo do momento – a estruturar-se de
esguelha e parcial, exclusivamente em torno a conceitos como competiti-
vidade, eficiência, maximização ou produtividade?6

Essas perguntas explicitam as exagerações de uma racionalidade modernizado-


ra, que segue sendo apresentada como o melhor modo de vida, que sofre, todavia, sérias
dificuldades éticas. Essas demonstrações em torno das palavras, que caem em desuso ou
se exilam em terras distantes, não podem ajudar a entender a tese subjacente a uma ética

6 PARKER, 1998, p. 28.

Ricardo Salas Astrain – 27


filosófica que estabelece, de um modo íntimo, os vínculos entre indivíduo-comunidade-
sociedade. Todavia, é preciso admitir não ser esta a tese propriamente plausível. Ela
tende a ser, esquematicamente, entendida através de duas posições teóricas nada próxi-
mas e, aparentemente, inconciliáveis: o universalismo e o contextualismo. Em primeiro
lugar, é preciso ter em vista que a vida moral de uma cultura específica não pode ser
considerada como um critério ou um parâmetro universal da ética. Em segundo lugar,
os contextos culturais são os únicos que permitem justificar os diversos bens plurais,
de modo que eles podem dar conta do surgimento de emergentes formas de vida dos
indivíduos, produto da perda de parâmetros morais.

Na nossa analise ética, as duas perspectivas deveriam ser corrigidas, de forma


mútua, pois nenhuma delas pode dar conta, por si só, dos fenômenos morais, algo muito
presente nas versões de cada extremo. Em relação a isto, Fonti deu a entender que

universalismo e diferença cultural se complementam; de outra forma, nos


encontraríamos com um universalismo vazio ou com posições culturais
dogmáticas [...]. Universalismo e diferença hão de ser complementares,
inclusive como aspiração ideal. Elas são complementares enquanto duas
dimensões da moralidade que interagem, sem que uma anule a outra.7

A proposta da universalização aparece nas teses baseadas na eticidade, chegando


a reconhecer, como o faz Kusch, que “qualquer cultura possui, em si mesma, uma alta
cota de universalidade, quero dizer, consegue universalizar-se facilmente.”8 Por isso, é
preciso exigir considerações teóricas distintas dos contextos culturais para compreen-
der que os processos culturais, resistentes ao predomínio atual da des-regulamentação
normativa e valorativa que o atual processo de globalização econômica sofre, exigem a
compreensão da universalidade fáctica emergente. Além disso, é preciso demonstrar que
as diversas formas de resistência à homogeneização, elaboradas pelas comunidades de
vida a partir de suas tradições, nutrem-se das práticas intersubjetivas dos mundos de vida.

Nesse sentido, o novo contexto de interdependência econômica articula, de ou-


tro modo, a problemática entre homogeneização (consumo dos mesmos bens) e hetero-
geneização (demandas identitárias contextuais). Há algum tempo Scanonne afirmava o
seguinte:

Esta estruturação (a neodependência) é a sintaxe que, de fato, vem articu-


lando este projeto de novo ethos cultural (de modernização neocapitalista)

7 Cf. FANTONI, em: www.polylog.org


8 KUSCH, 1976, p. 145.

28 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


para América Latina. Sob outro prisma, sua sintaxe explícita, ou seja, ideo-
lógica (porque encobridora), se articula como projeto indefinido na direção
de uma idéia normativamente universal.9

Do outro lado do Atlântico, o enfoque pragmático dos discursos da modernida-


de também permite vincular, de outra forma, estas posturas em disputa. Sobre isso, Jean
de Munck, um filósofo belga escreve:

A modernidade não se reconciliou consigo mesma. A confrontação de dois


mundos não segue nenhuma síntese. Simplificando as coisas, afirmamos
que nos encontramos frente a uma nova clivagem. Por um lado, consolida-
se um programa formal de racionalização, que deveria ser aplicado a to-
dos os contextos e situações. Esse programa neo-liberal projeta um mundo
unificado em torno do mercado e dos direitos humanos. Por outro, os con-
textos resistem, com obstinação, no sentido de afirmam seu direito à parti-
cularidade frente a estes formalismos vazios, encontrando uma vitalidade
inquestionável, que pode chegar ao extremo, até sem-razão (déraison).10

Nesse sentido, e de acordo com as teses de Scanonne e De Munck, o tema cen-


tral da ética, tendo como referência o capitalismo tardio, deveria ser o da superação da
contradição simplificada entre universalismo e contextualismo.

De fato, a ética intercultural é uma proposta teórico-prática, evidenciando que a


questão teórica do contextualismo e do universalismo não é algo que nasça na discussão
filosófica liberal dos países anglo-saxões. Ela provém de uma discussão no interior da
América Latina. Há mais de 30 anos, ela inicia interpelando, a partir de uma determi-
nada experiência moral, que se nutre dos mundos de vida, as bases estratégicas de uma
racionalidade subjacente ao modelo econômico hegemônico.

Na perspectiva intercultural mais ampla, não se trata de procurar resolver a ques-


tão através da primazia de um dos dois pólos: ou se apela a um ethos já definido, isto
é, um ethos essencialista, que permita compreender a resistência a um processo estru-
tural maior; ou, então, passa-se a aceitar um modelo fáctico universal, que não pode ser
mudado. Diante disso, nossa convicção indica a necessidade de propor categorias que
permitem dar conta das novas configurações do ethos atual, em meio a um mundo econô-
mico, no qual os mercados e as culturas interagem e cujos mundos de vida interagem e se
interpelam. Para isso, o esforço introdutório de consultar as categorias e distinções, ela-

9 SCANONNE, 1990, p. 153.


10 DE MUNCK, 1999, p. 02.

Ricardo Salas Astrain – 29


boradas pelos filósofos latino-americanos, converter-se-á em uma fonte preciosa. Nesse
sentido, é importante olhar este problema a partir da perspectiva das tradições.

Além disso, essa questão apresenta ainda outra linha de intersecção. O debate
deve atentar para a vigência ou a perda das tradições em uma sociedade policêntrica,
na qual surgem modos díspares de valorizar o pensamento tolerante ou intolerante.11
A perspectiva neo-conservadora insiste em reabilitar as tradições morais, aspecto vin-
culado à idéia da insuperabilidade do mundo de vida como base do ethos. Todavia, é
mister indicar, simultaneamente, a impossibilidade de aceitar sua interpretação negativa
das mudanças da vida social como sendo uma crise moral civilizatória. Por outro lado,
os autores de cunho liberal e pós-moderno insistem em que nos encontramos, antes, na
presença de mudanças culturais significativas. Elas geram novas formas de vida humana,
sem poder introduzir formas de condução social, nem de protagonismo moral. De certa
forma, há uma meia verdade. É correto afirmar que a sociedade policêntrica admite cada
vez mais a heterogeneidade cultural. Todavia, contra o mero diagnóstico sociológico
destas sensibilidades heterogêneas, deve-se afirmar que existe sempre um pressuposto
da ‘vida em comum’, alimentado a partir de um estilo de vida particular. Ao assumir que
a vida humana se vincula estreitamente à conflitividade, a heterogeneidade ou, então, a
diversidade cultural não é algo problemático. A complexidade consiste em oferecer as
condições que assegurem os esforços mútuos de convivência. O essencial da ética, que
supera o diagnóstico cultural de cunho pós-moderno, está em abrir-se ao debate dos mo-
dos de vida. Frente à discussão e deliberação dos estilos de vida emergentes, é essencial
definir os registros discursivos que assegurem a reconstrução de um mundo humano, isto
é, que ao menos ele seja bastante ‘melhor’, ‘bom’ e ‘justo’ do mundo que recebemos.

Evidentemente, para os filósofos do ‘fim da história’ e da pós-modernidade, não


cabe mais utopia a não ser decretar a morte da utopia. Qualquer esforço por alcançar uma
melhor convivência é uma índole puramente fragmentária, parcial e episódica. Atualmen-
te, para alguns filósofos e, inclusive, para o cotidiano das pessoas, é impossível discutir
em termos de utopias que reúnam a dinâmica dos processos de mudança. Culturalmente,
desponta a visão que decreta a impossibilidade para imaginar e viver em uma nova terra.
De fato, parece consolidar-se, na época atual, uma perspectiva moral que deveria concen-
trar-se em uma moralidade de indivíduo, como um simples si próprio. Todavia, contra
tais idéias, é possível evidenciar a perspectiva de uma historicidade, como a destacada
por Cerutti. Segundo o autor, “a partir do presente, é possível propor questionamentos ao
passado, com vistas a abrir um futuro alternativo. Trata-se de um proceder utópico, que
incorpora a tensão utópica no próprio método.”12 Nesse sentido, Ricoeur lembrou que a

11 Cf. Esta distinção em Morandé, 1998, p. 201 ss.


12 CERUTTI, em SOBREVILLA (Ed.), 1998, p. 141.

30 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


narrativa histórica não pode ser desvinculada da ética, porque ela é, justamente, o âmbito
no qual se torna relevante à pergunta em torno do que “os homens buscaram, alcançado
ou deixado de conseguir o que consideravam que constituía a verdadeira vida.”13

Nossa convicção segue a linha dos que nos precederam no mundo da filosofia
e no mundo da vida. Sem dúvida, o bom e o justo advêm somente como parte de uma
ação, livre e comprometida, no seio de heranças e memórias que nos permitem visu-
alizar novos horizontes para o agir. Embora isso ressoe como a reivindicação de um
determinado utopismo, podemos afirmar que a ética se sustenta, necessariamente, na
esperança do advir de novas configurações da razão e das razões da vida. Trata-se, es-
pecialmente, daquelas formas que assumem a razão e das razões da vida, em particular
daquelas formas que a razão prática assume em situações conflitivas, no sentido de gerar
as condições de possibilidade para o diálogo exigido à vida em comum. Esse é um pres-
suposto ético que provêm de um a priori antropológico, que, como afirma Roig, não é
antropológico, mas eminentemente axiológico.

Contudo, a questão antropológica e axiológica se relaciona à questão: como


viver humanamente em um mundo pluricêntrico, no qual se admitem valorações e
perspectivas diversas? Um dos principais obstáculos é tornar possível a comunicação
contra um tecnologismo inumano. O ganho seria enorme se conseguíssemos delimitar,
interculturalmente, os processos que geram obstáculos à comunicação e ao fechamen-
to solipsista dos indivíduos e das comunidades em suas eticidades. Essa possibilidade
estaria claramente associada a um re-reconhecimento dos discursos narrativos, os quais
mostram que o enlace interno que vincula os valores culturais a seus contextos. Ao mes-
mo tempo, eles exigem a recuperação do ponto de vista de um discurso argumentativo.
Essa exigência intercultural conduz a repensar, novamente, o sentido da discursividade
universal. Por tudo isso, parece-nos fundamental destacar a teoria pragmática dos níveis
discursivos, presentes em todas as culturas, permitindo dar conta da complexidade do
jogo das formas discursivas: os quais apresentam espaços de abertura e de fechamento.
Sob o aspecto intercultural, será possível fortalecer o diálogo e comunicação apenas
se nos reconhecemos em um interlogos, que defina as condições para a preservação de
toda vida humana e, acima de tudo, permita recuperar, em certo sentido, a modalidade
procedimental no sentido a ser desenvolvido a continuação.

13 RICOEUR, 1996, p. 167.

Ricardo Salas Astrain – 31


Três pressupostos: universalização, diferença e conflitividade
Decididamente, a ética intercultural, de índole filosófica, representa a aposta
pela reconstrução das condições discursivas fundamentais, requeridas por um diálogo
que assegure o vínculo de reciprocidade entre os novos modos de vida. Essa exigência
apresenta, pelo menos, três pressupostos que devem ser explicitados: a universalização,
a diferença e a conflitividade. Em primeiro lugar, como já foi indicado, trata-se de uma
modalidade teórica em torno da universalização do discurso humano – em uma tensão
entre as ciências humanas e a filosofia que tratam da dinâmica da vida em comum. Em
função disso, é preciso reconhecer a virtualidade de um discurso argumentativo, que
tolera uma pretensão de universalidade, em vistas a dar conta da conflitividade inerente
à vida moral. A discussão, a partir desse primeiro pressuposto, é uma exigência inerente
da vida moderna e da vida humana cotidiana.

O segundo pressuposto salienta que esta proposta tem raízes em contextos cul-
turais, constituídos através das ricas experiências históricas de testemunhos, de inicia-
tivas, de lutas e mobilizações de pessoas, de sujeitos históricos, de minorias étnicas
e religiosas e de comunidades latino-americanas de vida, na defesa da construção de
identidade e da justiça. Trata-se, então, de uma aposta teórica dialógica, em vista da
reconstrução de tradições morais, isto é, da reconstrução de memórias definidoras dos
caminhos a serem recorridos para alcançar uma mútua inclusão entre universalidade e
diferença. Esse processo garantiria as novas interdependências entre os povos, cujos
sentidos culturais das minorias articulam o conflito essencial com o fim de alcançar um
determinado mundo comum para maiorias e minorias. Nesse sentido, o projeto ético
não representa a mera tolerância, mas um novo modo intercultural de conviver recipro-
camente.

Em terceiro lugar, a ética intercultural requer um pressuposto sócio-histórico


e cultural, na procura de saber os sintomas conflitivos presentes, especialmente, nas
sociedades latino-americanas que viveram, desde suas origens até as últimas décadas,
signos de várias violências, de exclusões e de discriminações, as quais formam parte do
patrimônio de nossas comunidades. Nesse sentido, a ética intercultural tracejada signi-
fica, principalmente, uma reflexão filosófica dos símbolos e imaginários destes mundos
culturais e sociais, caracterizados pela conflitividade e pela procura de formas procedi-
mentais articuladoras dos sistemas de valores, de sistemas de mediação e de sistemas de
conciliação de interesses. No decorrer da obra, iremos expondo como estes pressupos-
tos, em relação a uma idéia de conflitividade mais depurada, devem ser entendidos.

Atualmente, é sabido que os conflitos inerentes à universalidade fáctica e intrín-


secos à globalização são crescentes, cuja sustentação no tempo é muito frágil e contra-

32 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


ditória. Existem problemas radicados na precariedade ecológica do planeta e na própria
racionalidade instrumental, cuja ampliação a todos os homens e sociedades é pratica-
mente impossível. Esse modelo unímodo e homogêneo dá consentimento a matérias
éticas complexas, longamente debatidas nestes anos, cruciais para darmo-nos conta das
dificuldades desta facticidade científico-tecnológica. Hoje, o terreno da ética, por exem-
plo, demanda por questões muito complexas. Como determinar os limites da tecnologia
e da ciência em seus processos de intervenção no corpo humano? Como conciliar os
inumeráveis interesses sociais e econômicos para cuidar e preservar a ecologia plane-
tária? Como entender e resguardar, de forma justa, os direitos humanos em uma ordem
mundial unipolar? Estas questões exigem uma ética aberta às limitações contingentes
da facticidade e seu vínculo com a vida humana. No interculturalmente predominante, a
epítome estaria numa visão do humano que – sem desconhecer sua estrutura ontológica
como ser consciente e livre – incorpora as raízes contextuais do ecológico, do político e
do social, os quais se encontram, intrinsecamente, unidos às raízes dos mundos de vida
e ao impacto dos modos da racionalidade instrumental.

A conflitividade
Na nossa discussão intercultural, a categoria conflitividade tem relevância na
formulação dos problemas históricos e sócio-culturais dentro dos quais cabe situar os
problemas éticos. Todavia, não se trata de uma idéia de conflito entendida como um
elemento estrutural e bipolar da sociedade de classes, mas de um conflito inerente às
sociedades humanas. Essa conflitividade se “apresenta como um processo dinâmico
de acordos e desacordos em diversos níveis.”14 Além do mais, o conflito é considerado
como um elemento fundamental da deliberação humana e, portanto, fator chave para a
compreensão do agir humano em sociedades concretas. O conflito é um elemento de-
cisivo para as ciências humanas e a filosofia, que interagem em diversos âmbitos. Com
certeza, o modelo do conflito contém implicações político-sociais, cujo reconhecimento
é imprescindível. No entanto, assim como se reconhece o papel crucial do conflito, nem
tudo pode ser reduzido ao conflito. Por isso, essa categoria também apresenta limita-
ções: Sem dúvida, “o esforço para superar os obstáculos pode ser considerado como
uma forma ou momento da sociabilidade, precedido por uma convivência que foi rom-
pida ou cuja experiência da reconciliação seja dela resultante.”15 Não se trata de exage-
rar o papel do conflito, mas de assumi-lo como um novelo de Ariadne.

14 ROIG, citado por PÉREZ ZAVALA, p. 162.


15 MORANDÉ, 1998, p. 93.

Ricardo Salas Astrain – 33


O modelo da conflitividade, como um elemento central da cultura e da moral,
foi bastante estudado por Maliandi. No caso, é possível, hipoteticamente, assumir sua
proposição:

Entendo a conflitividade, precisamente, como um tipo de relação que con-


juga a oposição e a mútua suposição entre os elementos inter-relacionados.
Tais elementos, por sua vez, se ‘excluem’ e, ao mesmo tempo, se ‘incluem’,
pois são complementares na constituição daquela unidade que, com a ir-
rupção do conflito, corre o perigo de desintegração.16

Essa definição permite, de este modo, considerar um tipo trágico de conflitos, o


qual apresenta sérias dificuldades para a filosofia. É possível aceitar como hipótese que
o conflito será entendido, de certa forma, como Maliandi o define, ou seja, como um
adequado complemento da ética do discurso de Apel:

Embora seja uma ética que delineia, antes de mais nada, a possibilidade de
resolução de conflitos, ela não consegue distinguir, suficientemente, as es-
truturas conflitivas da realidade social. Tais estruturas não determinam os
conflitos concretos contingentes, porque permanecem – como um a priori
– além de sua solução. Assim, como o racional se vincula, sem dúvida, à
solução (ou à minimização) de conflitos, constitui-se, ainda assim, na única
instância a partir da qual essa conflitividade a priori pode ser reconhecida
(inclusive por meio de ‘reflexão pragmático-transcendental’).17

Como é possível perceber, o conflito deve aparecer como uma estrutura cons-
tituinte do diálogo intercultural. Ele será entendido como um determinado a priori da
ação contextualizada, de forma que deveria ser entendido, então, sempre de forma plu-
ral frente a contextos heterogêneos e, de uma forma ainda mais palpável, assumindo
crescentes formas díspares e sendo plasmado em diferentes níveis discursivos. Nesse
sentido, Kusch salienta que “o problema da América é a falta de tolerar possíveis racio-
nalidades diferentes, quem sabe para encontrar uma racionalidade mais profunda, ou
melhor, mais próxima a nossos conflitos.”18 É imprescindível reconhecer não apenas
os conflitos que desarticulam os mundos de vida presentes em cada uma das socieda-
des latino-americanas – que as morais emergentes presenciam. É necessário evidenciar
também os múltiplos conflitos os povos e as comunidades vivenciam em suas relações
com outros aglomerados, em um mundo econômico internacional que, se, por um lado,

16 MALIANDI, 1984, p. 10.


17 MALIANDI, 2002, p. 70.
18 KUSCH, 1976, p. 136.

34 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


gera riquezas para os que se vinculam às redes de racionalidade estratégica, por outro,
potencializa a iniqüidade, sob o impulso de uma globalização neoliberal que exige a
desarticulação valorativa dos mundos de vida.

A pretensão está em demonstrar que a problemática da ética intercultural pres-


supõe uma teoria dos conflitos em sociedades que exigem mediações entre a hermenêu-
tica do sentido cultural e o modo pragmático da compreensão de um sujeito auto-im-
plicado. Em outras palavras, os conflitos não podem ser definidos nem compreendidos
sem um exercício de busca de espaços comuns de auto e hetero-reconhecimento, tanto
no interior do próprio contexto cultural como fora dele, isto é, no contato com as outras
culturas. Como fala Arpini,

Os modos concretos de afirmação da subjetividade, envolvendo o auto e


o hetero-reconhecimento dos sujeitos como tais, constituem o ponto de
partida – poderiam, de certa forma, ser pensados como condição de possi-
bilidade – de uma hermenêutica do real, cujo sujeito não seja uma consci-
ência transparente, mas os túrbidos sujeitos que interagem nas conflitivas
práticas cotidianas.19

Este exercício teórico não pode ser completamente construído, dado o predomí-
nio de um tipo de racionalidade monocultural, proveniente de um modo etnocêntrico de
compreender a razão em sua totalidade e, ainda, dos interesses estratégicos fácticos das
aglomerações poderosos.

Nesse sentido, a questão de uma ética intercultural parte do diagnóstico dos


níveis crescentes de conflitividade, que a globalização carrega consigo, tanto dentro
do próprio mundo de vida que habitamos como em relação às formas de coabitar os di-
versos mundos de vida. Diante disso, pretende-se, então, assumir criticamente as ações
humanas em meio desta rica e complexa história da reflexividade latino-americana,
enraizada em multiformes histórias entrelaçadas de memórias e esquecimentos. Como
disse Aguirre, trata-se de conceber que “o diálogo e a crítica são de fato e de jure as
duas faces da mesma moeda, isto é, os dois pólos de uma mesma perspectiva, que fazem
progredir o aprofundamento da reflexão e no encaminhamento da razão.”20

As opções e perspectivas éticas dos pensadores latino-americanos menciona-


dos serão explicitadas em tais marcos históricos e contextuais. Elas serão teoricamen-
te analisadas a partir dessa forma intercultural de compreender a ética. Nosso esforço

19 ARPINI, 2000, p. 21-22.


20 AGUIRRE, 1998, p. 324.

Ricardo Salas Astrain – 35


dar-se-ia por cumprido se, a maneira de apresentar as teses destes filósofos, contribua
para motivar a leitura mais detalhada de seus textos, nos quais encontramos amplos e
profundos diagnósticos em torno dos discursos morais.

A reflexividade discursiva
Através deste texto, destacamos não ser habitual e evidente que, na América
Latina, o desenvolvimento de uma proposta ética em torno da pluralidade de bens em
confrontação possa ser assumida a partir da forma interpretativa na compreensão dos
valores. Inclusive, o enfrentamento destas divergências a partir, univocamente, da ex-
plicitação dos melhores argumentos não é tão explícito assim. É freqüente encontrar,
nas culturas e no terreno do que se deve fazer, as chaves simbólicas enraizadas nas nar-
rativas, sejam nos mitos, nos relatos populares, nas canções de protesto e outras formas
discursivas, como novelas e ensaios, os quais propiciam a reflexividade do ethos tradi-
cional. A respeito dessa linguagem ética, eminentemente simbólica, “são os símbolos
(assim como os relatos populares de implicações simbólicas e os ritos que os atualizam)
os que articulam, na totalidade da linguagem humana, esse pensar sapiencial e práxico,
cujo sujeito é comunitário: o povo.”21 No entanto, nas culturas é possível também en-
contrar princípios e critérios que permitem justificar, de certo modo, os valores substan-
tivos que os sujeitos vivenciam.22

Desse modo, os conflitos éticos, inerentes à atual desregulamentação das normas


e a desintegração dos valores que as tradições difundiam, implicam no reconhecimento
das estratégias discursivo-culturais, imprescindíveis para a resolução das controvérsias.
Essa idéia pode ser vinculada ao esquema teórico de Ferry. Ele afirma que existem, nas
culturas humanas, ao menos quatro registros discursivos claramente pragmáticos: a nar-
ração, a interpretação, a argumentação e a reconstrução.23 A narração relaciona-se aos
relatos típicos e edificantes: típicos porque são aplicáveis ao destinatário; edificantes
porque orientam o viver e possibilitam resoluções normativas. A interpretação se apóia
sobre valores de síntese, holistas e universalistas – a normatividade é global e subs-
tancial, mas pode ser prudencial. A argumentação já não opera, necessariamente, com
valores de síntese, mas com princípios de descentralização, cujas características perti-
nentes desta normatividade, em sua integralidade, são o formalismo, o individualismo
e o universalismo. A reconstrução aparece quando a generalidade da ordem normativa
já não garante a aplicabilidade, a todas as situações, de um idêntico modelo. Nesse

21 SCANONNE, 1990, p. 18.


22 LADRIÈRE, 1978, especialmente o capítulo VI.
23 FERRY, 1996, p. 61-62.

36 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


caso, as normas devem ser elaboradas de modo conciliador, através de um processo de
discussão.

Os diferentes registros discursivos, destacados brevemente, podem ser fecun-


dos se os associarmos à discussão a respeito da eticidade e moralidade e, ainda, ao vín-
culo dos valores e das normas sociais. Nesse sentido, será possível responder ao ques-
tionamento e à manutenção das regras de uma cultura, não através de uma explicação
culturalista ou universalista, mas mostrando que a definição dos laços intersubjetivos
pode e deve ser realizada na pluralidade de jogos de linguagem, que vão da narração
mítica ao necessário e permanente exercício de reconstrução. O imprescindível está em
demonstrar o impulso semiótico que impulsiona os registros e acolherem-se progressi-
vamente uns aos outros. Por isso, quando se afirma que a ética implica na criatividade
de um juízo em situação, poder-se-ia entender que ela emerge dos recursos simbólicos
e narrativos proporcionados pelas eticidades. Assim, ao destacar o papel insubstituível
da argumentação e da reconstrução normativa, evidencia-se o desejo de refazer novos
mundos de vida, que possibilitem outros projetos pessoais, comunitários e societários.
Tal reconstrução necessita de uma proposição intercultural.

O contato entre os contextos de tendência discursiva suscita duas questões im-


portantes. Para alcançar a vida moral universal, o sentido cultural transmitido por um
registro discursivo está aberto a outros sentidos presentes nos outros registros? Essa é
a questão de abertura reflexiva, interna a cada uma das culturas e que possibilitará as
condições de diálogo intercultural. Todavia, há outra questão imprescindível. Será que,
às vezes, particularmente diante da crise cultural, os registros não se imobilizam? Dessa
forma, eles passariam a defender valores e normas particulares, enclausuradas apenas
em único registro, que termina preso a um conceito de tradição fossilizada? Este seria o
contexto de fechamento do sentido, evidenciado na própria cultura, podendo se consti-
tuir em parte do suporte discursivo para defender-se da ameaça do estrangeiro e do outro
que fala diferente.

No enfoque intercultural, permanece em evidência que os contextos co-existem.


No entanto, eles devem estar relacionados, de modo especial, aos registros discursivos.
Só assim será possível compreender e enfrentar tanto os conflitos internos da própria
cultura em transição, como os eventuais conflitos externos frente a outras culturas em
contato. Nesse sentido, ao fazer alusão a um contexto estamos evidenciando, em primei-
ro lugar, a referência a esse registro discursivo, o qual define determinadas formas de
articulação do sentido moral, transmitindo, inclusive, uma determinada reflexividade.
Em um sentido mais amplo, usamos a noção de contexto cultural para fazer alusão a um
elemento transversal, presente no conjunto dos registros discursivos.

Ricardo Salas Astrain – 37


A modernidade como um debate inacabado
O debate ético entre filósofos e sociólogos – sejam europeus ou latino-america-
nos – aponta para outro filão. Trata-se da abertura a um diagnóstico um tanto impreciso,
embora exista uma relativa claridade a respeito de que ainda não concluímos com o
debate em torno da modernidade, ou seja, que ele permanece, todavia, como um debate
teórico inacabado.24 Por isso, esta proposta ética contribui para o aprofundamento da
problemática da modernidade, contextualizando-a a partir das raízes específicas ine-
rentes aos estilos de vida, nos quais se articula o primado das normas da eticidade do
mundo da vida e o primado da fundamentação da reflexão pragmática transcendental.25
A ética intercultural exige a exposição das mediações conceituais que tornam possível
uma visão menos desgarrada da instância da moralidade e da eticidade, na tentativa de
oferecer os elementos para compreender a emergência do sujeito no marco das diferen-
tes modernidades que vivenciamos.

A discussão ético-política dos processos de modernização e da modernidade foi


bastante frutífera entre nós.26 Ela alimenta o debate ético intercultural que buscamos
forjar, tendo em vista as bases teóricas que os filósofos latino-americanos já desen-
volveram nos últimos 30 últimos anos, cujas categorias são muito significativas para
nossos contextos culturais específicos. Tal como já foi salientado, este livro pretende
desenvolver apenas uma aproximação teórica ao problema específico do discurso, no
qual se expressam as categorias da reflexividade ad intra e ad extra culturas. Trata-se
da elaboração, de certo modo, presente no debate latino-americano atual, ou melhor,
se é possível definir uma aproximação teórica capaz de oferecer respostas às diversas
formas de expressão de uma moral da emergência, como a designa Roig. Em outras
palavras, essa ética delineia a conflitividade inerente ao reconhecimento da diversidade
cultural e à busca de formas sociais em vista a defender a justiça devida a todos os seres
humanos, embora sejam membros de comunidades distintas, como salienta claramente
as exigências normativas da ética de Dussel e de Sírio Lopez.

A reflexão crítica das sociedades multiculturais atuais, tal como se apresentam


em suas manifestações estruturais e cotidianas, leva-nos a reconhecer que a moderni-
dade esboça consideráveis desafios éticos na sua universalização hegemônica. Ela não
consegue ser assimilada para todos os mundos de vida, por causa de seus efeitos deses-
truturadores. Assim, os mundos que surgem já não se mostram totalmente habitáveis,

24 LARRAÍN, 1996, p. 14.


25 DE ZAN, 1986.
26 SALVAT, 2002, p. 206 ss.

38 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


pois levam a reconhecer os profundos mal-estares27 que se movem no próprio seio da
modernidade européia. Embora isso nos leve a viver nela, existe uma contrariedade.
No entanto, é preciso reconhecer também que a modernidade não é apreciada, nem
vivida, por inúmeras outras comunidades de vida, que há séculos vivem em oposição
a ela.28

Os mal-estares característicos da modernidade, detectados por Taylor, bem


como as declarações de Dussel de seu desacordo, apresentam uma das atuais discussões
filosóficas mais importantes no âmbito das relações entre ética e modernidade. Esse de-
bate é corroborado pelo crescente número de publicações sociológicas, antropológicas e
filosóficas que tratam de assuntos morais e éticos em torno de identidade e modernida-
de. Sem dúvidas, este debate se concentra em torno da discussão teórica mais ampla, já
mencionada, a respeito do estatuto universal ou contextual concernente ao surgimento
da problemática moral e ética em um mundo capitalista moderno.

Ao mesmo tempo, os vínculos entre modernidade e identidade também se tor-


naram relevantes na América Latina, não só nas ciências sociais e como também na
filosofia. Nesse debate, as questões centrais estão vinculadas aos problemas que nos
interessam, como: a crítica ética de sistemas estruturais de injustiças, o reconhecimento
e o hetero-reconhecimento culturais, a transformação valorativa e a desregulamentação
crescente dos processos globalizadores, os nexos valorativos que afetam a indivíduos
e comunidades, em todos eles se requer estabelecer uma análise teórica em torno dos
níveis discursivos da reflexão ética e os nexos entre os contextos e as normas. São essas
novas problemáticas teóricas em torno das “conseqüências culturais da modernidade”
em nossos contextos culturais específicos, que se encontram na base do que denomina-
mos ética intercultural.

Uma ética para contextos conflitivos


A maior rigorosidade encontra-se nesse aspecto. A ética dos conflitos intersub-
jetivos e inter-comunitários das modernidades, presentes nas diversas histórias e nos
contextos culturais latino-americanos, pressupõe, em tal caso, uma concepção da histó-
ria humana. Trata-se da historicidade da existência humana, na qual, de forma alguma,
o determinismo social é aceitável – muito menos o econômico – e onde as ações dos
sujeitos históricos exigem a iniciativa e as responsabilidades próprias dos discursos e
do peso axiológico que sofrem. Nossa perspectiva não requer fundamentar apenas esta

27 Cf. Ch. TAYLOR, Ética da Autenticidade.


28 Cf. E. DUSSEL, A ocultação do outro. Em direção da origem do mito da modernidade.

Ricardo Salas Astrain – 39


pressuposição, vinculada a um conceito de liberdade e de assunção da vida prática como
o centro da questão de qualquer ética, pois deve dar conta do modo de decidir e de pre-
ferir em um marco de diversidade cultural.

Nesse sentido específico, a ética intercultural não aceita a tese do contexto como
elemento substantivo determinante da vida moral, porque é preciso sempre aceitar uma
ruptura, a qual nos conduz na direção de um tipo de vida humana plenamente autên-
tica. Não é, inclusive, aceitável a concepção da universalidade que, necessariamente,
dependa da auto-reflexão filosófica. Face à primeira, é preciso denunciar o caráter, às
vezes, etnocêntrico dos contextos culturais, tal como salientam Dussel, Roig e Lopez.
Em relação à segunda, deve-se salientar que a absoluta universalidade aparece sempre
arraigada nos contextos dos mundos de vida de comunidades religiosas e culturais, pers-
pectiva nutrida por Kusch, Morandé e Scanonne. No decorrer dos capítulos do livro, a
ética intercultural procura evidenciar que os valores e as normas exigem uma proposi-
ção teórica que permita apreendê-los em seus processos contextuais, ou seja, relativos
aos estilos específicos de vida e a uma racionalidade crítica que permite penetrar espe-
culativamente nas profundidades do real universal, mas em um sentido específico, que
deveremos descrever.

Nesse sentido, a ética intercultural não confia tanto um procedimento racional,


para estabelecer a comunicação simétrica de interlocutores, pois pretende instaurar as
bases conceituais mínimas para assumir a diversidade de razões que se enfrentam em
uma disputa de reconhecimentos. A ética discursiva reconhece que as vozes a-simétricas
não podem nunca serem reconhecidas em um saber universal totalmente transparente.
Esse é adeus definitivo à tese hegeliana do saber absoluto. A possibilidade de abrir-se
a um tipo de saber que, estabelecendo mediações históricas e especulativas, como o
propõe Scanonne, liberando a ordem do discurso intercultural e a práxis intercultural a
novas configurações inéditas. O recurso à racionalidade discursiva se mantém, então, no
interior da própria constelação cultural e, ainda, diante das outras formas culturais es-
trangeiras. Todavia, é uma discursividade caracterizada por uma sina trágica da razão e
do diálogo humano sempre limitado. Não é possível sustentar uma noção forte da razão
a definir a humanidade. Apenas no terreno da abstração é possível justificar os níveis
de reflexividade e crítica, necessários para estabelecer um acordo dialógico plenamente
universal. Nesse terreno, a figura do dissenso não aparece somente no contato com as
outras culturas, mas no interior da própria configuração cultural, aspecto que a ética
discursiva necessita demonstrar.

Nesse sentido, é imprescindível discutir algumas interpelações. Quais são as


condições aceitáveis do nexo dialogal entre os níveis de reflexividade? Quais os proce-
dimentos que permitem alcançar os acordos fundamentais no terreno dos valores con-

40 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


textualizados? Quais são as normas básicas que permitam estabelecer um nexo teórico
entre a eticidade concreta e a reflexão filosófica? Talvez, uma das contribuições dessa
ética intercultural está em encontrar, a partir das diversas funções discursivas que apare-
cem em cada cultura, as bases dialógicas do encontro entre culturas diversas.

Os quatro capítulos do livro são desdobrados da seguinte maneira:

O primeiro capítulo expõe o marco filosófico de uma ética intercultural inspi-


rada em duas grandes perspectivas, as quais buscam esclarecer os problemas éticos e
morais de nossas comunidades de vida, a interpretação dos discursos e a pragmática dos
enunciados. Para isso, explicitamos as duas categorias centrais desta proposta.

No segundo capítulo, serão descritas as categorias hermenêuticas principais que


estão na base de uma proposta ética intercultural, tendo em vista a leitura especial de
Kusch, Morandé, Scanonne e Roig. Nele, mostraremos que esta ética, originando-se
frente às diversas formas históricas assumidas pela eticidade, implica em uma postura
hermenêutica dos discursos morais, nos quais os valores profundos de nossos povos
se expressam. Esta hermenêutica, tradicional ou crítica conforme o caso, propõe o es-
clarecimento da eticidade baseada na interpretação da atividade simbólica e narrativa
dos sujeitos. A explicitação das características éticas encontra-se contextualizadas na
América Latina.

O terceiro capítulo trata de explicitar as principais questões pragmáticas do de-


bate latino-americano, tal como aparece em Dussel e Lopez. As noções pragmáticas são
exigidas por uma ética intercultural que articule os contextos e as normas. A intenção
é destacar, principalmente aqui, a idéia de que a ética responde aos desafios dos atos
de fala, seja dos enunciados de obrigação e à interpelação do pobre e do excluído.
Esta pragmática foi construída explicitamente em diálogo e controvérsia com a ética
da discussão de proposição apeliana. Diante disso, desejamos propor uma maneira de
delimitar as normas a partir de princípios normativos mistos, de tipo formal e material,
ao menos em Dussel. Desse modo, desejamos defender claramente uma dimensão argu-
mentativa do discurso moral.

O desenvolvimento do diálogo intercultural, em seu sentido forte, bem como as


suas implicações para uma ética intercultural é o assunto do quarto capítulo. A temática
teórica da tradução intercultural exerce, nesse aspecto, um papel significativo. Neste
capítulo, o aspecto chave está em salientar, ao mesmo tempo, a relevância de um mo-
delo que assegure a perspectiva da validação e a aplicação de critérios normativos para
contextos conflitivos.

Ricardo Salas Astrain – 41


Por fim, as conclusões dão a entender os principais resultados pragmáticos de
uma ética discursiva em contextos culturais conflitivos, cuja inspiração advém deste
debate latino-americano.

Para tornar o livro mais atraente, anexamos uma relação com as principais fon-
tes bibliográficas e outras obras consideradas como relevantes, as quais permitem reunir
uma breve, mas, seleta panorâmica bibliográfica para continuar outros estudos atrevidos
em torno da ética do discurso.

É preciso assinalar que a hermenêutica e a pragmática são elaboradas a partir


de hipóteses filosóficas diferentes, mas que, em geral, elas oferecem indicativos teóri-
cos para a solução dos conflitos éticos presentes nas comunidades históricas de vida. É
importante deixar claro isso claro, porque as propostas filosóficas a serem analisadas
agregam várias questões sócio-políticas e morais que nos afetaram nestas três ultimas
décadas. De fato, todas criticam os sistemas opressivos econômicos, políticos e cultu-
rais. Ao mesmo tempo, existe a clara valorização da dignidade de todo homem e mu-
lher e também o reconhecimento das culturas aborígines e das culturas populares e dos
movimentos populares. Além do mais, propõe-se, em cada caso, diversas pistas para
projetar a construção de sociedades mais justas e autênticas.

42 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


CAPÍTULO I

A ÉTICA INTERCULTURAL

De acordo com as indicações já salientadas, a ética intercultural é uma proposta


filosófica que esboça teoricamente um modo de compreender os registros discursivos
que condensam as formas de reflexividade em torno aos valores e normas das culturas.
Os diversos modos de entender os nexos entre tais registros, que formulam o modo de
entender os conflitos morais no interior da própria constelação cultural, apresentam
indicações a respeito do modo como se assume o vínculo de sentido no interior de uma
forma de vida e com outras formas de vida.

Essa questão presume o aprofundamento ainda maior de suas bases teóricas,


pois é necessário esclarecer, de forma adequada, o ponto de partida da questão. A partir
de uma perspectiva do debate atual em torno da interação e assimetrias entre as cultu-
ras29, a ética intercultural remete a determinados problemas mais profundos em relação
ao que se designou chamar a incomensurabilidade das culturas.30 Trata-se da compre-
ensão e do respeito aos outros e, em especial, à explicitação dos valores e normas que
estão em jogo no diálogo intercultural.

A ética intercultural é construída no âmbito do que Jean Marc Ferry designou


como o modo da reconstrução:

a reconstrução evoca, além do acordo, o reconhecimento recíproco. Aqui,


as subjetividades se abrem umas às outras de um modo mais direto e pro-
fundo. Elas são as que analisam e se reconhecem. Através de uma escuta
mútua, o reconhecimento auto-crítico de uma está condicionado pela outra,
na reciprocidade, – um círculo teórico, que é, todavia, melhor resolvido na
prática.31

Essa ética intercultural é uma modalidade da reflexão característica da própria


cultura humana e que conduz à abertura a outras formas de vida em contacto com elas

29 FORNET-BETANCOURT, 2003, p. 20 ss.


30 Cf. BERSTEIN, 1991.
31 FERRY, 1996, p. 59.

Ricardo Salas Astrain – 43


mesmas. Porém, é o lugar onde sempre é importante evitar as caricaturas, as deforma-
ções e as falsas interpretações mútuas, com o fim de constituir um projeto ético que
inaugure novas relações culturais, em que auto- e heteroreconhecimento estão presen-
tes. Para isso, é importante citar a indicação indispensável de Fornet-Betancourt, que
diz:

O objetivo da con-vivência não deve confundir-se, em nenhum caso, com a


pacificação das conflitivas controvérsias entre as diferenças, mediante sua
agrupação em uma totalidade superior, apropriando-as e harmonizando-as.
Com certeza, a con-vivência requer a harmonia, no entanto, ela não deve
nascer pela via rápida das apropriações reducionistas, como tentou, tantas
vezes, a racionalidade ocidental. A con-vivência, ao contrário, designa a
harmonia que se iria alcançando através da constante interação no campo
histórico-prático e sua conseqüente construção inter-comunicativa, que os
discursos iriam tecendo na mesma explicação de suas controvérsias.32

Nós defendemos essa base discursiva, que tensiona as dinâmicas da convivên-


cia intercultural, através do conceito discursivo de uma ética intercultural, que será de-
senvolvida mais adiante. É necessário, antes de seguir aprofundando esta visão de uma
ética argumentativa, evidenciar as noções de ética e de interculturalidade que serão
utilizadas.

1. Aproximações preliminares à ética


Antes de entrar a fundo na questão principal, fazem-se necessário esboçar, ao
menos inicialmente, as diversas maneiras de entender a ética filosófica no marco desta
discussão intercultural sobre valores e normas. Sem lugar a dúvidas, uma parte impor-
tante dos problemas da ética filosófica esbarra no tipo de conceituação que se realiza a
respeito dos fenômenos morais e/ou das experiências morais dos sujeitos e das comu-
nidades humanas. Nesse âmbito, surge uma primeira dificuldade entre, por um lado,
aquilo que se sabe cotidianamente a partir da própria aprendizagem do viver e con-viver
humanos no interior de um mundo de vida específico e, por outro, a reflexão e teoriza-
ção em torno àquilo que se vive com vistas a resolver algumas de suas problemáticas.

Em primeiro lugar, a ética remete sempre às exigências próprias da vida huma-


na prática. Por isso, somos obrigados a eleger entre valores distintos, aceitar ou questio-
nar as normas específicas do contexto cultural e responder, certamente, pelas conseqü-

32 FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 47.

44 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


ências que se desprendem das próprias decisões pessoais e comunitárias. Em segundo
lugar, nos encontramos com uma reflexividade implícita nos esquemas valorativos e
normativos inerentes aos “mundos de vida”, mas que, muitas vezes, não estão explícita
e sistematicamente presentes em todos os homens e do mesmo modo nas comunidades
humanas plurais. A reflexividade moral, em muitas culturas, é um terreno muito pecu-
liar. Aqui, é possível encontrar um ponto de conexão relevante da ética com a sabedoria,
a espiritualidade e a religião.33

Esse aspecto da ética, que se vincula com o “saber viver” cultural, é aceito e
reconhecido pela tradição filosófica. No entanto, ele também é questionado, no sentido
estrito, por ser parte do âmbito específico da própria e peculiar matriz cultural. Isso sus-
cita a questão de ela ser universalmente humana. Aqui surge, então, um problema ético
próprio do entreculturas, porque o saber viver é parte de uma experiência humana, uma
espécie de ante-sala da ética e que não pode ser monopolizada pelas teorias filosóficas.
Em outras palavras, nenhum ser humano deve ter aguardado pelas teorias filosóficas
para resolver seus problemas morais. Todavia, isso não implica que os universos concei-
tuais dos filósofos da ética não tenham ajudado a compreender se essa problemática é,
realmente, relevante para entender a retidão e validez universal, como ainda destacam,
inclusive atualmente, diferentes filósofos.

