Piauí #209 - Fev24
Piauí #209 - Fev24
Piauí #209 - Fev24
piauí
Distribuição 100% gratuita - Clube de Revistas
Infiltrado no crime
O agente disfarçado que prendeu
25 traficantes, por Allan de Abreu
Foco no fogo
Os megaincêndios na Amazônia
com o El Niño, por Bernardo Esteves
Contra o luxo
Thallys Braga faz o perfil
do carnavalesco Leandro Vieira
A Covid longa
Mônica Manir descreve a imensa
fadiga que a doença lhe causou
O mago argentino
Alejandro Chacoff conta como
o escritor César Aira chegou lá
E mais
O ressentimento: a réplica de três autores
Afrofuturismo e racismo, por Tom Farias
A história das chuvas, por Fernando Tadeu Moraes
Diário do Geraldo: “Caro Júlio, para ganhar
o apreço dos bolsonaristas pare de doar alimentos
para os pobres. Abra uma igreja e enriqueça
à custa dos pobres. Aí eles vão te idolatrar”
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Distribuição 100% gratuita - Clube de Revistas
“As histórias contadas neste livro falarão forte na “Uma obra como Longe do ninho deveria ser leitura
alma de quem respira futebol. Pela primeira vez, os obrigatória para quem faz as leis e para quem as
dez jovens mortos no incêndio do Ninho do Urubu fiscaliza, além de ser também imperdível como
deixam de ser números para serem vida.” peça literária.”
— Gabriela Moreira, repórter do SporTV e ex-setorista — Tino Marcos, jornalista esportivo, cobriu a Seleção
do Flamengo pela ESPN Brasil Brasileira de Futebol por mais de trinta anos
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209
capa A prebenda, de Caio Borges, sobre quadro de Giotto di Bondone
colaboradores_4 Quem fez o quê na edição de fevereiro
imagens Caio Borges
Com roqueiros tarimbados, a banda Os Pitais anima pacientes, idosos e pessoas em situação
esquina_6 de rua; os três minutos mais longos da vida de um intérprete; a dupla que alimenta a Seleção
Brasileira; Rufo Herrera, o mais mineiro dos bandoneonistas argentinos; o youtuber americano
que se encantou com a cultura brasileira; a artista cearense que retrata suas ex-namoradas;
municípios do sertão baiano desbravam a viticultura
imagens Andrés Sandoval
O VALE-TUDO
questões cabeludas_12 Os métodos dos irmãos Batista na maior disputa corporativa do Brasil
Breno Pires + imagem Adriano Machado
O RESSENTIMENTO É REAL
questões políticas_réplica_22 Ao contrário do que pensa Vladimir Safatle, a psicologia afeta concretamente a política,
como atesta um estudo recente
Cesar Zucco, David Samuels e Fernando Mello + imagem Beto Nejme
O INFILTRADO
questões criminais_26 Como um policial federal levou 25 traficantes internacionais de cocaína à prisão
Allan de Abreu
FOCO NO FOGO
anais do antropoceno_32 Os rastros dos megaincêndios na Amazônia num ano de El Niño
Bernardo Esteves + imagem João Marcos Rosa
TORMENTAS BRASILEIRAS
questões pluviométricas_38 A necessidade de inserir a chuva nas políticas públicas ganha mais urgência
com a mudança climática no planeta
Fernando Tadeu Moraes
AFROFUTURISMO E RACISMO
questões literárias_52 As curiosas coincidências entre dois livros de ficção científica
Tom Farias + imagem Robinho Santana
A ANTINOVIDADE
vultos do carnaval_56 Como Leandro Vieira se tornou o carnavalesco mais proeminente do seu tempo
desafiando as artes visuais
Thallys Braga + imagem Fe Pinheiro
ADEUS ABRUPTO
memória_69 Brent Fay Sikkema, um embaixador da arte brasileira
imagem Luiz Zerbini
O MAGO
vultos da literatura_70 Como César Aira, o excêntrico das letras argentinas, ocupou o centro da literatura latino-americana
Alejandro Chacoff + imagem Manu Gomez
CRISÁLIDA
ficção_78 O tesouro que herdei da minha bisavó
Bárbara Mazzola + imagem Valentina Fraiz
piauí_fevereiro 3
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CAIO BORGES
Alejandro Chacoff Bárbara Mazzola Breno Pires Mônica Manir Tom Farias Roberto Muggiati
Caio Borges [Capa] é artista gráfico. Ilustrou o de Minnesota e coautor de Partisans, Mônica Manir [Sob o peso do mundo, p. 46] Alejandro Chacoff [O mago, p. 70] é escritor,
livro De A a Z, eróticas, de Sheila Hafez, pelo antipartisans, and nonpartisans. é jornalista. Publicou os livros Por um ponto ensaísta e editor de literatura da piauí. Autor
selo Laranja Original (Neotropica). Ilustração Fernando Mello, coautor, é pesquisador final (Com-Arte) e Diário de uma fadiga do romance Apátridas (Companhia das
baseada no quadro O pagamento de Judas, do Instituto Juan March, em Madri, (Cancioneiro). Fotografia de Egberto Nogueira. Letras).
c.1305, de Giotto di Bondone (c.1266-1337). co-organizador de Lobby desvendado
(Record). Ilustração de Beto Nejme. Tom Farias [Afrofuturismo e racismo, p. 52], Bárbara Mazzola [Crisálida, p. 78], atriz,
Fernando de Barros e Silva [Ninguém jornalista, escritor e roteirista, é colunista dançarina, mestra em artes cênicas e
incomoda os generais, p. 5] é repórter da Renato Terra [Minhas férias radicais, p. 25] é da Folha de S.Paulo. Publicou, entre outros escritora. Publicou o livro Cartas de amor
piauí. Ilustração de Allan Sieber. colunista da Folha SP e diretor de Narciso em livros, o romance Toda fúria (Gutenberg) e em despedida (edição autoral). Ilustração de
férias. Publicou Diário da Dilma (Companhia Carolina, uma biografia (Malê), sobre a vida Valentina Fraiz.
Breno Pires [O vale-tudo, p. 12] é repórter das Letras). Ilustração de Caco Galhardo. de Carolina Maria de Jesus. Ilustração de
da piauí. Robinho Santana. Rodrigo Garcia Lopes [Poesia, p. 79] é
Allan de Abreu [O infiltrado, p. 26], repórter poeta, romancista e tradutor, autor de
Alberto Benett [Cartuns a partir da p. 14], da piauí, é autor dos livros O delator, Thallys Braga [A antinovidade, p. 56] é O trovador (Record) e Poemas coligidos
cartunista, é sócio fundador e editor do Cocaína: a rota caipira e Cabeça repórter da piauí. Fotografia de Fe Pinheiro. (1983-2020) (Kotter Editorial), entre outros.
Jornal Plural Curitiba. Chargista da Folha de branca (Record). Ilustração de Andréa Ebert.
S.Paulo, publicou Amok: cabeça, tronco e Roberto Muggiati [A big sister do pop, p. 64],
membros (Mórula) e Anedonia (Arte & Letra). Bernardo Esteves [Foco no fogo, p. 32] é jornalista, foi editor das revistas Manchete, Luiz Chagas [Pimenta-rosa, p. 82] é
repórter da piauí. Publicou Admirável Novo Fatos & Fotos e Veja. Publicou A contorcionista jornalista, músico, tradutor, tocou com
Cesar Zucco [O ressentimento é real, p. 22] Mundo: uma história da ocupação humana mongol (Record). Ilustração de Kleber Sales. Itamar Assumpção e é pai dos músicos
é professor na FGV, coautor de Partisans, nas Américas (Companhia das Letras). Tulipa e Gustavo Ruiz.
antipartisans, and nonpartisans (Cambridge Luiz Zerbini [Adeus abrupto, p. 69] é artista
University Press). David Samuels, coautor, é Fernando Tadeu Moraes [Tormentas plástico. Seu livro mais recente é Luiz Zerbini: Ilustrações de Esquina por Andrés
cientista político, professor da Universidade brasileiras, p. 38] é jornalista. sábados, domingos e feriados (Cobogó). Sandoval.
Em Loucura na
civilização: uma
história cultural da
insanidade, o sociólogo
britânico Andrew Scull
vai do mundo antigo
à contemporaneidade,
em diversos pontos do
globo, para revelar como
os transtornos mentais
foram estigmatizados
e usados para justificar
o silenciamento dos
indesejados socialmente.
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ALLAN SIEBER_2024
NINGUÉM INCOMODA
OS GENERAIS
Um ano depois do 8/1, a democracia sobrevive
sem enfrentar a nata dos golpistas de farda
S
ou de um tempo em que o das ruas mudou de patamar após o ato da programação para transmitir flashes ao ção pelo panfleto talvez se explique pelo
Grupo Globo era chamado de Sé, mas duas semanas antes, em Curitiba, vivo da manifestação, a Globo foi alvo histórico da emissora, preocupada em
Organizações – Organizações 50 mil pessoas já haviam dado a largada de uma intimidação cinematográfica. alardear num momento grave do país
Globo. De um tempo em que dos grandes comícios pelas diretas. Essa Um helicóptero do Exército passou a que mudou de lado para valer. Talvez,
Amaral Netto era “o repórter” primeira manifestação foi simplesmente sobrevoar o prédio da emissora, deten- mais do que isso, o título reitere a mes-
e a cadeira de William Bonner era ocu- ignorada pela Globo no Jornal Nacional, do-se na altura do décimo andar, onde ma lógica orwelliana, com sinais troca-
pada por Cid Moreira. Para quem per- seguindo a boa lógica orwelliana: não no- se localizava a sala de Roberto Marinho. dos: se a gente está dizendo que ela
tence à minha geração, o compromisso ticiamos, logo não existiu. Era possível discernir através da vidraça resiste é porque resiste.
da família Marinho com a democra- No caso de São Paulo, a operação de o vulto dos ocupantes da aeronave, al- O documentário é melhor que isso.
cia não tem nada de trivial. Só por isso apagamento da realidade era mais deli- guns fardados, um deles com uma me- Além do acesso aos principais persona-
já mereceria registro o documentário cada. Calculou-se à época que 300 mil tralhadora apontada para a janela. “Ali gens da crise, do lado governista, e das
8/1 – A democracia resiste, exibido pela pessoas inundaram o Centro da cidade. ficaram parados por alguns infindáveis imagens inéditas, a obra expõe com cla-
GloboNews por ocasião do aniversário Ainda que o número estivesse superfatu- minutos e depois partiram. Nunca con- reza a aposta dos golpistas na glo, a Ga-
do golpe que fracassou, atualmente dis- rado, tratava-se de um evento histórico, segui saber de onde partiu a ordem para rantia da Lei e da Ordem, pela qual a
ponível na Globoplay. no sentido forte da palavra – a história do que o helicóptero viesse nos assombrar”, baderna instaurada se converteria em
A rigor, como disse Eduardo Escorel país estava sendo escrita naquele mo- relatou Marinho ao livro de memórias golpe consumado, aí sim. “Se eu dou
em sua coluna semanal no site da piauí, mento e naquele lugar. Entre não dizer oficiais do Jornal Nacional. autoridade para eles [os militares], eu ti-
a obra dirigida por Julia Duailibi e Ra- nada e noticiar a verdade, a Globo optou Corta. nha entregado o poder para eles”, diz o
fael Norton não é um documentário, e por um caminho alternativo (já naquela presidente a certa altura, explicando por
sim uma reportagem televisiva. Não se época a obsessão pela terceira via). enho absoluta certeza de que tor- que optou pela intervenção federal. Lula,
trata, como ele explica, de uma “firula
semântica”, uma vez que “há diferença
notória entre, de um lado, o que perten-
Cito a descrição que faz desse episó-
dio o jornalista Oscar Pilagallo, no livro
O girassol que nos tinge: uma história
T ciam por uma virada de mesa.
Porque tinham ojeriza, ódio – um
ódio nos olhos, um ódio que não é presu-
aliás, sempre à vontade com jornalistas,
parece tenso diante de Duailibi.
Outro ponto alto da obra está na re-
ce ao âmbito do jornalismo e, de outro, das Diretas Já, o maior movimento po- mido, eu vi – ao que nós representávamos. constituição da tensão extrema e da
uma forma específica de cinema”. pular do Brasil, lançado no ano passado Quem fala aqui já não é Roberto Ma- grande incerteza que marcaram as ne-
É uma boa discussão essa que envol- pela Fósforo: rinho, mas Flávio Dino. O relato faz par- gociações do governo recém-empossado
ve a definição das fronteiras entre a cria- Pela primeira vez, a emissora fez ima- te de uma passagem do documentário com os militares nas horas que se segui-
ção artística da técnica jornalística, o gens de um comício. Mas o noticiário (vamos chamá-lo assim) 8/1 – A democra- ram ao golpe frustrado. Mas aqui o fil-
documentário e a reportagem. Escorel daquela noite informou na escalada – os cia resiste, quando o então ministro da me também revela seus limites e serve
sabe do que fala (basta lembrar que seu destaques do dia – que o evento da Praça Justiça de Lula descreve a reunião com como documento histórico tanto pelo
extenso currículo inclui a montagem de da Sé tinha sido um show musical por membros do Alto Comando do Exército que mostra como pelo que deixa de
Terra em transe, de Glauber Rocha, e ocasião do aniversário da cidade. Não na noite da intentona golpista, horas de- mostrar. Somos informados ao final que
Cabra marcado para morrer, de Eduardo houve menção à natureza política do pois da devastação. Pelo contexto da fala, os militares golpistas foram procurados
Coutinho, nada menos). Eu me atreve- comício no jornal televisivo de maior au- fica claro que Dino se refere ao então co- e não quiseram falar. Não é suficiente
ria a dizer apenas que nem sempre “há diência do país. Quanto à reportagem mandante do Exército, Júlio Cesar de para desfazer a sensação de que houve
diferença notória” entre o que pertence exibida na sequência, de pouco mais de Arruda, que se recusava a autorizar a pri- certa cautela, ou quase uma mesura da
ao universo do jornalismo e o que é pró- dois minutos, só mencionava brevemente são da turba que havia retornado para o emissora em relação às Forças Armadas,
prio do cinema documental. a reivindicação por eleição direta. acampamento em frente ao q.g. depois de como se a alma de José Múcio estivesse
Mas o nosso problema aqui é anterior: Foi preciso esperar pelo comício da vandalizar os prédios dos Três Poderes. presente também no espírito da edição.
somos de um tempo, Escorel e eu, em Candelária, a duas semanas da votação No topo da hierarquia do Exército, o O ministro da Defesa acaba sendo,
que a Globo costumava vender gato por da Emenda Dante de Oliveira, que se- general agia abertamente como capanga por obra de sua pusilanimidade, um
lebre e a “reportagem televisiva” não di- ria derrotada no Congresso, para que a de luxo de um punhado de baderneiros. personagem relevante, menos pelo que
feria muito da Voz do Brasil. Globo decidisse enfim fazer o que se E chegou a zombar do interventor Ricar- diz e mais pelo que representa como
pode chamar de cobertura da campa- do Capelli, dizendo na frente de todos, sintoma de um arranjo histórico. A de-
C
ompletaram-se no último dia 25 de nha das Diretas Já. O ato no Centro do durante a mesma reunião, que o poder mocracia brasileira sobrevive, mais do
janeiro 40 anos do comício pelas Rio reuniu, conforme se noticiou na bélico do Exército era maior do que aque- que resiste, quase como uma solução de
Diretas Já na Praça da Sé, em São ocasião, mais de 1 milhão de pessoas. le dos policiais encarregados pela prisão. compromisso, sem enfrentar à altura a
Paulo. Foi um divisor de águas do movi- No capítulo dedicado ao comício ca- Diante dessas circunstâncias, o título nata dos golpistas de farda. E para pio-
mento popular que tomou o país nos pri- rioca – Candelária, enfim –, Pilagallo do documentário – A democracia resiste rar, como a gente sabe, o pulso das ruas
meiros meses de 1984 pedindo a volta da começa contando que na tarde daquele – soa excessivamente otimista e tem algo ainda está mais para Eu te amo, meu
eleição direta para presidente. A pressão 10 de abril, depois de interromper sua do espírito de grêmio estudantil. A op- Brasil do que para Apesar de você. J
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ANDRÉS SANDOVAL_2024
O PODER DA MÚSICA
Com roqueiros tarimbados, a banda Os Pitais anima pacientes, idosos e pessoas em situação de rua
A O
cena parecia ter pulado de um li- s Pitais são uma banda sem forma- Os roqueiros chegaram com violões, Os Pitais já sabem o repertório que
vro de Oliver Sacks, o neurologista ção fixa. Reúne músicos tarimba- dispostos a animar um pouco o ambien- funciona para cada tipo de público. No
inglês que publicava crônicas so- dos do rock nacional, de várias te. Não puderam entrar no quarto, então show da Vila Matilde, os pacientes dan-
bre seus pacientes para mostrar os mis- gerações, que tocam como se não houves- tocaram na sala de espera e criaram uma çaram com Anunciação, de Alceu Valen-
teriosos labirintos do cérebro humano. se amanhã em instituições públicas de pequena comoção entre os funcionários. ça, e bateram palmas ao ouvir Epitáfio,
No final de 2019, a moral andava baixa saúde, abrigos ou ongs. Já fez uma cente- “A gente viu aquelas reações e resolveu dos Titãs. Os homens cantaram com vi-
no Centro de Atenção Integrada à Saú- na de shows em São Paulo, para plateias fazer um show maior por ali, para agra- gor Metamorfose ambulante, de Raul
de Mental da Vila Mariana (Caism grandes ou com meia dúzia de gatos pin- decer à equipe do hospital”, conta Bu- Seixas. O show foi encerrado por Kiko
vm), na Zona Sul de São Paulo. O lugar gados, para audiências animadas ou des- tler. Conseguiram autorização da direção Zambianchi, com a infalível Primeiros
faz parte do sistema estadual de saúde e falecidas. Apresentou-se em pátios de para tocar no pátio, chamaram outros erros cantada em coro, com alguns pa-
é um portento composto por pronto- hospitais – diante de pacientes levados músicos. “E o show deixou todos nós cientes de olhos fechados repetindo o
socorro, enfermarias, hospital-dia e am- para o ar livre em macas, braços conecta- emocionados. Alguma coisa acontece refrão “mas só chove, chove...”.
bulatórios de psiquiatria – ali passam dos a aparelhos de soro. Cantou para quando você toca nesses ambientes e vê Zambianchi está entre os mais incan-
cerca de 2 mil pacientes por mês. crianças em antessalas de quimioterapia. o efeito nas pessoas”, diz Rodrigo Lumi- sáveis integrantes do projeto. Já foi assal-
Naquele período, o Caism acabara de Tocou sob lonas montadas em praças pú- natti, cantor, baixista, produtor e um dos tado no trânsito, a caminho de uma
enfrentar mudanças administrativas e de- blicas às vésperas do Natal para pessoas voluntários mais assíduos da banda. De- apresentação, mas conseguiu chegar as-
missões. Para aplacar o fechamento de um em situação de rua. Animou salões enfei- pois da apresentação, bebendo no bar da sim mesmo. Depois do show na Vila
ano duro, a coordenação da unidade de- tados de centros de acolhimento a idosos, esquina e ainda em estado de graça, os Matilde, em uma salinha para onde foi
cidiu chamar alguma atração musical. que dançaram formando trenzinhos. Os músicos resolveram que fariam outros do levado pela equipe de psicólogas do
Convidou a banda Os Pitais, formada músicos riram quando pacientes de cen- gênero. O cantor e apresentador China Caps para comer bolo e, sobretudo, tirar
por músicos voluntários. “Foi mágico”, tros de reabilitação de drogas ameaçaram criou o nome: Os Pitais. fotos, contou por que é tão assíduo nos
descreve o psiquiatra Ary Gadelha, pro- matá-los se não tocassem aquela do Raul shows da banda de voluntários. “Poder
N
fessor e vice-chefe do Departamento de Seixas. Por via das dúvidas, tocaram. o final da manhã de 17 de janeiro, tocar para essas pessoas é tão bom que é
Psiquiatria da Escola Paulista de Medici- Fazem parte da trupe nomes como o quarta-feira, Os Pitais foram tocar viciante. Hoje é o meu cachê espiritual.”
na/Universidade Federal de São Paulo, roqueiro Kiko Zambianchi, cujos hits to- no Centro de Atenção Psicossocial Em anos de estrada, Os Pitais foram
instituição à qual coube administrar o cam fogo nas plateias; o metaleiro Andreas (Caps) Adulto iii – Vila Matilde, na Zona criando seus frutos. Um deles é o Pat-
Caism durante as mudanças. Kisser, guitarrista do Sepultura, a mais Leste de São Paulo, que recebe pessoas fest, festival beneficente de música cria-
Aconteceu então o toque oliver-sackia- famosa banda de heavy metal brasileira; com transtornos mentais graves. A banda do por Andreas Kisser em homenagem
no: à medida que as músicas avançavam, o cantor e músico André Frateschi, que chegou com uma formação de sete músi- à sua mulher, a empresária e produtora
uma paciente em estado catatônico co- levanta os shows com interpretações do cos, entre eles Kiko Zambianchi e Johnny Patrícia, que morreu em 2022 em decor-
meçou a se movimentar na cadeira, até Legião Urbana. Às vezes, aparecem con- Monster, e gente das novas gerações, rência de um câncer de cólon. Fã do
que se levantou. Gadelha conta: “O vo- vidados de última hora, como integrantes como o roqueiro Igor Godoi, da banda projeto Os Pitais, ela havia pedido para
calista perguntou se a paciente queria das bandas Cachorro Grande ou nx Zero, Sioux 66, e o cantor Thiago Juliani. comemorar o fim de sua primeira fase
cantar. Ela, a princípio lentificada e bal- ou a cantora Zélia Duncan que, em ou- Quando os músicos entraram em uma de quimioterapia com uma festa em
buciando, e depois se soltando, cantou a tubro do ano passado, ganhou um bolo de sala decorada com balões azuis e roxos, já que eles tocariam. Não deu tempo – Pa-
música Malandragem. Não foi curada aniversário (ocorrido dois dias antes), de- encontraram um pequeno aparato de mi- trícia morreu logo depois.
pelo episódio, embora tenha melhorado. pois de cantar para pessoas em situação crofones e caixas, providenciados pelo Nas duas edições do Patfest, entre de-
Mas a equipe, que lida com as incertezas de rua em uma instituição beneficente. produtor Flavio Cruz, voluntário da trupe zenas de artistas de estilos díspares – como
de tratar pessoas com quadros mentais Todos são arregimentados para as há seis meses. “Acompanhei um show Sandy, Chitãozinho e Xororó, Nando Reis
muito graves, se entreolhou, como quem apresentações por meio de um grupo de deles na oncologia do Hospital das Clíni- e João Gordo –, a banda Os Pitais subiu
percebe que ali tem mesmo uma pessoa WhatsApp administrado por Anna Bu- cas e vi um paciente muito debilitado e ao palco com dez músicos formando um
que vale a pena ser resgatada. Foi um mo- tler, ex-diretora do núcleo de relações emocionado, sendo erguido de uma ca- paredão de violões. O festival acabou
mento fundamental de conexão.” E brin- artísticas da mtv. Butler criou o projeto deira de rodas por sua mulher para dan- atraindo mais ajuda para o projeto. Depois
ca: “Antes, para mim, a melhor banda meio que por acaso. Em 2016, passou çar. Caí no choro e pensei: pode ser a dele, um grande escritório de advocacia
eram os Beatles. Hoje são Os Pitais.” meses acompanhando a mãe na interna- última dança deles. Comecei a ajudar nos ofereceu assessoria pro bono para trans-
Depois do episódio, o grupo se apre- ção de um hospital em São Paulo. Rece- shows e continuo chorando em todos.” formar Os Pitais em uma ong. “A ideia
sentou outras vezes no Caism – e o beu a visita de Duda Machado e Martin Antes de cada apresentação, Cruz pede agora é levar o projeto para mais lugares,
centro incorporou a música como um Mendonça, que foram baterista e guitar- equipamentos emprestados em empresas com frequência maior”, planeja Butler. J
tratamento auxiliar. rista da cantora Pitty. de produtos para eventos. Angélica Santa Cruz
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Q
uando cursava letras na Universi- fora, companheiras e companheiros de di- grogue em campo. Não se sabe se a água
E
m 20 de dezembro de 2023, cho- dade Federal da Bahia, em 2005, plomatas que tinham aquilo como hobby”, foi mesmo “batizada” (a estrela do time
veu o esperado para todo o mês Sipho viu um anúncio sucinto na diz Sipho. Embora ele não queira ser co- rival, Diego Maradona, dizia que sim).
em Salvador. Iansã tinha decidido edição dominical do jornal A Tarde: nhecido como um intérprete de nicho, Felizmente, a equipe da cbf conta hoje
encerrar a folga de Bruno Sipho, na “Precisamos de alguém que fale inglês.” não dá para negar que seu nome sempre com profissionais para garantir que os
Ilha de Maria Guarda, em Madre de Como preenchia com eficiência o úni- é sugerido quando o contratante quer jogadores só consumam alimentos e be-
Deus, na Região Metropolitana da ca- co pré-requisito da vaga – havia aprendi- um profissional negro. Aliás, ao pedirem bidas que propiciem o melhor rendimen-
pital baiana. Depois de ter trabalhado do a língua de Shakespeare e Beyoncé indicação de outros intérpretes racializa- to. Já foi o tempo em que, nos intervalos
como intérprete inglês-português no Con- em uma unidade do ccaa no bairro de dos, Sipho sempre tem dificuldade em das partidas eles bebiam água e chupa-
gresso Brasileiro de Urologia, no final Itapuã –, ligou para o número informa- encontrar nomes para recomendar. Mo- vam laranjas, agora substituídas por repo-
de novembro, tudo que ele queria era do e marcou a entrevista de emprego. tivo pelo qual montou, em 2023, junto à sitores de energia. “Cada jogador tem a
sossego. Mas o temporal atrapalhou a O processo seletivo incluiu uma dinâ- Universidade Estadual da Bahia, o curso sua garrafinha individualizada, com seu
estadia na ilha e, no dia seguinte, assim mica de grupo em que Sipho era o único Democratização do ofício de intérprete: nome escrito e um preparo especial de
que começou a estiar, Sipho e sua mu- negro. Todos os outros candidatos diziam formação profissional de jovens negros acordo com suas necessidades energéti-
lher, Suiane Mbali, entraram num bar- ter aprendido inglês em viagens de inter- como mecanismo para combater as iniqui- cas e de vitaminas”, explica a médica
co e voltaram para o continente. câmbio ou em temporadas fora do país. dades sociais. Ao longo de dois meses, carioca Andréia Picanço, de 41 anos.
Eles tinham acabado de desembar- “Então dei um supermigué”, conta ele. conseguiu capacitar doze pessoas. Ela e o chef gaúcho Jaime Maciel,
car quando o celular de Sipho tocou. “Falei que tinha morado fora, na primei- de 67 anos, comandam a zaga que de-
S
Era um funcionário da produtora baia- ra cidade que me veio à mente e que eu ipho só se deu conta de que Beyon- fende a alimentação dos atletas. Se o
na idw, que buscava com urgência um achei que ninguém ia conhecer: St. Pe- cé estava em Salvador e realmen- posto de treinador é incerto – em janei-
intérprete negro. A BeyGood, institui- tersburg.” Deu certo. Poucos dias depois, te falaria aos fãs baianos quando ro, a cbf substituiu Fernando Diniz por
ção filantrópica da cantora Beyoncé, ele já trabalhava como intérprete da de- McGregor, a diretora da BeyGood – Dorival Júnior, a segunda troca depois
havia decidido, de última hora, reali- legação americana de vôlei de praia, que cujas falas ele estava traduzindo –, esca- da Copa de 2022 –, na cozinha da Sele-
zar um evento em Salvador e precisava participava de uma competição na Bahia. pou do discurso institucional e começou ção reina a estabilidade. Formada em
de um profissional para traduzir o que Depois disso, Sipho não parou mais. a esquentar o público: “Se vocês querem medicina esportiva pela usp, com pós-
a americana Ivy McGregor, diretora da Além de atuar em congressos de me- ver alguém essa noite, vocês têm que pe- graduação em nutrologia, Picanço é a
entidade, falaria ao público soteropoli- dicina, engenharia e outras áreas espe- dir. Quem vocês querem ver?” Em torno titular do cargo de nutróloga há cinco
tano. “É coisa boba, no máximo vinte cializadas, ele trabalhou no Panorama de Sipho, os outros profissionais que anos. Maciel é veterano: serve os me-
minutos”, disseram a Sipho. Percussivo Mundial, evento musical que ocupavam a cabine fotografavam os te- lhores boleiros do país há 28 anos.
O intérprete de 42 anos foi correndo acontece todos os anos em Salvador. Tam- lões, embasbacados. Só ele se concentra- Em períodos de treinos e competições,
para o Centro de Convenções, na Boca bém foi intérprete das aulas que Mestre va na tarefa. “Respira, respira”, disse a si a dupla sua os aventais: são cinco ou seis
do Rio, onde acontecia o Club Renais- King (1943-2018), pioneiro no ensino da mesmo. “Agora todo mundo pode ficar refeições diárias servidas aos atletas, sem-
sance, um evento para os fãs da cantora dança afro na Bahia, ministrou para es- louco, ensandecido, menos você.” pre de três em três horas. Um cardápio
de Single ladies comemorarem o lança- tudantes estrangeiros, e ajudou alguns Beyoncé permaneceu apenas três decidido com base em vários fatores: as
mento no Brasil de Renaissance: a film figurões a se fazerem entender no Bra- minutos no palco, falando para os 3 mil informações de cada craque passadas pe-
by Beyoncé. sil: a ex-secretária de Estado america- fãs que tiveram a chance de estar lá – e los seus clubes de origem, os exames mé-
Ao chegar lá, no fim da tarde, Sipho na Condoleezza Rice, o ator e ativista outros milhares que acompanharam as dicos realizados na apresentação à cbf, os
encontrou um clima bem diferente de Danny Glover, e Carl Ray, maquiador lives feitas por aqueles sortudos. “Não relatórios do fisiologista a cada treino ou
outros eventos do gênero em que havia de Michelle Obama. há ninguém como vocês. A primeira e atividade física. Há ainda que se conside-
trabalhado: muito cochicho, olhares única Bahia” – essa foi a frase traduzida rar casos específicos de alergia ou intole-
oblíquos e poucas instruções objetivas. por Sipho que mais repercutiu entre rância a certos alimentos – e tudo isso
Ele resolveu espiar nas redes sociais se baianos e brasileiros, incrédulos com a mantendo a variedade de sabores, com
havia pistas do que estava acontecendo. aparição cintilante da maior estrela três tipos diferentes de proteína (carne,
Foi parar em uma plataforma de rastrea- atual da música negra nos Estados Uni- frango ou peixe), servidos todos os dias, de
mento de voos, na qual milhares de fãs dos. O intérprete não teve nenhum con- modo a agradar paladares de jogadores
acompanhavam o trajeto de um Bom- tato direto com a diva. que se acostumaram a culinárias tão dís-
bardier Global 7500, o maior jato exe- Não foi a primeira vez que Beyoncé pares como a da Inglaterra (onde jogam
cutivo do mundo, que partira de Nova esteve na Bahia: ela já se apresentou em Gabriel Jesus e outros) e a da Arábia Sau-
York e se aproximava do Brasil. Salvador em 2010 e passou férias em Tran- dita (para onde se mudou Neymar).
