Download
Download
Download
DOSSIÊ
as reinvenções dos best-sellers juvenis1
O artigo organiza um debate sobre a produção literária juvenil associada à venda massiva. Tem o duplo ob-
jetivo de conceituar os best-sellers e traçar as linhas históricas de conexão da produção contemporânea com
a presença do livro europeu e americano na edição brasileira, desde o século XIX. A formação de um espaço
literário nacional foi marcada pela importação de clássicos do patrimônio literário mundial, romances de
viagem e de aventura, narrativas sentimentais e contos de fadas orientados pela circulação transatlântica da
oferta e do consumo massivo. Os critérios estabelecidos para a análise da obra seriada da escritora Thalita
Rebouças, que hoje objetiva o fenômeno best-seller nacional, embasam o argumento de que o livro juvenil,
quando pego na lógica da circulação mundial da cultura, lança mão de um retorno temático ao passado,
reinventando-se ao fazer do velho sempre uma novidade.
Palavras-chave: Best-sellers juvenis. Circulação transnacional da cultura. Série literária. Autoria literária.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000300004 463
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
464
Andréa Borges Leão
465
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
isso, os best-sellers são saudados, para ficar parte se destina à compra e distribuição pelo
com a observação de Letourneux (2010), como governo federal e pelos governos estaduais, a
signos do retorno dos jovens às práticas de lei- exemplo do Programa Nacional do Livro Didá-
tura6 (Casa…, [20--]). Desse modo, conquistam tico (PNLD), e do Programa Nacional Biblioteca
respeitabilidade, ao menos no que concerne da Escola (PNBE). Não se pode perder de vista,
à educação do gosto de leitores massivos, en- nesta discussão, que as escolhas das agências
quanto seus autores vão perdendo posição aos não poderiam ser aleatórias, uma vez que são
olhos e julgamentos dos que falam em nome guiadas por comissões de especialistas.
das convenções canônicas da literatura, sen- Ao invés da pura e simples condenação
do postos no lugar de educadores, formadores dos best-sellers como gêneros menores, de es-
pela via do entretenimento. critas ligeiras e mecânicas, um caminho possí-
Do ponto de vista da crítica literária, o vel seria inseri-los nos regimes de historicida-
termo best-seller, observa Silvia Borelli (1996, de nos quais adquirem sentido, o que permite
p. 139), “preenche certo número de critérios e compreender tanto seus sucessos e suas rela-
requisitos que o separam da literatura culta e ções com as instituições de consagração e do-
erudita”. A classificação editorial, por sua vez, minação simbólica como a crítica literária que
priorizaria critérios quantitativos, encarando os condena. O importante, sugere Jean-Yves
o livro como mercadoria sujeita às regras do Mollier (2003), é indagar a história dos suces-
mercado, com “muito pouca, ou quase nenhu- sos literários do ponto de vista dos produtores
ma, densidade literária”, observa a socióloga. e dos leitores: o que se lê em determinados
Os elementos da linguagem e da narrativa só períodos, quais são os usos dos livros na vida
seriam levados em conta quando úteis para cotidiana (distração, instrução, passatempo) e
atrair o grande público, quer dizer, para me- se os best-sellers são fontes de distinção ou de
diar a relação de compra e venda do produto. O estigmatização para quem os lê ou possui.