As ciências humanas, em especial a sociologia e a antropologia cultural, ca-


racterizaram de outra forma o tema da eticidade humana, fazendo referência ao marco
profundamente cultural em que se enraízam todos os costumes e proibições de uma
cultura. Até hoje, as problemáticas éticas, provenientes da multidiversidade cultural em
torno à universalidade das condutas que regem comunidades que manejam esquemas
valorativos e normativos distintos, procuram ser aclaradas.34

Nesse sentido, a ética ‘intercultural’ está em dívida com as contribuições que


foram realizadas às filosofias do “ethos cultural”. Assim podem ser catalogadas as te-
ses de Kusch, Morandé e Scannone, pois problematizam, especulativamente, algo que
já havia sido anunciado metodicamente pela antropologia cultural. Em particular, nos
referimos à idéia de que qualquer cultura tem parâmetros que precisam ser entendidos
a partir deles mesmos, de modo que toda observação científica do sentido dos outros
membros de uma cultura distinta, exige a consideração do ponto de vista do nativo. O
que está por detrás permite entender parte das acusações que esse pressuposto recebeu,
no sentido de consolidar um relativismo cultural, conduzindo a um compreensivismo

33 Este ponto é o que permite visualizar o problema ético da modernidade que supõe o privilégio de
uma determinada tradição de valores e normas em desmedrança de outras formas apoiadas em convicções
religiosas existentes nos mundos da vida. Cf. MARDONES, 1998, p. 91.
34 CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993; Cf. também CALEFFI, In: SIDEKUM, 2003.

Ricardo Salas Astrain – 45


próprio da perspectiva hermenêutica, a uma mera postura historicista. Está em questão o
fato de ser necessário reconhecer o recurso que a teoria ética apresente diante do mundo
moral efetivo, que contêm parâmetros definidos pelo mundo da vida.

Esse problema é parte do pressuposto contextualista dos problemas éticos, pois


salienta que a compreensão das estruturas valorativas e normativas alude, predomi-
nantemente, a uma situação a partir da qual o agente moral pode agir. As críticas em
torno ao caráter situacionista ou contextualista foram variadas. Porém, a mais relevante
diz respeito a que essa postura é parte de uma forma etnocêntrica de conceber a mo-
ral, acabando por dissolvê-la entre os códigos culturais, aos imaginários ou, simples-
mente, dissolvida no interior dos discursos. Nós assumimos essas observações, porém
matizando-as fortemente, no sentido de que existe uma argumentação defeituosa pela
qual elabora um falso problema, que não se suscita quando se analisa adequadamente
a interação das culturas, a partir de seus registros discursivos próprios, que supõem a
assunção de regras.

Além disso, as atitudes que impulsionaram o reconhecimento da diversidade


moral no terreno sociológico e antropológico parecem ser relevantes, porque descen-
tram a pretensão da racionalidade científica moderna, a qual pretende dar conta com-
pletamente da ação humana contextualizada. Nesse sentido, o recurso aos contextos
auxilia na compreensão não apenas da enorme diversidade de valores e normas pre-
sentes nas culturas humanas, colocando-as novamente em destaque na discussão das
teorias filosóficas, que durante muito tempo haviam sido consideradas abstratas. A tese
deste livro salienta que as diversas formas de vida, em que se expressa a racionalidade
prática, respondem à complexa variedade de peripécias da existência humana e, ainda,
às vicissitudes das comunidades humanas na história. É fundamental reconhecer que o
mundo moral é sempre um mundo que surge a partir de uma eticidade e de um contexto
específico. Nessa dimensão, é preciso assumir de outro modo o tema da situacionalida-
de. Nesse plano, resulta ser mais adequada a tese de Maliandi, ao indicar que

todas as situações são conflitivas e, inclusive, [...] cada situação é uma


manifestação concreta de uma estrutura conflitiva, na qual se funda, as-
sim mesmo, o conteúdo axiológico do situacional […]. O fundamental não
é o fato de cada situação ser ‘individual’, ‘irrepetível’, etc, mas que ela
representa sempre um choque entre exigências ‘universais’ e exigências
‘individuais’.35

35 MALIANDI, 1984, p. 13.

46 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


A Ética na interação das culturas não pode ser dissociada daquilo que, comu-
mente, os filósofos formularam como a Ética e a Moral. Em geral, essas categorias
se relacionam com a problemática que advém como novo produto da ação humana
contextualizada, embora não seja sempre assim, porque é resultante da afluência da
consciência e da liberdade humana. Como diz Ladrière, “a ação opera no campo daquilo
que é presente, que a ele pertence, e no campo do possível, que pertence ao futuro […]
porque ela não é uma simples repetição, pois é, verdadeiramente, iniciativa e, portanto,
novo começar.”36

É indispensável realçar que a ética intercultural se relaciona, então, com um


enfoque da ética, por meio do qual os seres humanos somos livres e temos capacidade
reflexiva e práxica para agir. Como humanos, nos caracterizamos, então, através da
liberdade, tendo em vista que para devirmos humanos na completude, há a necessidade
de abertura a um horizonte, que a humanidade foi conquistando lentamente. Trata-se de
um produto do esforço permanente e mancomunado de seres humanos e comunidades
de vida de diversas épocas. Este enorme esforço das eticidades, que imaginaram e tenta-
ram novas formas de vida, nos auxiliam na construção de formas de sociabilidade, supe-
rando aquelas que acabam se impondo como produto da avareza e da prepotência. Esse
fruto mancomunado universal permite que, na época atual, não consideremos ser acei-
tável a escravidão de nenhum ser humano. Ao mesmo tempo, poderemos chegar a um
nível em que será inaceitável uma pessoa pobre morrer, sem conseguir os alimentos que
a economia planetária produz. E continuaremos seguindo adiante com o ideal de que é
justo administrar os medicamentos que qualquer ser humano necessita para viver.

Ética, discurso e conflitividade


De modo geral, a ética e a moral remetem, então, a um ordenamento propria-
mente humano, buscado para alcançar sua autêntica realização e através do qual se deve
alcançar uma regulamentação justa. Dessa perspectiva geral, pode-se afirmar que, em-
bora exista uma grande tendência a separar moral e ética, é possível sinalizar que as duas
remetem à questão – de inspiração kantiana – central para a vida humana: o que devo fa-
zer (neste contexto)? A ética discursiva, que insiste na dimensão lingüístico-pragmática
dos enunciados morais, esclarece ser irretocável a diferença entre os enunciados morais
e os enunciados éticos. Os éticos necessitam ser justificados racionalmente, não obs-
tante os morais permanecem prisioneiros dos contextos. Habermas reconhece, em suas
Aclarações à ética do discurso, que “os debates éticos sempre estão inseridos, de forma
prévia, ao contexto das tradições de uma forma de vida que deixa sua estampa na identi-

36 LADRIÈRE, 1997, p. 30.

Ricardo Salas Astrain – 47


dade, que já foi previamente aceita. Os juízos morais se distinguem dos éticos somente
por seu grau de dependência do contexto.”37 Sírio Lopez, por sua vez, na tentativa de
salientar a estrutura lógica dos enunciados éticos, destaca sua forma lingüística, à dife-
rença dos enunciados morais, que não justificam suas obrigações. Ele diz que “qualquer
pessoa, por sua consideração do que seja verdadeiro ou falso (nas circunstâncias do caso
analisado), pode decidir, sem equívocos, (e colocar-se de acordo com outra sobre algo),
a respeito de qual obrigação pode ser eticamente legítima, e qual não.”38

Assim entendida a ética, a pergunta intercultural de fundo reside na questão de


se é possível procurar uma justificação lógica de todos os tipos de registros discursivos,
na qual se expressa a reflexão ética das culturas. É lícito indicar hipoteticamente que dar
conta da decisão em um mundo multicultural, exige a definição das formas de justificar
o que seja racional para um sujeito em um contexto lógico e cultural. Como veremos
mais adiante, parece existirem registros discursivos que permitem assegurar que as ra-
zões para agir podem ser encontradas, em algum ponto, com ‘as razões dos outros’. Po-
rém, outras perspectivas salientam que tal tipo de vínculo no interior da própria cultura
é problemático e, principalmente, com outros tipos de culturas que não entram em nosso
horizonte moral imediato. Considerando o que já foi frisado, é premente a necessidade
de estudar, com rigor, se existe possibilidade de fundamentar uma interação valorativa
e normativa, partindo desses elementos intersubjetivos da mediação discursiva que as-
segure a con-vivência com outros.

Embora seja imprescindível reconhecer esta riqueza e multidiversidade do hu-


mano, dever-se-ia assumir, da mesma maneira, os horizontes da complexidade quando
ela se faz consciente à reflexão. Por acaso, os valores e as normas da humanidade, que
pretendem ser definitivas, são parte somente da minha cultura e não das outras? De
forma mais complexa, poder-se-ia questionar: não é correto sustentar que as esquema-
tizações normativas e valorativas estão determinadas por contextos culturais específi-
cos, que estão ou deveriam estar abertos a projetos humanos universalizáveis? Como
é possível delimitar cursos de ação que sejam aceitáveis não apenas para os que vivem
na minha cultura, mas para outras culturas com as quais devo interagir e, no melhor dos
casos, para todas as culturas, presentes ou não, no meu horizonte cultural?

Nesse terreno, é possível afirmar que a reflexão intercultural exige o reatamento


do vínculo entre as normas e os valores. É necessário indicar que as duas modalidades
do ethos têm uma ordem veritativa própria, vinculada à interpretação de tradições nar-
rativas em seus contextos (hermenêutica) e com a justificação de normas em discur-

37 HABERMAS, 2000, p. 224-225 e p. 197.


38 LOPEZ VELAZCO, 2003, p. 133.

48 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


sos habituais válidos (argumentação). Ladrière reafirma esse aspecto, ao salientar que
“cada uma destas perspectivas têm sua verdade. É necessário perguntar-se como se pode
entrelaçá-las em uma recuperação reflexiva, atenta simultaneamente para ambas, o que
ocorre, de modo original, na experiência ética.”39

Diante dessas observações, é conveniente passar a fazer uso da distinção indica-


da por Aranguren entre a ‘moral vivida’ e ‘a moral pensada’, prevenindo-se, todavia, de
uma compreensão inexata que poderia ser feita. Não se trata, de modo algum, de fazer
uma ruptura entre a ordem da experiência moral e a ordem da tematização reflexiva: “o
ethos (ou fenômeno da moralidade) compreende também o esforço por esclarecê-lo,
o qual dá lugar ao paradoxo de que a ética, enquanto tematização do ethos, resulta ser
paralelamente a tematização de si mesma.”40

Todos os níveis se deparam claramente com o problema de uma ética intercul-


tural, tal como é delineada atualmente. No primeiro, está presente o problema de que o
saber viver reporta-se sempre às diversas tradições religiosas e narrativas, específicas
dos contextos culturais de ação Isso porque o ethos remete aos fenômenos culturais, que
apresentam aspectos muito diversos, conduzindo-nos aos diversos códigos existentes.
Através do segundo, temos determinada clareza de que a “reflexividade” deste fenôme-
no moral não se realiza do mesmo modo em todas as culturas, pois pode dar-se de di-
versas formas: explicitação, problematização, investigação, sistematização, teorização,
mediação, discussão, as quais podem ser sistematizadas pragmaticamente a partir das
funções discursivas.41

É importante deixar claro que a reflexividade, como parte da ética, busca a


reconstrução ou a elaboração sistemática de um saber pré-teórico.42 De modo geral, ela
evidencia as razões relacionadas ao fato de esclarecer o sentido e uso dos termos mo-
rais, no questionamento das possíveis fundamentações e, ainda, à fundamentação das
normas.

A reflexividade da filosofia ocidental demorou muitos séculos para oferecer


respostas a alguns dos diversos elementos de sua experiência moral. Ao contrário de
outras culturas – como as asiáticas, as africanas ou as dos indo-americanos, muito me-
nos racionalistas que a proposta desenvolvida pela civilização ocidental – o fenômeno
moral não foi refletido a partir, exclusivamente, dos parâmetros desenvolvidos pela ra-

39 LADRIÉRE, Prefácio a GÓMEZ-MULLER, 1999, p. 11; Cf. também BERTEN et al, 1994, p. 9-12.
40 MALIANDI, 1994, p. 11.
41 FERRY, 2002.
42 HABERMAS, 1984, p. 302.

Ricardo Salas Astrain – 49


zão formal, porque foi enriquecendo-se no contato com sabedorias e espiritualidades.
Por isso, é possível afirmar que, enquanto a reflexividade européia começa a voltar a
se reencontrar com as narrativas religiosas de sua cultura,43 as demais tradições foram
impedindo, através de diversas estratégias, que estas rupturas entre os sistemas de pro-
dução de sentido prosperassem. As formas rompeduristas de dissociar o simbólico e o
formal provêm de uma determinada exageração formalista da modernidade européia. A
riqueza das outras culturas é ter conseguido evitar essa estratégia reducionista do escla-
recimento racionalista.

Ao estar de acordo que, em princípio, o trabalho dos filósofos, que se ocupam


da experiência moral, não seja assumir o específico das instituições morais que formam
a estrutura valorativa e normativa das sociedades e dos sujeitos, fica evidente que as te-
orias filosóficas jamais são produzidas em um terreno cultural neutro. As teorias podem,
efetivamente, ajudar no aprofundamento das tradições morais, para que elas cheguem
a níveis maiores de reflexividade ou, então, possam assumir sua criticidade frente as
doutrinas morais em que as religiões e as instituições sociais determinam o significado
do fenômeno moral, devendo ser também particularmente questionadoras diante da le-
gitimidade que provêm da ordem mítico-religiosa. Ao afirmar isso, queremos salientar
que a ética intercultural, tal como é definida neste livro, se encontra em um terreno de
reflexividade, o qual consegue levantar vôo a partir do que pré-existe na ordem do sen-
tido que as tradições e os contextos culturais comunicam.

A ética intercultural ou, como diz Ferry, uma ética reconstrutiva, é, de fato, per-
tinente desde o ponto de vista da ética contemporânea, porque ela responde às diversas
relações que os contextos apresentam nos processos de des-estruturação axiológica e
des-regulamentação. Particularmente, ela explica a forma em que os contextos se trans-
formam para oferecer respostas aos processos sociais e culturais conflitivos. Não é uma
ética pensada para responder somente aos conflitos inter-étnicos ou inter-comunitários,
mas responde ao próprio âmago da diversidade inerente às sociedades modernas multi-
culturais. Na verdade, ela pressupõe, efetivamente, a questão de como poder dar conta à
relação com o outro, não entendido somente como o pobre e o excluído dentro de minha
própria formação social, mas também ao estrangeiro, porque é ele que, na radicalida-
de, possui ‘outras razões diferentes às minhas’. Esse esclarecimento reporta-se ao fato
de que, a partir dessa modalidade intercultural da ética, o reconhecimento e o hetero-
reconhecimento não podem ser separados. Ao definir categorialmente a questão da ética
através da reação do si mesmo e do outro, estamos indicando não somente o problema
cognoscitivo de como se abrir às vivências e valores do outro, mas também às múltiplas
estratégias de fechamento e de exclusão do outro na vida concreta.

43 FERRY, 2002, capítulo 1.

50 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Giro linguístico e ética discursiva
Como ponto de partida, defendemos que nossa ética assume, de forma criativa,
o pressuposto do giro linguístico da filosofia européia contemporânea, especialmente da
filosofia analítica anglo-saxônica. De modo geral, o linguistic turn define a problemá-
tica da razão prática em termos de linguagem e, de forma mais específica, da fala argu-
mentativa e do discurso. Essa mudança contém um elemento significativo para entender
os processos da reflexividade, porque destaca as efetivas dimensões “de um caminho
percorrido, permitindo a reaprendizagem da existência reflexiva a partir de suas pró-
prias expressões.”44 Scannone destaca que, através do giro lingüístico, é possível propor
uma “nova maneira de abordar a questão do sujeito como intersubjetividade ou como
comunidade de comunicação e, em decorrência, expor novamente a questão do ser em
relação ao que se afirma em e pela comunicação.”45 Essa idéia remete a uma teoria do
significado, no sentido de que as funções discursivas não devem compreender, de forma
separada, a atividade interpretativa da atividade argumentativa. O discurso deve ser as-
sumido destacando, fundamentalmente, suas propriedades hermenêuticas e pragmáticas
que permitem dar conta da dinamicidade dos contextos.

No entanto, é preciso determinar uma dupla compreensão filosófica do discurso.


Por um lado, caberia explicitar o âmbito do auto-implicativo e, por outro, as condições
lógicas da atividade. Para tanto, pode-se retomar a postura de Ladrière, para visualizar
a primeira. Para o autor,

No sentido específico, o discurso é percurso e, portanto, encadeamento e,


como tal, exerce um poder de encadeamento sobre aquele que o escuta ou o
profere. Ele age como uma engrenagem, na qual o espírito apenas pode ser
progressivamente impelido e absorvido. Em certo sentido, o discurso está
plenamente dado de antemão, como logos imanente do mundo, presente
assim mesmo sob a forma de um desenvolvimento que é auto-constituição;
quando nos tornamos seus portadores, não o suscitamos a partir de nós
mesmos, mas re-efetuamos o processo de seu próprio devir interno em
nossos próprios procedimentos intelectuais.46

Em efeito, existe, por outra parte, outra dimensão claramente argumentativa


do logos, que está na base da pragmática subjacente da ética da discussão de Apel e
de Habermas. Enquanto essa concepção do discurso argumentativo se relaciona com a
pretensão de validez, que se constrói – a partir dos “atos de fala”– para alcançar acordos

44 LADRIÈRE, 2001, p. 17.


45 SCANNONE, 1990, p. 112.
46 LADRIÈRE, 2001, p. 232.

Ricardo Salas Astrain – 51


justificados. Por “fala argumentativa” deve-se entender, aqui, aquele tipo distinto de lin-
guagem, pois nele os participantes alcançam, com seus ‘atos de fala’ (unidades mínimas
de significado), pretensões de validez universal (sentido, verdade, veracidade e retitu-
de), assumindo, de forma tácita, os pressupostos de caráter normativo.47 É importante
recordar essa nomenclatura terminológica, porque toda a controvérsia da ética discursi-
va se desenvolve com a primazia desse discurso argumentativo, que abriga os a priori
da comunicação ideal. Esses a priori asseguram a validez dos princípios universais.

Nesse horizonte, é importante destacar que uma ética intercultural se enraíza


em uma noção de discursividade que não aceita a separação taxativa entre as duas con-
cepções do discurso. O discurso da ação, tal como é entendido aqui, é edificado a partir
dos recursos da concepção hermenêutica da linguagem, sem reduzir o significado dos
enunciados a sua verificação lógica, nem ao seu caráter desacreditado, pois fazem refe-
rência aos contextos de uso. Com esse pressuposto lingüístico, não desejamos reduzir,
de modo algum, os problemas éticos ou morais ao âmbito exclusivo do caráter lógico
dos enunciados éticos, nem a uma pragmática do discurso da ação. De forma resumida,
trata-se de expor uma teoria contextual dos significados dos enunciados, todavia não
apenas relativa aos princípios incondicionados, mas também a normas provisoriamente
justificadas e, inclusive, a discursos narrativos concernentes a valores.

Nesse sentido, nossa perspectiva pressupõe uma tese hermenêutica da lingua-


gem da ética. Ricoeur destaca, com convicção a esse respeito, que a oposição entre
o deôntico e o valorativo não é tão radical, como foi sugerido nos debates éticos. Ao
descuidar da questão de fundo contextual dos enunciados normativos e valorativos,
expressos no juízo em situação, não se conseguiria nada mais que desarticular a ordem
axiológica e a ordem normativa que estão presentes nos mundos de vida. Porém, não
se trata de estabelecer uma conciliação a qualquer preço, mas em reconhecer um para-
doxo central para compreender o aspecto ético entre a justificação e a efetuação. Para
Ricouer, “o paradoxo se encontra no fato de que o cuidado em justificar as normas da
atividade comunicativa tende a ocultar os conflitos que conduzem a moral em direção a
uma sabedoria prática que tende a substituir o juízo moral em situação.”48

Uma vez delineada, dessa forma, a relação entre os dois tipos de discurso, é ne-
cessário apresentar uma tese que conduz à inter-relação existente entre os processos de
simbolização dos mundos de vida e a estruturação dos sistemas normativos. Do nosso
ponto de vista, a pragmática contextual, que Maesschalck vêm desenvolvendo, contri-
buir com muitos esclarecimentos a respeito dessa necessária articulação:

47 APEL, 2002, p. 174-175.


48 RICOEUR, 1999, p. 308.

52 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


a aproximação contextual procura orientar-se em direção das estruturas de
auto-transformação dos contextos enquanto são, antecipadamente, condi-
ções internas para a concretização das normas. Ela passa a se interessar pela
reflexividade já operante no contexto para articulá-la em dispositivos que
aduzem a acompanhar as prescrições normativas, a fim de que alcancem,
efetivamente, sua pretensão (visée) de regulamentação da ordem coletiva.49

O argumento central da ética intercultural – que será destacada nos próximos


capítulos – segue ambas as intuições. Ela conduz à estruturação de uma proposta teórica
dos níveis discursivos, articulando uma perspectiva hermenêutica dos discursos narrati-
vo-axiológicos e uma perspectiva pragmática dos enunciados deontológicos, com o que
se pode introduzir a justificação das normas. Como veremos mais adiante, essa preten-
são sustenta uma concepção de interculturalidade que mantém uma ressonância com
esta teoria discursiva, de modo que seria necessário distinguir, seguindo esse caminho,
dois sentidos do conceito de cultura e de interculturalidade: um conceito interpretativo,
que remete aos modos de interação no interior e exterior das culturas, esclarecendo as
propriedades auto-implicativas das reações interculturais; e um conceito argumentativo,
que nos indica o modelo universal de interação entre duas ou mais culturas diversas, que
reúna as condições de possibilidade da validez.

Embora o último fosse, por sua pretensão fundamentadora, um dos conceitos


mais utilizados na discussão atual. O primeiro tem a vantagem de revelá-lo como uma
noção essencial, não apenas para contextos culturais mais homogêneos – como são, até
certo ponto de vista, as culturas étnicas e tradicionais –, mas porque também permite
compreender relações discursivas muito mais complexas, ou seja, de formas hetero-
gêneas. Por exemplo, ele auxilia na articulação de tradições culturais diferentes nos
contextos urbanos, nos mundos ‘híbridos’ dos emigrantes e das pessoas obrigadas a
obedecerem aos padrões da cultura dominante, com a expectativa de que elas só po-
deriam conseguir um padrão de vida melhor se ‘consumirem’ tal produto.50 Por isso,
diversos pensadores latino-americanos possuem sérias reservas frente à tese pragmática
que assumiria, de uma maneira acrítica, o giro lingüístico. Como idéia de justificar uma
pretensão de validez dos enunciados éticos – elevando-se a partir dos ‘atos de fala’ –,
ela não responderia aos contextos culturais de grande assimetria.51

49 MAESSCHALCK, 2001, p. 312.


50 Algumas teses gerais deste livro já foram elaboradas tendo em vista perspectivas mais próximas às
que re-situam as hipóteses da ética do discurso (Apel e Habermas) e da ética hermenêutica (Gadamer, Ri-
coeur e Ladrière), tendo em vista a investigação da relação entre normas e contextos, que desenvolvemos
de um modo paralelo e com uma determinada sintonia. As diversas propostas que, atualmente, permitem
incursões deste novo campo de investigação ética, são encontradas nas obras de J. M. Ferry, 1996; A. Cor-
tina, 1999; De Munck, 1999; Gómez-Muller, 1999; J. M. Ferry, 2002 e García Gómez-Heras, 2002.
51 Cf. FORNET-BETANCOURT, 2002, p. 277.

Ricardo Salas Astrain – 53


A tendência é acreditar que essa perspectiva sustenta apenas um tipo de cultura
racionalista, sem auxiliar na compreensão das formas de racionalidades que ficaram
esquecidas, muito menos das diversas modalidades de resistência geradas frente à hege-
monia cultural. As reações humanas, nas diversas culturas e através das plurais formas
discursivas, aparecem quase sempre com as marcas da assimetria e do poder, que impõe
e hegemoniza os conjuntos de normas e valores ligados a poderes fáticos, muitas vezes
alheios à diversidade. Isso conduz a pensar que os quatro elementos, que caracterizam
os atos de fala, não se realizariam, de forma cabal, nos contextos culturais e, muito me-
nos, nos assimétricos, pois apresentam um caráter ideal da comunicação, pressuposto
pelas condições pragmáticas do discurso argumentativo.

Nossa tese não contradiz essas observações críticas, pois o predomínio da lin-
guagem não implica sua redução à pura linguagem, de maneira que reconhecemos a
existência de uma justa crítica à redução dos problemas éticos às questões discursivas,
tendo claro, no entanto, que a eticidade não é unicamente discurso. É justamente essa
explicação que encontramos operante em quase todos os autores latino-americanos.
Eles destacam as formas de compreensão de significados e sentidos – com ou sem fun-
damentação – dos valores e normas. Em outras palavras, existe um ‘giro lingüístico’ na
filosofia latino-americana na medida em que ela se propõe à elucidação dos significa-
dos, valorações e fins específicos dos mundos de vida. Eles se manifestam em variados
processos simbólicos, discursivos, narrativos, textuais, que implicam na aceitação de
um modelo consistente, baseado na linguagem em um sentido amplo.52 Na continuação,
desejamos mostrar, de um modo reconstrutivo, como as categorias elaboradas permitem
organizar um projeto discursivo da ética intercultural sem levar a uma ruptura taxativa
entre narração e argumentação.

Éticas da vida humana


Caso existisse, entretanto, uma implicação lingüística de tipo hermenêutico, ela
deveria ser entendida tendo em vista o caráter específico de que a situação humana assu-
me, ao propor uma ética intercultural. Ela deve ser entendida sob a forma interpretativa
da situação ética. Para Ladrière,

o momento propriamente ético, em que se revela a eticidade da situação, se


apóia em um momento interpretativo. Nele, revela-se a constituição espe-
cífica da situação, sua essência concreta, tal como pode ser compreendida
pelo agente, no contexto cultural em que se encontra.53

52 ROIG, 2002, p. 131e 135.


53 LADRIÈRE, 1997, p. 51.

54 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Essa problemática do agente moral e de seu contexto adquire uma enorme im-
portância, porque retoma o nexo entre contexto, norma e valor, os quais são, desde os
filósofos gregos, temas de debate da ética.

Esse último aspecto manifesta, outra vez, um problema amplamente debatido


na ética européia ocidental. Ao mesmo tempo, ela se relaciona à oposição clássica entre
duas posturas éticas, à medida que seria, aparentemente, impossível conciliar: a proposta
aristotélica e a kantiana. Na primeira, a vida moral se define como a plena realização de
um modo de vida boa, enquanto a segunda define a vida moral através do cumprimento
de um dever universal. O proceder aristotélico insistiria em uma ética dos bens e a dis-
sensão constante entre diversos modos de ‘vida boa’; a justificação kantiana destacaria
uma ética do dever, dando prioridade à consciência ética, ao imperativo da vida moral,
não como algo externo, porém assumido na interioridade da vida subjetiva.

Esse debate entre as duas teorias filosóficas alcançou, na filosofia contemporâ-


nea, um singular nível de profundidade e de rigorosidade. Ele foi revitalizado a partir
da elaboração de uma teoria do discurso, subjacente na “ética da discussão” e na “ética
hermenêutica”. Nesse filão discursivo, emerge a interessante questão do desencadea-
mento de uma “ética intercultural”, descortinada a partir de suas bases hermenêuticas e
pragmáticas. Os dois primeiros capítulos deste livro se ocupam da mediação de algumas
categorias, provenientes da ética da discussão e de outras enraizadas na ética fenomeno-
lógica. Para dar continuidade da proposição de Maesschalck, a idéia procura assegurar
uma teoria discursiva em torno do nexo entre contextos, valores e normas. Ela não pode
prescindir dos aspectos históricos e antropológicos, valendo-se, porém, dos significati-
vos resultados alcançados pelos estudos do discurso para edificar uma ética discursiva
sensível à dinâmica contextual.

Em todos esses estudos, embora proponham questões teóricas que tocam o ‘uni-
versalismo’ ético, subjazem o caráter intercultural da luta pelo reconhecimento. Além
disso, há o questionamento de um pensar a relação de reciprocidade e da alteridade,
supondo que os problemas morais de uma filosofia intercultural sempre fazem alusão a
“uma expressão profunda do humanum, encarnado nesta cultura particular.”54 A recu-
peração da categoria do “humano” na ética atual, deveria ser, no entanto, discutível por
parte daquelas formas extremas de pensamento pós-moderno, que visualizam, na sua
utilização, a recuperação de “figuras de humanidade” e, inclusive, a equivocada noção
incapaz de dar conta das deturpações do humano e dos descaminhos cometidos, no sé-
culo XX, em nome do “humanismo”.

54 ESTERMANN, 1998, p. 292.

Ricardo Salas Astrain – 55


Em geral, é possível afirmar que a questão do “humano”, procedente de uma
ética intercultural, pressupõe a simetria com o problema da filosofia da religião, aspecto
que já foi estudado, cuja tese se centrava na inovação semântica presente nos símbo-
los populares. Em síntese, o apelo ao aspecto ‘humano’ não pode mais ser formulado
em termos de um humanismo ingênuo – que se propagou rapidamente por encima das
exigências conflitivas dos contextos –, pois requer, sobremaneira, contornar as figuras
concretas do humano e do inumano no seio dos processos contextuais. As novas figuras
do humano aparecem na des-estruturação da vida humana, no menosprezo à ‘dignidade’
de cada ser humano, como também através dos recentes processos de resistência e busca
de caminhos novos do conviver intercultural.

Essa ética de ‘o humano’ é elaborada a partir de categorias relacionais e inter-


subjetivas, que desejam assimilar as formas culturais emergentes. Elas são categorias
que respondem aos desafios da articulação entre diferença e alteridade. Não se trata
apenas de uma relação entre seres humanos em geral e que defendem sua vida, mas
na variedade de formas culturais, nas quais se delineiam os vínculos entre homens e
mulheres, entre professores e estudantes, de minorias e maiorias e, inclusive, de nações
e Estados ‘pobres’ com nações e Estados ‘poderosos’, com suas respectivas diferenças
materiais, tecnológicas e espirituais.

O humano, considerado, na atualidade, no horizonte desta ética intercultural,


certamente já não alude, então, a um simples humanismo de tipo filosófico – concebido
a partir de uma descrição abstrata da existência humana e desvinculado de suas caracte-
rísticas sociais e culturais –, muito menos o nega. Porém, ele se encarna em categorias
específicas. A categoria do “humano” reporta-se a um considerar as formas novas de
vida que brotam nos contextos culturais. Desse modo, hoje temos uma consciência ho-
lística da “crise do humano”, em uma época e em uma civilização científico-tecnológica,
definida a partir dos interesses de uma parcela reduzida da humanidade, sem satisfazer,
política ou eticamente, a maioria da humanidade.

O grande problema ético do outro aparece, assim, em um novo horizonte, no


qual as relações de alteridade estão vinculadas aos contextos. Por isso, são factíveis de
ser dialógicas ou não, porque são partes de uma possibilidade de comunicação, todavia
também de in-comunicação. O outro é possibilidade de encontro, no entanto, é também
ameaça de desencontro. Nesse sentido, a questão debatida entre a ética da alteridade de
Levinas e a ética do discurso (Disckursethick) é pertinente, porque permite debater se
existe um tipo transcendental de aproximação do outro que possa ser realmente ético.
Entre diversas indagações, podemos destacar: é possível justificar, transcendentalmen-
te, as formas ideais não-fáticas de uma comunicação, aceitáveis a todos os eventuais
interessados? É factível pretender uma alteridade ética radical? Não existe nisso um

56 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


conceito diferente de transcendentalidade? Será possível fazer germinar um pensamento
comunicativo a partir das tradições sapienciais e dos contextos valorativos das ações?
Não será necessário formalizar os diversos conceitos de razão e de razões em jogo?
Será possível distinguir os acordos ou consensos racionais, sem serem do tipo estraté-
gico, mas que estejam voltados a um entendimento sem limites, como pensam Apel e
Habermas? Como defendem alguns, será um entendimento possível, porém limitado
contextualmente? Não se deveria indicar previamente a noção de contexto?

Tal como evidenciam as questões acima, a aproximação intercultural aproveita


o entrelaçamento das ciências da linguagem e da análise filosófica da linguagem, de
modo especial a grande contribuição, realizada pela hermenêutica e pela pragmática,
para alcançar a compreensão intersubjetiva do sentido, cuja índole é, terminantemente,
filosófica. Outra vez, repetimos a reiteração frente a quem possa deduzir que houve uma
perda da faticidade da realidade sócio-cultural, da dinâmica histórica dos contextos ou,
ainda, do horizonte especulativo da experiência humana. A relevância do acordo in-
tersubjetivo não acarreta na redução unilateral do debate ético à linguagem, porque os
elementos teóricos básicos indispensáveis para fazer avançar o debate atual em torno da
reflexividade da vinculação entre a normatividade e dos contextos valorativos das cul-
turas, já estão presentes nas teorias semânticas e pragmáticas do significado. A seguir,
indiquemos algumas considerações importantes em relação ao tema da interculturalida-
de a partir das reflexões sobre o humano.

2. Aproximações fundamentais à interculturalidade


Antes de iniciar qualquer reflexão ou debate em torno do termo interculturali-
dade, é imprescindível salientar que se trata de uma noção nova, iniciando a ser regu-
larmente utilizada somente há duas décadas, naquelas áreas que reclamam atenção aos
processos e interações culturais como, por exemplo, na educação, na comunicação, na
gestão, na política, na filosofia, apenas para mencionar algumas das mais importantes.55
Neste trabalho, far-se-á referência principalmente ao uso que os filósofos latino-ameri-
canos assumem quando discutem a respeito da proposta de uma filosofia intercultural e
sobre as possibilidades do diálogo intercultural.

A expressão do entre-culturas foi, filosoficamente sistematizada, por Fornet-


Betancourt.56 Ele chama a atenção a respeito dos diversos usos monoculturais e etno-

55 Cf. a ampla bibliografia em ARNAIZ, 2002; FORNET-BETANCOURT, 2001; DE VALLESCAR,


2000 e SIDEKUM, 2003.
56 FORNET-BETANCOURT, 2003, p. 15-20. Nessas referências, pode-se apreciar a estrutura esquemá-

Ricardo Salas Astrain – 57


cêntricos presentes na utilização dos conceitos. Para solucionar possíveis ambigüidades
dessa terminologia, ele ressalta, de modo preciso que

a interculturalidade não indica, pois, à incorporação do outro em si mes-


mo, seja no sentido religioso, moral ou estético. Ela procura, antes de mais
nada, a transfiguração do próprio e do alheio tendo como base a interação,
com vistas à criação de um determinado espaço comum, compartilhado
através da convivência.57

Por certo, não há clareza na utilização da terminologia intercultural, nem menos


de seu significado filosófico. Com o fim de esboçar uma ética intercultural, é preciso,
inicialmente, submeter os usos monoculturais que prevalecem a uma crítica. Na verda-
de, a racionalidade auto-centrada não consegue abrir-se ao reconhecimento de outras
formas de racionalidade, quando associadas à outros registros discursivos. Nesse aspec-
to, é preciso esclarecer, em primeiro lugar, determinados aspectos essenciais do concei-
to ambíguo de cultura, no sentido de estabelecer um ponto de interseção entre a versão
forte, que os elementos substantivos oferece, e uma versão débil, estruturadas sobre as
idéias de “mudança, funcionamento e dinamismo.”58

Conceito de cultura
Com a finalidade de delinear um esboço introdutório a respeito dos problemas
vinculados à noção de cultura, pode-se afirmar que ela remete a uma questão teóri-
ca, na qual convergem as ciências humanas e a filosofia, enquanto fazem alusão aos
macro-conceitos sobre os quais se construíram as diversas ciências sociais e humanas.
As categorias como sociedade, cultura, Estado, etc., foram modeladas sobre as bases
da terminologia fornecida pelo positivismo e pelo cientificismo. Sabemos que estas
grandes categorias omniabarcantes são específicas de uma prática científica associada
aos afazeres epistêmicos do século XIX. Hoje, seria mais pertinente reconstruir a noção
da cultura a partir da perspectiva de uma hermenêutica e pragmática da cultura. Assim,
ela se define como a trama de sentidos e significados transmitidos por símbolos, mitos,
acontecimentos, relatos, práticas e reconstruções que expressam uma compreensão e
reconstrução do sentido da totalidade da existência e dos sujeitos entre si. As culturas
não somente são relativas a uma compreensão e explicação do ser humano (momento
epistemológico), pois se abrem a uma dinâmica da existência, constituída na dialética

tica seguida pelos Congressos de Filosofia Intercultural, organizados pelo Instituto Missio de Aachen.
57 FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 47.
58 DE VALLESCAR, 2000, p. 8-9.

58 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


entre auto-compreensão de si mesmo e hetero-compreensão, que surge, inicialmente, na
eticidade humana.

Diante da necessidade de estabelecer, ao menos hipoteticamente, uma noção


que encaminhe as formulações que faremos, é necessário esclarecer, de forma sintética,
a contribuição realizada pela análise do impacto da ciência e da tecnologia nas culturas
contemporâneas.59 Segundo Ladrière, a análise da complexa sociedade moderna ne-
cessita distinguir, ao menos, três aspectos relevantes: a instância política, a instância
econômica e a instância cultural. A instância política é formada pelos sistemas de poder,
ou seja, pelos sistemas que permitem que uma sociedade tome decisões que a compro-
metem como tal, de forma efetiva e através das quais se forja seu destino histórico. A
instância econômica está formada pelos sistemas de produção, através dos quais uma
sociedade procura resolver o problema da subsistência, proporcionando a seus indivídu-
os, os bens e serviços que eles necessitam para assegurar sua existência biológica, suas
interações mútuas e sua participação na vida coletiva. A instância cultural está formada
pelos sistemas que asseguram o funcionamento do denominado aspecto informal da
vida social; em outras palavras, que servem de veículos aos significados. Esse é o aspec-
to semiótico fundamental, de onde convergem as ciências humanas, os estudos culturais
e as filosofias hermenêuticas e pragmáticas.

No campo cultural, cabe distinguir, por sua vez, os valores, as normas, as repre-
sentações, as relações expressivas e simbólicas. Em Ladrière, a cultura aparece como
o conjunto de elementos formados pelos sistemas de representação, normativos, de ex-
pressão e de ação. A cultura pode ser considerada, desse modo, como o conjunto das
representações que os indivíduos têm do mundo e de si mesmos, dos valores a partir dos
quais as ações são apreciadas, das modalidades materiais e formais desde as quais as re-
presentações e valores encontram suas projeções concretas e, por último, das mediações
técnicas e sociais. Parece-nos que essas teses metodológicas são imprescindíveis para
compreender as questões éticas da proposta filosófica intercultural.

Nesse marco, há uma evidente transparência às possíveis acepções dadas a uma


perspectiva ética, bem como à crítica da noção ambivalente de cultura a partir de seu
uso inicial nos estudos etnológicos e antropológicos. É preciso destacar que um concei-
to científico de cultura, e suas derivações mais atuais (multiculturalismo, aculturação,
transculturação, inculturação, etc.), destacam esquemas interpretativos próprios da co-
munidade de investigadores. Em relação à interseção desses sistemas culturais, eles for-
mam parte de uma compreensão-explicação científica dos estilos de vida diferentes, que
podem ser rastreados a partir da observação e da interpretação desde um ponto de vista

59 LADRIÈRE, 1978, p. 69.

Ricardo Salas Astrain – 59


privilegiado. A ambigüidade radica no fato de que o reconhecimento dos outros estilos
de vida não significa, de imediato, o questionamento do ponto de partida do observador
e do intérprete científico em relação à primazia de alguns destes sistemas.

A origem etnocêntrica de muitos estudos etnológicos e da antropologia cultural,


elaborados pelos pensadores europeus e norte-americanos, tornou-se, hoje em dia, pa-
tente, de modo que, em geral, esse instrumental se associa ao exercício geopolítico de
conhecer os outros, produto dos interesses dos grandes centros de poder mundial, com
o objetivo de manter uma universalidade fática.

O novo exercício foi aberto a partir da tese hermenêutica da cultura, na tentati-


va de resolver esta ambigüidade semântica e ético-política. Ela possibilita reinterpretar
as relações entre o compreender a própria cultura e compreender as outras culturas e,
em particular, a outro vínculo que torna possível a interação entre os semelhantes e os
diferentes. Enquanto essa crítica não seja feita em todos os planos teóricos e práticos, é
pouco provável que consigamos avançar no sentido de superar o monoculturalismo, isto
é, a imposição do olhar hegemônico, em vez de aceitar uma revisão que incorpore o olhar
dos outros. De forma mais radical, a possibilidade de superar o predomínio da metáfora
do olhar ‘observador’ por uma metáfora da escuta das vozes dos outros e dos silêncios.

É bastante provável que tal utilização monocultural, predominante até hoje no


meio acadêmico e político, haja impedido compreensão das culturas diferentes em seus
níveis de articulação do sentido e significado de suas práticas, obstando a avaliação dos
valores, crenças e finalidades das culturas diferentes. É freqüente encarar os outros es-
tilos de vida como inferiores, primitivos, selvagens ou outras evocações etnocêntricas.
Sem dúvida, muitas expressões, presentes na linguagem moral cotidiana das diversas
línguas modernas, relacionam esses epítetos etnocêntricos com as designações que se
referem à condutas violentas ou irracionais: bruto, índio ou mestiço. No entanto, as ca-
tegorias morais positivas são quase sempre associadas às formas civilizadas e urbanas:
nobre, cortês, educado, cidadão.

Nesse sentido, é plausível afirmar que os parâmetros teóricos e discursivos –


que foram utilizados pelas ciências humanas e a filosofia até quase que os dias atuais –
elaboraram e consolidaram uma concepção da razão humana associada à racionalidade
inerente aos conhecimentos científicos e técnicos. Tais parâmetros acabaram propagan-
do, de forma sub-reptícia, um manto sombrio sobre as outras formas de racionalidade
humana e, às vezes, negando-lhes explicitamente a validez da reflexividade inerente a
seus modos de vida. Essa repugnância impediu o reconhecimento das múltiplas modali-
dades dos saberes culturais e, ainda, as capacidades reflexivas de cada ser humano e dos
níveis de criticidade alcançados por cada cultura em suas diversas etapas históricas.