Sipho assinou um termo de confiden- coso, no Sul do estado, em 2013. Sipho, “Em viagens ao exterior ou mesmo a
cialidade e foi encaminhado para o baú por sua vez, nunca pisou nos Estados outras regiões do país, procuramos sem-
de um caminhão que estava estacionado Unidos. Nem mesmo em St. Petersburg, pre incluir algum prato que homenageie
atrás do palco. As mensagens de texto cidade da Flórida que mencionou na a culinária local”, diz Maciel, trajado a
piscavam em seu celular. Um Bombar- mentirinha durante a entrevista de empre- caráter com o dólmã branco que distin-
dier havia realmente pousado no Aero- go. No ano passado, ele fez sua primeira gue o líder da cozinha e shapô na cabeça.
porto Internacional de Salvador e uma viagem para o exterior e preferiu viajar Mas os jogadores que atuam no exterior
equipe de batedores da Guarda Munici- pela África Austral. Visitou a África do – maioria absoluta do grupo – chegam
pal fora vista escoltando um carro preto Sul, Essuatíni (a antiga Suazilândia), com outras carências. “Eles querem ma-
blindado, em direção à orla. Ninguém Moçambique, Zimbábue e Botsuana. tar a saudade do arroz e feijão”, diz o chef.
da organização dizia nada a respeito. “Muito melhor”, diz. J
A
O intérprete foi instalado em uma ca- Kikita Soares Bahiana chegada de Maciel à Seleção se
bine na qual havia uma televisão, fones deu por um lance do destino. De-
de ouvido, um microfone e um com- pois de trabalhar quinze anos em
putador. O que quer que fosse dito em COPA E COZINHA um hotel em Porto Alegre e outro em
inglês no palco do evento deveria ser re- A dupla que alimenta a Canela, no Rio Grande do Sul, em 1995
petido por ele em português. Um gera- Seleção Brasileira ele foi comandar a cozinha do Jandaia,
dor de closed caption transformaria a fala em Santana do Livramento, cidade na
N
em legendas que seriam exibidas para o futebol, o mal pode ser o que en- fronteira com o Uruguai, onde a Sele-
toda a plateia – que, àquela altura, já es- tra e não o que sai da boca do ho- ção se preparava para a Copa América.
tava aos gritos: Beyoncé havia postado no mem. Que o diga o lateral Branco: Quando a delegação nacional se transfe-
Instagram uma foto em que o cavalo pra- no jogo em que o Brasil foi eliminado riu para a cidade uruguaia de Rivera,
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Na Copa do Catar, teve péssima reper- música esteve sempre presente na se em bares, praças e teatros. Aproveitou
cussão o episódio em que alguns jogado- casa em que Herrera cresceu. Nas a vida errante para pesquisar a música
res foram a um restaurante, a convite de noites frias da região rural de Rio folclórica de cada país. Passou um ano
Ronaldo Fenômeno, para jantar carne Primero, província de Córdoba, seu pai, com os indígenas aimarás, nos Andes
embrulhada em folhas de ouro. Mas a Pedro, um camponês, tocava violão en- bolivianos. Em 1963, um grupo de La
nutróloga da cbf garante que não proce- quanto a mãe, Cristina, aquecia água para Paz o convidou para gravar um disco
de a história de que os craques sejam fes- o mate. Quando Herrera tinha 5 anos, em São Paulo, onde estavam os melho-
teiros desregrados. “Já faz um tempo que ouviu um bandoneonista, convidado à res estúdios. O argentino encantou-se
os atletas profissionais de futebol têm casa por um de seus sete irmãos, tocar com o samba e apaixonou-se pela litera-
muita consciência da importância da milongas ao redor da fogueira. Nem con- tura de Guimarães Rosa, depois de ler
alimentação em seu rendimento físico seguiu dormir naquela noite: “Decidi os contos de Sagarana. Veio o convite
e técnico. Eles mesmos se policiam e co- que aquele era o meu instrumento.” para gravar outro disco, de tango. Foi
laboram, inclusive nas folgas”, diz. Na Aos 10 anos, ele já tocava em restau- quando decidiu ficar no Brasil.
concentração, todos aderem às refeições rantes. Aos 12, foi estudar em Córdoba, Em 1969, o maestro suíço-brasileiro
regulamentares. Pedir um misto-quente capital da província, e logo se apresentou Ernst Widmer (1927-90) o convidou para
no quarto, tarde da noite, nem pensar. numa rádio local. A fama de criança- se juntar ao grupo de compositores van-
Resta torcer para que a Seleção Brasi- prodígio espalhou-se, e Herrera come- guardistas da Universidade Federal da
leira, neste momento em sexto lugar en- çou sua carreira no rádio. Nos estúdios, Bahia, onde foi colega de Tom Zé. Arre-
tre os dez países que competem nas assistiu pela primeira vez a uma apresen- batado pela música de Igor Stravinski e
eliminatórias, recupere-se na rodada que tação de seu ídolo: Astor Piazzolla, um John Cage, Herrera deixou de lado o
começa em setembro. Antes disso, have- inovador do tango que naquele início bandoneon. Compôs óperas, cantatas e
rá jogos amistosos e a Copa América. dos anos 1950 entusiasmava os jovens, balés que desconcertaram a crítica, como
A cozinha de Jaime Maciel e Andréia mas era rejeitado pelos músicos ortodo- Onirak, em que um grupo de cantores
Picanço nunca fecha as portas: a dupla xos (ou “reacionários”, como Herrera recita o poema cidade/city/cité, de Augus-
serve a mesa das seleções masculina e prefere chamá-los). Piazzolla advertiu to de Campos. Ao longo da década de
para estrear na competição, a cozinha feminina em todas as categorias etárias, Herrera de que já existiam muitos bando- 1970, foi estreitando relações com músi-
local desagradou os jogadores. A comis- do sub-15 à principal. E sempre tem pu- neonistas autodidatas, mas eram poucos cos eruditos mineiros. Em 1979, Nhehen-
são técnica à época – Zagallo e o super- dim de leite para todo mundo. J os que se dedicavam ao estudo. Aprofun- gari (narrar cantando, em tupi), cantata
visor Américo Faria – não teve dúvida: Claudio Henrique dar-se na teoria musical tornou-se uma cênica baseada no romance Maíra, de
convocou o gaúcho bom de panelas, que missão para o adolescente. Darcy Ribeiro, fez sua estreia em Ouro
se tornou a partir daí o titular inconteste A década de 1950 foi a era de ouro do Preto. No mesmo ano, o compositor
da cozinha canarinha. Serviu a todos os MILONGA SERTANEJA tango: em Buenos Aires existiam qua- mudou-se para Minas Gerais.
grupos reunidos desde então, inclusive Rufo Herrera, o mais mineiro dos renta orquestras típicas e os cafés-con-
E
os pentacampeões de 2002. Entre as bandoneonistas argentinos certos garantiam o sustento de centenas m 1985, a paixão de Herrera por
iguarias de Maciel que vêm atravessan- de músicos. Contratado por uma orques- Guimarães Rosa ganhou expressão
R
do gerações do futebol, a mais popular é aras são as manhãs em que o mú- tra, Herrera, aos 23 anos, mudou-se para musical em Balada para Matraga.
seu pudim de leite. “Antes mesmo de sico e compositor Rufo Herrera, a capital argentina, onde também estu- Inspirada no conto A hora e a vez de Au-
sentarem à mesa, alguns jogadores cor- de 90 anos, não vai à Fundação de dou no Conservatório Nacional. Uma gusto Matraga, de Sagarana, a ópera es-
rem pra provar o pudim”, diz o orgulho- Educação Artística, em Belo Horizonte, mudança nos ventos políticos e cultu- treou naquele ano, com a Orquestra
so cozinheiro. “E, quando não fui eu com seu bandoneon. O “instrumento in- rais, porém, afastou-o de seu país. Em Sinfônica de Minas Gerais acompanha-
que fiz, tratam de gritar, alertando o fernal”, como a ele se referia Astor Piaz- 1955, um golpe militar derrubou o presi- da de cantores líricos. O sertanejo de
grupo: ‘Esse não é do chef!’” zolla, arruína-se quando é posto de lado. dente Juan Domingo Perón. Na mesma Rosa, acredita o compositor, tem muito
E, se uma de suas 2,8 mil peças avaria, “o época, o pop americano invadiu Buenos em comum com o gaucho dos pampas
N
a Copa do Catar, em 2022, o açaí transtorno é grande”, diz Rufo. Aires. Em poucos anos, as quarenta or- argentinos: “Ele ora cai ao nível da fera,
passou a ser oferecido depois dos Além disso, não é possível afiná-lo no questras reduziram-se a oito. “A ditadura ora paira acima de Deus e do diabo.”
jogos. “Fez o maior sucesso”, diz Brasil. “Tem de ir num luthier em Bue-
Maciel. Agora, há outra mudança na nos Aires, o que é caro. E ainda é preciso
escalação das frutas: a folclórica laranja esperar numa fila para testar a afinação
está indo para o banco de reservas e en- que demora muitíssimo. O melhor é fa-
tram no lugar as frutas vermelhas, como zê-lo soar todos os dias”, explica o músi-
o morango, tidas hoje como mais revi- co, orgulhoso proprietário de um Doble
gorantes do que os cítricos. A Premier fabricado na Alemanha em
ANDRÉS SANDOVAL_2024
A manutenção dos padrões culinários 1936 que está para o bandoneon como o
e nutricionais nos diferentes países visita- Stradivarius para o violino.
dos pelo time brasileiro já foi mais difícil. Criado no século xix pelo alemão
Em conversas com um servidor histórico Heinrich Band para, com sua dramáti-
da Seleção – Paulo César da Costa, o seu ca e solene sonoridade, acompanhar a
Paulinho, conhecido como o “funcioná- música sacra, o bandoneon enveredou
rio número 1 da cbf”, para a qual traba- por sendas profanas quando aportou
lha há mais de sessenta anos –, Maciel em Buenos Aires. Tornou-se símbolo da
soube que antigamente o chef viajava milonga, um antepassado do tango que
com alguns dias de antecedência para se desenvolveu nos bordéis dos arrabal-
treinar equipes locais: “Ia ele e até o mé- des portenhos.
dico da delegação para os fogões demons- Na manhã de 5 de dezembro, terça-
trar o preparo de comida brasileira.” feira, Rufo não tocou milongas nem
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em Belo Horizonte – e voltou a influir série cujo tema forte é o racismo. “Eu difícil ou não. Quando cheguei, me zuhli demorou a se assumir como
nos rumos criativos de Herrera. “E o ban- tinha muito para falar sobre assuntos da senti em casa”, diz o youtuber, que de- pintora. A primeira tela em que se
doneon?”, perguntou o mestre, durante série: direitos civis, segregação racial nos sembarcou em Goiás em novembro exercitou, em 2015, foi presente de
uma conversa no camarim. Qual um Estados Unidos”, diz. passado durante uma das maiores on- uma namorada que tentava arrancá-la da
aluno repreendido, Herrera baixou a ca- das de calor ocorridas no Centro-Oeste. hesitação. “Ela foi ao Centro de Forta-
M
beça, sem resposta. Desde então, reto- anigault não se ocupava só com A adaptação ao clima não é o único leza, comprou tinta, pincel, e me disse:
mou o instrumento infernal, para o qual lançamentos: ele também comen- desafio: ainda tateando no aprendiza- ‘Agora pinta’”, lembra a artista cearense.
compôs peças que reúnem suas várias tava filmes que não tinha visto na do de português, Manigault precisa “Era uma tela grande, de 1 metro de altu-
referências, da milonga ao dodecafonis- época da estreia nos cinemas, como os da encontrar um emprego que possibilite ra por 80 cm de largura. Ficou lá em casa
mo, como Mantras e Kósmitos. franquia Harry Potter e o sul-coreano Pa- sua permanência no país. Também pro- por meses, mas depois consegui fazer.”
No fim do ano passado, uma versão rasita. E assim chegou a uma “história cura meios de profissionalizar seu canal O trabalho foi intitulado O monstro
reduzida de Balada para Matraga foi de gângster do Brasil”: Cidade de Deus. – por causa dos direitos autorais das mú- que nasce quando o amor acaba. Traz
apresentada no interior da Gruta de Ma- O filme de Fernando Meirelles, de 2002, sicas que comenta, não pode monetizar uma figura de gênero não identificado,
quiné, que fica na região de Cordisbur- o impressionou pela construção dos per- os vídeos. sentada em uma cadeira. Sua expressão
go, terra natal do autor de Grande sertão: sonagens e a similaridade da trama com Ao chegar ao Brasil, ele não fez alarde, e postura transmitem dor. “Acho que é
veredas. Depois, Belo Horizonte assistiu conflitos sociais dos Estados Unidos. mas desde suas primeiras saídas à rua foi meio um autorretrato”, diz a pintora.
à versão integral da remontagem no Pa- Que horas ela volta?, Central do Brasil e abordado por pessoas que perguntavam No mesmo ano em que o relaciona-
lácio das Artes. Herrera reviu sua ópera Bacurau, entre outros filmes brasileiros, se era o “gringo do YouTube”. Depois de mento terminou, Azuhli pintou outra
e, quarenta anos após a estreia, foi como passaram a figurar no canal, ao lado de compartilhar a localização e a intenção tela, A gente. No lugar das cores vibran-
se tivesse se reencontrado nos sons dos séries como Breaking Bad e Westworld. de ficar no país, mais seguidores passa- tes que costuma utilizar, adotou tons
violoncelos, dos berrantes e da poesia ro- O comentário sobre Carandiru, feito ram a reconhecê-lo. Também vem rece- preto, azul-petróleo e branco.
siana. “Me sinto como se estivesse reco- a pedido de espectadores, não foi posi- bendo ofertas de hospitalidade em diversas Aos 28 anos, Azuhli é uma das reve-
meçando”, diz o músico. J tivo: Manigault achou que a narrativa cidades. Por aqui, teve a oportunidade de lações da arte feita no Ceará. Seus tra-
Leandro Aguiar apressada não se aprofundava nos me- ver shows de artistas que figuraram em balhos, que já foram expostos em alguns
lhores personagens. Ainda assim, por seus reacts, como Dexter, Black Pantera dos principais espaços culturais de For-
mistérios dos algoritmos, o vídeo foi e Racionais, e aumentar seu repertório taleza, chamam a atenção ao retratar,
UM GRINGO EM GOIÁS indicado a muitos usuários brasileiros. com novos nomes, como Liniker, Marisa em composições cromáticas exuberan-
O youtuber americano que se Vários deles deixaram comentários re- Monte e Lia de Itamaracá. tes, casais homoafetivos e figuras femi-
encantou com a cultura brasileira comendando que Manigault ouvisse Suas experiências no país aos poucos ninas, muitas delas ex-companheiras ou
um rap sobre a chacina de 1992 na casa estão virando vlogs no canal, inclusive a flertes da artista. Nem todos os namoros
P
astel, garapa de cana, buchada, pf de detenção em São Paulo. jornada para obter itens que julga indis- foram inspiradores: alguns não rende-
com arroz e feijão. Clinton Mani- “As pessoas me disseram para ouvir pensáveis à vida no Brasil: cpf, cartão do ram nem um desenho. Mas outros foram
gault, youtuber americano, provou uma música sobre o massacre, de um sus, ventilador e um par de havaianas. arrebatadores, como o que teve com a
esses pratos bem brasileiros pela primeira grupo de rap. Hip-hop é meu gênero Em uma viagem a São Paulo, ganhou de ginecologista Bárbara Barros. “Para ela,
vez em novembro do ano passado. “Não favorito, mas nunca ouvi o hip-hop bra- um tatuador a possibilidade de gravar as fiz mais de trinta pinturas”, contabiliza
acredito que até hoje eu não sabia que sileiro. Estou interessado em ver o que famosas sandálias no braço. “É para a Azuhli. “Namorar a Luiza me aproxi-
isso existia”, disse em um vídeo compar- vai rolar”, diz Manigault no início do comemorar a primeira coisa brasileira mou da arte”, diz Barros.
tilhado em seu perfil pessoal, quando vídeo. Ele gostou de tudo que ouviu: os que tenho”, diz. J
C
experimentou o singular sabor do pequi. beats, o modo de cantar de Mano Brown, Nina Rocha riada por um casal de tios que a
Manigault é o criador e apresentador de a letra que acompanhou na legenda em adotou, Luiza Maynara Diogo Ve-
um canal do YouTube chamado Goony- inglês – e Diário de um detento, dos Ra- ras era a caçula em uma casa com
Googles, que em janeiro contava com cionais, impulsionou sua incursão pela quatro filhos. “Fui adotada assim que
328 mil inscritos. De início, era só mais música brasileira, em particular aque- saí da maternidade, porque minha mãe
um entre tantos canais sobre cinema, la feita por artistas negros. biológica teve depressão pós-parto”, con-
televisão e streaming tocados por críti- Pelos ritmos e versos de Sabotage, Fac- ta. Como muitas crianças, ela gostava
cos amadores. Com o tempo, porém, ele ção Central, Tim Maia, Jorge Aragão, de desenhar. Usava cotonetes como pin-
encontrou um diferencial: tornou-se um Elza Soares, Cartola e Zeca Pagodinho, céis para pintar paisagens e cartões de
entusiasmado divulgador da música e do ele foi conhecendo o Brasil e fez a virada Natal. “Eu fazia tudo meio sozinha,
cinema made in Brazil. Embora em in- definitiva do GoonyGoogles para os te- porque meus irmãos eram bem mais
glês, seus vídeos conquistaram fãs brasi- mas brasileiros. Nos reacts, busca referen- velhos do que eu.”
leiros. E foi graças aos incentivos ciais dos Estados Unidos para falar do que Quando foi fazer curso superior,
entusiasmados dos seguidores que ele ouve: diz que a música de Jorge Ben Jor apostou em química e, depois, em en-
veio a comer pequi em Goiânia. poderia estar na trilha sonora de filmes de genharia de petróleo. Passou para as
Tudo começou em 2020, enquanto o blaxploitation (o cinema popular negro duas faculdades, mas seus pais acharam
nova-iorquino radicado na Carolina do dos anos 1970) e que a postura de Alcione que nem uma nem outra combinavam
Norte trabalhava remotamente com ges- lembra a das divas da música americana. com a jovem. “Eles foram muito ilumi-
tão de suprimentos. Isolado em casa pela Com o sucesso entre o público brasi- nados, me falaram para esperar um pou-
pandemia, ele passou a comentar filmes e leiro, o GoonyGoogles passou a se des- co, que eu deveria fazer algo que tivesse
séries na plataforma de vídeos. “Eu estava crever como “um canal baseado nos mais a ver comigo.”
procurando algo para fazer, como todo Estados Unidos que experimenta a arte Em 2013, Azhuli entrou no curso de
mundo. Assistia a muitos canais de You- brasileira através da música e do cinema”. arquitetura e urbanismo da Universidade
Tube naquela época e muitas pessoas me A definição, porém, deve ser atualizada de Fortaleza (Unifor), uma faculdade pri-
falavam para fazer algo parecido, porque em breve, pois o canal já não está basea- vada. Enquanto frequentava o curso, tra-
gosto de conversar, rir e brincar”, conta. do nos Estados Unidos, e sim no Brasil. balhou no Espaço Cultural Unifor, que
Ele comprou um microfone e resol- abriga parte da relevante coleção de arte
U
veu fazer reacts – vídeos que registram a ma visita ao país já estava nos pla- do empresário Airton Queiroz (1946-
reação imediata do youtuber a filmes, nos do youtuber quando uma 2017), que foi mantenedor da univer-
músicas e vídeos. Com um enquadramen- amiga que fez pelas redes sociais sidade. Coube a um de seus professores,
to fixo e uma tela dividida reproduzindo o convidou a passar um tempo em Goiâ- Lucas Gomes, dar uma nova sacudida na
o que estava assistindo, começou a pro- nia, onde ela mora. A mudança veio em estudante. “Ele me aconselhou a largar
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que também incorpora uma referência de, um casal.” A discriminação também quarta e mais recente vinícola a se
mineral: o lápis-lazúli é uma pedra muito acontece na atividade profissional: “Vá- instalar na região fica na cidade de
apreciada no mundo da ourivesaria por rias vezes, fui aconselhada a não falar Mucugê, distante cerca de 243 km
seu azul singular, que não é tão brilhante, tanto de relacionamentos lésbicos, ain- de Morro do Chapéu. Chama-se Uvva
conservando certa opacidade. da mais em Fortaleza, que é uma cidade e tem a ambição de produzir vinhos fi-
que consome pouca arte e tem muita nos, de maior complexidade aromática.
O
utra virada aconteceu em 2022, gente conservadora.” Na sede da empresa, o visitante que
quando Azuhli fez uma residên- Neste ano, Azuhli se prepara para chega para o passeio de degustação é re-
cia de três meses na associação fazer uma mostra individual com cerca cebido em uma grande sala envidraçada,
cultural Soma, na Cidade do México, de setenta trabalhos, em um espaço ainda decorada com móveis de madeira feitos
ANDRÉS SANDOVAL_2024
recomendada por Pablo León de la Bar- a ser definido. No ateliê que montou em por artesãos baianos. Uma pequena va-
ra, curador de arte latino-americana do um prédio comercial no Centro de For- randa oferece um bom ponto para sel-
Museu Guggenheim, de Nova York. taleza, um letreiro luminoso traz a frase fies, tendo como cenário os 52 hectares
Durante a estadia, ela se deparou com o que guia sua vida e sua arte: “O amor é do vinhedo e a imponente Serra do Sin-
catálogo de uma exposição realizada no a coisa mais importante.” J corá. “Quando você entra pela porta, vê
Museu Estanquillo entre 2016 e 2017, Tatiane de Assis que na verdade o grande personagem que
Que se abra esta puerta! Sexualidad, brilha é a paisagem da Chapada Dia-
sensualidad y erotismo. O que mais cha- mantina”, diz Fabiano Borré, sócio e
mou sua atenção no livro foi a série de UVAS DIAMANTINAS diretor-executivo da Fazenda Progres- de batatas e depois pelo café premium,
imagens de casais homoafetivos desde o Municípios do sertão baiano so, à qual a vinícola pertence. comercializado no Brasil e no exterior.
século xvii. A artista também ficou im- desbravam a viticultura A Uvva foi inaugurada em 2022, mas
P
pressionada com a paisagem urbana da projetada dez anos antes, quando as pri- ara visitar a Uvva, é preciso agendar
A
capital mexicana. “Comecei a procurar o percorrer as estradas que cortam meiras videiras para o plantio chegaram com antecedência no site da viníco-
cores opostas e olhar para a saturação, a Chapada Diamantina, o viajante à propriedade da família Borré. Em 2015, la. No início de novembro passado,
para encontrar a harmonia que encon- mergulha em uma paisagem inós- elas já davam frutos, mas em pequena a enóloga Erika Samantha, que ingressou
trei por lá: um portão rosa, com muro pita, de plantas rasteiras que espalham quantidade. Somente em 2018 a Uvva na empresa em 2021, acompanhou du-
amarelo, detalhe em roxo, e ao fundo a seu tom verde-amarelado até o horizon- lançou a primeira safra, um Cabernet rante uma hora e meia um grupo de oito
casa em azul-cobalto. Era incrível.” te, emoldurado por grandes montanhas Sauvignon com produção de oitocentas pessoas no passeio pela fazenda. Com o
rochosas. No passado, essas terras do garrafas, que não foram comercializadas. cuidado de quem acolhe um recém-nas-
interior baiano foram marcadas pela “Elas estão lá, guardadas. Estamos pen- cido, Samantha acariciava os pequenos
mineração dos diamantes que lhe de- sando se vale a pena botar para vender. cachos de Syrah, ainda sem as frutas, mas
ram o nome. Hoje, atraem sobretudo Está um vinho muito especial”, diz Bor- já florindo, enquanto explicava o sistema
aventureiros dispostos a se embrenhar ré. Hoje, a vinícola oferece doze rótulos da colheita, que acontece no inverno.
por trilhas labirínticas com o objetivo diferentes, feitos com nove castas, duas Depois de andar pelos vinhedos, o
de alcançar grutas pouco acessíveis e brancas e sete tintas, todas provenientes da grupo desceu ao subsolo da vinícola,
bonitas quedas d’água. Recentemente, França. No site da Uvva, os brancos cus- onde barricas de carvalho francês cheias
outro grupo de pessoas tem viajado até tam em média 150 reais e os tintos estão de vinho dividem espaço com a instala-
a Chapada Diamantina, porém interes- em torno de 200 reais. ção O tempo espelhado, do artista baiano
sadas mais nas aventuras do paladar Em 2020, durante a pandemia, o con- Marcos Zacariades, que, entre outros
do que nas do ecoturismo: são os enó- sumo médio de vinho no Brasil chegou temas, aborda a geologia e a história da
filos, que chegam muito curiosos para a 2,8 litros por pessoa. Dois anos depois, Chapada Diamantina.
experimentar os vinhos que estão sendo caiu para 2 litros por pessoa, de acordo Um dos visitantes perguntou por que
produzidos ali. com a Associação Brasileira de Somme- o nome da vinícola é grafado com dois
O Sul é ainda a região brasileira com liers. Borré avalia que os brasileiros têm “vês”. Samantha apontou para o logoti-
mais tradição na viticultura. Mas o Nor- resistência ao vinho nacional e que ain- po da Uvva em uma das barricas e ex-
deste tem se firmado há algum tempo da vai demorar até que os tintos e bran- plicou: “O primeiro V faz referência à
como referência na produção tanto de cos do país conquistem o prestígio dos base de um cacho de uva; o segundo V
uvas de mesa (para o consumo in natu- argentinos e chilenos. É possível que simboliza os diamantes da Chapada.”
ra) quanto de uvas viníferas (destinadas os vinhos brasileiros não sejam tão ad- As vogais têm a forma sintética de semi-
aos vinhos). O Vale do São Francisco mirados porque é difícil encontrar os círculos: o U virado para cima e o A
conta com vinícolas importantes, como melhores rótulos em lojas e supermer- para baixo. “Se as duas vogais fossem
a Rio Sol, em Pernambuco, e uma filial cados. O preço cobrado também desa- unidas pela base”, disse Samantha, “for-
da gaúcha Miolo, na Bahia. nima os compradores. mariam uma forma ovalada que lembra
A ideia de desenvolver um terroir na Fabiano Borré administra a vinícola a bateia dos garimpeiros que extraíam
Chapada Diamantina foi do engenhei- em parceria com outros membros da fa- diamantes na Chapada no século xix”.
ro agrônomo Jairo Vaz, que em 2008 mília. A propriedade é herança de seu A explicação exige bastante da ima-
plantou as primeiras videiras. Satisfeito avô, Pedro Borré, que em 1984 deixou ginação, mas serviu para a enóloga che-
com o resultado, ele abriu oito anos de- São Paulo das Missões, no Rio Grande do gar a uma conclusão triunfante: “Hoje,
pois a Vinícola Vaz, na cidade de Mor- Sul, para adquirir terras na Bahia. Foi o a uva é o novo diamante da Chapa-
ro do Chapéu. A iniciativa estimulou início da Fazenda Progresso, que se tor- da Diamantina.” J
produtores, que inauguraram duas ou- nou referência primeiro por sua produção Pedro Tavares
10
Distribuição 100% gratuita - Clube de Revistas
Ponte sobre o Rio
Araguaia-Xambioá – TO
DO GOVERNO FEDERAL
É O BRASIL NO RUMO CERTO
O VALE-TUDO
Os irmãos Batista e a maior disputa corporativa do Brasil
BRENO PIRES
O
ambiente estava extremamen- presário Joesley Batista abrira as portas de feira, os dois empresários bilionários – Joes- favor dos irmãos Batista, enquanto ainda
te tenso e as divergências eram sua casa no Jardim Europa, bairro rico ley, da família Batista, dona de um império exercia seu cargo de procurador no Mi-
intransponíveis até que se ou- de São Paulo, para festejar o negócio com que emprega 280 mil pessoas e inclui a jbs, nistério Público Federal. E mostravam
viu um brado de guerra: o empresário Jackson Wijaya, o sino-in- a maior processadora de proteína animal que os Batista haviam trapaceado no
– A gente então vai para a donésio que concordara em pagar 15 bi- do mundo, e Wijaya, neto de Eka Tjipta acordo de colaboração premiada ao
briga. Vamos à Justiça – decretou o em- lhões de reais pela Eldorado. Os dois – e Wijaya, o fundador do Sinar Mas, um dos ocultar, entre os 1 829 políticos que de-
presário Cláudio Cotrim, presidente da os demais convidados – estavam satisfei- grandes conglomerados empresariais do nunciaram, nomes importantes, como
Paper Excellence, a companhia que lu- tos. Wijaya adquirira a fábrica que deseja- Sudeste Asiático – queriam celebrar e es- o de Ciro Nogueira, presidente do Pro-
tava para concluir a compra da Eldora- va, fortalecendo a Paper Excellence e treitar laços, já que a transação previa que gressistas, que recebera 500 mil reais.
do Brasil, uma das maiores fabricantes marcando sua entrada no lucrativo mer- a troca de comando da Eldorado levaria Em uma conversa gravada, mas desco-
de papel e celulose do país. cado brasileiro. Joesley, por seu lado, dera um ano. Acompanhado de Cláudio Co- nhecida até então, Joesley discutia com
– Você começa, eu termino – retru- um passo importante no plano de desin- trim, Wijaya chegou à casa de Joesley por Nogueira os detalhes do pagamento dos
cou Francisco de Assis e Silva, diretor vestimento da j&f, que corria o risco de volta das 19 horas. Logo o celular do anfi- 500 mil reais – que, segundo executivos
jurídico da j&f, a holding da família quebrar diante das turbulências financei- trião começou a apitar com insistência – e da j&f, acabou se concretizando.
Batista, que batalhava para impedir a ras provocadas pelas múltiplas investiga- seu mundo começou a desabar. Atordoado com a revelação, Joesley
conclusão do negócio. ções de corrupção que vinha sofrendo. Em Brasília, diante das câmeras de retirou-se da sala de jantar e foi para um
Naquele dia de agosto de 2018, esta- Assim que o negócio foi fechado, no dia televisão, o então procurador-geral Ro- cômodo reservado, onde passou a receber
va aberta a maior disputa corporativa 2 de setembro de 2017, saiu o comunicado drigo Janot, quase tremendo de tão sério, informações para entender as implica-
em curso no Brasil, que logo chegou aos conjunto em que a j&f e a Paper Excellen- anunciou a descoberta de “áudios com ções daquilo tudo. Enquanto isso, os con-
mais estrelados escritórios de advocacia, ce diziam que a transação era uma “satis- conteúdo grave, eu diria, gravíssimo”. Os vidados jantavam com a família Batista,
mobilizou os tribunais e contaminou os fação” e atendia os “interesses das partes”. áudios mostravam que Marcello Miller, sem a presença do líder do império. O pior
bastidores da política. Um ano antes, o em- Dois dias depois, na noite de segunda- um procurador, estava trabalhando em desdobramento veio quatro dias depois.
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ADRIANO MACHADO_REUTERS_2017
mudar a legislação sobre a arbitragem, depois que sofreu uma derrota de 3 a 0 para a Paper, se assemelha, nas palavras de um observador, a “tocar fogo no açougue só para assar um bife”
O procurador Rodrigo Janot pediu a pri- Batista, depois do vendaval da corrup- Na visão da j&f, a Paper Excellence, Los Angeles, no fim de semana de 25 e
são de Joesley e de um de seus executivos, ção e de três temporadas na prisão, estão para liberar as garantias das dívidas, tinha 26, pois não havia tempo a perder. Os
Ricardo Saud. Pouco depois, Joesley Batis- de volta à cena do jogo pesado. de substituí-las, oferecendo ativos de sua irmãos Wesley e Joesley Batista foram
ta, então com 45 anos, entregou-se à polí- propriedade. A Paper, em vez disso, queria representados por dois jovens sobrinhos:
A
cia, junto com Saud. Ele fizera tudo para operação de compra da Eldorado liberar as garantias de outro modo: saldan- Aguinaldo Ramos Filho, à época com
evitar a prisão. Em busca de um acordo de desdobrava-se em três etapas. Nas do as dívidas ou injetando na Eldorado 25 anos, que presidia a Eldorado, e José
imunidade penal, já tinha até grampeado duas primeiras, até o fim de 2017, a valor suficiente para que a própria Eldora- Antônio Batista Costa, de 34 anos, en-
o então presidente Michel Temer, mas Paper Excellence pagou 3,6 bilhões de do pagasse o que devia. Entre parceiros de tão presidente da j&f.
acabou atrás das grades, um dos seus reais por 49,41% das ações da empresa, boa vontade, o ponto não parece instrans- Com oito participantes, a reunião no
maiores temores. Ficou seis meses preso. adquirindo participações que perten- ponível, considerando que as garantias, sábado não avançou. No domingo, os so-
O jantar fora a ave do mau agouro. ciam à j&f e a outros acionistas. A tercei- de um jeito ou de outro, estariam devida- brinhos dos Batista sentaram-se com Wi-
Um ano depois daquela noite, o acor- ra e última etapa estabelecia que, até 3 de mente liberadas. Mas, naquela reunião no jaya, ele também um jovem de 37 anos,
do entre a j&f e a Paper Excellence es- setembro de 2018, os compradores deve- início de agosto, não houve acordo. que comparecera ao encontro na com-
tava indo para o brejo, inaugurando o riam pagar mais 4,4 bilhões de reais, No dia 14, com o rompimento entre as panhia do seu advogado de confiança,
primeiro capítulo de uma disputa que além de liberar as garantias dadas pelos partes, a Paper efetivamente entrou na o irlandês Bertie Mehigan, que viera de
envolve cifras bilionárias, espionagem irmãos Batista das dívidas da Eldorado, Justiça pedindo adiamento do prazo sua base em Hong Kong. Com a presen-
cibernética, ameaça de morte, golpes e que somavam 7 bilhões de reais. As ga- para a conclusão do negócio e alegou ça apenas dos quatro, a conversa desan-
contragolpes, orgulho, ganância e, nos rantias eram ações da jbs, a empresa- falta de colaboração da j&f. Oito dias dou. A certa altura, Aguinaldo Ramos,
lances mais recentes, até questões de símbolo da família. À medida que se depois, uma audiência de conciliação que assumira o comando da Eldorado
soberania nacional. Durante cinco me- aproximava o prazo final, as divergências acabou sem acordo. A j&f solicitou en- apenas em dezembro de 2017, quando
ses, a piauí investigou o conflito, cujos entre as partes começaram a brotar e fo- tão uma reunião entre os acionistas dos a negociação da venda da empresa já
desdobramentos mostram que os irmãos ram crescendo cada vez mais. dois lados. Agendaram o encontro em havia sido concluída, aceitou adiar o
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que espantou seus interlocutores: rever deram da venda da Eldorado, dada a va- riado no Brasil em 1996, o instituto final da Eldorado, elaborada pela j&f,
os valores do negócio. lorização da empresa, e então começaram da arbitragem é um meio de resol- pela qual abririam mão de algumas cen-
No Brasil, Aguinaldo Ramos havia a inventar sucessivas exigências para ver litígios privados fora da Justiça. tenas de milhões de reais – nada que fi-
conversado com alguns bancos de inves- inviabilizar o desfecho do negócio. Os É uma forma mais discreta, porque qua- zesse tanta diferença no universo dos
timentos e saiu convencido de que a El- Batista, por seu turno, garantem que co- se sempre sigilosa, e mais rápida, já que negócios bilionários. Cotrim ouviu a
dorado fora negociada por um valor operaram no que foi possível e tudo se re- não passa por múltiplas instâncias. Em proposta e se comprometeu a levá-la ao
excessivamente baixo. Nos meses seguin- sume ao fato de que a Paper descumpriu geral, quando as partes em conflito con- acionista. Mas nunca trouxe a resposta.
tes à venda, alguns fatores contribuíram o prazo do contrato. cordam em recorrer à arbitragem, cada “Se ganhamos a arbitragem, por que va-
para valorizar a empresa. Houve uma A disputa confronta dois conglomera- uma escolhe um árbitro de sua preferên- mos abrir mão?”, disse-lhe Jackson Wi-
expressiva alta no preço da celulose, o dos habituados a navegar em águas tur- cia, e esses dois árbitros escolhem um jaya, quando foi apresentado à proposta
real se desvalorizou em relação ao dólar vas. A j&f já passara por toda sorte de terceiro nome para exercer a função de dos Batista. De acordo com uma fonte
e a produção da Eldorado havia aumen- investigações e escândalos, de tal modo presidente do tribunal arbitral. As partes familiarizada com a Paper Excellence
tado. Na reunião em Los Angeles, ele que a jbs se tornara uma espécie de sinô- podem impugnar os nomes indicados de que pediu para não ser identificada,
expôs essa nova realidade, apresentou nimo de corrupção e suborno. Seu acordo um e outro, mas, uma vez aceitos, o pro- Wijaya queria dar uma lição nos irmãos
números e concluiu dizendo que, diante de leniência pelas práticas ilegais ultra- cesso segue em frente – e, para arrema- Batista. Tudo poderia ter terminado ali,
disso, a j&f queria receber 6 bilhões de passou 10 bilhões de reais. Sete executi- tar, todos concordam que a decisão do mas, movido por orgulho ou vingança,
reais a mais para prorrogar o prazo e fazer vos da j&f fizeram acordos de colaboração tribunal arbitral será definitiva. Ou seja: o indonésio prolongou o litígio.
os ajustes para concluir a venda. premiada e assumiram multas que soma- é para cumprir, sem recorrer à Justiça. Depois de três semanas de silêncio do
Wijaya ficou perplexo. O advogado vam 225 milhões de reais. Joesley foi pre- Quando negociaram a Eldorado em outro lado, a j&f entrou na Justiça, em
irlandês, em depoimento prestado tem- so duas vezes. Wesley, seu irmão, passou 2017, a j&f e a Paper Excellence defini- São Paulo. Como as partes haviam con-
pos depois, disse o seguinte: “Ouvimos cinco meses na cadeia sob acusação de ram que qualquer disputa eventual se- cordado em não contestar judicialmente
uma proposta do senhor Aguinaldo Ra- traficar informação privilegiada. ria resolvida por meio de arbitragem e o conteúdo da sentença arbitral, a j&f co-
mos com relação a um new deal, um De outro lado, o grupo Sinar Mas, ao escolheram que o tribunal arbitral seria meçou sua empreitada para anular a arbi-
novo acordo, que envolveria o pagamento qual pertence a Paper Excellence, é um a filial brasileira da Câmara de Comér- tragem como um todo. O caso ficou na
do valor adicional de 6 bilhões de reais grupo poderoso, acostumado a contornar cio Internacional (cci), uma das maio- 2ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacio-
pelas ações da Eldorado [...]. Como po- dificuldades na Indonésia e com um his- res do mundo, com sede em Paris. Com nados à Arbitragem, em São Paulo. Muito
dem imaginar, o senhor Wijaya ficou tórico de destruidor do meio ambiente o litígio estabelecido, a Paper indicou além das alegações de que a Paper não
chocado com essa sugestão; ele reiterou, mundo afora. Em razão das más práticas como árbitro o procurador estadual e fizera o pagamento dentro do prazo, os
como já fizera no sábado, que não tinha florestais, a Asia Pulp & Paper (app), uma professor Anderson Schreiber, da Facul- Batista aproveitaram o processo para deso-
qualquer interesse em uma nova transa- de suas subsidiárias, perdeu o certificado dade de Direito da Universidade do Es- var todo um arsenal criminal que vinham
ção, que já tinha os fundos disponíveis emitido pelo Forest Stewardship Council tado do Rio de Janeiro (Uerj). A j&f montando à sorrelfa, reunindo dados em
para fechar a transação e que estávamos (fsc), com sede na Alemanha, que atesta designou José Emilio Nunes Pinto, um inquéritos que, havia quase dois anos, es-
ali para fazer isso.” A reunião de Los An- o manejo florestal responsável. A própria dos autores da lei brasileira de arbitra- tavam sendo abertos, um depois do outro,
geles terminou abruptamente. Paper Excellence vem sofrendo queixas gem. Os dois escolheram o espanhol Juan em São Paulo, Rio de Janeiro e Diadema,
A animosidade entre as duas empresas no Canadá, onde hoje é líder em papel e Fernández-Armesto, um dos maiores ar- na Região Metropolitana de São Paulo.