best-seller, sob esse ângulo, não passaria de um Deslocada em relação ao que se pode-
livro de melhor venda, oferecido a um mercado ria chamar longevo paradigma Monteiro Lo-
homogêneo e sem rumo, como se não impor- bato – ainda em uso para definir o escritor de
tassem os agentes mediadores e as instituições excelência, que representa, a um só tempo, o
culturais que orientam as escolhas − as livra- moderno e a nação –, a geração de escritoras
rias, as editoras e as escolas − ou os projetos teen, composta por Thalita Rebouças, Paula
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 463-476, Set./Dez. 2016
intelectuais que visam a garantir a qualidade Pimenta, Patrícia Barboza, Babi Dewet, Bruna
dos produtos no mercado. Nessa linha de racio- Vieira, entre outras, é produto da internacio-
cínio, o mercado seria constituído apenas pela nalização da cultura. As trajetórias dessas jo-
comercialização do livro “procurado e selecio- vens mulheres cristalizam o investimento da
nado por livre escolha”, continua a socióloga edição juvenil brasileira no mercado latino-
(Borelli, 1996, p. 140). As listas dos best-sellers americano e europeu. E as consequências são
seriam montadas exclusivamente a partir dos ainda maiores. Se Thalita Rebouças passa a ser
dados de vendas que dispensam as mediações editada em Portugal, fecha contratos com edi-
de especialistas. Ora, quando consultamos as toras espanholas e italianas8 (Pimenta, 2010), e
listas dos livros infantojuvenis produzidos no Paula Pimenta segue em direção aos países de
país7 (Publish…, 2001), constatamos que boa língua espanhola e inglesa, pode-se vislumbrar
6
Ver trechos de entrevistas publicadas no site da escritora a constituição de comunidades transnaciona-
Thalita Rebouças, que ela sugestivamente nomeia de “casa is de leitores (em inglês, espanhol, italiano e
virtual”. Disponível em: http://thalita-reboucas.blogspot.
com.br/2009/01/que-cena-mae.html. português), aproximando, por exempo, os tra-
7
Foram consultadas, entre os anos de 2013 e 2015, as seguin-
tes fontes: jornal Folha de São Paulo, revista Veja e site Pu- 8
Matéria publicada na revista eletrônica Educar para
blishnews. Disponível em: http://www.publishnews.com.br Crescer, da Editora Abril, reproduzida da Veja Rio.
466
Andréa Borges Leão
467
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
romances para a juventude, a obra de escrito- polos,11 que podem ou não coincidir sem ser
res de sucesso, como os franceses Jules Verne obrigatoriamente excludentes.
e Sophie de Ségur, uma vasta literatura de via- Ora, uma obra, quando circula de um país
gens inglesas, todas as variações do Robinson ou continente a outro, adverte Pierre Bourdieu
Crusoé, dos contos de Perrault, dos irmãos (2009), leva consigo o campo de sua produção.
Grimm e das viagens de Gulliver. Anos após, As transferências entre espaços nacionais se fa-
empresas nacionais, como as editoras Melho- zem por meio de uma série de operações entre
ramentos, Globo e Edições de Ouro, seguem a agentes sociais, a exemplo da seleção do que me-
mesma linha e estratégia, publicando clássicos rece ser traduzido e publicado e dos que reúnem
como Pinóquio, Alice no País das Maravilhas e competência e legitimidade para verter os textos
O Pequeno Príncipe, elenca Laurence Hallewel, de uma tradição linguística a outra. Tais opera-
em O livro no Brasil (2012). Tudo indica que a ções de leitura estão baseadas em categorias de
contingência das trocas e empréstimos no vasto percepção e problemáticas próprias a um campo
espaço transatlântico prosseguiu na formação nacional específico. O trabalho da tradução atri-
de uma indústria cultural e ainda se faz notar bui novos sentidos aos textos. Na lógica das es-
nas reinvenções do século XXI. Assim, torna-se colhas, as afinidades de gosto de linhas editoriais
evidente que um dos princípios da formação da e títulos podem ser explicadas por homologia de
esfera literária juvenil brasileira são as incorpo- posições entre campos nacionais. As tramas de
rações de traduções e adaptações dos clássicos imposição simbólica ditadas pelas altas posições
universais. Vale observar que a categoria uni- de escritores e editoras não reconhecem frontei-
versal diz respeito aos conteúdos morais das ras, podendo se tornar um dos pontos de con-
narrativas, fazendo com que suas aplicações vergência entre as esferas nacionais e uma das
práticas sejam um complemento da leitura. propriedades do que se poderia chamar de es-
No primeiro momento, a criação de um paços transnacionais de circulação literária. Por
circuito de importação de obras estrangeiras exemplo, gigantes e potentes grupos editoriais
causou reação adversa. A principal delas foi empreendem negócios e fusões com os grupos
o movimento de formação de um mercado de brasileiros já estabelecidos no mercado.