60 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


As dimensões simbólicas e valorativas, tal como as regras e as normas, foram
associadas a uma diversidade de entretecimento de costumes específicos de uma morali-
dade cultural, sem reconhecer a inter-relação de seus níveis discursivos, de suas contra-
dições e de suas complexas articulações. Tudo parece acontecer como se os sujeitos das
culturas primitivas vivessem valores e normas de um modo completamente homogêneo
e inconsciente. Nesse sentido, a noção de cultura, o processo de articulação do sentido
cultural de Ladrière salienta, permite mostrar, de forma clara, que não existe o sentido
sem referência à finalidade e aos valores assumidos e reinterpretados pelos diversos re-
gistros discursivos das culturas, sejam elas primitivas ou não. O ponto de controversial
não é saber se as culturas podem ser definidas por somente um registro discursivo único.
De fato, é sabido que todas as culturas humanas desenvolveram formas expressivas e
normativas muito complexas. Por isso, a questão é compreender a dinâmica o processo
que articula as formas reflexivas, associadas ao exercício interpretativo e pragmático.

Ao que tudo indica, noção de interculturalidade, entendida desse modo, con-


tribui na superação das deficiências aludidas das outras categorias, pois ela dá conta
desta densidade hermenêutico-existencial do sentido e do modo que se articula discur-
sivamente com as formas de ação. Isso permite compreender, de forma mais plena, a
discussão teórica em torno ao nexo entre a coordenação das ações, a partir dos níveis
básicos de reflexividade presentes em todas as culturas. O avanço crítico, realizado
em algumas das ciências humanas e sociais, produto do impacto dos modelos discur-
sivos – hermenêuticos e pragmáticos –, permite questionar, de um modo radical, o
conceito homogêneo de razão aplicado mecanicamente à reflexividade. Trata-se de um
questionamento não somente da atividade científica como sinônima de racionalidade
neutra. Mas, por exemplo, é inexeqüível seguir aceitando a famosa distinção da ciência
neutra, caracterizada pela elaboração dos juízos de fatos, e um conhecimento cotidiano
e vulgar, reduzido à parcialidade de os juízos de valor. A noção de interculturalidade
torna obrigatória a efetiva tarefa de compreender os diversos modos discursivos das
racionalidades práticas. Al realizar essa aclaração, o sistema de eticidade cultural e de
moralidade surgem a partir de uma perspectiva completamente diferente.

Conceito de interculturalidade
O novo espaço no qual se ergue, atualmente, a categoria de interculturalidade
pressupõe, inicialmente, a crítica sistemática dos usos monocêntricos da cultura, no en-
tanto, de forma especial, à des-centralização do contexto em si como ponto privilegiado
para observar os outros. Esse é o modo como, a partir de um questionamento, recente-
mente lançado do lugar e da operação escritural, a antropologia, a etnologia e a história
conseguiram romper a noção predominante da racionalidade hegemônica. Assim, elas

Ricardo Salas Astrain – 61


possibilitaram avançar na gestação de uma conceituação menos etnocêntrica das cons-
telações culturais diferentes. As novas categorias em voga ultimamente, no pensamento
latino-americano e nos estudos culturais – tais como a mestiçagem, o hibridismo e a
interculturalidade –, permitem visualizar uma nova forma de compreender a particu-
laridade de nosso olhar e de escutar aos outros, concomitantemente à aprendizagem
intercultural do fortalecimento de um modelo de co-protagonismo do olhar e da voz,
próprias e alheias.

A noção de interculturalidade não é, então, unicamente fruto de uma crítica


que começa na complexização da idéia de cultura herdada dos séculos XIX e XX.
Trata-se de uma nova compreensão da relevância dos contextos culturais, de forma que
o conhecimento, a ação e a própria filosofia não podem prescindir dos lugares em que
as racionalidades são forjadas, o que permitiria repensar a idéia de uma geocultura do
saber viver, noção que Kusch procurou desenvolver.

A interculturalidade é uma nova e cada vez mais nítida tomada de consciência


a respeito de que todas as culturas estão em um processo de gestação de seus próprios
universos de sentido e, ainda, sem a possibilidade teórica de subsumir completamente
o outro no meu sistema de interpretação. O novo modo de olhar anima essa disposição
antropológica e histórica de abertura, com o fim de dar-nos conta de que muitos dos
estudos realizados sobre os outros, supunham, efetivamente, uma superioridade e ten-
diam a caracterizar a outras culturas como estáveis e imóveis, uma forma de sustentar
o próprio processo civilizatório. Esse modo de aproximação salienta que os processos
contextuais e históricos das culturas particulares podem facilitar ou impedir os contatos
com os outros, favorecer o reconhecimento ou o desconhecimento. Todavia, o aspecto
central evidencia que seja qual for o mundo de vida, ele se institui através de uma aber-
tura ou de um fechamento.

É possível deduzir alguns comentários gerais desse questionamento atual em


torno da primazia de nossa cultura, circunstância que permite avançar na direção de
uma idéia mais madura da interculturalidade. Não se trata somente da abertura a outra
cultura, mas de um reposicionamento da relação de umas com as outras. A primeira
observação relevante radica em algo pressuposto no prefixo inter – existente, por certo,
em outros usos: internacional, intervalo, interstício –, pois remete sempre a um tipo de
contato entre uma ou mais culturas. A interculturalidade é, nesse sentido, uma categoria
que permite dar conta do modo de contato – que pode ser simétrico ou assimétrico –
das culturas. Assim, há uma prevenção na dimensão do inter, superando determinadas
limitações das categorias de aculturação, transculturação e mestiçagem, as quais pres-
supõem um indício semântico do tipo de absorção evolutiva.

62 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Em segundo lugar, a interculturalidade pode ser concebida também a partir dos
diferentes espaços de poder do conhecimento (Walter Mignolo). Desse modo, ela pode
ser utilizada, pelos Estados e pelas instituições, como uma categoria geopolítica, que
permite assimilar ou reduzir as demandas culturais das etnias e minorias que foram sub-
jugadas por muito ou curto espaço de tempo, evitando seu reconhecimento e, especial-
mente, esquivando-se de assumir, no seu sentido profundo, os processos coloniais de
assimetria e de negação do outro. Essa acepção é chave, porque permite ser consciente
de que o processo de des-centralização não será sempre aceito e que, muitas vezes, por
detrás de uma proposta intercultural, ainda existe o desejo da primazia de uma cultura
sobre outra.

O terceiro aspecto em relação ao conceito de interculturalidade reporta ao fato


de que ele não pode estar separado de processos de auto- e de hetero-reconhecimento
entre culturas diversas – culturas nacionais, populares e étnicas–, as quais, muitas vezes,
viveram historicamente relações de exclusão e de negação ad intra e ad extra. Nesse
sentido, a interculturalidade conduz a uma discussão em torno das formas de reconhe-
cimento das identidades culturais, do hetero-reconhecimento de culturas que viveram
em assimetria e, fundamentalmente, que suscitam o grande problema das identidades
morais.

As três indicações acima permitem reformular a noção de interculturalidade,


como sendo uma categoria eminentemente ética, fazendo alusão às questões centrais
desse estudo: o espaço intercultural remete a um mundo aberto, que deve ser construído
para garantir o con-viver; o novo espaço não é algo que seja aceito sempre por todos,
pois no próprio mundo de vida existem interesses divergentes ad intra e ad extra; e,
ainda, este processo de reconhecimento e de hetero-reconhecimento inaugura uma nova
relação entre o si mesmo e o outro. Embora atualmente seja assimétrica, essa relação
pode dar forma a relações de simetrias, cuja incomunicação e ex-comunicação, exis-
tentes hoje em dia, possam ser transcendidas em vistas a um novo exercício de diálogo
intercultural, aspecto que será tipificado mais adiante.

Assim denominada, a interculturalidade aparece como uma categoria ética ine-


rente à época de globalização. Trata-se de uma época na qual tomamos maior consciên-
cia do viver e do conviver entre tempos e espaços próprios. No entanto, se desejamos
evitar cair no precipício do fundamentalismo e do fechamento cultural, que conduz à
exclusão do outro, é imprescindível gerar caminhos de reconhecimento com o fim de
estabelecer determinadas exigências comuns a todos. Esse esforço não presume aban-
donar, de forma alguma, a narrativa da própria identidade, mas permite re-situá-la e re-
contextualizá-la espacial e temporalmente. Todavia, não se trata somente de interpretá-
la permanentemente, mas de argumentar e reconstruir valores e normas pluri-universais.

Ricardo Salas Astrain – 63


Que esta seja uma proposta ética, não significa que ela não possa ser concretizada nos
diversos espaços sociais das sociedades multiculturais, onde predomina a anomia, a he-
terogeneidade e a exclusão. É da consciência destas injustiças que surge esse verdadeiro
imperativo ético. Conforme Fornet-Betancourt, daí

deduz-se que a necessidade do diálogo intercultural é a exigência de reali-


zar a justiça, de tornar factual um contato justo com o outro livre. Por certo,
isso quer dizer que é necessário reconhecer o outro como pessoa humana
portadora, justamente na sua diferença, de uma dignidade inviolável, que
nos faz iguais.60

Nesse sentido, a noção de interculturalidade implicaria em uma nova forma


ética, capaz de tomar em consideração as relações entre as valorações substanciais, que
estão na base da própria identidade, e dos tipos de normas que cabe reconstruir intersub-
jetivamente, para conseguir o maior reconhecimento. No segundo capítulo, estudar-se-á
que ela é uma categoria que dá conta da discussão do pensamento latino-americano,
modelado na compreensão das eticidades e das assimetrias culturais. De modo especial,
essa categoria permite esclarecer a relação renovada entre identidade e diferença, entre
o si mesmo e o outro, entre nativos e estrangeiros, entre contextualidade e universalida-
de em um marco ético que aspira construir um mundo humano, no qual todos possam
conviver, ao mesmo tempo diferentes e iguais.

3. O que se entende por ética intercultural


Considerando tudo o que foi destacado, é possível afirmar que a ética cria as
possibilidades para a atividade reflexiva em uma sociedade humana. Pelo menos, esse
é o entendimento da filosofia ocidental. É sempre uma operação inalterável. As teorias
dos filósofos seguem na vanguarda dos “mundos de vida” nos quais vivem os homens
concretos. Nesse plano, é possível fazer uma pungente pergunta: a reflexividade foi
compreendida em toda sua complexidade intercultural ou foi simplificada para um uso
monocultural? A tentativa de esboçar uma resposta necessitaria demarcar a seguinte
disjuntiva: ou essa reflexividade é inerente ao ethos de todas as culturas ou, então, ela
se encontra apenas em contextos culturais que privilegiaram a racionalidade crítica.
Sem dúvida, a resposta não é fácil, pois, ao assumir um dos dois extremos, parece que
regressamos ao problema da necessidade de eleger entre uma atitude universalista ou,
senão, uma perspectiva etnocêntrica do sistema da moralidade.

60 FORNET-BERTANCOURT, 2001, p. 264; Cf. também OLIVÉ, 1999.

64 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Nesse sentido, a ética intercultural pode ser entendida como aquela forma de
tematização discursiva do ethos no interior de uma cultura. Trata-se do desdobramen-
to dos diversos níveis de reflexividade, alcançados em suas formas discursivas, e dos
possíveis espaços de abertura comunicativa, que se abrem frente a outras formas de
reflexividade associadas a outros contextos culturais.61

Essa definição de ética é claramente devedora de um enfoque que leva em conta


a linguagem como tradutora da experiência moral e, inclusive, dos diversos sistemas de
significação e sentido, que os enunciados morais apresentam em uma cultura específica:
preceitos, conselhos, relatos, regras, proibições, etc. Ela se relaciona com a idéia atual de
considerar que os valores e normas são estruturados a partir de registros da linguagem,
nos quais se localizam as regras lógicas, semânticas e pragmáticas, assegurando, aos
seus usuários, as inter-relações simbólicas e pragmáticas fundamentais.62 Conforme o
sentido anteriormente sinalizado, é possível afirmar que, efetivamente, qualquer exercí-
cio de ética intercultural passa por um esclarecimento dos termos morais, de sua crítica
e interpretação. Isso significa assumir que, no interior do discurso moral de uma cultura,
sempre encontraremos, como partes inerentes de seu complexo sistema discursivo de
eticidade e moralidade, referências a diversos registros do valorativo e do normativo.
Nesse livro, nossa pretensão visa articular uma determinada discussão latino-americana
reconhecia: que o deôntico ou o normativo e o axiológico ou o valorativo, no sentido
estrito, não se opõem, pois são “portas de ingresso” para o fenômeno da moralidade.63
É isso que buscaremos mostrar nos três próximos capítulos.

Nesse sentido, é inaceitável a pressuposição das propostas éticas que separam,


de forma taxativa, o axiológico e o normativo ou, então, que consideram um deles como
determinante do outro. Na verdade, o enfoque intercultural pressupõe que o mundo
moral pode ser entendido a partir dos valores e das normas que, como salienta Ricoeur,
não é preciso eleger entre o bem e a justiça. Diante disso, é possível concluir que, entre
as perspectivas teleológicas de Aristóteles e deontológicas de Kant, haveria um “abriga-
mento da primeira e da segunda.”64

Caso se aprofunda essa tensão entre as duas modalidades filosóficas, com as


intersecções relativas aos processos discursivos, poder-se-ia esboçar alguns pontos ine-
rentes ao marco intercultural, os quais colocam em evidência que não é preciso con-

61 É possível entender outras formas de entender a cultura “Ética Intercultural” em autores hispânicos:
em um marco de um cognitivismo desenvolvido como o propõe Bilbeny, 2001, introdução, sob a reinter-
pretação do universalismo apeliano em Cortina, 1999 e sob a forma de um espaço moral no marco de uma
ética da alteridade de inspiração levinasiana. ARNAIZ, 2002, p. 77-106.
62 Cf. GUARIGLIA, 1996, p. 224.
63 MALIANDI, 1994, p. 30.
64 Cf. RICOEUR, 1996, p. 174.

Ricardo Salas Astrain – 65


trastar a formulação de ‘vida boa’ do ethos com a formulação universal de uma ‘vida
justa para todos’. Nosso enfoque ressalta que o diálogo e a abertura dos discursos aos
outros – que denominamos irmãos, co-nacionais, seres humanos – são fundamentais
em praticamente todas as sociedades humanas. Não é possível encontrar modos de vida
sem que haja a necessidade de ultrapassar os registros discursivos básicos, nos quais
os saberes afetivos e cotidianos se articulam com outros saberes mais universalizáveis,
separados dos meus saberes familiares. Nessa mesma direção, isso exige que uma cul-
tura científica se liberte do conceito monológico de racionalidade, para reconhecer os
diversos saberes e racionalidades que permitem o encontro com as razões dos outros
seres humanos, de outras culturas. No entanto,

nas condições da modernidade contemporânea, a articulação da regra e do


sentido da coexistência pressupõe a superação do modelo monológico da
racionalidade: somente uma racionalidade e um método dialógico, funda-
dos sobre o olhar atento do mundo e sobre o diálogo intercultural, estão,
atualmente, em medida de responder às exigências de uma real universa-
lização.65

Por ora, pode-se destacar a idéia de uma reflexividade entre-culturas em torno


do diálogo e da reciprocidade de discursos culturais. É isso que reforça Maliandi, quan-
do afirma:

Para que a reflexão em sentido estrito e, de modo especial, a reflexão deli-


berada se faça possível, deve ocorrer, em contraposição com outras pers-
pectivas, o intercâmbio comunicativo com elas. Em outras palavras, deve
haver diálogo e, sobremaneira, o diálogo argumentativo, ou seja, deve ha-
ver ‘discurso’.66

Alguém poderia se perguntar: será que a referência a um discurso argumen-


tativo não conduz a subscrever, assim, a perspectiva deontológica em oposição à
perspectiva contextualista? Nesse sentido, R. Pannikar indagou se é possível estabe-
lecer um diálogo novo que supere o diálogo dialético, que predominou no Ocidente,
situado acima das partes envolvidas. Ele sugeriu ser necessário articular, dessa for-
ma, um diálogo dialógico, o qual não se trata da

confrontação de dois logoi em um combate cavalheiresco, mas enquanto


um legein de dois ‘dialogantes’ que se escutam um ao outro. Eles se ou-

65 GOMEZ-MULLER, 1999, p. 26.


66 MALIANDI, 1994, p. 42.

66 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


vem para tentar entender o que a outra pessoa está dizendo e, sobretudo, o
que ele quer dizer. A esta segunda forma de dialética, lhe dou o nome de
diálogo dialógico.67

Na verdade, o que parece ecoar é a expressão um tanto redundante, presumindo


uma questão certamente incisiva. Ela remete à geração de regras entre culturas, que fo-
ram deterioradas a partir de um determinado procedimento regulador do diálogo. Sem
dúvidas,

o método adequado para a filosofia intercultural é o método do diálogo dia-


lógico, no qual as regras do diálogo não devem ser unilateralmente pressu-
postas, nem são aceitas a priori, pois são constituídas no próprio diálogo.
Porém, como saber a forma de proceder, caso não conhecermos o procedi-
mento? Não estaremos caindo em um círculo vicioso? Eu diria que, como
qualquer problema último, não é um círculo vicioso, mas um círculo vital.68

Essa perspectiva dialógica poderá ser adequadamente esclarecida no momento


de indicar as condições que tornam possível um diálogo intercultural.

Sem dúvidas, a pedra angular da problemática da ética intercultural aponta para


a compreensão do outro a partir de uma linguagem específica. Por isso, o diálogo inter-
cultural não dissolve com o dissenso, porque responde à base dos problemas dos con-
flitos discursivos e também morais. Maliandi, seguindo a opinião de Williams, salienta
que “a questão do conflito moral (que não se reduz ao seu ‘porque’) representa, de fato,
uma espécie de núcleo do qual derivam, em definitivo, todas as questões éticas.”69

A perspectiva pragmática não desconhece que, de fato, o procedimento, tal


como foi definido na ética do discurso, nos afasta das temáticas conflitivas do mundo
da vida. Apel destaca que o discurso “é a única possibilidade existente para nós, os
homens, de resolver os conflitos em torno das pretensões de validez sem violência.”70
Habermas reconhece esse aspecto e o considera o único suscetível de avaliar as valora-
ções. Para ele,

as idealizações conservam intactas a identidade dos participantes e os as-


pectos conflitivos procedentes do mundo da vida. O ponto de vista moral

67 PANIKKAR, em ARNAIZ, 2002, p. 34.


68 PANNIKAR, em ARNAIZ, 2002, p. 34.
69 MALIANDI, 1994, p. 92.
70 APEL, 1991, p. 155.

Ricardo Salas Astrain – 67


exige a superação das barreiras e a reversibilidade das perspectivas de in-
terpretação, a fim de que os pontos de vista alternativos, as constelações
de interesses alternativos e as diferenças na respectiva compreensão, que
os agentes tenham de si mesmos e do mundo, não se extingam, mas que os
faça valer.”71

Em resumidas considerações, a ética intercultural representa o passo essencial


para responder se a teoria contextualista está mal especificada, para conseguir valo-
rar, de forma adequada, o ponto de vista dos conflitos das identidades e das disputas
comunitárias reais. Ou, então, se é, necessariamente, exigível encontrar um modelo
pragmático universal, que assegure a plena transparência dos princípios, sem perma-
necer sujeitos à avaliação moral das contingências da realidade social e histórica. As
duas alternativas fazem parte da projeção pensamento latino-americano, tema que será
estudado nos seguintes capítulos.

Nossa concepção de ética intercultural, como procura deste espaço de com-


preensão entre-culturas, pressupõe uma opção pela discursividade, capaz de validar
um procedimento definidor das regras, a partir de uma modalidade contextual. Porém,
como questão central, essa concepção exige definir o tipo de regras nas quais se articula
a linguagem moral e, de modo particular, discutir a respeito da possibilidade de um
nível meta-ético que assegure sua universalidade. Em outras palavras, a ética intercul-
tural se gesta a partir de uma compreensão do contexto como instância dinamizadora
de valores e normas, que podem universalizar-se, porém sempre mantendo um vínculo
com suas origens fracionadas. Que tipos de universalidades se articulam a partir de que
racionalidades? O aspecto relativo a essa questão determinante será explicitado a partir
do modelo da tradução, aspecto que será tratado no capítulo final.

71 HABERMAS, 2000, p. 170.

68 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


CAPÍTULO II

BASES HERMENÊUTICAS
PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL

O segundo capítulo pretende esclarecer o significado de uma hermenêutica dos


discursos morais, tendo em vista os avanços das correntes éticas da discussão, da ética
fenomenológica e de outras formas de reconstrução das morais históricas. Com isso, de-
seja-se explicitar o modo de funcionamento dos registros discursivos associados especi-
ficamente aos registros narrativos e interpretativos inerentes aos contextos culturais.

O problema dos registros discursivos requer um aprofundamento de parte do


debate em torno da modernidade. Teoricamente, o projeto modernizador e racionaliza-
dor não é algo esmorecido entre os pensadores latino-americanos. Os enfoques vigentes
concluem que a análise da modernidade está longe de encontrar consenso entre opiniões
inconciliáveis. Provavelmente, o tipo de unanimidade, outorgada por diversos teóricos,
diz respeito à relevância às formas através das quais ele assume o sentido, o valor e a
dignidade do outro. Há de se reconhecer que ela tem sido uma parte relevante da história
latino-americana. Pensadores como Todorov e Dussel, a consideram formando parte
desde a invasão, pelos impérios europeus, da América; para outros, como é o caso de
Roig, a origem da modernidade pode ser situada no século XVIII, com a incorporação
dos grandes ideais ilustrados e o surgimento do indivíduo. Kusch e Morandé apresen-
tam considerações tão diferentes, que tendem a visualizar, na modernidade racionalista,
um projeto acima de tudo imposto pelas elites ilustradas, sem responder às grandes
expectativas identitárias dos povos latino americanos.

Esse debate salienta também a questão do ethos cultural, pois se relaciona es-
treitamente às teorias identitárias em torno das raízes próprias e da crítica aos processos
de transformação coloniais vinculados à imitação inautêntica de outras culturas, consi-
deradas superiores. Da mesma forma, é necessário mostrar o vínculo mítico-sapiencial e
cúltico das demais culturas indígenas, afro-americanas e populares. Inclusive, a própria
noção de ethos será objeto de análise de modo diferenciado pelos autores. Nesse senti-
do, cabe frisar apenas que, em grego, ela remetia a significados concernentes à morada,
o lugar em que se habita. Por ethos cultural, buscar-se-á precisar os elementos ou traços
simbólicos, narrativos e interpretativos que configuram um mundo de vida.

Ricardo Salas Astrain – 69


É nosso interesse mostrar que a hermenêutica latino-americana desenvolveu
análises específicas, permitindo aventar, de forma incontinente, em uma teoria herme-
nêutica da identidade narrativa, que permitiria entender as questões morais. Nesses
exercícios, visualiza-se um denominador comum, através da configuração de um pensar
enraizado nas tradições e mitos indígenas e, ao mesmo tempo, numa reconstrução críti-
ca que articula explicação e compreensão para dar conta das transformações históricos
da normatividade cultural e, ainda, capaz de assegurar a reflexividade e a crítica operan-
te no seio das culturas humanas.

A idéia de uma normatividade dinâmica, associada aos contextos, representa,


na América Latina, uma reformulação ética do conflito teórico entre tradição e mo-
dernidade. Nesse plano específico, argumentar-se-á no sentido de que o conceito de
modernidade, que entra em jogo, pressupõe a visão ético-política em torno do sentido
das tradições e do ethos de uma comunidade. A modernidade que se vive, em geral,
nas atuais sociedades contemporâneas européias, norte-americanas e latino-americanas,
implica em uma ruptura com os ideais do bem e, ao mesmo tempo, a afirmação do que é
devido para cada um dos cidadãos. Isso significa que o problema axiológico e deôntico
da modernidade e da identidade latino-americana se relacionam com a problemática
da ética intercultural, tal como foi concebida anteriormente. Trata-se de demonstrar
os modos particulares de criação valorativa no interior da outra modernidade, de seus
processos de reinterpretação e modificações dos modos de argumentar a respeito dos
valores e normas veiculados pela modernidade européia.

Identidade e Modernidade
A discussão ética sobre valores e normas poderia ser entendida, de forma es-
quemática usual, entre dois pólos permanentes, aspecto bem trabalhado no horizonte da
história das idéias latino-americanas, acrescentando um terceiro esboço em gestação.
Esses três modos de aproximar-se à identidade cultural fomentam, de certo modo, o tipo
de análise ético contextual, aspecto a ser desenvolvido neste livro sobre Ética Intercul-
tural. Segundo Devés, o pensamento latino-americano oscilou entre duas posições, ou
seja, a busca de modernização e o reforço à identidade.72 Essa tensão oscilante de nosso
pensamento a respeito do agir, leva-nos a presumir que existem três modalidades possí-
veis para entender este vínculo entre universalismo e contextualismo:

* Nas posições modernas, verifica-se a idéia de universalidade da vida social,


pelo qual, na América Latina, não existe nenhuma especificidade social e cultural que

72 Eduardo DEVES, 2000, p. 15.

70 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


lhe permita distinguir-se de outras regiões socioculturais. Todo recurso que procura
identificar um ethos específico, será estigmatizado como particularismo ou telurismo;

* As tentativas identitárias desenvolvem uma idéia substantiva do contexto, na


tentativa de destacar o particular e o específico. Ao afirmar a existência de uma identida-
de própria do ethos latino-americano como tal, salienta-se que a América Latina poderia
distinguir-se de outros contextos socioculturais a partir dos valores e normas de seu
próprio ethos, sem assumir os valores e normas de outros povos, o que seria qualificado
de inautenticidade ou imitação.

* Uma terceira alternativa emergente, de modo especial, nas últimas décadas,


diagnostica a fragmentação das sociedades nacionais e das identidades culturais latino-
americanas, conduzindo a formas híbridas de identidade, que reconstroem os valores e as
normas interagindo com a próspera e mediática modernidade.

A Ética Intercultural analisa essas três formas de conceber a relação entre mo-
dernidade e identidade. Todas elas configuram o perfil intercultural da questão da auten-
ticidade, nesse caso, não do pensamento ou da cultura, mas dos valores assumidos em
nossos estilos de vida. Esses modos de entender a identidade são inerentes ao discurso
moral, contextualizado histórico-culturalmente.

A questão ética herda o fato de que a discussão da modernidade não se relaciona


apenas com a legitimidade do empreendimento conquistador, mas, de modo especial,
vincula-se ao tipo de consciência fragmentada, na qual o sujeito latino-americano foi
forjado, particularmente o próprio discurso mestiço. Zea recorda os casos de Bolívar e
Sarmiento, que se perguntavam acerca da unidade da sociedade americana, construída
de forma assimétrica.73 Esses discursos e categorias continuam fecundando, até nossos
dias, propostas de transformações valorativas e normativas das sociedades nacionais.
Estas sociedades nacionais nascentes, já nos primeiros processos independentistas de
quase dois séculos, conformaram as novas identidades de acordo com os parâmetros
históricos dos princípios do século XIX. Todavia, elas não conseguiram articular proje-
tos comuns que assumissem os interesses da totalidade das populações que aglutinavam
os nascentes Estados.

No entanto, é historicamente sabido que, nessas sociedades nacionais, apesar


dos múltiplos esforços por construir sociedades mais integradas a valores e normas
comuns, os Estados seguem conservando, até o dia de hoje, vários tipos de exclusão
e enormes desigualdades econômicas. São enormes contingentes de grupos humanos,

73 ZEA, 1990, p. 111.

Ricardo Salas Astrain – 71


favorecidos de tempos em tempos, na busca de transformações polarizadas violentas,
como testemunham as lutas sociais e políticas destes povos. Sem lugar a dúvidas, ao
analisar os múltiplos contextos desta América mestiça, negra e indígena, o diagnósti-
co histórico é muito mais complexo, o que permitiria dar conta de uma compreensão
crítica das múltiplas formas de construção valorativa e normativa. Embora essa tese
não seja plenamente compartilhada pelos estudiosos, é possível encontrar um elemento
transversal comum, ou seja, um ponto de partida dessa confrontação: trata-se da cons-
tatação da pobreza, da desigualdade e da exclusão que caracterizam estas sociedades.

Sem mais delonga, evidencia-se uma primeira questão filosófica, relevante nos
pensadores latino-americanos, que chamam a atenção a respeito dos processos his-
tóricos e das lógicas de exclusão e de negação dos outros. Frente à proposta de uma
comunidade ideal de comunicação, pressuposta pela ética da discussão, propõe-se, de
forma imediata, uma referência às comunidades reais de vida, as quais se deparam com
as dificuldades em assumir tais dificuldades. São sociedades nas quais coexiste uma
multiplicidade de bens, que se enfrentam no seio das modernidades latino-americanas.
Nesse sentido, é possível perceber que a perspectiva idealizadora de uma comunida-
de de discussão apresentará um forte rechaço, pois a suspeita é de que o modelo de
condições ideais não responde às especificidades históricas dos povos. A comunidade
histórica se caracteriza pela freqüência da hegemonia fática de uns sobre outros, onde
prima a efetiva assimetria, constatada em diferentes épocas, nas quais as condições
reais para o diálogo são quase inexistentes. Há, nisso, uma disjuntiva: ou, às vezes, isso
se transforma em um “diálogo de surdos”, onde cada interlocutor fala de si mesmo; ou,
então, às vezes, se manipulam regras e sistemas discursivos estratégicos, que procuram
reduzir as diferenças de acordo com os interesses dos poderosos.

Essas características históricas comum das sociedades latino-americanas – cons-


truídas na hegemonia colonial, na superioridade de outros interesses ou, atualmente, na
fragmentação de uma cultura cosmopolita – conduzem, então, a uma disjuntiva princi-
pal em torno das dificuldades do diálogo como condição de validação das normativas
exigidas pela modernidade.

Em todos os pensadores latino-americanos estudados, verifica-se que a idéia do


diálogo racional não ocorre historicamente, pois existe, em nossas sociedades, a falta
permanente de relações simétricas. Trata-se de uma perda da relevância da organização
e do uso puramente estratégico, introduzido nos interstícios de quase todos os sistemas
culturais, religiosos, políticos e econômicos. Eles exigem, inevitavelmente, uma pro-
posta que promova as formas de construir as condições de realização de um projeto
social mais autêntico e mais justo.

72 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


A idéia é salientar, a esta altura, que a forma de compreender a história dos po-
vos latino-americanos caracterizada, de modo geral, por processos de dominação estru-
tural e, em particular, pela maneira de intervir sobre a forma impostora, define, freqüen-
temente, as divergências na hora de elaborar os modelos teóricos da ética. A tentativa
de dar primazia à lógica da negação e de exclusão, que perpassa a diversidade cultural
latino-americana, foi o que alguns autores procuraram transformar em tema como sendo
a “lógica da negação do outro”. Como é possível afirmar um ethos comum, um nós que
permita articular os dissensos internos? Na direção oposta, ao destacar a forma particu-
lar de estabelecer uma síntese cultural, amém nos deparamos com um núcleo valorativo
que permite manter a autenticidade muito além das traições das elites.

As divergências e fissuras, expressivas para entender o ethos e relevantes para


esse projeto de ética intercultural, são, essencialmente, de tipo teórico. Elas apontam,
fundamentalmente, ao modo de compreender o caráter crítico da eticidade presente no
ethos latino-americano. São maneiras de explicitar normas que respondam aos desafios
da dominação e da opressão crônicas. Elas representam também as diversas formas de
justificar ou de fundamentar princípios que dão continuidade aos programas teóricos de
dedução de normas e, com certeza, uma definição do que significa uma razão prática
capaz de permitir a interação com as razões dos outros. Em síntese, nesse plano teórico,
nos encontramos em um terreno perspicaz de evidente reconstrução filosófica de duas
colocações: uma de caráter histórico-hermenêutico; outra de tipo crítico, aberta e em
tensão com a perspectiva pragmática.

Dentro da perspectiva histórico-hermenêutica, caberia diferenciar os tipos de


colocações que, mantendo o esforço por precisar o ethos latino-americano, têm claras
diferenças teóricas e terminológicas, que poderia ser esquematizada em dois tipos de
hermenêutica. Há um delineamento hermenêutico, particularmente baseado nas tradi-
ções simbólico-religiosas das comunidades humanas; e existe outro, vinculado às tra-
dições de luta dos movimentos e sujeitos históricos, que caracterizam a história latino-
americana.

1. A contribuição de R. Kusch a uma ética intercultural


A questão das bases hermenêuticas da ética na América Latina não é simples.
Na verdade, parece que elas podem ser explicadas a partir de uma ampla gama de estu-
dos culturais, realizados para dar conta das diversas formas do viver e do conviver nos
países latino-americanos. Em particular, caberia destacar a colaboração de antropólogos
e filósofos ao esboço teórico da interculturalidade. Eles têm procurado reconstruir um
ethos cultural, seguindo as tradições míticas ainda presentes nos povos indígenas e a

Ricardo Salas Astrain – 73


dinâmica cultural nas comunidades humanas que resistem à urbanização e, ainda, as
diversas formas de modernização homogeneizante. Esse é o modo como a hermenêutica
intercultural, no seu marco ético, pode ser vinculada, de forma teórica, com as pers-
pectivas elaboradas por pensadores latino-americanos. Na continuação, destacar-se-á a
colaboração significativa de R. Kusch sobre o pensamento indígena e popular na Amé-
rica. Suas teses têm sido, freqüentemente, explicitadas a partir do ponto de vista de seu
enfoque geocultural, questionador do moderno e ocidental modo de vida. No entanto,
não houve visualização da colaboração kuschiana à análise de uma eticidade cultural e
de uma ética contextual. Kusch se pergunta: “É possível destruir a eticidade específica
de um povo para, então, criar uma sociedade sem ética?”74

A partir dessa questão inicial, desejamos oferecer algumas de suas colaborações


teóricas a uma ética intercultural – que nos parecem significativas para esta parte deste
livro. Elas devem permitir dar conta de uma sabedoria e de uma modalidade contextual
inerente a uma eticidade aberta ao universal. Para Kusch,

a consistência de minha vida não se situa apenas na parte de minha enti-


dade, que emerge do chão, procurado no ‘universal’, mas também, e ne-
cessariamente, no que está submergido no solo […]. O problema cultural
propriamente dito consistirá em conciliar os dois aspectos, ou seja, em
encontrar o símbolo que reúna os dois aspectos.75

Essa proposição remete ao símbolo do viver e da vida, aspecto que será anali-
sado a seguir.76

Os textos de Kusch apresentam uma enorme quantidade de referências diversas


aos processos dos modos de vida identificados na América Latina e dos quais se pre-
tende especificar os traços que permitem fixar o sentido do seu ethos de América. No
entanto, em um de seus primeiros livros, América Profunda, ele apresenta a intuição
central da sabedoria como saber de vida, que seria a conjunção dos dois pólos de sua
visão ético-cultural: “Um, que chamo o ser, o ser alguém, que descubro na atividade
burguesa da Europa do século XVI; e o outro, o estar, o estar aqui, que considero como
uma modalidade profunda da cultura pré-colombina.”77 Essa contraposição entre ser e
estar, que continua ao longo de toda a sua obra, com modulações e enriquecimentos,
oferece uma visão da eticidade cultural baseada não apenas no encontro e no desen-

74 KUSCH, 1976, p. 118.


75 KUSCH, 1976, p. 115; Cf. também p. 145 e KUSCH, 1978, p. 103.
76 KUSCH, 1978, p. 122-125.
77 KUSCH, 1962, p. 07.

74 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


contro cultural, tal como se poderia encontrar na síntese de formas culturais mestiças.
Trata-se do predomínio de um tipo de solução ao fato de viver, expresso na categoria da
ira como abertura ou fechamento à sacralidade da vida. Para Kusch, a vida humana na
América não pode ser esclarecida aludindo à chamada ira do homem, que busca contro-
lar, na lógica dos conquistadores e dos mercadores, a produção econômica em cidades
cada vez mais ordenadas e abertas a um futuro regulamentado. Ele pretende salientar,
de modo especial, a vida inerente aos modos anônimos e populares de vida, ou seja,
aos estilos de vida indígenas e campesinas – especialmente aqueles por ele estudados,
em seu peregrinar pelo Altiplano – que abrem suas vidas à ira de Deus, a saber, de uma
ordem abissal e insondável.78 Nela, não podemos controlar nada, motivo pelo qual de-
vemos aceitar a precariedade do próprio existir humano, onde a vida e a morte, a ordem
e o caos não se anulam: “Tudo o que façamos, é frágil e apresenta a fragilidade que lhe
confere o âmbito de morte que o rodeia, como se a possibilidade do extermínio fora
iminente.”79 Em outras palavras mais explícitas, quando ele faz referência ao sentido da
lei, enuncia: “Uma lei moral é apenas conjuração do caos, mas não a sua destruição.”80
Através dele, neste plano da sacralidade, não haveria como afirmar a possibilidade da
ética a partir do mero estar.81

A questão central do viver é decorrente do ético-cultural: “A cultura é sim-


plesmente permeada pelo viver, entendida como universo simbólico, que serve para
encontrar o amparo. Por isso, é ético e não gnoseológico.”82 Nesse horizonte, o viver dos
povos indígenas da América deve ser entendido como aquele que se joga no estar e no
ser. Dessa forma, o “viver consiste, então, em manter o equilíbrio entre ordem e caos, a
causa da transitoriedade de todas as coisas.”83 No mesmo sentido, Estermann assinala:

A ordem moral, como um sistema de relações recíprocas, corresponde ao


ordenamento cósmico como um sistema de relações complementares e
correspondentes. Portanto, a ética andina não é tanto uma reflexão sobre
a normatividade do comportamento humano, mas a respeito de seu ‘estar’
dentro do todo holístico do cosmos.84

Esse esforço, por valorizar o estar dos modos de vida indígenas, apresenta-se,
de forma paralela, à crítica do cidadão ou imigrante ocidental, cujos modos de vida se

78 KUSCH, 1978, p. 47.


79 KUSCH, 1962, p. 209.
80 KUSCH, 1962, p. 175 e p. 217.
81 KUSCH, 1978, p. 92.
82 KUSCH, 1976, p. 151.
83 KUSCH, 1962, p. 176.
84 ESTERMANN, 1998, p. 226.

Ricardo Salas Astrain – 75


renovam permanentemente, sendo impermeáveis ao estilo de vida profunda do índio.
Para Kusch, “o imprescindível está em saber que o americano, em nenhum momento,
considera que o caos, a morte ou o diabo, podem ser totalmente extirpados. Somente o
imigrante ou o cidadão crêem que podem fazê-lo.”85 A questão intercultural primordial
está em entender estas formas de vida não a partir da oposição de seus pensamentos,
mas como busca de um conviver no “vazio intercultural.”86

A crítica de Kusch, contra o predomínio da visão mercantil ocidental e da moder-


nidade na América, é bastante radical, pois, ao substituir ira de Deus pela ira do homem,
ela simplesmente “escamoteia a possibilidade de uma sabedoria.”87 A esse respeito, ele
afirma enfaticamente: “Nisso consiste a cultura moderna, e também sua civilização:
trata-se da simples tradução da vida à mecânica.”88 Nesse caso, a moral predominante é
a das elites urbanas, para as quais, a questão principal é chegar a “ser alguém que seja
inteligente e que arrebata a cidade como centro”.89

A posição de Kusch frente à modernidade, que aduz objetos, pode ser analisada
a partir da subjetividade inerente a um dizer mítico, que jamais se reduz à linguagem,
podendo ser mostrado como parte dele. A perspectiva de Kusch, sobre a eticidade e sua
crítica à moral moderna do trabalho, permanece em evidência no esforço por descobrir
e evidenciar as possibilidades e limites da linguagem para compreender a questão es-
sencial da cultura americana, de modo especial na distinção entre o ser e o estar, já des-
tacado anteriormente.90 Para poder dar conta do homem americano, deve-se “recuperar
a fala original, anterior a qualquer idioma que sirva de comunicação.”91 Por certo, “não
é em vão que o pensamento popular prefere o gesto à palavra.”92

Nestas suas análises, a maior parte delas fruto de seus trabalhos de campo, é
possível contatar uma preocupação relevante no estudo dos mitos indígenas do Altipla-
no. Kusch vai rastreando as distinções peculiares das línguas indígenas e as narrativas
populares dos campesinos, as quais questionam a ética da cidade e do burguês. A esse
respeito, há uma manifestação salientando o sentido de que todo “mito é amoral, porque

85 KUSCH, 1962, p. 212.


86 KUSCH, 1978, p. 87-88.
87 KUSCH, 1962, p. 120.
88 KUSCH, 1962, p. 127.
89 KUSCH, 1962, p. 123.
90 Cf. PAGANO, 1999, p. 67.
91 KUSCH, 1976, p. 147, ver capítulo “Cultura y Lengua”, p. 106 ss. Nesse ponto, ele segue, em boa
parte, a tese de Ricoeur, de que o essencial da linguagem vai além do que se encerra nos signos: “O dizer
não aponta, então, para a palavra, mas se dá antes, como deseja Heidegger, na articulação do significado.”
KUSCH, 1978, p. 20.
92 KUSCH, 1978, p. 79.

76 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


se fosse pelo mito, ele não impediria o delito da referência. O mito libera o arraigo da
palavra, no sentido de que a palavra não alcança suas raízes como tal, mas o contrário,
porque perde seu significado e é puro significante.”93

A partir dessa linguagem narrativa, podemos questionar a ética regulamentada


que rege a vida cidadã. Ela não é outra senão a moral do trabalho, que permite acumular
objetos. Kusch a categoriza como a moral da exploração cidadã, individual e ordenada,
no “pátio dos objetos”. Na verdade, o “espaço dos objetos serve precisamente para con-
solidar a vida como coisa, para convertê-la em uma máquina de prazer.”94 Nele, predomi-
nam as relações cidadãs em detrimento das relações comunitárias. A eticidade cultural,
descobertas pelo autor, através do exame cuidadoso do sentido profundo dos mitos, não
se vincula com a ética das normas cidadãs universais. Por isso, a vida prática e cotidiana
das comunidades humanas não estabelece ligações com os valores absolutos, mas com
os relativos. Por essa razão, não há “valores absolutos, mas valores relativos, os quais
dependem do organismo animal, dentro do qual se ajustam. A comunidade responde por
uma justiça vital, que restabelece a vitalidade, mas nunca os direitos de cada homem.”95

Essa tendência, presente em nossos países, explica a relevância do liberalismo


político:

O tema era de que nossa classe média seguisse a onda da dinâmica social
ocidental, baseada no indivíduo como fundamento da sociedade, abando-
nando a doutrina da economia da indigência […], na vigorosa convicção de
que a espécie humana alcançaria, com o liberalismo, sua salvação final.96

Essa é a chave que lhe permite mostrar as diferenças entre as classes médias
peruanas e bolivianas e os estilos de vida indígenas. Sem dúvidas, “um dos motivos
mais profundos, que afastam a classe média boliviana e peruana da indígena, está no
fato de que aquela controla os pontos contrários a este. Ela contrapõe a comunidade, o
individualismo, o domicílio, a solidão e a irracionalidade à racionalidade.”97 Trata-se da
alienação de sua classe média intelectual e dos critérios por ela utilizados, no sentido
de dar proeminência à questão do mero agir. Para Kusch, “o compromisso é uma saída
de o simples encontrar-se no âmbito dos objetos que se possui e como o possuir ocorre
em um âmbito visual, contradizendo com o que existe de profundo nessa consciência de
estar, com esse afã de plenitude, que lhe é implícito.”98

93 KUSCH, 1978, p. 47.


94 KUSCH, 1962, p. 208.
95 KUSCH, 1962, p. 197.
96 KUSCH, 1962, p. 163.
97 KUSCH, 1977, p. 176.
98 KUSCH, 1977, p. 255.

Ricardo Salas Astrain – 77


Esse modo de pensar intercultural de Kusch será retomado mais adiante. A esta
altura, nos limitamos, em primeiro lugar, a esclarecer que sua proposta permite refletir
sobre a problemática intercultural da eticidade cultural a partir dos modos de vidas
tradicionais que existiram e existem nas sociedades latino-americanas. Além disso, a
intenção é mostrar que a questão da ética intercultural não pode ser proposta sem con-
siderar esta eticidade constituinte de nossos contextos culturais. Por fim, desejamos
indicar que o saber-viver não pode ser desvinculado do exercício de compreensão das
formas de interação que marcaram estes pluriformes modos de ser americanos. Isso nos
reporta à temática a qual iremos trabalhar mais adiante, isto é, à questão do diálogo no
horizonte da categoria de um vazio intercultural.