então se cristalizou. A Paper Excellence celulose. Ativistas reivindicam que a Pa- bitralistas da Europa, para presidir o A essa altura, a j&f estava voltando a
fez seis propostas para fechar o negócio per, em decorrência de seus laços com a tribunal. As partes aceitaram os três respirar. A pior parte do calvário provo-
antes do prazo final, todas rejeitadas pela app, também seja subtraída do certificado. nomes, e deu-se o início das oitivas, au- cado pelas investigações de corrupção,
j&f, e depositou 11,6 bilhões de reais em No Parlamento canadense, os membros diências e exame de provas. prisões e delações parecia ter ficado para
um banco no Brasil para demonstrar que da comissão que trata de recursos naturais No dia 3 de fevereiro de 2021, saiu a trás. A empresa fizera alguns negócios
tinha o dinheiro para concluir a transa- tentam, há meses, marcar uma audiência sentença: 3 a 0 para os indonésios. Até o importantes no seu projeto de descapita-
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o dia 27 de maio de 2019, ainda nos soas – entre elas, Jackson Wijaya, Cláu- dos, sugerindo que a Paper Excellence pessoas, Erik Assunção Figueiredo e Ma-
primórdios do conflito entre os bi- dio Cotrim e Guilherme Cunha Costa, estava fazendo arapongagem corporativa. theus Campos Viana, invadiram o sis-
lionários, o diretor jurídico da j&f, então diretor de Relações Institucionais A perícia constatou que o monitoramento tema da cti Net, a empresa que a jbs
Francisco de Assis e Silva, disse que con- da Paper Excellence. Segundo o delega- durou quase um ano, acessou 115 ende- contratou para hospedar seus e-mails.
versava com o advogado Ricardo Gardini, do, eram todos suspeitos de integrar uma reços eletrônicos e envolveu 70 mil men- Concluiu que o especialista em infor-
quando recebeu um telefonema em seu “organização criminosa”. (Num desdobra- sagens de e-mail de executivos da j&f, mática Leonardo de Sena, que usava o
escritório. Naquela altura, Assis e Silva já mento curioso, Guilherme Cunha Costa, advogados e outras pessoas envolvidas na pseudônimo Slayer, programou a inter-
provara sua lealdade aos irmãos Batista. anos depois de ser acusado de criminoso venda da Eldorado. Ao longo de três ceptação dos e-mails a pedido de Danilo
Fizera um acordo de colaboração premia- pela j&f, deixou a Paper e foi trabalhar anos, o inquérito reuniu muito material. Vaz Bernardi. Concluiu que Vaz Ber-
da no âmbito da Lava Jato, concordara na j&f. Procurado pela piauí, Costa não Laudos periciais, análises de sistemas nardi criou as contas para onde os e-mails
em pagar 1,5 milhão de reais e continua- quis se manifestar alegando que está dis- supostamente invadidos e, principal- eram redirecionados e forneceu as se-
va no cargo. Era fiel, mas também era tante do caso há muito tempo.) mente, depoimentos – com idas e vin- nhas para Moema Ferrari, que, por sua
ousado, uma característica admirada pe- Na época em que formulou o pedido das, afirmações e contradições. vez, foi contratada para a empreitada
los irmãos. Ao atender o telefone, Assis e de prisão, o delegado Sayeg já tinha esco- Uma das testemunhas, Filipe Bales- delitiva por executivos da Paper Excel-
Silva diz que ouviu uma voz disparar: ou lhido o nome para a ação policial que tra, especialista em segurança cibernéti- lence, de quem recebeu 4,2 milhões de
ele e os irmãos Batista entregavam o con- prenderia o pessoal da Paper – Operação ca e dono de uma empresa chamada reais ao longo de dois anos.
trole da Eldorado para a Paper Excellence Pemerasan, que significa “extorsão”, no Pride Security, disse que, em meados de O delegado Caneloi Júnior concluiu
ou seriam assassinados. idioma indonésio. Tudo parecia cami- setembro de 2019, uma pessoa chamada tudo isso, indiciou todos eles, incluindo
Assis e Silva afirma que não reconhe- nhar na direção que a j&f desejava. Mas Rodrigo Lima lhe dera acesso ao domí- Cláudio Cotrim, o principal executivo da
ceu a voz, mas desligou o telefone con- a Operação Pemerasan nunca aconteceu. nio para o qual os e-mails espionados do Paper que, segundo o delegado, era um
vencido de que era alguém ligado ao A juíza Marcia Mayumi Okoda Oshiro, grupo j&f seriam redirecionados. Disse, dos “destinatários finais das informações
grupo de Wijaya. No mesmo dia, pediu da 2ª Vara de Crimes Tributários, Orga- ainda, que Lima mencionara nas conver- subtraídas das vítimas (jbs, j&f, Eldorado
abertura de um inquérito no Departa- nização Criminosa e Lavagem de Bens e sas o nome de uma tal de Moema Ferra- e dezenas de pessoas físicas)”. O delegado
mento Estadual de Homicídios e de Pro- Valores de São Paulo, concluiu que não ri. (Antes de depor na polícia, Balestra também indiciou Josmar Verillo, um em-
teção à Pessoa (dhpp), da Polícia Civil de havia “fundadas razões” para decretar as deu todas essas informações ao diretor presário e ativista em organizações de
São Paulo, por ameaça, extorsão e coa- prisões. Menos de um mês depois, a j&f
ção. Sua defesa, feita pelo escritório de enviou ao delegado Sayeg mais dois “rela-
Frederick Wassef, então advogado do tórios forenses complementares”, ambos
presidente Jair Bolsonaro, fez um relato assinados por Daiello. Quatro dias após
forte à polícia. Disse que o advogado re- receber o novo material da j&f, Sayeg
cebera “gravíssimas ameaças de morte” e apresentou outro pedido de prisão à Justi-
a voz anônima lhe avisara que era amiga ça. A juíza voltou a negar, mas, desta vez,
do “chinês”. Disse que, além da ligação, acatou o pedido para prender uma das
o advogado vinha recebendo mensagens dez pessoas da lista do delegado.
intimidadoras por WhatsApp e estava Encerradas as investigações, o delega-
convicto de “tratar-se de uma quadrilha”. do Sayeg concluiu que houve crime,
A quadrilha, ainda segundo a defesa, vi- mas não identificou os criminosos. Os
nha extorquindo o advogado e outros promotores Renan Rodrigues e Pedro
executivos da j&f, com o objetivo de ge- Alonso apontaram inconsistências e pu-
rar uma “bilionária vantagem financeira seram em dúvida a própria existência da
indevida” à Paper Excellence. ameaça: “A suposta ligação extorsionária
O inquérito avançava a passos lentos recebida por Francisco de Assis e Silva
até que, em março de 2020, um delega- apresenta várias inconsistências, que mi-
do da Polícia Civil, Ronaldo Sayeg, avo- nam a sua credibilidade.” E lembraram
cou o caso para si, alegando “razões de que a “representação criminal megalô-
interesse público, próprias da investiga- mana” de Assis e Silva se dava num
ção ainda em andamento”. Daí em dian- “contexto de disputa bilionária”, situação
te, o caso andou com celeridade e só que deveria servir de alerta às autorida-
trouxe boas notícias para a j&f. Pouco des para que não fossem “manipuladas”
depois de assumir, o delegado ganhou pelas “teses e interesses empresariais” da
uma ajuda providencial do advogado j&f. Apesar do arquivamento do caso,
Leandro Daiello, o mais longevo diretor Sayeg pediu – em vão – para enviar uma
da Polícia Federal na era democrática. cópia do inquérito para uma delegacia
Aposentado da pf, Daiello trabalhava – em Diadema, onde corria, em paralelo,
e ainda trabalha – no escritório Warde a investigação mais controvertida da tra-
Advogados, de Walfrido Warde, e fora con- ma: a espionagem cibernética.
tratado pela j&f para fazer uma investi- As denúncias estavam pipocando.
gação paralela sobre o caso. Surgiram inquéritos no Rio e em Brasí-
Daiello fez o que pôde. Chegou a bus- lia. Todos eram provocados por gente
car uma testemunha no Espírito Santo ligada ao grupo dos Batista, às vezes di-
para depor na Polícia Civil paulista, com retamente, outras vezes indiretamente.
direito a jatinho fretado pela j&f, ida e Envolviam personagens diferentes, mas
havia um norte comum: as denúncias
* O fundador da piauí, João Moreira Salles, tem parti- invariavelmente relatavam crimes co-
cipação na Cambuhy Alpa Holding, uma das compra-
doras do controle acionário da Alpargatas. metidos por pessoas ligadas à Paper Ex-
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meio de um hackeamento. (Em depoi- xatamente no mesmo dia em que o a ação. Os irmãos Batista haviam perdido tinha notícia de seus “vínculos de fortís-
mento, Verillo disse que recebeu o do- Ministério Público pediu o arqui- mais uma batalha, mas não a guerra. sima intimidade” com advogados da
cumento de um jornalista em Brasília. vamento do caso de espionagem Paper Excellence. Na época, em defesa
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À piauí, disse que tinha orientação de em Diadema, o advogado Cristiano Za- o dia 26 de maio de 2022, por volta de Schreiber, integrantes do Stocche
seu advogado para não falar do assunto.) nin Martins, que se tornou conhecido das sete da noite, um operador do Forbes enviaram cartas dizendo que
Com os indiciamentos, o jogo pare- como defensor de Lula, fazia outro mo- Disque Denúncia da Polícia Civil nunca haviam atuado juntos em qual-
cia resolvido em favor da j&f, mas as vimento em Brasília: entrou com uma do Rio de Janeiro atendeu a um telefone- quer caso. (Os dois escritórios atuaram
conclusões do delegado não deram em ação sigilosa no stf – o mesmo tribunal ma. Do outro lado da linha, uma voz juntos em dois processos, mas Schreiber
nada. O Ministério Público apontou do qual, mais tarde, se tornaria ministro. anônima afirmou que Anderson Schrei- não participou de nenhum deles.) O ad-
uma série de problemas na investiga- Ao longo de 282 páginas, Zanin, ao ber, professor de direito da Uerj que fora vogado Guilherme Forbes afirmou que
ção, como a falta de consistência nos lado de outros advogados, pedia a anu- escolhido pela Paper como árbitro no nem sequer conhecia Schreiber pessoal-
depoimentos e ausência de corrobora- lação da arbitragem do caso Eldorado caso da Eldorado, costumava receber mente. Além disso, o contrato de vizi-
ção das acusações. A promotora Andrea porque a espionagem cibernética contra propina. Como? Vendendo sentenças em nhança dos escritórios se encerrara
Maria Rollo destacou a existência de a j&f que fora investigada em Diadema tribunais de arbitragem. Sozinho? Não, quase três anos antes do início da arbi-
uma irregularidade de origem: funcio- havia violado as comunicações entre em sociedade com procuradores do esta- tragem do caso j&f e Paper.
nários da j&f estiveram presentes em advogado e cliente, que são protegidas do do Rio. O que o professor fazia com o Os outros dois árbitros, José Emilio
operações de busca e apreensão em lo- por lei. Ou seja: na sua versão, as conver- dinheiro? Entre outras coisas, comprara Nunes Pinto e Juan Fernández-Armesto,
cais que nem pertenciam à j&f e orien- sas eletrônicas entre os executivos da um apartamento à beira-mar, em Ipane- também defenderam Schreiber. Em car-
taram os policiais sobre a coleta e a j&f e a equipe jurídica, inclusive sobre ma. Por quanto? Por 12 milhões de reais. ta, escreveram: “Gostaríamos de obser-
preservação de dados. Rollo entendeu estratégias de defesa, haviam chegado No dia 7 de junho, menos de duas se- var que, em todo o momento ao longo
que isso maculou o que os especialistas ao conhecimento da Paper Excellence, manas depois da denúncia anônima, a desta arbitragem, incluindo durante as
chamam de “cadeia de custódia” – ou numa ilegalidade flagrante. A alegação j&f fez uma representação ao Ministério deliberações do Tribunal Arbitral, a con-
seja, o conjunto de ações que garantem se mostrou capenga, já que as investiga- Público pedindo a abertura de uma inves- duta do prof. Anderson Schreiber, no que
a integridade das provas colhidas na in- ções em Diadema, encerradas três horas tigação em São Paulo. Por coincidência, toca à sua imparcialidade e independên-
vestigação. Em outras palavras: prova antes de Zanin apresentar seu pleito no acusava Schreiber de ter um apartamento cia, foi irrepreensível.” Também lembra-
sob suspeita de manipulação não vale. stf, não haviam sequer comprovado a caríssimo de frente para o mar de Ipane- ram que a decisão arbitral fora unânime.
O relatório final do Ministério Pú- existência da espionagem. Mas Zanin ma, de atuar em parceria com outros ad- Na sua carta de renúncia ao tribunal
blico foi afirmativo: “O fato é que as fazia seu trabalho como advogado de vogados para obter vantagens ilícitas em arbitral, Schreiber disse que não tinha
investigações levadas a cabo pela auto- defesa da j&f. Se o stf engolisse a his- arbitragens coletivas iniciadas por as- relação profissional ou pessoal com os
ridade policial não foram capazes de tória, tanto melhor para seu cliente. sociações de fachada e, por fim, de ser integrantes do Stocche Forbes e defen-
evidenciar todas as circunstâncias dos No curso da ação, Zanin fez um mo- diretamente subordinado à Paper Excel- deu que cumprira o dever de revelação
fatos, ou mesmo caracterizar e compro- vimento ousado para fortalecer sua tese e lence. Os dois casos – no Rio e em São nos termos tanto da lei brasileira como
var a efetiva ocorrência dos reclamados obteve excelente resultado: pediu – e le- Paulo – foram para o arquivo. Em São Pau- das diretrizes da International Bar Asso-
desvios de e-mails ou a obtenção de co- vou – o apoio da oab. Zanin convidou o lo, diante da falta de indícios ou provas, ciation (iba), uma espécie de oab global,
municação privada pretérita e/ou em presidente da entidade, Beto Simonetti, os promotores escreveram que não ha- com sede em Londres. As regras de sus-
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altavam três meses para a eleição gados e estudiosos do assunto, deu tele-
presidencial. O país estava mes- fonemas, fez reuniões e visitas a Brasília
merizado pela disputa e o risco de e apresentou notas técnicas. Tentou mos-
um golpe de Estado, mas o deputado trar que o limite de dez causas por árbi-
Arthur Lira (pp-al), presidente da Câ- tro forçaria uma abertura artificial do
mara, ocupou-se de avalizar uma nego- mercado, na contramão do que se faz
ciação que envolveu líderes de seis no mundo. E que a adoção de “dúvidas
partidos. A articulação foi costurada mínimas” não aperfeiçoava nada. Ao
pelo maranhense André Fufuca, do contrário, apenas abria a porta para con-
mesmo partido de Lira e atual ministro testações infinitas da parte derrotada
do Esporte, e resultou na apresentação num tribunal de arbitragem.
de um pedido de urgência para aprova- Além do cbar, outras entidades do se-
ção de um novo projeto de lei sobre um tor se manifestaram contra as mudanças
assunto ao qual pouca gente estava do projeto de lei. A Câmara de Concilia-
prestando atenção: a arbitragem. O pro- ção, Mediação e Arbitragem Ciesp-Fiesp
jeto fazia uma revolução nas regras. divulgou nota assinada por seu presi-
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do Coêlho, que, aos 41 anos, foi o mais tusiasta da arbitragem, uma observação
jovem advogado a assumir o comando crítica. “É sempre importante ter o cui-
da oab no Brasil, no biênio 2013-2015. dado de que interesses contrariados não
Influente e bem relacionado, Furtado mudem as regras de instituições que fun-
Coêlho trabalha para a j&f pelo menos cionem bem.” Um observador – que fa-
desde o início de 2021, quando foi contra- lou mediante a condição de não ter sua
tado para atuar na ação anulatória do caso identidade revelada – criticou a unani-
da Eldorado no Tribunal de Justiça de midade dos conferencistas e a intenção
São Paulo. (Coube a ele atrair o ex-minis- de mudar a lei com a seguinte afirma-
tro Ricardo Lewandowski para a cruzada ção: “Não dá para tocar fogo no açou-
da j&f contra a arbitragem. Apenas dois gue só para assar um bife.”
dias depois de sua aposentadoria no stf,
C
Lewandowski já era anunciado como om a sucessão de derrotas – na ar-
novo parecerista e consultor da j&f no bitragem, na Justiça paulista, no
caso Eldorado. O ex-ministro acabou dei- stf –, os irmãos Batista estavam
xando a função para assumir o Ministério perdendo terreno e precisavam descobrir
da Justiça no lugar de Flávio Dino.) uma forma de avançar sua pauta para bar-
Quatro meses depois do Gilmarpaloo- rar a venda da Eldorado. As denúncias de
za, em outubro, o Grupo Esfera orga- extorsão, ameaça de morte, espionagem,
nizou seu 1º Fórum Internacional, no nada disso havia surtido efeito. Até que
Pavillon Vendôme, em Paris. Entre deba- apareceu uma luz no fim do túnel.
tes sobre transição energética e segurança A sede da Eldorado fica em Três La-
para o capital estrangeiro, Furtado Coê- goas, em Mato Grosso do Sul. No muni-
lho resolveu falar do dever de revelação cípio e arredores, a empresa é proprietária
na arbitragem, tema que nem constava de 14,5 mil hectares e arrendatária de
dos assuntos em discussão. “Os árbitros 285 mil hectares. E, pela legislação nacio-
nas arbitragens brasileiras não têm con- nal, estrangeiros não podem sair com-
trole ético algum”, disse, numa mesa-re- prando (ou arrendando) vastas extensões
donda com o tema “Reformas em pauta”. de terra no Brasil, a menos que tenham
ticos (sempre dispostos a decidir segun- senta o setor, mostra que, de todas as sen- Ao concluir, conclamou: “Temos aqui autorização expressa do Congresso ou do
do os interesses de quem lhes indica) e tenças arbitrais, o Judiciário tem anulado empresas relevantes neste evento. Eu saú- Incra, a autarquia federal que cuida das
gananciosos (sempre atrás de “mais arbi- apenas 1,5% delas. “Isso significa que só do aqui a Cedro, a jbs, a ems e tantos ou- terras rurais. Com base nisso, a j&f esbo-
tragens” para receber “cifras cada vez um pequeno percentual dos laudos tem tros, que contribuem com o nosso país, çou a sua nova frente de batalha, ampara-
mais milionárias”), além de omitir da- algum vício. Então, o sistema arbitral e o que sabem que são fundamentais as arbi- da no seguinte raciocínio: como pertence
dos importantes de suas biografias. Por mecanismo de controle previsto na lei tragens, como meio alternativo de resolu- a um grupo da Indonésia, a Paper Excel-
tudo isso, o União Brasil pede que o stf estão em funcionamento como esperado”, ção de conflitos, mas para que a gente lence deveria ter pedido autorização para
discipline o dever de revelação de modo avalia André Abbud, presidente do cbar. possa salvar a arbitragem, fortalecê-la, é comprar a Eldorado – levando seus mi-
a afastar “interpretações inconstitucio- Antônio Rueda, do União Brasil, disse importante esse controle ético.” lhares de hectares – e, como não o fez, o
nais” dos juízes de direito. à piauí que seu partido propôs a ação ao Os dois eventos – o de Lisboa e o de negócio teria então que ser desfeito.
Entre exemplos de “interpretações in- perceber que alguns ministros e juristas Paris – contaram com a presença da fa- Desde 2015, tramita no stf uma ação
constitucionais”, a ação cita a sentença já vinham debatendo o tema. “Hoje, nas mília Batista. Em Paris, Wesley aprovei- que discute se as restrições à compra de
da juíza Renata Mota Maciel, que rejei- grandes discussões de arbitragem, você tou a ocasião para anunciar o que terras por estrangeiros, estabelecidas por
tou o pedido da j&f para anular a senten- tem que saber se o árbitro tem ou não o Furtado Coêlho poderia chamar de mais uma lei de 1971, estão (ou não) em con-
ça arbitral da venda da Eldorado. E vai ao dever de revelação e a boa-fé. Se você uma “contribuição com o nosso país”: formidade com a Constituição de 1988.
ponto central: pede que o stf defina em pegar o ministro Dias Toffoli, alguns mi- um plano para investir mais de 20 bi- Na disputa com a Paper Excellence, a
que momento a independência de um nistros do stf, eles já vêm discutindo esse lhões de reais na Eldorado. Duas sema- j&f passou a apoiar a lei de 1971 e defen-
árbitro pode ser questionada – se no iní- tema. E o partido se adiantou e trouxe a nas depois, a própria j&f organizou der a tese de que a venda da Eldorado
cio, no meio ou mesmo depois de encer- discussão. Já trouxemos diversos temas informalmente – tendo o cuidado de não precisa ser anulada em razão da ausência
rado o processo arbitral, recorrendo, para o stf e esse foi mais um.” Rueda exibir sua marca – uma outra conferên- da autorização do Congresso ou do In-
neste caso, à Justiça comum. O União afirmou que nunca debateu a petição do cia. Dessa vez, em Brasília. Foi o Primei- cra. A Paper, por sua vez, alega que o
Brasil defende a última hipótese, pois “a União Brasil com representantes da j&f ro Fórum Internacional de Arbitragem, negócio não deve ser desfeito, pois se tra-
falha no dever de revelação é matéria que e negou que o caso da Eldorado tenha oficialmente organizado pelo Instituto ta da compra de uma indústria, e não de
ofende a ordem pública”. Seus advogados sido o motivo da petição. (A piauí pergun- Brasileiro de Direito Legislativo (ibdl), terras, das quais pretende se desfazer as-
também mostraram um quadro bastan- tou se algum executivo da j&f debateu o com transmissão pelo site Poder360. sim que assumir o controle da Eldorado.
te negativo do setor. “A arbitragem está projeto com algum parlamentar, mas a Mais da metade dos participantes es- Em março de 2023, a j&f ganhou um
doente no Brasil”, escreveram. “A comu- holding não respondeu.) tava trabalhando ou já tinha trabalhado aliado nessa nova batalha. A oab – de
nidade empresarial brasileira tem estado O stf não marcou data do julgamento. para a j&f. Em um dos debates, Furtado novo a oab – decidiu pedir ao stf para
bastante cética no tocante à condução Coêlho reafirmou sua posição. “A única participar na condição de amicus curiae
N
dos procedimentos arbitrais, especial- o final de junho passado, aconte- certeza que tenho é o cumprimento da sobre a discussão da lei de 1971. Quan-
mente pela falta de parâmetros concretos ceu a décima primeira edição do lei, no que a lei exige que o Judiciário seja do a oab entrou, o julgamento do méri-
sobre o dever de revelação.” Fórum Jurídico de Lisboa, o even- rigoroso na anulação de arbitragens que to fora suspenso porque estava sendo
É um retrato parcial. A pesquisa Arbi- to organizado anualmente pelo ministro faltem com o dever de revelação, porque transferido do plenário virtual para o
tragem em números, de Selma Lemes, Gilmar Mendes, decano do stf, que esse é o único controle hoje existente”, plenário físico. Mesmo assim, demons-
pesquisadora do assunto, mostra um le- costuma reunir alguns dos mais altos afirmou. Os discursos pareciam um jo- trando senso de urgência, Beto Simo-
ve crescimento do setor. Em 2021, havia integrantes do poder político, jurídico, gral, dado o consenso sobre os defeitos da netti, o presidente da oab, pediu à
1 047 processos em curso no país. No ano acadêmico e financeiro. A afluência de arbitragem, a começar pelo organizador Corte que concedesse uma liminar sus-
seguinte, 1 116. Num sinal de que o insti- autoridades é tal que o evento ganhou o oficial, o ibdl, que entrou no stf como pendendo as transações fundiárias. O es-
tuto ganha prestígio, até entidades da ad- jocoso apelido de Gilmarpalooza. Na amicus curiae com o objetivo de apoiar copo do pedido era tão amplo que, se
ministração pública têm recorrido mais à edição de junho, houve um debate sobre aquela ação proposta pelo União Brasil. atendido, levaria à imediata suspensão
arbitragem: 27 casos em 2021, e 36 no meios alternativos de resolução de con- O evento em Brasília terminou como inclusive da venda da Eldorado. No dia
ano seguinte. Outra pesquisa, desta vez flitos – a arbitragem era um deles. “Com começou: um coro para mudar as regras 10 de abril, com o julgamento do mérito
realizada pelo cbar, entidade que repre- a ausência do dever de revelação, não há da arbitragem, sobretudo o dever de re- ainda suspenso, Simonetti apresentou
18
8 de 10 26/1/24 PROVA FINAL V2
VIVER
GONZAGUINHA
OS SAMBAS DO
MORRO DE SÃO CARLOS
Sombrinha
Martinho da Vila
PARTICIPAÇÕES DE
Larissa Luz • Vidal Assis
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JÁ DISPONÍVEL
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piauí_fevereiro 19
9 de 10 26/1/24 PROVA FINAL V2
que vão se desfazer das terras, mas, para muito dinheiro, saiu contrariado e reser-
tanto, terão antes que comprá-las, o que va palavras duras ao seu ex-sócio, a quem
Paulo Teixeira diz que viola a lei. A Paper chama de “psicopata crônico”. “É o per-
Excellence está tentando a hipótese de fil dele mesmo, de macerar, macerar,
um ajuste de contrato, que, na visão do macerar e macerar até virar pó. Ele não
ministro, não seria suficiente para resol- honra nada, faz o que acha que é o me-
ver o problema. A empresa também insis- lhor para ele, entende?”
te que comprou uma fábrica de celulose,
A
e não terras rurais. piauí consultou a direção da j&f e da
Paper sobre os diversos pontos men-
D
a cidade de Andradina, no interior cionados nesta reportagem. As duas
de São Paulo, um empresário acom- empresas enviaram notas extensas, com
panha toda a saga da Eldorado co- detalhes de suas versões. A leitura das no-
mo quem assiste à reprise de um velho tas mostra que as posições se mantêm
filme. Em 2005, Mário Celso Lopes fun- intactas desde que o conflito começou.
dou a Floragua, uma empresa de produ- A Paper Excellence defende a atuação do
ção de mudas e reflorestamento. Quatro árbitro Anderson Schreiber, que “nunca
anos depois, a j&f comprou metade da foi sócio de nenhum dos advogados da
empresa por 300 milhões de reais. A Flo- empresa [da própria Paper] e nem atuou
ragua passou a chamar-se Eldorado – e em causas conjuntas conforme alegações
começou a implementar um plano para da j&f”. Por sua vez, a j&f diz que Schrei-
tornar-se uma gigante do mercado de pa- ber “quebrou o dever de revelação [...] ao
pel e celulose. A oportunidade para a am- omitir que manteve uma sociedade de
pliação não demorou a aparecer. fato com o escritório de advocacia que as-
Aproveitando a política do pt de criar sinou sua indicação para julgar o caso”.
os “campões nacionais” à base de farto Em relação à espionagem, a Paper
financiamento público, Joesley bateu na diz que o caso “foi considerado pelo Mi-
porta do bndes. Em junho de 2010, já nistério Público como ‘natimorto’ e ‘me-
tinha a garantia de um empréstimo de galômano’, já que não havia nenhuma
ros: “É outro país dentro de Mato Grosso agrária e quer ver o Brasil andar para a 2,7 bilhões de reais para construir uma prova envolvendo a Paper Excellence” e
do Sul. Você vai ter que pegar visto para frente”. Falava do caso da Eldorado, re- das maiores e mais modernas fábricas no completa: “Os inquéritos, instrumenta-
ir para esse outro canto aí. Porque não é petia os argumentos apresentados em mundo, em Três Lagoas, marcando o lizados por representantes da j&f, foram
mais Mato Grosso do Sul. A gente vai ter Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, e salto da Eldorado. Na véspera do lança- arquivados pela Justiça de São Paulo [...],
aí uma Indonésia! Com 450 mil hecta- terminava assinando com um brado – mento da pedra fundamental da nova uma vez que foram identificadas várias
res!” A extensão é de 285 mil hectares, e “Justiça Sempre!”. No dia seguinte, ou- fábrica, Joesley estava no rancho de Lo- irregularidades ao longo da investiga-
não 450 mil. A Justiça ainda não decidiu tro anônimo, por meio de um e-mail, pes. Os dois saíram para uma caminha- ção.” A j&f rebate: “Fato é que, segundo
se o mpf pode ou não voltar atrás em sua tratou de alertar o superintendente regio- da. No trajeto, Joesley fez um cálculo laudos periciais e confissões às autorida-
desistência e reassumir o caso. nal do Incra em Mato Grosso do Sul a societário que mudaria tudo. des policiais, essa arbitragem foi man-
Mas o procurador Marcelo da Silva já respeito da chegada da denúncia. “Supe- “Ó, nós botamos 300 milhões de reais chada pela espionagem de mais de 70 mil
voltou atrás. No dia 16 de novembro, ele rintendente, ajude com essa denúncia e somos donos da metade”, começou ele. e-mails do grupo j&f, incluindo a íntegra
se reunira com representantes da Paper grave no estado. Obrigada”, escreveu. “Agora, vai entrar esse financiamento de das comunicações trocadas com todos
Excellence e se mostrara aberto a um Mobilizado para avaliar o assunto, o In- 2 bi e 700. E aí muda a história porque os seus escritórios de advocacia e teste-
acordo. Disse que, se a empresa se com- cra deu andamento. esse dinheiro só saiu por minha causa. munhas da arbitragem.”
prometesse a vender as terras e alterar os Duas semanas depois, o caso já estava Sendo assim, a participação societária Quanto à questão das terras, a j&f diz
contratos de arrendamento para parce- em Brasília. A chefe da Divisão de Fisca- sua, de 50%, vai reduzir para 5%”, con- que ela própria é ré nas ações referentes
rias rurais, os obstáculos poderiam ser lização e de Controle de Aquisições por cluiu, segundo rememorou Lopes em ao assunto, junto com a Eldorado e a Pa-
removidos e a venda da Eldorado pode- Estrangeiros considerou os fatos “gravís- conversa com a piauí. “Então não temos per Excellence, e afirma que “a Paper
ria ser finalmente concluída. Depois da simos” e escreveu: “O Incra não pode mais como ser sócios dentro desse espíri- Excellence teve conhecimento de todos
reunião, porém, Silva conversou com ficar silente.” Pediu “máxima urgência, to aí”, retrucou Lopes. “Pode esquecer.” os contratos que demonstravam as áreas
Havrenne e mudou de opinião. “Ele me com o intuito de evitar que o negócio, se Diante do desentendimento, Lopes próprias e arrendadas pela Eldorado an-
explicou e eu fiquei convencido de que for comprovado, se concretize”. Nos me- sugeriu vender a Eldorado. Segundo ele, tes da assinatura do contrato, que já su-
ele estava correto”, disse à piauí. “O que eu ses seguintes, o Incra concluiu que a j&f Joesley aceitou a sugestão porque tinha peravam os 200 mil hectares na época”
estava pensando em fazer não ia ter co- e a Paper não haviam pedido aprovação certeza de que não haveria um bom e, no entanto, “nunca solicitou autoriza-
mo se tornar efetivo.” do negócio fundiário aos órgãos compe- comprador. Só que, pouco depois, Lopes ção prévia para a aquisição [...] antes de
Com o mpf se inclinando a favor de tentes. A transação, então, não podia ser já tinha na mesa uma boa proposta da assinar o contrato de compra da Eldora-
sua tese, a j&f ainda contava com um feita, a menos que as duas partes se en- Suzano, a maior fabricante de celulose do”. A Paper rebate: “A Eldorado é pro-
recente e poderoso aliado. No dia 6 de tendessem em torno do assunto. Depois de fibra curta do mundo, cuja sede fica prietária de apenas 5% (14 464 hectares)
outubro, o ministro Paulo Pimenta, da de anos de briga implacável, era óbvio em São Paulo. As conversas começaram das terras que utiliza em sua operação
Secretaria de Comunicação, considera- que essa alternativa não existia. O caso com 1 bilhão, aumentaram para 1,2 bi- – um complexo industrial e o viveiro de
do um porta-voz das posições do gover- ainda será julgado pela Justiça, mas é lhão, mas Joesley criou dificuldades e mudas da empresa, que ficam numa
no, tuitou sobre o assunto e defendeu a uma vitória parcial da j&f. bloqueou o negócio. Mais tarde, Lopes área urbana, no município de Três Lagoas
suspensão do negócio em razão da ques- Em conversa com a piauí, o ministro conversou com o Mondi Group, um – não havendo, portanto, nenhum con-
tão das terras. E completou: “Ninguém Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrá- gigante da África do Sul, que apresen- flito com a legislação de venda de terras
pode estar acima da lei da cf [Constitui- rio e Agricultura Familiar, contou que es- tou uma proposta ainda melhor: pagava rurais para estrangeiros.”
ção]. Esta situação atenta contra nossa teve com representantes da j&f e da Paper. 2,5 bilhões aos acionistas e assumia as dí- O único ponto em comum entre as
soberania e essa e outras vendas à reve- Saiu com a convicção de que a operação vidas da empresa, que batiam em 4,5 bi- duas notas é a certeza da vitória. Diz
lia da lei devem ser anuladas!!” está malparada. “Esse negócio de com- lhões. Segundo Lopes, Joesley mais uma uma: “A j&f está confiante de que o
Sem alarde, o governo federal já tra- pra de terras tem um rito. A lei diz que vez sabotou a transação. Ao perceber que sistema jurídico brasileiro não chance-
balhava no caso. Em 1º de março, o In- terras no Brasil só podem ser adquiridas nunca conseguiria vender a Eldorado lará os vícios e crimes cometidos contra
cra recebeu uma denúncia anônima, por brasileiros. Excepcionalmente, os diante da resistência de Joesley, Lopes ela ao longo desse litígio.” Diz a outra:
apresentada por um “cidadão brasileiro estrangeiros podem comprar. Mas eles acabou se desfazendo de sua parte por “A Paper confia que sua posição preva-
que passou a vida lutando pela reforma precisam de autorização. Não tendo au- 300 milhões de dólares ao aceitar uma lecerá no Judiciário.”