obras populares nacionais, escritas, impressas Por outro lado, as estratégias de anexação
e comercializadas no país, protagonizado pe- de obras traduzidas ao repertório das coleções
los livreiros-editores Pedro da Silva Quaresma e séries juvenis brasileiras têm como objetivo
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 463-476, Set./Dez. 2016
468
Andréa Borges Leão
vividos por guerreiros, príncipes e princesas, “Não, meninas, não conheço absolutamente
anões e dragões. Não por acaso, o livro Peque- ninguém do mundinho fashion. Melhor procu-
no Príncipe, do francês Antoine Saint-Exupéry, rar agências de modelos no Google. Boa sorte!”.
publicado em 1943, é um dos mais traduzidos Para quem ocupa uma posição de fronteira en-
no Brasil e vem ocupando posição de destaque tre os espaços da produção simbólica e não
nas listas dos tops nacionais. Da safra dos best- estabelece interlocução com os mediadores
sellers destaca-se o já citado Meu pé de Laranja especializados, a atenção do público é atraída
Lima, de José Mauro de Vasconcelos, publicado mais pela distribuição massiva de sua imagem,
em 1968 e hoje traduzido em 52 línguas, o que que modula opiniões e dicas de escrita, obser-
aponta para o movimento de internacionaliza- va Nathalie Heinich (2012), do que pelas obras
ção dos produtos nacionais. Mais recentemen- publicadas. A conversa epistolar entre a autora
te, o mesmo tem acontecido com os sucessos de e seus leitores, via internet, não poderia girar
Thalita Rebouças, Fala sério, na editora Rocco, em torno de estética, simplesmente porque os
a partir de 2003, e de Paula Pimenta, Fazendo o jovens estão ainda sendo formados em litera-
meu Filme, lançado pela Gutenberg a partir de tura em escolas que talvez nem os preparem
2008. O que é efetivamente necessário compre- para o trabalho crítico. Para um autor, o que
ender é que as publicações em séries criam um importa, continua a socióloga, no regime de vi-
amplo e cativo mercado receptivo em torno de sibilidade contemporânea, não é propriamente
heróis e heroínas recorrentes e estão longe de a assinatura do nome, mas o rosto e o corpo
significar apenas obras mecânicas e apressadas. tornados visíveis em grande escala. O mundo
Situando a posição best-seller de Thalita dos livros pode levar às passarelas, já que am-
Rebouças na longa história da publicação dos bos são parte do mesmo universo fashion cons-
gêneros contos de fadas e romances popula- truído pelo mundo da autora. Vejamos a seguir.
res sentimentais, fica evidente a permanência Ser uma fada pop, emancipada e cons-
de velhos modelos literários em um universo ciente de suas emoções, sem coações externas
cada vez mais orientado pela circulação trans- para realizar magias, necessitando apenas da
nacional de bens simbólicos, sob o domínio boa leitura de um manual, corresponde ao
acelerado da concentração de grupos editoriais horizonte de expectativas de uma leitora-mo-
e de grandes redes de livrarias. delo. É o que expressa a personagem do livro
Uma Fada veio me visitar. Publicado pela edi-
469
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
acreditado na conversa de um grupo de ban- séries são descritas como um sintoma do triun-
didos que a convidou para uma festa num fo da industrialização da cultura. Em Fala Sé-
castelo. Eternamente jovem, aparentando ter rio!, iniciada em 2004, no selo Rocco Jovens
20 anos, a fada Tatu frequenta academia, vê o Leitores, cada episódio da vida da personagem
oprograma “Fadástico” aos domingos, flutua e Maria de Lourdes, a Malu, corresponde a um
reaparece, nos capítulos finais, à moda antiga: volume. O leitor acompanha o aprendizado da
com uma estrela lilás “carimbada na boche- heroína na seguinte ordem de relações: Fala
cha”. A mesma estrela que traz a autora na foto Sério, Mãe!, Fala Sério, Pai!, Fala Sério, Filha!,
que ilustra a orelha do livro, embaraçando o Fala Sério, Amor!, Fala sério, Amiga!, Fala Sé-
mundo da ficção e a vida de Thalita Rebouças. rio, professor!.