2. Ethos, cultura e modernização em P. Morandé


As contribuições realizadas por Kusch ao saber e ao saber viver popular, de-
marcou um debate que não termina. Além das considerações críticas, realizadas por
aqueles que compartilham sua forma padrão de análise cultural, como a perspectiva de
seus críticos, que deveras questionaram algumas eventuais conseqüências filosóficas do
pensar intercultural do viver.99

Diante disso, gostaríamos de mostrar algumas transformações teóricas deste


tipo de reflexão da cultura e da sacralidade presente no mundo popular, apelidado de
‘culturalista’ por parte de seus críticos. O sociólogo chileno P. Morandé, em sua reco-
nhecida obra, elaborou uma teoria do sacrifício dos valores desde a perspectiva das
ciências sociais. Trata-se de uma tipificação científica de uma hermenêutica da cultura,
considerando que ela pode ser justificada a partir das ciências sociais. Ela seria a única
forma de conceituar a crítica latino-americana da racionalidade instrumental, predo-
minante na modernidade das sociedades latino-americanas, de forma particular, sob a
supremacia do modelo do mercado. A questão cultural ganha significado no momento
de entender os vínculos entre universalidade e particularidade e, de modo especial, para
delinear o problema da identidade do ethos. Para o autor, “o conceito de cultura repre-
senta a única passagem para passar do universalismo ao particularismo, não apenas da
situação ‘latino-americana’, mas e o que é ainda mais importante, da ‘identidade’ latino-
americana.”100

99 A síntese dessas críticas está agrupada sob o título: “Los buscadores del ‘color local’ y
nuestro etnocentrismo”, em ROIG, 1993, p. 146-149.
100 Morandé, 1984, p. 11. Uma crítica deste conceito de identidade cultural pode ser encon-
trada em LARRAÍN, 1996, de modo especial os capítulos V e VI.

78 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Para Morandé, existe um estreito vínculo nas relações entre cultura e moderni-
zação, pois não é possível resolver o paradigma da modernidade e nem da moderniza-
ção, sem aproximar-se da análise hermenêutica do ethos latino-americano.

Segundo Morandé, é preciso considerar o lugar dos valores na vida social, de


forma especifica a partir dos valores constituídos na grande primeira síntese cultural,
operada graças ao catolicismo do século XVII. Segundo o autor, o ethos latino-ame-
ricano pode ser caracterizado pela presença permanente dos valores do cristianismo,
que foram protegidos pelas massas populares, que se negaram a modernizar-se. Nesse
sentido, Morandé analisa a identidade cultural a partir da experiência histórica fundante
(o barroco) e da base religiosa majoritária (a católica). Ele não define o ethos por meio
das relações de dominação cultural, mas através da idéia de uma síntese cultural.

Para o sociólogo, não é possível estabelecer um vínculo satisfatório entre as


formas produtivas e os valores sem assumir as tradições culturais presentes nos po-
vos latino-americanos. Por isso, seus problemas não são resolvíveis nem no terreno da
economia e nem da política, porque a identidade é representada no terreno da síntese
cultural, tal como ela se expressa na religiosidade popular, de base oral e cúltica e não,
como no cristianismo, que valoriza a palavra. Foi principalmente o cristianismo refor-
mado o primeiro a se secularizar-se. Nesse sentido, existe uma crítica mancomunada
com Kusch contra o cristianismo dos reformadores, que insistem em ‘ser alguém’, e o
da ilustração, por insistir na compreensão ética do cristianismo.101

Essa perspectiva irrompe diversas interrogações, tanto em relação à subordina-


ção da moralidade à funcionalidade econômica, como ocorreu durante o último período
das propostas desenvolvimentistas, e, recentemente, com o neoliberalismo. A pergunta
de Mondaré é a seguinte: “a modernização deve sacrificar a tradição cultural nacional,
regional ou local, ou a preservação da cultura deve, por sua vez, sacrificar o indubitável
maior bem-estar que a modernização tornou possível?” Ele mesmo responde a interro-
gação dizendo: “Certamente, ninguém elegeria racionalmente uma das duas alternativas
mencionadas na pergunta, sacrificando a outra. A questão que está por detrás da contra-
posição é como harmonizar ambos os aspectos.”102 Essa idéia é sugestiva enquanto a éti-
ca não estabelece disjunções no interior de uma comunidade econômica e de vida, mas
evidencia sua articulação, em outras palavras, a subordinação de um aspecto ao outro.

A tentativa de Morandé seria “tratar de fazer comensurável a modernidade [...]


e a identidade cultural. Dessa maneira, o perigo que a modernidade representa para a

101 Cf. KUSCH, 1962, p. 124.


102 MORANDÉ, 1996, p. 97.

Ricardo Salas Astrain – 79


identidade cultural é similar ao fato de seguir padrões de uma modernidade que não
seja a nossa. Caso contrário, é possível pensar no desenvolvimento de nossos países.”103
A questão central dessa hermenêutica das tradições consiste em demonstrar como este
ethos barroco, católico e mestiço se fundiu em nossos povos, estabelecendo continuida-
des e elementos comuns relacionados ao nosso particular sincretismo cultural. De modo
particular, este ethos se encontraria na pertinácia da religiosidade popular latino-ameri-
cana. Este ethos que, em geral, foi desconhecido pelas elites progressistas, que tentaram
mudá-lo, forçando seu núcleo sacral identitário. Neste caso nos deparamos – ao recordar
o que já foi anteriormente indicado por Kusch – diante de uma determinada eticidade,
que reabilita a tradição cultural. Ela mostraria as permanentes resistências dos povos
aos processos de homogeneização racionalistas construídos pelas elites, na medida em
que não respondem a esta síntese cultural, a qual seria o ethos específico da América
Latina. Em vista disso, desponta uma crítica radical à secularização protestante, à Ilus-
tração e aos projetos históricos iluministas, positivistas, liberais e modernizadores.

Essa discussão sobre a modernização e a identidade cultural em países especi-


ficamente marcados pela modernidade, converte-se em relevante para este exercício da
ética intercultural. De fato, através da tese de Morandé, que denominaria de compre-
ensivista, é possível articular, a partir das ciências sociais, uma crítica epistemológica
ao racionalismo e ao cientificismo, predominantes nos estudos culturais da identidade
e cuja pretensão era justificar, a partir dessa racionalidade, a mudança social. A propo-
sição apresenta também outro ângulo, referendando uma série de trabalhos realizados
em outros países, a respeito da valorização da sacralidade para entender a vida humana.
A tese sociológica em torno da religiosidade popular pode aproximar-se às teorias fi-
losóficas que reconstruíram um ethos cultural com base no pensamento e nas tradições
indígenas. Nesse aspecto, a hermenêutica da tradição barroca pode vincular-se teorica-
mente não somente com Kusch, mas também com os autores que definiram a identidade
cultural americana através da síntese cultural do barroco e da mestiçagem.

A partir do que já foi salientado, é preciso apontar, todavia, algumas diferenças


no terreno do vínculo entre a eticidade e a sacralidade, as quais tornariam problemático
o diálogo entre Kusch e Morandé em relação à eticidade cultural e à moralidade no
marco de uma síntese do barroco. Nesse sentido, é imprescindível reconhecer que, entre
a perspectiva intercultural de Kusch e a posição valorativa que sintetiza o ethos cultural
barroco, existem significativas distâncias. Em particular, a lonjura concerne à relevância
moral do Deus cristão que, para Kusch, é claramente um deus do Conquistador,104 e de
uma interpretação do fundador do cristianismo, entendido como criador de uma ética

103 ANTEZANA, 1997, p. 42.


104 KUSCH, 1962, p. 108.

80 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


cidadã, da mesma maneira que Buda e Confúcio.105 Assim serão entendidos os reforma-
dores, cuja moral dos protestantes foi, antes de qualquer outra coisa, “um estatuto para
o bom cidadão.”106 Nesse plano, Kusch insistiria em que, entre os cristãos, a ênfase da
palavra já segue na direção de uma ética secularizada.

No caso do pensamento de Morandé, é evidente sua preocupação em adentrar-


-se, desde os seus estudos iniciais, em uma sociologia da religião, voltada a distinguir,
na particular ‘síntese cultural’ latino-americana, as duas forças que intervieram: una
religião da palavra, o cristianismo, e uma religião de tipo cultural, presente nas religi-
ões indígenas e africanas. No marco dessa visão histórica do encontro entre religiões,
evidencia-se a distinção entre oralidade e escritura. À diferença das religiões cúlticas,
nas quais “o ritual é a verificação da ordem mitológica do mundo natural e social […],
o mito representa a mesma ordem do universo.”107 Ao contrário, o cristianismo é uma
religião da palavra que “constituindo o papel do ‘verbo divino’ revelado pela razão hu-
mana, transforma o conteúdo da revelação em valores sociais e a prática religiosa em
uma ética social e individual.”108

A tese de Morandé evidencia uma enorme ênfase ao momento cúltico, sem


destacar suficientemente a articulação dos registros discursivos presentes nas religiões
indígenas. Para ele,

nem todas as religiões seguiram o caminho de construir sistemas com-


preensivos de reflexão, capazes de traduzir ao nível lingüístico – tanto no
nível do teólogo como no âmbito da linguagem cotidiana do crente – as
principais características da linguagem religiosa e os modos de nela parti-
cipar.109

Em outros textos mais recentes, o autor reflete sempre a análise da linguagem a


partir de uma compreensão ontológica da cultura humana. Assim,

a continuidade entre a compreensão pré-categorial e analógica do símbolo


e a compreensão categorial e reflexiva da linguagem é uma dimensão fun-
damental de qualquer cultura […] Ela está na base também da formação

105 KUSCH, 1962, p. 109.


106 KUSCH, 1962, p. 124 e também em KUSCH, 1978, p. 142.
107 MORANDÉ, 1980, p. 19.
108 MORANDÉ, 1980, p. 22 ss. Nele, é possível compreender a forma de entender a consci-
ência: “a culpa nasce justamente pela midiatização da palavra, pois ela se fundamenta em uma
ética da introversão do sacrifício e não no próprio sacrifício”, 1980, p. 42.
109 Morandé, 1980, p. 14.

Ricardo Salas Astrain – 81


das pautas de valor e das virtudes morais, dando origem a aquele ethos
compartilhado, que torna a convivência humana possível.110

O epítome disso nos leva a confrontar tais teses com as de Kusch. A perspec-
tiva intercultural indagaria o âmbito moral aprisionado ao terreno de uma fé expressa
como moral, sobretudo definida através da lógica da instituição religiosa, aspecto que,
na modernidade, é reforçado com a lógica da cidade e do esforço individual. Daí, sua
crítica radical à moral cidadã e burguesa do protestantismo, estribada sobre os objetos.
Contudo, qualquer “moral reprime, porque separa a vida boa da má.”111 Mesmo assim,
o âmbito moral é útil à moral burguesa dos mercadores e do mecanicismo. Conforme
Kusch, “moral e máquina – os puritanos associavam moral e trabalho – eram, desta
maneira, correlativas.”112 Nesse sentido, ele continua: “os objetos se comportam bem,
porque nós perdemos o sentido da boa conduta da cidade […] Por isso, na sociedade ci-
vil ou cidadã – porque somente se dá em uma cidade – vive-se a liberdade simplesmente
como direito de votar ou de comercializar, mas nunca como salvação interna.”113

No plano do debate teórico, temos em conta que as conseqüências da teoria da


modernização de Morandé apresentam implicações filosóficas que não passam desper-
cebidas, possibilitando esclarecer a relação entre a racionalidade comunicativa moderna
e o ethos cultural latino-americano.114 Michelini, por exemplo, julga que a racionalidade
moderna não se reduz a um determinado sistema, porque “no interior da racionalidade
moderna, é possível efetuar uma diferenciação da própria razão e distinguir diferen-
tes tipos de racionalidade. Além disso, a racionalidade moderna e seus princípios ide-
ais envolvem também um arsenal de crítica social, de critérios e de princípios éticos
irrenunciáveis.”115 Essa crítica da racionalidade moderna requer uma análise do que se
denomina logos, aspecto a ser considerado mais adiante, no momento em que se anali-
sará os diferentes logos presentes no diálogo intercultural.

Antes de terminar esse ponto, é preciso destacar que Morandé desenvolve sua
proposta sociológica também no terreno das implicações filosóficas do debate ético con-
temporâneo. Por exemplo, ele coloca em evidência a “dramaticidade do existir contin-

110 MORANDÉ, 1998, p. 11.


111 KUSCH, 1962, p. 125 e p. 171.
112 KUSCH, 1962, p. 125-126.
113 KUSCH, 1962, p. 127 e também KUSCH, 1978, p. 51.
114 Morandé indica que não se pode reduzir toda a linguagem ou a discursividade. Assim, “as
ontologias da linguagem ou da comunicação não puderam transcender seu caráter abstrato e
especulativo, posto que devem partir da base de que existem pessoas que se comunicam.” MO-
RANDÉ, 1998, p. 49.
115 MICHELINI, 2003, p. 192.

82 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


gente e limitado”; a construção “das pautas de valor e das virtudes morais em um ethos
compartilhado;”116 a relação entre comunidade de pertença e a liberdade individual;117 a
origem ontogenética do ser humano e seu vínculo com a ontogênese cultural.118 Dessa
maneira, a crítica à racionalidade funcional e a questão sociológica dos valores, susci-
tada pela teoria da modernização, é a abertura para introduzir-se na compreensão dos
debates no interior de uma sociedade policêntrica. Nesse sentido, seus trabalhos pos-
teriores representam uma contribuição a uma hermenêutica do ethos, aceitando que a
proposta deve admitir observações críticas a partir de uma racionalidade discursiva. Na
verdade, a definição do ethos como morada remete a uma eticidade baseada em uma de-
terminada etapa histórico-cultural, a qual não pode ser justificada como uma expressão
de uma autêntica universalidade.119

A bem da verdade, devemos reconhecer que existem diferenças entre a perspec-


tiva valorativa que encerra o ethos cultural barroco – entendido ao modo de Morandé
– e o ethos do estar de uma América indígena. São diferenças metodológicas e ontoló-
gicas, que não podem ser tratadas de soslaio. Todavia, as duas perspectivas evidenciam
a possibilidade de assumir a relação entre o particular e o universal, a qual passa pelo
reconhecimento do contexto cultural das comunidades de vida. Em outras palavras, o
reconhecimento do que somos passa pela recuperação dos valores da cultura indígena
e popular, os quais foram depreciados pelas elites modernizadoras. A eticidade do povo
latino-americano não exige, de modo algum, a mediação crítica de uma racionalidade
científica forasteira, mas simplesmente a assunção do que é abissalmente popular e
resiste ao racional.

Sem sombra de dúvidas, as idéias que valorizam as mitologias indígenas e a


religiosidade popular foram criticadas pelos núcleos intelectuais e pelas elites políticas
latino-americanas. No fundo, há uma crítica direta ao modo de como as ciências sociais
e os modelos políticos e econômicos foram gestados. Muitas vezes, eles deram as cos-
tas às necessidades vitais e aos imaginários culturais dos povos latino-americanos e às
eticidades de suas comunidades de vida. Por isso, não é de estranhar que as observações
críticas tenham florescido nos meios intelectuais do desenvolvimentismo progressis-
ta. Elas podem ser encontradas nas propostas de ambos os autores. Trata-se da defesa
de uma eticidade substantiva, cujas contribuições relevantes na análise contextual das
narrativas míticas e dinâmicas de ritos, que ajustam afetivamente parte dos registros
discursivos dos povos latino-americanos, não foram reconhecidas.

116 MORANDÉ, 1998, p. 11.


117 MORANDÉ, 1998, p. 23.
118 MORANDÉ, 1998, p. 42 ss.
119 MICHELINI, 2003, p. 193.

Ricardo Salas Astrain – 83


Da perspectiva dessa ética intercultural, parece que ambos os autores contri-
buíram para evidenciar a relevância dos contextos culturais, caracterizados por uma
simbólica sacral. Eles contribuíram fecundamente no sentido de mostrar que o ethos
das comunidades de vida não se reduz às propostas de imitação de outros estilos de
vida. Para lembrar Rorty, poder-se-ia sinalizar que existe, nesses autores, um forte ca-
ráter contextual da eticidade humana, além da tentativa de esclarecer um ponto de vista
universalista. Nessa direção, há um outro filósofo que desenvolveu uma teoria crítica
dos valores e que permitiu aprofundar, a partir de um modelo das mediações, um tipo de
universalidade que assume os traços do ethos.

3. Scannone: esboçando uma teoria dos valores


e normas interpostos na cultura latino-americana
O filósofo argentino J. C. Scannone propõe, de certa forma, uma reflexão pa-
recida aos dois autores anteriormente descritos. A respeito da obra de Kusch, há uma
explícita apropriação das categorias fundamentais, como o estar e a sabedoria popular.
Scannone as vincula a seu pensamento, juntamente com outras categorias elaboradas
Carlos Cullen, em torno de um nós comunitário, de um pensar simbólico e da valoriza-
ção de uma racionalidade sapiencial.120 Nesse sentido, a análise das teses do novo ponto
de partida da filosofia latino-americana de Scannone – aqui trabalhadas sob a forma
específica da questão da ética intercultural – são muito mais complexas, pois se trata de
um pensar especulativo, que tenta estabelecer uma mediação entre a universalidade do
pensar filosófico e a peculiaridade histórico-cultural da América Latina.

Em um de seus principais textos, Scannone introduz-nos à temática frisando


que, para compreender estas aparentes contradições, é preciso acorrer à idéia central
de mediação. Assim, “para compreendê-la, será chave a idéia (e a experiência) de me-
diação, entendida não como intermediária, nem como dialética, mas a partir do que
chamaremos ‘analética’, na qual interagem a mediação simbólica, a analógica e a ética-
-histórica.”121 Não cabe entender a mediação como uma categoria que repele os conflitos
reais da experiência histórica, pois faz alusão à possibilidade que irrompe um pensar
da mediação simbólica capaz de articular as diferentes dimensões da realidade social,
cultural, ética e histórica.122 Em tal caso, a mediação simbólica se consolidada a par-
tir das categorias de Levinas, que faz referência ao questionamento ético pelo outro,

120 Scannone faz referências explícitas ao texto “Fenomenologia da crise moral”. Sabedoria da
experiência dos povos, de Carlos Cullen, Cf. SCANNONE, 1984, p. 61 ss.
121 Cf. SCANONNE, 1990, p. 203.
122 SCANNONE, 1990, p. 236.

84 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


integrando-o, todavia, à experiência latino-americana do pobre, ressaltado pela filosofia
da libertação.123

Nesse sentido, a categoria de mediação destaca nitidamente uma característica


do estilo de um pensador que, além de manter-se no terreno da mera explicação abs-
trata das categorias filosóficas, propõe diversas mediações intelectuais que procuram
dar conta do pensado no arraigamento da historicidade latino-americana. Desse modo,
Scannone indagará sobre a ‘eticidade’, ‘sabedoria popular’ e ‘ethos cultural’, a fim de
dar conta de um pensar ético arraigado e, conseqüentemente, especulativo. Para isso,
o que já foi estudado dos dois autores anteriores nos ajudará, os quais estão, de certo
modo, presentes em muitos de seus textos.

Em seu artigo ilustrativo para a problemática ética – A mediação histórica dos


valores, divulgado em meio de uma década de governos autoritários – ele mostra que,
os principais problemas éticos dos diferentes processos de modernização hegemôni-
cos ocorridos nas sociedades latino-americanas, provêm de uma vontade de poder. Ela
impõe lógicas a partir um ethos cultural da modernidade, sem responder ao sentido
comunitário-sapiencial presente na história destes povos. Por isso, realizar uma media-
ção histórica dos valores suporia não apenas mostrar os valores implícitos nos proje-
tos de modernidade, mas elaborar uma crítica que demonstre seu caráter inautêntico e
ideológico. Tais projetos sociais não podem “alcançar com plenitude sociedades mais
justas, mais humanas e melhor inspiradas no sentido cristão da vida.”124 Essas idéias são
adequadas para dar conta de uma filosofia encarnada, que procura responder às situa-
ções políticas e econômicas no horizonte de uma compreensão filosófica especulativa,
levando-nos à análise do ethos cultural, a eticidade e a sabedoria popular.

Em termos mais filosóficos, a crítica que Scannone busca empreender, adjetiva-


da de ontológica, dos projetos histórico-culturais que, na América Latina, tentaram se
impor, não é somente a sistematização dos considerados inautênticos, para, logo após,
propor uma busca de outras mudanças sociais, econômicas e políticas, baseadas em um
núcleo ético-cultural. Por isso, a mediação dos valores não pode ser entendida somente
como uma questão sócio-econômica, mas que faz alusão a um húmus histórico-cultural,
tal como ele se manifesta nos povos latino-americanos desde seus princípios. Isso su-
põe, então, determinar um lugar a partir do qual é possível elaborar uma crítica, nunca
aprisionada ao racionalismo iluminista, muito menos ao cientificismo.

123 SCANNONE, 1990, p. 89.


124 SCANONNE, 1990, p. 145.

Ricardo Salas Astrain – 85


Sem dúvidas, trata-se de uma crítica que possa brotar a partir do que ele desig-
na com a expressão ethos cultural. Scannone a define do seguinte modo: “Por ‘ethos
cultural’, entendo o modo particular de viver e habitar eticamente o mundo, possuidora
de uma comunidade histórica enquanto tal, na sua história (um povo, uma família de
povos, etc.).”125 Para ele, essa noção de ethos articula não somente as estruturações
econômicas, sociais e políticas da coexistência, pois se refere também a um núcleo
ético-sapiencial dos princípios vividos e dos valores que os orientam. Através disso, é
possível relacioná-lo ao “núcleo da cultura de um povo como sua sabedoria de vida.”126
Esse núcleo é eminentemente ético, pois, parafraseando Ricoeur, “[…] ao falar do nú-
cleo da cultura de um povo, se pode falar do núcleo ético-mítico que, enquanto for ético,
implica em uma relação horizontal comunitária e intercomunitária; e no sentido vertical,
com o Absoluto, que a fundamenta como relação ética.”127

A tese fundamental de Scannone salienta que a mediação histórica dos valo-


res é, antes de tudo, ética, porque o ethos cultural se constitui como escolha cultural
fundamental. Para tanto, ele introduz uma distinção relevante para o tema da eticidade
na ética intercultural. Trata-se do vínculo entre ethos e o caráter pré-ético do estar: “O
‘estar’ é ambíguo (zweideutig), porque é pré-ético (no sentido da ética com letra maiús-
cula) […] o ‘estar’ é ambíguo antes que a existência ética o questione e o coloque em
discussão. Todavia, isso não significa que deve conduzir, necessariamente, à violência.
Por essa razão, a instância ética é necessária para mediar o ‘estar’.”128

Nesse caso, necessário reconhecer que nos encontramos frente a uma categoria
central, que exige ser matizada e, assim, tornando possível discernir os projetos históri-
cos e questionar, por exemplo, o ethos cultural da modernidade. Em reiteradas ocasiões,
o texto que sintetiza o Colóquio de Paris – onde se reuniu o grupo argentino com al-
guns filósofos e teólogos europeus – desenvolve a questão do ethos. Scannone enfatiza
a pertinência de distinguir entre éthos e ethos.129 Assim, para entender a eticidade da
sabedoria popular, é essencial entender o ethos encarnado no êthos. Dada a relevância
que a questão terminológica assume para a proposta das noções básicas de uma ética
intercultural, transcrevemos uma longa citação, na qual Scannone delimita o uso de suas
equivalências entre as expressões:

Em relação à eticidade (ethos) da sabedoria popular – referenciada no nú-


cleo de valores de uma cultura (que, por isso, Ricoeur denomina ‘ético’) –

125 SCANNONE, 1990, p. 148.


126 SCANNONE, 1990, p. 74.
127 SCANNONE, 1990, p. 27.
128 SCANNONE, 1984, pp. 80-81.
129 SCANNONE, 1984, p. 90.

86 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


encontra-se o que se denominou êthos cultural de um povo (palavra escrita
não com e, mas com ê circunflexo). Trata-se de seu modo de habitar no
mundo: um modo humano – portanto, ético – de habitar o mundo em sua
totalidade, não somente o entorno (em alemão, Welt, não mero Umwelt).
Em outras palavras, ele faz referência ao habitar humanamente à totalidade
da vida, habitação que, embora não se reduza à eticidade, necessariamen-
te a implica. Nesse sentido, é possível tomar a palavra ‘eticidade’ como
fazendo referência ao ethos encarnado no êthos: o ético não se dá senão
encarnado no histórico cultural, ainda que o transcenda.130

O uso conferido por Scannone em seus textos, deixa claro que ele não pode redu-
zir a dimensão ética ao morar humanamente no mundo. Nesse sentido, Levinas contribuiu
no sentido de mostrar, ao pensamento latino-americano, que o ético não faz referência
propriamente ao arraigamento (dimensão tectônica ou telúrica), mas a uma interpelação
radical frente ao outro, circunstância da qual surgiria o propriamente ético (dimensão
escatológica).131 Nesse aspecto, Scannone está precisamente orientando a construir as me-
diações especulativas indispensáveis, que lhe permitiriam articular ‘o propriamente ético’.
Em outras palavras, ele toma em consideração a proposta de Levinas, através da interpe-
lação e a intermediação do outro, ou seja, do pobre, com as dimensões histórico-éticas de
um ‘nós estamos’, ligado à sabedoria popular, trazida á tona por Kusch.

Nesse ponto, a questão se transforma, a partir da nossa perspectiva, em compre-


ender o vínculo teórico e prático entre a sabedoria popular e a dimensão propriamente
ética em algo racional. Nesse aspecto, acredito que Scannone é bastante preciso:

A sabedoria popular pode ser o começo para o discernimento deste plus


ético de sentido, embora ela não possa julgar o especificamente científico
ou técnico enquanto tal. Esse discernimento, apesar de crítico, não é geral-
mente reflexivo, mas pode tornar-se reflexividade através de uma reflexão
filosófica (ético-antropológica) inspirada nesta sapiencialidade.132

130 SCANNONE, 1990, p. 214.


131 Os usos terminológicos, próprios do pensar especulativo de Scannone, são interessantes
para a construção das noções básicas de uma ética intercultural, pois nos introduzem em uma das
dificuldades terminológicas – que também são teóricas – deste tipo de proposição baseadas na
categoria do ‘estar’ de Kusch. Para Scannone a noção grega de êthos significa morada habitual,
a partir da qual surge a atual noção de ética e de eticidade – que segue a noção hegeliana, em
alemão Sittlichkeit – utilizada em vários trechos deste livro. Também desta mesma noção grega,
surge a noção latino-americana em discussões sobre ethos cultural. O ponto é definir uma termi-
nologia apropriada que destaque o vínculo preciso que existe entre ‘a morada habitual’ e o que
se pode denominar ‘o propriamente ético’.
132 SCANNONE, 1990, p. 101-102.

Ricardo Salas Astrain – 87


Em outras palavras, para Scannone, a sabedoria popular é sempre a expressão
de um arraigo, manifestando culturalmente um plus de sentido que a transcende. Nas
suas palavras, ela sempre é um ethos encarnado em êthos. Ela é pré-reflexiva e pode ser
considerada como parte relevante da sustentação e arraigo cultural, exigindo um trata-
mento especulativo ético por parte dos filósofos. Daí que, para Scannone, “a sabedoria
popular seja um universal situado não somente histórica e geoculturalmente, mas tam-
bém eticamente.”133 A eticidade (ethos), que propõe o ‘estar’, prova não ser de ordem
da ética, porque se arraiga na terra (o tectônico). No entanto, para ser ético-histórico ela
carece de um “nós estamos”. Para Scannone, não há confusão, porque “a instância ética
vem de fora, da exteriorité. O pano-de-fundo pré-ético é questionado exatamente assim
questionado.”134 Amém do estar, implica aceitar, primeiramente, a mediação da comu-
nidade e, em última instância, a abertura à alteridade (o escatológico).

Neste sentido, o especificamente ético reside no fato de que a “sabedoria dos


povos é mediação, originada da relação entre religião e linguagem.”135 No esforço de
cuidadosamente examinar o ethos, será necessário estabelecer uma distinção semiótica
em três momentos: semântico, pragmático e sintático. Para Scannone, “a inter-relação
histórica dessas dimensões (semânticas, pragmática e sintática) configura o ethos cultu-
ral, apesar de que o espaço de mediação ético-histórica seja inerente à pragmática.”136

Em outros trabalhos em torno do simbolismo, Scannone destacará a diferencia-


ção entre tais dimensões. Segundo ele, a semântica, a pragmática e sintática correspon-
dem, respectivamente, ao conteúdo, ao sujeito e à forma de tal mediação. A primeira
se refere a uma mediação semântica. A segunda é relevante, pois se ocupa da dimensão
ética e prática da linguagem, isto é, “trata-se da dimensão específica do sujeito da cria-
ção, uso ou apropriação do símbolo: um nós ou um eu no seio de um nós, especialmente
um nós-povo (participante de uma mesma cultura) ou um nós-igreja (na comunidade de
uma mesma religião).”137 A mediação concatenada à pragmática, corresponde à ‘uni-
dade na distinção’ e será entendida como “um movimento prático de apelo ético e de
transcendência ética, que pressupõe a distinção na unidade ou, então, a mera negação
como opção.”138 Nesse terreno, torna-se realidade o saber sapiencial. Na terceira, en-
contramos a mesma lógica como as da forma estruturada como mediação.

133 SCANNONE, 1990, p. 215.


134 SCANNONE, 1984, p. 82.
135 SCANNONE, 1990, p. 213.
136 SCANNONE, 1990, p. 149.
137 SCANNONE, 1990, p. 237.
138 SCANNONE, 1990, p. 238.

88 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Por isso, para Scannone, é conveniente distinguir entre a pragmática do ilu-
minismo social de esquerda, da pragmática autenticamente mediadora. Essa última se
refere a uma nova ordem, na qual os valores e a ordem social constituem uma síntese
nova. Para ele, “ela transcende os momentos anteriores em uma nova síntese inédita,
que implica tanto na nova semântica como na nova sintaxe estruturante do mundo
dos valores e de sua encarnação na materialidade social. Cada ‘síntese vital’, assim
alcançada, é um novo passo qualitativo na vida histórica do ethos cultural do nós ético-
histórico.”139

Nesse sentido, é relevante mostrar que a análise simbólica da cultura será cla-
ramente influenciada pela hermenêutica de Ricoeur. Desse modo, se trata de estabele-
cer, fundamentalmente, uma análise dos símbolos a partir de um jogo semântico entre
duas significações. A partir disso, é possível buscar compreender a sabedoria popular
expressada em um nós, manifestada na extraordinária narrativa dos sujeitos populares
como, por exemplo, no caso do Martín Fierro. Nisso, destaca-se a precariedade ética e
histórica, ou seja, “no Martín Fierro, por exemplo, a ênfase está assentada na injustiça.
Todo o poema é um canto pela justiça.”140

Para Scannone, essa situacionalidade ética faz referência ao fato de que nunca é
possível prescindir do saber comunitário e que, por isso, não é possível entendê-la como
um saber absoluto.

O ‘saber’ dessa sabedoria não é saber absoluto, nem a práxis aberta por ela
é práxis total, pois se trata de um universal. Todavia, é eticamente situado
na comunidade do nós. Contudo, trata-se de um universal e incondicio-
nado. Ele também se exime de qualquer relativismo, historicismo ou do
simples perspectivismo hermenêutico.141

Nesse aspecto, parece que nem todos os filósofos concordam com tais reco-
mendações especulativas. São evidentes os questionamentos em torno do uso da razão
e do logos142 em torno aos nexos entre o logos científico e o logos sapiencial. A dúvida
refere-se ao fato de eles serem suficientes para especificar, adequadamente, a validez
dos diferentes discursos e a necessidade de assumir um aspecto normativo, tal qual foi
elaborado pela ética discursiva.143 Nesse mesmo sentido, outras críticas coincidem em

139 SCANNONE, 1990, p. 171.


140 SCANNONE, 1984, p. 154.
141 SCANNONE, 1990, p. 217.
142 SCANNONE, 1984, p. 48 e p. 88.
143 MICHELINI, 2002, p. 212-213.

Ricardo Salas Astrain – 89


relação às conseqüências de um discurso político populista em torno de tais moderniza-
ções, cuja base é a nova re-interpretação de civilização e barbárie.144

É evidente que Scannone reconhece a importância da proposta de Apel, por-


que implanta uma mediação entre Aristóteles e Kant. Ela “possibilita mediar histori-
camente a racionalidade ética e, mediante outras racionalidades, não obscurecer a ir-
redutibilidade ou a transcendência da primeira.”145 No entanto, ela não pode gerenciar
o logos que não respeite a diferença. Para Scannone, esse

o logos funda e especifica a racionalidade ética, um logos incondicional-


mente normativo da comunicação e da comunidade de comunicação, o
qual, por conseguinte, implica, ao mesmo tempo, universalidade e respeito
à irredutível alteridade de qualquer outro e de cada outro, isto é, universa-
lidade e diferença.146

A partir dessas considerações, embora abstratas e do sentido de tais críticas, é


possível entender o porquê é preciso haver um discernimento ético da situação históri-
ca. Na verdade, as escolhas ético-comunitárias não são nem unívocas nem homogêne-
as nos diversos setores sociais. Por isso, Scannone entende a história latino-americana
como a história do antagonismo, que contrasta o projeto de uma comunidade ao pro-
jeto de outra comunidade. Na América Latina, os principais critérios de uma crítica
ontológica dos projetos sociais e políticos seriam, segundo Scannone, os seguintes:
eles devem estar enraizados em uma fonte histórico-cultural própria. Assim, a media-
ção dos valores pressupostos devem ser essencialmente dialógicas (diálogo entre os
povos e as culturas). As novas sínteses emergentes devem permitir os conflitos no seu
seio, etc.

A preocupação de Scannone em dirimir, entre diversos projetos alternativos,


possibilita-lhe elaborar uma perspectiva especulativa da comunidade que, no nosso
parecer, realça diversos níveis de inclusão e exclusão. Essa é perspectiva é, portanto,
muito mais complexa que a reflexão elaborada por Kusch em torno do povo, que não
alcançou mediatizar completamente suas dimensões políticas e éticas. Por isso, indicar
o duplo sentido comunitário de um nós ético-histórico, torna possível abarcar a dupla
distinção do nós, possibilitando ver as diversas inter-relações entre os diferentes setores
sociais dominados e estabelecer, assim, as possibilidades do abrir-se a uma exteriori-
dade. Ele distingue entre um nós inclusivo e outro exclusivo, que lhe permitem tornar

144 ROIG, 1993, p. 147.


145 SCANNONE, 1996, p. 136.
146 SCANNONE, 1990, p. 139.

90 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


clara a parte importante das relações de dominação intra e extra sistema de dominação
e, ainda, delimitar as regras que lhes permitem interagir. Para Scannone,

O nós inclusivo, orientado ao interior, e exclusivo dos outros e de outros


nós, voltado para fora, o qual institucionalizou sua relação com eles se-
gundo regras injustas de exclusão é, portanto, eticamente questionado,
criticado e interpelado a partir da exterioridade ético-histórica desses ou-
tros: de fato, na América Latina, desde os pobres. Eles constituem, por sua
vez, um ‘nós’. Todavia, quando não se encontram apenas oprimidos, pois
são, eventualmente, opressores de outros pobres, mas à medida que são
eticamente exteriores ao sistema, ou seja, o transcendem por sua dignida-
de humana e sua alteridade ética, formam um ‘nós inclusivo’, eticamente
aberto para dentro e para fora e, historicamente, criador de instituições
alternativas novas.147

Essa longa citação mostra justamente como a proposta teórica de Scannone não
pode ser catalogada em uma hermenêutica das tradições ou da vida boa, pois requer
estabelecer as condições da justiça para todos. Por isso, ele estabelece mediações com
a proposta de uma ética discursiva de Apel, enquanto admite ser possível estabelecer
vasos comunicantes entre a ética levinasiana e a ética apeliana. Nesse sentido, ele reco-
nhece que “a comunidade de comunicação é, na verdade, ética somente se ela respeitar
a irredutível alteridade ética do outro no seio do nós.”148 Isso permitiria especificar uma
genuína compreensão “da comunidade e da comunicação a partir da relevância do nós
ético-histórico.”149 Essa mudança requer determinadas mediações institucionais: “a li-
berdade passa a ser intermediada através de figuras estruturais, ou seja, em instituições,
que deveriam (eticamente) ser instituições da liberdade (tanto no sentido objetivo como
subjetivo), e, em decorrência – dado seu caráter essencialmente social – de justiça, de
solidariedade e de amizade social.”150

Scannone considera como bem sucedida, na proposição apeliana, a necessida-


de de estabelecer as condições de possibilidade a priori de uma comunidade. Todavia,
afirma ser necessário corrigir a relevância de suas mediações ético-históricas. Para ele,
“tal conversão ético-histórica não é dedutível a priori, nem sequer dialeticamente, senão
inteligível a posteriori. Nem por isso, o sentido primeiro deixa de ser sua condição de
possibilidade, validez e inteligibilidade.”151 No entanto, ele não deixa de lado, como

147 SCANNONE, 1994, p. 163-164.


148 SCANONNE, 1990, p. 137.
149 SCANNONE, 1990, p. 117.
150 SCANNONE, 1998, p. 234.
151 SCANNONE, 1990, p. 128.

Ricardo Salas Astrain – 91


já foi apresentado, a crítica a sua concepção transcendental e ao predomínio da auto-
-referência profunda sobre a alteridade, as quais exigem uma revisão mais profunda do
que seja a racionalidade, a comunicação e a comunidade.152

Em síntese, a perspectiva de Scannone parece estabelecer pontos de interseção


entre a discussão de E. Dussel e K. O. Apel. Com Dussel compartilha a centralidade do
outro, aceitação da tese levinasiana. Com Apel, reconhece a relevância do enfoque em
uma comunidade de comunicação, porque ela é

antropológica e eticamente anterior ao conflito, à opressão, à marginali-


zação e à violência. Pelo mesmo motivo, esses aspectos não representam
apenas uma contradição antropológica vivida, mas também uma tradição
ético-histórica da unidade humana originária (tanto a humana universal,
como a que se dá no seio de um povo e sua cultura).153

Tais considerações remetem a uma perspectiva histórico-crítica, a qual suscita


uma modalidade que considera a ética e a moral menos especulativas.

4. A moral da emergência e a eticidade do poder em A. A. Roig


As críticas a uma ontologia do estar e à afirmação central de um “nós esta-
mos”, que destaca a “síntese cultural” alcançada no saber popular, foram recorrentes no
pensamento latino-americano. O que foi denominado como “a mediação histórica dos
valores”, em Scannone, embora assuma as dimensões fundamentais do conflito, não ex-
plicaria as complexas formas que os conflitos inerentes às comunidades assumem. Isso
nos proporciona a apresentar outra versão, a qual radicaliza esta hermenêutica dos “va-
lores culturais”, introduzindo em um terreno histórico-crítico da análise das ideologias
inerentes aos discursos valóricos. Essa tentativa foi formulada por Roig, primeiramente
em relação ao estudo das idéias e, em seguida, ampliado-a para o âmbito da ética.

De forma bastante resumida, pode-se salientar que, no seu livro Teoria e crítica
do pensamento latino-americano (1981), Roig recorre à Hegel para falar a respeito da
idéia de que a auto-reflexão do sujeito é relevante. Todavia, ele objeta que ela somente
seja interpretada a partir da subjetividade, sem fazer referência a seu caráter plural. Nes-
se sentido, ele afirma que “o sujeito que se afirma como valioso […] não é um sujeito
singular, mas plural, conquanto as categorias de ‘mundo’ e ‘povo’ fazem referência jus-

152 MICHELINI e Outros, 1991, p. 24 ss.


153 SCANNONE, 1994, p. 163.

92 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


tamente a uma universalidade somente possível a partir da pluralidade.”154 Esse modo
de propor o “nós plural” remete, de certa forma, ao ‘nós estamos’, enquanto faz alusão
a uma dimensão histórica do sujeito, sem, no entanto, admitir nenhuma consideração
mítica nem mística do estar.155 Ele deve ser entendido racionalmente dentro de um pro-
cesso de alteridade, que assegura a busca de maior consciência e de afirmação, através
do qual se procura o reconhecimento do “nós”, quem deve afirmar-se conflitivamente
frente a outras formas de consciência. Este ‘nós’ é sempre sujeito histórico, cuja prin-
cipal característica é, segundo Schute, “a de fazer-se consciente de seu próprio valor
e de comprometer-se a uma reflexão crítica de sua própria constituição como sujeito
mediante a teoria filosófica e a prática transformadora da realidade.”156 Nesse sentido, o
sujeito plural é quem vai adquirindo consciência, não em meio de conflitos meramente
axiológico-culturais, mas sempre da afirmação da dignidade humana, no horizonte de
situações conflitivas que caracterizam a vida social. Por isso, os valores humanos não
podem ser reduzidos como sendo a hermenêutica da constituição de um sentido ima-
nente a seres abstratos, mas de um sentido que remete às razões e ações de um sujeito
humano, em meio de um contexto histórico-social.

Em Roig, a questão da análise dos discursos na sua carga valorativa, é um pou-


co diferente dos autores anteriores. Ele elabora uma teoria da discursividade que lhe
permite delinear os aspectos axiológicos de toda simbólica e narratividade. Tratando
de manter um vínculo entre as ciências da linguagem e uma teoria da ideologia, Roig
explica como os discursos e os símbolos possuem a capacidade de mostrar e de ocultar
determinados aspectos da realidade, porque os signos normatizam e têm importância
por seu valor: a simbólica é axiológica. Ao estudar um clássico da teoria formalista do
conto fantástico, V. Propp sugere ser relevante procurar compreender os personagens
à luz de seu sentido axiológico, porque é preciso sempre afirmar o sujeito como algo
real. Por isso, é necessário reinstalar a narração dentro do aspecto cotidiano do texto e
do contexto social.