20
10 de 10 26/1/24 PROVA FINAL V2
DIÁSPORAS ASIÁTICAS
ação: “A requerente [refere-se à J&F], por leniência – esclarece Joesley.
estar à mercê dos abusos da Lava Jato, O ministro Dias Toffoli, do stf, no
viu-se forçada a realizar diversos negó- entanto, concordou com a alegação do
cios jurídicos, patrimoniais, desvantajo- diretor jurídico da j&f e concedeu uma
sos. A título de exemplo, podem-se citar as
vendas da Eldorado, da Vigor e da Alpar-
liminar suspendendo a multa de 10,3 bi-
lhões. Sua decisão, tomada às vésperas CHEN KONG FANG
gatas, que, à época, somavam quantia de
aproximadamente 24 bilhões de reais.”
A Vaza Jato, que trouxe à tona os bas-
do recesso judiciário, chamou a atenção
para um dado: a mulher do ministro,
Roberta Maria Rangel, é advogada da
O REFÚGIO
tidores obscuros da Operação Lava Jato, j&f na causa que discute a arbitragem.
mostrou que, de fato, o então juiz Ser- Ela atua no Tribunal de Justiça de São
gio Moro trocava mensagens com os Paulo e no Superior Tribunal de Justiça,
procuradores, sobretudo Deltan Dallag- em Brasília, mas não junto ao stf, onde
nol, sugerindo providências, orientando
ações, cobrando agilidade e fornecendo
seu marido trabalha.
Ainda em dezembro, a j&f teve outra HEE SUB AHN
O CAMINHO
pistas, numa evidência de que a inves- excelente notícia. Em uma liminar, tam-
tigação era uma operação orquestrada. bém concedida às vésperas do recesso, a
Nesse contexto, não é difícil que dela- ministra Daniela Teixeira, a mais nova
tores tenham falado sob pressão, ou que integrante do Superior Tribunal de Justi-
provas tenham sido obtidas de forma ça, mandou desarquivar o inquérito de
irregular, e interesses políticos – e sabe- Diadema, que investigou o caso de espio-
se lá o que mais – tenham movido os nagem cibernética. Teixeira entendeu
investigadores. A alegação da j&f, no
entanto, tem outra gênese.
que o caso deveria ter sido analisado em
Brasília, pois tinha conexões com um TOCAR A TERRA–
Assis e Silva diz que a evidência do
conluio de que a j&f foi vítima está em
um suposto diálogo entre o procurador
inquérito na capital federal. Como o in-
quérito em Brasília já havia sido arquiva-
do, a decisão da ministra, na prática,
CERÂMICA
Anselmo Lopes e o empresário Josmar
Verillo, no qual se discute um plano para
ressuscitou dois inquéritos numa tocada
só – o de Diadema e o de Brasília. CONTEMPORÂNEA
NIPO-
forçar a venda da Eldorado. O procurador O mês de janeiro também começou
trabalhava na Operação Greenfield, que alvissareiro para a j&f. A sentença da
investigou fraudes em fundos de pensão juíza Renata Mota Maciel, que derru-
e envolveu a jbs. Já o empresário, segun-
do a denúncia de Assis e Silva, era repre-
sentante da Transparência Internacional
bou a alegação de espionagem e de par-
cialidade do árbitro Anderson Schreiber,
estava prestes a ser confirmada. Dos três
BRASILEIRA
(não era) e contratado pela Paper Excel- desembargadores do Tribunal de Justiça
lence (só seria um ano depois). Nunca de São Paulo escalados para analisar o
apareceu indício de que esse diálogo exis- caso, dois já haviam decidido contra a
ta. Assis e Silva não menciona que, antes j&f. Mantiveram a validade da sentença
de negociar a Eldorado com a Paper, a da juíza Maciel e condenaram os ir-
j&f estava prestes a vender a empresa para mãos Batista a pagar 30 milhões de reais
a companhia Arauco, do Chile, que ofe-
receu 13,2 bilhões de reais. Mas, numa
demonstração de que não houve pressão
por litigência de má-fé. Na véspera da
votação do terceiro desembargador, o
julgamento foi suspenso por uma deci-
A PARTIR DE 29.FEV
para fazer a venda, a j&f deixou vencer o são do ministro Mauro Campbell, do
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prazo da proposta chilena porque a Paper Superior Tribunal de Justiça. O adia-
apareceu com uma oferta maior. mento deu mais tempo para j&f. ENTRADA GRATUITA VERIFIQUE A CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA
De todo modo, a essência de alegação Com tudo isso – os casos de Anderson
de Assis e Silva – de que a j&f foi forçada Schreiber e da espionagem reabertos,
a vender ativos pelos procuradores do mais a suspensão da multa bilionária e
mpf – era engenhosa, mas é desmentida adiamento do julgamento em São Pau- Apoio de mídia
pelo próprio Joesley. A piauí teve acesso a lo –, a j&f começou 2024 podendo sonhar,
um trecho do depoimento que o empre- pela primeira vez, com a possibilidade
sário prestou no caso de arbitragem da de encerrar o maior conflito societário
Eldorado. Ali, Joesley afirma que a mul- do país com uma vitória. Os irmãos Ba-
ta bilionária da leniência não foi a razão tista, definitivamente, estão de volta. J Idealização Realização
piauí_fevereiro 21
1 de 3 25/1/24 PROVA FINAL
O RESSENTIMENTO É REAL
Ao contrário do que pensa Vladimir Safatle, a psicologia afeta concretamente a política, como atesta um estudo recente
N
o texto Os limites do ressenti- do que para explicar de fato o que leva governo aos grupos em situação de vul- de status de outros grupos sociais, defi-
mento (piauí 206_novembro “trabalhadores e grupos precarizados a nerabilidade e saber se a visão política nidos por critérios socioeconômicos,
de 2023), Vladimir Safatle cri- se converterem à extrema direita”. das pessoas é afetada pelo sentimento de regionais, étnico-raciais, de gênero, en-
tica o uso de conceitos da psi- Concordamos que não faz sentido que seu status socioeconômico está amea- tre outros aspectos.
cologia – especialmente o explicar um processo político como çado. Na pesquisa, realizada pela Atlas- Os resultados indicam que 43% dos
“ressentimento” – para explicar o apoio à uma falha moral ou uma reação patoló- Intel, foram ouvidas, via internet, 2 037 brasileiros consideram ter ganhado im-
extrema direita. O ponto central do pro- gica de parte da sociedade. No entanto, pessoas de diferentes classes sociais, com portância nos últimos vinte anos, enquan-
fessor de filosofia é que o recurso a tais é fundamental reconhecer a forma pela idades entre 18 e 90 anos, em 801 muni- to 30% pensam o oposto: que perderam
conceitos leva a crer que a adesão à extre- qual o “ressentimento” está intimamen- cípios. A cada entrevistado, apresentamos a importância que tinham. A percep-
ma direita é uma reação patológica das te conectado à realidade material. Os uma série de perguntas para medir se a ção de ganho é maior entre as mulheres
sociedades contra a democracia, advinda gatilhos do ressentimento variam con- importância que ele atribui a si mesmo e (46,2%), os pretos e pardos (48,5%) e as
de processos irracionais, como as “re- forme o contexto, mas em todos os casos a pessoas como ele aumentou ou dimi- pessoas do Nordeste (61%) do que entre
gressões”, no sentido psicanalítico. Na há alguma relação com mudanças eco- nuiu nos últimos vinte anos – ou seja, os homens (40%), os brancos (34%) e
visão de Safatle, essa interpretação psico- nômicas e sociais concretas e a maneira desde que o pt chegou à Presidência pela as pessoas do Sul e do Sudeste (32,5%).
logizante, formulada sobretudo pela es- como são percebidas. Em todos os paí- primeira vez, com a posse de Lula em O mais alto índice de ganho de impor-
querda, conduz a uma “moralização ses nos quais o conceito veio à baila para 2003. Uma das perguntas, por exemplo, tância aparece entre as mulheres nordes-
extensiva do campo político”, ao separar explicar a ascensão da extrema direita, foi formulada da seguinte maneira: tinas e não brancas de baixa renda (71%).
os eleitores progressistas daqueles que notou-se que há uma relação entre o Entre 2003, quando o PT chegou à Pre- Já o menor índice está entre os homens
“não são como nós” – ou seja, os ressen- ressentimento e a percepção de deter- sidência pela primeira vez, e 2023, quan- brancos e mais velhos, com renda média
tidos. Com isso, tende-se a colocar no minados grupos de que mudanças so- do o PT retornou à Presidência, você diria ou alta do Sudeste (25%) – são os polos
mesmo nível “pessoas beneficiadas pela ciais em curso estão prejudicando suas que você e pessoas como você: 1) Ganha- antagônicos da pesquisa.
ordem econômica” (que aderem à extre- vidas e alterando as hierarquias sociais. ram muita importância na sociedade; Na média, os brasileiros acham que
ma direita para manter seu status e privi- Esse é também o caso do Brasil, como 2) Ganharam alguma importância na so- os segmentos sociais que mais ganha-
légios) e “pessoas em situação de extrema revela uma pesquisa de opinião que fize- ciedade; 3) Nem ganharam, nem perderam ram importância nos últimos vinte anos
precariedade social” (que aderem à ex- mos em setembro de 2023, cujos dados importância na sociedade; 4) Perderam al- foram as mulheres, os nordestinos, os ne-
trema direita por não verem outra saída). aparecem nesta réplica pela primeira guma importância na sociedade; 5) Per- gros, os indígenas e os grupos lgbtqia+.
Para Safatle, as explicações psicológicas vez. A pesquisa foi realizada com o obje- deram muita importância na sociedade. Em contraste, os que menos ganharam
acabam servindo mais para esconder a tivo de entender como os brasileiros en- Buscamos ainda aferir a percepção importância foram os homens, os bran-
“impotência das políticas progressistas” caram os benefícios sociais dados pelo dos entrevistados sobre ganho ou perda cos e as pessoas de renda alta. O resultado
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FOTOMONTAGEM DE BETO NEJME (2024) SOBRE DETALHE DO QUADRO O ANJO CAÍDO_1847_ALEXANDRE CABANEL (1823-89)
Fotomontagem a partir de O anjo caído, de Alexandre Cabanel: a direita no Brasil sempre caminha para o extremismo se políticas públicas alteram o status quo econômico, racial e sexual
não é muito controverso, mas confirma nha, que constataram a mesma conexão. social apresenta valores altos em cada tos, mas não há como inferir uma relação
que existe, sim, em todos os segmentos da E o motor por trás desse movimento é o um dos três índices, o que indica a cone- absoluta de causalidade entre os dados.
sociedade a percepção de que nos últi- ressentimento, como veremos a seguir. xão entre a percepção de perda de status Não há dúvida, porém, de que o ressen-
mos vinte anos alguns ganharam impor- e o ressentimento com relação a pobres, timento afeta grande parte da sociedade,
N
tância e outros perderam. a pesquisa, incluímos três baterias mulheres e/ou negros. e sua existência tem base material bas-
Perceber a si mesmo e ao seu grupo de perguntas desenvolvidas em es- A descoberta-chave, aqui, é que o res- tante clara. Nossa pesquisa mostra que as
social como ganhador ou perdedor pro- tudos internacionais para medir sentimento permite prever a preferência pessoas que se situam politicamente à
duz não apenas reações psicológicas de forma consistente percepções em re- política. Pessoas com elevado grau de direita tendem a acreditar que perderam
como também consequências políticas, lação ao esforço/merecimento das pes- ressentimento nos três índices têm proba- status nas duas últimas décadas e se res-
inclusive em termos de preferências par- soas pobres, e também ao machismo e ao bilidade muito alta de serem antipetistas sentem dos ganhos obtidos por outros
tidárias. Considere, preliminarmente, racismo. Perguntamos aos entrevistados, e probabilidade muito baixa de serem grupos – exatamente os mesmos que jul-
que em nossa amostra completa 40% se por exemplo, se concordavam ou discor- petistas. Por exemplo, pessoas situadas no gam ter ganhado mais status, especial-
identificam como antipetistas e 27% davam de afirmações como “a maioria ponto mais alto de ressentimento têm mente os pobres, os negros e as mulheres.
como petistas. Esses números médios, dos desempregados não quer realmente probabilidade 0,8 de ser antipetista e 0,04 Indo mais longe, podemos dizer que a
no entanto, escondem forte variação arranjar emprego” ou “os problemas ra- de ser petista. Com relação a pessoas associação entre a adesão à esquerda e
entre grupos ganhadores e perdedores. ciais no Brasil são situações raras e isola- com baixo grau de ressentimento nos três a percepção de ganho nas últimas duas
Em meio aos que consideram ter perdi- das”. Com base nas perguntas de cada índices, ocorre exatamente o contrário: a décadas indicam que a relação entre o
do importância social nas últimas déca- bateria, produzimos três índices (que probabilidade de ser antipetista é apenas ressentimento e o apoio à extrema direita
das, o número de antipetistas sobe para variam de 0 a 1), referentes a merecimen- 0,1, ao passo que a de ser petista é 0,55. pode ser interpretada como consequên-
70% e o de petistas cai para apenas 2%. to, machismo e racismo. Essa escala é o Ainda que Safatle considere que o res- cia não dos fracassos, mas dos sucessos
Em contraste, entre os que consideram que nos permite medir o grau de ressen- sentimento de classe, raça ou gênero não de governos de esquerda. É o exato opos-
que ganharam importância, o número timento em relação aos mais pobres, às seja um conceito útil para explicar a ade- to do que propõe o artigo de Safatle.
de antipetistas cai para 16% e o de petis- mulheres e aos negros. Os três índices são à extrema direita, nossa pesquisa su- Em termos especulativos, uma das
tas sobe para 50%. são moderadamente correlacionados. Ou gere que, sem eles, deixamos de entender bases concretas de tal ressentimento está
Os dados mostram, portanto, uma seja: indivíduos ressentidos em relação a completamente esse fenômeno. relacionada às políticas públicas imple-
forte associação entre a adesão à extrema um grupo podem não ser em relação aos Suspeitamos que variações nas per- mentadas pelo pt – que ocupou a Presi-
direita e a percepção de perda de status, demais. Mesmo assim, os números são cepções de ganho ou perda de status, dência quatro vezes entre 2002 e 2022
em sintonia com pesquisas similares fei- mais parecidos entre si do que divergen- talvez coloridas pelas preferências parti- – com o objetivo de reduzir as desigual-
tas nos Estados Unidos e na Grã-Breta- tes. Quem considera ter perdido status dárias, sejam as causas dos ressentimen- dades sociais, raciais e de gênero no
piauí_fevereiro 23
3 de 3 25/1/24 PROVA FINAL
Brasil. Entre os esforços mais proemi- norias culturais e religiosas vistas como
nentes estão o aumento real do salário estranhas à nação e dá origem ao popu-
mínimo, a facilitação do acesso à Previ- lismo nacionalista e nativista e ao prote-
dência via mei, a estruturação de um cionismo econômico. No Brasil, como
sistema de assistência social com transfe- demonstra a pesquisa que fizemos, está
rências diretas de renda, a redução da relacionado à percepção de alguns gru-
insegurança habitacional, a regulariza- pos sociais de sua perda de status social
ção do emprego de trabalhadores domés- nas duas últimas décadas em favor de
ticos, o aprimoramento da segurança outros grupos, antes subalternos.
alimentar, a expansão maciça do acesso O ressentimento, que se dá inicial-
à educação superior, a implementação de mente no plano individual e psicológi-
ações afirmativas de classe social e raça, co, ganha a dimensão de fenômeno
o reconhecimento e a demarcação de qui- social quando se generaliza por todo um
lombos, entre outras iniciativas. grupo e é em seguida compartilhado
Os governos do pt também busca- por outros. Por exemplo, homens – in-
ram alterar as tradicionais hierarquias clusive os que não pertencem à elite
de gênero e o tratamento discriminató- econômica – podem se ressentir de po-
rio de minorias sexuais, aprovando a líticas que concedem às mulheres traba-
primeira lei brasileira a respeito da vio- lhadoras mais direitos e benefícios. Ou
lência doméstica (Lei Maria da Penha) brancos – inclusive os que não perten-
e endurecendo as punições para casos cem à elite – podem se ressentir por
extremos de abuso infantil (Lei Meni- achar que não brancos em geral se be-
no Bernardo), além de promover currí- neficiam injustamente de programas de
culos antibullying nas escolas. Nem ação afirmativa. Por isso, não comparti-
todas essas políticas foram bem dese- lhamos da visão de Safatle de que determi-
nhadas e aplicadas, mas no conjunto nados aspectos psicológicos não sejam
constituem uma agenda progressista úteis para explicar a manifestação cole-
que alterou o debate acerca das desi- tiva de adesão à extrema direita.
gualdades no país. Safatle afirma que a esquerda brasi-
Faz sentido conjecturar que essas leira atual exibe uma “incapacidade real
políticas dos governos petistas tiveram em apresentar ações robustas e críveis
efeitos concretos na percepção de ga- para problemas de precarização e vulne-
nhos e perdas dos brasileiros. Por um rabilidade social”. Mas, como vimos, no
lado, acarretaram benefícios aos seus Brasil parece ter acontecido o oposto.
destinatários. Por outro, suscitaram pre- Os nossos dados sugerem, indiretamen-
conceitos de classe em pessoas que te- te, que foram os resultados concretos
mem perder a importância social. Esse e simbólicos de políticas públicas bem-
desconforto muitas vezes ficou clara- sucedidas que alteraram relativamente
mente manifesto em declarações que as hierarquias sociais. Políticas que re-
O
ressentimento é real. Ele não é a vez a esquerda pudesse ter feito mais,
causa última da adesão à extrema porém o que fez foi suficiente para des-
direita, mas é esse campo político pertar um forte ressentimento. No Bra-
que dá vazão ao ressentimento até então sil, a direita sempre caminha para o
latente, valorizando-o de forma explícita extremismo quando políticas públicas
Patrocínio Apoio e até violenta, para fins políticos. Essa ameaçam alterar bastante o status quo
master cultural
estratégia repete uma fórmula da direita econômico, racial e sexual, e sempre se
radical que hoje lhe rende apoio e votos investe da tarefa de desfazer as conquis-
em diferentes países. Em cada caso, o tas sociais. Foi o que aconteceu nova-
ressentimento tem uma origem e um mente nos últimos anos, sob os auspícios
desdobramento particular. Em algumas de grupos afetados pelo ressentimento
nações europeias, por exemplo, é dire- com os ganhos concretos obtidos por gru-
Apoio Coorganização Realização
cionado a grupos de imigrantes ou mi- pos historicamente marginalizados. J
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O INFILTRADO
Como um policial federal levou 25 traficantes internacionais de cocaína à prisão
ALLAN DE ABREU
C
ristiano Mendes de Cordova Nascimento, um homem de meia- por todo traficante de cocaína: burlar o ro parceiro. Catarinense de Blumenau,
Nascimento estava muito à idade, estatura mediana e ligeiramente scanner, que varre todos os contêineres Nascimento disse que atuava no tráfico
vontade em seu apartamento acima do peso, não parecia preocupa- antes da entrada no terminal portuário internacional de cocaína havia dez anos.
na Rua Conde de Bernadot- do com o prejuízo milionário que sofre- carioca, em busca de drogas. Por esse Fornecia toneladas da droga para grandes
te, no Leblon, Zona Sul do ra com as recentes apreensões da droga serviço, Nascimento concordara em pa- compradores europeus, como a máfia
Rio, na tarde de 12 de março de 2021. remetida ao continente europeu. No gar 400 dólares (2 mil reais) por quilo de calabresa ‘Ndrangheta e o narcotrafican-
O empresário recebia a visita do seu total, ele havia perdido 1 676 kg de clo- cocaína que Xuxa conseguisse embarcar te britânico Ryan James Hale, conhecido
novo parceiro de negócios, Edmilson ridrato de cocaína, cujo valor, no Brasil, para a Europa, quando o carregamento como Robô, baseado em Dubai, nos Emi-
Lincoln Jardim Filho. As paredes do é estimado em 40 milhões de reais. Mas total fosse superior a meia tonelada. Se rados Árabes Unidos. A cocaína saía dos
apartamento estavam cobertas com fo- isso era um problema passageiro. Nasci- a quantia fosse menor que isso, o valor países andinos, cruzava o Brasil em ca-
tografias de cavalos de corrida. Mas mento queria discutir futuras remes- do quilo subia para 600 dólares (3 mil minhões e era enviada para a Europa via
Nascimento precisava discutir detalhes sas da droga e, para isso, contava com a reais). “Nós entramos pra dentro do por- portos, sempre com a logomarca FedEx
do negócio que sustentava seu mundo, ajuda decisiva de Jardim Filho, despa- to, tá tudo o.k. pra embarcar, sai a lista em cada tablete de 1 kg. Os europeus pa-
inclusive algumas dezenas de cavalos chante aduaneiro no porto carioca. pra embarque, você consegue resol- gavam a droga por meio de transferências
que mantinha em vários haras pelo Bra- Jardim Filho – que os funcionários ver?”, perguntou Nascimento. “Resolvo”, financeiras a bancos na Bolívia. O dinhei-
sil: os próximos carregamentos de cocaí- de Nascimento apelidaram de Xuxa, em respondeu Jardim Filho. ro entrava no Brasil via doleiros. E Nas-
na que seriam enviados para a Europa, razão de seus cabelos loiros e pele clara Empolgado, o traficante resolveu cimento lavava os recursos na compra de
via Porto do Rio de Janeiro. – oferecera a facilidade mais sonhada contar detalhes do seu negócio ao futu- imóveis, no investimento em uma trans-
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Conjunto de imagens captadas pelo agente disfarçado: quando policiais civis roubaram 280 quilos de cocaína da quadrilha no Complexo da Maré, um deles reclamou: “Bando de ladrão fdp”
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barque à Europa. Tudo isso sem passar bem como a Receita Federal, ambas pre-
pelo scanner. viamente autorizadas pela Justiça, deixa-
Quatro meses depois desse contato ram o contêiner passar. Cinco dias depois,
inicial, a 10ª Vara Federal Criminal do Jardim Filho recebeu os 70 mil dólares
Rio de Janeiro, informada da operação, em dinheiro vivo, no lobby do hotel Wind-
aprovou a infiltração do policial na qua- sor, em Copacabana. Foi sua primeira
drilha de Scoralick. Assim surgiu, for- operação como agente disfarçado. O di-
malmente, a pessoa física Edmilson nheiro foi entregue à pf e depositado em
Lincoln Jardim Filho, filho de Edmil- uma conta judicial. Para não levantar sus-
son Lincoln Jardim e Vilma Jardim, peitas da quadrilha, a Polícia Federal não
nascido em 20 de dezembro de 1974. fez a apreensão da droga. Preferiu alertar
Embora o sotaque carioca do policial a polícia belga, que então apreendeu o
não deixasse dúvida quanto à sua ori- carregamento em Antuérpia.
gem, nos documentos forjados ele era Apesar do revés, dois meses depois
natural de Recife. Com autorização Chendal Rosa voltou a contratar Jardim
judicial, Jardim Filho ganhou carteira Filho, desta vez para a remessa de 508 kg
de identidade e passaporte, documen- de cocaína. Eram dois contêineres, um
tos necessários caso os criminosos deci- para Antuérpia e outro para Valência, na
dissem checar seus registros. Espanha. A operação se repetiu. Os con-
Em junho de 2020, no mesmo shop- têineres foram retirados do porto, leva-
ping do aeroporto, Scoralick interme- dos para Bonsucesso, onde receberam a
diou uma reunião entre Jardim Filho e cocaína e voltaram para o porto burlando
dois traficantes: Chendal Wilfrido Rosa, o scanner. Jardim Filho recebeu 180 mil
o líder do grupo, e seu braço direito Vic- dólares (900 mil reais). A droga, de novo,
tor Henrique Tavares da Silva. Nascido foi apreendida. Uma parte no Porto do
em Curaçao, no Caribe, Chendal Rosa Rio, outra parte na Europa. O enredo se
integra a No Limit Soldiers (Soldados repetiria outras duas vezes: 330 kg da
sem limites), facção criminosa caribe- droga no fim de dezembro de 2020 e ou-
nha especializada em assassinatos por tros 400 kg em junho de 2021. Os dois
portadora sediada em Santa Catarina e, Durante esses três anos, o policial es- encomenda mundo afora. Ele responde carregamentos foram interceptados pela
claro, na aquisição de cavalos de corrida. teve no centro de uma operação de vida a ações penais por narcotráfico, latrocí- pf ainda no Porto do Rio.
Depois de alguns minutos de conver- ou morte. E, em duas ocasiões, esteve a nio, homicídio, roubo e lavagem de di- O insucesso de quatro operações não
sa, Nascimento acionou seu sócio por um milímetro de ser descoberto. nheiro na Europa e no México. despertou nenhuma desconfiança do
videoconferência, o também catarinen- No fim da última década, Chendal traficante de Curaçao. Ele atribuiu as
P
se Lindomar Reges Furtado, conhecido or ser próxima do porto, a Rua Sa- Rosa trocou a Europa pela Baixada apreensões ao trabalho da polícia belga
como Israel, radicado em Foz do Iguaçu, cadura Cabral, no bairro da Saú- Santista, onde se associou ao pcc para de quebrar a criptografia do Sky ecc,
no Paraná. Filho de um ex-prefeito do de, área central do Rio, concentra mandar cocaína à ‘Ndrangheta e ou- aplicativo que mais tarde encerrou suas
interior de Santa Catarina, Israel já foi boa parte dos despachantes aduaneiros tras organizações criminosas europeias. atividades. Mas parte da quadrilha, pos-
preso por contrabando de produtos do interessados em intermediar a importa- O traficante de Curaçao disse ao agente sivelmente membros do pcc em Santos,
Paraguai, sobretudo cigarros. Israel per- ção ou exportação de cargas pelo termi- infiltrado ter estrutura logística para re- começou a desconfiar do agente infil-
guntou a Jardim Filho se a Polícia Federal nal portuário. Em conversa com alguns tirar a cocaína enviada pelo pcc em trado. Afinal, os contêineres driblavam
estava trabalhando bastante no Rio. “Não despachantes em meados de 2019, agen- portos da Bélgica, Holanda, Itália, Es- o scanner, mas o carregamento nunca
deve tá”, interrompeu Nascimento. “Por- tes da Polícia Federal e da Administra- panha e Portugal. Para testar o novo chegava ao destino. Certo dia, Chendal
que não consegue pegar nós. Eles devem ção de Repressão às Drogas (dea, na esquema via Porto do Rio, ele fez uma Rosa orientou Jardim Filho a não ir a
tá se matando porque eles não descobrem sigla em inglês), a polícia americana de oferta: Jardim Filho ganharia 70 mil dó- determinado local, sugerindo que, caso
quem é nós, eles entendem de tudo!” To- combate ao narcotráfico internacional, lares (350 mil reais) para enviar 140 kg fosse, correria risco de vida. “Eles que-
dos gargalharam. “A polícia até pode sa- souberam que traficantes ligados à fac- da droga até Antuérpia, na Bélgica. No rem foto de você”, disse Rosa, em por-
ber de nós, mas não tem prova. [...] Como ção criminosa Primeiro Comando da fim do encontro, Chendal Rosa entre- tuguês, referindo-se aos membros do
é que vai pegar uma reunião nossa aqui? Capital (pcc) procuravam um meio de gou ao infiltrado um celular com apenas pcc. A pf suspeita que os traficantes
Entendeu? Não tem como!” Jardim Fi- driblar o scanner dos contêineres no um aplicativo instalado, o Sky ecc, que, queriam uma imagem de Jardim Filho
lho aquiesceu: “Perfeito!” Porto do Rio, pois estavam tendo difi- na época, era considerado o mais seguro para repassá-la a algum policial corrup-
Nascimento e Israel nem desconfia- culdades com o rigor da fiscalização no do mundo, com criptografia avançada to que pudesse identificá-lo. Para tran-
vam, mas Jardim Filho, o Xuxa, era um Porto de Santos, no litoral paulista. e um recurso capaz de apagar remota- quilizar o novo parceiro, o próprio Rosa
personagem fictício, criado por um poli- Os agentes trataram então de espa- mente todas as mensagens. emendou, na sequência: “Confio em
cial federal que se infiltrou na quadrilha lhar pela Sacadura Cabral a informa- A oportunidade de enviar os 140 kg você.” Jardim Filho escapou dessa.
sob o disfarce de despachante aduaneiro. ção de que um despachante aduaneiro de cocaína para Antuérpia se materiali- O infiltrado viveu outro momento
Ao longo de três anos, aconteceram vá- – chamado Edmilson Lincoln Jardim zou em outubro daquele ano. Na tarde tenso durante sua missão. No dia 21 de
rios encontros como o daquela tarde de Filho – tinha um esquema para burlar do dia 8, um contêiner que seria embar- outubro de 2021, ele foi convidado por
março de 2021, aos quais o agente costu- o temido scanner. A informação chegou cado em um navio com destino ao porto Victor Silva, o braço direito de Chendal
mava comparecer munido de microcâ- ao traficante Maycon Igor Scoralick, o belga carregado com polipropileno foi Rosa, para mais uma reunião, desta vez
meras ou microgravadores. As conversas Russo, que na época ocupava um cargo sorrateiramente retirado do terminal num apartamento localizado no Leme,
reproduzidas nesta reportagem foram comissionado na Fundação Teatro Mu- portuário carioca e levado para um gal- na Zona Sul do Rio, onde estava Isa,
extraídas do material gravado pelo agen- nicipal do Rio de Janeiro, ligada ao go- pão em Bonsucesso, Zona Norte da uma traficante do pcc. Ao chegar, Jar-
te, ao qual a piauí teve acesso. verno estadual. Em dezembro de 2019, capital, por uma transportadora contra- dim Filho foi minuciosamente revista-
Infiltrado em duas organizações cri- os dois se encontraram num shopping tada pela pf. No galpão, Chendal Rosa, do por um dos seguranças da mulher.
minosas, Jardim Filho – cujo nome ver- contíguo ao Aeroporto Santos Dumont, Scoralick e o agente infiltrado romperam A sorte o salvou. Por mero acaso, naque-
dadeiro é mantido até hoje em segredo no Rio. Jardim Filho detalhou seu es- o lacre do contêiner, inseriram as bolsas le dia Jardim Filho resolveu compare-
– ajudou na apreensão de 10,8 toneladas quema para Scoralick: ele conseguia com os tabletes do entorpecente (a dro- cer ao encontro sem as microcâmeras ou
da droga no Brasil e na Europa e colocou retirar de dentro do pátio contêineres ga viera dois dias antes da Baixada San- gravadores ocultos que costumava levar
a Polícia Federal no encalço de 33 trafi- com cargas legalizadas sem o conheci- tista) e inseriram novo lacre clonado. para registrar os encontros.
cantes internacionais de cocaína – 25 es- mento do dono, levá-lo para um galpão Em seguida, sem que o dono do po- Depois da revista, Isa pediu que Jar-
tão atrás das grades e oito estão foragidos. da quadrilha nas proximidades, inserir lipropileno desconfiasse, o contêiner foi dim Filho colocasse seu celular no
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N
o segundo semestre de 2020, en- Oliveira, no entanto, tomou uma deci-
quanto Jardim Filho estava infiltra- são paradoxal: autorizou o policial infil-
do na quadrilha de Chendal Rosa, trado a receber os valores pela retirada A EXPOSIÇÃO PRINCIPAL
surgiu entre os despachantes aduaneiros do contêiner do porto, mas, ao mesmo ESTÁ FECHADA PARA
OBRAS DE RENOVAÇÃO.
da Rua Sacadura Cabral outro interes- tempo, negou a autorização para que o
sado nos seus serviços: Leonardo Serro contêiner fosse retirado do porto para
dos Santos, o Carioca. Agentes da Polí- o enxerto da cocaína. “As medidas re- EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA | FUTEBOL DE BRINQUEDO
cia Federal passaram a segui-lo e desco- queridas pela autoridade policial não en- Patrocínio Máster Patrocínio Apoio
briram que, em agosto daquele ano, contram amparo legal e, caso deferidas,
Leonardo Santos chegara ao Rio, proce- representariam a facilitação da prática
dendo de Curitiba, para um encontro de crime pelo próprio Juízo”, escreveu.
no lobby do hotel Fasano, em Ipanema, A decisão arruinava toda a investigação. MUSEU DO FUTEBOL
com Cristiano Mendes de Cordova Nas- Diante disso, o agente infiltrado ten- Gestão Parceria de Mídia Concepção Realização
cimento, o criador de cavalos de corrida. tou ganhar tempo com Santos, inven-
Seu sócio Lindomar Furtado, o Israel, tando desculpas para atrasar a retirada
que horas antes viera de Foz do Iguaçu, do contêiner do porto. Mas o traficante
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fechados com os integrantes das duas té que ponto se justifica um agente
organizações criminosas, seja nas reu- do Estado praticar um crime para
niões em lobbies de hotel ou apartamen- combater ou prevenir outro delito,
tos, seja nos galpões próximos ao porto ainda que de maior expressão? O confli-
onde a cocaína era inserida nos contêi- to ético é latente desde os primórdios da
neres. O cuidado tinha de ser redobrado, infiltração policial, que começou na
já que as quadrilhas eram violentas. (Em França entre os séculos xvii e xviii,
telefonema captado pela pf, a ex-mulher quando pessoas comuns, os agents pro-
de Nascimento descreve o ex-marido vocateurs, eram pagas pela monarquia
para um interlocutor não identificado na para ingressar em quadrilhas crimino-
investigação: “Ele vai lá e manda ma- sas, identificar seus membros e detalhar
tar.”) Sempre que o infiltrado se reunia seus crimes. Mas foi nos Estados Unidos
com a quadrilha em locais privados, que as undercovers operations se torna-
uma equipe com dez a doze policiais fi- ram usuais como técnica de investiga-
cava à paisana, em carros descaracteriza- ção policial, primeiro no combate às
dos, nas imediações, pronta para agir quadrilhas que burlavam a Lei Seca,
caso houvesse algum problema. de 1920, e, a partir dos anos 1960, na
Como os policiais não podiam ver o investigação da máfia e do narcotráfico.
infiltrado em ação, havia duas medidas Entre 1976 e 1981, o agente Joseph Do-
de segurança. A primeira era a defini- minick Pistone, do fbi, infiltrou-se em
ção prévia de um tempo máximo de duas das cinco famílias mafiosas de
permanência do policial dentro do am- Nova York com o nome falso de Donnie
biente fechado. Caso esse tempo extra- Brasco. Levou à prisão mais de cem cri-
polasse, os policiais do lado de fora minosos. Na década de 1980, Pistone
invadiriam o local – e seria o fim da lançou um livro contando os bastidores
investigação. A segunda medida era, da investigação, que anos mais tarde se-
em caso de algum contratempo, Jardim ria adaptado para o cinema com os ato-
Filho digitar uma senha que, via aplica- res Johnny Depp e Al Pacino.