Essas aproximações entre os dois mundos con- No blog da autora, o público é chama-
tribuem para a seguinte estratégia de profis- do a intervir nos textos ainda não publicados
sionalização do autor best-seller: a busca de no suporte impresso, comentando as tramas
engajamento e cumplicidade do leitor para o precedentes, enviando sugestões para os pró-
exercício de uma função crítica singular, a de ximos episódios e para a construção de novos
comentador nos blogs e redes sociais. Outra personagens. Forma-se um triângulo amoroso
estratégia de afirmação da autoridade literária entre autor, leitor e personagem. Além de co-
é o encontro com o público nos blocos de car- mentadores, os leitores inspiram a elaboração
naval, em torcidas de futebol e séries de tele- de novos enredos. Uma visita à “casa virtual”
visão, espaços de reconhecineto de Thalita Re- acaba fidelizando-os.
bouças. O episódio da série Fala Sério!, Fala Em função dos e-mails recebidos após as
Sério, Mãe!, composto de crônicas humoradas, visitas, o que traduz o nível de prestígio alcan-
foi adaptado para o seriado As Brasileiras, da çado, Thalita resolve oferecer um curso online
Rede Globo, com o nome de A Mãe da Barra. sobre “como iniciar uma carreira de escritor”,13
Thalita assinou o roteiro e atuou como atriz. conferindo a si mesma a legitimidade para fa-
Jornalista de formação, a carioca Thalita lar em nome do que é e de como praticar a lite-
Teixeira Rebouças é a única filha de pai den- ratura. No compartimento Quem sou da casa,
tista e mãe dona de casa. Cursou a faculdade Thalita propõe o seu lugar no sistema de fron-
de direito por dois anos, antes de entrar para teira simbólica da autoria, onde se lê:
o curso de jornalismo, onde se titulou. Partici-
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 463-476, Set./Dez. 2016
470
Andréa Borges Leão
anos, sonhava em ser “fazedora de livros”. De- ra não se restringiria ao mundo da escrita. A
pois de corrigir os textos, preocupava-se com partir daí, começa um trabalho independente
os mínimos detalhes da produção − desenha- de divulgação do livro. Dispensou intermediá-
va, encadernava, grampeava a capa e as fo- rios como mais tarde dispensaria as mediaçãos
lhas. Com esses ingredientes autobiográficos, críticas, e saiu batendo nas portas das grandes
conquista um lugar de inserção ou paixão na redes de livrarias para anunciá-lo, como um
cultura literária juvenil e vai preparando, via caixeiro viajante ou um vendedor de enciclo-
internet, a recepção de sua obra. pédias. Não tardou para que a experiência da
A carreira literária de Thalita Rebouças escritora pop star se transformasse em ficção.
começou mesmo em 2001, na Bienal do Livro Em março de 2003, assina contrato com a edi-
do Rio de Janeiro, em frente ao estande de sua tora Rocco para a publicação do seu primeiro
primeira editora, Ao Livro Técnico. Foi assim, best-seller, Tudo por um Pop Star. Esse livro
narra a escritora: conta as aventuras de três amigas da cidade
de Resende, Manu, Gabi e Ritinha. O trio parte
Vários autores consagrados estavam presentes, como
eu poderia competir com eles? Meu Traição entre
em busca dos ídolos de uma banda internaci-
amigas era apenas mais um livro naquele universo nal que está vindo ao Rio de Janeiro fazer um
de títulos disponíveis na Bienal. O estande da minha show, no estádio do Maracanã. O cantor pop
editora, apesar de bonitinho e bem localizado, era um Júnior Lima assina um texto de apresentação
entre muitos espalhados em dois imensos pavilhões aos leitores, que provavelmente fazem parte da
do Riocentro. Se eu quisesse vender livros teria que
mesma comunidade de fãs de suas canções.