Por isso, é indispensável sempre prestar atenção ao conceito de ‘universo dis-


cursivo’. Através dele, Roig supera os limites da teoria tradicional da linguagem, tendo
em vista que o texto está em um contexto não somente literário, mas sócio-histórico.
Esse universo é definido como “a totalidade atual ou possível de discursos de uma de-
terminada sociedade, em um momento específico ou em um período específico.”157 A
construção filosófica a presidir a reconstrução da subjetividade – a partir dos princípios
que operam nesses discursos – trata de buscar, principalmente, o reconhecimento e a

154 ROIG, Teoría y crítica del pensamiento latinoamericano, p. 11.


155 ROIG, 1993, p. 78.
156 SCHUTE, In: ROIG, 1993, p. 13.
157 PÉREZ, 1997, p. 164

Ricardo Salas Astrain – 93


auto-estima de um sujeito. Nesse sentido, a categoria principal do a priori antropológico
é aquela que define a proposta a partir da qual se questiona a ‘eticidade do poder’ e se
compreende a ‘moralidade da emergência’. Para Roig,

aquela ‘moral emergente’, enquanto expressão teórica do que entendemos


como experiência própria de nossos povos, a havíamos visto como um
modo de por em jogo o que denominei a-priori antropológico. Dele e da
própria necessidade de seu cumprimento, nos deparamos necessariamente
com uma norma, cujo valor imperativo depende do grau de consciência
moral com o qual a assumimos, porque ela nos exige considerar-nos como
fins e não, simplesmente, como meios. Trata-se de uma categoria moral
fundamental, que expressa tudo o que pode ser considerado como sendo a
‘dignidade humana’.158

Trata-se, justamente, de uma valorização da pragmática, pois permite mostrar a


atividade de um sujeito em ação. Nesse sentido, ele acrescenta:

O ‘componente pragmático’ da linguagem (que nos permite enxergá-lo o


como discurso e, por isso mesmo, também como ‘texto’) se relaciona, in-
dubitavelmente, com aquele a priori antropológico de que falamos em outra
parte e que não é uma categoria ‘antropológica’ – ainda que soe paradoxal
–, mas uma categoria histórica. É possível conectar aquele a priori com a
linguagem, colocando ‘detrás’ e ‘dentro’ do mesmo um ente em comunica-
ção com os demais e consigo mesmo, em um ‘encontro com eles’.159

Em inumeráveis textos, Roig retoma a noção fundamental do a priori antropo-


lógico, que firma suas raízes em uma leitura de Hegel. Sua interpretação vai contra de
si mesmo,160 permite-lhe articular sua teoria da moral do protesto contra as eticidades
dominantes. Para Roig, os processos da formação das subjetividades sociais emergen-
tes América Latina, que efetuaram e revelam suas respectivas formas de assumir uma
moral “do protesto”, encontram sustentabilidade na experiência sócio-histórica de luta.
Eles questionam todas as modalidades de poder inerentes à eticidade, porque estão sem-
pre em dívida com a forma a-crítica de conceber uma determinada cultura.

Nesse sentido, fica evidente, desde o início, que a proposta de Roig é uma críti-
ca a todo pensamento que procura afirmar valores identitários arqueológicos, como é o

158 ROIG, 2002, p. 79.


159 ROIG, apud PÉREZ, 1997, p. 166.
160 ROIG, 1993, p. 207.

94 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


caso da dimensão tectônica, representada por Kusch.161 É necessária uma noção antro-
pológica “de um homem como sendo um ente emergente, sem renunciar ao exercício de
um ‘juízo de futuro’, muito menos ao desenvolvimento de formas de saber conjetural
compatíveis com sua própria emergência, dentro de um processo de humanização.”162
Os valores dos sujeitos humanos em sociedade são sempre históricos, porque são for-
mas discursivas – ideológicas – de oferecer respostas aos conflitos sociais. Essa idéia
permite entender, historicamente, as formas morais vividas. Além disso, ela procura
princípios morais que sejam reclamados por uma práxis social e histórica. Por isso, é
preciso uma busca filosófica de grandes princípios reitores da consciência moral.

Como é possível perceber, Roig sustenta, a partir de seu a priori antropológico,


que é preciso criticar ao culturalismo inerente às posturas anteriores do ethos. Por razões
eminentemente históricas,

o culturalismo, como ideologia, acaba com a própria historicidade, ou seja,


acaba com o princípio que faz com que a história possa ser vivida como
tal. Consolidar a história e, junto com ela, certificar a cultura significa abrir
as portas à formas de universalidade, na medida em que sua potência de
transcendência encontra-se no próprio fato histórico.163

Consequentemente, trata-se de partir das diversas manifestações sociais em que


se expressam os discursos, mas sabendo que “a cultura não se resolve unicamente na
linguagem, pois têm outras manifestações, infinitas e impulsionadas pelos modos, por
sua vez, infinitos de satisfazer nossas necessidades.”164 Em outra passagem, o autor
destaca claramente que a validez destas morais está na sua proximidade com o mundo
social e político, no qual cada um coincidiu viver. Nesse sentido,

o discurso moral, qualquer seja sua posição, está como que grudado sobre
a pele dos fatos e em cada um deles, a responsabilidade intelectual dos
grupos humanos que o sustentam é jogada sobre seus ombros, com uma
claridade que outros campos teóricos não lhe oferecem.165

161 ROIG, 1993, p. 81 ss.


162 ROIG, 1993, p. 128.
163 ROIG, 1994, p. 183 e ROIG, 2001, p. 102.
164 ROIG, 2002, p. 85; Cf. também p. 150, 153.
165 ROIG, 2002, p. 148.

Ricardo Salas Astrain – 95


Através da análise desses discursos, é possível caracterizar o processo de cres-
cimento e consolidação de um sujeito americano.166 Dessa maneira, torna-se admissível
“reencontrar-nos com formas discursivas que sejam também atos de dignidade humana
ou, pelo menos, que os impliquem.”167

Em outras palavras, segundo Roig, estas morais de protesto são sempre expres-
sões heterodoxas e ideológicas, que se desenvolveram dentro da normal conflitividade
social dos processos emancipatórios latino-americanos. Para o autor, “as sucessivas mo-
rais objetivas foram entrando em crise. Isso ocorreu por obra de uma subjetividade que
conta com a energia de um agente histórico e cuja capacidade de mudança advém-lhe,
precisamente, de sua inserção no universo conflitivo de uma determinada sociedade.”168
Entre muitas outras, pode-se mencionar a sugerida por Bohórquez, as morais da primei-
ra independência (Simón Bolívar), morais anti-teológicas (Roscio, Francisco Bilbao),
morais do dever (Eugenio María de Hostos), morais universalistas (José Martí).

É importante salientar que as morais históricas emergentes são as que ques-


tionaram, de forma permanente, a “eticidade do poder” a partir do reconhecimento de
um princípio antropológico fundamental. Ele se fez patente desde as origens do projeto
emancipatório, no século XVIII e está diretamente relacionado com a auto-estima. Isso
implica reconhecer que tal dignidade estaria presente em cada ser humano pelo fato de
ser humano, não pelo seu nascimento e nem por suas propriedades. A defesa da digni-
dade humana, podendo ser remontada com base na visão lascasiana dos direitos dos
indígenas e dos pensadores renascentistas, evidencia uma estrutura histórica comum
de cunho valórico. A eticidade do poder consegue ser superada através da práxis de
sujeitos concretos, denominada como a moralidade do protesto. Por eticidade, entende
Roig, como sendo a noção que advêm da distinção conhecida de Hegel entre Eticidade
e Moralidade.169 No mesmo texto, ele propõe uma perspectiva da ética baseada na se-
guinte distinção:

A Ética, no sentido aqui por nós conferido, tem, basicamente, seu lugar
no direito. A moral, enquanto aspecto subjetivo da moralidade, isto é, lo-
gicamente, não é alheia à eticidade, mas, de alguma forma, ela é anterior
na medida em que é já na consciência de cada um, quando aceitamos ou
recusamos o estabelecido, o regulamentado e o controlado a partir do Es-
tado.170

166 ROIG, 1993, p. 171.


167 ROIG, 2001, p. 178.
168 ROIG, 2002, p. 225; Cf. também ROIG, 1993, 47 e, ainda, ROIG, 2001, p. 130.
169 Cf. ROIG, 2002, p. 86.
170 ROIG, 2002, p. 179.

96 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Essa definição mostra que a forma de entender ‘eticidade’ é diferente da versão
hegeliana, conformando uma unidade comunitária. Roig reinterpreta essa noção com base
na proposta de um resgate plural da subjetividade sob o poder opressivo do Estado.

Conforme Roig, os sujeitos históricos são os que afirmam a subjetividade em


contra da eticidade estruturada como poder. Assim, as morais emergentes

assumem o que, para Hegel, era o árduo trabalho da eticidade em sua luta
contra o que considerava como o princípio do particular e do arbitrário, a
subjetividade. Agora, ao contrário, trata-se do ‘duro trabalho da subjetivi-
dade’, contra as formas negativas da eticidade, em uma sociedade organi-
zada estruturalmente sobre a injustiça social.171

Nesse sentido, os diversos movimentos sociais, existente na América Latina,


são exemplos claro dessa luta. Entre eles, podemos relacionar as lutas dos indígenas
zapatistas, dos campesinos sem terra no Brasil, das Mães de Maio que, na Argentina,
clamam pelo paradeiro de seus familiares desaparecidos. Para o autor, elas “restabele-
ceram uma racionalidade organizada, plenamente, sobre a dignidade humana e, com ela,
lançaram um desafio à eticidade oprimente e opressora, alimentada por ideologias das
mais anti-humanas.”172

Nesse sentido, há, em Roig uma partilha com os autores discutidos anterior-
mente. Refere-se ao fato de que a modernidade latino-americana estaria marcada pela
permanente busca de auto-afirmação do princípio de que cada pessoa vale pelo fato de
ser um fim e não um meio. Esse princípio reitor não aceita o egoísmo, nem a instru-
mentalização de nenhum homem ou mulher. No entanto, isso não deve ser entendido de
maneira ingênua. Na verdade, a modernidade é um processo histórico, com começos e
reinícios, os quais podem ser rastreados em toda a complexa história latino-americana.
Por exemplo, aspectos semelhantes podem ser encontrados de Bolívar a Martí. Nesse
percurso, “podemos ir seguindo-os e assumindo-os a partir do imperativo de afirmar-
nos para nós mesmos, como sendo valiosos, constituindo o a priori absolutamente sine
qua non de tudo o que possamos ou queiramos fazer-nos com nós próprios.”173

171 ROIG, 2002, p. 151.


172 ROIG, 2002, p. 186. Em alguma ocasião Roig usa no plural ‘eticidades’ (Sittlichkeiten)
para relacionar às formas espontâneas que são expressão das diferenças humanas, sociais, gené-
ricas, etc. Cf. ROIG, 2001, p. 98.
173 ROIG, 2002, p. 168.

Ricardo Salas Astrain – 97


Através de uma terminologia mais adequada em relação à desenvolvida, é plau-
sível entender que as morais emergentes representam sempre o exercício da emergência
de valores questionadores de uma determinada ordem ideológica estabelecida e, inclu-
sive, na procura do reconhecimento da subjetividade emergente. A cada subjetividade
corresponderia um tipo de valores, que seria preciso re-criar. Os valores humanos são
cambiantes de acordo com as novas formas de opressão existentes. Nesse sentido, em-
bora Roig não o diga dessa maneira, as morais emergentes se referem aos processos
históricos, através dos quais a subjetividade consolida os valores dos sujeitos, na busca
de seu reconhecimento e com a pretensão de mudar o sistema de regras e normas que lhe
foram impostas exteriormente. Por isso, trata-se de uma moral emergente, construída a
partir de uma grande convicção, que é a dignidade humana. Sem dúvida, “esta seria a
raiz da moralidade principal, à qual nos referimos e na qual se geri aquela moralidade
do protesto impugnador de qualquer ética do poder alienante.”174

A grande diferença de uma ética do discurso, que parte de discursos simétri-


cos, como os inerentes à modernidade européia, “as investigações e formulações da
‘moral da emergência’ apontam para a reconstrução do mundo de vozes, que qualquer
discurso nos transmite enquanto integra um ‘universo discursivo’ do qual é, inegavel-
mente, expressão.”175 A moral da emergência parte, pois, de um rotundo rechaço de
toda filosofia da consciência e, junto com ela, “dos transcendentalismos sobre os quais
foi formulada.”176 Nesse sentido, mais que especificar uma determinada ética univer-
sal cognitivista, tratar-se-ia de definir quais são os caminhos que permitem elaborar,
em cada época, moralidades de distinto signo. Além de questionarem criticamente a
eticidade do poder prevalecente, ela torna exeqüível compreender os valores em jogo,
articulados sobre as necessidades humanas,177 porque são sempre sociais, econômicas e
políticas, assim como culturais.

Um dos pontos de convergência com a ética do discurso, caso existisse, seria,


justamente, a oposição ao pensiero debole, ou seja, às derivações do pós-modernismo
radical, que se fundamenta em uma determinada concepção da fragmentação cultural
atual. Ela se apóia em uma leitura de Wittgenstein, que acaba fazendo o jogo do modelo
hegemônico prevalecente. Por isso, em oposição a um pensar débil, deve-se propor um
pensar forte, devedor do pensamento cosmopolita de Kant:

174 ROIG, 2002, p. 229.


175 ROIG, 1994, p. 181.
176 ROIG, 2002, p. 29-30.
177 Cf. ROIG, 2002, p. 228.

98 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Trata-se de um cosmopolitismo e de uma exigência de universalidade, que
parte de uma clara relação dialética com nossas pátrias, sua gente e seu
mundo. São idéias reguladoras não alheias, pois expressam aquele a-priori
antropológico, ou seja, aquela afirmação de nós mesmos como muito esti-
mados e, ao mesmo tempo, essa nossa convicção moral que nos impulsio-
na ao reconhecimento da dignidade humana.178

5. Recapitulação
Este capítulo coloca em evidência as categorias hermenêuticas, elaboradas por
diversos autores latino-americanos. Eles desenvolveram propostas teóricas sobre a iden-
tidade latino-americana, iniciativas relevantes para elaborar uma ética intercultural. De
modo geral, uma primeira aproximação permite mostrar como a maior parte dessas ca-
tegorias em debate se encontram centradas em uma discussão interdisciplinar (história,
antropologia, sociologia, teoria da linguagem). Todavia, o destaque principal gira ao
redor de um marco de análise histórica das sociedades, iniciando com as origens pré-co-
lombianas, passando pela chegada dos conquistadores, as origens dos Estados nacionais,
e, acima de tudo, as atitudes críticas assumidas na avaliação das transformações sociais,
políticas e econômicas dos anos 70. A contribuição de tais teorias se relaciona com um
processo histórico de autoconscientização do filósofo em torno às complexas formas
contextuais que os processos de socialização apresentam; confluências e resistência pro-
duzidas entre as diferentes comunidades históricas durante cinco séculos.

Os impactos do aceleramento histórico estimularam mudanças sócio-políticas e


culturais. No âmbito da filosofia, isso significou um reintegrado esforço para vincular-se
com a práxis dos povos. Trata-se de restaurar a mediação indispensável para a filosofia
contemporânea, pois significa o vínculo entre teoria e práxis, de modo especial, o desta-
cado papel das reflexões teóricas no discurso da história contingente: a preocupação dos
intelectuais não somente foi identitária, mas de criticidade histórica frente aos processos
de transformação. Sem lugar a dúvidas, a reflexão sobre o ethos cultural, ou seja, da
eticidade ou da moralidade do protesto, se vinculam com as propostas filosóficas que
respondem ao reconhecimento de amplos setores da população americana, permanente-
mente negados nesta história de transformações. Não é somente o indígena e o africano,
mas o pobre, o campesino, o imigrante e todos os setores subordinados por uma lógica de
exclusão. Frente a essa concepção da história das elites, surge uma história de maiorias
populares, reconhecidas como uma experiência vital, discursos e práticas que não podem
permanecer desvinculadas de um autêntico projeto histórico.

178 ROIG, 1994, p. 184.

Ricardo Salas Astrain – 99


Do ponto de vista de uma ética intercultural, a análise de diversas categorias
hermenêuticas permite entender as culturas e as subjetividades emergentes, pois ex-
plicita a afirmação, no pensamento latino-americano, de uma perspectiva contextual
dos valores, a qual está presente a partir dos próprios modos de vida e histórias dos
povos. Essas perspectivas reportam a uma valorização das próprias formas de vida, aos
diversos registros simbólicos, narrativos e discursivos, evidenciando a articulação dos
sentidos valóricos.

É possível afirmar que as duas últimas posições envolvem uma maior complexi-
dade na assunção das modalidades conflitivas das estruturas sociais e culturais de nossas
sociedades. No entanto, a proposição dos dois primeiros autores introduz uma vivaz re-
flexão histórica de tipo hermenêutica em torno do viver e do conviver humanos. Através
dela, os valores humanos exigem que a questão intercultural seja internamente introdu-
zida frente à modernidade, destacando as diversas formas de participação que os sujeitos
criam, da mesma maneira que as formas de resistência e a capacidade de propor um pro-
jeto de emancipação, ou libertação, ou de esperança. No caso dos quatro autores citados
previamente, parece que as teses esboçadas levariam a destacar uma filosofia contextual,
porquanto exigem o reconhecimento da especificidade dos processos míticos, cultuais,
narrativos e discursivos que caracterizaram o ethos ou os ethos desta América indígena,
africana e mestiça. Em todos eles, embora não impeçam a busca efetiva do diálogo de
uns com os outros e destaquem o vínculo entre particularidade e universalidade, ainda
que neles às vezes existam posições teóricas contraditórias, todas mantêm uma valoriza-
ção das tradições próprias; para alguns serão míticas, para outros cúltico-religiosas, para
outros ainda, discursos que respondem a uma praxis de subjetividades emergentes.

Possivelmente, a diferença maior situa-se na tese de maior complexidade, que


é sustentar a conformação de nosso ethos americano a partir de uma doação originária,
a qual fundamenta suas raízes nas culturas originárias ou de uma época onde se aceita,
sem protestar, uma síntese histórico-cultural determinada. Considero que, apesar de que
se possam dirigir sérios questionamentos históricos a esta tese, é possível mantê-la como
uma proposta que pretende resguardar um sentido radical da autenticidade cultural.

As contribuições teóricas, que as categorias hermenêuticas propõem, permi-


tem mostrar a relevância dos registros discursivos míticos e narrativos provenientes
dos mundos da vida das culturas. Elas também salientam a necessidade de avançar
neste marco histórico-cultural, a respeito das dificuldades discursivas existentes para
a compreensão profunda das culturas dos outros. Em outras palavras, elas possibilitam
constatar que as a-simetrias de culturas e tradições suscitam sérias limitações para en-
tender aos outros. Por isso, sem assumir os elementos comunitários, que articulam os
esquemas normativos da ação cotidiana, torna-se impossível o diálogo intercultural.

100 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Diante disso, é preciso voltar a insistir em quatro propostas, sem absorvê-las
de modo homogêneo. Elas acarretam, explicitamente, em uma atividade hermenêutica,
enquanto a compreensão do sentido das atividades expressivas e significativas dos mun-
dos da vida seja tomada em consideração, em particular por seu esforço de contextua-
lização dos símbolos, textos, discursos, narrações presentes nos diversos sujeitos e co-
munidades da América Latina. Em geral, parece que esse tipo de perspectivas responde,
de forma mais clara, a um tipo de ética intercultural, constituída a partir dos contextos
culturais específicos e valoriza, de forma especial, o esforço reflexivo das comunidades
de vida e dos sujeitos indígenas e populares. Entre outras características relevantes, é
possível destacar as seguintes:

1. A compreensão dos valores é realizada a partir dos contextos de vida especí-


ficos sem derivação nas normas ou em princípios universais.

2. Os valores, presentes no ethos latino-americano, remetem a uma atividade


humana, tendo em vista serem resposta a uma série de necessidades humanas e, portan-
to, respondem a uma visão genuína do humano latino-americano.

3. Os valores relativos à “identidade” pessoal e comunitária passam a dar forma


à proposta essencial da ética; neste sentido, trata-se de valores relativos à autêntica rea-
lização de uma comunidade humana.

4. As características destacadas previamente são próprias de uma ética comuni-


tária e axiológica.

5. O principal problema esboçado a este tipo de ética refere-se à resolução dos


conflitos internos das diversas formas de modernidade, o papel da crítica, e, em parti-
cular, a forma de entender os processos de universalização dos valores relacionados a
outros contextos.

Ricardo Salas Astrain – 101


CAPÍTULO III

PERSPECTIVAS PRAGMÁTICAS
PARA UMA ÉTICA INTERCULTURAL

1. Considerações prévias
Com este terceiro capítulo, pretende-se sistematizar as contribuições de filo-
sóficos sob o âmbito da pragmática do discurso, as quais permitem justificar uma ética
intercultural. Em um primeiro momento, não se trata de um esboço dos registros dis-
cursivos míticos e dos relatos identitários, mas, fundamentalmente, dos princípios do
discurso argumentativo e de suas características auto-implicativas. Nesse segundo as-
pecto, ressaltar-se-á a tendência de uma justificação universal dos enunciados éticos. Tal
enfoque provém de uma perspectiva filosófica da linguagem, ou seja, da teoria lógico-
-argumentativa, que o vincula, estritamente, à pragmática da comunicação, elaborada
no marco das éticas da discussão. A tese deste capítulo sugere uma via intermediária,
pretendendo acoplar internamente os dois planos através de uma mediação dos registros
discursivos já explicitados, ou seja, o estreito vínculo existente no processo do sentido
entre as perspectiva pragmática e hermenêutica.

Como já reiteramos em várias ocasiões, esta proposição dá acesso a uma forma


de interpretar, de forma conjunta, os discursos morais práticos – elaborados no horizon-
te da ‘eticidade’ dos mundos de vida – e os enunciados éticos, os quais asseguram sua
plena validez racional através do procedimento argumentativo. Nesse sentido, julgamos
– assim como outros filósofos atuais – ser impossível dissociar, no fenômeno moral, os
aspectos normativos da justificação racional das formas narrativas de afirmar a dignidade
da vida. Em síntese, a proposta sustenta que os enunciados éticos – cuja validez necessita
ser discutida por todos – devem assegurar uma intersecção no marco dos discursos e dos
enunciados morais – que se validam contextualmente. Esse aspecto parece ser central na
ética do discurso elaborada por Apel e Habermas, e remete às controvertidas questões
entre facticidade e idealidade e, também, entre particularidade e universalidade.179

179 CORREDOR, 1997, p. 165.

102 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Nessa discussão, a proposta não pretende, de forma alguma, realizar um balan-
ço da ética discursiva, apurando o rigor e quase monumental obra dos filósofos alemães
associados a ela. A pretensão é muito mais limitada e específica, pois deseja explicitar
algumas áreas temáticas e conceitualizações significativas para, com isso, compreender
a vinculação entre as formas de eticidade e a fundamentação de uma ética que, no es-
pírito de um pensar latino-americano, esteja aberta à universalidade. Trata-se, como já
foi dito, de explorar as categorias necessárias para idealizar uma ética intercultural com
raízes latino-americanas. Ela não deve fechar-se nos registros discursivos das plurais
formas de eticidade discursiva, mas incorporar a contribuição da análise da linguagem
lógico-racional e, assim, poder fundamentar princípios normativos de uma ética que
assume a libertação como sendo uma questão central. Em um primeiro momento, far-
se-á menção a duas contribuições em torno da fundamentação da normatividade, pois
parecem ser convergentes. São as propostas de dois filósofos latino-americanos: Enri-
que Dussel e Sirio López Velasco.

Essa nossa tese é assumida como sendo indispensável para uma ética intercul-
tural, porque permite recorrer o amplo panorama atual da filosofia pragmática em um
marco filosófico mais complexo. Este marco assume, clara e explicitamente, a polifa-
cética proposta do giro lingüístico. Trata-se da filosofia analítica, da hermenêutica e da
pragmática do discurso, que também é desenvolvida no interior do pensamento latino-
americano, tal foi salientado desde o início. Ela pode ser considerada como uma tese no
nível do discurso que, embora mantenha as características compreensivas próprias de
uma hermenêutica histórica e cultural, se concentra na indicação de formas racionais.
Elas permitam alcançar uma validade do discurso ético, âmbito que exige discutir uma
nova forma a pretensão de universalidade dos enunciados morais. A proposta de uma
ética discursiva, redesenhada neste livro, está vinculada às contribuições e observações
críticas, surgidas no pensamento latino-americano, a respeito da recepção, no mundo
ibero-americano, daquilo que foi denominada com sendo ética do discurso ou ética
discursiva. Ela encontra nos filósofos Apel e Habermas seus principais mentores.

A controvérsia entre Apel e Habermas


Antes, no entanto, de explicitar os aspectos mais relevantes das categorias teó-
ricas de ética latino-americana de fundo pragmático, é conveniente salientar um aspecto
problemático da ética da discussão. Ele é significativo para nosso esforço em visualizar
uma ética intercultural. Entre os adeptos e os críticos da ética discursiva, instaurou-se
um debate em torno às divergências teóricas de uma justificação última. Trata-se de
inquirir sobre se ela é de tipo transcendental, como o defende ainda Apel – ou seja, que
se relaciona com condições formais a priori pressupostas por qualquer discurso argu-

Ricardo Salas Astrain – 103


mentativo – ou, então, se é universal, como propõe Habermas – o que implicaria em
estabelecer uma reconstrução não somente formal, mas histórico-cultural de tais condi-
ções do discurso argumentativo. Da nossa perspectiva, a divergência teórica precisa ser
entendida a partir do ângulo que destaca o pano-de-fundo que permite compreender os
discursos morais, que não é outro senão os polifacéticos mundos da vida.

A tese de Apel é conhecida por questionar as formulações habermasianas, pois


reivindicariam um reconhecimento exagerado da facticidade cultural, no modo de fazer
prevalecer um possível acordo das ações no horizonte dos mundos de vida. Segundo
a concepção de Apel, tal perspectiva sempre afastaria cada vez mais a Habermas do
modelo pragmático transcendental, levando-o a assumir teses contraditórias, de modo
especial em seus últimos trabalhos, nas quais as dimensões histórico-culturais das ações
humanas se tornem prevalecentes.

Sejam quais forem as alternativas ou as opiniões projetadas para resolver essa


controvérsia pragmática, não se pode desconhecer que as duas colocações teóricas têm
suas respectivas fortalezas. A busca habermasiana é, certamente, significativa para as
ciências humanas e para nosso próprio ponto de vista, pois se trata de encontrar um
modelo pragmático teórico que assume a relevância do pano-de-fundo cultural, a partir
do qual se pode entender o caminho da reconstrução normativa de todas as sociedades
humanas. Pelo contrário, a exigência apeliana de um fundamento transcendental é ne-
cessária, porque não se furta da questão central de uma devida justificação racional.
Isso não significa desconhecer, de forma alguma, os discursos morais originados pela
eticidade dos mundos de vida, porém insiste que a plena e total validez de um enunciado
ético racional somente seria possível no horizonte de uma perspectiva reflexiva e crítica,
unicamente definida pela filosofia, ultrapassando os limites da nebulosa reflexividade
dos mundos de vida.

Existe outra maneira de entender tal controvérsia. Ela aponta para os filósofos
alemães que estão na base da justificação de princípios e normas universais. É sabi-
do que Apel prossegue, de forma clara, a veia ilustrada iniciada pela ética de Kant. É
também muito provável que, neste litígio entre Habermas e Apel, o núcleo central do
conflito surge no modo de elaborar a releitura semiótica de Kant, bem como no modo de
entender a reflexividade da consciência que provêm da tradição hegeliana. Para Apel, a
discussão em torno da questão kantiana se relaciona com uma ética do dever universal,
que pode ser definida no horizonte de uma comunicação ideal, advinda da necessidade
de torná-la análoga a uma comunidade de pesquisadores, tal como se encontra em Pier-
ce. No caso de Habermas, embora, às vezes, não destaque suficientemente a categoria
do mundo da vida (Lebenswelt), ele não apenas tem uma base husserliana, mas, além
dela, é a maneira de reaproximar o diálogo com a herança hegeliana da básica eticidade

104 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


do mundo de a vida.180 Com isso, Habermas volta a considerar relevante a discussão
acerca de eticidade e moralidade, porque, segundo ele, trata-se de entender as normas
dos atos morais associados aos contextos culturais de ação e, de forma mais abrangente,
a necessidade de estabelecer uma crítica ao projeto ilustrado. Para estabelecer uma ética
universal, cabe assumir, inicialmente, os traços que caracterizam os discursos morais
provenientes da facticidade.

No entanto, poder-se-ia associar este debate, que reata a controvérsia da ética do


discurso a Kant e a Hegel a outra questão filosófica central que lhe é inerente. Trata-se
do caráter de reflexividade que caracteriza os discursos morais. No âmbito da filosofia
moral, a questão legada por Kant é complexa, porque, por um lado, ele reconhece, efeti-
vamente, a existência do conhecimento racional-moral habitual, aceitando os ideais prá-
ticos cristãos como forma de vida moral cotidiana. Todavia, isso não permitiria definir a
atividade volitiva racional, ou seja, não permite ao saber moral cotidiano a justificação
de uma lei moral universalmente válida.181

Em nossas palavras, é possível afirmar que, por um lado, o fenômeno moral


faz alusão ao saber moral popular na sua dimensão social concreta e, ao mesmo tempo,
exige uma delimitação racional para alcançar a plena justificação desde a lei moral. Por
isso, o moral universal não pode ser desvinculado – a justificação segue o caminho da
aceitação e do questionamento daquilo em que cremos por motivo das tradições – de
sua complexa vinculação com a vida moral particular. Essa dupla relação é definida
em relação ao saber, à fé e à sua justificação. Por isso, exagerar em uma ou em outra
direção implicaria cair em um universalismo abstrato ou, então, em um particularismo
concreto.182 A matéria legada por Hegel, em torno da reflexividade da vida humana,
permite avançar muito mais no sentido de conceber a possibilidade gradual de reco-
nhecer esta eticidade na vida de um povo, valorando as figuras de todas as articulações
pré-reflexivas que permitem assegurar o desenvolvimento posterior das formas refle-
xivas do saber em todas as suas dimensões. Mediante tal debate, também presente na
controvérsia latino-americana – quando se concentrado na temática do universal con-
creto183 –, pretende-se responder à questão fundamental da filosofia da ilustração e do
caráter racional da vida ética. Em outras palavras, ao analisar o caráter pré-reflexivo da
ação no mundo da vida, discute-se a eventual possibilidade de compreender a dinâmica
da reconstrução normativa a partir dos contextos culturais abertos à universalidade.
Do ponto de vista de Apel, é preciso retomar, a partir do giro semiótico, a discussão
kantiana preliminar em torno da transcendentalidade da lei universal. Ao observar o

180 SOBREVILLA, In: OLIVÉ (Ed.), 1993, p. 62.


181 VILLACAÑAS, 1987, p. 331 ss.
182 SALVAT, 2003, p. 153.
183 Cf. PÉREZ ZAVALA, ROIG e SCANNONE.

Ricardo Salas Astrain – 105


tema a partir de Habermas, é imprescindível que a discussão da reconstrução se insira,
de certo modo, com a eticidade hegeliana presente nos panos-de-fundo específicos dos
contextos culturais. Dessa forma, consegue-se assegurar seu vínculo com a reconstru-
ção das ciências sociais.

No entanto, esse debate sobre a distinção entre eticidade e moralidade, está


longe de ser resolvido por Apel e Habermas. É preciso admitir que, até hoje, existem, na
ética, diversas acolhidas que sustentam as formas atuais de filosofia européia e latino-
americana.184 Por ora, defendemos apenas que a configuração do nexo entre as formas
valorativas da vida comum e a universalidade das obrigações, específicas de uma dis-
cursividade argumentativa – como a que será desenvolvida no próximo capítulo – re-
quer visualizar um modo inovador da questão do nexo entre a pré-reflexividade e a
reflexividade na sua forma cabal.

Esta limitação não obstaculiza o reconhecimento do enorme esforço e a contri-


buição dos aspectos defendidos pelas teorias de Apel e de Habermas. Elas são signifi-
cativas, pois contribuíram para interpretar esta distinção e este legado ilustrado germâ-
nico em um marco pragmático da filosofia analítica, utilizando os recursos de Pierce,
Wittgenstein, Austin e Searle. Acima de tudo, eles ajudaram a interpretar, a partir da
própria discursividade da reflexividade moral, as vinculações problemáticas entre os
discursos práticos das eticidades peculiares dos mundos de vida e os discursos éticos
universais, exigidos pela filosofia. Essa pragmática da linguagem, definida através da
análise reflexiva dos atos de linguagem, é relevante para dar continuidade à relação que
justifica o nexo entre estruturas normativas e contextos. Além disso, ela permite clarifi-
car, dentro de uma determinada chave fundacional, os registros discursivos próprios da
universalidade, exigidos de qualquer ética, os quais devem ser ampliados ao âmbito do
intercultural.

Eu penso que todos os grandes problemas do universalismo, delineados pela


ética atual, receberam uma contribuição dessa proposição discursiva. Por isso, não é
exagerado sustentar que as redes ibero-americanas, ao se abrirem ao debate com a ética
do discurso, ao menos tal como foi elaborada por Apel,185 a reconheceram como uma

184 Cf. FRANCK, 1988 e GIUSTI, 1996.


185 Esta discussão com Apel pode ser encontrada muito bem sistematizada em Adela Cortina
e Enrique Dussel. Todavia, é fruto de um longo debate, na qual colaboraram filósofos de vários
países, principalmente em encontros realizados em Friburgo (Alemanha, 1989), México (1991),
Brasil (1993) e Argentina. Por certo, elas contaram também com outras contribuições elaboradas
nos Estados Unidos e na Espanha. Esse belo debate podem ser encontrado nos principais volu-
mes publicados por Enrique Dussel, Debate en torno a la ética del discurso de Apel, México,
Siglo XXI-Iztapalapa, 1994. Cf. também Fornet-Betancourt, R. (Ed.). Die Discursethik und ihre

106 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


tendência significativa da filosofia moral atual. Isso pode ser rastreado em muitas publi-
cações do pensamento ibero e latino-americano a partir do início dos anos 80. A partir
disso, desenvolveu-se, então, um longo e frutífero diálogo com o pensamento alemão.
No entanto, é possível frisar, embora esquematicamente, que a influência fez com hou-
vesse uma percepção diferente do âmbito da filosofia e das ciências sociais. A ética do
discurso, de modo especial em sua versão apeliana, deu origem a um debate de mais
de uma década, no qual, em muitos Congressos e Seminários, tomaram parte filósofos
alemães, espanhóis e latino-americanos. Por sua vez, a proposta habermasiana continua
tendo relevância entre as ciências sociais críticas, como a sociologia, a antropologia, a
teoria da comunicação, o direito e, inclusive, entre os pensadores preocupados com a
modernidade.186

2. Algumas contribuições e observações gerais


à ética do discurso de Apel
Em diálogos realizados entre Apel e outros pensadores, especialmente com
latino-americanos – publicados em livros e revistas que sintetizam tais encontros –,
as considerações gerais positivas em torno do projeto em si da filosofia apeliana têm
preferência. Nas palavras de Michelini, isso significou uma reabilitação “do direito e
do sentido filosófico do logos humano no caráter de reflexão transcendental.”187 Entre
os pensadores estudados, a perspectiva universalista da ética do discurso é consi-
derada necessária e fecunda para a fundamentação do discurso ético em uma era da
ciência e da tecnologia e, ainda, em um período em que a expansão do atual capitalis-
mo globalizado tem repercussões universais.188 No entanto, as teses apelianas foram,
e são provocativas, para as propostas filosóficas baseadas na eticidade do mundo da
vida e, inclusive, para a teoria que trata das questões éticas da dominação. Em relação
a este último âmbito, o ambiente filosófico latino-americano havia-se caracterizado
por proposições de tipo crítico. Em uma direção, os estudos destacavam o predomí-
nio da análise contextual das condições que asseguraram a mudança social (éticas da

lateinamerikanische Kritik, Aachen, 1993; e Diskursethik und Befreieungethik, Aachen, 1993;


Sidekum, A. (Ed.). Ética do discurso e filosofia da libertação. São Leopoldo: Editora Unisinos,
1994.
186 Nos textos e artigos publicados, é possível captar, em geral, um diálogo bastante sério que,
às vezes, toma o caráter de um debate e de uma polêmica técnica. De qualquer modo, é plausível
sustentar que, dos que participaram do debate, ninguém saiu dele da mesma forma como nele
entrou.
187 MICHELINI, 1998, p. 156.
188 Cf. As sínteses interpretativas das éticas do discurso em Arriarán, Cortina, Giusti, Malian-
di, Michelini, Salvat e Sobrevilla.

Ricardo Salas Astrain – 107


libertação ou éticas políticas), mas, por outra, as discussões se limitavam ao terreno
abstrato, sem responder às exigências contextuais das sociedades latino-americanas
atuais e, portanto, sem dialogar com as ciências sociais (éticas metafísicas universais
e academicistas).

Na atual perspectiva dos desafios do diálogo intercultural, a ética discursiva


possui uma relevância significativa, pois sua proposta teórica agrega o vínculo entre a
ciência e a ética. Além disso, ela desenha, de forma explícita, os problemas gerados pela
racionalidade instrumental da modernidade. Todavia, essa ética pode ser questionada
ao supor um excessivo logocentrismo, característica do pensar racional europeu. Para
nós, a ética discursiva, ao tentar explicitar o vínculo entre ética e linguagem, nos passa
às mãos uma chave interpretativa fundamental. Ela permite encontrar uma alternativa
capaz de compreender os diversos discursos morais, que brotam de registros narrativos,
e, inclusive, de outros discursos que se constituem em registros racionais, que torna
possível justificar e reconstruir normas universais. A filosofia apeliana possibilita, a par-
tir da explicitação das condições formais do discurso argumentativo, oferecer critérios
relevantes para assegurar uma racionalidade universal.

Por isso, a ética discursiva mostrar-se-á interpeladora e questionável para as for-


mas de propor a questão ética. Existem, entre os pensadores latino-americanos, diversas
suspicácias frente a uma ética procedimental. Para uns, a visão apeliana é parte de uma
filosofia crítica e progressista, embora, no seu modo semiótico de propor uma univer-
salidade racional de tipo kantiana, seja bastante vinculada ao racionalismo europeu.
Para outros, é uma nova forma do pensamento crítico, pós-iluminista e pós-racionalista,
que, ao estabelecer um giro pragmático da validez discursiva, termina questionando,
em última instância, o valor das tradições culturais. Há, inclusive, uma tendência em
afirmar que se trata de uma ética que não consegue assegurar as conexões com as regras
práticas, sem conseguir compreender as ações em sua circunstancialidade. Um outro
grupo acredita que ela não apresentaria as indicações necessárias e suficientes para agir
o prático, no sentido de defender a vida humana em um tipo de sociedades globalizadas.
É necessário frisar que Apel tentou responder à maior parte das observações realizadas
a sua forma de entender a ética discursiva. Isso ajudou a criar uma prática dialógica de
discussões baseadas em objeções e respostas, algo que não foi reiterado entre os culti-
vadores de outras perspectivas éticas.

A proposta apeliana abriu-se a uma discussão significativa em torno às inter-


pretações que surgiam na compreensão de sua tese, bem como na forma como Apel
entendia o debate ético latino-americano. O diálogo proporcionou teses relevantes
em torno da ética discursiva. Várias delas serão explicitadas na continuação. Nossa
idéia é salientar o fato de que as formas de argumentar entre as idiossincrasias filo-

108 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


sóficas relacionadas ao modo de compreender discursivamente o tema ético,189 com
razões diferentes e divergências profundas nos pressupostos filosóficos para interpre-
tar a realidade sócio-cultural, permitiram consagrar a fecundidade teórica da ética do
discurso.

O projeto apeliano apresenta uma contribuição significativa ao tipo ética como


a que se busca oferecer. Trata-se do seu particular modo de entender os enlaces pro-
blemáticos do discurso moral em uma sociedade plural e conflitiva.190 Nesse sentido, a
referência ao giro pragmático da linguagem e à semiótica filosófica são chaves para en-
tender uma modalidade de validação dos discursos morais. Em outras palavras, trata-se
de reconhecer uma proposição em dívida com a análise da linguagem e com uma teoria
dos signos. Nesse sentido, como enfatiza Cortina, a perspectiva de Apel se apropria de
uma hermenêutica crítica do sentido e de uma triple distinção semiótica proveniente de
Charles Morris – presente em Cullen, Roig e Scannone. A partir dela, Apel distingue a
tríplice dimensão da linguagem: sintaxe, semântica e pragmática. Isso lhe permite avan-
çar, sobretudo com o último nível, no sentido de demonstrar a relação que os enunciados
têm com seus intérpretes. Em outras palavras, ela permitiria entender o particular modo
em que um locutor assume o que diz frente a outros e, ao mesmo tempo, o modo como
é possível sustentar uma afirmação, quando outro locutor não a compartilha. O caráter
insuscetível da argumentação abarca tudo isso.

A concepção apeliana, que evidencia o discurso da argumentação, é fecunda,


pois proporciona um campo da discussão e da comunicação, reduzido, durante muito
tempo, ao modelo tradicional da retórica. Com isso, a linguagem é concebida como algo
muito além do terreno estratégico e persuasivo. A pragmática permite demonstrar que a
linguagem não pode permanecer reduzida apenas ao âmbito fático da interação dos dis-
cursos práticos da vida cotidiana, porque ela deve fundamentar o caráter compreensivo
válido, essencial em uma comunicação intersubjetiva racional.

Nesse âmbito, é preciso mencionar a controversa questão do agir comunicativo,


relevante na confrontação da ética apeliana e habermasiana. Em relação a isso, é im-
portante salientar a distinção entre duas pretensões sobre o processo de compreensão
do outro. Trata-se da pretensão de tipo comunicativa e outra, de caráter estratégico, que
busca estabelecer uma negociação ou um cálculo ou, então, forma de ação interessada.
Essa distinção fará com que Habermas considere o agir comunicativo como o ponto
de partida da fundamentação, enquanto que, para Apel, a argumentação é a única via a
permitir a fundamentação para o princípio da ética. “O discurso argumentativo é o meio

189 MALIANDI, 1996, p. 147.


190 SALAS, 2002, p. 118.

Ricardo Salas Astrain – 109


de fundamentação concreta das normas e, em segundo lugar, [...] contém também o a
priori racional da fundamentação para o princípio da ética.”191

Nos últimos anos, essa disputa técnica entre Apel e Habermas transferiu-se da
coordenação de ações no mundo da vida para a configuração de uma racionalidade
prática. O resultado apresenta teses do tipo: até que ponto o agir comunicativo pode
desvincular-se do pano-de-fundo cultural. Ou então, de que modo se pode demonstrar
que o agir comunicativo plenamente válido pode ser somente definido no nível reflexivo
da argumentação filosófica. Para Apel, é necessário reconhecer que a história da moral
sempre esteve presente na vida humana e as normas práticas podem e devem também
“conectar-se à eticidade concretizada historicamente às correspondentes formas de vida.
No entanto, a ética discursiva não pode, nem deseja renunciar ao ponto de vista do dever
ideal que Kant propôs.”192

Nesse terreno, seria dispensável afirmar o aparecimento de considerações críti-


cas, de tipo neo-aristotélico e neo-hegeliano, à tese universalista da ética da discussão.
Em geral, elas estão associadas a este mesmo ponto crucial para uma ética intercultural:
que o agir humano permitiria assegurar, inicialmente, a compreensão intersubjetiva a
partir da dinâmica dos discursos enraizados do mundo da vida. Apel estaria de acordo
somente em parte com essa idéia. Porém, ele salienta que a plena validade desse tipo
de compreensão é possível apenas para o discurso argumentativo, permitindo à filosofia
dar conta do a priori que assegura sua plena validez intersubjetiva. Para o sujeito que
age de modo prático, a ação incorporaria sempre os elementos estratégicos de uma eti-
cidade concreta e condicionada sócio-cultural e historicamente, aspecto que condiciona
a validez.