mais tarde, o liberaram, mas só depois Tudo corria bem até que, em dado tivo de mensagem, seria enviada aos Pouco depois do enredo bem-sucedi-
de aceitar pagar 1 milhão de dólares aos momento, o clima começou a ficar pe- policiais do lado de fora. do de Pistone, no entanto, uma tragédia
policiais, que nunca foram identificados sado porque os subordinados de Nasci- Na reunião no apartamento de Nas- trouxe à tona o alto risco de uma infil-
pela pf. “Foi polícia que me seques- mento e Israel passaram a desconfiar cimento no Leblon em março de 2021, tração policial. Em 1984, o agente En-
trou”, relatou a um amigo horas depois, que Jardim Filho fosse um policial, a tensão tomou conta das equipes de vi- rique Camarena, da dea, infiltrou-se
em conversa gravada por agentes fede- já que toda a carga enviada à Europa gilância. O prazo de permanência de no Cartel de Guadalajara, no México,
rais. “Rebentou eu no meio.”) com participação dele acabava apreendi- Jardim Filho extrapolou e parte dos para descobrir a exata localização de
Oito dias depois do flagrante na fa- da. Em chamada de voz pelo aplicativo agentes queria invadir o prédio. O dele- uma plantação de maconha com 1 mil
vela Nova Holanda, finalmente, o Signal, Israel faz o seguinte comentá- gado Heliel Costa sugeriu aguardar um hectares de extensão. A lavoura foi iden-
agente infiltrado conseguiu retirar um rio, ironicamente chamando Jardim pouco mais. Minutos depois, Jardim tificada e destruída dias mais tarde pela
contêiner do porto e levá-lo em um ca- Filho de “pf”: “E os meninos lá? Ô, pf, Filho deixou o prédio sozinho, para alí- polícia mexicana, o que desencadeou a
minhão alugado pela pf até um galpão eles estão com medo de você.” Dito vio da equipe. O infiltrado, já habituado fúria do cartel. Camarena foi descober-
na Penha, na Zona Norte. Ali, o pes- isso, Israel riu, Jardim Filho também. a manter-se tranquilo nesses encontros, to, sequestrado, torturado por trinta ho-
soal de Santos, apesar da apreensão dos O traficante continuou: “Cê tá louco, estava tão relaxado que, durante a con- ras e assassinado com uma broca
500 kg, já dispunha de mais 450 kg de esses homem fica nervoso. [...] Os caras versa com Nascimento e Israel, se es- inserida no crânio. Sua morte brutal
cocaína para inserir no contêiner. Jar- têm medo, entendeu?” Em seguida, queceu de conferir a hora no relógio. acelerou a guerra às drogas do governo
dim Filho estava no local. Acompa- Israel, imitando a voz de algum subor- Nascimento e Israel tinham conexões de Ronald Reagan.
nhou toda a operação e ainda registrou dinado, diz o seguinte: “Levanta bem internacionais. Em abril de 2021, eles No Brasil, o debate sobre a infiltra-
a ação com uma câmera escondida. esse cara, mano, cê é louco, esse cara é foram a Dubai, para um encontro com ção policial surgiu apenas em 1989,
Pelo serviço, recebeu 175 mil dólares pf.” E completa, ele próprio negando a traficantes ligados ao britânico Hale, o quando um projeto de lei do então de-
(870 mil reais). A droga foi interceptada possibilidade: “Que pf nada, sô!” O in- Robô. Agentes da dea acompanharam a putado federal Michel Temer (pmdb) pro-
pela pf ainda no Porto do Rio. Santos filtrado caiu na gargalhada. reunião, que contou com a presença do pôs a legalização do instituto. Mas, por
não se abalou. Para dissipar as suspeitas, Jardim Fi- jovem traficante uruguaio Sebastián não prever autorização judicial, a propos-
Em 8 de janeiro de 2021, a quadri- lho propôs a Nascimento e Israel que, Enrique Marset Cabrera, dono de um ta foi vetada pelo presidente Fernando
lha embarcou mais 500 kg de cocaína em vez de dinheiro, seu pagamento fos- currículo exótico, mesmo para um cri- Henrique Cardoso. Somente em 2001,
para o Porto de Gioia Tauro, na Itália, se em cocaína, que também seria em- minoso: fundou uma facção na terra depois que a onu atualizou as estraté-
com o auxílio de Jardim Filho, que re- barcada à Europa. Era um modo de natal inspirada no pcc, o Primeiro Car- gias de combate ao crime organizado na
cebeu mais 175 mil dólares pelo servi- mostrar que ele também estava disposto tel Uruguaio (pcu), chegou a jogar como Convenção de Palermo, a lei brasileira
ço (a droga foi apreendida pela polícia a correr riscos em nome da parceria. meia-armador em um clube da segunda passou a prever a infiltração policial me-
italiana, a pedido da pf). Três dias de- Israel apoiou a ideia. “Faz isso aí que ago- divisão do Paraguai e é apontado como diante aval da Justiça.
pois, finalmente o infiltrado foi apre- ra nós vamos entortar de ganhar dinhei- um dos mandantes do assassinato do Mas a falta de detalhamento das re-
sentado por videoconferência aos dois ro”, respondeu o traficante. Assim, em promotor paraguaio Marcelo Pecci, em gras (duração da infiltração, necessida-
líderes do grupo – Nascimento e Israel. agosto de 2021, dos 300 kg inseridos maio de 2022. A pf suspeita que Marset de de exaurimento de outros meios de
A dupla atribuiu as apreensões dos car- em um contêiner com destino a Antuér- Cabrera auxiliava Nascimento e Israel investigação, exigência de relatórios por
regamentos na Europa à quebra da pia, 35 pertenciam ao policial infiltra- no transporte de cocaína na fronteira parte do infiltrado) fez com que a infil-
criptografia do Sky ecc (dias depois, o do. Algum tempo depois, quando outro com Bolívia e Paraguai. tração fosse pouco utilizada, ao menos
agente infiltrado recebeu um celular carregamento, de 400 kg de cocaína, foi Ao todo, a pf e as polícias europeias oficialmente. Um dos raros casos em
com outro aplicativo considerado mais apreendido em Barcelona a pedido da apreenderam 9 toneladas de cocaína da que o uso dessa estratégia veio a público
seguro pelo bando, chamado 1bc). Nas- pf, Jardim Filho lamentou a perda do car- quadrilha de Nascimento e Israel por foi na investigação do assalto à sede do
cimento e Israel, descontentes com o regamento com um funcionário de Is- meio do esquema do agente infiltrado. Banco Central em Fortaleza, em 2005,
trabalho de Santos, disseram que, a rael: “Não é bom pra ninguém [a perda As remessas renderam pagamentos de que rendeu 165 milhões de reais aos
partir daquele dia, trabalhariam direta- da droga]. Eu mesmo, meu ganho viria 2,57 milhões de dólares (12,8 milhões ladrões. Um agente da pf infiltrou-se
mente com Jardim Filho. na mercadoria.” de reais) a Jardim Filho, sempre em es- na quadrilha e começou a namorar
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BENETT_2024
Com isso, obteve informações detalha- que um advogado brasileiro radicado
das do crime que ajudaram a polícia a em Dubai fazia parte do esquema.
prender parte do grupo, inclusive o pró- “Eu devo dar uma viajada, cara. De-
prio Alemão. vo dar um pulinho em Dubai lá, mas vai
Houve casos em que policiais se vale- ser passar uma semaninha só e volto”,
ram da técnica para fins escusos. Em disse Jardim Filho para Israel. Quando
2003, o então delegado da Polícia Civil as duas operações foram deflagradas,
paulista Robert Leon Carrel disfarçou-se ambas no dia 15 de fevereiro, o agente
de narcotraficante judeu, com direito a já estava nos Emirados Árabes Unidos.
quipá na cabeça, para prender uma qua- Cinco alvos – Cristiano Nascimento,
drilha que trazia cocaína da Colômbia. Chendal Rosa, Victor Silva, Maycon Sco-
Carrel desviou parte da droga apreendida. ralick e Cleide Boettsche – foram presos
Demitido da polícia, sua aposentadoria foi no Brasil. Israel fugiu pelos fundos do
cassada. Durante as manifestações popu- condomínio onde morava, em Hernan-
lares de junho de 2013, a Força Nacional darias, no Paraguai, minutos antes da
chegou a infiltrar um dos seus agentes em chegada da polícia. A pf suspeita que
um grupo com táticas black blocs no Rio, houve vazamento da informação. Até ja-
mas descumpriu uma medida elemen- neiro, Israel permanecia foragido.
tar: não obteve autorização judicial, ra- Um dia antes da deflagração das ope-
zão pela qual a investigação foi anulada. rações, Jardim Filho encontrou-se com
Naquele mesmo ano, a então presi- Santos no saguão de colunas brancas e
dente Dilma sancionou a lei nº 12850 douradas em estilo neoclássico do impo-
sobre o combate ao crime organizado. nente hotel Palazzo Versace, em Dubai,
Vigente até hoje, a norma prevê a infil- onde o trio estava hospedado. Disfar-
tração policial mediante aval da Justiça, çados de hóspedes, agentes da dea circu-
por até seis meses, renováveis por igual lavam pelo ambiente para garantir a
período. A pf criou um setor na Direto- segurança do infiltrado. De Dubai, San-
ria de Inteligência Policial (dip) apenas tos disse ao policial infiltrado ter planos
para cuidar de infiltração, seja virtual de ir com a mulher e o filho para as Ilhas
(comum em investigação contra hackers Maldivas, no Oceano Índico, e em se- policiais que participaram das duas ope- exportação de cocaína pelo Porto do Rio
e pedófilos), seja real. A piauí solicitou à guida para Lisboa (ele tem cidadania rações, Jardim Filho preferiu não dar de Janeiro, mas [...] não os pressionou ou
pf via Lei de Acesso à Informação o nú- portuguesa). Foi o último contato pes- entrevista, mesmo sem revelar sua fisio- assediou, de qualquer modo, para que
mero de operações que se valeram dessa soal de Jardim Filho com Santos. nomia. Sua verdadeira identidade é co- cometessem os delitos de tráfico; não
técnica desde a promulgação da lei atual, No dia seguinte, com a deflagração nhecida por um grupo muito restrito de participou da internalização da cocaína
mas a corporação negou-se a fornecer os da operação, mudou tudo. Em conversa policiais, procuradores e juízes. no Brasil nem teve qualquer influência
números, sob o argumento de que se com o infiltrado via aplicativo 1bc, San- Nas duas operações, o Ministério Pú- sobre as operações de armazenamento e
trata de informação sensível. A reporta- tos lamentou a operação policial: “Eu tô blico Federal denunciou 33 pessoas por transporte da droga até a sua inserção
gem apurou que as operações são raras, fodido. Bloquearam as minhas contas. tráfico internacional de drogas e asso- em contêineres destinados à exportação;
devido ao alto risco do infiltrado, mas Acabei de ver aqui.” Quando Jardim Fi- ciação para o tráfico. A defesa dos réus logo, é manifesto que o policial infiltra-
comuns por meio virtual. lho disse que deixaria os Emirados Ára- pediu a anulação da investigação, com do não excedeu os limites da atuação
Apesar de reconhecer o avanço da lei bes, Santos sugeriu que ficasse: “Melhor o argumento de que, nas primeiras reu- legítima de um agente encoberto no in-
brasileira atual, a defensora pública Ma- ficar em Dubai que não tem extradição. niões de Jardim Filho com as quadri- teresse da investigação criminal.”
ria Clara Hage Pereira, especialista no Aqui não prende, irmão. Não tem como lhas de Chendal Rosa e de Cristiano Encerrados os julgamentos em primei-
tema, aponta falhas na norma. “Diante [...]. Todos estão aqui. Brasil não tem Nascimento, ainda não havia autoriza- ra instância, todos os réus foram condena-
da sensibilidade da infiltração, a lei de- acordo com Dubai. E nem Europa”, es- ção judicial para a infiltração – o que é dos. Nascimento pegou a maior pena, de
veria exigir um plano operacional deta- creveu o traficante. Antes de se despedir verdade. Além disso, os advogados ale- 26 anos de cadeia. Chandel Rosa foi con-
lhado por parte das polícias, no mínimo”, de Jardim Filho, Santos ainda combi- garam que o policial infiltrado instigara denado a 22 anos, e seu braço direito Vic-
afirma. “Porque sempre que essa técnica nou de se encontrar pessoalmente com os réus ao crime na medida em que tor Silva, a 21. Como Santos nomeou um
for empregada haverá desobediência ao ele no dia seguinte para coordenar o ofereceu facilidades no porto carioca. defensor mesmo estando foragido, seu
direito constitucional da privacidade, envio de 5 toneladas de cocaína em um “Nenhuma organização criminosa pos- julgamento prosseguiu normalmente e
sem contar ao menos dois riscos latentes: carregamento de frango congelado com sui esse tipo de logística, que conta com resultou numa pena de 18 anos. Scoralick
a cooptação do infiltrado pela quadrilha destino à Bélgica. (Santos chegou a ser o apoio da Polícia Federal e do Poder foi condenado a 16, e Cleide Boettsche,
e a morte do infiltrado, caso o disfarce preso em dezembro de 2022 em Abu Judiciário para sua execução, tornando a 15 anos. Com exceção de Santos, todos
caia por terra.” Dhabi, também nos Emirados Árabes, a operação de tráfico internacional de estão presos. Cabe recurso contra todas as
quando se preparava para ir ao Catar drogas verdadeiramente infalível”, ironi- condenações. Como continua foragido e
E
m fevereiro de 2022, a pf iniciou os assistir aos jogos da Copa do Mundo. zou o advogado Diogo Ferrari ao apre- não constituiu um advogado de defesa,
preparativos para deflagrar duas Mas, como o governo brasileiro não fez sentar um pedido de habeas corpus. Israel ainda não foi julgado.
operações e prender os traficantes o pedido de extradição dentro do prazo No entanto, nas duas operações, os Edmilson Lincoln Jardim Filho, por
identificados (devido à infiltração de legal, ele acabou solto 45 dias depois. juízes de primeira instância rechaçaram sua vez, continua trabalhando na pf, mas
Jardim Filho nas duas organizações, as Está foragido até hoje.) esses argumentos. Consideraram que vive uma liberdade limitada. Até o fim de
duas operações deveriam ser deflagra- Encerrada a conversa, faltavam apenas as primeiras reuniões do policial com as 2023, estava no exterior, sem previsão
das no mesmo dia). No dia 2 daquele algumas horas para que os advogados dos quadrilhas eram apenas atos preparató- de retorno ao Brasil em razão do risco
mês, o infiltrado disse tanto à quadrilha traficantes presos tivessem acesso ao in- rios à infiltração. Afinal, o agente deve- latente de ser descoberto e assassinado.
de Nascimento quanto à de Chendal quérito das duas operações no Brasil e, ria estabelecer contato antes de ganhar Sua real identidade está dentro de dois
Rosa que iria viajar a passeio para Du- assim, soubessem que Edmilson Lincoln a confiança de seus interlocutores cri- envelopes guardados em cofres da Justiça
bai. Havia um objetivo duplo: preparar Jardim Filho, o Xuxa, era na verdade um minosos. Os magistrados também re- Federal – um na 6ª Vara, outro na 10ª,
sua retirada de campo, já que seu disfar- policial infiltrado. Depois de desligar to- jeitaram o argumento de que as duas onde tramitaram as duas investigações.
ce estava prestes a ser desvendado, e dos os telefones por meio dos quais se organizações só traficaram drogas em O documento diz que o policial aceitou,
encontrar-se com Leonardo dos Santos, comunicava com as duas quadrilhas, o razão do apoio do infiltrado. Em sua de- apesar dos riscos, infiltrar-se nas duas
da quadrilha de Nascimento, que estava policial infiltrado seguiu para outro desti- cisão, o juiz Tiago Pereira Macaciel es- quadrilhas. Não se sabe se fez plástica, se
nos Emirados Árabes de férias com a fa- no, mantido em segredo pela pf. Procura- creveu: “O agente policial infiltrado tem família, nem se toparia voltar a tra-
mília. Com ele, tentaria identificar outros do sucessivas vezes pela piauí por meio de limitou-se a oferecer [...] a facilidade de balhar como um agente infiltrado. J
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FOCO
NO FOGO
Os rastros dos megaincêndios na Amazônia num ano de El Niño
BERNARDO ESTEVES
Q
uando um trecho da Amazô- e criam condições para a ocorrência dos
nia na região do Baixo Tapa- chamados megaincêndios, que atingem
jós, no Oeste do Pará, pegou uma área de 10 mil hectares, ou 10 mil
fogo em outubro de 2023, a campos de futebol. Só no Baixo Tapajós,
ecóloga carioca Erika Beren- os incêndios florestais atingiram cerca de
guer temeu pela vida de uma árvore 1 milhão de hectares em 2015, o equiva-
específica. Era um breu, uma árvore fru- lente a quase o dobro do Distrito Federal.
tífera de copa densa com mais de 40 me- No ano passado o El Niño voltou e,
tros de altura que ela observava de com ele, vieram a seca e os megaincên-
perto desde 2010. A cientista se especia- dios. Ainda se recuperando do fogo de
lizou no estudo do impacto de queima- oito anos antes, a área monitorada por
das e outras intervenções humanas na Berenguer queimou novamente. Dessa
Floresta Amazônica, e vinha monito- vez, o breu não sobreviveu. A ecóloga sou-
rando o que acontecia com todas as ár- be que a árvore tinha morrido quando foi
vores situadas em dezenas de áreas de inspecionar a floresta e não viu a copa.
mata selecionadas para a pesquisa. “Quando a gente enfim chegou, a árvore
Berenguer e seus colegas começaram ainda estava de pé, mas já morta, com o
a monitorar aquele trecho da floresta – fogo comendo ela por dentro”, contou.
uma faixa de 250 metros por 10 metros Em dezembro de 2023, dois meses
– quando havia ali onze árvores de gran- após o incêndio, Berenguer levou a re-
de porte cujos troncos tinham pelo me- portagem da piauí até a área e mostrou
nos 1 metro de circunferência. Até que, o cadáver do breu, que era apenas um
em 2015, veio uma das secas mais seve- de muitos troncos carbonizados espa-
ras da história recente da Amazônia e, lhados pelo chão da floresta. Caminhar
com ela, uma temporada de incêndios pela área que queimara em 2015 e pe-
florestais com uma extensão que os gou fogo novamente foi como transitar
cientistas nunca tinham testemunhado. pelos vestígios de um grande churrasco:
O fogo matou todas as árvores de grande havia por todo canto tocos de madeira
porte daquela área – menos o breu. “Foi queimados e esqueletos de árvores mor-
a única gigante que sobreviveu ao fogo tas. A floresta que um dia chamou a
de 2015”, disse Berenguer. atenção pela profusão de verde agora es-
Aquele foi um ano de El Niño, um fe- tava marcada por tons de preto, cinza e
nômeno climático periódico provocado marrom da matéria orgânica queimada.
pelo aquecimento das águas superficiais Berenguer comparou aquele trecho da
do Oceano Pacífico. Na Amazônia, o El Amazônia a um cemitério. “A gente está
Niño costuma provocar secas intensas que andando pelas ruínas da floresta mais
deixam a floresta mais vulnerável ao fogo biodiversa do mundo.” Megaincêndio na Floresta Nacional de Tapajós, no Pará, em outubro: para a ecóloga Erika
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Berenguer, o governo está preso a fórmulas do passado para combater o desmatamento. “Não podemos pensar em soluções para a Amazônia da mesma forma como pensávamos há vinte anos”, diz
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O
gar por outros caminhos, sempre por s pesquisadores não sabem dizer ao
obra humana. Pecuaristas recorrem às certo quanto tempo uma floresta
queimadas regularmente para manter tropical queimada leva para se re-
limpas as pastagens, que na Amazônia cuperar – nem se ela voltará a ser como
são rapidamente tomadas pela vegeta- antes do fogo. O estudo dos trechos de
ção. E as populações tradicionais lan- floresta que pegaram fogo no El Niño
çam mão do fogo para preparar o roçado de 2015 e 2016 está começando a trazer
e usar a matéria orgânica queimada algumas respostas. Para quem visita uma
como fertilizante. Nos dois casos, se cui- dessas áreas, a primeira impressão pode
dados não forem tomados, as chamas ser de que a vida está reencontrando seu
podem escapar para trechos de floresta caminho. A área está cheia de árvores e a
intacta, onde o estrago é certo. Secas paleta de cores é dominada pelo verde.
intensas, como nos anos de El Niño, au- Mas um exame atento revelará uma pai-
mentam a chance de que isso aconteça. sagem homogênea e monótona.
A ação humana está facilitando du- As árvores são todas embaúbas, uma
plamente a ocorrência do fogo, disse a das chamadas espécies pioneiras que
geógrafa Ane Alencar, estudiosa de in- voltam a povoar a floresta depois do fogo.
cêndios florestais no Instituto de Pes- A embaúba é uma árvore de tronco fino,
quisa Ambiental da Amazônia (Ipam). praticamente oca, que chega a 10 metros
A seca excepcional de 2023 contou com de altura. Berenguer disse que a floresta
o efeito do El Niño, mas o aquecimento em recuperação não é capaz de armaze-
global foi o fator preponderante. Estudo nar tanto carbono quanto uma mata ma-
do grupo World Weather Attribution, dura porque é dominada por embaúbas.
divulgado em janeiro, apontou que a “Trinta anos depois do fogo, a floresta
emergência climática tornou a ocorrên- ainda armazena 25% menos de carbono.”
cia da seca trinta vezes mais provável. Quando levou a piauí a um trecho de
(Como a seca de 2015 não passou por mata que pegou fogo em 2015, mas foi
estudo semelhante, não é possível afir- poupado em 2023, Berenguer chamou
O breu tinha valor sentimental para se aspecto, elas são diferentes das espé- mar o quanto o aquecimento global atenção para a falta de diversidade da
Berenguer e seus colegas, que entravam cies de savanas, que foram regularmente ajudou a agravar a devastação causada floresta em recuperação: as árvores têm
na floresta com uma escada para fazer expostas ao fogo em sua evolução e, com pelos efeitos do El Niño.) “Estamos todas a mesma idade, a mesma altura,
medições da sua respiração. Agora, a isso, desenvolveram estratégias que lhes criando condições diretas e indiretas o mesmo diâmetro. Quem olhasse para
árvore tinha virado estatística. A cada permitem sobreviver às chamas, como para o fogo. Diretas, ao causar distúr- cima conseguiria ver grandes porções
três meses, os cientistas vão a campo explicou à piauí a ecóloga Joice Ferreira, bios na floresta ao tirar madeira. Indire- do céu, o que não ocorre numa floresta
visitar cada um dos 28 trechos de flores- cofundadora da Rede Amazônia Susten- tas, causando as mudanças climáticas”, sem perturbações, que pode parecer
ta monitorados pelo grupo, a fim de tável. Ferreira é natural do Cerrado de completa Alencar. claustrofóbica para alguns. A riqueza de
verificar se alguma das 20 mil árvores Tocantins e pesquisou esse bioma para A temperatura média da Bacia Ama- estímulos também era menor: na mata
morreu. De dois em dois anos, eles fa- seu doutorado. Em 2006, passou a estu- zônica já está 1,5ºC mais quente do que em recuperação há menos cores, menos
zem um novo recenseamento de cada dar também a floresta depois que se es- era no período pré-industrial, disse Be- cheiros, menos sons. Aquela era uma
área. Com base no número de árvores tabeleceu em Belém como pesquisadora renguer. Em algumas regiões, os níveis mata silenciosa, em contraste com a al-
mortas que contabilizaram nas áreas da Embrapa Amazônia Oriental. Ela de precipitação estão diminuindo e a gazarra sonora que imperava num tre-
estudadas, os pesquisadores fizeram disse que as árvores do Cerrado têm temporada seca está durando mais tem- cho de floresta intocada que a piauí
uma extrapolação para estimar o núme- troncos de casca mais grossa, que lhes po. O quadro ficará ainda pior se alguém também visitou naquele dia. Ali, sapos,
ro de baixas provocadas pelos incêndios garantem isolamento térmico, e raízes fizer a derrubada seletiva de algumas aves e insetos faziam a trilha sonora de
florestais durante o El Niño de 2015 e longas capazes de buscar água em gran- árvores para explorar as madeiras de uma paisagem diversa composta por
2016 em toda a região do Baixo Tapajós. des profundidades. Como não dispõem maior valor de um trecho de floresta. árvores de tipos e tamanhos variados.
Calcularam que o fogo matou quase 3 bi- dessas adaptações, as árvores amazôni- Isso vai diminuir a umidade da mata e Os incêndios podem matar vários
lhões de árvores. E isso numa área que cas são mais vulneráveis aos incêndios e, torná-la mais vulnerável ao fogo. “A flo- bichos que vivem na floresta. Jabutis,
cobre meros 1,2% de toda a Amazônia. por isso, o fogo deixa um rastro letal resta começa a ficar como um queijo tatus, pacas e tamanduás estão entre as
Considerando todo o bioma, o estrago quando as atinge. No Baixo Tapajós, os suíço, cheia de buracos por onde entra espécies cujos cadáveres já foram en-
pode ter sido muito maior. incêndios mataram mais de metade das mais luz, mais Sol e mais vento, mudan- contrados nas matas consumidas pelo
Os resultados foram publicados em árvores com mais de 10 cm de diâmetro; do o microclima”, explicou Berenguer. fogo no Baixo Tapajós. Gilson de Jesus
2021 nos anais da Academia Nacional já entre aquelas de menor porte, a letali- “A gente junta tudo isso e tem uma Ama- Oliveira, morador da região e auxiliar
de Ciências dos Estados Unidos, uma dade foi ainda mais elevada. zônia que é diferente da Amazônia dos de pesquisa de Berenguer, contou que
revista especializada conhecida pela É a ação humana que costuma de- anos 1980 e 1990”, disse. Essa é a Ama- as queimadas afugentam muitos ani-
sigla Pnas. Berenguer, que é pesquisa- sencadear as queimadas na Amazônia, zônia do Antropoceno, era geológica mais porque eles não encontram ali-
dora das universidades britânicas de que se concentram nos meses da tem- marcada pelos rastros da ação humana mento na mata em recuperação. “Só
Oxford e Lancaster, encabeçava uma porada seca, de junho a novembro. no próprio planeta: uma floresta mais daqui a um ano e meio é que a gente vai
lista de dezoito autores que represen- Muitas têm origem no desmatamento, quente, mais seca e mais inflamável. começar a ver bicho de novo nas áreas
tam centros de pesquisa do Brasil, do que na grande maioria das ocorrências Quando um trecho da floresta úmi- que pegaram fogo.”
Reino Unido e da Suécia. A maioria é de natureza ilegal naquele bioma. da queima pela primeira vez, o fogo é Enquanto caminhava pela floresta
dos autores do trabalho integra a Rede Depois que derrubam as árvores e reti- baixo e se espalha lentamente. Se esse intocada, Joice Ferreira chamou a aten-
Amazônia Sustentável, que reúne estu- ram a madeira de valor comercial, os trecho volta a queimar, como aconte- ção para a presença de samambaias e
diosos pertencentes a dezenas de insti- desmatadores deixam o restante da ma- ceu com a área onde estava o breu, as disse que elas eram um sinal de biodi-
tuições que investigam os impactos do téria orgânica secar por meses até a es- chamas podem atingir alturas maiores, versidade. “Um dos indicadores de dis-
fogo e da ação humana sobre a floresta. tação seca. O fogo é ateado nessas áreas, porque a floresta estará mais inflamá- túrbio numa floresta é que você deixa
às vezes mais de uma vez, e a maioria vel. A ecóloga se preocupa com o que de ter espécies que precisam de mais
A
Amazônia é uma floresta úmida, delas vira pasto. Nesse processo, pode pode acontecer com aquela paisagem umidade, como as samambaias ou os
na qual os incêndios não ocorrem acontecer de o fogo escapar para algu- – que já apresentava aspecto deplorável – liquens”, afirmou a ecóloga. Nas flores-
de forma natural, e suas árvores ma área de mata adjacente, e assim têm caso pegue fogo novamente daqui a dez tas degradadas, que são mais secas e
não estão acostumadas com o fogo. Nes- início muitos incêndios florestais. Foi o anos. “Pois é nessa direção que estão expostas à luz, espécies especialistas
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T
fungos e bichos. A vida de uma floresta No caso do Dia do Fogo, os satélites urbinada pelo fenômeno El Niño, cionário do Instituto Chico Mendes de
se conta na casa dos séculos. Num tre- identificaram um salto de mais de mas também por um aquecimento Conservação da Biodiversidade (icmbio)
cho de mata não perturbada, a idade 300% no número de focos em Novo atípico das águas do Atlântico Nor- que atua como gestor da Floresta Na-
média das árvores é da ordem de tre- Progresso e altas significativas em ou- te, a seca de 2023 deixou marcas por cional (Flona) do Tapajós. Além disso,
zentos anos. “A recuperação da floresta tros municípios envolvidos na ação coor- toda a Amazônia. Quase todos os muni- continuou ele, a maior fiscalização das
não acontece na escala de vida huma- denada dos produtores rurais. cípios do Amazonas entraram em esta- queimadas e medidas de educação am-
na”, disse Berenguer. Morelli explicou que as imagens de do de emergência hídrica, e muitos biental ajudaram a atenuar os impactos
satélite são incapazes de discriminar o deles precisaram racionar energia. Em da última temporada de fogo.
N
o dia 5 de agosto de 2019, o jornal tipo de fogo. “Estou olhando e dizendo Manaus, o nível do Rio Negro chegou a As populações tradicionais que vi-
Folha do Progresso, de Novo Pro- que ali tem fogo, mas não estou qualifi- menos de 13 metros, o mais baixo desde vem nas duas unidades de conservação
gresso, no Pará, publicou que pro- cando se ele é intencional ou autoriza- que as medições passaram a ser feitas, do Baixo Tapajós – cerca de 22 mil pes-
dutores e criadores da região da br-163 do”, afirmou o cientista do Inpe. Por há mais de um século (na cheia, o nível soas – recorrem ao fogo para limpar o
haviam escolhido o dia 10 daquele mês isso, esses dados eram incapazes de des- do rio pode chegar a quase 30 metros). terreno e preparar suas roças. Nos anos
para fazer queimadas coordenadas com fazer a confusão estimulada por Bolso- Voltou a chover em algumas partes da muito secos, é preciso redobrar o cuida-
a finalidade de limpar pastagens e áreas naro, deixando no ar a possibilidade de Amazônia, mas os efeitos do El Niño de do no procedimento, para evitar que o fo-
desmatadas em suas terras. Com base no que se tratasse de um fenômeno natural 2023 ainda devem ser sentidos ao longo go escape para alguma área de floresta.
depoimento de uma liderança não iden- sem ligação com o crime ambiental. do primeiro semestre de 2024, de acordo As famílias têm que pedir autorização
tificada, o texto afirmou que eles esta- com projeções meteorológicas. aos gestores para realizar o procedimen-
P
vam amparados pelas palavras do então ara um grupo de pesquisadores No Baixo Tapajós, dados analisados to. Silva explicou que, desde 2015, quan-
presidente Jair Bolsonaro. Na eleição de preocupados com o fogo na Ama- por Morton indicam que os megaincên- do os incêndios atingiram 14% da área
2018, Bolsonaro ganhou com folga em zônia, a dúvida semeada por Bol- dios florestais de 2023 atingiram aproxi- da floresta nacional, o uso de fogo só é
Novo Progresso, com 73% dos votos no sonaro sobre a origem das queimadas madamente 300 mil hectares, uma área autorizado nas áreas de regeneração de
primeiro turno. Estava começando a pri- serviu de estímulo ao desenvolvimento mais de três vezes menor do que a afeta- capoeira, com um limite de 2 hectares
meira temporada de seca na Amazônia de um sistema que permitisse trazer da no El Niño de 2015 e 2016. Mas ainda por família. No ano passado, a maior
de seu governo, e o desmatamento vinha mais detalhes sobre a natureza de cada
escalando desde a campanha eleitoral. ocorrência de fogo identificada pelos
Os fazendeiros cumpriram o prome- satélites. “O presidente estava dizendo
tido, como mostrou a explosão do núme- que as queimadas não eram por causa
ro de focos de incêndio nas imagens de do desmatamento e ninguém na comu-
satélite medidas pelo Instituto Nacional nidade tinha informação sobre os tipos
de Pesquisas Espaciais (Inpe) nas cida- de fogo que estavam acontecendo. Por
des à margem da estrada, como Novo isso desenvolvemos esse método”, disse
Progresso, Altamira e São Félix do Xin- Douglas Morton, pesquisador da Nasa,
gu. O episódio ficou conhecido como um dos idealizadores da iniciativa.
“Dia do Fogo”, mas a alta no número de O novo método analisa imagens de
queimadas não se limitou ao dia 10. satélite e permite classificar em tempo
Nas semanas seguintes, Bolsonaro es- real cada queimada identificada em
palhou vários disparates sobre os incên- quatro tipos de fogo. O pesquisador da
dios florestais na Amazônia. Disse que “a Nasa explicou que, em vez de analisar
floresta não está pegando fogo como o cada imagem individualmente, o siste-
pessoal está dizendo” e que a média das ma compara com imagens da mesma
queimadas estava abaixo dos últimos área feitas 12 ou 24 horas antes e leva
anos – duas alegações que contrariavam em conta a cobertura vegetal no pre-
os dados oficiais do Inpe. Chegou a suge- sente e no passado. Em outras pala-
rir que as queimadas fossem obra de vras, a ferramenta permite reconstituir
ongs e depois afirmou que alguns incên- a história de cada ocorrência. “Esta-
dios podiam surgir de forma espontânea. mos considerando as queimadas como
O Inpe monitora as queimadas na eventos, e não somente como focos de
Amazônia com imagens de satélite des- calor”, disse Morton. INSPIRADA POR
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lay espera que o episódio desperte nos fogo, a gestora alegou que no ano passa-
moradores a consciência de que as se- do o icmbio se mobilizou para distribuir
cas serão cada vez mais intensas e que entre os moradores da reserva cestas
eles precisam sempre fazer aceiros e básicas obtidas com recursos do Minis-
trabalhar coletivamente, monitorando tério do Desenvolvimento e Assistência
as queimadas uns dos outros. “Serve de Social, Família e Combate à Fome.
exemplo para não repetirmos o mesmo
E
erro no próximo ano.” m abril de 2023, Joice Ferreira e
A gestora da Resex Tapajós-Arapiuns outros pesquisadores vinculados à
é a bióloga Jôine Evangelista do Vale, Rede Amazônia Sustentável fo-
uma funcionária de carreira do icmbio ram a Brasília. Queriam entregar em
de 28 anos que assumiu o posto em mãos a técnicos do Ministério do Meio
agosto passado, dois meses antes do início Ambiente e Mudança do Clima (mma)
da temporada de incêndios florestais. um documento elaborado por eles com
A bióloga tomou uma medida inédita e o objetivo de chamar a atenção do go-
proibiu o uso do fogo na reserva. Ela verno para a prevenção e o combate à
disse que a medida foi tomada em con- degradação florestal provocada pelo
junto por uma equipe técnica, a asso- fogo, pela exploração madeireira ou por
ciação concessionária do território e o outras ações humanas.
conselho que representa os povos indí- Naquele momento já estava claro que
genas que vivem ali. “Chegamos a um 2023 seria um ano de El Niño e que, com
consenso pela proibição do uso do fogo ele, viria mais uma temporada severa de
temporariamente, enquanto não se con- seca e megaincêndios florestais. “O go-
trolassem os incêndios e não houvesse verno também sabia que tinha muita
condições climáticas favoráveis”, disse floresta derrubada que ainda não tinha
Vale, no escritório do icmbio em Santa- sido queimada, ou seja, havia muita fon-
rém. A proibição passou a valer uma se- te de ignição para o fogo”, disse a ecólo-
mana depois da chegada do fogo e só foi ga Erika Berenguer. “Não tem desculpa
suspensa dois meses mais tarde, quando para não ter tido prevenção.”
parte do fogo que atingiu a Flona do Ta- mas eles contaram também com uma voltou a chover. A elaboração do documento que os
pajós provavelmente escapou de áreas forcinha do céu. “O melhor brigadista Para Joice Ferreira, proibir que as po- pesquisadores levaram aos gestores par-
que tinham sido desmatadas do outro é a chuva”, brincou Oliveira. pulações mais vulneráveis da Amazônia tiu da percepção de que os esforços do
lado da br-163, que liga Cuiabá a San- usem o fogo é problemático porque pode governo estavam muito centrados no
O
tarém e delimita um dos lados da uni- brigadista assinou um contrato comprometer a única forma que elas combate ao desmatamento, deixando
dade de conservação. temporário com o icmbio, respon- têm de cultivar seus alimentos. “A quei- em segundo plano a luta contra a degra-
A Flona do Tapajós se estende por sável pela gestão das unidades de ma da floresta para preparo da roça é dação florestal, que demanda estraté-
530 mil hectares e tem uma brigada conservação federais, para atuar na bri- fundamental para a segurança alimentar gias específicas. Os autores enumeraram
própria de combate a incêndios flores- gada anti-incêndios da Flona do Tapa- dessas populações”, disse. Para a ecólo- seis políticas públicas que o governo
tais. Silva contou que, na temporada de jós. Mas ele e outros colegas foram ga, permitir que eles continuem adotan- poderia adotar para fazer frente ao fogo
fogo de 2023, a brigada estava mais pre- escalados também para combater o fogo do essa prática é uma questão de justiça e outros agentes da degradação. Reco-
parada do que em 2015 para enfrentar na unidade de conservação que fica do climática. “Não podemos negar a eles mendaram, por exemplo, a criação de
o fogo. “Nunca tivemos uma equipe tão outro lado do rio, a Reserva Extrativis- esse direito, mas ao mesmo tempo te- um fundo emergencial para financiar
grande trabalhando com incêndios na ta (Resex) Tapajós-Arapiuns, que tem mos que ajudá-los a adaptar seu sistema ações de prevenção e combate a incên-
floresta nacional”, disse. Foram 27 bri- 677 mil hectares e não dispõe de uma de cultura alimentar à nova realidade dios nos anos de seca extrema. A ideia
gadistas no ano passado. Além disso, o brigada própria. Ali o El Niño de 2015 que estamos vivendo.” era que as recomendações fossem con-
grupo contou com quadriciclos para fez um estrago grande, e os incêndios A saída para o impasse envolve ações sideradas na elaboração do plano de
o transporte e drones para mapear a ex- atingiram 28% do território. O fogo vol- em várias frentes, que incluem o treina- combate ao desmatamento na Amazô-
tensão do fogo, recursos que não esta- tou a entrar na reserva no ano passado. mento dessas populações para o uso segu- nia, que o governo submetera naquele
vam disponíveis oito anos atrás. Só que a origem principal foram as quei- ro do fogo, a busca por alternativas para mês à apreciação da sociedade.