inventar uma forma de chamar atenção, de aparecer,
de me destacar e rápido (Thalita..., 2016).
O universo cor-de-rosa das meninas pop
sugere, como hipótese, a filiação atualizada
Nessa tarde, lembrou do tempo em que da escritora carioca aos romances populares
fazia teatro e começou “a bater palmas, a brin- e sentimentais da série Rosa da coleção Har-
car com quem passava na frente do estande e lequin, que publicava, nos anos 40 e 50 do
a anunciar o livro em altos brados, como um século XX, histórias açucaradas conhecidas
vendedor empolgado com o seu produto”. Co- como “romances para moças”. Esses romances
merciante dela mesma, Thalita Rebouças pre- formavam a sensibilidade das leitoras numa
para uma cena literária fora da literatura, dan- linha de continuidade à recepção feminina de
do um rosto a um nome que começaria a circu- histórias românticas no século XIX. Tudo sem
471
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
popular nasce no ano de 1836, com o apare- Do mesmo modo, a coletânea de contos
cimento do romance-folhetim publicado em O livro das princesas – Novos contos de fadas,
capítulos nos jornais franceses. Gênero menor publicada pela Galera, do Grupo Editorial Re-
diante da poesia e do teatro, o romance popular cord, em 2013, e na qual colabora a escritora
voltava-se para a satisfação das expectativas de Paula Pimenta, deve muito aos compiladores
novos leitores que emergiam com o progresso dos contos populares de fins do século XVII,
da alfabetização, as mulheres, os jovens e os em especial a Charles Perrault. O livro, que
trabalhadores. É amplamente difundido graças já nasceu duplamente clássico e best-seller, e
ao jornal, um meio acessível a todos. Do pon- deve muito à posteridade e às transformações
to de vista dos estudos literários, o romance do gênero.
popular inicia a sua carreira por uma não re- Uma chave de compreensão da carrei-
cepção, quer dizer, pela exclusão do repertório ra de Thalita Rebouças é a que situa sua obra
das obras legítimas e reconhecidas por instân- nas reinvenções retrospectivas de uma cul-
cias como a crítica e a escola. Assim, continua tura literária para a juventude. Ou melhor, a
Compère, os romances populares estão vincu- que apreende os processos de informalização14
lados a um público ampliado, formado pelos (Wouters, 2007) dos comportamentos que in-
progressos da educação e pelo desenvolvimen- vestem os livros alinhados em uma dinâmica
to de novas formas de publicação. O exemplo da produção que atualiza velhas fórmulas edi-
são as coleções de livros de aventuras e via- toriais, temas e modelos literários. Os roman-
gens do editor francês Louis Hachette, baratos ces de princesas com a nostalgia das aventuras
e de pequenos formatos, feitos para a venda e regressos do heroísmo, as narrativas intimis-
nas estações de trem de Paris. A partir daí, o tas de conselhos, diários e cartas, definem uma
romance popular foi se diversificando em sub- literatura sentimental, aparentada aos melo-
gêneros: a ficção-científica, os policiais e wes- dramas dos séculos XIX e XX. Não faltam re-
terns, as fantasias, o horror e demais formas gras e padrões de etiqueta. A permanência, na
sobrenaturais, os sentimentais, os eróticos e a atualidade, de temas já gastos, como as fadas
pornografia. Os subgêneros, voltados ao entre- e outros seres sobrenaturais, evidencia o pa-
tenimento dependem dos suportes de difusão pel da literatura nos processos de refreamento
e da distribuição comercial ampliada. dos afetos e controle das emoções, conforme
Pode-se, então, elaborar a hipótese de identificou Norbert Elias (1994) em estudo
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 463-476, Set./Dez. 2016
que as escritoras em posição best-seller utili- clássico baseado no corpus dos livros de boas
zam os blogs e redes sócias da internet do mes- maneiras. Tudo leva a crer que a civilidade
mo modo que os escritores de romace-folhetim contemporânea é um ponto de encontro com
do século XIX utilizavam o jornal impresso e o passado. Os sucessos juvenis, desse modo,
os das novelas utilizavam as rádios, eviden- ocupam tanto lugares de inserção nos sistemas
ciando uma linha de sucessão também midi- literários nacionais como se inscrevem no pa-
ática (Ortiz, 1988). Vale lembrar, com Marlyse trimônio universal.