Como já foi destacado, de forma resumida, é palpável que a pragmática ape-


liana, diferentemente da habermasiana e das teses dos autores neo-aristotélicos e neo-
hegelianos, contém um caráter empírico ou histórico. Todavia, ela exige processar a
fundamentação que seja – na parte A – eminentemente transcendental. Conforme Ma-
liandi,

A meu juízo, Apel mostrou, no entanto, que, por um lado, o falibilismo


irrestrito se auto-destrói. Todavia, a ‘fundamentação última’ não deve, por
outro lado, ser pensada no sentido de uma dedução lógica, mas de uma ‘re-
flexão pragmático-transcendental’. Ela simplesmente faz menção ao alcan-
ce de pressupostos que não podem ser questionados sem ‘auto-contradição

191 APEL, 1991, p. 147.


192 APEL, 1991, p. 168.

110 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


performativa’, nem fundamentar-se dedutivamente sem o encargo de pe-
titio principii. Tudo o que for assim fundamentado, torna-se ‘imprescindí-
vel’ (nichthintergehbar), não porque provenha de uma autoridade absoluta
ou, então, em função de que a crítica acaba sendo subtraída, mas porquanto
poderia apenas aventar objeções por meio da argumentação. É isso que
toda argumentação pressupõe.193

Nesse sentido, a tese apeliana aparece interessante a partir do momento em que


se deseja fundamentar princípios éticos, que possam remeter às pressuposições últimas
do discurso argumentativo. Tais princípios determinam as condições de possibilidade e
validez do conhecimento e da ação. Como afirma Conill,

Este é o núcleo da recuperação transcendental da hermenêutica: a pos-


sibilidade de discernir a compreensão verdadeira e válida, recorrendo à
reflexão crítica do logos intersubjetivo, que não permanece sumida no ser,
porque tem a capacidade excêntrica de perguntar-se por princípios e crité-
rios intersubjetivamente válidos.194

Diante disso, é importante salientar que a atitude pragmática, assim configu-


rada, tem uma pretensão bastante limitada na compreensão do fenômeno ético, pois
somente justifica, de modo a priori, os enunciados éticos sem relação direta com as ori-
gens histórico-fáticas. Como afirma Apel, em sua parte A, as pretensões de validez dos
enunciados e dos argumentos e contra-argumentos racionais, utilizados pelos usuários
da linguagem, em uma situação ideal, são entendidos a partir de uma comunidade de
comunicação, nunca desde uma comunidade histórica e real. Isso não significa, como já
frisamos, que o último tipo de comunidade não exista e não seja relevante para o próprio
agir. Ao ter em mente o plano discursivo, deve-se também considerar que os enunciados
éticos, exigidos para agir na vida histórico-social, pressupõem assumir mediações que
não são suscetíveis de fundamentar. Por isso, a possibilidade de uma ação concreta de-
termina a reconfiguração de outros princípios complementares, que permitam elaborar
normas provisórias para interagir com situações contingentes e confusas. Todavia, nesse
terreno da ação histórica, já não é possível propor nenhuma utopia social concreta, por-
que é impossível estabelecer sua plena validade.

Os discursos práticos, que procuram colaborar na realização, a longo prazo,


das condições de aplicação, exigem uma imbricação com os elementos estratégicos dos
mundos de vida. Sob a óptica de Apel, a partir do princípio procedimental da argumen-

193 MALIANDI, 2002, p. 62-63.


194 CONNIL, 1988, p. 286.

Ricardo Salas Astrain – 111


tação, não é possível fazer derivar normas situacionais. Nesse caso, são exigidos outros
princípios de complementação, que permitam estabelecer as necessárias transformações
que o mundo sócio-histórico requer. A teoria pragmática, à maneira de Apel, fundamen-
ta princípios abstratos a priori e justifica princípios que permitam dar origem a normas
que possam ser aplicadas na prática. Porém, no nível das condições de aplicabilidade,
reclama a assunção das condições históricas e assumir os conhecimentos disponíveis
pelos especialistas. Portanto, é somente possível propor normas falíveis que não tenham
um valor incondicionado. Nesse horizonte, exige-se dar conta dos discursos morais his-
tóricos tais como existem na sociedade.

Críticas à ética do discurso de Apel


Em Apel, a ética do discurso assume e integra, todavia, as dificuldades da co-
municação histórica, ou seja, à comunicação que, efetivamente, existe nas comunidades
de vida. Desse modo, o aspecto central do debate com os pensadores latino-americanos
tratará de saber se uma teoria pragmática, centrada na justificação de uma comunicação
ideal, pode ser significativa para responder aos problemas éticos urgentes dos povos e
comunidades de vida da América Latina. Isso significa determinar o papel dos saberes
étnicos e populares. Por exemplo, saber qual é o papel relevante dos discursos históri-
cos que expressam as permanentes lutas pelo reconhecimento e o sentido que assumem
os movimentos históricos que resistiram à hegemonia assimétrica instalada, desde o
princípio de nossas histórias de negação. Nesse aspecto, parece que uma teoria ética, in-
capaz de definir critérios específicos para assumir as transformações sociais e culturais,
segue dando a impressão de permanecer em um terreno abstrato e ideal.

Em qualquer caso, quaisquer sejam os frutos reais deste diálogo filosófico-


acadêmico com Apel, esta ética realiza, do ponto de vista teórico, uma contribuição
relevante que nos interessa destacar. Nesse sentido, partilhamos com Fornet-Betancourt
o fato de que tal debate teórico contribuiu, poderosamente, para especificar o que cabe
entender por uma racionalidade contextual, expondo a relevância da ética discursiva
para o diálogo intercultural.195 Em outras palavras, os diálogos filosóficos Norte-Sul
permitiram idealizar os benefícios das posturas da filosofia alemã, na sua versão kantia-
na-hegeliana. Elas possibilitaram a confrontação com as éticas latino-americanas, arti-
culadas ou não à eticidade hegeliana (Sittchlickeit), no sentido de determinar o caráter
dos a priori específicos da vida moral e, ainda, avaliar as tendências da ética da alterida-
de modeladas nas categorias de Levinas. Nesse sentido, houve um avanço nos debates
teóricos que formam parte do projeto de uma ética discursiva, oferecendo elementos

195 FORNET-BETANCOURT, In: SIDEKUM (Ed.), 1994, p. 11.

112 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


centrais para a análise do discurso argumentativo no marco dos registros discursivos.
Com isso, ocorreu uma melhor rigorosidade no sentido de uma ética intercultural ade-
quada ao dinamismo dos contextos latino-americanos.

Em todo caso, é importante salientar que, na América Latina, a ética do discurso


de Apel recebeu outras avaliações, realizadas em torno ao vínculo entre universalismo
e particularismo.196 Em Arriarán, nos deparamos com um questionamento a respeito da
pretensão universalista, a qual esconderia um modelo de evolução social da racionali-
dade. Com isso, as sociedades latino-americanas permaneceriam vinculadas às etapas
convencionais, caracterizadas por “formas éticas dogmáticas e religiosas”, enquanto as
sociedades modernas européias estariam nas etapas pós-convencionais.197 Hinkelam-
mert, reconhecendo as contribuições da ética do discurso, não exita em questionar, de
modo especial, a crescente linha de progressão que permitiria passar da comunidade
real de vida à comunidade ideal de comunicação. Por isso, ele explicita as dificulda-
des encontradas para justificar um critério de verdade do que ele denomina a aproxi-
mação assintótica infinita. Essa questão é relatada na seguinte conclusão: “Com isso,
nega (Apel) a realidade fática como seu ponto de partida, embora parta, sem dúvida,
dela. Evidentemente, com isso a teoria se transforma em tautológica e desemboca no
solipsismo.”198 Diante disso, haveriam duas conseqüências: uma, a impossibilidade de
encontrar um critério de verdade que permita alcançar a validez das normas em cada
caso concreto do ser humano situacional; outra, que as idéias regulativas não permitem
assumir a contingência dos processos históricos na sua busca de realização.199

Por outro lado, Sobrevilla julga que, atualmente, não se deve supervalorizar a
importância da ética universal, pois as éticas etnocêntricas nacionais ou culturais pre-
valecerão por um tempo indeterminado.200 Michelini, seguindo a tese em torno da con-
flitividade de Maliandi, admite que a pragmática transcendental reclame um aprofunda-
mento do vínculo entre o consenso e o dissenso.201 Roig, por sua vez, destaca que não
haveria divergências relevantes com Apel, sempre que esta ética ajude a criticar o pen-
samento débil, atualmente em expansão, e sempre que a concepção do giro lingüístico
permita compreender a discursividade não como um simples exercício de compreensão
do sentido, isto é, que permita passar a âmbito do translingüístico.202 A maior parte das
dúvidas e críticas já citadas, poderiam ser re-situadas a partir de outras explanações, nas

196 MANSILLA, 1998, p. 228 ss.


197 ARRIARÁN, 1995, p. 50.
198 HINKELAMMERT, 1995, p. 239.
199 ACOSTA, 2003, p. 171-172.
200 SOBREVILLA, In: OLIVÉ (Ed.), 1993, p. 69.
201 MICHELINI, 1998, p. 124 ss e p. 146-147.
202 ROIG, 2001, p. 65- 66.

Ricardo Salas Astrain – 113


quais Apel buscou esclarecer suas próprias idéias. Ás vezes, é possível encontrar tam-
bém certa incompreensão das teses teóricas da fundamentação última de Apel.203

Em geral, é plausível insistir que este intercâmbio intelectual contribuiu po-


sitivamente. Ele possibilitou apreciar os avanços e a solidez das éticas baseadas na
eticidade que respondem à discursividade dos mundos de vida, nas quais se realiza a
vida dos sujeitos e comunidades concretas. Com isso, tornou-se mais fácil reposicio-
nar a necessária abertura universalista, exigida para compreender a conflitiva realidade
sócio-cultural latino-americana, em um mundo cada vez mais interdependente. Muitas
questões teórico-prácticas foram revisadas e debatidas: a redução da ética a uma comu-
nidade ideal de comunicação, os vínculos entre a primazia normativa da eticidade ou a
da reflexão transcendental e, de forma especial, as relações entre a ética da convicção e
a ética da responsabilidade, bem como das estruturas conflitivas da vida moral.

3. A teoria dos Quase-Raciocínios Casuais (QRC)


em Sirio López Velasco
Para conseguir dar uma resposta às categorias pragmáticas, consideradas chaves
para o projeto de uma ética intercultural com raízes latino-americanas, vamos realizar
uma breve síntese das propostas de López Velasco e Dussel. O modelo argumentativo
será relevante, de modo especial, naqueles filósofos latino-americanos que aceitaram
as premissas básicas do linguistic turn e, em particular, reflexionam em torno aos atos
de fala e do discurso argumentativo. Esse é o caso do filósofo uruguaio Sirio López
Velasco,204 que propõe uma análise minuciosa da lógica do discurso moral, de forma
mais específica, dos enunciados morais felizes, a partir de sua teoria dos Quase-Raciocí-
nios Casuais (QRC). Eles provêm de uma aplicação da teoria dos Atos de fala de Austin
e de uma recuperação do programa da dedução transcendental de K. O. Apel. Por meio
dos QRC, “estas expressões aparecem, agora, como capazes de pretender e alcançar a
validez intersubjetiva através da discussão racional.”205 Estes são os enunciados que se
preocupam, especificamente, com a ética da discussão, porque eles implicam em razões,
pelo qual eles podem ser discutidos argumentativamente.

203 Cf. MALIANDI, 2000, p. 63.


204 Cf. S. LÓPEZ. Ética para o século XXI. Rumo ao ecomunitarismo. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2003. Citaremos por sua primeira versão castelhana.
205 LÓPEZ, 1996, Volume I, p. 17.

114 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Os enunciados morais, à diferença dos enunciados éticos,

são imperativos simples, construídos em torno da forma ‘devo/devemos


x’, sem incluir uma justificação argumentativa, por exemplo, afirmar: ‘Li-
bera o pobre!’ ou ‘Devo dizer a verdade’. Não há nenhuma fundamentação
da obrigação que o falante auto-institui para si. Tais imperativos, em sua
forma ‘categórica’, estabelecem uma obrigação tão aparentemente firme
como debilíssima em suas bases de fundamentação. Na verdade, isso não
existente no ato lingüístico executado.206

A tese de López insiste, então, na idéia do raciocínio causal, no qual o enuncia-


do pode ser aceito racionalmente, porque existe um enunciado que ‘explique’ o porquê
de tal obrigação.

Através dos pressupostos da teoria lógico-pragmática do QRC, procura-se esta-


belecer, mediante a análise dedutiva transcendental – enquanto apoiado pelo condicional
–, uma série de normas dotadas de plena validez intersubjetiva. O QRC é “uma estrutura
formada com a ajuda do operador não-veritativo ‘porque’, e o que ocorre a esse opera-
dor é um ‘enunciado’, precedido por um ato dotado de outra força ilocucionária.”207 Em
outras palavras, a idéia central de López refere-se ao fato de que qualquer enunciado
ético encontra-se, efetivamente, composto por um obrigativo vinculado, através de um
operador, a um enunciado que pode ser verdadeiramente determinado. Por este meio,
qualquer enunciado ético pode ser, através deste operador, suscetível de ter validez ou
não.

O mais relevante desse projeto, que deriva as normas de modo lógico-transcen-


dental, está na permissão em definir a proto-norma da ética. Ela advém, segundo López,
da força ilocucionária da pergunta que devo fazer? E o formula da seguinte maneira:
“Devo fazer o que é condição da pergunta ‘Que devo fazer’, porque eu faço o que é
condição da pergunta ‘Que devo fazer’, condição de que eu aceite a pergunta ‘Que devo
fazer’.”208 Desta maneira, ela também apresentar-se como: “Assim, a Proto-norma (em
especial o obrigativo, compondo sua primeira parte) mostra-se como resultante de uma
ampliação transcendental da (de-)monstração dos elementos constitutivos da gramática
do verbo ‘dever’, quando ele forma parte de um obrigativo.”209 Nesse sentido, o aspecto
decisivo, para este tipo de ética argumentativa, é de sempre podemos salientar a pergun-

206 LÓPEZ, 1996, I, p. 13.


207 LÓPEZ, In: SIDEKUM, p. 198.
208 LÓPEZ, 1996, I, p. 18.
209 LÓPEZ, 1996, I, p. 20.

Ricardo Salas Astrain – 115


ta racional do porquê de uma obrigação. A idéia de uma justificação suficiente remete a
normas, que podem ser justificadas a partir de esta proto-norma.

Todas as outras normas necessárias da ética devem derivar-se da proto-norma,


fundamentada lógica e transcendentalmente, pois são as que definem a necessidade de
assumir um enunciado feliz, a partir de um condicional ‘porque’, o qual determina o deno-
minado Quase-raciocínio causal. Essas normas resultantes são, ao mesmo tempo, princí-
pios transcendentais, à medida que são deduzidos como condição da pergunta ‘Que devo
fazer?’ e, ao mesmo tempo, de um princípio deôntico-normativo fundamentador. As três
normas, possíveis de serem derivadas, são relativas à liberdade, ao consenso e à ecologia.

A primeira delas delineia o obrigativo ético fundamental: “Devo garantir minha


liberdade individual de decisão porque eu garanto minha liberdade individual de deci-
são é condição de a pergunta ‘Que devo fazer?’ é feliz.”210 Esse princípio constitui-se
no princípio moderno por excelência de um ideal da autonomia, permitindo questionar
todas as limitações à liberdade de decisão dos indivíduos.

A segunda proto-norma inclui todos os seres capazes de entender e formular


QRC. Ela se traduz da seguinte maneira: “Devo buscar consensualmente uma resposta
para cada instância da pergunta ‘Que devo fazer?’ porque eu busco consensualmente
uma resposta para cada instância da pergunta ‘Que devo fazer’ é condição de a pergunta
‘Que devo fazer?’ é feliz.”211 Nessa norma, desenha-se, claramente, o espaço possível
para a busca de um acordo consensual que permita responder à pergunta ‘Que devo/de-
vemos fazer’? Nesse sentido, a norma é fundamental para uma sociedade plural, pois se
trata de uma norma que responde à necessidade de estabelecer razões quando, no espaço
argumentativo, já não é possível apelar às meras convenções morais.

Por fim, é imprescindível explicitar a versão da norma ecológica: “Devo pre-


servar uma natureza saudável do ponto de vista produtivo porque eu preservo uma na-
tureza saudável do ponto de vista produtivo é condição de a pergunta ‘Que devo fazer?’
é feliz.”212 Essa norma remete, de forma especial, ao que torna possível o trabalho hu-
mano, definindo não apenas o que é o ser humano, mas seu instrumento e o resultado.
López pensa que essa norma não é suficientemente formal, porque admite determinados
elementos estratégicos e utilitários que não são susceptíveis de análises puramente ló-
gicas. Esse pressuposto nexo entre linguagem e sociedade, permite fazer uma última
elucidação a respeito da teoria dos QRC.

210 LÓPEZ, 1996, I, p. 23.


211 LÓPEZ, 1996, I, p. 29.
212 LÓPEZ, 2003, p. 144.

116 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


A teoria da QRC não é apenas uma teoria lógico-lingüística, que articula o pré-
vio ou o mais a frente da filosofia da linguagem de Apel. Trata-se de uma teoria que
pretende elaborar as categorias para a análise da realidade sócio-cultural e política do
capitalismo, porque discute, de modo especial, as condições históricos-materiais do ato
de argumentação. Desse modo, é possível construir, segundo López, uma proposta ética
universal, não apenas formal, mas de tipo histórico-social. Através dos QRC, busca-
se “a fundamentação da necessária superação do capitalismo, caso desejamos realizar
aquelas condições de forma universal (ou seja, abarcando todos os seres humanos).”213
Em outras palavras, o sentido dessa fundamentação lógico-lingüística pretende alcançar
um descobrimento transcendental, que estabeleça “uma seqüência de normas éticas pas-
síveis de orientar a análise e o posicionamento crítico-avalitivo da condição humana, em
especial, da vida na situação imperante de hoje.”214 Isso torna necessário que, segundo
essa teoria da derivação de normas, não se trata simplesmente de referir-se unicamente
às relações inerentes à linguagem intersubjetiva, pois supõe também relações do traba-
lho humano e, em particular, oferecer as bases de uma nova utopia social libertadora
que denomina ecomunitarismo. É possível entender que, ao estabelecer esse vínculo, há
uma superação da mera conformação da derivação de normas, possibilitando adentrar
nos contextos de vida, os quais se articulam com o âmbito histórico-social.

4. Dussel e a ‘ética da libertação’


em tempos de globalização e de exclusão
O modelo de uma ética argumentativa e da derivação das normas exigidas pelos
enunciados éticos não se reduz ao pensamento desse filósofo uruguaio, pois foi também
aprofundado na extensa obra de Enrique Dussel, na qual aparecem vários temas prag-
máticos já comentados por Sirio López.

A primeira questão fundamental, a ser constatada na obra de Dussel, conver-


gente com o aspecto destacado por López, relaciona-se à crítica da assimilação da ética
da libertação ao discurso ou à fala argumentativa. De fato, isso conduziria a uma ética
eminentemente formalista, que descarta o âmbito material da vida real, deixando de lado
a discussão de uma ética preocupada com os conteúdos da vida humana.215 Ao refle-
tir estas perspectivas críticas, fica claro que a perspectiva dusseliana se ocupa também
com a busca de uma fundamentação de princípios inerentes a uma ética universal, não
seja apenas válida para os contextos latino-americanos de vida. No entanto, ao analisar

213 LÓPEZ, 1996, I, p. 8.


214 LÓPEZ, In: SIDEKUM, 1994, p. 194.
215 DUSSEL, 1996, p. 42.

Ricardo Salas Astrain – 117


a proposta no plano unicamente da discursividade, dever-se-ia salientar que Dussel
critica o privilégio que a linguagem confere aos atos de fala, ou seja, à idéia de que,
através da linguagem, os participantes alcançariam, com seus ‘atos de fala’ (unidades
mínimas de significado), pretensões de validez universal (sentido, verdade, veracidade
e retitude). Além disso, Dussel postula que, assumindo tacitamente os pressupostos de
caráter normativo, não é possível demonstrar, em uma comunidade de comunicação,
a totalidade, pois não incorpora os excluídos e o Outro. Isso não significa afirmar que
a filosofia dusseliana não aceita, de forma alguma, a “ética do discurso” desenvolvida
pela pragmática apeliana.

Dussel também empreende uma tarefa ética, que aponta para reconhecimento
das culturas populares e indígenas. Ela é relevante para entender a história dos pobres e
das vítimas, mas isso não implicaria, de forma alguma, a aceitação a-crítica dos saberes
morais particulares. Diante disso, em determinadas ocasiões, ele aceita a consideração
positiva da hermenêutica histórica, no sentido que o “Outro oprimido e excluído não é
uma realidade formal vazia, mas um mundo repleto de sentido, uma memória, uma cultu-
ra, uma comunidade, um ‘nós-estamos-sendo’ como realidade re-sistente.”216 Trata-se da
possibilidade de um “des-cobrir-se en-coberto dos ignorados e afetados-negados, condu-
zindo a tomar-consciência do si mesmo positivo.”217 No entanto, o mais crucial refere-se
a esse primeiro passo no sentido de “des-cobrir-se a si mesmos (nós), porém como en-
cobertos.”218 Este é o valor do testemunho histórico e cultural de Rigoberta Menchú e dos
processos de libertação gestados pelo movimento indígena zapatista.

Para poder reelaborar de outra forma a interpretação dusseliana dos atos de


fala, é preciso considerar um discurso que, efetivamente, se abrisse ao outro, em uma
situação de assimetria. É nesse ponto que os atos de fala são reinterpretados, não tanto a
partir da compreensão da razão do outro, mas em um horizonte no qual se possa assumir
uma razão ética originária de tipo levinasiana, que nos abre à interpelação dos outros.
Para Dussel, o ponto central desta análise discursiva salienta que se deveria propor as
condições efetivas para alcançar uma comunidade de comunicação nas comunidades de
vida. Todavia, elas não podem ser encontradas como claramente dadas naqueles países
onde a incomunicação, a assimetria e a exclusão estão sempre presentes.

Dussel postula a necessidade de criar, primeiramente, as condições que assegu-


rem a interpelação do Outro e, em seguida, definir, a partir dessa exigência central, os
princípios universais que garantam a realização dessa obrigação. Para os sujeitos oprimi-
dos, o fundamental é, sem sombra de dúvidas, a manutenção da sobrevivência biológica.

216 DUSSEL, 1994, p. 156.


217 DUSSEL, 1994, p. 160.
218 DUSSEL, 1996, p. 160.

118 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Essa é a verdadeira condição de possibilidade da argumentação, de modo que não se trata
da “argumentação a referência irrefutável.”219

A teoria dusseliana, proveniente de sua inspiração levinasiana da Ética origi-


nária, permite-lhe definir, com clareza, a posição de ‘exterioridade’ “enquanto pobres e
em referência à totalidade hegemônica.”220 Por isso, é preciso partir de um pressuposto
completamente diferente do discurso puramente lingüístico. Assim, o discurso inter-
pelador, situado em um nível ético ou da razão prática, promove o re-aparecimento do
cara-a-cara de Levinas, no qual duas pessoas podem se enfrentar sem mediação externa,
exceto a lingüística, como sendo elas mesmas. Trata-se de um encontro na corporalidade
imediata de ambos, isto é, na proximidade.221 Isso acarreta que o ato de fala fundamental
para esse tipo de ética é o da interpelação, como sugere o enunciado: “eu te interpelo
pelo ato de justiça que deverias cumprir para comigo.”222

Em síntese, frente à ética do discurso de Apel, é possível salientar que, antes de


alcançar o nível pragmático-transcendental da parte A, “o sujeito reflexivo deve a priori
sempre pressupor que o outro foi reconhecido como pessoa.”223 Para Dussel, essa ra-
cionalidade ético-originária é anterior a qualquer argumentação e, portanto, prévia “ao
processo de transcendentalização e de fundamentação apeliano.”224 Em outras palavras,
o ponto incontestável da discórdia está na impossibilidade de, a partir da ética do dis-
curso, compreender o caráter de uma razão ética originária, como a propõe Levinas, a
qual pressupõe que as razões dos outros não podem ser apreendidas senão através de um
processo pelo qual o outro possa revelar-se. Em um longo parágrafo, Dussel sintetiza
isso da seguinte forma:

O outro se encontra mais adiante (transcendentalidade) do ser – uma tese de


Levinas e da filosofia da libertação. Nesse sentido, além da ontologia, como
transontológica, situa-se a ética (ou a ‘meta-física’, para Levinas) como
experiência racional do outro como outro (re-conhecimento). Assim, posso
evidenciar o horizonte de meu mundo e abarcar fragmentariamente aspectos
pragmáticos do Outro. O Outro pode revelar-se e fazer-se comunicável e,
através de uma mútua aprendizagem, podemos criar um âmbito comum
inteligível. Todavia, o Outro como sujeito, como centro de ‘seu’ mundo, como
história própria, jamais poderá ser abarcado completamente pelo logos.225

219 DUSSEL, 1996, p. 49.


220 DUSSEL, 1994, p. 58- 59. Cf. também SIDEKUM, 2002.
221 DUSSEL, 1994, p. 62.
222 Idem.
223 DUSSEL, 1996, p. 136.
224 DUSSEL, 1996, p. 138.
225 DUSSEL, 1996, p. 144.

Ricardo Salas Astrain – 119


Como é possível perceber, Dussel constata que não há como descobrir uma
razão diferente que, juntamente com Levinas, foi denominada como razão ética origi-
nária. Por isso, não é possível uma maneira racional de relacionar-se com a alteridade,
ou seja, uma razão distinta do outro, e não meramente diferenciada-na-identidade.

Esta concepção parece ser relevante para a ética que faz do diálogo intercultural
uma questão central, ou seja, que procura compreender as razões dos outros a partir de
princípios e normas materiais e formais originárias do mundo real dos oprimidos e das
vítimas do sistema-mundo – sem grandes possibilidades de participar plenamente em
uma comunidade de comunicação.

Para esclarecer o enunciado de interpelação, proveniente do mundo dos oprimi-


dos pelo sistema, Dussel destaca, no âmbito discursivo, o seguinte:

Por ‘interpelação’, então, entenderemos um enunciado performativo sui


generis apresentado por alguém que se encontra, com relação a um ouvin-
te, ‘fora’ ou, então, ‘mais além’ (transcendental neste sentido) do horizonte
ou do âmbito institucional, normativo do ‘sistema’ do Lebenswelt husser-
liano-habermasiano ou da Sittlichkeit hegeliana, desempenhada como a
‘totalidade’ de um Levinas.226

Todavia, isso demonstra que, no caso da interpelação do pobre,

dificilmente chega a formular corretamente, devido à evidente incompe-


tência lingüística – do ponto de vista do ouvinte. A debilidade está na pro-
nunciação foneticamente defeituosa, no não conhecimento da língua e, ba-
sicamente, no significado, em seu pleno sentido pragmático […]. Daí que
somente se confira uma quase inteligibilidade, quase comunicação, quase
interpretação do significado, o que nos coloca de guarda sobre a dificulda-
de real de qualquer comunicação e de suas imprescindíveis patologias.227

Na verdade, o pobre “se opõe, por princípio, ao consenso vigente e ao próprio


acordo conseguido intersubjetivamente no passado, porque foi excluído. Sua argumen-
tação será radical e dificilmente aceita de fato.”228

226 DUSSEL, 1994, p. 64.


227 DUSSEL, 1994, p. 68.
228 DUSSEL, 1994, p. 69.

120 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Nesse sentido, é importante frisar que a ética do discurso e a ética da libertação
não são, necessariamente, contraditórias ou, então, que se deva escolher entre uma ou
outra. É importante destacar que a obstinação central de Dussel, no nosso entender, foi
potencializar, a partir da controvérsia com Apel, os temas centrais de sua proposta, pré-
via ao debate com a ética do discurso. De modo particular, ele mantém o ponto de vista
de uma filosofia da libertação, delineada frente à necessidade de forjar princípios para
um discurso capaz de recuperar a voz silenciada dos pobres e dos oprimidos. Ele assu-
me, em um sentido vigoroso, a interpelação dos sem voz e da comunidade das vítimas.
Dussel enriqueceu sua teoria discursiva do outro através da incorporação da tese mar-
xista do trabalho humano e, de modo especial, a causa dos outros oprimidos. Trata-se,
assim, de elaborar princípios para uma perspectiva universalista de libertação, encarre-
gada de questionar todas as totalizações presentes em todas as culturas humanas.

A busca de um primeiro princípio ético, material-formal, permite sustentar as


normas ou os princípios fundamentais, como fonte de qualquer normatividade possí-
vel.229 Tal princípio é central em uma ética gestada para fazer frente ao grito, à interpe-
lação do pobre e ao silêncio do oprimido. Dussel concebe, portanto, que o Princípio-
libertação é o único princípio a partir do qual a ética da libertação pode justificar as
normas materiais. Isso implica na primazia da vida humana, pois é a partir dele que se
pode entender seu cumprimento como dever para todos. Para ele,

o ‘Princípio-Libertação’ formula explicitamente o momento deontológico


ou o dever ético da transformação como possibilidade da reprodução da
vida da vítima e, ainda, como desenvolvimento factível da vida humana
em geral. Esse princípio inclui todos os princípios anteriores.230

De fato, esse princípio, diferente da Proto-norma de López, não é fundamentado


apenas formalmente, mas a partir das exigências da ética material.231 Isso significa que
a racionalidade discursiva, implícita na ética de Dussel, não é puramente formal. Sem
dúvidas, “uma ‘razão discursiva’ ético-moral (não puramente formal, como na Ética
do discurso) subsume os ‘conteúdos’ éticos, os procedimentos ‘formais’ e se enfrenta,
subsequentemente, à ‘factibilidade’ prática.”232 É uma ética com um princípio e, si-
multaneamente, formal e material, ocupando-se, sobremaneira, das normas necessárias
para alcançar a transformação da sociedade globalizada atual, de forma a assegurar a
reprodução da vida humana.

229 DUSSEL, 1998, p. 184.


230 DUSSEL, 1998, p. 559.
231 Cf. DUSSEL, 1998, p. 202 e 213.
232 DUSSEL, 1998, p. 233.

Ricardo Salas Astrain – 121


Por isso, a questão não trata de extremar as diferenças essenciais com Apel, mas
destacar as teses de complementaridade entre uma e outra. Maliandi reconheceu pelo
menos três aspectos fundamentais: comunidade ideal de comunicação e comunidade de
vida; aproximar a interpelação da ‘razão do outro’ à interpelação dos outros; e, por fim,
a proximidade entre a refutação do ‘cético’ e a refutação do ‘cínico’.

No entanto, uma das características da ética do discurso diz respeito ao fato de


que ela não consegue problematizar, satisfatoriamente, a “inaplicabilidade das normas
morais fundamentais em situações excepcionais, enquanto que a Ética da libertação se
situa exatamente na ‘situação excepcional do excluído’, ou seja, no próprio instante
em que a ética do discurso descobre seu limite.”233 Isso indica que, em Apel, a lógica
procedimental é diferente da lógica meramente discursiva, pois “o que são, para a Ética
do discurso, ‘situações de exceção’ equivalem à aplicação, para a ética da libertação são
‘situações normais’ de resolução.”234

Essa crítica leva Dussel a des-construir as éticas edificadas no reconhecimento


da comunidade de vida. Para ele, Princípio-Liberação não conduz, de forma alguma, a
privilegiar os mundos de vida, porque, enquanto eles não assumam a crítica da aliena-
ção inerente, que lhes possibilita conceber freqüentemente o outro, como parte funcio-
nal de um sistema de opressão, não consegue senão escamotear o problema da opressão.
Sua unidade eticista pode conduzir a totalitarismos, que terminam sendo parte de uma
ética ontológica sem instrumentos críticos para assinalar a dominação e a exploração. A
objeção de Dussel à ética ontológica é assim apresentada:

em qualquer ‘mundo da vida’ sempre, necessariamente (ou nos encontra-


ríamos no sistema último, absoluto e sem futuro), há um outro, oprimido e
negado. Todavia, tal opressão é justificada através do bem, do fim (telos),
das virtudes ou dos valores como funcionalidade da parte, como não-exis-
tente enquanto pessoa ou, pelo menos como o não visto, o não descoberto
e o oculto (o escravo não humano de Aristóteles).235

Nesse sentido, a perspectiva de análise dos comunitarismos, emergidos no meio


norte-americano, passa a ser valorizada por Dussel, enquanto qualquer luta ou conflito
parte de uma determinada tradição, mas questionado por sua incapacidade de fazer uma
crítica radical à modernidade capitalista tardia. Nesse horizonte, refutando MacIntyre e
Taylor, Dussel não aceita que a vida boa seja o critério para assegurar a verdade e a va-

233 DUSSEL, 1994, p. 150.


234 DUSSEL, 1994, p. 151.
235 DUSSEL, 1994, p. 146.

122 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


lidade de um bem. Nesses dois autores anglo-saxões, as análises destacam a relevância
das tradições, embora corretas e necessárias, são, no entanto, insuficientes.

Ao indagar o lugar da impossibilidade para assumir plenamente a vida boa de


Aristóteles ou a eticidade hegeliana como critérios éticos, a questão se translada à críti-
ca radical ao etnocentrismo, presente em cada cultura. Assim, “em um mundo, em uma
cultura (porque toda cultura é, frequentemente, etnocêntrica), em um ethos etc., não se
pode sempre deixar de negar a priori o outro.”236 Disso se deduz que, necessariamente,
“o telos ou o bem de uma cultura, isto é, de uma totalidade, não pode ser o fundamento
último da moralidade dos atos.”237 Nesse sentido, o fato de propor uma transcendentalida-
de formal-histórica, evita cair nos inconvenientes hermenêuticos dos comunitarismos, de
modo particular, no perigo de precipitar-se nos relativismos e nos historicismos de certas
éticas culturalistas.

Nesse sentido, esta proposta não se ergue a partir da recuperação do sentido


cotidiano, nem do ethos comunitário, mas de uma instância crítica, que permite ques-
tionar, internamente, as diversas formas de opressão que foram internalizadas. Diante
disso,

a afirmação completa e positiva da própria cultura hoje, no sistema mun-


dial, é impossível sem dois momentos prévios: 1) o descobrimento da
opressão e da exclusão, que pesa sobre a própria cultura; 2) a tomada de
consciência reflexiva sobre o valioso do que é peculiar, mas que se inter-
põe, afirmativamente, como ato dialeticamente anteposto e em relação à
negatividade.238

A partir dessa perspectiva, Dussel sustenta a possibilidade de fundamentar o


critério e o princípio material da ética, existente no seio de cada cultura, embora seja
possível questioná-los a partir de dentro. Diante disso, é possível concluir que Dussel
aceitaria, apenas em parte, a hermenêutica histórica. Todavia, ele faria objeções à ética
vinculada aos processos de simbolização e de discursividade dos sujeitos históricos, ine-
rentes, de certo modo, nas teorias da eticidade, porque não haveria como sustentar um
critério e um princípio válidos intersubjetivamente para questionar plenamente a dialéti-
ca da opressão. Na verdade, para Dussel,

236 DUSSEL, 1994, p. 146.


237 DUSSEL, 1994, p. 147.
238 DUSSEL, 1994, p. 153.

Ricardo Salas Astrain – 123


sem esta relação, explicitamente descoberta, nos precipitamos, necessaria-
mente, na ontologia ambígua, não ética, sapiencial porém não crítica, uma
eticidade concreta (Sittlichkeit, Lebenswelt), sem critérios de libertação.
Na realidade, caímos outra vez na hermenêutica ricoeuriana pré-liberta-
dora.239

Ainda que, neste plano, a crítica seria muito mais forte contra as teses cultu-
ralistas da eticidade, porque uma “sabedoria afirmada ingenuamente como autônoma
(estando concreta e historicamente reprimida, destruída em seu núcleo criador, sendo
marginal e dificilmente reproduzível, ignorar estes fatos seria cair em uma ‘ilusão’.”240

5. Recapitulação
A ética do discurso, no modo apeliano, parece que pode persuadir as filosofias
críticas latino-americanas ao centrar sua discussão no idealismo contra-fático, quando
o relevante seria introduzir as condições que assegurem ser possível desenvolver um
diálogo simétrico. Por isso, o esforço do ecomunitarismo de López é relevante, porque
pretende definir uma estrutura lógico-argumentativa dos enunciados, sem descuidar do
vínculo desta teoria da QRC com as condições sociais e históricas de nossas comuni-
dades de vida. Com relação às teses em torno da fundamentação lógico-lingüística dos
enunciados éticos de López Velasco, parece ser crucial tentar determinar a estruturação
dos enunciados obrigacionais, como um caminho para esclarecer os enunciados que
podem ser discutidos racionalmente, em uma sociedade moderna plural. Sem dúvida,
afigura-se deveras possível que, a partir dos pressupostos lógicos, seja factível elaborar
uma proto-norma, que destaca o caráter obrigatório de qualquer enunciado que trate
do que ‘devo/devemos fazer x’. Essa proto-norma é, sem dúvida, de caráter formal,
e pode constituir-se na discussão da base lógica da reflexividade dos obrigacionais
nas diversas línguas conhecidas, ou, ao menos, que deve demostrar-se para as línguas
conhecidas atualmente. No entanto, a aproximação das ciências é fáctica ou a priori.
Desse modo, subsistiria a dificuldade de se os princípios e normas derivadas têm, ne-
cessariamente, que ver com a derivação puramente formal, ou, então, se reivindicam,
necessariamente, a assunção do caráter incoativo dos contextos culturais. Ao que pa-
rece, a introdução, sobretudo, de uma norma ecológica, como reconhece o próprio
autor, garante o assentamento em um terreno concreto da atividade humana, a qual é,
claramente, de índole material e não formal. Mesmo assim, isso suscita, contingente-

239 DUSSEL, 1994, p. 154. Cf. a crítica de Roig à ‘ética da libertação’ de Dussel atravé da
interpretação mística do ‘rosto do pobre’, in: ROIG, 1993, p. 208.
240 DUSSEL, 1994, p. 155.

124 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


mente, as possibilidades de um diálogo intercultural e de uma compreensão cultural
das necessidades humanas.

Por outro lado, é louvável o esforço teórico de Dussel, pois apresenta um senti-
do normativo, à medida que a precariedade da vida humana dos excluídos dos sistemas-
mundo não pode ser completamente defendida, através da justificação de um princípio
formal transcendental. Em um marco dusseliano, é consistente assumir a justificação de
um princípio material, que, a partir de dentro de todas as culturas, permita questionar a
exclusão dos sistemas dominantes. Dussel acredita conseguir fundamentar, histórica e
formalmente, uma ética com um critério e princípio material, a qual consegue respon-
der, de forma crítica, à situação do oprimido e de seu projeto de libertação histórica,
invocando um principio material. Porém, parece que as articulações entre a ordem da
simbolização, inerente à eticidade, com a ordem da reflexividade, não resultam facil-
mente visíveis.

A elaboração da complexa proposta ética de Dussel deve ser entendida, justa-


mente, como uma formulação hermenêutico-pragmática dos discursos morais históricos
e argumentativos. De fato, isso permitirá sustentar que a ordem normativa se articula
através dos contextos a-simétricos. A fundamentação última de um princípio formal-
-material apresenta índole universal. Enfim, esquivando as diversas formas da eticidade
concreta – por não serem, em geral, críticas – e deixando de lado os registros discursi-
vos, próprios de uma ética do discurso, não se pode articular, adequadamente, o cami-
nho de reconstrução libertadora de cada uma das culturas. A partir de nosso enfoque,
que não poderá ser, consequentemente, qualquer modalidade de moral argumentativa a
que pode responder a um princípio de exterioridade. Na verdade, o diálogo intercultural
pressupõe estar situado a partir de um princípio universal, do qual todas as eticidades
culturais podem ser teoricamente questionadas. Embora haja uma ênfase de que esse
princípio crítico seja universal, as formas em que é assumido pelas diferentes culturas
não permanecem suficientemente expressas, pois, em cada uma delas, se encontram
explicitamente indicados os diversos graus de produtividade da subjetividade.

De fato, continua evidente a dificuldade em assimilar das teses da ética da liber-


tação de âmbito discursivo. Essa é a enorme dívida que o pensamento dusseliano deve
pagar com a posição levinasiana do outro. A tese de uma razão originária leva-o a assu-
mir a atitude interpelante do Outro em um contexto trans-ontológico e trans-histórico e,
em seguida, a fazer uma opção por reelaborar sua proposta ética formal e material, que
requer historificar todos os processos de simbolização e de narratividade, através do que
expressa a reflexividade intersubjetiva.241

241 FORNET-BETANCOURT, 2002, p. 200-203 e p. 214.

Ricardo Salas Astrain – 125


Nesse sentido, parece que, tanto na perspectiva hermenêutica como na perspec-
tiva pragmática, a questão central continua sendo a elaboração de uma peculiar teoria,
capaz de explicar e compreender a produtividade normativa presente na contextualidade
latino-americana. Por isso, a “complexa rede de tradições culturais, de muitas e dife-
rentes origens e com tantas e distintas projeções, exige o compromisso de nivelar as
diferenças e, inclusive, ir além de em um confuso denominador chamado ‘mestiçagem
cultural’.”242 Em outras palavras, essa ética, definida através do ato de fala da interpela-
ção, apresenta-nos uma importante diretriz: que os contextos culturais a-simétricos con-
têm discursividades em conflito, os quais designam aspectos diferentes da ética do dis-
curso de Apel. Eles permitiriam avançar na linha das mediações contextuais, pertinentes
aos registros discursivos dos mundos de vida. Em efeito, não apenas as discursividades
narrativas apresentam as indicações para compreender o discurso dos outros, ausentes no
diálogo de nossos países. Por isso, é preciso avançar na direção da detecção de atos de
fala capazes de dar conta das diversas formas de in-comunicação e exclusão do diálogo.
Essa é a realidade que caracteriza os países destas terras, onde os sem voz e a cultura do
silêncio, como Freire a denominava, marcam os espaços comunicativos reais.

Em resumo, as duas éticas argumentativas aparentam voltadas a encontrar a ques-


tão da universalidade e da contextualidade. Nos dois casos, é possível encontrar razões
convincentes para recusar a teoria dos atos de fala que dissocie as diversas formas dis-
cursivas geradas nos mundos de vida em histórias a-simétricas. Talvez não seja tão claro
que, o problema do diálogo intercultural, possa ser resolvido através da primazia da teoria
lógico-argumentativa da normatividade, presente nas obras dos dois autores resenhados.
Sem dúvida, é preciso esboçar outras formas de mediação crítico-reflexivas, capazes de
articular os princípios a processos de sentido capazes responder à normatividade trazida à
tona e evidenciada pela eticidade dos mundos de vida. Nesse caso, será que as mediações
discursivas, como espera Ferry, podem contribuir a esboçar uma alternativa que articule
os registros discursivos dos diferentes níveis? Será possível, então, realizar uma mediação
do sentido entre teorias lógico-argumentativas com uma teoria hermenêutico-histórica?