A lógica que orienta o combate aos madas para o preparo do roçado pelas substituir seu uso no preparo do roçado Durante o primeiro mandato de
incêndios florestais é diferente daquela populações locais. ou gerar renda para as comunidades. As Lula, a ministra do Meio Ambiente,
adotada para apagar um fogo urbano. A piauí visitou a reserva extrativista e pesquisadoras sugerem a instituição de Marina Silva, lançou o plano que levou
Caso o fogo seja de pequena dimensão conversou com Jadson Azulay, líder de um programa inspirado no seguro-defe- a uma diminuição de 83,5% do desma-
e intensidade, os brigadistas podem ten- uma associação comunitária de mora- so, que remunera os pescadores tradicio- tamento da Amazônia num intervalo de
tar apagá-lo usando abafadores ou a dores da localidade de Jauarituba, si- nais que não podem pescar durante o oito anos, entre 2004 e 2012. De volta
bomba d’água que carregam nas costas, tuada às margens do Tapajós. Azulay período de reprodução de peixes e crustá- ao Planalto em 2023, o presidente cha-
como disse Marcos Jesus de Oliveira, reconheceu que o fogo tinha escapado ceos. No caso do fogo, o governo pagaria mou mais uma vez Marina para coman-
que atuou no combate aos incêndios para a floresta por descuido de morado- uma bolsa para compensar as populações dar o mma. A estrutura do ministério
florestais no Baixo Tapajós. Mas essa é res que haviam preparado seu roçado tradicionais impedidas de fazer suas roças passou a contar com uma secretaria
a exceção, e não a norma. “Quando o sem fazer aceiros ou tomar outras me- nos anos de seca extrema. extraordinária para o controle do des-
fogo está descontrolado, tem que fazer didas preventivas. “A pessoa não teve a Se no ano passado a proibição das matamento, confiada ao advogado so-
a linha de defesa, que é o que chama- noção de entender que naquele mo- queimadas foi decidida de forma emer- cioambiental André Lima.
mos de aceiro”, continuou o brigadista. mento estava muito seco, há mais de gencial, a ideia de Jôine Evangelista é Numa entrevista à piauí, em dezem-
Os aceiros são faixas de terra livres de um mês sem chover”, disse. “Esse fogo que a reserva extrativista passe a ter um bro de 2023, Lima disse que a versão
matéria orgânica feitas com a finalida- não era para ter existido.” calendário com janelas específicas para final do plano de combate ao desma-
de de isolar o fogo e impedir que ele se O líder comunitário contou que o o uso do fogo no intuito de lidar com as tamento atendeu a algumas das reivin-
alastre. Por isso, os brigadistas vão a fogo invadiu uma área de restauração secas extremas que devem passar a ser dicações feitas pela Rede Amazônia
campo equipados de motosserras, fa- florestal que vinha sendo monitorada mais frequentes. Para isso, um calendá- Sustentável. A definição dos municípios
cões, enxadas, sopradores e outras ferra- pela equipe da ecóloga Ima Vieira, do rio do fogo será elaborado em diálogo prioritários para as ações do plano, por
mentas para limpar o chão de folhas, Museu Paraense Emílio Goeldi. O fogo com os moradores. A ideia é instituir exemplo, passou a levar em conta não
galhos e troncos. Nessa temporada de matou pés de açaí, cupuaçu, andiroba e “uma cultura de uso do fogo com muita só os indicadores de desmatamento,
fogo não faltou trabalho aos brigadistas, outras espécies que tinham sido planta- consciência e regramento”, disse ela. mas também os de degradação flores-
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A
versão final do plano de combate tremas. “Quando vier a estação seca,
ao desmatamento – que o governo essa floresta já vai estar mais suscetível
entregou depois da consulta públi- à entrada do fogo.” As eleições munici-
ca – incorporou algumas sugestões fei- pais no fim do ano, nas quais políticos
tas por Joice Ferreira e seus colegas, da Amazônia ligados às forças que pro-
mas ela disse que ainda está insatisfeita. movem o desmatamento vão tentar se
“O plano melhorou, mas onde está o eleger, também são um fator de risco
orçamento específico para anos de seca para o aumento dos incêndios florestais
extrema como esse?”, questionou. “Isso na avaliação da bióloga.
tem que ser preparado desde cedo.”
J
Já Erika Berenguer avalia que o go- oice Ferreira enxerga o fogo como sin-
verno segue muito preso às fórmulas toma de uma doença crônica, que
que permitiram combater o desmata- nasce da forma equivocada como a
mento no começo do século. “Que Amazônia é ocupada. É possível e neces-
bom que essas estratégias deram certo sário adotar medidas para evitar as quei-
no passado, mas a Amazônia mudou, o madas, mas a médio ou longo prazo o
clima mudou, e no futuro vai ser ainda problema só será resolvido se for repensa-
mais diferente”, disse. A ecóloga acredi- da estruturalmente a forma como se utili-
ta que o país precisa de políticas públi- zam aquelas terras. Em outras palavras, é
cas adequadas a essa nova realidade. preciso trabalhar para tornar as paisagens
“Não podemos pensar em soluções para menos suscetíveis ao fogo. Seja como for,
a Amazônia da mesma forma como a a solução para um futuro sem incêndios
gente pensava há vinte anos.” florestais passa pelo reconhecimento de
Brigadas bem preparadas para conter que o fogo não é a raiz do problema.
o fogo são imprescindíveis e têm que Ao ouvir a colega falando de sintoma,
continuar existindo, mas ainda operam Erika Berenguer comparou nossa rela-
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TORMENTAS BRASILEIRAS
A necessidade de inserir a chuva nas políticas públicas ganha mais urgência com a mudança climática no planeta
E
m fevereiro de 1811, o Rio de a topografia da cidade, marcada por mu- A emergência climática só piora as naturais. Num artigo publicado em 1976
Janeiro foi assolado por chuvas danças abruptas de inclinação – de encos- coisas. O aquecimento global vem mo- na revista científica Nature, com o suges-
e tormentas que provocaram tas íngremes para terrenos planos ao nível dificando os padrões de chuva e tornan- tivo título Taking the naturalness out of
inundações, desmoronamen- do mar, o que contribui para o escoamen- do mais comum os chamados eventos natural disasters (Tirando a naturalidade
tos, pânico, mortes e destruição to superficial rápido pelas vertentes e para extremos, como o que varreu, no início dos desastres naturais), os geógrafos Phil
por todos os lados. “Depois de tremenda o seu represamento igualmente acelerado de 2023, o Litoral Norte de São Paulo, O’Keefe e Ken Westgate e o filósofo da
trovoada, choveu incessantemente du- nas baixadas. Em paralelo a isso, o sis- e o que atingiu alguns estados do Sul já ciência Ben Wisner contestaram de for-
rante sete dias. Os rios das redondezas da tema de drenagem não cumprira sua quase no fim do ano. ma pioneira aquele paradigma. Desastres
cidade, avolumando por maneira nunca função, uma vez que a vala mestra (que seriam causados antes por fatores socioe-
A
vista o contingente das águas, inun- ficava no eixo da atual Rua Uruguaiana, chuva, por mais intensa que possa conômicos do que pelos agentes geofísi-
daram completamente os arrabaldes. [...] então chamada Rua da Vala), aberta qua- ser, é um elemento da natureza, cos que os precipitam. “O desastre marca
A enchente levou diante de si todas as se ao nível do mar, fora incapaz de dar necessária à sobrevivência huma- a interface entre um fenômeno físico
pontes de madeira, inclusive a da Bica vazão às águas que para ali se dirigiram. na e indispensável à manutenção dos extremo e uma população humana vul-
dos Marinheiros, por onde transitava o O estudo também não hesitava em apon- diversos ecossistemas com os quais inte- nerável. É de suma importância reco-
príncipe regente”, escreveu José Vieira tar a população como responsável pelo ragimos. O transbordamento da calha nhecer esses dois elementos. Sem pessoas
Fazenda, o então bibliotecário do Institu- episódio, visto que as valas e os drenos normal de rios, lagos e açudes, gerado não há desastre”, escreveram eles.
to Histórico e Geográfico Brasileiro, numa estavam cobertos de lixo e entulhos. nos momentos de grande precipitação – Uma analogia emprestada da sismolo-
das crônicas de Antiqualhas e memórias Num dos artigos do livro Tormentas um fenômeno geofísico conhecido como gia ajuda a tornar ainda mais claras as di-
do Rio de Janeiro, publicada em 1903. cariocas, publicado no final dos anos cheia –, faz parte do ciclo hidrológico, ferenças entre o fenômeno físico da chuva
As ruas da cidade velha transforma- 1990, o geógrafo Mauricio de Almeida além de cumprir um papel fundamental e suas consequências socioambientais.
ram-se em rios barrentos e caudalosos Abreu aponta que “as conclusões do te- na história das sociedades humanas, por A energia liberada por um tremor de
“navegados por muitas canoas de pesca- nente-general não são diferentes das de exemplo, ao tornar os solos mais férteis. terra e captada pelos sismógrafos é repre-
dores”, enquanto parte do Morro do Cas- hoje” e que as soluções indicadas em Já as inundações ou enchentes no espaço sentada pela célebre escala de Richter. Já
telo desabava sobre as casas do antigo 1811 tampouco se distinguem “de ou- urbano, embora usualmente qualificadas os efeitos produzidos nas estruturas físi-
Beco do Cotovelo, arruinando quase tras que seriam sugeridas e tentadas no dessa maneira na imprensa e no discurso cas, na natureza e nas populações são
todas elas. Diante desse cenário apoca- restante do século xix e ainda no pre- corrente, nada têm de naturais. traduzidos pela menos conhecida escala
líptico, prossegue o cronista, “crer-se-ia a sente século”. Transcorridos mais de “A mesmíssima chuva que em 1520 de Mercalli modificada, que gradua a
reprodução de novo dilúvio universal, se duzentos anos daquela catástrofe, a re- fazia a alegria dos sapos, cobras, pássa- intensidade. Um terremoto de alta mag-
no Velho Testamento não estivesse exa- corrência anual de grandes inundações ros e árvores da Baía de Guanabara, no nitude na escala de Richter, mas que
rada a solene promessa de Deus, feita a na capital fluminense é uma evidência começo do século xix produz horror e ocorra no Deserto do Atacama, por
Noé, de que jamais destruiria o mundo da incompetência histórica do poder destruição”, diz a historiadora ambiental exemplo, terá um valor bem menor na
por meio d’água”. público em lidar com os transtornos Lise Sedrez, professora da Universidade escala de Mercalli, ao passo que um ter-
A catástrofe viria a se tornar lendária, provocados pelos temporais. Federal do Rio de Janeiro (ufrj). “Em remoto de mesma força numa área densa-
entrando para a memória coletiva com o O mesmo diagnóstico a respeito da 1520, um grande temporal vai produzir mente povoada será sentido com maior
nome de “Águas do Monte”, em virtude ineficiência governamental também é uma cheia, uma maré alta, mas ainda intensidade. Substituído “tremor” por
da violência com que a torrente descia válido, em maior ou menor grau, para estamos falando de processos naturais. “chuva”, a primeira mediria o volume de
das montanhas que circundavam a cida- as demais metrópoles brasileiras. Guar- Em 1811, porém, nós já temos uma en- água que despenca dos céus, enquanto
de. Além do desastre em si, com conse- dadas as proporções e as especificidades chente urbana, pois há inúmeros danos a segunda calcularia o número de pes-
quências até então inauditas, a enxurrada de cada uma, as grandes cidades do país materiais, pessoas desabrigadas, vias soas desabrigadas, ruas interditadas, ca-
de 1811 adquiriu relevo histórico por ter – mas não somente elas – vivem há dé- completamente interditadas, em suma, sas destruídas, mortos.
sido a primeira do tipo para a qual se cadas e séculos, especialmente durante uma disrupção das atividades humanas “Embora não seja uma comparação
conhece um relatório de causas. O do- as chuvas copiosas de verão, sucessivas tra- relacionadas àquele lugar.” Dito de outro perfeita, eu gosto dessa distinção. Me-
cumento técnico foi produzido pelo gédias ocasionadas pelas águas. O padrão, modo: enquanto a chuva é um evento didas pluviométricas de precipitação
tenente-general e engenheiro dos Reais em todos esses casos, é arquiconhecido. natural, as inundações constituem um significam pouco se não consideramos
Exércitos João Manoel da Silva por or- O poder público age como o bombeiro problema histórico, social e ambiental. as condições específicas do lugar”, diz
dem do príncipe regente dom João vi, que chega depois da calamidade para Até a década de 1970, contudo, a visão Sedrez. “Um temporal pode ser muito
que aportara no Rio três anos antes. socorrer as vítimas, nunca como o ad- predominante sobre o assunto era outra. grande em termos concretos, mas seus
Datado de 4 de julho daquele ano, o ministrador previdente que busca evitar Considerava-se que tais eventos eram es- efeitos serão completamente diferentes
trabalho assinala como causas da tragédia que o pior aconteça. sencialmente o resultado de fenômenos se ele atingir um local desabitado, uma
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REPRODUÇÃO_ULTIMA HORA_1966
Tragédias sem fim: o temporal de 1966 levou à criação de novos órgãos públicos, mas “voltados para lidar com catástrofes, não com a chuva”, diz a historiadora Lise Sedrez
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aos vales e rios.” A urbanização completa sileiras, que ao eliminar as árvores, imper-
de uma área originalmente verde pode meabilizar o solo com calçadas e asfalto,
incrementar o volume de água pelo tem- retificar e canalizar rios, ocupar encostas
po em até espantosos 700%. Quando e vales, esteve, de certa forma, preparan-
isso se dá em terrenos cuja tendência do o desastre.”
natural é a ocorrência de cheias periódi-
C
cas, como é comum no Brasil, vai-se huvas devastadoras sempre fizeram
criando o cenário perfeito para as desas- parte da história do Rio de Janeiro.
trosas enchentes que todos conhecemos. Sua localização geográfica, pouco
Foi o que se viu nos primeiros dias acima do Trópico de Capricórnio, numa
deste ano. Mais uma vez, as zonas metro- zona transicional de conflito entre os sis-
politanas do Rio de Janeiro e de São Pau- temas atmosféricos polares e intertropi-
lo viveram tragédias provocadas pelas cais, redunda em grandes precipitações
chuvas de verão. As tempestades que pluviométricas, sobretudo no verão. Nu-
atingiram o Rio e municípios da Baixada ma carta enviada em 1575 a outro religio-
Fluminense nos dias 13 e 14 de janeiro so jesuíta – um dos relatos mais antigos
deixaram um saldo macabro de treze sobre a fúria das águas cariocas –, o padre
mortos e inúmeros transtornos para a po- José de Anchieta menciona os efeitos de
pulação. O Corpo de Bombeiros atendeu um temporal sobre a cidade fundada pou-
230 ocorrências associadas à chuva. Vias cos anos antes: “Choveu tanto que se en-
essenciais, como a Avenida Brasil, tive- cheu e rebentaram as fontes.”
ram de ser totalmente interditadas e par- A essas condições naturais somaram-
te de um hospital na Zona Norte ficou se as profundas transformações operadas
alagada. Ao menos sete cidades, incluin- pelo homem. Os primeiros séculos de
do a capital, decretaram situação de expansão urbana foram marcados por
emergência. Fortes chuvas distribuídas uma luta intensa contra os brejos, os
entre os dias 8 e 13 de janeiro colocaram morros e o mar. O solo enxuto era pouco.
São Paulo em situação similar. Duas pes- Para ampliá-lo, alagadiços, mangues e
área com boa estrutura de adaptação ou certo triunfalismo técnico, capaz de sub- soas morreram e uma vasta área da cidade lagoas iam sendo dessecados e aterrados.
uma região com fragilidades que poten- meter a natureza aos desígnios e objetivos terminou inundada. Trechos de dezenas A região onde hoje se assenta o boêmio
cializam os estragos.” do ser humano, observa o engenheiro de avenidas e da Marginal Tietê ficaram bairro da Lapa, por exemplo, constituía
Em um artigo escrito por Sedrez com Marcelo Miguez, professor titular da Es- alagados. As tempestades também derru- um imenso pântano e toda a área central
a também historiadora Andréa Casa cola Politécnica da ufrj. “Se eu tenho um baram mais de quatrocentas árvores e era originalmente coalhada de lagoas.
Nova Maia, as duas pesquisadoras obser- pântano, eu aterro; se um rio extravasa, eu fecharam o Aeroporto de Congonhas. Para piorar, os aterros eram feitos da
vam que os registros de memória das chu- faço um dique, e assim por diante”, afir- A história ambiental ensina que um maneira mais rudimentar possível. Mau-
vas no Rio de Janeiro vão se tornando mais ma. “Mas as forças da natureza são muito desastre deve ser compreendido não ape- ricio de Abreu menciona em Tormentas
recorrentes ao longo dos séculos xix e xx. mais potentes do que a vontade humana. nas como um momento de crise, mas cariocas que foram os dejetos da própria
“Não há razão para crer que essa maior fre- Portanto, se você tentar subvertê-la, você como um processo histórico que se ini- cidade, na forma de lixo e entulho, que
quência de registros reflita uma maior vai perder de uma forma ou de outra, por- cia muito antes da primeira gota de chu- viabilizaram seu crescimento. O Rio de
quantidade de chuvas – mas, sem dúvida, que a natureza vai te impactar de maneira va cair ou do choque inicial das placas Janeiro “vai ocupar então áreas mal ater-
reflete uma maior frequência de enchen- negativa, seja em razão de uma reação tectônicas. As bases dessa forma de ana- radas e mal niveladas, e não é de sur-
tes”, escrevem. A chave para entender esse como a inundação, seja pelo esgotamento lisar tais eventos extremos foram finca- preender que, depois, sejam justamente
fenômeno é a urbanização vertiginosa, de um recurso. Hoje fica claro que essa das pelo americano Donald Worster essas as áreas mais afetadas pelas inunda-
desgovernada e insensível às dinâmicas confiança absoluta na técnica acabou por num trabalho seminal sobre as tempes- ções”, escreve o geógrafo.
da natureza que caracteriza o crescimen- se mostrar um enorme erro.” tades de pó nas planícies centrais dos Apesar das enormes modificações en-
to não só do Rio como de praticamente Essencialmente, o processo de urbani- Estados Unidos – o livro Dust Bowl: the gendradas na paisagem carioca desde o
todas as metrópoles brasileiras. zação se caracteriza pela transformação southern plains in the 1930s (Dust Bowl: fim do século xviii, a primeira fase de sua
“Historicamente, nós conhecemos no de um território por meio da remoção da as planícies do Sul na década de 1930), grande expansão urbana só vai ocorrer a
mundo alguns exemplos de áreas urba- vegetação natural e sua substituição por publicado em 1979. Dust Bowl (bacia de partir da metade do século seguinte. É o
nas que conviveram bem com as dinâmi- construções. São modificações que po- poeira) foi o nome que se deu à tempes- momento da introdução das primeiras
cas naturais de seus territórios. Veja o caso dem ter repercussões tremendas na rela- tade de poeira, resultado de um fenôme- indústrias e dos sistemas de transporte
da cidade americana de Nova Orleans, ção dessas áreas com a chuva. “Quando no climático que afetou principalmente coletivo, como as estradas de ferro e as
cujas casas, até a década de 1930, eram se elimina a cobertura verde, a primeira os estados de Oklahoma, Kansas, Colo- linhas de bonde. A urbe se espraia para
construídas sobre pequenas palafitas, o alteração que você promove no ciclo hi- rado, Texas e Novo México. a periferia e registra um crescimento
que evitava que fossem afetadas pelas drológico é justamente aquela relaciona- Na obra, Worster estuda não apenas o acelerado do número de habitantes, que
cheias periódicas. Com o desenvolvimen- da à interceptação vegetal. A parte da acontecimento em si, mas também a im- passa de 200 mil para mais de meio mi-
to do capitalismo, porém, as cidades, em chuva que ficaria retida nas folhas das plantação do lucrativo sistema de produ- lhão em 1890.
especial as de grande e médio porte, vão árvores, algo que pode chegar a 15%, vai ção de trigo que modificou o ecossistema O rápido incremento populacional
se tornando mais padronizadas”, afirma para o solo”, diz Miguez. Esse volume das planícies americanas no começo do coincide com as grandes epidemias de
Sedrez. Em vez de considerar as condi- ampliado de água, caso encontre uma século xx e os planos de socorro elabora- cólera e febre amarela. Não se conhecia,
ções locais e a experiência histórica acu- superfície de terra, vai produzir um en- dos após a tragédia. Assim, desastres pas- à época, o papel dos micróbios, atribuin-
mulada ao longo do tempo – sobre a charcamento mais rápido do solo. sam a ser vistos como processos complexos do-se a responsabilidade por tais doen-
forma de fazer as casas, as plantas que O solo, contudo, ainda funciona em que as causas sociais do fenômeno, a ças ao ar doente, ou “miasmático”, como
serão usadas para arborização, o desenho como uma defesa contra o volume ini- interação da população com o meio e as se dizia então, proveniente dos pântanos,
das ruas, a ocupação de encostas, o trata- cial de chuva, uma vez que age como políticas públicas definidas para aquela da água estagnada, dos materiais orgâni-
mento dos rios etc. –, passa-se a ter mo- um reservatório que acaba por recarre- região constituem elementos tão impor- cos em decomposição. Assim, as grandes
delos predefinidos. “O problema é que gar os lençóis subterrâneos. Mas, com o tantes como os ventos e as tempestades de obras hidráulicas do período vão surgir
aquilo que funciona em um local muitas terreno impermeabilizado por asfalto, poeira. “As enchentes que paralisam as com o objetivo primeiro de atacar as su-
vezes não funciona em outro.” perde-se também essa barreira. “O resul- cidades do país podem ser enxergadas da postas causas de tais enfermidades, e não
O pano de fundo ideológico dessa tado não poderia ser pior”, afirma Mi- mesma maneira”, diz Sedrez. “Elas são o as enchentes, que já iam virando rotinei-
transformação, que se intensifica a partir guez. “Agora você tem uma quantidade momento mais visível e dramático desse ras. O Rio de Janeiro torna-se a terceira
da Revolução Industrial, é a crença num maior de água, andando mais rapida- processo, mas são apenas um momento. cidade do mundo a contar com uma
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mental para drenar a cidade. 1883. Com praticamente todos os seus
O início do século xx introduz uma bairros e subúrbios afetados pelas águas,
nova etapa da expansão da malha urbana. o Rio transformou-se numa cidade sub-
A então capital da República vivia as pro- mersa. Os serviços foram paralisados.
fundas transformações urbanas conduzi- Aeroportos, trens e ônibus deixaram de
das pelo prefeito Francisco Pereira Passos operar. Repartições públicas, fábricas,
entre 1902 e 1906. Inspirado na reforma escritórios e lojas funcionaram por pou-
de Paris, ocorrida poucas décadas antes, cas horas. Cerca de 90% da população
o projeto de remodelagem do Rio arrasou ficou sem meios de locomoção. No Cen-
morros, destruiu os cortiços do Centro, tro, as linhas telefônicas foram compro-
canalizou e retificou rios, aterrou grandes metidas e o Palácio Itamaraty, às escuras,
porções da Baía de Guanabara e rasgou ficou sem contato com o exterior duran-
amplas avenidas. Apesar de toda a moder- te todo o dia. O Túnel Santa Bárbara,
nização e embelezamento, a cidade con- que liga a Zona Sul à Norte, tornou-se
tinuava sucumbindo às inundações. intransitável e muitos bairros ficaram
Na imprensa, escritores, como Lima isolados devido à queda de barreiras.
Barreto, denunciaram a contradição en- A Lagoa Rodrigo de Freitas e o Canal do
tre o velho e o novo, charges ironizaram Mangue transbordaram e houve desliza-
a impotência do Estado diante da natu- mentos em diversos morros. Na Rocinha,
reza e as revistas publicaram “cartas in- uma enorme pedra rolou por 200 me-
dignadas de moradores que viam as tros, arrastando dezenas de barracos.
tentativas de transformação do Rio em A cidade entrou em estado de calami-
uma cidade ordenada e civilizada irem dade pública. Abarrotados, os hospitais
literalmente por água abaixo”, escreve a não conseguiam atender todos os feridos
historiadora Andréa Casa Nova Maia no que chegavam. No dia 12 de janeiro, o
artigo Imagens de uma cidade submersa: jornal Ultima Hora noticiou que a Secre-
o Rio de Janeiro e suas enchentes na me- taria de Segurança Pública do Estado da
mória de escritores e fotógrafos. “De que Guanabara passara a empregar caminhões
adiantavam os novos bulevares, diziam cobertos com lona a fim de transportar Os eventos de 1966 foram um verda- O assentamento inaciano ganharia o
os jornais, se quando chegavam as chu- os cadáveres para o Instituto Médico Le- deiro divisor de águas no que diz respeito nome de São Paulo de Piratininga, sen-
vas a população ficava a nado?” gal, “uma vez que os rabecões disponí- à relação do poder público com os desas- do esta última palavra uma referência
Em 1940, a população carioca atin- veis são insuficientes para a remoção de tres causados por chuvas, levando à cria- aos ciclos naturais da região. As cheias
giu a soma de quase 1,7 milhão de pes- tantos corpos”. Lá, os mortos amontoa- ção da primeira Defesa Civil estadual do provocadas pelas chuvas carregavam
soas. Nas décadas seguintes, a cidade vai vam-se no chão e eram embalsamados país e do Instituto de Geotécnica (atual inúmeros peixes e, quando as águas dos
se verticalizar e conhecer um aumento com formol, pois as geladeiras haviam Geo-Rio), dedicado à contenção e reforço rios refluíam, muitos não conseguiam
vertiginoso de carros. O asfalto se espa- sido danificadas. O jornal também regis- de encostas. “Até então você tinha obras, retornar ao leito menor, terminando pre-
lhará, impermeabilizando o solo. As fa- tra o assombro do comandante do Corpo ações de socorro aos flagelados, planos sos – e finalmente ressequidos – nas vár-
velas crescerão de modo descontrolado e de Bombeiros ao visitar o local: “Nunca para acabar com as enchentes... isso se zeas. Na língua tupi-guarani, piratininga
quase não haverá investimentos na me- vi tantas mortes provocadas por enchen- encontra aos montes”, diz Sedrez. “Mas significa pirá = peixe; tininga = seco.
lhoria da drenagem urbana. Tudo con- tes.” Os números finais do desastre são nesse momento vemos, pela primeira vez, Se é verdade que o sítio escolhido pe-
correrá para um agravamento contínuo incertos, variando de 200 a 250 mortos, essa preocupação ser institucionalizada, los portugueses apresentava as qualidades
e substancial das inundações. além de 30 mil a 50 mil desabrigados. dentro da lógica do Estado tecnocrata que necessárias à sua colonização, “a mesma
A persistência das enchentes cariocas Numa ironia cruel, em meio à chuva, vinha se desenvolvendo nos anos 1960.” situação fundiária e hídrica já anunciava
logo chegaria à música popular, como no faltava água. Em 12 de janeiro, um des- A historiadora, contudo, chama a aten- que seria necessária uma intensa trans-
samba Cidade Lagoa, gravado em 1959 moronamento rompeu a antiga adutora ção para o fato de que, apesar de sua ori- formação da natureza para a expansão da
por Moreira da Silva: Esta cidade, que do Rio Guandu, interrompendo o abaste- gem, “são órgãos voltados para lidar com cidade em um período posterior”, regis-
ainda é maravilhosa/[...]/Tem um proble- cimento de quase toda a cidade. Os jor- catástrofes, não específicos para a chuva”. tra o arquiteto Gabriel Kogan em sua dis-
ma crônico renitente/Qualquer chuva cau- nais traziam apelos para que os cariocas Nas décadas seguintes, o Rio conhe- sertação de mestrado, intitulada The
sa enchente, não precisa ser toró/Basta que evitassem qualquer desperdício de água. ceria muitas outras tragédias associadas socio-environmental history of the floods
chova, mais ou menos meia hora/É batata, A situação só se normalizou cerca de uma à chuva – como em 1988, 1996, 2010 e in São Paulo 1887-1930 (A história socio-
não demora, enche tudo por aí/Toda a ci- semana depois, adicionando mais uma ca- 2019 – e temporais até maiores dos que ambiental das enchentes em São Paulo
dade é uma enorme cachoeira/E da Praça mada de drama à calamidade. os de 1966 e 1967, mas nenhum marca- 1887-1930), defendida em 2013 no Institu-
da Bandeira vou de lancha a Catumbi. Em 1967, a história se repetiu – e no- ria a memória da cidade de forma tão to de Educação para as Águas, da Unes-
Segundo a geógrafa Ana Maria de Pai- vamente como tragédia. Em fevereiro, indelével quanto aqueles. co, na Holanda. A principal vítima desse
va Macedo Brandão no livro Impactos houve três dias de chuvas ininterruptas. processo – que, em última instância,
S
ambientais urbanos do Brasil, “em pelo A consequência mais funesta deu-se no e no Rio de Janeiro os problemas deu origem às inundações paulistanas
menos 50% dos anos do século xx, encon- bairro de Laranjeiras, onde o desabamen- com a chuva se dão de cima para – foram os rios, os quais, de promotores
tram-se registros de chuvas intensas que to de três prédios vitimou mais de cem baixo, em São Paulo, pode-se di- do desenvolvimento, logo passaram a ser
resultaram em inundações de grandes pessoas – entre elas, o escritor e jornalista zer, ocorre o inverso. vistos como um obstáculo a ele.
proporções, algumas das quais de caráter Paulo Rodrigues com toda a sua família. A maior cidade do país nasceu entre Embora São Paulo sempre tenha co-
catastrófico, mas as enchentes que afli- Numa crônica publicada pouco depois, dois rios. Em meados do século xvi, par- nhecido o transbordamento dos seus
gem a cidade do Rio de Janeiro aumenta- seu irmão, o dramaturgo Nelson Rodri- tindo da vila litorânea de São Vicente, cursos d’água no período das chuvas, o
ram consideravelmente sua frequência, gues, expressou a dor de uma perda tão jesuítas portugueses transpuseram a íngre- núcleo central paulistano pouco sofreu
principalmente a partir dos anos 1960”. absurda, dando palavras a algo que, por me Serra do Mar para se estabelecerem durante seus três primeiros séculos. “As
Isso por causa da urbanização predatória, aqueles dias, tantos cariocas sentiram no planalto contíguo, cerca de 750 metros cheias, claro, traziam algumas dificul-
que se intensifica em meados do século xx. por amigos e parentes mortos no desas- acima, numa região há muito ocupada dades, como bloquear caminhos, mas,
Em 1966, os cariocas vivenciaram “o tre. “Hoje, a minha vida está dividida, por aldeias tupis. Os religiosos fundaram esperadas como as estações do ano, não
maior temporal de todos os tempos”, nitidamente, em dois tempos: ‘antes das seu colégio no alto de uma colina, deli- provocavam grandes tragédias numa
como estampou na capa, em letras gar- chuvas’ e ‘depois das chuvas’. Quando digo mitada a Oeste pelo vale do Ribeirão cidade que ainda evitava ocupar baixa-
rafais, o jornal O Globo do dia 11 de ja- ‘antes das chuvas’, falo de um outro mun- Anhangabaú e a Leste pelo Rio Taman- das e várzeas”, diz o historiador Janes
neiro. A enxurrada, que começara no do, de um outro país, de um outro idio- duateí, afluente do Tietê, que serpentea- Jorge, professor da Universidade Federal
fim da tarde do dia anterior, acumulou ma e quase de uma outra encarnação.” va não muito distante, ao Norte. de São Paulo, em sua casa, localizada
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O
capital paulista já se consolidara como crescimento populacional, contu- formam vários alagamentos nos bairros comportas de suas represas, o que foi feito
importante polo industrial, a população do, não foi o único fator que pres- ribeirinhos; nenhum, contudo, de maior com a intenção de aumentar o perímetro
alcançava 579 mil moradores. Em 1940, sionou a transformação dos rios e gravidade. O temporal arrefeceu nos três das terras a que teria direito de desapro-
saltou para 1,3 milhão. No avassalador e favoreceu a ocorrência de grandes inun- dias seguintes, para retornar com força priação para explorar economicamente.
segregado processo de urbanização que dações em São Paulo. O desenvolvimen- nos dias 12 e 13, quando os índices al- No dia 14 de fevereiro, “as represas
acompanhou esse crescimento, a massa to industrial e sua crescente demanda cançaram 91,4 mm na região da Luz e que estavam cheias foram abertas e a
de imigrantes e ex-escravizados vai ocu- por energia elétrica também tiveram pa- 67,5 mm na Paulista. Embora entre os dias partir da região de Santo Amaro propa-
par sobretudo as terras baixas junto aos pel crucial nesse processo. 15 e 20 não tenha chovido na cidade, sur- gou-se uma onda de cheias que se sobre-
rios e córregos, enquanto as camadas Em 1899, instalou-se na capital pau- preendentemente a enchente continuou pôs às águas já existentes nas várzeas do
ricas se dirigem para as áreas altas, mais lista a empresa canadense São Paulo ganhando volume até atingir seu ápice no Pinheiros e alcançava, por efeito retarda-
seguras e saudáveis. Tramway, Light & Power Company Li- dia 18 de fevereiro, inundando áreas nun- do, o Rio Tietê”, escreve Seabra, cuja tese
As consequências do avanço em dire- mited, ou simplesmente Light, inicial- ca antes atingidas pelo fenômeno. é hoje amplamente aceita por pesquisa-
ção às várzeas não tardariam a chegar. mente com o objetivo de explorar os No dia 15, O Estado de S. Paulo no- dores da história urbana de São Paulo.