Meyer (1996), a velocidade com que o roman- O que explica o sucesso de venda e a
ce folhetim oitocentista atravessa o Atlântico reação apaixonada são os pactos de leitura fir-
e passa a circular no Brasil. As traduções das mados entre autoras e leitores-fãs e um maior
novelas francesas para o Jornal do Comércio controle da produção e distribuição dos livros
eram feitas imediatamente após aparecerem por parte dos escritores. O meio digital abre ca-
em Paris. Por essas e outras estratégias de cir-
culação, os best-sellers são constantemente
14
Considero processos de informalização,emancipação
das emoções nas sociedades contemporâneas. Com a
reinventados, e a literatura de entretenimento maior flexibilidade e diferenciação dos códigos sociais, as
pessoas tornam-se menos rígidas e mais conscientes das
continua um sucesso. restrições sociais.
472
Andréa Borges Leão
minho para uma nova invenção autoral e, por do computador, até mesmo a leitura escolar de
conseguinte, para a redefinição de interesses apoio às “práticas da educação básica”16 (Fun-
e reposicionamento dos agentes nos circuitos do Nacional do Desenvolvimento da Educação,
de produção e recepção. A nova geração de es- 2012). Diante disso, os usos dos best-sellers
critoras, sem ambivalências, concebe os livros juvenis trazem para o debate o problema das
simultaneamente como obras literárias e pro- novas recepções e modalidades de apropriação
dutos à venda. Tudo indica que o acesso à visi- (nos blogs de escritores e nas redes sociais),
bilidade como uma marca de reconhecimento que supõem um gosto estético comum às con-
converte o sucesso comercial do livro em valor exões literárias das séries contemporâneas (aos
literário. Para elas, o importante é correspon- mesmos heróis e tramas). O leitor entra num
der aos horizontes de expectativas de meni- universo que se torna familiar e não consegue
nas fãs de princesas e de meninos românticos. mais sair dele, passando a viver a continuação
Suas atenções não se prendem aos paradoxos dos episódios na pele dos heróis. Esta lógica
do que seja ou não a verdadeira literatura, do pode fazer de um best um long seller, traçando
que seja o livro nacional ou as fronteiras que os destinos da série Fala Sério! por gerações de
separam o centro e as margens na esfera literá- leitores ainda por vir.
ria brasileira. O dilema do duplo, intelectual e
negociante, que marcou a carreira de gerações
de escritores em busca de autonomia no inte-
rior de um campo, passa longe delas. O desafio CONCLUSÕES
da análise é apreender a psicogênese15 do leitor
previsto nos best-sellers e, em consequência, A primeira conclusão é a de que um as-
seguir as pistas explicativas das identificações pecto comum aos livros eleitos pelo público,
e preferências de longo prazo. Essas pistas nos dos mais populares aos canonizados, é o des-
levam não apenas às variações no gosto lite- conhecimento de nacionalidades. A força de
rário, mas também às censuras e proibições representação dos best-sellers parece seguir a
veiculadas nas narrativas, à assimilação das lógica inversa dos discursos da identidade na-
regras e ao progressivo relaxamento no mane- cional. Se seus autores escapam à categoria de
jo das emoções nas práticas de leitura. Como gênios da nação, talvez isso não se deva uni-
lembra Roger Chartier (2000), o livro impresso camente à força da interlocução estabelecida
473
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
474
Andréa Borges Leão
BORELLI, S. H. S. Ação, suspense, emoção: literatura LEÃO, A. B. Brasil em imaginação: livros, impressos e
e cultura de massa no Brasil. São Paulo: EDUC: Estação leituras infantis (1890-1915). Fortaleza: INESP: UFC, 2012.