No nosso ponto de vista, a idéia de uma derivação lógica das normas, que fazem
alusão aos enunciados obrigativos, é uma contribuição relevante, a qual complementa a
teoria apeliana. De fato, ela possibilitaria estabelecer pontos de contato mais próximos
entre a parte A e a parte B. No entanto, não há como perceber, de um modo claro, se é
possível conseguir fundamentar todos os enunciados, exigidos pelos sujeitos para argu-
mentar e contra-argumentar, a respeito de tudo o que seu agir requer, diante de situações
mutáveis de um capitalismo, o qual apresenta novas iniqüidades à vida humana e gera
difíceis vicissitudes diárias para as comunidades de vida.

242 FORNET-BETANCOURT, 2002, p. 278.

126 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Nosso esforço procurou salientar que o giro pragmático, além de circunscrever
os atos discursivos, enfatiza também ao fato de que todo interlocutor consagra um vín-
culo intersubjetivo com outro, a partir de uma linguagem que define as condições para
a compreensão mútua. Esse vínculo restabelece, novamente, as dimensões da reflexivi-
dade e, de modo especial, evidencia que tal reflexividade está vinculada a um agir que
busca consensos racionais de acordo com os melhores argumentos. A questão central
dessa ética seria o vínculo entre discurso e validez, o que permitiria situar as teorias de
López Velasco e de Dussel no âmbito das éticas racionais de tipo cognitivo.

Em contrapartida, é manifesto que a interpretação dos atos de fala, encontrada


nesses dois pensadores, mesmo reconhecendo as incontestáveis diferenças entre eles,
se vinculada a uma forma de entender a ética, não unicamente a partir de sua estrutura
lógico-argumentativa, mas da interpelação dos sujeitos e das comunidades humanas, em
seus reais contextos históricos.

Apesar da multiplicidade de tonalidades assumidas pelas éticas, com inspiração


na matriz pragmática, é possível salientar os aspectos comuns entre elas. Vejamos:

1. As normas regentes da ética seriam definidas por meio de um procedimento


principalmente deôntico, fundamentado em uma proto-norma ou princípio universal, da
qual poderiam derivar outros critérios para justificar os obrigativos.

2. As normas universais são derivadas, lógica ou reflexivamente, da estrutura-


ção discursiva imputada a toda a humanidade, em particular dos excluídos do sistema
capitalista.

3. As normas são circunscritas frente, fundamentalmente, a um interesse eman-


cipador, definido em termos de que não exista jamais dependência nem alienação para
ninguém no planeta.

4. As características destacadas previamente são específicas de uma ética uni-


versalista e, em certo sentido, transcendental.

5. O principal problema, inerente a este tipo de ética de índole pragmática,


encontra-se na dificuldade de aceitar a articulação do momento reflexivo-crítico, exis-
tente entre os registros discursivos próprios do nível da eticidade e dos mundos de vida,
a ponto de tornar a mediação com os discursos morais, baseados em enunciados norma-
tivos, nitidamente, mais complexa.

Ricardo Salas Astrain – 127


CAPÍTULO IV

ÉTICA DISCURSIVA
E DIÁLOGO INTERCULTURAL

1. Aspectos introdutórios
O capítulo anterior exibiu as categorias pragmáticas, gestadas no pensamento
latino-americano, através do diálogo e do debate com a ética do discurso, especialmente
com Apel. Essa idéia nos oferece precisões e destaques que nos levarão a estabelecer
critérios básicos imprescindíveis para oferecer uma ética intercultural, sem provocar a
dissociação dos registros discursivos, nem a ruptura entre a ordem contextual e os enun-
ciados normativos universais.

É possível entender que, na perspectiva mencionada, não há, de forma algu-


ma, uma redução dos problemas éticos às questões discursivas, pois percorremos um
caminho que mostra em que sentido o âmbito da discursividade remete a determinadas
dimensões fundamentais da experiência moral. E, ainda, como as formas simbólicas
originadas na eticidade, necessariamente, se abrem às formas discursivas que a argu-
mentação e a reconstrução supõem; ambos são discursivos racionais. As funções dis-
cursivas respondem a um componente essencial de uma ética intercultural, denominada
como reflexividade em seus diversos níveis, desde um nível pré-reflexivo até um nível
reflexivo racional.

É possível que, nessa perspectiva, a questão central seja: em que sentido o abran-
gente âmbito da discursividade remete a um conglomerado de aspectos valorativos e
normativos que configuram as dimensões fundamentais originadas na eticidade? Será
possível mostrar o processo discursivo em que os registros narrativos se abram aos dis-
cursos racionais? A justificação de uma consideração filosófica intercultural exige ex-
plorar, então, a forma de imbricamento que as funções discursivas abrigam, desde seus
níveis básicos até os mais complexos. Desse modo, um conceito essencial para a ética
intercultural ganhar destaque recebe o nome de reflexividade presente em cada cultura,
cujas pistas se pode seguir, como já foi destacado, através de suas expressões discursivas.

128 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


A leitura das categorias elaboradas no marco das contribuições latino-america-
nas, a hermenêutica e pragmática, levam a apoiar uma teoria da reflexividade moral que,
de modo algum, implica na sustentação de uma tese ontológica integradora de todas as
formas culturais específicas da linguagem humana. Na verdade, trata-se de um enfoque
epistemológico que facilitaria a construção de uma metodologia capaz de articular, re-
construtivamente, de um modo muito mais complexo, os discursos em que os fenôme-
nos morais se enunciam e se expressam.

As divergências existentes entre as categorias hermenêuticas e pragmáticas,


mostradas nos capítulos anteriores, dizem respeito a uma ética discursiva intercultural,
ao menos tal como foi definida, porque auxiliam na compreensão do porque o deline-
amento ético e moral das culturas humanas evita o afastamento da situação em que se
realiza a ação e se abre a imprescindível busca de uma universalidade. Sem dúvidas, a
integração das formas discursivas, que as eticidades das heterogêneas culturas latino-
-americanas expressam, as levam a impulsionar a abertura à universalidade. Esse é o
aspecto inicial do programa de uma ética intercultural, porque oferece os processos
constitutivos do sentido necessários para entender as condições do diálogo entre formas
de vida assimétricas. A eticidade não é concebida, então, como algo substantivo, mas
como a dimensão comunitária na qual se resguardam as possibilidades de ser mencio-
nada, em uma primeira instância, como experiência do humano, porém sempre aberta a
outros marcos discursivos.

Nesse aspecto, a pretensão é assumir uma proposta teórica próxima, ao mesmo


tempo, do contextualismo hermenêutico, no qual a pertença seja a base de qualquer
reflexão moral posterior, e ao universalismo, que exige uma distância das raízes pri-
mordial. Essa parece ser a forma de assumir as tensões específicas de uma crise da
modernidade. As duas dimensões podem ser articuladas com propriedade. A questão é
encontrar um proceder adequado para incrementar a distância intercultural conveniente,
que permita apreciar a discursividade moral. Talvez a problemática da interioridade e da
exterioridade se relaciona claramente, nessa nossa ótica, com uma nova noção de uma
justiça intercultural,243 às formas de dominação e opressão existentes nas culturas. Nesse
sentido, Arpini nos indica que “as objetivações da razão prática – leis, costumes, insti-
tuições – não poderiam ser entendidas desvinculadas de seu contexto sócio-histórico em
que são produzidas. Elas surgem da conflitiva dinâmica da vida cotidiana.244 Por isso,
o âmbito da moralidade admite um procedimento que ultrapasse as eticidades vigentes.

243 BOHORQUEZ, www.polylog.org e JERVOLINO, www.ifil.org


244 ARPINI, 2000, p. 26.

Ricardo Salas Astrain – 129


No entanto, tal criticidade requer o entrecruzamento com os diversos níveis
discursivos, podendo ser concebida como um valor operante nas culturas e nas diversas
formas de resistência às culturas hegemônicas. Ela também pode ser entendida na forma
de uma norma extraída a partir de um modelo universalista. Pelo que já foi dito, essas
formas de justificação ou de fundamentação de princípios, constituidores de programas
teóricos de dedução de normas, não podem ser totalmente desacopladas dos valores
que emergem a partir dos contextos – a exigência de justiça é parte de uma vida de
realização. Por isso, uma razão prática, capaz de assumir o ponto de vista intercultural,
necessita abrigar ‘as razões dos outros’, sem que isso signifique sucumbir em um con-
textualismo radical. A teoria dos registros discursivos permite conformar os processos
de validação que operam dentro e fora de uma cultura, ao considerar que eles operam
como matrizes reflexivas e críticas. A seguir, passaremos a considerar alguns aspectos
de uma teoria da discursividade neste terreno intercultural.

2. A discursividade e o inter-logos
É plausível afirmar que os enfoques, destacados nos dois capítulos anteriores,
apresentam vitalidades e debilidades. A atitude hermenêutica é forte justamente no ter-
reno em que as teses procedimentalistas apresentam dificuldades em mostrar os pro-
cessos de aplicação das normas aos contextos. Os valores aprendidos pelos sujeitos
nos mundos de vida são parte de sustentáculos simbólicos e narrativos, com os quais a
argumentação, que responda às exigências dos contextos, deve contar. De certo modo,
isso já está demonstrado no atual pensamento latino-americano. Nesse sentido, Miche-
lini afirma: “Por isso, quando discutimos seriamente é porque queremos resolver algum
problema do mundo da vida. Não se trata, portanto, de contrapor artificialmente a vida
à argumentação, o viver ao argüir…”245

Não seria possível entender, então, um discurso moral contextualizado a partir


do simples recurso a uma dedução que justifica, a partir de princípios racionais e for-
mais, as normas concretas que devem reger a ação dos sujeitos. Em outras palavras,
reivindica-se um passo a mais, no sentido de assumir a questão mais profunda em re-
lação aos procedimentos para a mediação de conflitos, exatamente porque eles não se
realizam nunca desde um terreno neutro, nem contrafático, na medida em que buscam
evitar as dificuldades da in-comunicação. Nesse sentido, a ética intercultural enquanto
ética discursiva acolhe a proposta procedimental da pragmática, uma vez que a indi-
cação pragmática elementar de que todo discurso intersubjetivo exige o delineamento
de razões. No momento de resolver os conflitos inerentes ao agir em seus contextos, é

245 MICHELINI, 2002, p. 122.

130 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


imprescindível determinar a validez a priori universal em torno de como, um processo
essencialmente argumentativo e universal, possa estar conjugado às regras concretas.
Portanto, no terreno das relações humanas, é-lhe exigido um tratamento razoado, o qual
deve ponderar e incorporar o maior número de envolvidos. Todavia, isso exige que as
razões não sejam definidas a partir de uma visão deformada da racionalidade hegemô-
nica. As razões aqui referidas não são as inerentes a um sistema monocultural, mas
configuradas a partir de práticas reflexivas associadas às diversas formas discursivas
operantes em cada cultura.

A definição das condições discursivas, inerentes a um autêntico diálogo inter-


cultural, exige penetrar particularizadamente, com mais especificação, a respeito daqui-
lo que já foi formulado com as ‘razões dos outros’, o que não pode ser assegurado nem
na ótica de um contextualismo radical, muito menos na de um universalismo radical.
Na verdade, o primeiro se fecha nas formas discursivas do particularismo de um ethos;
o outro, exagera o discurso argumentativo como o ideal de um cosmopolitismo a-histó-
rico, presumindo o triunfo da razão formalista sobre a ‘razão vital’.

Nesse horizonte, é mister assegurar o contrário, pois a atitude pragmática, que


justifica um princípio ou meta-norma universal, apresenta, de fato, possibilidades de
triunfar onde a hermenêutica mostra uma clara dificuldade. As normas, que asseguram
um tratamento eqüitativo a todos os homens e mulheres de todas as culturas, exigem um
levantamento de critérios fundamentador dos contextos do agir. Eles podem ser meta-
contextuais ou intra-contextuais. Os primeiros fazem alusão às práticas de compreensão
‘entre culturas’, enquanto os segundos dizem respeito às práticas de compreensão no
interior de nosso modo de vida. As duas não conseguem definir os procedimentos que
estabelecem os critérios reguladores comuns. É necessário recuperar a forma procedi-
mental, todavia não é consistente desvinculá-la dos contextos de vida, que são o hori-
zonte onde se articulam as ações dos sujeitos. Na nossa perspectiva, os procedimentos
surgem através do dinamismo operativo dos próprios registros discursivos; é, particu-
larmente, a partir deles que a dinâmica do sentido aberto a universalidade consegue
operatividade. Portanto, os procedimentos devem ser articulados às formas reflexivas
operantes em cada cultura.

A moralidade pragmática permitiria precisar as condições lingüísticas que to-


dos os interlocutores utilizam ao desejarem, efetivamente, entender-se para conseguir
acordos que respeitem as próprias especificidades. Esse seria o autêntico diálogo inter-
cultural:

Apenas se aquilo que pertence à cultura considerada como superior trans-


cende sua cultura a partir de dentro, relativizando-a, e nunca a conside-

Ricardo Salas Astrain – 131


rando previamente como parâmetro, é possível estabelecer um diálogo
intercultural realmente simétrico e simbiótico. No entanto, nesse caso, o
diálogo será constituinte para ambos, não somente para o da cultura po-
pular.246

Na verdade, a ênfase na conciliação destas duas propostas hermenêuticas e


pragmáticas pretende demonstrar um nexo irretocável, através do que as duas são com-
plementárias. Ao conseguir demonstrar isso, será, então, possível alcançar, de forma
consistente, uma teoria da razão ético-prática que ajude a compreender e compartilhar
as ‘razões dos outros’, em um autêntico diálogo intercultural. Estas razões requerem
articular-se como parte de uma atividade hermenêutica e, ao mesmo tempo, de uma
atividade pragmática. No âmbito hermenêutico, ela trata da compreensão das atividades
expressivas e significativas dos mundos de vida, particularmente por seu esforço de
contextualização dos símbolos, textos, discursos, narrações presentes nos diversos su-
jeitos e comunidades. O aspecto pragmático salienta a necessária validação de um tipo
de linguagem, capaz de assegurar enunciados válidos que possam ser confrontados e
cujos resultados fiáveis não se referem apenas a uma comunidade de vida.

O diálogo intercultural, que pressupõe a aceitação das ‘razões dos outros’, pre-
sume aceitar, então, que a reflexividade humana não seja algo exterior aos processos
produtivos dos contextos. Essa reflexividade reaparece operante internamente, através
da articulação das formas discursivas, exigindo a aceitação dos acordos essenciais sobre
as regras e procedimentos. Esse nexo entre reflexividade contextual e processos de me-
diação normativos não pode ser estritamente determinado de acordo aos usos específi-
cos de cada cultura, pois isso não asseguraria o entendimento de alguém com os demais,
de modo especial entre aqueles que não compartilham os mesmos mundos de vida.

Essa idéia requer, necessariamente, uma crítica ao contextualismo em sua in-


terpretação mais radical, que rejeita a abertura às formas discursivas dos outros. Em
efeito, a interconexão alternativa representa sempre uma mera imposição definida pelas
culturas mais poderosas. Já foi salientado que, a par deste contextualismo radical, seria
necessário questionar seriamente a ousada forma de entender a incomensurabilidade das
culturas, o que impediria aceitar, ao menos hipoteticamente, a possibilidade de chegar a
definir formas procedimentais compartilhadas por sujeitos que mantêm raízes distintas
aos contextos valorativos e normativos. Nesse sentido, é preciso que a própria teoria
dos atos de fala, que deu origem à discussão em torno à heterogeneidade dos discursos,
retome a questão central da linguagem, privilegiada para enunciar tal heterogeneidade.
Como salienta Wittgenstein, é correto afirmar que existem regras apropriadas aos jogos

246 TRIGO, 2002, p. 74.

132 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


da linguagem. Não significa assegurar que, entre elas, não exista nenhuma possibilidade
de convergências que permitam passar de uma a outra, mas admitir ao menos reconhecer
as regras que lhe são necessárias para tornar um discurso significativo. Aqui, resultará
relevante o modelo da tradução, delineado a seguir.

A hermenêutica e a pragmática do discurso dão conta da mútua ação intersubjeti-


va intercultural. Elas asseguram a possibilidade de uma compreensão mútua, não a partir
do conjunto cultural de códigos discursivos, preferentemente racionais e críticos, mas ao
esforço de um inter-logos que sugira a indissociabilidade de dois ou mais conjuntos de có-
digos discursivos. Isso poderia ser denominado como o autêntico diálogo intercultural.

O diálogo intercultural é aquele que não se precipita rapidamente a uma con-


ciliação apressurada, no sentido de anular as diferenças entre os registros discursivos
(sustentar que existem as mesmas regras universais para todos os discursos). Não se tra-
ta, pois, do tipo de diálogo que se limita a reconhecer as efetivas dificuldades existentes
na comunicação entre seres humanos que conformaram diferentemente seus mundos
de vida, porque as regras dos registros discursivos são todas diferentes. Esse diálogo
concebe uma modalidade mais comedida, no sentido de entender os outros a partir das
próprias articulações discursivas, pois implica sustentar que, no exercício para alcançar
as razões dos outros, existe sempre uma mediação da articulação dos registros em que
os sujeitos se identificam. O diálogo intercultural é aquele que colabora com a difícil
arte de compreender os próprios processos discursivos, o que não pode nunca ser feito,
de maneira clara, sem o apoio dos outros. Ele se ocupa do ideal moral de con-viver com
outros, no respeito às distintas maneiras de viver, assegurando uma vida moral plural,
de modo a exigir o re-conhecimento das regras discursivas. Esse esforço teórico exige
definir a dinamicidade dos processos discursivos que forjam os reconhecimentos recí-
procos. Trata-se, então, de um diálogo universal e contextual, assumindo as dificuldades
históricas da convivência humana, abarbado de a-simetrias e de discriminação.

A ética, elaborada a partir dessa forma dialogal, se abre pragmaticamente sobre


determinadas atitudes, que as tradições sapienciais podem chamar excelência ou virtu-
de. Para dialogar, é preciso desenvolver a atitude inicial de desaprender para aprender
dos outros, evitando sua prévia desqualificação como seres ‘ignorantes’. Isso exige,
ainda, inclinar-se a desenvolver as atitudes de escuta efetiva e da razoabilidade do
caráter das opiniões dos outros. É uma ética não fechada sobre a eticidade de uma sabe-
doria particular, mas de uma sabedoria entendida como uma visão de um ordenamento
que sobrepassa a subjetividade pessoal e comunitária, no sentido de gerar um diálogo
verdadeiro, que somente pode ser forjado a partir da reflexividade universalmente mais
abrangente. Essa ética procura evitar a deterioração da vida social, de modo que pro-
pende à resolução de conflitos e impede a justificação dos poderes hegemônicos, dos

Ricardo Salas Astrain – 133


conglomerados culturais mais poderosos e, em particular, seu infame recurso à força e
à violência para estabelecer a opinião corretamente ‘vitoriosa’. O diálogo, assim enten-
dido, é o único que pode assumir a seguinte pergunta fundamental:

Como afastaríamos o conflito da violência se não houvesse a esperança


de que sua transformação ao âmbito da palavra seria suscetível de alcan-
çar um consenso que, embora não fora acessível de imediato, permitiria,
ao menos, reconhecer os desacordos racionais, isto é, alcançar um acordo
sobre o desacordo.247

O pensamento latino-americano já destacou o problema dos acordos discursi-


vos simétricos e assimétricos. Maliandi enxergou muito bem a dificuldade, que surge
na teoria do discurso, quando se trata de resolver conflitos de opiniões práticas. Isso
porque o pressuposto elementar se relaciona com a enorme dificuldade de alcançar
um diálogo entre iguais, em países marcados pela iniqüidade e pelo predomínio de
perspectivas unilaterais de conceber a realidade, que facticamente deve existir, em des-
medro de outras que foram infra-valoradas e rechaçadas. Este litígio se centrou, então,
na questão da alteridade e nas formas possíveis de compreender os outros. A questão
epistemológica é uma das dimensões desse debate, que aponta à questão hermenêutica
da compreensão do outro.

A compreensão e as razões do outro


Em nossa opinião, o debate entre Apel e a filosofia latino-americana foi dando
a adequada importância ao problema epistemológico em torno da ‘compreensão do ou-
tro’, porquanto expõe a difícil questão de reconhecer os limites da própria racionalidade
cultural. Em palavras de Apel, isso concerne à questão de saber até que ponto a própria
forma de vida condiciona a ‘pré-compreensão do mundo do outro’. Ele sustenta, de
modo explícito, que:

no caso de formas de vida diferentes, o ‘outro’ é o sujeito de outra consti-


tuição de sentido do mundo. Todavia, isso não significa que a compreensão
do ser do outro seja distinta da própria compreensão do ser. A pergunta
pelas condições de possibilidade do compreender válido só tem sentido se
se pressupõe a identidade de uma e a mesma razão nos ‘outros’ e em nós
mesmos.248

247 RICOEUR, 2001, p. 284.


248 APEL citado por MALIANDI, 1996, p. 155.

134 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Essa tese apeliana pode ser entendida de dois modos distintos: como uma tese
ontológica ou, então, como uma tese epistemológica. No entanto, parece que a última é
a que resulta mais prometedora para o tema em debate. Caso alguém acolha resultados
da hermenêutica contemporânea, supostamente pode ocorrer em uma incompreensão,
ou numa compreensão parcial. Todavia, não existe, na atividade compreensiva, uma
ruptura radical com o outro. O desconhecimento total do outro se expressa na sua elimi-
nação simbólica ou física, como se observa nas formas extremas das lutas xenofóbicas
envolvidas na destruição da compreensão.

Para dizer de outra forma, é possível utilizar o vocabulário ricoeuriano: existe


uma mediação, ou seja, uma dialética entre o momento de pertença e o momento de
distanciamento. Na verdade, compreender, em um marco da hermenêutica crítica e, prin-
cipalmente, se é intercultural, significaria ter ambos os momentos enlaçados, pois eles
se condicionam mutuamente. No terreno intercultural, dever-se-ia aceitar que a razão,
tal como é formulada pela semiótica transcendental, não pode ser entendida como dando
conta apenas da razão humana. O próprio Apel encarregou-se de mostrar as diferentes
formas de racionalidades que, atualmente, operam ao interior do mesmo projeto da ra-
zão. Por isso, o que é preciso entender como ‘razão discursiva’ deveria de ser entendido
no sentido da hermenêutica crítica, anteriormente mencionada, isto é, tanto como um
processo de constituição do sentido de uma vida e de um conjunto de práticas significa-
tivas para o próprio mundo de vida, como, eventualmente, para os outros.

No entanto, é preciso distinguir entre o compreender um outro no interior de


meu mundo de vida – e que compartilha aspectos relevantes de minha própria matriz
discursiva cultural – e a compreensão de um outro, que forma parte de uma cultura
totalmente diferente. No nosso entender, os dois casos, apesar de diferenças notórias,
nos força a aceitar uma determinada tensão entre unidade-diversidade da modalidade
intersubjetiva, que pode ser resolvida apelando-se ao concurso de uma discursividade
intercultural.

Por isso, a então debatida matéria das ‘razões dos outros’ não pode ser radi-
calizada a partir de um modelo de sua diferença, nem subsumida sob o mesmo logos
universal, já pré-definido pela própria tradição ocidental. Como indicou Picotti, isso dá
como verdadeiro o reconhecimento explícito da “construção histórica do logos humano
como interlogos.”249 Em outras palavras, trata-se da possibilidade de entender os outros
em suas razões a partir de uma poli-fonia de logos, através da qual somos conscientes da
modalidade de meu logos cultural e de como pode abrir-se a outros logos.

249 PICOTTI, 1996, p. 298.

Ricardo Salas Astrain – 135


Esta afirmação remete a um questionamento da compreensão ocidentalizante
dessa afirmação, no sentido de uma explicação crítica da razão monocultural. Isso po-
deria ser aclarado com algumas indicações, a começar pelo ponto de vista intercultural,
como o sugerido por Panikkar. Para ele, o problema epistemológico da compreensão do
outro é relevante, pois

a novidade e a dificuldade da filosofia intercultural consiste em não existir


uma plataforma metacultural, a partir da qual seja possível realizar uma
interpretação das culturas, porque qualquer interpretação é nossa interpre-
tação. É verdade que esta tentativa de interpretar outra cultura é um passo
intermediário, que nos abre a influências externas e nos oferece um deter-
minado conhecimento do outro. Todavia, o ‘outro’ não se sabe a si mesmo
como ‘outro’. ‘Nós’ somos o ‘outro’ para a outra cultura. Isso nos coloca
diante de uma aporia: Como preservamos nossa racionalidade ao transcen-
dê-la? Como podemos entender o ‘outro’ se não somos o outro?250

Na verdade, Panikkar oferece a resposta que questiona, por certo, a primazia de


uma determinada perspectiva predominante no Ocidente, através da qual a razão foi ra-
tificada como logos, esquecendo, no entanto, que ela também é mythos. A esse respeito,
ele insiste:

A linguagem não é apenas logos; é também mythos e se os logoi podem, de


algum modo, ser traduzidos, é muito mais difícil intervir com os mythoi.
A ‘compreensão’ humana, no sentido de harmonia e concórdia, reclama a
comunhão com o mythos, algo que não se soluciona com o sonho da lingua
universalis da ‘Ilustração’, com a qual qualquer palavra tem um sentido
específico.251

Do nosso ponto de vista, a exigência está, então, em enfatizar as matrizes nas


quais podemos reconhecer os diversos logos, salientando aqueles aspectos que demar-
cam o encontro com os outros. Doravante, sabemos que o mythos não pode ser entendi-
do apenas como experiência, pois é também um discurso.

Fornet-Betancourt traz à tona também outras considerações hermenêuticas em


torno da compreensão do outro. Ele as vincula à influência de um tipo de racionalidade
monocultural, sem consciência de que, na comunicação compreensiva do outro, existem
mediações contextuais.

250 PANIKKAR, em ARNAIZ, 2002, p. 47; Cf. também LANGÓN, 1997.


251 PANIKKAR, em ARNAIZ, 2002, p. 50.

136 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Nossa teoria do entender deveria encarregar-se do outro, precisamente por
ser sujeito histórico de vida e de pensamento, algo que nunca pode ser
constituível, nem reconstituível, a partir da posição de outro sujeito. Diante
do outro, não cabe, então, a reconstrução teórica a partir de minha forma
de pensar, mas na preocupação teórica daquele que se coloca na escuta do
discurso de outra forma de pensar, vislumbrando, nessa escuta, o começo
da trans-formação recíproca. A tarefa consistiria, então, em empreender
a reformulação de nossos meios de conhecimento a partir da disputa das
vozes da razão ou das culturas no marco da comunicação aberta, e pela
reconstrução de teorias monoculturalmente constituídas.252

Essas observações hermenêuticas delineiam, como problema central, a questão


da equação entre racionalidade e linguagem, aspecto que está no centro desse grande de-
bate levantado por Apel e Habermas na ética da discussão. Todavia, isso está incluído no
problema do sentido da racionalidade hermenêutica em Gadamer, Ricoeur e Ladrière.
Sem dúvida, a questão decisiva do diálogo intercultural é praticado no terreno de uma
crítica pragmática e hermenêutica da razão monocultural, tal como a filosofia ocidental
hegemônica realizou, não aceitando ‘as razões’ daqueles que não alcançaram o nível de
racionalismo proveniente da antigüidade grega. Alguns pensam que essa racionalidade
está representada, hoje, na ampliação do projeto da racionalidade científico-técnica a to-
dos os mundos de vida. Esta é a contribuição do Diskursethik, que salienta a necessária
disputa entre ciência e técnica e suas respectivas mediações normativas e valorativas.

A crítica das dimensões etnocentristas, que predominou nas ciências das cultu-
ras e no racionalismo ocidental, parece ser compartilhado pelos filósofos da pragmática
e da hermenêutica, que discutem esse ponto. No entanto, o enfoque intercultural agrega
mais uma questão ao associar a crítica a racionalidade imperante como um exercício
de des-fundação da racionalidade, não em contra da racionalidade, mas de um projeto
hegemônico associado à modernidade ocidental. Não se pode sustentar que, frente à ne-
gação permanente do outro – especial nestes últimos cinco séculos na América Latina –
seja validada a tese de que as formas de racionalidade associadas à hegemonia ocidental
estão, irremediavelmente, esgotadas. E mais, que tal hegemonia ocidental, implantada
sobre os outros mundos de vida, inabilita a recuperação das diferentes formas críticas
nelas encontradas. Uma tese desse tipo estaria condenando os discursos críticos a sua
incomunicação. Em outras palavras, esse tipo de proposta arruinaria a possibilidade de
compreender o exercício das formas discursivas que asseguram o sentido da ação huma-
na que não se enquadra na relação estratégica e de cálculo. Além disso, ela impede até
mesmo o esforço em reverter as assimetrias, incorporando as diferenças geoculturais.

252 FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 42.

Ricardo Salas Astrain – 137


Por fim, essa tese proporia uma razão para os atuais derrotados, sem, necessariamente,
fundar o projeto humano a partir da esperança de todas as vítimas.

Com a categoria da reflexividade intercultural, buscamos ressaltar exatamente


a tese oposta, numa adequada crítica à razão imperial a partir da ‘razão prática intercul-
tural’. Ela responde à memória das lutas passadas, das resistências e dos diversos sofri-
mentos vividos, leva-nos a afirmar, ao mesmo tempo, o papel relevante dos contextos
em um agir humano diferenciado, porém suscetível a uma compreensão da alteridade.
As dívidas frente aos antepassados – que nos entregaram os espaços de convivência –,
as tradições de resistências, a espera e a dor humana nos aproximam às pessoas de todas
as culturas. As tradições não apenas são afirmações legadas de um mundo pacífico, mas
das dívidas que temos diante dos que nos legaram nossa eticidade de luta e de resolução
dos conflitos.

O con-viver conflitivo, com os outros diferentes de meu mundo de vida, não


tem a presunção de afirmar, na forma principal, uma oposição radical entre ‘as razões’
derivadas dos registros discursivos de meu mundo de vida e ‘as razões’ relativas a ou-
tros discursos de outros mundos de vida. Isso significaria introduzir uma ruptura irreme-
diável em um terreno da reflexividade moral e, portanto, a impossibilidade do diálogo
intersubjetivo no âmbito da ação. Um dos pressupostos compreensivos de uma ética
intercultural é que, como já foi reiterado, qualquer ação humana carrega significados
‘razoáveis’, que podem ser rastreados desde dentro dos significados e sentidos que ou-
torgam os mundos de vida, e que estão abertos, de certa forma, a outros mundos de
vida.

Embora isso resulte difícil de ser aceito pelas elites e pelos teóricos do desen-
volvimento sustentável, preconizado pelas sociedades dominantes do planeta, o agir
humano, de qualquer mundo de vida de uma comunidade indígena ou outra, permite
o desenvolvimento de uma determinada plenitude de ser humano e de seus vínculos
valorativos com os outros seres humanos, permitindo construir um mundo humano.
Nesse sentido, a proposta da eticidade de Kusch é irrepreensível, pois os modos de vida
articulam processos de sentidos intersubjetivos constitutivos de uma comunidade, não
somente fechada em si, mas aberta aos demais.

A descrever sobre ‘os outros’, os etnologistas, os antropólogos e os que se


atrevem a escrever sobre o assunto, há, em geral, uma desqualificação originária de
sua particular compreensão monocultural. Há, pois, um tratamento ou uma valoração
específica de outra cultura, algo que aparece com freqüência. Seus pressupostos são
produtos de um manto de a-criticidade e de ignorância acerca dos procedimentos e
valores inapropriados de sua própria cultura, às vezes, através do irrefutável propósito

138 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


de legitimar a cultura do colonizador. Todavia, esse tipo de argumentação não surge só
a partir da atual crítica aos precursores dos estudos culturais, pois é inerente à própria
refletividade existente em todas as culturas indígenas ou dominadas frente às culturas
colonizadoras ou dominantes.

Nesse horizonte, dever-se-ia explicitar que a desqualificação das ‘razões dos


outros’ não é somente inaceitável, porque a perscrutação mútua, a partir da criticidade,
é inconsistente. Desse modo, pretende-se sustentar a possibilidade de que as razões dos
‘outros’ e ‘as razões’ que emergem de meu mundo de vida se articulem e possibilitem
chegar a acordos, definidos através do próprio processo de intercompreensão.

Nós partilhamos com as categorias, propostas pelos filósofos latino-americanos,


ao destacarem o caráter de ‘interpelação’, através da qual se reconhece a participação de
um outro no diálogo, frequentemente assimétrico: o grito do outro é sempre uma forma
de interpelação questionadora do sistema e desveladora da a-simetria estrutural. “Estes
‘Outros’, no entanto, não são os outros ‘de uma tal razão’, mas são outros que têm suas
‘razões’ para ‘propor’ e ‘interpelar’ contra a exclusão e, por isso, em favor de sua inclu-
são na comunidade de justiça.”253 Em palavras de Fornet-Betancourt,

o encontro com o outro é, desse modo, interpelação; interpelação a partir


do que deveria ser repensada nossa maneira de pensar. De fato, nessa situ-
ação, experimentamos que há outro horizonte de compreensão que nós não
fundamos e que, por isso mesmo, nos desafia como uma possibilidade de
reciprocidade diante de nossa própria situação original.254

No entanto, neste ponto, é preciso estabelecer uma breve conexão com o tema
da incomensurabilidade.255 Desde nossa perspectiva intercultural, é necessário conse-
guir um conceito mais preciso de incomensurabilidade, como o que propõe R. Berstein,
de modo a evitar resolver a questão apostando entre dois extremos. Esta problemática se
relaciona com duas posições discutíveis acerca do diálogo intercultural. Por um lado, o
relativismo radical, que tende a fechar o diálogo, na medida em que pretende denunciar
a racionalidade dominante que asfixia os componentes reflexivos do mundo de vida.
Nesse sentido, a incomensurabilidade permite sustentar a defesa da resistência às cultu-
ras hegemônicas e invasoras. Por outro lado, o universalismo radical integra o conjunto

253 DUSSEL, 1994, p. 88.


254 FORNET-BETANCOURT, 2001, p. 41.
255 Esse tema tornou-se famoso com T. Kuhn, em sua discussão acerca dos paradigmas
científicos. Ele foi colocado novamente em voga, no terreno pragmático e ético-político, pelo
filósofo norte-americano, Richard Rorty.

Ricardo Salas Astrain – 139


das racionalidades em nome do logos entendido como razão universal, que seria a me-
dida de todas as racionalidades inerentes às culturas humanas. Desde essa perspectiva,
as culturas podem ser mensuradas a partir de um parâmetro que se levanta como o único
válido para todos, que acaba, porém, reduzindo o papel do histórico e do particular.

É pouco improvável que, a partir dessas duas perspectivas – particularista e


universalista – se consiga delimitar o nexo mais adequado das formas razoáveis do agir
humano, apelo a ser realizado contextualmente no encontro intersubjetivo. Seria muito
mais adequado repensar a racionalidade prática, não como uma unidade discursiva com-
pacta, mas como conjuntos discursivos pluriformes e dinâmicos, que se ajustam à frui-
ção obtida pelas teorias do sentido e do significado da hermenêutica e da pragmática.

Nesse sentido, há, em Pannikar, uma significativa contribuição, pois ele sus-
tenta que a contraposição grega clássica entre logos e mythos conduziu ao conceito
ocidental da razão através de uma perversão racionalista, impedindo-lhe de situar a cen-
tralidade da narrativa no seio da cultura, ao invés de ajudar a reconhecer suas diversas
vozes, na sua polifonia.256 Isso é, particularmente, verídico no âmbito do que se poderia
denominar a razoabilidade ou a reflexividade, uma das categorias chaves do ponto de
vista de uma ética intercultural, pois ela surge a partir dos níveis simbólicos e narrativos
fundamentais de uma cultura humana. Isso conduz a discutir se é possível considerar a
evolução moral a partir de suas formas cognitivas, sem fazer referência às formas dis-
cursivas presentes na cultura, ponto de vista que poderia ser desenvolvido tomando o
outro aspecto, ou seja, o da discursividade.

As críticas expostas pelos filósofos latino-americanos à mera identificação dos


problemas éticos aos problemas de linguagem já foram expostos. Não repetiremos isso,
mas é pertinente salientar que, a partir do momento em que se busca afirmar o reconhe-
cimento da problemática das razões dos outros, estamos destacando, frequentemente,
outras formas discursivas diferentes a argumentação. No terreno comunicativo, ela foi
considerada, de certo modo, como a forma por excelência de debate. É possível que, no
sentido estrito de uma teoria das formas discursivas – que se vincula com os atos de fala
–, seria necessário reconhecer que essas são as ferramentas nas que se apóia qualquer
cultura, para expressar seus diversos níveis reflexivos a respeito dos enunciados éticos,
porque, justamente, o terreno moral e ético não é única e exclusivamente propriedade
dos especialistas. Ele é parte da vida de todos os sujeitos. Esse é o solo onde consegui-
mos dar conta das ações de nós mesmos e da abertura a outros sujeitos que comparti-
lham nosso mundo de vida.

256 FORNET-BETANCOURT, 2001.

140 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Caso seja correto afirmar que, em todos os contextos culturais, é possível ajuizar
determinadas situações através de diversas formas discursivas, e conduzi-las ao nível de
uma maior reflexividade – o que já é um trabalho dos especialistas – existiria, então, a
possibilidade de sustentar que o problema da lingüiscidade contextual torna-se decisivo
na compreensão das relações intersubjetivas. Isso acentua a perspectiva pragmática,257
que é, ao mesmo tempo, hermenêutica. Assim, poder-se-ia estabelecer uma concor-
dância entre ‘as razões dos outros’ com ‘as diversas formas discursivas’ que expres-
sam a polifacética experiência moral. Existiria, então, a possibilidade de sustentar que,
por um lado, a relação prática não se reduz, de modo algum, a um ato comunicativo-
lingüístico,258 pois, por outro, é possível aproveitar o tema das ‘razões morais’ de um
modo eminentemente comunicativo e reflexivo, aspecto relacionado aos atos de fala.

A assimetria vertical e horizontal


Não obstante, esta concepção evidencia o problema a respeito de como entender
a a-simetria da comunicação, sendo ela horizontal ou vertical. Dussel, por exemplo,
criticou o fato de que a razão discursiva da ética do discurso não conseguiria

descobrir o horizonte da alteridade além da dialética negativa. A comuni-


cação simétrico-sincrônica é horizontal, isto é, tautológica – é a posição
de Aristóteles, por exemplo, que a denomino ‘grega’, e também da ‘Ética
do discurso’. A comunicação ou a justiça como termo de um processo que
parte da assimetria diacrônica, é estabelecida como uma relação vertical –
o outro como mestre ou como pobre, interpelante, descoberta já na posição
banto, egípcia, mesopotâmica, semita – […] de baixo para cima.259

Essa posição poderia ser juntada com a teoria geopolítica do conhecimento de


Mignolo e de outros autores. Ela evidencia as enormes dificuldades para assumir um
diálogo horizontal, sobretudo entre as culturas conformaram o crisol de nossos mundos
de vida na América indígena e afro-americana, no qual tantos modos de vida foram
dominados, segregados e discriminados pelas culturas europeizantes dominantes e he-
gemônicas. Nesse sentido, é relevante a proposição intercultural de Picotti, salientando
que é preciso reabilitar certos diálogos em simetrias de reconhecimentos:

257 CORREDOR, 1997, p. 175.


258 DUSSEL, 1994 , p. 83.
259 DUSSEL, 1996, p. 145.

Ricardo Salas Astrain – 141


Visto que importantes vínculos nos ligam à África negra, como parte cons-
titutiva e valiosa de nossa identidade, saber retomá-los, a partir uma visão
mais profunda e originária da política, nos levaria a reanimar nossas próprias
fontes e a fortalecer também as possibilidades de própria emergência civili-
zatória; ao mesmo tempo, conduziria à África a reencontrar-se com sua pró-
pria recriação, enquanto novas alternativas de reconexão e comunicação.260

A questão de uma discursividade horizontal ou vertical é extremamente com-


plexa, pois, em nossas culturas, as relações intersubjetivas de âmbito do discurso moral
ocorrem em planos diferentes. É perfeitamente possível afirmar que existe certa vertica-
lidade, como a que exige a aprendizagem entre mestre e discípulo, entre pais e filhos. To-
davia, é preciso conseguir, em algum momento, a simetria discursiva capaz de garantir a
personalidade moral que proporcione o diálogo entre os pares. Ao afirmar isso, queremos
sustentar a existência de uma tensão entre horizontalidade e verticalidade, algo vital para
compreender a complexa articulação discursiva presente nas culturas. Portanto, esta tese
exigiria um novo reconhecimento de outros modos de vida que constituíram a dinâmica
do sentido entre nós. Por isso, não existe ética intercultural sem mediação intersubjetiva,
algo postulado como já efetivamente operante no mundo indígena e no mundo popu-
lar.261 Entre horizontalidade e verticalidade discursiva, existe uma série de graduações
contextuais, que devem ser reconhecidas como exercícios de resistência já articulados na
interação das culturas dominantes e das culturas dominadas. Em relação a isso, é preciso
indicar que uma determinada hegemonização ocidentalizante levou a privilegiar a verti-
calidade por encima da horizontalidade.

No entanto, nessa relação de verticalidade, surge novamente o problema con-


creto dos conflitos discursivos associados à assimetria contextual dos interlocutores e à
contingência histórica das condições ideais dos atos de fala (sentido, verdade, veracida-
de e retidão). São situações em que os interlocutores não apenas pretendem dialogar e
argumentar, mas desenvolvem também – talvez de forma mais freqüente – as negocia-
ções estratégicas, a simulação de má vontade ou a falta de vontade, a defesa (injusta)
dos próprios interesses, a violência”, enfim, circunstância em que a práxis nos mostra
diariamente que muitas – talvez a grande maioria – conversações e diálogos dos diri-
gentes e dos políticos estão perpassadas de artimanhas estrategistas.262 Nesse plano, não
se deve confundir a verticalidade da autoridade – articulada às discursividades tradicio-
nais – com a verticalidade dos enunciados públicos e retóricos de elites, as quais não
compreendem e não querem assumir os horizontes de vidas projetados por outros, as-
sumidos apenas como clientela, público passivo ou rebanho. Para existir uma proposta

260 PICOTTI, 2001, p. 39-40.


261 Cf. SALAS, 1996, p. 38-39.
262 MICHELINI, 2002, p. 124.

142 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


ética, é indispensável encontrar o nexo adequado entre verticalidade e horizontalidade
da comunicação.

Essa caracterização negativa das formas de incomunicação, que tendem a se


consolidar nas práticas de cálculo dos contextos assimétricos, onde ganha o mais hábil,
poderia refletir, perfeitamente, a situação de deterioramento efetivo da comunicação
nas sociedades latino-americanas modernas. Ela também poderia tipificar a profunda
assimetria existente no imaginário produzido entre os modos de vida conviviais e os
conflitos dilacerantes entre diversas tradições. Elas podem ser rastreadas no universo
simbólico-narrativo dos mestiços, muito bem explicitados pela literatura latino-ameri-
cana. Nas sociedades latino-americanas, as tradições discursivas possuem uma relação
questionadora frente ao poder comunicativo da palavra pública, freqüentemente enga-
nosa e manipuladora, comumente questiona pela poesia da denuncia do canto popular.263
Esta situação equívoca da comunicação é, em parte, resultado de histórias reiteradas
de in-comunicação e de excomunicação das palavras dos outros, que falam a partir de
outras matrizes discursivas (não somente línguas diferentes, mas também códigos cul-
turais e mundos de vida diversos).