Em 1887, pela primeira vez em São Pau- serviços de transporte urbano, mas que ticiou que “a inundação de São Paulo Com efeito, quanto maior fosse a en-
lo, uma enchente trouxe transtornos sé- logo passaria a atuar em setores-chave assume proporções alarmantes”. Num chente, maiores seriam os ganhos auferi-
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vantagens já obtidas. “A companhia ha- com o objetivo de estudar a retificação e
via conseguido uma concessão do gover- o saneamento das várzeas do principal
no estadual para retificar o Rio Pinheiros flúmen do estado. Antes das grandes
em troca do direito de propriedade sobre transformações a que seria submetido, o
as suas várzeas”, explica ele. O decreto Tietê exibia um leito cuja largura variava
n° 4487, de novembro de 1928, concedia de 24 a 50 metros. Suas águas, em razão
à Light as terras da várzea do Rio Pinhei- da declividade pouco acentuada, corriam
ros, estabelecendo que a área concedida lentamente ao longo de uma várzea am-
fosse correspondente à cheia máxima. pla e inundável, com uma largura média
Entretanto, como à época não existiam de 1,5 km a 2,5 km, formando inúmeros
registros da cota máxima do rio, utilizou- meandros, lagoas e brejos. Para coman-
se, para fins de demarcação, a enchente dar a comissão foi escolhido o engenhei-
ocorrida pouco tempo depois, em feve- ro sanitarista Saturnino de Brito, famoso
reiro de 1929. “Por isso, nesse ano, a Light pelos canais que projetou em 1905 para
abriu as comportas da Represa Guarapi- o saneamento da cidade de Santos, então
ranga quando os rios paulistanos já esta- assolada pela febre amarela.
vam altíssimos devido a vários dias de Concluída em 1925, a proposta de
chuvas intensas”, diz Jorge. Brito para o Tietê ia além dos objetivos
Ao final, a Light acabou por impor declarados da comissão e buscava con-
seus interesses, incorporando nada me- templar diversos aspectos, como o com-
nos que 20,8 milhões de m², dos quais bate às enchentes, a navegação, o lazer,
4 milhões de m² foram utilizados nas o abastecimento de água e o afastamento
obras de retificação, incluindo o canal, dos esgotos. “Saturnino tentou compati-
as linhas de transmissão e a estrada de bilizar todos esses aspectos dentro de um
ferro. A área restante foi quase toda ne- paradigma, bastante inovador à época,
gociada livremente pela empresa. De- de uso múltiplo dos rios”, explica Janes
pois da retificação, até o governo do Jorge. “Para lidar com as inundações, ele
estado de São Paulo teve que adquirir propôs criar nas cabeceiras dos rios ba-
D
terras da companhia para executar o cias capazes de armazenar a água das nidas, concebido por Maia em 1930, uas pesquisas de opinião publica-
projeto das marginais e da Ceagesp chuvas. Também defendia a preservação que estruturava a cidade por meio da das em 1996 e em 1997 – uma de
(Companhia de Entrepostos e Armazéns de trechos da várzea, que funcionam criação de anéis viários e vias radiais e âmbito nacional, outra restrita à
Gerais de São Paulo). como reguladores naturais da vazão, e o perimetrais. “Foi um plano voltado para Zona Metropolitana do Rio de Janeiro –,
replantio da mata ciliar à montante da o automóvel e que, de certa forma, con- buscaram avaliar o grau de orgulho que
D
uas visões distintas, e em certa me- cidade, entre outras medidas.” denou a cidade a seguir esse modelo os entrevistados sentiam em relação ao
dida opostas, dominavam os deba- Espécie de ambientalista avant la let- completamente equivocado até o sécu- Brasil. Mais curioso do que os altos índi-
tes sobre o desenvolvimento de tre, Brito concebia a natureza como um lo xxi”, afirma Bonduki. ces de ufanismo registrados, foram as
São Paulo – e, por conseguinte, sua rela- elemento determinante do urbanismo, A particularidade do plano de Pres- fontes desse sentimento, observa o histo-
ção com os rios – nas primeiras décadas que deveria ser tratada com a mesma im- tes Maia residiu na decisão de ganhar riador José Murilo de Carvalho no artigo
do século xx. portância que a mobilidade, a estética ou os fundos de vale, no entorno dos rios, O motivo edênico no imaginário social
Por essa época, os cursos d’água histó- a geração de energia, diz Nabil Bonduki, para neles implantar as novas radiais brasileiro. Instados a citar três razões para
ricos do Centro, entre os quais a cidade professor titular da Faculdade de Arqui- necessárias para a expansão da cidade. o seu orgulho, a maior parcela dos parti-
nascera, o Anhangabaú e o Tamandua- tetura e Urbanismo da usp. Seu plano, Era sem dúvida a solução mais fácil do cipantes apontou, como primeira esco-
teí, vinham sofrendo modificações drás- por exemplo, chegava a prever a implan- ponto de vista técnico. Por outro lado, lha, aspectos relacionados à natureza.
ticas. A retificação do Tamanduateí fora tação de avenidas laterais ao Tietê, mas desconsiderava completamente as ca- Terra maravilhosa, fertilidade do solo,
iniciada em 1896. O Anhangabaú, que já estas seriam incorporadas à paisagem racterísticas da rede de drenagem, fa- clima bom, ausência de terremotos, fura-
havia sido canalizado, terminou total- natural do rio, atravessando parques ar- zendo com que o espaço das águas se cões, tufões e vulcões – boa parte das
mente coberto em 1906, inaugurando borizados construídos nas margens. tornasse o espaço dos carros. respostas fornecidas se encaixa perfeita-
um tipo de procedimento que se tornaria Apesar dos méritos do plano elabora- Maia teve a chance de colocar suas mente na imagem do Brasil como um
generalizado na capital paulista. do por Brito – que, “ao pensar como a ideias em prática nas duas oportunidades país paradisíaco, livre de desastres, “aben-
Tecnicamente questionáveis, tais in- cidade deveria inserir as várzeas, e ao con- em que esteve à frente da prefeitura pau- çoado por Deus e bonito por natureza”.
tervenções refletiam uma urbanização templar amplos aspectos do presente e do listana, de 1938 a 1945 e de 1961 a 1965. Presente na imaginação nacional desde
alheia ao meio natural, assinala a geógra- futuro [produziu] um verdadeiro Plano Seja durante as suas administrações, seja a chegada dos portugueses, o mito edêni-
fa Vanderli Custódio em sua tese de dou- Diretor de Drenagem Urbana”, escreve na de outros prefeitos, quase todas as ave- co foi se propagando pelo tempo e ga-
torado, A persistência das inundações na Vanderli Custódio –, sua proposta foi nidas propostas em 1930 acabariam se nhando amplitude histórica não só pela
Grande São Paulo, defendida na usp em considerada muito dispendiosa pela pre- tornando realidade. “Eu diria que, com obra de inúmeros autores, mas também
2002. Segundo a pesquisadora, no mes- feitura e terminou abandonada. “Se as algumas modificações, cerca de 90% de- por meio de ações e símbolos estatais.
mo período, a retificação e a canalização ideias de Saturnino tivessem prevalecido, las saíram do papel”, calcula Bonduki. Em meados do século xix, o Conse-
estavam sendo implementadas nas gran- é possível que hoje nós tivéssemos uma Em sua tese, Custódio aponta que a lho de Estado do Império destacava, na
des cidades europeias, como Paris e Mos- cidade muito mais equilibrada, com par- maneira de resolver a questão viária por propaganda para atrair imigrantes euro-
cou, e acabaram se firmando no Brasil, ques articulados ao sistema hídrico, cons- meio da canalização e da cobertura de peus ao Brasil, a ausência de terremotos
em especial em São Paulo, por meio dos truídos ao longo dos córregos e ligados córregos contribuiu para a ocupação e “outros flagelos naturais, que em ou-
técnicos estrangeiros que vieram atuar por caminhos verdes”, diz Bonduki. de áreas perigosas, criando inúmeros es- tros países arruínam tantos estabeleci-
no país. “Assim, estudavam-se os rios lo- Bem diferente era a visão dos enge- paços sujeitos a enchentes, o que só viria mentos, plantações e fortunas”. Outro
cais, mas com a forma de intervenção nheiros João Ulhôa Cintra e Prestes a se agravar com o passar do tempo. “As- exemplo, esse amplamente conhecido,
física definida de antemão. Havia que se Maia. Numa série de estudos publica- sim, a circulação de automóveis por é a letra do Hino Nacional, escrita em
encaixar a dimensão natural existente dos na década de 1920, eles viriam a onde passavam as águas dos rios [...], jun- 1909 por Joaquim Osório Duque Estra-
em um único modelo, concebido e im- apresentar um projeto rodoviário para to com a impermeabilização e a rede de da e recheada de referências laudatórias
plantado em áreas cuja dinâmica climá- São Paulo que integrava vias e rios, ten- drenagem precária e malconservada, à nossa natureza. Quaisquer que sejam
tica em muito diferia das tropicais.” do as avenidas marginais ao Tietê como tornou as inundações, sobretudo a partir as explicações para a vitalidade do mito
Mas os grandes rios da cidade apresen- um dos principais vetores de circulação da década de 1960, um problema disse- edênico no imaginário coletivo, não
tavam desafios – e, sobretudo, oportuni- da cidade. Essas ideias ganhariam sua minado por toda a metrópole, não mais deixa de causar espanto, ou até conster-
dades – muito maiores. Em 1923 foi formulação definitiva no Plano de Ave- restrito às cotas das várzeas.” nação, que ele se mantenha vivo e forte
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BENETT_2024
do país ganha ainda mais urgên- Alemanha, Holanda, Reino Unido e Es-
cia diante da mudança climática em tados Unidos sob a liderança da rede Atri-
curso no planeta – que tem como uma buição do Clima Mundial (wwa, na sigla
de suas consequências o aumento dos em inglês) concluiu que o evento foi exa-
episódios de chuvas extremas. cerbado pela mudança climática. Segun-
O relatório Normais climatológicas do do o estudo, sem o aquecimento global,
Brasil 1991-2020, produzido pelo Institu- as chuvas no estado teriam sido cerca de
to Nacional de Meteorologia (Inmet), 20% menos intensas.
demonstra que já vem ocorrendo uma Mais recentemente, foi a vez da Re-
modificação clara no padrão de precipi- gião Sul do país ser atingida por fenôme-
tação do país. Comparando os dados da nos climáticos extremos. Em setembro
última década com o período de 1961 a passado, o Rio Grande do Sul regis-
1970 nas cidades de São Paulo, Belém e trou índices pluviométricos jamais vis-
Porto Alegre, o estudo mostra que em tos no estado. O acumulado do período
todas elas houve um aumento dramático na capital, Porto Alegre, foi equivalen-
do número de dias com chuvas acima de te a 447,3 mm de água – nada menos
50 mm, 80 mm e 100 mm. que o triplo da média histórica, de
Em São Paulo, elas passaram de 37 147,8 mm –, fazendo dele o mês mais
para 47 dias no primeiro caso, de 3 para chuvoso desde o início da série históri-
16 no segundo e de 0 para nada menos ca, em 1916. No Vale do Taquari, a re-
do que 7 no terceiro. Em Belém, foram de gião mais atingida, 51 pessoas morreram
37 para 110 dias, de 9 para 26 e de 3 para 7. em razão das tempestades e enchentes.
Já na capital gaúcha, observou-se um Dois meses depois, as águas voltaram a
aumento de 23 para 56 dias, de 5 para 8 afligir os gaúchos. As chuvas afetaram
e de 1 para 2, respectivamente. cerca de um terço dos municípios do
O climatologista José Marengo, mem- estado, deixando mais de 7,5 mil pessoas
bro do Painel Intergovernamental sobre desalojadas. Em Porto Alegre, o Guaíba
Mudança do Clima (ipcc, na sigla em transbordou em direção à malha urba-
inglês), da onu, e coordenador-geral de na, atingindo a marca de 3,46 metros mações urbanas que, duzentos anos Só as casas das pessoas que estariam em
Pesquisa e Modelagem do Centro Nacio- – a maior desde 1941. depois, produziriam uma metrópole outros lugares”, explica Miguez.
nal de Monitoramento e Alertas de De- Parte do crédito pela tragédia cabe com mais de 6 milhões de habitantes e A partir dessas premissas, os autores
sastres Naturais (Cemaden), diz que as ao El Niño – fenômeno climático ca- um problema crônico de enchentes. elaboraram um modelo computacional
alterações registradas no regime de chu- racterizado pelo aquecimento das águas Entretanto, os caminhos que a cidade no qual foram preservados os fundos dos
vas têm origem tanto na elevação da tem- do Oceano Pacífico perto da linha do tomou ao longo desses dois séculos, e vales, as planícies de inundação, as en-
peratura global, acelerada e amplificada Equador. Ele altera a circulação dos principalmente as suas consequências, costas, os mangues e as terras baixas.
pela ação humana, como na urbaniza- ventos alísios, que vão de Leste a Oeste, poderiam ter sido bastante diferentes – A ocupação residencial foi redistribuída
ção mal planejada – a pavimentação ex- levando umidade e águas mais quentes ainda que o ponto de chegada fosse, em nos espaços restantes, em áreas construí-
cessiva somada à carência de regiões da costa das Américas para a Ásia e a muitos aspectos, o mesmo. “A urbaniza- das mais densas e compactas. Por fim,
verdes aumentam a absorção e dimi- Oceania. Os ventos que seguem sobre ção é sem dúvida a grande vilã das as inevitáveis modificações no ciclo hi-
nuem a reflexão da radiação solar nas a Cordilheira dos Andes acabam for- inundações, mas ela também é a me- drológico causadas pela intervenção
áreas urbanas, produzindo o fenômeno mando uma espécie de barreira sobre o lhor maneira de evitá-las”, diz Marcelo humana, sobretudo as referentes à perda
das ilhas de calor. “Esses dois fatores território brasileiro, fazendo com que as Miguez. A segunda afirmação do enge- de infiltração e retenção de água, foram
combinados, um atuando numa escala frentes frias trafeguem com mais lenti- nheiro se desdobra num corolário ób- compensadas com medidas de drena-
global, outro numa escala local, vêm au- dão sobre a Região Sul, aumentando vio: qual urbanização? gem. “Simulamos esse cenário hipoté-
mentando as temperaturas médias das assim a precipitação. Num artigo científico publicado em tico com as chuvas de hoje e, grosso
cidades nas últimas décadas e, conse- Embora ainda não existam estudos 2020, Miguez, sua ex-aluna Ianic Lou- modo, constatamos que os problemas
quentemente, impulsionando a ocorrên- que relacionem diretamente o aqueci- renço e mais dois colaboradores trata- de inundações haviam praticamente de-
cia de extremos climáticos, como grandes mento global com as chuvas que se aba- ram de dar uma resposta a essa questão. saparecido.” Embora tanto o modelo
chuvas, mas também grandes secas”, diz. teram sobre o Sul, é fato que o aumento Recuperando mapas do começo do sé- como as análises tenham a região do
Do ponto de vista meteorológico, ex- da frequência de eventos extremos gera- culo xix e outros dados históricos do Canal do Mangue como foco, os resulta-
plica Marengo, o aumento da tempera- do pela mudança climática vem fazendo Rio de Janeiro oitocentista, os autores dos obtidos são conceitualmente exten-
tura global gera alterações na circulação com que fenômenos como o El Niño do estudo propuseram um modelo de síveis para o restante do espaço urbano
atmosférica que podem tanto aumentar ganhem cada vez mais intensidade. urbanização alternativo para a bacia carioca, explica o engenheiro.
como diminuir a concentração de nu- Nas próximas décadas, a situação hidrográfica do Canal do Mangue, ba- O trabalho dos pesquisadores oferece
vens. Além disso, o aquecimento inten- deve seguir se agravando. O planeta já seado no ordenamento do solo e em evidências robustas de que, com diretri-
sifica o processo de evaporação, fazendo esquentou, em média, cerca de 1,2°C áreas construídas mais compactas, que zes sustentáveis para o crescimento ur-
com que os ventos oriundos dos oceanos desde a Revolução Industrial, e “as tem- permitissem a criação de espaços aber- bano, uma cidade pode se desenvolver e
cheguem mais úmidos ao continente. peraturas vão continuar aumentando”, tos adequados para preservar a dinâmi- alcançar milhões de habitantes sem que
A resultante de mais nuvens com mais diz Marengo. Segundo ele, não se vê ca hídrica do território. A região, que se isso, necessariamente, desregule de for-
água são as chuvas extremas. “É como nos dados relativos à chuva uma ten- situa entre as zonas Norte e Central do ma drástica as funções hidrológicas lo-
se todo o ciclo hidrológico se tornasse dência clara de aumento ou diminui- Rio, foi escolhida por se tratar de uma cais. “Claro que historicamente era
mais intenso”, resume. ção do volume total anual. “Essa chuva, área de ocupação antiga e consolidada, muito mais fácil aterrar as áreas baixas
Em maio de 2022, a Região Metropo- porém, tem-se distribuído cada vez bem como por abarcar a Praça da Ban- de mangue e ganhar espaço junto ao
litana do Recife conheceu um fenômeno mais de forma irregular – dias com deira, local emblemático de alagamen- mar para permitir a expansão urbana,
desse tipo. Em 24 horas choveu o cor- grandes tempestades seguidos de perío- tos na cidade. mas é isso: se eu preservar a faixa margi-
respondente a 70% do volume de água dos muito secos. O clima do futuro ten- “O Rio que a gente imaginou tinha nal de proteção prevista em lei, não ocu-
esperado para o mês inteiro. As tempes- de a ser um clima de extremos.” de possuir a mesma população e exten- par as encostas, compactar a urbanização
tades causaram deslizamentos de terra e são territorial de hoje, além dos mesmos para gerar menos áreas impermeáveis,
E
inundações repentinas, matando mais de m fevereiro de 1811, quando foi marcos de desenvolvimento atuais, enfim, se a cidade crescer compreen-
130 pessoas e deixando outras 25 mil de- castigado pelas “Águas do Monte”, como as instalações portuárias, as prin- dendo e respeitando a dinâmica natural
sabrigadas, na pior catástrofe climática o Rio de Janeiro apenas começava cipais rodovias e ferrovias, os prédios das águas, as coisas funcionam”, diz Mi-
ocorrida em Pernambuco nos últimos a experimentar as ciclópicas transfor- históricos, o Maracanã, as universidades. guez. “Inundação não é destino.” J
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MÔNICA MANIR
C
omeçou em janeiro de 2021, vador. Mesmo se tivesse algum, não
com uma dor nas panturri- seria prudente pegá-lo, porque os eleva-
lhas. Dor, não. Ardor. Era dores haviam se tornado antros de con-
como se as batatas das pernas taminação. Restou-me a escada. Sete
estivessem pinicando e, ao míseros degraus que, em outros tempos,
mesmo tempo, ficando tremendamente eu galgaria tranquilamente. Mas a Mô-
pesadas. Eu massageava a região, alon- nica pós-Covid não era a Mônica pré-
gava, botava os pés para cima, mas o Covid. Cheguei ao primeiro andar
incômodo persistia. Recorri à telemedi- como se tivesse escalado o Everest.
cina. A médica anotou minha queixa e, O exame para trombose deu negati-
quando lhe mostrei as panturrilhas pela vo. Naquele dia, porém, recebi o diag-
câmera do celular, verificou que não nóstico de um mal que me perseguiria
estavam avermelhadas, brilhantes, nem pelos próximos dezoito meses. Eu inte-
inchadas. Mesmo assim, me recomen- grava o grupo dos que enfrentavam a
dou fazer um ultrassom com Doppler sequela mais menosprezada, embora
urgentemente. “Talvez seja trombose”, comum, da Covid: a fadiga. Em 2022,
cogitou. Trombose nas duas pernas? cerca de 46 milhões de pessoas no mun-
O Google dizia ser possível, porque tudo do amargavam dificuldades parecidas
é possível no Google – e tudo também com as minhas se considerarmos um
parecia possível durante a pandemia. estudo feito por cientistas da Faculdade
Toquei para o laboratório. Seria mais de Saúde Pública da Universidade de
um exame entre os incontáveis que eu Michigan, segundo o qual, em um uni-
já havia realizado desde que a Covid-19 verso de 200 milhões de pessoas com
abduzira meu corpo, dois meses antes. Covid longa no mundo, 23% dos pes-
Falo da segunda onda, quando a va- quisados reclamavam desse sintoma.
riante Gama foi a que mais contami- A fadiga é um incômodo recorrente
nou no Brasil. O laboratório em São na neurologia. Quem sofre de esclerose
Paulo estava cheio, muita gente com múltipla – distúrbio autoimune em que
máscara de pano misturada a alguns as células de defesa atacam o sistema
poucos com n95. Os exames de ima- nervoso central – se queixa dela. O sin-
gem aconteciam no primeiro andar. Só toma também acomete os que sofrem
que o laboratório não dispunha de ele- de mal de Parkinson, esclerose lateral Manir e a lei da gravidade: entre as panaceias contra os sintomas da Covid longa, constam
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infusões intravenosas de vitaminas e terapias como “limpeza do sangue”, oferecidas em clínicas na Suíça, no Chipre e na Alemanha. O cansaço encabeça a lista dos perrengues mais sentidos
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A
degraus e rotas alternativas, tal qual Organização Mundial da Saúde pós-Covid, os casos predominam em
uma amiga cadeirante fazia. A imagem (oms) entende por Covid longa adultos na faixa dos 40 aos 65 anos. Mu-
que sempre me vinha era a de Relativi- aquela em que os sintomas apare- lheres são as mais afetadas, mas ainda
dade, gravura do holandês Maurits cem (ou reaparecem) em até três meses faltam pesquisas que esclareçam o moti-
Corneille Escher em que escadas se depois da contaminação pelo coronaví- vo disso. Estudos também falham em
imbricam de maneira surreal. Persona- rus, duram no mínimo dois meses e definir a fadiga – um pouco porque a
gens sem rosto sobem e descem os de- não podem ser atribuídos a outras doen- fadiga tem algo de subjetivo, um pouco
graus numa casa estapafúrdia, onde as ças. Diferentes autores usam diferentes porque o mundo acadêmico talvez en-
leis da gravidade deixaram de existir. expressões para designar esse quadro. tenda que o problema se explique por si
O meu cansaço não suportava a gravi- Além de Covid longa, é possível encon- mesmo. Mas neurologistas das Universi-
dade do cotidiano. A xícara, o notebook, trar na literatura científica os termos dades de Rochester, Nova York e Colora-
uma única sacola com produtos básicos Covid pós-aguda, Covid crônica, sín- do, nos Estados Unidos, defendem a
de higiene, tudo parecia me puxar para drome pós-Covid e sequelas pós-agudas necessidade de uma definição mais exata
baixo. O litro de leite longa vida demons- da infecção por Sars-CoV-2. para o termo, como aconteceu com a
trava como a minha qualidade de vida Não importa o nome, a enfermidade memória. Quando foram identificados
diminuíra. Ao chacoalhá-lo, eu sentia se manifesta por uma miríade de sinto- diferentes tipos e processos de memória,
tontura e precisava me sentar, olhando mas. Quantos? Mais de cinquenta, se- as investigações científicas sobre o assun-
abismada para a embalagem cartonada e gundo um estudo publicado em agosto to tiveram um progresso considerável.
pensando que braço era aquele à minha de 2021 na revista Nature e assinado por A palavra “fadiga” vem do latim fati-
disposição, mas sem disposição. sete pesquisadoras dos Estados Unidos, gare (“cansar”, “extenuar”) e é “a mais
Meus músculos davam a impressão México e Suécia, segundo o qual, aliás, banal das insuficiências”, nas palavras
de responder como queriam. Eu havia a porcentagem de pessoas que reclama- do historiador francês Georges Viga-
perdido o controle deles, fossem os das vam de fadiga chegou a 58%. Outro le- rello. No livro História da fadiga, ele
panturrilhas finas, dos braços longos vantamento, divulgado em janeiro de mostra que há registros do sintoma des-
ou das costas lordóticas. Eu, que nunca 2023 pela Nature reviews microbiology, de pelo menos a Idade Média. Duran-
me preocupara com meu próprio peso, contabilizou mais de duzentos, que afe- te os séculos xii e xiii, por exemplo,
passei a considerar o peso de tudo. Des- tam vários sistemas orgânicos, do neuro- enaltecia-se a exaustão dos guerreiros.
cobri que a cabeça de um adulto pesa lógico ao cardíaco, do imunológico ao O cavaleiro robusto, capaz de envergar
em torno de 5 kg. Meu pescoço às vezes reprodutivo. O trabalho foi conduzido uma armadura de 25 kg e encarar bata-
não conseguia sustentá-la e, ao me dei- por quatro americanos, dois deles vincu- lhas extenuantes, merecia todas as hon-
tar de lado, o cérebro parecia sair do lados à Patient-Led Research Collabo- ras. As viagens dos comerciantes, que se
eixo, como se a massa cinzenta fosse rative – uma investigação coletiva em aventuravam por mar e terra para com-
desabar em minha orelha. Efeito simi- que os próprios autores vivenciaram ou prar e vender mercadorias, eram retra-
lar ocorria com o coração, caso eu dei- vivenciam as agruras da síndrome pós- tadas como difíceis e muito cansativas.
tasse sobre o lado esquerdo. Sentia que Covid e advogam a favor de pessoas afe- Entre a guerra e os negócios, pairavam
o órgão escorregava para cima das cos- tadas pela síndrome. as peregrinações religiosas, em que os
telas e as pressionava a cada pulsação. Fadiga, dor de cabeça, dificuldade de pés descalços e o esgotamento físico se
Em razão disso, dormi noites seguidas concentração, perda de cabelo e disp- confundiam com a redenção.
apenas do lado direito. neia (dor no peito) figuram entre os sin- Fadiga como punição aparece na au-
Ao contrário da fadiga pós-exercício tomas mais frequentes em ambos os tobiografia do francês Jean Marteilhe,
físico, minha fadiga pós-Covid não di- estudos. No início da pandemia, as ma- Mémoires d’un galérien du Roi-Soleil
minuía depois de algumas horas de va- zelas predominavam em indivíduos que (Memórias de um escravo de galé do
gabundagem ou de uma boa noite de haviam sido hospitalizados. Hoje, po- Rei Sol), lançada no século xviii. Preso
sono. Descansar depois de um esforço rém, atingem sobretudo os que tiveram aos 17 anos por ser protestante, o autor
exagerado não adiantava. Deitar até pio- Covid moderada, leve ou mesmo assin- se viu obrigado a servir nas embarca-
rava a situação porque eu precisava en- tomática, talvez devido ao fato de mais ções do católico Luís xiv: “Eu me vi
frentar na cama o efeito colateral de pacientes estarem procurando centros remando com força total durante 24 ho-
tarefas excessivas para a minha condição de pesquisa para relatar suas sequelas. ras, sem um momento de descanso. [...]
neurológica. Se o esforço parecia viável A minha Covid exigiu internação Nessas ocasiões, o comitre ou outros ma-
no momento de realizá-lo, à noite o cor- por três dias sem ventilação mecânica. rinheiros enfiam um pedaço de pão,
po me cobrava a estripulia. Além de o Daí me incluírem na turma dos mode- embebido em vinho, na boca dos po-
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lo. A fadiga virou mote para estudos, is que, em março de 2020, a pan- quelas salas. Reclamar de cansaço para iam cinco meses de fadiga. “Tem dias
denúncias e protestos, invariavelmen- demia chega e transforma o coti- subir escadas, enquanto inúmeros pa- que desabo na cama logo depois do
te sob o viés econômico. diano numa exceção assustadora, cientes sucumbiam nas utis, soava co- expediente e ninguém me tira dali.”
Vigarello explica que as máquinas do que ameaça virar regra. Cresce o receio mo heresia. No entanto, uma pesquisa A Covid o pegara de sola e o levara à
século xix e de boa parte do século xx de os avanços científicos não consegui- recente com 603 médicos da Grã-Bre- intubação. Agora, além do cansaço infi-
moldaram outro tipo de cansaço. A perda rem nos salvar da ameaça viral. Em tanha demonstrou que 48% deles ma- nito, sentia as panturrilhas arderem. Por
de vigor não derivaria apenas dos excessos 2021, quando o Brasil registrou o maior nifestaram perda de rendimento nas sorte, tinha recuperado o paladar. “É um
no trabalho, mas também de poluentes número de óbitos por Covid (424 107), atividades diárias em razão da Covid vírus do mal, sabe?” Ele disse que meu
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tema. O país de 26,4 milhões de habitan- uma fonte elétrica de baixa intensidade
tes deseja avaliar os impactos atuais e e não invasiva. Por meio de eletrodos, a
futuros da pós-Covid – especialmente corrente emitida alcança certas áreas
depois do surto descontrolado da varian- cerebrais dos pacientes, o que estimula
te Ômicron em janeiro de 2022, quando a atividade delas durante exercícios de
quase 1 milhão de pessoas se contamina- reabilitação. O processo é indolor.
ram em apenas duas semanas. Desde fevereiro, o ner Lab usa o
Já no Reino Unido, cientistas saíram equipamento numa pesquisa (patroci-
às ruas de Londres no começo de setem- nada pelo Ministério Público do Traba-
bro em protesto contra os atrasos do go- lho) que busca identificar se choques
verno para dar continuidade a um sutis podem atenuar a fadiga pós-Covid
estudo sobre o tratamento dos principais quando aplicados nos doentes ao longo
sintomas da Covid longa. A Agência Re- de cinco dias. Estudo conduzido por
guladora de Medicamentos e Produtos nove cientistas italianos e publicado no
para a Saúde, responsável pela pesquisa, periódico NeuroRehabilitation em 2014
sofreu cortes expressivos de pessoal de- concluiu que os choquinhos diminuí-
pois que a Grã-Bretanha deixou a União ram o cansaço em portadores de escle-
Europeia. Segundo Emma Wall, con- rose múltipla. “Se mostrarmos que o
sultora acadêmica de doenças infeccio- tdcs tem um impacto positivo também
sas e uma das líderes do estudo, muitos na fadiga pós-Covid, vamos propor no-
pacientes estão recorrendo a substâncias vas pesquisas, inclusive com pessoas
e procedimentos duvidosos na esperan- afetadas por outras doenças neurológi-
ça de aliviar os incômodos, o que só cas ou neuromusculares”, diz Elias,
alimenta a indústria das fraudes. Entre bastante animado.
as panaceias, constam infusões intrave- Quem também se anima com o ex-
nosas de vitaminas e terapias como “lim- perimento é a professora de educação
peza do sangue”, oferecidas em clínicas infantil Andrea de Cássia Pontes Balio-
na Suíça, no Chipre e na Alemanha. ti, de 53 anos, que mora em Rio Claro,
Em março, o Departamento de Estatís- no interior de São Paulo. Em fevereiro
ticas Nacionais divulgou que 1,9 milhão de 2020, dezoito dias depois de se apo-
eletrocardiograma estava o.k. e que o mais complexas nem escrever propos- de pessoas – ou 2,8% da população bri- sentar, ela manifestou uma intensa dor
formigamento provavelmente não pas- tas para o financiamento de pesquisas. tânica – viviam com sintomas da pós- de cabeça frontal, como se algo lhe
sava de parestesia, choquinhos irritantes Tampouco conseguia redigir artigos Covid. O cansaço encabeçava a lista dos comprimisse o cérebro. Logo vieram os
na pele, como se cada poro quisesse com a agilidade de antes. Perdia prazos, perrengues mais sentidos. calafrios, a dor nos ossos e uma prostra-
chamar minha atenção. Outra conse- faltava a reuniões e se atrapalhava em Algumas pesquisas dão outro nome ção que a impedia de se levantar da
quência típica da tempestade inflamató- tarefas simultâneas. No fim de 2020, à fadiga: fatigabilidade. Se a fadiga tran- cama. A Covid ainda não desembarcara
ria causada pelo coronavírus. concluiu que precisaria se adaptar à sita no campo etéreo das percepções, a no Brasil, mas a dengue corria solta.