liberdade, 1996.
______. Nós e os franceses: Gilberto Freyre à prova de
BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do Adèle Toussaint-Samson. Etnográfica, Lisboa, v. 18, n. 3,
campo literário. São Paulo: Companhia das letras, 1996. p. 625-647, 2014.
______. Les conditions sociales de la circulation LE PROGRAMME du Festival d’Avignon OFF 2015 est
internationale des idées. In: SAPIRO, G. L’espace en ligne! 2015. Disponível em: https://compagnieaffable.
intellectuel en Europe: de la formation des États-nations à la wordpress.com/2015/05/29/le-programme-du-festival-
mondialisation XIXe-XXIe siècle. Paris: La découvert, 2009. davignon-off-2015-est-en-ligne/. Acesso em: 20 mar. 2016.
CASA virtual. [20--]. Disponível em: http://www.thalita. LETOURNEUX, M. Séries, collections et sérialité en
com/site/quem-sou.html. Acesso em: 20 mar. 2016. littérature pour la jeunesse. La revue des livres pour
enfants, Paris, n. 256, dec. 2010.
CHARTIER, R. La culture de l’imprimé, avant-propos. In:
______. Les usages de l’imprimé. Paris: Librairie artheme MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia
fayard, 1987. das letras, 1996.
______. As práticas da escrita: da renascença ao século das MOLLIER, J.-Y. Histoire culturelle et histoire littéraire.
luzes. São Paulo: Companhia das letras, 1991. (História da Revue d’histoire littéraire de la France, v. 103, n. 3, p. 597-
vida privada, 3). 612, 2003.
______. A Ordem dos livros, autores e bibliotecas na Europa OLIVERO, I. L’invention de la collection: de la diffusion de
entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1994. la littérature et des savoirs à la formation du citoyen au
XIXe siècle. Paris: Éditions de L’IMEC, 1999.
______. Lectures “populaires”: culture écrite et société. In:
______. L’ordre des livres (XIV – XVIII siècle). Paris: Albin ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira
Michel, 1996. e indústria cultural. São Paulo: Editora brasiliense, 1988.
______. Entre poder y placer: cultura escrita y literatura en PIMENTA, L. Ela atende as meninas. 2010. Disponível
la edad moderna. Buenos Aires: Ediciones cátedra, 2000. em: http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/thalita-
reboucas-574173.shtml. Acesso em: 5 jan. 2016.
______. Cultura escrita, literatura e história: conversas de
Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya PIMENTA, P. Princesa pop. In: CABOT, M. O livro das
Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: princesas: novos contos de fadas. Rio de Janeiro: Editora
Artmed editora, 2001. record, 2013.
COMPÈRE, D. Les romans populaires. Paris: Presses PUBLISH News. 2001. Disponível em: www.publishnews.
sorbonne nouvelle, 2011. com.br. Acesso em: 23 mar. 2016.
ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos REBOUÇAS, T. Uma fada veio me visitar. Rio de Janeiro:
costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 6. Editora rocco, 2007.
______. Como pueden las utopías científicas y literarias ______. Que cena, mãe! 2009. Disponível em: http://
influir sobre el futuro? In: WEILER, V. Figuraciones en thalita-reboucas.blogspot.com.br/2009/01/que-cena-mae.
proceso. Santafé de Bogotá: Fundación Social, 1998. html. Acesso em: 20 mar. 2016.