No entanto, o fundamental é saber se o fracasso de uma relação de compreensão


intersubjetiva é a última palavra ou, então, se existe a possibilidade de estimular outras
formas de busca de um entendimento alternativo, que não é fácil, pois requer uma atitu-
de plenamente ética. Nesse sentido, Berstein afirma:

Contudo, a resposta à ameaça deste fracasso prático – que, às vezes, pode ser
trágico – deve ser ética, isto é, assumir a responsabilidade de escutar atenta-
mente e, assim, usar nossa imaginação lingüística, emocional e cognitiva para
captar o que é expresso e dito em tradições ‘estranhas’. Isso deve ser feito de
maneira a evitar a dupla tentação, tanto de assimilar superficialmente o que
outros dizem em nossas próprias categorias e na linguagem, sem fazer justiça
ao que é genuinamente diferente e pode ser incomensurável ou, então, consi-
derar o que o ‘outro’ está afirmando como um disparate incoerente. Também
devemos resistir ao duplo perigo da colonização imperialista e do exotismo
inautêntico – que, às vezes, é denominado ‘viver como os indígenas’.264

Uma vez esclarecido isso, pode-se inferir que o diálogo intercultural está longe
de reformular a tese da plena compreensão ideal da ética discursiva (horizontalidade),
muito menos se pode aceitar a incompreensão histórica discursiva dos contextos latino-

263 Cf. SALAS, 1996, p. 77-85.


264 BERSTEIN, 1991, p. 13-14.

Ricardo Salas Astrain – 143


americanos (verticalidade). É necessário forjar um modelo que estabeleça efetivamente
sua articulação mútua.

Em termos de uma teoria discursiva dos conflitos morais, é possível compreender


o problema histórico do diálogo a-simétrico de nossos povos, a partir da própria teoria
pragmática, no sentido exposto por Maliandi. Ele se pergunta: “não seria possível indicar
determinados princípios qua regras de argumentação (exclusivas para discursos práticos),
algo assim como ‘princípios de eqüidade discursiva’, que tornam possíveis tais discursos,
apesar das condições de (ao menos limitada) assimetria?”265 Nesse caso, a mediação, que
estabelece um nexo entre os aspectos verticais e horizontais, passaria por assumir os con-
flitos inerentes à dita operatividade do sentido das regras dos discursos práticos.

Essa idéia parece ser capital para, justamente, entender alguns dos problemas,
anteriormente destacados, evocados pela aplicação das normas. Outro problema que se
delineia a este tipo de ética intercultural, configurada hermenêutica e pragmaticamente,
radica nas dificuldades para aceitar o processo de fundamentação das normas, que nos
conduzem aos momentos concretos da ação. Isso tem relação com a famosa parte B da
ética do discurso, segundo a terminologia apeliana, esboçada no modo de derivar as re-
gras específicas que se ajustem ao nível da situação e que daria conta dos conflitos que
emanam no nível da eticidade e do encontro-desencontro entre os mundos de vida. No
final deste capítulo, iremos propor ‘princípios de equidade discursiva’ capazes de ajudar
a evitar a desconexão entre a derivação de regras e a situação específica da vida mate-
rial. No entanto, isso requer fazer um passo prévio intrínseco ao modelo da tradução.

3. O modelo da tradução
A referência ao modelo de tradução nos permite tornar compreensível a ne-
cessidade de consentir as regras específicas necessárias para construir espaços comuns
de intercompreensão. Elas dão conta de dois códigos lingüísticos e culturais, capazes
de articular a significativa ‘fusão de horizontes’, de modo a conseguir compreender os
sentidos e os significados na forma mais recíproca possível.266 Nesse sentido, o tema
da tradução se torna em intermediador da compreensão da linguagem do outro a partir
das possibilidades que minha própria linguagem, de modo a conseguir acessibilidade à
linguagem do outro. Trata-se de reconhecer a existência de certas condições, que pre-
param o trabalho de distância e de pertença, embora apresente, mesmo assim, riscos e
limitações. Conforme Panikkar,

265 MALIANDI, 2002, p. 71.


266 SALAS, 1992, p. 213.

144 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


Na nossa situação atual, o ponto de partida efetivo para o diálogo inter-
cultural consistiria em diálogos entre tradutores. É isso que se quer dizer
quando se recomenda que os interlocutores cheguem preparados ao diá-
logo. Não basta conhecer a própria tradição; deve-se também conhecer,
embora só seja de um modo imperfeito, a cultura do outro. E mais: não
podemos entender um texto sem conhecer seu contexto.267

Em um plano histórico, esta idéia nos parece relevante para responder aos mo-
dos discursivos dos evangelizadores, que assumiram, desde a conquista até nossos dias,
as formas de contato assimétrico, horizonte da multiplicidade de configurações sociais
e culturais. No mesmo sentido, Ricoeur delineia:

Na realidade, o nome de tradução faz alusão a um fenômeno universal, que


consiste em dizer a mesma mensagem de uma maneira distinta. Através
da tradução, o locutor de um idioma se transfere ao universo lingüístico
de um idioma estrangeiro. Por outro lado, acolhe, dentro de um espaço
lingüístico, a palavra do outro. Este fenômeno de hospitalidade idiomática
pode servir de modelo a toda compreensão, na qual a ausência do que se
poderia chamar um terceiro que paira por encima dos demais, colocando
em discussão os mesmos operadores de transposição em […] e de acolhida
em […] cujo ato de tradução é o modelo.268

Essa referência ao modelo da tradução é significativa para fechar, por agora,


as três problemáticas indicadas: do diálogo intercultural em contextos a-simétricos, a
questão da incomensurabilidade do outro e a possível derivação de regras em contextos
específicos de a-simetria. Elas permitem sustentar a idéia contumaz da relação de tradu-
ção entre os mundos de vida, não a partir de uma exageração da compreensão total ou
da absoluta incompreensão. A ética intercultural, tal como já foi definida, se abre a um
espaço de reconstrução discursiva dos critérios reguladores no interior das culturas, bem
como na possibilidade teórica de fazer um caminho discursivo ‘inter-culturas’. Assim,
ela contribui para a elucidação da compreensão de si e do outro, definindo os procedi-
mentos imprescindíveis para assegurar a mútua compreensão, a partir dos contextos
discursivos, de onde brota a produtividade do sentido.

Na verdade, há a impressão que essa concepção das funções discursivas, que


exige um nexo entre a hermenêutica e a pragmática, se limita à questão fundamental de
saber como as normas e os valores se articulam a partir da atividade aplicativa no marco
de um contexto conflitivo.

267 PANIKKAR em ARNAIZ, 2002, p. 45.


268 RICOEUR, 2001, p. 282. Cf. JERVOLINO, em www.ifil.org

Ricardo Salas Astrain – 145


Por isso, antes de finalizar o tema, indicaremos a exigência de um conceito
mais complexo da incomensurabilidade, pois efetivamente torna possível fundamentar
a intercompreensão discursiva entre os diversos mundos de vida. Por isso, o modelo
da tradução é, sem dúvida, significativo para reunir as três problemáticas do diálogo
intercultural. Ele permite sustentar a nutritiva idéia da relação de traduzibilidade entre
os mundos de vida, não a partir de uma exageração da compreensão total, nem da in-
compreensão total. Um diálogo intercultural dá conta sempre de uma distância cultural,
junto a um processo ininterrupto de tradução, através do qual se torna possível envolver-
se em um determinado nível de pertença cultural. O importante está em mostrar que este
mesmo processo exige ser compreendido como uma ética da discursividade e, ao mes-
mo tempo, como uma compreensão de novas condições para conseguir uma comunica-
ção que transcenda as limitações de cada mundo de vida. Nesse sentido, De Vallescar
interpreta muito bem essa idéia da seguinte maneira:

Sem dúvida, essa tradução envolve também uma ética, ou seja, a ‘ética do
discurso intercultural’ e a ‘unidade’ do problema do discurso ético por si
mesmo. É possível conseguir certa habilidade limitada de tradução (trans-
latability) entre elas apenas sob as condições de não-domínio entre cultu-
ras. Não menos importante seria atender a construção de uma mutualidade,
exigida por ser uma terceira dimensão implementada em cada cultura. De
fato, há a indicação de distintos paradigmas de traduzibilidade mútua, con-
duzindo a incrementar a equivalência ou a igualdade (sameness) entre as
culturas.269

A ética intercultural, tal como já foi definida, abre-se a um espaço de reconstru-


ção discursiva das regras no interior das tradições narrativas e pragmáticas das culturas.
Por isso, insistimos na possibilidade teórica de fundamentar princípios discursivos, os
quais permitam definir os procedimentos formais para estabelecer cinco critérios míni-
mos que assegurariam, pelo menos, a mútua compreensão intercultural não assimétrica
e a possibilidade de uma resolução dos conflitos capazes de atender os interesses dos
interlocutores conflitantes.

Neste sentido, a questão fundamental a resolver é como as normas podem ser


articuladas a partir de uma capacidade aplicativa no marco de um contexto conflitivo,
que permitiria passar dos princípios gerais às situações contextuais.

Nessa análise do contexto de derivação das regras, é necessário salientar um


traço relevante da reflexão filosófica atual na América Latina. Trata-se de nutrir a pos-

269 DE VALLESCAR em ARNAIZ, 2002, p. 146; outra perspectiva em MEEHAN, p. 371 ss.

146 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


sibilidade de fundamentar “uma experiência comum”, capaz de incorporar a dimensão
da ‘divergência’ ou da conflitividade, como algo inerente à experiência moral. Nesse
aspecto específico do nexo íntimo entre esta experiência comum (ou atitude prática) e os
conflitos, surge a questão em torno da forma como os debates latino-americanos foram
conduzidos, realizados acerca da parte B da ética do discurso de K. O. Apel. Diante do
já salientado, permanece a dúvida se a delegação das normas concretas aos afetados ou
a seus representantes, que devem fundamentar as normas in situ, está bem delineada.
Na verdade, pareceria introduzir, segundo o pensamento apeliano, uma maior limitação
no sentido de a ética discursiva poder assumir as estruturas gerais conflitivas, pois não
proveria as regras gerais exigidas para as situações concretas, como, às vezes, foi impu-
tado equivocadamente a esta parte B. É preciso esboçar, de outro modo, a formulação
de regras para o diálogo intercultural. A seguir, nos atrevemos a sugerir aquelas que nos
pareceram pertinentes para o debate de conflitos culturais.

4. O esboço de cinco critérios para o diálogo intercultural


É possível afirmar que o diálogo intercultural requer outra maneira de estabele-
cer a ética discursiva. Por um lado, ela se refere às duas partes da teoria apeliana, deno-
minada parte A e parte B. Por isso, Fornet-Betancourt, Dussel, Hinkelammert, Maliandi,
Roig, Scannone, entre outros, insistem em uma mediação mais complexa. Embora é
possível reconhecer, no interior da parte A e B da Ética do Discurso, a existência de
um fecundo debate em torno da fundamentação, postulamos a exigência de fazer uma
releitura da ética de K. O. Apel à luz das outras contribuições que hermenêutica da ra-
cionalidade prática foi acrescentando. Isso não significa a subtração das questões levan-
tadas por esta ética, mas configurar, de outro modo, os problemas mais complexos, pois
a ética discursiva, por nós elaborada, pressupõe dar conta de conflitos e de contextos
a-simétricos já mencionados. Em nossa opinião, a parte B da ética apeliana apresenta
mais dificuldades, ou seja, como entender as regulações discursivo-comunicativas dos
conflitos contextualizados. Na verdade, sabemos que essa questão não é insignificante
nas diferenças crescentes entre Habermas e Apel.270 Porém, acreditamos ser possível
indicar nisso uma primeira incompatibilidade, pois se trata de afirmar que uma ética
intercultural pode ser construída como uma ética discursiva apenas se aceita que existe,
previamente, uma ordem axiológica. Ela define o procedimento e a própria delimita-
ção da normatividade concreta, que se busca precisar através do trabalho da tradução.
Isso pressupõe, então, um primeiro princípio, indicando que a regulamentação de todo
discurso intercultural exige critérios reguladores derivados, ao mesmo tempo, de prin-

270 Cf. CORTINA (2000, p. 186) e MALIANDI (1996) fazem uma ótima síntese da discussão de DUS-
SEL e APEL, deste ponto, p. 156 ss.

Ricardo Salas Astrain – 147


cípios formais e abstratos e das características do próprio contexto, pois a universali-
dade ética surge de uma dupla fonte.

Ao que tudo indica, os contextos culturais dos países latino-americanos indicam


a necessidade de partir da afirmação de Roig, quando se refere a uma “moral emergen-
te”. Ela não buscaria princípios, mas, principalmente, a reconstrução do “mundo de
vozes que qualquer discurso nos transmite enquanto integra um ‘universo discursivo’
do qual é, ineludivelmente, expressão.”271 Por tudo o que foi salientado, fica evidente
que essa afirmação não deveria ser entendida na perspectiva de uma impossibilidade
de fundamentar os princípios, mas como a exigência de incorporar-lhes a forte carga
histórica e contextual. Essa idéia é fundamental, como sendo um dos primeiros crité-
rios reguladores formais a se aceitar em qualquer diálogo intercultural. Na verdade,
trata-se de aceitar que a comunicação intercultural é sempre um produto inconstante
da inter-conexão de contextos específicos. Eles definem as relações estruturais dos in-
terlocutores, de modo que, para poder gerar uma verdadeira reciprocidade discursiva,
é necessário partir das formas argumentativas existentes historicamente de fato, e não
dissolvê-las em um modelo abstrato, para conseguir um nível comum da racionalidade
discursiva. É a isso que o modelo de mútua tradução remete.

Pelo visto, este segundo critério regulador é decisivo para a análise dos diversos
discursos que tratam de dar conta do aspecto a-simétrico inerente à realidade sócio-cul-
tural e a ação ético-política dos sujeitos e das comunidades de vida latino-americanas.
Em outro capítulo, destacou-se as histórias plurais encontradas em nossos povos, que,
no plano social, econômico e político, caracterizadas por não haver sido realizadas “as
condições de possibilidade para uma organização solidária da responsabilidade.”272 Em
outras palavras, poder-se-ia destacar que um critério regulador decisivo para o diálogo
intercultural. Trata-se, pois, de assumir um dos desacordos relevantes entre a ética do
discurso e a filosofia latino-americana a respeito do trágico, aspecto relacionado com a
característica calamitosa de nossas sociedades, nas quais a fome, a injustiça, a violência,
a exclusão e a discriminação são sempre partes significativas de nosso entorno socio-
cultural. Esse aspecto medular do conflito exige definir um terceiro critério regulador,
porquanto todo diálogo intercultural deve partir dos interesses dos diversos sujeitos e
comunidades em discrepância em uma escala histórica, de modo a situar sempre os
interesses divergentes de todos os implicados: passados, atuais e potenciais.

Esse debate em torno à problemática da “aplicação”, da relação entre os prin-


cípios e as situações, nos introduz ao âmago da problemática central, que perpassa a

271 Roig, 1994, p. 181.


272 Michelini, 1998, p. 169.

148 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


discussão dos filósofos da comunicação e do diálogo em contextos a-simétricos: como
definir regras que respondam às diversas formas de conflito discursivo existentes nos
países latino-americanos e, em particular, nas comunidades étnicas? Como já salienta-
mos, o conflito não é só parte de um momento particular recente de histórias nacionais,
que se pretendeu totalizar, mas aparece na tensão entre os mundos de vida e um modelo
de modernização economicista imposto.

Giannini indica que, efetivamente,

a experiência habitual não deveria induzir ninguém a pressupor que, nela


e por ela, terminem as diferenças, os conflitos e o distanciamento entre os
sujeitos. Ao contrário, a experiência cotidiana é experiência de um conflito
sempre renovado; um desejo de esclarecimento jamais satisfeito.273

De outra perspectiva teórica, Maliandi também reconhece que a necessária con-


dição de possibilidade de argumentação pressupõe uma atitude prática – e não uma
experiência – que busca a resolução do conflitivo: “a exigência de resolver ou de dis-
simular qualquer situação de conflito põe em evidência um tipo de atitude prática – e
não simplesmente uma ‘experiência’. Esta atitude precede, necessariamente, o aprimo-
ramento argumentativo.” Em outras palavras, “a exigência racional prístina ainda não
aparece nos argumentos, pois apenas faz referência à necessidade de evitar, resolver ou
paliar o conflito.”274

Nesse plano, postulamos um critério regulador que explicita o anterior. À dife-


rença dos filósofos latino-americanos, que descuidaram ou infravaloraram os conflitos
inerentes aos mundos de vida, por uma pretensão um tanto apressurada de consolidar
um ‘nós comunitário’, é necessário defender uma regra que admita como um a priori do
discurso intercultural. Trata-se do a priori de uma conflitividade que constrói um longo
caminho de resolução, admitindo que toda comunicação contextual precisa ser analisa-
da a partir da brecha entre todos os conflitos existentes e os que podem ser resolvidos
entre os sujeitos e comunidades, o que implica definir como prioritários aqueles confli-
tos que podem ser resolvidos.

Na América Latina, existe uma ampla gama de visões contrapostas em relação


ao uso e legitimação da violência para a resolução dos conflitos. Alguns ideólogos qui-
seram acreditar que ela pode resolver todas as situações oprobiosas das classes sociais
e as comunidades injustamente maltratadas. Outros procuraram legitimar que “todos os

273 GIANNINI, 1992, p. 73.


274 MALIANDI, 1996, p. 159.

Ricardo Salas Astrain – 149


conflitos e tensões sociais poderão ser processadas politicamente e serem dissolvidas
pela via do diálogo e o concertamento.”275 Todavia, os diversos contextos socioculturais
dos povos latino-americanos mostram que neles, de forma reiterada, prevalecem, mui-
tas vezes, a violência étnica e fratricida. Também é forte a dominação de elites sobre as
comunidades humanas, a ponto que estas formas estratégico-racionais passam a con-
formar uma parte essencial dos atuais mundos de vida de nossos países.276 Nesse mesmo
sentido, tal como o analisam alguns filósofos, existe uma permanente conflitualidade
político-social e cultural, que busca ver, nas “lutas sociais, nos conflitos ocorridos e nas
suas conseqüências, um lugar singular no qual, e a partir do qual, se pode reconstruir
também a própria dinâmica da identidade moral do país.”277

Não se trata, de modo algum, de hipostasiar o conflito, muito menos em acelerá-


lo. A idéia é mostrar que, em todos os contextos culturais existentes e que conformam o
marco efetivo em que se produzem os discursos históricos, deve haver uma explicitação
de tais conflitos, em vistas a precisar não apenas os “interesses” em tensão, mas como
forma de dispor os ‘conflitos’ que possam, efetivamente, apresentar possibilidades de
serem resolvidos de um modo intercultural. Nesse sentido, é preciso indicar um quinto
critério regulador, o qual nega à pretensão intercultural a possibilidade de recorrer
a um tipo de resposta que repudia a compreensão mútua. Assim, o critério regulador
decorrente afirma que, no processo da definição das normas contextuais, fica descar-
tado qualquer recurso à violência. Isso exige, de todos os interlocutores, um rechaço
à violência para manter suas posições de poder. Esta recusa à violência não se refere
apenas em caso da guerra interna ou externa, mas reporta-se também à impossibilidade
de construir procedimentos recíprocos a partir de poderes fáticos.

Uma racionalidade prática para contextos conflitivos


Diante do que foi destacado, parece, então, que o assunto da aplicação e os
cinco critérios reguladores ‘básicos’ – que permitiriam fazer frente às estruturas confli-
tivas presentes nas culturas latino-americanas – representam ser uma boa medida para
conseguir avançar na elucidação prática das bases hermenêuticas e pragmáticas de uma
ética intercultural. Essa perspectiva tem o mérito de avançar em um terreno concreto no
qual, às vezes, foi exageradamente polarizado, seja através do universalismo – que per-
manece no terreno das condições da justificação – ou do contextualismo – assentado nas
condições da execução das decisões práticas, sem, todavia, conseguir evidenciar suas

275 VERGARA, 1990, p. 172.


276 Cf. TOVAR, 1996, p. 305-316.
277 SALVAT, em LIRA, 2001, p. 117.

150 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


limitações. Para formular, através da linguagem ricoeuriana, a conquista conseguida,
cabe salientar que a necessidade de estabelecer um ponto de sutura permite inaugurar as
bases para uma racionalidade prática dos conflitos.

De acordo ao que foi formalizado anteriormente, tudo indica não existir somen-
te uma oposição frontal entre ambas as posições, mas uma mútua abertura. Em efeito,
elas apresentam um tipo de exigência imprescindível no sentido de poder estabelecer
uma ética da comunicação intercultural. No entanto, não se trata de fazer uma síntese
apressurada entre elas, mas em reconhecer a contribuição afetiva, por parte de cada uma
delas, para a compreensão dos discursos éticos em contextos conflitivos. Nesse sentido,
Salvat reconhece que:

Este novo universalismo ético que necessitamos não pode, então, partir de
uma idéia de razão autocentrada, solipsista e autoritária. Ele deve realizar-
-se a partir uma racionalidade dialógico-comunicativa, isto é, de uma ra-
zão prática intrinsecamente intersubjetiva e aberta ao outro, a qual, desde
os seus contextos e das situações dadas é capaz de produzir, no entanto,
entendimentos normativo-universalistas sobre o que podemos e devemos
expressar, hoje, por direitos humanos, sociedade justa ou democracia po-
lítica. Tais entendimentos deliberativos são admitidos como capazes de
transcender as culturas e/ou contextos particulares, na medida em que
também articulam um poder ético-racional manifestado através da fala,
do discurso, da argumentação, de todos e de quem quer que seja, enquan-
to falantes capazes de competência comunicativa. Através disso, podemos
assumir as diferenças, sem cair na incomensurabilidade das linguagens e
culturas entre si.278

Ao que tudo indica, este universalismo suscitado pela ética intercultural, plas-
mada ao som do debate latino-americano, encontrou uma enorme fecundidade, porque
critica as deformações das astúcias da razão instrumental técnico-científica e das ‘ló-
gicas’ dos poderes fáticos. Ela delineia, principalmente, a questão de fundo, a saber,
como podemos discutir sobre temas que não estamos de acordo. Ao mesmo tempo, que
podemos fazer, de forma discursiva, para conseguir encontrar respostas no sentido de
evitar que as divergências terminem transformando-se em conflitos, inerentes às lógicas
dos poderes da violência e da sem-razão.

Nesse horizonte, a ética intercultural contribui com uma crítica à racionalidade


instrumental, que irrompe nos diversos processos de modernização sociocultural em

278 SALVAT, 2001, p. 33.

Ricardo Salas Astrain – 151


que vivem os povos latino-americanos. Ela nos entrega elementos discursivos para pro-
jetar uma racionalidade comunicativa aberta à racionalidade sapiencial, que contempla
a história das vítimas e suas memórias de libertação.

Seguindo a Maliandi, é possível explicitar que o grande ponto de contato, entre


a ética do discurso de tipo pragmática e as tradições hermenêuticas latino-americanas,
está no fato de que elas nos oferecem um marco teórico, muito mais rico e complexo,
para edificar as bases teóricas de uma ética intercultural. Ela se aproxima ao modelo
que procuramos delinear, sustentada precisamente sobre a nova proposta da ‘dinâmica
da razão’, apartada de suas atuais interpretações niilistas e etnocêntricas, porém aberta
ao horizonte da pluralidade das racionalidades e dos mundos de vida. Assim entendido
o debate intercultural, aflora outro diagnóstico da razão, pois ela, por sua vocação ‘fun-
damentadora’, necessita “buscar soluções”279 e reconciliar-se com a significatividade
emergente dos mundos de vida. É aqui onde se praticam as normas em sua concernência
às situações éticas.

No entanto, a pergunta que permanece sem resolução é a seguinte: como é pos-


sível articular estes cinco critérios reguladores no marco dos conflitos entre diferentes
comunidades de vida? No fundo, trata-se de questionar se cada um deles apresenta, por
si mesmo, um valor em relação aos outros.

Ao que tudo indica, estes cinco critérios reguladores levam em conta os cinco
aspectos básicos que devem ser cuidados em uma comunicação a-simétrica, tal como
foi indicado nos dois capítulos precedentes. De fato, é preciso definir mutuamente o
proceder da intercompreensão, reconhecendo os processos de diferenciação dos envol-
vidos. Desse modo, consegue-se resolver os conflitos, tomando em consideração os in-
teresses e os prejuízos divergentes, sem apelar à força fática, nem à violência da guerra.
Trata-se, pois, de reconhecer que todo processo de resolução dos conflitos é sempre uma
determinada mediação entre o particular e o universal.

Embora essa enunciação seja visível, resulta bastante complexa frente às si-
tuações conflitivas que afetam as diversas comunidades latino-americanas de vida e,
sobretudo, aos enormes problemas econômicos, sociais e culturais que perpassam e en-
trecruzam suas realidades. Em outras palavras, cabe perguntar em que sentido uma éti-
ca intercultural, que admite critérios reguladores universais, pode conduzir a um novo
modo de pensar a resolução dos conflitos?

279 MALIANDI, 1997, p. 46.

152 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


A perspectiva exeqüível estaria em destacar, de forma relevante, o modelo da
plena tradução do mútuo e do diferente. Este tipo de ética incapaz dar conta das formas
de resistência, bem como dos núcleos de gestação do novo das culturas populares, que
são refratárias à facticidade reinante na comunicação imperial. Na simples tensão entre
a ética da diferença e a ética do ethos comunitário, seria impossível resolver a conflitivi-
dade, a não ser que se anule o sentido sincero do outro em sua outredade. Nessa altura,
isso poderia, inclusive, ser mais grave, porque aguçaria as simetrias discursivas entre
comunidades que aparecem divididas por conflitos estruturais insolúveis.

A perspectiva mais adequada advém da definição de um modelo de traduzibi-


lidade que reconheça as divergências discursivas não somente entre culturas diversas,
mas no interior de uma mesma cultura. Isso presumiria uma tradução das relações in-
terculturais de significados, não como relações entre sentidos culturais em bloco, mas
assumindo as divergências e fissuras internas que se expressam na reflexividade ética.
Essa tradução distingue dois tipos de ‘reconstrução’: uma forjada no interior do próprio
mundo de vida e outra, que se expressaria, fundamentalmente, no contato entre culturas
diferentes. A ética intercultural, inspirada nesse modelo, se negaria a separar a relação
de outredade apenas para aqueles que estão fora de nosso horizonte cultural.

Ao dizer isso, desejamos afirmar a contribuição que este tipo de ética discursiva
realiza, pois ela gera uma troca na relação com o outro e contemplar os diversos siste-
mas de exclusão gestados nos ‘mundos de vida’. Assim, a ética intercultural se realizada
seguindo a idéia que estabelece uma propriedade analógica entre os mundos de vida, de
modo a permitir a articulação entre ‘identidade’ e ‘diferença’, ‘pertença’ e ‘distância’.
Nesse sentido, a ética intercultural busca alçar vôo no terreno difícil e complexo da
analogia, assim como elucidou Beuchot:

Entre o multiculturalismo e o assimilacionismo, propõe-se, então, o plu-


ralismo cultural; e entre o liberalismo individualista e o igualitarismo co-
munitarista, pretende-se uma analogia político-jurídica, que permita as
diferenças sem ferir a igualdade. Trata-se de um equilíbrio difícil, uma de-
licada pró-porção. No entanto, vale a pena pretendê-lo. De modo especial,
ele depende do existente, mas não pode ser efetivado de maneira abstrata e
impositiva, pois exige discernimento e diálogo.280

No fundo, a nova contribuição, oferecida pela ética intercultural à problemáti-


ca conflitiva, se relaciona à evocação para assumir o procedimento que, partindo dos
contextos específicos, contribua para fazer um levantamento do arcabouço dos confli-

280 BEUCHOT em ARNAIZ, 2002, p. 112.

Ricardo Salas Astrain – 153


tos. Com isso, eles podem ser, em princípio, resolvidos, mas não agravados, nem pela
pressão dos interesses exagerados dos radicalismos universalistas ou dos particularistas.
Ao final de tudo, os radicalismos acabam impondo as condições dos interesses dos po-
derosos ou dos que buscam manter a mesma lógica do poder. A ética intercultural aspira
romper esta direção do poder fático, incapaz de beneficiar o diálogo entre os povos,
muito menos entre os sujeitos. Ela proporciona a abertura ao horizonte contrafático,
cujos conflitos podem ser resolvidos através da reciprocidade das mediações, construí-
das por meio de critérios reguladores.

Como último aspecto, creio ser importante ressaltar que estes cinco critérios
reguladores conservam, ao que tudo indica, propriedades específicas. Todavia, elas são
essencialmente complementárias, porque explicitam aspectos inerentes a cada uma de-
las, ou seja, a relação entre o fático e o contrafático não implica a aceitação da mútua
tradução. O direito às diferenças não deriva de um modelo baseado na tradução. O
mesmo ocorre com este critério regulador e a forma de mediar os conflitos. Provavel-
mente, o quinto critério esteja contido no quarto. Todavia, parece-me que a explicitação
contribui no sentido de apresentar um critério específico na forma de ajuizar tanto os
conflitos entre as comunidades de vida ou entre os sujeitos, evitando, desse modo, que
os desacordos sejam resolvidos de um modo injusto, seja quem for o concernido.

154 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


CONCLUSÕES

Este livro pretendeu resumir o debate ético na filosofia e nas ciências sociais e
humanas, as quais vêm elaborando uma teoria da ação contextualizada em uma socieda-
de moderna. Pelo visto, a proposta em torno do nexo entre discurso e ação, relativa aos
diversos contextos culturais, contribui para evidenciar o fundo teórico da ética discur-
siva que, atualmente, tem um destaque planetário. No entanto, a perspectiva adequada
não deprecia as profundas relações existentes entre hermenêutica e pragmática. Nesse
sentido, é possível afirmar que, apesar de alguns vieses, existe, entre os pensadores
latino-americanos mencionados, uma reflexão, alimentada durante mais de três décadas,
em torno da ética e da moralidade em crise. Isso não ocorreu à retaguarda do realizado
em outras tradições filosóficas, como a européia continental e a anglo-saxônica, onde é
possível constatar, algumas vezes, as mesmas contraposições e convergências entre o
valorativo e o normativo e, em alguns casos, elaborações mais sutis que dão conta da
complexidade dos contextos a-simétricos.

Nossa proposta interpretativa insistiu em demonstrar que, ao longo do litígio


teórico em torno da modernidade, o tema reiterativo da identidade cultural e a crítica
de um determinado discurso em torno da globalização remetem – todos eles, em última
instância – a problemas valorativos e normativos. Nesse sentido, o texto esboça uma
leitura filosófica composta de autores enraizados nesta dupla tradição hermenêutica e
pragmática do discurso. Esses autores foram resumidos e articulados em uma sínte-
se teórica compreensiva, cujas distinções apresentam implicações para compreender
a constituição do sentido da vida cotidiana e social, de onde surgem os delineamentos
para as teorias éticas críticas.

O problema central do sentido faz menção a uma questão que é, ao mesmo tem-
po, hermenêutica e pragmática. De acordo com o que foi salientado ao longo do texto,
a ética intercultural se mantém no interior de uma teoria do discurso, sem reduzir, no
entanto, a vida moral à estruturação discursiva. O sentido da linguagem moral é jogado
dentro da teoria das práticas humanas. A estrutura básica dos enunciados morais salienta
que eles apresentam um sentido. Todavia, eles também realizam algo dizendo, indican-
do que a linguagem não apenas afirma. Isso não apenas representa, mas é também parte
de uma forma de vida. A envergadura das teses de uma ética intercultural, iluminada
hermenêutica e pragmaticamente, evidencia que os enunciados têm um enraizamento na
eticidade concreta e, por isso, supõem um movimento semiótico expresso na gestação
dos registros discursivos, dos quais brotam os critérios reguladores já explicitados. A
hermenêutica da linguagem moral tem implicações para o sentido da vida moral con-
creta e universal.

Ricardo Salas Astrain – 155


Sem dúvida, persistem múltiplas e dissimiles questões teóricas e de diferentes
tradições de pensamento. Os pensadores citados e estudados formam parte desse leque,
sobretudo através de suas publicações no decorrer das décadas de 80 e 90. Mesmo
assim, procuramos sustentar que eles, com maior ou menor intensidade, discutem o
grande problema ético-valórico pertencente a todos, o qual poderia ser denominado
como o sentido “humano” das formas racionalizadoras associadas à modernização das
sociedades. Este processo, que foi vivido de diversas formas pelas comunidades de vida
e tematizado, explicado e reflexionado pelas ciências humanas e pela filosofia, pode ser
condensado através do projeto de uma ‘ética reconstrutiva’, evidenciando os diversos
níveis em que se produz a re-constituição do sentido no discurso ‘moral’.

Em todos estes debates socioculturais, enuncia-se uma pergunta central: as atu-


ais transformações culturais das sociedades latino-americanas permitem a reconstituição
finalista dos ‘mundos de vida’? Seria necessária a crítica da racionalização instrumental
predominante capaz de explicitar as limitações da universalidade hegemônica? A racio-
nalização é só externa ou é preciso considerá-la a partir das diversas tensões que surgem
do seu próprio interior? Em outras palavras, nos autores lidos, não existe apenas o esbo-
ço descritivo das transformações socioculturais e econômicas no horizonte da teoria da
modernidade (nível epistemológico das ciências humanas). Ao mesmo tempo, é possível
encontrar uma crítica – às vezes radical – de tipo ético-político. Essa dimensão se vincula
ao desafio de uma ética intercultural que recupera a reflexividade como categoria central.
A partir dela, aparecem dificuldades teóricas inerentes à ética no momento em que ela
dissocia, drasticamente, o valorativo do normativo, o axiológico do deontológico. Nesse
tipo de modernidade, o sentido do “humano” requer, então, o asseguramento das novas
condições normativas e valorativas, onde já não é preciso dissociar ou desarticular os
valores considerados opostos, como, por exemplo, da justiça e do bem, da igualdade e da
diferença, do reconhecimento e do estranhamento, etc.

Esta discussão latino-americana das ciências sociais e humanas se vincula, de


forma determinante, com o problema ético da hermenêutica contemporânea, no sentido
proposto por Ricoeur e Ladrière, porque estamos no plano das relações intersubjetivas
que não podem ser dissociadas do horizonte do “mundo da vida”, como Habermas re-
conhece explicitamente. Caso esta tese teórica for correta, poder-se-ia concluir que todo
o processo de ‘justificação’ de normas, que foi associado à perspectiva de uma ética da
discussão, exige ser articulado ao momento da aplicação. Esse é, justamente, o terreno
no qual se pode demonstrar o caráter preponderante do sentido que se articula em meio
aos conflitos contextuais. Isso que exige uma compreensão hermenêutica da ação e,
como já indicamos, a elaboração de uma “pragmática contextual”.

156 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


De modo especial, esse livro de Ética Intercultural procura responder à seguin-
te pergunta: nesse tipo de sociedades multiculturais, caracterizadas pela crescente des-
regulação econômica e social que aumenta o conflito ao interior das comunidades de
vida, é cabível reflexionar em torno a valores “comuns” e da “justificação” de normas?
Que novos desafios éticos o atual processo da racionalização globalizadora carrega con-
sigo e propicia?

A estrutura geral da argumentação que fomos expondo, à diferença de algumas


teorias da modernidade e da sensibilidade pós-moderna em voga – várias delas insistindo
em uma etapa mais homogeneizadora ou, então, em um processo heterogeneizador –,
propõe um conceito forte de interculturalidade. Trata-se de colocar as duas esferas em
uma tensão imbricada, inerente à própria dinâmica dos contextos discursivos. O discurso
e a ação humana não podem ser dissociados, pois o discurso da vida ética precisa da for-
malidade e da substancialidade ética. É preciso reconhecer que a modernidade presume
ter, na sua base, um projeto ético, resultante, em parte, de sua noção de racionalidade.

Assim, o fato de evidenciar o papel e o protagonismo dos contextos culturais exi-


ge estabelecer uma mediação teórica – a qual alude à distinção hegeliana entre ‘eticidade’
e ‘moralidade’ – procurando dar conta da crítica de tal racionalidade e das possibilidades
que surgem para outras racionalidades. Para dizer de outra forma, ao destacar o nexo
entre particularidade e universalidade, recusa-se a tese da impossibilidade de mudar a
facticidade dos processos civilizatórios. Na forma afirmativa, isso consiste em reafirmar o
papel decisivo que os sujeitos humanos e as comunidades têm em relação à finalidade de
suas ações. Por isso, o fato de pensar o protagonismo cultural e a decisão do sujeito moral
reivindica a responsabilidade em torno das ações, efetivadas sempre a partir das próprias
estruturações dinâmicas dos contextos culturais e dos “mundos de vida”.

De forma muito especial, nossa tentativa foi defender a noção de que a dinami-
cidade está associada ao conflito normativo e valórico, aspecto não apenas relacionado
às diferentes culturas, mas também presentes no interior da própria cultura na qual se
nasce. O conflito não é algo lesivo para o futuro da vida humana, mas é a forma per-
tinente a partir do qual se pode alcançar um projeto de humanidade o mais universal
possível, de acordo com as limitações específicas de mundos de vida dissimiles.

As problemáticas lingüísticas, pressupostas por estes novos desafios teóricos –


da mediação entre uma hermenêutica e pragmática, que inspiram uma ética intercultural
– exigem esboçar, de outra forma, o que se pode denominar como sendo uma ‘pragmáti-
ca contextual’. Em outras palavras, a ética intercultural assume um giro pragmático que
permite articular os discursos e as ações no seio de contextos culturais.

Ricardo Salas Astrain – 157


Essa apreciação pragmática permite olhar, de outro modo, a conflitividade nor-
mativa e valórica que está vinculada, certamente, à temática argumentativa da razão
moderna. Ela supõe não ser apenas consciente das racionalizações no âmbito social,
econômico e político inerente à civilização moderna, mas, ao mesmo tempo, ser cons-
ciente da necessária crítica à razão moderna ocidental. Este conflito de racionalidades
implica em um delineamento intercultural da razão, como procuramos desenvolver.

Este giro pragmático da ética pode ser resumido em quatro aspectos medulares,
os quais permitem pensar a mediação contextual da ação humana.

1. O problema da universalidade: a compreensão da vida moral inclina-se a ser


reduzida aos valores associados à vida ética ou à substantividade moral. Todavia, a partir
deles, é impossível alcançar uma instância normativa que seja válida para todos. A ques-
tão de uma pragmática contextual refere-se a como, a partir das estruturações semânticas
dos contextos, podemos avançar na definição de um princípio de universalização.

2. O problema da pessoa humana: a pragmática reivindicou um conceito de pes-


soa humana como interlocutor. A eticidade da atividade humana, como resposta cultural
às necessidades humanas específicas, serve para sustentar a noção de pessoa ‘digna’ em
situação e, portanto, no dever de assumir as exigências universais da pessoa humana.
O enfoque, que surge a partir desta pragmática contextual, postula a idéia de uma re-
flexividade inerente a qualquer pessoa humana, através da qual é possível ampliar suas
‘razões situadas’ a uma estruturação discursiva que alcance toda a humanidade.

3. A auto-realização pessoal e comunitária como projeto emancipador: pre-


tendeu-se que a “identidade” pessoal e comunitária seja a questão essencial da ética.
Todavia, se ela não for definida a partir de um contexto que assuma o interesse eman-
cipador, não é possível a realização autêntica de uma comunidade humana, porque não
seria possível conseguir a instância de ‘crítica’ ao inumano, presente no próprio mundo
de vida. Os contextos discursivos exigem a assunção tanto da estruturação tradicional
como da estruturação crítico-reflexiva da ação.

4. O problema da mediação: decorrente do aspecto medular acima, no sentido


de que a resolução dos conflitos internos exige o reconhecimento do relevante papel da
reflexividade e da crítica para o próprio contexto. Isso possibilita entender a complexa
mediação entre as normas e a vida material, cujo esforço de validação nunca é completo,
pois responde a uma dinâmica da reconstrução progressiva.

A partir do foi indicado, é possível entender porque a instância de tipo dialogal


reclama, necessariamente, re-estabelecer a tensão entre o fático e o contrafático, trans-

158 – ÉTICA INTERCULTURAL (Re) Leituras do Pensamento Latino-Americano


cendendo o próprio nível discursivo e, inclusive, superando a instância auto-referida,
dando acesso à assunção da diversidade. Trata-se da preocupação com as limitações
inerentes às próprias ações conceituadas e, de modo especial, em postular o caráter
contingente do recurso à força, que não pode ser universalizado como critério, pois
pressupõe a ruptura da estruturação discursiva intercultural.

Em um sentido menos técnico, consideramos que a problemática ética atual da


modernização e da globalização, bastante debatida pelos cientistas sociais e os filósofos,
conduziu, às vezes, a determinadas exagerações e equívocos, realçados na elucidação
de uma ética intercultural. A principal dificuldade está em superar os discursos um tanto
maniqueus, que dissociam a ambivalência dos processos de racionalização, mistifican-
do as efetivas ameaças e procurando aminorar as possibilidades que se abrem com cada
decisão. Através desse recurso, sucumbe-se a atitudes teóricas insustentáveis, quer de
sustentabilidade ideológica de uma racionalização instrumental ou, então, na denúncia
de um caos, própria de uma ‘teologia’ catastrofista.

A ética que assume a discussão dos conflitos a partir dos próprios contextos
culturais – onde existe tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade do processo
sociocultural e político – sustenta que eles são fonte de novas virtualidades da ação. Os
contextos não são totalmente delimitados, nem no seu início, nem no desenvolvimento
posterior, permanecendo, portanto, abertos em suas eventuais projeções e ao seu restabe-
lecimento, através de uma ação razoável por parte dos sujeitos. Certamente, a construção
de redes internacionais da economia massifica determinados processos e valores homo-
gêneos, que podem ser impositivos para a humanidade. Todavia, surgem, nesses mesmos
contextos, , ao mesmo tempo, processos interpretativos específicos que permitem re-si-
tuá-los, re-interpretá-los contextualmente, questionando sua pretendida universalidade.

Para terminar, salientamos que este livro de hermenêutica e pragmática circuns-


creveu os problemas éticos em contextos que não são apenas discursivos, mas também
são socioeconômicos e culturais, no entanto, nem por isso, menos éticos. Como reite-
ramos, os aspectos conflitivos, que ocorrem nestes âmbitos, remetem, de certa forma,
a uma “desregulação normativa” e a uma “crise de valores”. O apelo à produtividade
semântica dos contextos nos conduz a interpretar, de outra forma, tanto o impacto dos
novos valores associados às pautas de consumo, como ao deslocamento dos antigos
valores que regulavam os diversos e tradicionais mundos de vida. Além disso, e so-
bretudo, nos leva a apreender as sendas de um ‘sentido’ associado às formas criativas
e inovadoras, as quais dão conta de outras situações culturais e morais que afetam os
sujeitos e às comunidades de vida, e reconhecer a lenta e fatigosa marcha a favor de uma
universalização requerida para construir uma verdadeira humanidade.

Ricardo Salas Astrain – 159


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