FREYRE, G. Sobrados e mucambos: decadência do ______. Quem sou. [20--]. http://www.thalita.com/site/
patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: quem-sou.html. Acesso em: 18 mar. 2016.
Global, 2003.
SAPIRO, G. Le champ est-il national? La théorie de la
FUNDAÇÃO Nacional do Livro. [20--]. Disponívelem: différenciation sociale au prisme de l’histoire globale.
http://www.fnlij.org.br/. Acesso em: 15 fev. 2016. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, p. 71-85,
déc. 2013.
FUNDO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO DA
EDUCAÇÃO. Apresentação. 2012. Disponível em; ______. (Ed.). Translatio: le marche de la traduction
475
FAZER DO VELHO UMA NOVIDADE ...
MAKING THE OLD A NOVELTY: reinventions of C’EST AVEC DU VIEUX QUE L’ON FAIT DU NEUF:
children and young adult literature best-sellers les ré-inventions des best-sellers juvéniles
This article organizes a debate about the young L’article propose un débat sur la production littéraire
adult literary production associated to mass juvénile associée aux ventes massives. Il a comme
production. Thus, the article has the double double objectif de conceptualiser les best-sellers et
objective of conceptualizing the best-sellers and de retracer le lien entre les tendances historiques
tracing the historic lines of connection of the de la production contemporaine, en prenant en
contemporary production with the presence of considération la présence des livres européens et
European and American books in Brazilian edition américains dans les éditions brésiliennes depuis
since the 19th century. The formation of a Brazilian le XIXe siècle. La formation d’un espace littéraire
national literary space was marked by the importing national a été marquée par l’importation des
of classics of world literary heritage, travel and classiques du patrimoine littéraire mondial, romans
adventure romances, sentimental narratives and de voyage et d’aventure, narratives sentimentales et
fairy-tales guided by the transatlantic circulation contes de fées, suivant la tendance de la circulation
of the offer and the mass consumption. The criteria transatlantique de l’offre et de la demande massives.
established for the analysis of the writer Thalita Les critères établis pour l’analyse de l’oeuvre de
Rebouças’ series, which focus on the national best- l’écrivaine Thalita Rebouças, qui fait actuellement
seller phenomenon today. These criteria supports the l’objet d’un phénomène national de best-seller,
argument that the young adult book when following se basent sur l’argument selon lequel les livres
the logic of world culture circulation makes use of juvéniles, lorsqu’ils entrent dans la logique de la
a thematic return to the past, reinventing itself by circulation mondiale de la culture, ont recours à
making the old a novelty. des thèmes du passé et se réinventent en faisant
toujours du vieux quelque chose de neuf.
Andréa Borges Leão – Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
Pós-doutorado em História Cultural, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, sobre as
coleções juvenis da Livraria Garnier, e no Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines, da
Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, sobre as traduções brasileiras dos livros juvenis de
Sophie de Ségur e Jules Verne. Integra os grupos de pesquisa CMD (Cultura, Memória e Desenvolvimento)
e GECCA (Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte). Desenvolve pesquisas na área da edição
e circulação da literatura infantil e juvenil. Atua nos seguintes temas: Sociologia e História Editorial,
Práticas Editoriais, Circulação da Cultura e da Literatura, Representações Literárias e Sociologia Histórica
da Cultura. Publicações recentes: O popular no Brasil numa fábula de costume francesa: estéticas e
mediações transatlânticas. Sociedade e Estado (UnB. Impresso), v. 31, p. 631-650, 2016; Fazer do velho
uma novidade: as reinvenções dos best-sellers juvenis. Caderno CRH (UFBA. Impresso), v. 29, p. 463-476,
2016; Ceará, lado moleque (as letras e a sociogênese do humor). Arquivos do CMD, v. 3, p. 1-16, 2015.
476