O médico olhou para o receituário nova situação e diminuiu o ritmo, mas fatigabilidade é mais concreta. “Equi- A batelada de exames confirmou a doen-
com o timbre do hospital, mas deixou manteve os treinos de natação. Foi ape- vale ao tempo que alguém leva para ça transmitida pelo Aedes aegypti.
a caneta pendurada no ar. Pelo franzir nas no fim de 2021 que seu “antigo cé- atingir a falha numa determinada tare- Foram nove meses de puro arrasto.
da testa, devia ter sofrido um apagão rebro” deu algum sinal de vida. “Se fa motora. Em nossos estudos, nós men- “Parecia que eu estava envenenada”,
de memória. A foto dos pais balançava perdi 30% de minha velocidade natural suramos esse tempo quando pedimos a relembra. “Pensei que nunca iria me
em preto e branco no peito. Ele a en- depois da Covid-19, acho que recuperei um indivíduo que faça força num certo curar.” Pouco a pouco, Balioti logrou
volveu com uma das mãos e, com a uns 10%. É constrangedor e doloroso nível e que pare ao chegar à exaustão”, carregar mais sacolas, varrer mais assoa-
outra, me prescreveu um analgésico. não me reconhecer.” explica Leonardo Abdala Elias, profes- lhos e vencer mais escadas. Mas ainda
Seguia o protocolo de recomendar Há vinte anos, Yasuda estuda a rela- sor-associado de engenharia biomédica não sente que sarou de vez. Para se
algo que sabia não funcionar. ção entre a epilepsia e a atrofia do hipo- na Unicamp e fundador do Laboratório aprumar, recorre à musculação com
Em agosto de 2022, a neurologista campo, que pode acelerar processos de Pesquisa em Neuroengenharia (ner personal, à dança em ritmo lento e à
Clarissa Lin Yasuda pediu seu “antigo degenerativos como a demência. Atual- Lab) na mesma universidade. Num par natação com snorkel (tubo de respira-
cérebro” de volta num artigo sobre a mente, outros pesquisadores da Unicamp de experimentos realizados em 2021 e ção), já que não consegue virar o rosto
pós-Covid publicado nos Arquivos de investigam os efeitos do coronavírus so- 2022, ele e a mestranda Emilia Frige- para respirar fora d’água por causa da
Neuro-Psiquiatria, periódico mensal bre aquela área cerebral. A médica disse rio Cremasco identificaram que o gru- tontura. Outros movimentos, como er-
da Academia Brasileira de Neurolo- ter recebido mensagens de pessoas com po dos que tinham Covid demonstrou guer a janela de casa ou dobrar o corpo
gia. Professora da Unicamp, a médica sintomas semelhantes aos seus ou até menor capacidade de gerar força e re- para a frente, também lhe causam mal-
contraiu uma infecção leve por coro- piores. Muitas reclamavam que a maio- sistir ao esforço que o grupo controle, estar. “Fiquei mais xarope”, lamenta.
navírus em agosto de 2020 e teve vô- ria dos profissionais de saúde não com- além de menos destreza na mão domi- Segundo o Ministério da Saúde, entre
mito, diarreia, sonolência e soluços, preendia os incômodos ou duvidava nante. O grupo controle é aquele que janeiro e meados de novembro de 2023,
além de dores abdominais e de cabe- deles. “É frustrante porque sei que todos não recebe tratamento algum ou rece- registraram-se 1,66 milhão de casos no-
ça. Em dez dias, todos os sintomas os sintomas são reais e comprometem a be apenas placebo, ao contrário do gru- vos de dengue no Brasil contra 1,7 mi-
desapareceram, menos a cefaleia. Um nossa vida e o nosso trabalho”, escreveu po experimental, no qual se testa de lhão de casos novos de Covid no mesmo
mês depois, a dor de cabeça aumentou a neurologista no artigo. fato a terapia ou o produto visado. período. Estudos comprovam que sinto-
e se fez acompanhar de sonolência du- Com esses achados de fatigabilidade, mas pós-dengue podem persistir por
E
rante o dia. A fadiga logo se instalou. m setembro passado, quando con- Elias e sua equipe começaram a matu- meses a fio – a fraqueza é o mais co-
“Foi estranho, porque sempre me con- versamos por telefone, Clarissa Ya- tar sobre terapias para atenuar o cansa- mum. Curiosamente, tais estudos não
siderei uma pessoa energética, que suda retornava da Irlanda, onde ço dos que se submeteram à pesquisa. usam a expressão “fadiga”. Preferem a
precisava de apenas sete horas de sono participara do 35º Congresso Internacio- O foco do ner Lab é estudar os diferen- palavra “fraqueza”, embora os pacientes
para se recuperar”, disse Yasuda à nal de Epilepsia. Queixava-se de muita tes mecanismos envolvidos no controle relatem perda de força e de energia se-
piauí, em setembro passado. sonolência, atribuída mais às consequên- neurofisiológico do movimento huma- melhante à da Covid longa.
Quando pegou Covid, a neurologis- cias persistentes da infecção por corona- no. Daí a razão de os olhos de Elias A sensação de envenenamento tam-
ta estava com 45 anos. Em virtude dos vírus do que ao jet lag. Na tentativa de brilharem diante de um equipamento bém aparece com certa frequência en-
sintomas que a assombravam, ela não me provar que a Covid longa segue en- chamado tdcs – ou transcranial Direct tre os “pós-covidados”, acentuada pelo
conseguia realizar análises acadêmicas tre nós, a médica citou o investimento de Current Stimulation (em português, gosto metálico na boca. Mais de uma
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A
professora Andrea Balioti destaca nos podem desempenhar para reduzir reuniões de família. precisava desinflamar, e não se irritar
mais um ponto que a aborreceu o impacto negativo na carreira profis- em salas de espera.
P
durante a recuperação: o estigma sional dos afetados. ara minha surpresa, um ano e Sequela é uma expressão dura. Na
da fragilidade feminina. Aqui e ali, ela Depois de vencer um câncer de meio depois do diagnóstico de seara médica, trata-se de uma alteração
percebia olhares e expressões que pare- mama com cirurgia, químio e radiote- Covid longa, percebi que os sin- anatômica ou funcional que permanece
ciam dizer: “É mulher, é fraca, está com rapia, Emily K. Abel enfrenta o cansaço tomas começaram a arrefecer. Aos depois de completada a evolução de
depressão, reclama mesmo.” Daisy extremo há duas décadas. Historiadora poucos, o cansaço foi diminuindo. Eu uma doença e que impõe dificuldades
Fung, médica de família em Edmonton, na área de saúde pública e professora sentia menos dores nas pernas e menos para os afetados. Um acidente vascular
cidade do Canadá, notou reação pareci- emérita da Universidade da Califórnia, formigamento nas mãos. Os exercícios, cerebral costuma deixar sequelas. Sur-
da quando postou nas redes sociais sobre em Los Angeles, escreveu o livro Sick orientados por um fisioterapeuta, ga- tos de esclerose múltipla, idem. Outros
a fadiga pós-Covid, que a impedia de and tired: an intimate history of fatigue nharam carga. As massagens semanais acidentes, como os domésticos e auto-
trabalhar normalmente e de jogar tênis (Doente e cansada: uma história íntima claramente surtiam mais efeito. Eu já mobilísticos, também podem causá-las.
e badminton. Uns amigos lhe deram da fadiga). O relato desnuda os disfarces me permitia sair do supermercado com Por ironia, em latim, a palavra sequela
apoio, mas outros – inclusive colegas de de que ela se vale para parecer inteira duas sacolas de orgânicos em vez de refere-se também ao “ato de seguir”.
jaleco – disseram que se tratava de burn- quando está destruída pelo torpor. Com uma. Não precisava mais de carboidra- Meu cansaço foi embora. Não sei se iria
out ou algum distúrbio comportamen- acidez, a autora também menciona um to extra para dar uma volta no quartei- por si próprio ou se a maneira como o
tal. Reiteravam, assim, a tendência de amigo que, após infartar, disse enfim rão. Aliás, passei a dar duas, três, quatro enfrentei fez diferença. Restou, no en-
psicologizar as dores das mulheres. compreender o que Abel sente. “Isso voltas. Fui carregando nas tintas e final- tanto, a desconfiança: será que, um dia,
Assim que soube da investigação que me fez suspeitar que ele nunca acredi- mente consegui visitar de novo uma tudo voltará como uma avalanche? Sem
pesquisadores da Universidade de Al- tou no que eu falava antes, e muitas região montanhosa da qual andava fu- resposta, o melhor mesmo é seguir em
berta vinham fazendo sobre o estigma pessoas ainda não acreditam.” gindo, apesar do bem-estar que sempre frente – que atrás vem outra variante. J
Programa de
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Theatro Municipal
Você sabia que o Complexo Theatro Municipal
oferece ingressos gratuitos para que grupos de escolas,
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O Programa de Gratuidade tem o objetivo de ampliar o acesso [email protected]
de diferentes públicos à programação do Theatro Municipal e da ou tire suas dúvidas pelo número de
Praça das Artes, que engloba apresentações de música, telefone/WhatsApp: (11) 3367-7235
ópera, teatro e dança.
AFROFUTURISMO
E RACISMO
As curiosas coincidências entre dois livros de ficção científica: um do escritor afro-americano
George S. Schuyler, outro de Monteiro Lobato
TOM FARIAS
N
a noite do Réveillon de 1932 (1895-1977), Branqueador instantâneo lançou um plano de recuperação do mes importantes como Langston Hughes
para 1933, um negro alto, ele- – Black no more (Black no more: being país, o chamado New Deal. (1901-67), Rudolph Fisher (1897-1934),
gante e posudo, Max Disher, an account of the strange and wonderful O crash da Bolsa de Valores de Nova James Weldon Johnson (1871-1938) e
resolveu tirar uma mulher workings of science in the land of the free, York em 1929 encerrou abruptamente os Arna Bontemps (1902-73). No mesmo
branca para dançar no Honky A.D. 1933-1940). O livro, que acaba de “anos loucos”, como foi apelidado o perío- período, foram publicados Not without
Tonk Club, um bar dançante de quinta ser lançado no Brasil pela Ímã Editorial, do seguinte à Primeira Guerra Mundial laughter (Não sem uma risada, 1930), de
categoria em Nova York. Caucasiana de tem a rara característica de ser um ro- (1914-18), quando os Estados Unidos co- Hughes, baseado em sua infância em um
cabelos prateados, bem ao estilo de sua mance escrito por um negro que, além meçaram a se firmar como potência glo- ambiente racista no estado de Kansas, e
época, Helen repeliu prontamente o ga- de expor as vísceras do preconceito nos bal, novas tecnologias se espalharam no The conjure-man dies: a mystery tale of
lanteador, com uma frase que o descon- Estados Unidos, satiriza os movimentos Ocidente (o automóvel, o avião e o cine- dark Harlem (O conjurado morre: uma
sertou: “Nunca danço com niggers.” negros da época. Debochado e provoca- ma) e uma grande agitação social e polí- história de mistério do Harlem negro,
O insulto da loira deixou Disher mais tivo, Schuyler monta um enredo cujo tica tomou conta do planeta, com o 1932), de Fisher, uma pioneira história
perturbado com sua condição de negro arcabouço tem muito a ver com histó- avanço do comunismo e do fascismo. Foi detetivesca protagonizada por pretos.
do que revoltado contra os brancos. Por rias “caça-níqueis”, aquelas feitas para também um tempo de grande efervescên- É nesse ambiente que a obra literária e
coincidência, naqueles dias, o cientista causar e escandalizar, provocar bochi- cia na literatura e nas artes, com a série de jornalística de Schuyler começa a ganhar
Junius Crookman estava de retorno aos chos e criar controvérsias rasteiras, como movimentos de vanguarda iniciada com relevo, com seu misto de investigação de-
Estados Unidos, depois de um período de as de botequim, em sua época, e as das o expressionismo. Em 1930, o escritor tida da sociedade, de ativismo moderado
estudos na Alemanha, quando desenvol- redes sociais, nos dias de hoje. Sinclair Lewis (1885-1951) tornou-se o e sarcasmo – uma arte que ele exercitava
veu uma geringonça revolucionária para Mas o romance é também uma obra primeiro americano a receber o Prêmio de maneira muito peculiar. Black no more
transformar negros retintos em brancos pioneira do afrofuturismo na literatura Nobel de Literatura, o que sinalizou para logo se incluiu numa novelística que ti-
caucasianos. Disher, ainda abatido e con- pelo modo como relaciona o debate ra- o mundo o florescimento por que passava nha como pauta trazer o negro e a questão
trariado, se ofereceu para ser o primei- cial com a ficção científica, o que não a literatura nos Estados Unidos, inclusi- do racismo para o centro da cena literá-
ro negro a testar o aparelho inovador. deixa de ser também irônico, já que foi ve a realizada por autores afro-americanos. ria do país, embora Schuyler tenha sem-
A transformação foi surpreendente: ele escrito em plena Depressão, quando a A emergência dos artistas negros na pre demonstrado acreditar pouco nisso.
perdeu toda a melanina de homem de economia americana foi profundamen- cena cultural do país durante os anos 1920
F
origem africana e adquiriu tons perfeitos te abalada e o futuro parecia muito pou- e 1930 ganhou um verniz com o movi- eita a mutação do personagem Max
da pele branca, além de cabelos loiros. co promissor no país, sobretudo para os mento conhecido como Renascimento do Disher de homem negro a homem
Com essa situação chocante começa afro-americanos. Apenas em 1933, dois Harlem, que abarcou manifestações em branco, o romance Black no more se
o principal romance do escritor e jorna- anos depois da publicação do livro, o várias áreas – literatura, música, moda. Na desenvolve em um ritmo eletrizante para
lista afro-americano George S. Schuyler presidente Franklin Delano Roosevelt literatura, especialmente, emergiram no- mostrar a ascensão social do protagonista
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ATO_ROBINHO SANTANA_2017
Duas sátiras: a de Schuyler ataca a ambição dos negros de ascenderem na sociedade à maneira de brancos capitalistas; a de Lobato fala da incompatibilidade entre raças nos Estados Unidos
piauí_fevereiro 53
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seus líderes principais, Martin Luther artistas. Feita por negros ou brancos, a
King (1929-68), contra quem escreveu arte que havia era apenas a americana,
duros artigos, como King: no help to independentemente da cor. Schuyler
peace (King: sem ajuda para a paz), em não deixará de reconhecer o valor da
1964, e Dr. King: nonviolence always literatura produzida por negros, mas
ends violently (Dr. King: a não violên- considerando-a “meritória porque é li-
cia sempre termina em violência), em teratura, e não porque é literatura ne-
1968. Em ambos, apesar dos títulos que gra”. Para ele, a arte só pode ser julgada
parecem sugerir o contrário, o escritor “por padrões literários e não por pa-
apelou para que o ativismo negro agisse drões raciais”. É esse tom ferino que vai
com mais moderação, reforçando a po- favorecê-lo e lhe trazer fama, mais como
sição política que o consagraria como jornalista do que como escritor.
“negro e conservador” – título, aliás, de Schuyler pôs de lado o passado socia-
sua autobiografia publicada em 1966 lista já nos anos 1930 e passou a mani-
(Black and conservative). festar na imprensa sua perspectiva
conservadora. É dessa época uma série
G
eorge Samuel Schuyler nasceu em de reportagens polêmicas que resultaria
Providence, no estado de Rhode no livro Slaves today: a story of Liberia
Island, e passou os primeiros anos (Escravos de hoje: uma história da Libé-
em Syracuse, no estado de Nova York, ria), sobre a escravização de negros por
criado apenas pela mãe, pois o pai mor- outros negros no país africano, fundado
reu ainda jovem. O sobrenome Schuyler por negros libertos dos Estados Unidos
vem do pai, que descendia de um escra- e do Caribe. O seu distanciamento dos
vizado que lutou na Guerra da Inde- movimentos e ativistas lhe permitiu
pendência dos Estados Unidos e adotou uma posição crítica confortável.
o nome de família do general Philip Vivendo concretamente a experiên-
John Schuyler (1733-1804). cia do seu personagem Max Disher, o
O escritor teve a meninice que é des- escritor se casou em 1928 com a atriz e
– que, aliás, troca de nome como tro- proeminentes de sua época, Schuyler tinada a quase todo garoto negro e preci- dançarina Josephine Lewis Cogdell,
cou de cor e passa a se chamar Matthew nunca ignorou a segregação racial. Ao sou ajudar no sustento da família. Na uma mulher branca, originária de uma
Fisher. Enquanto projeta sua mudança contrário. Black no more é pontuado por juventude, foi um rapaz ardiloso e leitor família que havia sido proprietária de
de Nova York para Atlanta, Fisher faz pla- menções à violência contra os negros insaciável. Tendo cursado apenas o equi- escravizados no século xix. Na certidão
nos de se casar com a desejada loira do nos Estados Unidos, embora a veia satí- valente ao ensino médio, Schuyler, a de casamento, ela se identificou como
Honky Tonk Club, que vem a ser filha de rica do autor pareça às vezes incontro- exemplo do seu antepassado, ingressou negra, provavelmente para tentar ameni-
um pastor trambiqueiro. Ele também so- lável, levando-o a tratar com deboche no Exército, abrindo mão de frequentar zar a reação racista às núpcias. A única
nha, claro, em enriquecer e colocar um até mesmo a aterrorizante Ku Klux uma universidade (embora já houvesse filha do casal, Philippa Schuyler, seguiu
ponto final na sua vida de pobre, mora- Klan. Essa contradição se manifesta em várias somente para negros, entre públi- a carreira de jornalista e morreu no Viet-
dor de quartinhos sórdidos do Harlem e Schuyler justamente quando começa a cas e privadas, na época). Permaneceu nã em 1967, quando cobria a guerra para
vítima das humilhações cotidianas dos acontecer nos Estados Unidos uma for- na ativa por sete anos, angariou elogios um jornal americano. Dois anos depois,
brancos e da polícia. te reação ao avanço social dos negros. de seus superiores, mas a patente mais Josephine cometeu suicídio.
A ironia de Schuyler segue crescendo Em 1921, dez anos antes da publica- alta que atingiu foi a de primeiro-tenen- Pouco a pouco, o escritor se tornou
ao longo dos treze capítulos, no intuito ção do livro, uma multidão ensandecida te, o que talvez o tenha levado a desistir um dos principais antípodas das lideran-
de atingir a sociedade branca, hegemôni- de pessoas brancas invadiu o distrito de da carreira militar. ças negras que começavam a ganhar proe-
ca e supremacista – a base do que é hoje Greenwood, conhecido como a “Wall Durante o período no Exército, deu minência nos Estados Unidos. No fim dos
o pacto da branquitude. Mas também Street Negra”, na cidade de Tulsa, em os primeiros passos na vida jornalística, anos 1940 e início dos 1950, Schuyler
não poupa os próprios negros, seja os que Oklahoma, depois que se espalhou, escrevendo pequenos textos para uma chegou a apoiar o senador Joseph Mc-
cultivam utopias e projetos estratosféricos como uma febre, a fake news de que um publicação da caserna. Depois da dis- Carthy em sua campanha de caça aos
como opção ao racismo nos Estados Uni- jovem negro teria abusado de uma mu- pensa militar, mudou-se para Nova comunistas. Apesar disso, seus textos jor-
dos, seja os que defendem a sua inserção lher branca. O massacre e a destruição York e se entusiasmou com o movimen- nalísticos nunca deixaram de ter em seu
na vida americana de acordo com a lógi- cometidos pelos brancos levaram à mor- to socialista negro. Também se ligou à horizonte a questão do racismo.
ca do capitalismo (ou do “capitalismo te cerca de trezentas pessoas e deixaram Associação Universal para o Progresso Em 1948, para fazer uma investiga-
racial”, como então se dizia), com seus 10 mil desabrigados. Negro, que buscava dotar os afro-ame- ção jornalística sobre a situação dos ne-
padrões de empreendedorismo predador, A reação dos negros a eventos racistas ricanos de autossuficiência econômica gros nas Forças Armadas em países da
consumo insaciável e ganância ilimitada. como este não demoraria a acontecer, e era gerida por seu fundador, o intelec- América Latina, Schuyler visitou Cuba,
Por trás de suas ideias, está o educador na forma de um ativismo pacífico que tual Marcus Garvey, outra figura satiri- Panamá, Peru, Colômbia, Venezuela,
Booker T. Washington (1856-1915), um desaguaria no movimento pelos direitos zada em Black no more. Uruguai – e chegou até o Brasil. No Rio
dos primeiros pensadores negros de li- civis (entre 1950 e 1970). Esse movimen- O perfil de polemista de Schuyler se de Janeiro, teve como cicerone o escri-
nhagem conservadora. to começou a deslanchar no final de desenvolveu nas páginas do jornal The tor, ator e ativista Abdias Nascimento
Por tais motivos, há no romance uma 1955, quando Rosa Parks (1913-2005) se Pittsburgh Courier, uma das principais (1914-2011), que entrevistou Schuyler
série de caricaturas grotescas de perso- negou, em um gesto ousado e corajoso, publicações da comunidade afro-ameri- para a primeira edição do jornal que
nalidades negras dos anos 1920, como o a ceder seu lugar em um ônibus públi- cana, onde passou a assinar uma coluna editava, Quilombo. A entrevista saiu em
ativista Marcus Garvey (1887-1940), que co a um homem branco, como determi- (em 1944, ele se tornou chefe da edição dezembro de 1948, acompanhada de
se autoproclamava “presidente provisó- nava a lei, acendendo o estopim da luta nova-iorquina do Courier). Suas críticas uma foto de ambos e do título Dois
rio da África”, e Madam C. J. Walker antissegregacionista no país. Rosa Parks também chegaram às páginas da revista mundos: preto e branco, dentro de um só
(1867-1919), empresária, filantropa e ati- era casada desde 1932 com Raymond The Nation, onde publicou um de seus país. A frase tinha sido extraída de uma
vista política, primeira mulher a ser lis- Parks, membro da Associação Nacional mais famosos e ácidos artigos, The ne- declaração do autor americano sobre a
tada como milionária pelo Guinness para o Progresso de Pessoas de Cor, cria- gro-art hokum, de 1926. Hokum é algo divisão racial nos Estados Unidos.
Book. A zombaria de Schuyler não pou- da por Du Bois, o sociólogo caricatu- que não faz sentido ou é falso. Na época com 34 anos, Nascimento
pa nem mesmo o grande sociólogo rado em Black no more. No texto, ele defende que, para a cul- era um dos principais militantes ne-
W. E. B. Du Bois (1868-1963). Schuyler, que morreu em 1977, aos tura euro-americana, “o afro-america- gros do Brasil, atuando em várias fren-
Apesar do viés conservador e das cari- 82 anos, teve tempo de testemunhar to- no é apenas um anglo-saxão negro”. tes, da imprensa às artes, como no
caturas de mau gosto que faz de negros dos os passos dados por esse importante Assim, não haveria uma arte especifica- Teatro Experimental do Negro (ten),
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BENETT_2024
naram amigos e passaram a trocar car- Apesar disso, os dois livros merece-
tas e textos entre os jornais Quilombo e riam uma análise comparativa aprofun-
The Pittsburgh Courier. dada, que observasse as semelhanças e
Schuyler se entusiasmou com as refletisse sobre as diferenças. Dou ape-
ideias e o trabalho de Nascimento, a nas alguns passos nessa tarefa.
quem cita no artigo Brazilian color bias Não é somente o fato de serem ambos
growing more rampant (Preconceito de romances de ficção científica escritos
cor cresce desenfreado no Brasil), publi- na mesma época e focados no “choque
cado ainda em 1948 no Pittsburgh Cou- das raças” (o outro título dado por Lo-
rier. No texto, ele expõe sem meias bato ao seu livro) que aproxima as duas
palavras o racismo que se espalha pela obras. Ambos coincidem no objetivo
sociedade brasileira, da escola à caserna, irônico, para não dizer debochado, com
e destaca a luta do ten no enfrentamen- que tratam o papel dos negros na socie-
to do preconceito racial. Ao ten perten- dade americana – a ponto de postula-
ciam o sociólogo e político Alberto rem a extinção da raça negra. Enquanto
Guerreiro Ramos, o jornalista e ativista Schuyler inventa uma máquina de con-
Ironides Rodrigues, o antropólogo Ar- versão dos pretos em brancos, Lobato
thur Ramos, o jornalista e tradutor João fala de negros que, no longínquo sécu-
Conceição, a líder feminista e cofunda- lo xxiii, se esforçam para esticar cabe-
dora do grupo Maria Nascimento, então los e clarear o rosto recorrendo à técnica
esposa de Abdias, e a atriz Ruth de Sou- futurista da “despigmentação” (o que
za – estas duas exercendo papel crucial os deixa com a pele “horrivelmente
na inclusão da questão de gênero na esbranquiçada”).
pauta da organização social negra. É certo que a ironia tem função dife-
“Onde vocês poderão encontrar um rente em um caso e outro. Para Schuy-
debate inteligente e compreensivo da ler, trata-se de criticar a ambição dos
vida do povo de cor de uma tão grande negros de ascenderem na sociedade
extensão territorial como o Brasil, senão americana utilizando os mesmos recur-
em uma publicação negra brasileira?”, sos dos brancos capitalistas. O objetivo rado racismo que cultiva. Hábil escritor suas intenções racistas, herdeiro que era
escreveu Schuyler em seu artigo. Depois da sátira de Lobato é diferente: mostrar e contador de histórias, Lobato compõe da exploração escravista no país.
de elogiar os “brasileiros de cor”, que como a incompatibilidade das raças no um enredo controverso que é peça-cha- Lobato tinha confiança que O presi-
“têm uma história diferente”, ele atacou solo americano é incontornável e como ve de sua campanha eugenista. Além dente negro pudesse agradar os editores
os jornais americanos, como o Memphis a superioridade dos homens brancos de ardilosa, a narrativa festeja, com americanos. Em 1927, quando se mudou
Commercial Appeal e o Courier-Journal, leva necessariamente à subjugação das orgulho, que uma “raça desnaturasse, para os Estados Unidos a fim de atuar
de Louisville, dando a entender que eram mulheres e dos negros, quando não ao descristalizasse a outra”, tratando essa como adido comercial do consulado bra-
racistas nas suas abordagens jornalísti- extermínio dos afro-americanos. situação como o mais “belo fenômeno sileiro em Nova York, levou O presidente
cas. “Vocês nada podem saber a respei- A história de Lobato foi publicada da eclosão étnica”, que conserva “ambas negro na bagagem. Procurou editoras,
to do povo de cor do Brasil por meio da inicialmente no jornal A Manhã, na for- [as raças] em estado de pureza”. Em ou- mas nada conseguiu. Em carta ao escri-
leitura de qualquer periódico editado ma de folhetim. No mesmo ano, saiu tras palavras, trata-se de uma apologia tor paulista, um agente literário america-
nos Estados Unidos, inclusive aqueles em livro pela Companhia Editora Nacio- do apartheid, experiência que seria vivi- no foi taxativo ao alegar que “o enredo
especializados em assuntos latino-ame- nal, da qual o escritor era dono. A narra- da anos depois na África do Sul. central se baseia em uma questão parti-
ricanos, com exceção do Pittsburgh Cou- tiva está centrada em Ayrton Lobo, que Além disso, Lobato, matreiramente, cularmente difícil de ser abordada neste
rier, que, sozinho, tem dedicado enorme sofre um acidente de carro e é encontra- faz suas caricaturas de personagens cé- país, porque certamente resultará no tipo
espaço sobre a matéria, com grande des- do inconsciente pelo professor Benson, lebres, tal como Schuyler em Black no mais amargo de sectarismo”. O agente
pesa, a fim de manter os seus leitores um cientista que vive no interior do Rio more. Em O presidente negro, um dos arrematou dizendo que “nem mesmo a
devidamente informados.” de Janeiro e criou uma máquina para personagens ironizados é justamente o sua ambientação trezentos anos no futu-
Schuyler encontrou um ambiente fér- ver o futuro, o porviroscópio. jornalista e abolicionista José do Patro- ro mitigaria esse fato na mente dos leito-
til para seus arroubos políticos em terras Enquanto se recupera do acidente cínio (1853-1905), que na vida boêmia res negros”, chamando a atenção que “os
brasileiras um ano antes da realização da automobilístico, Lobo é apresentado era conhecido como Zé do Pato – e a negros são cidadãos americanos, parte
Conferência Nacional do Negro, ocorri- a miss Jane, a filha do cientista. Com a empresa em que Ayrton Lobo trabalha integrante da vida nacional”. Não era
da em 1949 e da qual ele participou na morte do pai, é ela quem lhe conta so- se chama, justamente, Sá, Pato & Cia. exatamente assim na época, como se
“qualidade de enviado especial”, confor- bre o futuro dos Estados Unidos, tal Miss Jane é como uma versão crescidi- sabe, mas o argumento servia para refu-
me noticiou o Quilombo. como a moça pôde ver tempos antes por nha da personagem Emília, alter ego tar a tese da trama de Lobato sobre os
meio do porviroscópio. Lobato, então, lobatiano, e Lobo pode ser visto como negros e “seu extermínio por meio da
C
uriosamente, em 1926, cinco transporta o leitor para o ano de 2228, uma paródia de Patrocínio, que, aliás, sabedoria e habilidade da raça branca”.
anos antes da publicação do livro durante as eleições americanas, nas incursionou pela literatura, como no Talvez seja improvável, mas não é
de Schuyler, lançou-se no Brasil quais se confrontam três candidatos: mirabolante romance Pedro Hespanhol, absurdo imaginar que, como O presi-
um romance com o qual Black no more Jim Roy, da Associação Negra, miss sobre um bandido que agiu no Rio de dente negro circulou entre editores e
tem algumas coincidências interessan- Evelyn Astor, do Partido Feminino, e Janeiro no começo do século xix. agentes literários nos Estados Unidos,
tes: O presidente negro, de Monteiro Kerlog, do Partido Masculino, e candi- O episódio do desastre de automóvel possa ter chegado às mãos de Schuyler.
Lobato (1882-1948). dato à reeleição. Os eleitores enviam no livro de Lobato também remete a Afinal, Black no more parece uma ver-
Parece estapafúrdia a ideia de com- seus votos por “radiotransporte” – uma Patrocínio. O abolicionista foi dono do são menoscabada da obra de Lobato.
parar a obra de um escritor negro com espécie de internet avant la lettre – e primeiro automóvel a transitar no Rio Mas, se Schuyler não leu antes o livro
a de Lobato, conhecido por seu racismo quem ganha é o candidato negro. Mu- de Janeiro e se tornou protagonista do de Lobato, o que significará essa coin-
e a inclinação eugenista, a ponto de es- lheres e homens brancos, antes forte- primeiro acidente no país, em 1897, cidência estranha de um preto e um
crever coisas como: “Um dia se fará mente divididos, resolvem se unir para quando ensinava o poeta Olavo Bilac a branco escreverem na mesma época
justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aí enfrentar o avanço dos negros e barrar dirigir. O veículo bateu em uma árvore livros tão assemelhados, despejando
[no Brasil] uma defesa desta ordem, a posse de Jim Roy. e ficou em destroços, o que deixou Pa- tanto deboche sobre os negros e ambi-
que mantém o negro em seu lugar, e O “choque das raças” é uma viagem trocínio desconsolado. Essas conexões cionando mostrar, não importa a que
estaríamos hoje livres da peste da im- que o escritor se permite fazer no tempo, devem ser lidas como suposições a res- custo, a invencibilidade da supremacia
prensa carioca – mulatinho fazendo mas que encobre algumas perversidades. peito da engrenagem mental de um ho- branca, que ainda hoje se manifesta
jogo do galego, e sempre demolidor por- A primeira delas é como expõe o depu- mem como Lobato, que não escondeu com o pacto da branquitude? J
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A ANTINOVIDADE
Como Leandro Vieira se tornou o carnavalesco mais proeminente do seu tempo desafiando as artes visuais
THALLYS BRAGA
N
o primeiro dia de março de panorâmica do galpão em que carros por Deus, só encontra repouso de fato no Até meados dos anos 2010, o Carnaval
2023, uma semana depois do alegóricos e fantasias são montados e imaginário popular brasileiro. do Rio viveu uma fase de fartura finan-
Carnaval, era como se a festa desmontados. “Tudo isso só faz senti- A vitória com a Imperatriz Leopoldi- ceira, com patrocinadores derramando
ainda não tivesse acabado no do enquanto passa na avenida, durante nense foi a terceira que o carnavalesco dinheiro nas escolas, como ocorreu com
barracão da Imperatriz Leo- a magia da noite de Carnaval. Não dá obteve no campeonato do Grupo Espe- a Beija-Flor em 2015. Naquele ano, a
poldinense. Costureiras, artesãos, serra- para guardar nada. Mas eu acho que o cial, que atualmente reúne as principais agremiação de Nilópolis venceu na Sa-
lheiros e carpinteiros circulavam pelos desmonte deveria ser público. Por mim, escolas do Rio de Janeiro: Beija-Flor, pucaí com uma homenagem luxuosa à
corredores da escola de samba assobian- botava tudo para fora e deixava verem o Grande Rio, Mangueira, Mocidade, Pa- Guiné Equatorial, financiada pelo dita-
do, trocando tapinhas nas costas e distri- quebra-quebra.” raíso do Tuiuti, Portela, Porto da Pedra, dor Teodoro Obiang Nguema Mbasogo,
buindo sorrisos. Eles tinham motivo O que Vieira sugeria é que fossem Salgueiro, Unidos da Tijuca, Vila Isabel e que governa o país desde 1979 e investiu
para tanta satisfação. Depois de 22 anos desfeitos diante do público os cinco Viradouro, além da Imperatriz Leopoldi- 10 milhões de reais no desfile. Quem di-
sem glória, a Imperatriz Leopoldinense grandes carros alegóricos que ele criou nense. Muitos carnavalescos passam dé- tava as tendências no período era o car-
havia arrebatado o título de campeã dos para o desfile sobre Lampião apresentado cadas buscando o troféu principal. Em navalesco Paulo Barros, na Unidos da
desfiles no Sambódromo. Numa sala no pela Imperatriz Leopoldinense em 21 de apenas sete anos, Vieira obteve três vitó- Tijuca. Em 2010, ele apresentou uma
terceiro andar do barracão, aonde se fevereiro do ano passado. No enredo es- rias na primeira divisão. As duas primeiras comissão de frente em que seis mulheres
chega por um barulhento elevador hi- crito pelo carnavalesco, o Rei do Can- foram para a Mangueira: em 2016, logo trocavam cinco vezes de roupa em pou-
dráulico, descansava o principal respon- gaço, depois de morto, tenta entrar no na sua estreia, aos 32 anos, e em 2019. cos segundos – um truque que custou
sável pela alegria daquelas pessoas: o Inferno e depois no Céu, mas é expulso Por isso, Vieira é tido como um pon- 200 mil reais na época. “Isso criou um
carnavalesco Leandro Vieira. de ambos. Daí o título da apresentação, to fora da curva. A curadora e crítica de padrão para as outras escolas”, diz Name.
Suas olheiras características estavam O aperreio do cabra que o Excomungado artes plásticas Daniela Name o situa no “As pessoas assistiam esperando um apo-
ainda mais fundas, como se ele tivesse tratou com má-querença e o Santíssimo centro de uma nova “geração de narra- geu tecnológico, um efeito cênico.”
atravessado várias noites em claro. “No não deu guarida, inspirada em folhetos dores” do Carnaval, um grupo que sur- Veio então a fase de vacas magras, am-
mês que vem vamos começar a des- dos cordelistas José Pachêco da Rocha, giu durante a crise financeira e política pliada durante a gestão do prefeito Marce-
montagem dos carros”, disse Vieira, Guaipuan Vieira, Rodolfo Coelho Ca- dos últimos anos e decidiu privilegiar lo Crivella, que cortou os recursos oficiais
enquanto caminhava na direção da por- valcante e Moreira de Acopiara. O espí- nos desfiles a força do discurso em vez dados às escolas. “Não havia mais salários
ta do seu escritório. Dali, tem a visão rito de Lampião, recusado pelo Diabo e dos efeitos visuais. trilhardários para os carnavalescos, nem
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FE PINHEIRO_2023
Leandro Vieira com fantasias que criou para a Mangueira em 2017 e 2020: “Dizer que o Carnaval não passa de festa popular é um modo de diminuir o pensamento cultural de pobres e negros”
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visuais, desde desenho até aquarela. tocar instrumentos.” Quando se deu con-
Também começou a frequentar a Sapu- ta, estava em Madureira, integrando a
caí, levado por um casal de vizinhos. As bateria da Portela como ritmista.
suas referências vêm dessa época, dos Começou tocando cuíca, depois foi
desfiles a que assistiu entre espantado e para o tamborim. Em 2006, aos 23 anos,
fascinado, principalmente os dos carna- já com um diploma na mão, mas sem
valescos Renato Lage e Rosa Magalhães. dinheiro no bolso, decidiu procurar em-
Lage elevou e refinou o uso da tecno- prego no Carnaval outra vez. Reuniu seus
logia na Sapucaí, defendendo a Mocida- desenhos e pediu a Nilo Sérgio, mestre de
de. Em 1993, elaborou uma alegoria em bateria da Portela, que os entregasse para
que o gigantesco boneco de um menino os carnavalescos da escola. A dupla Ama-
com joystick na mão jogava videogame rildo de Mello e Cahê Rodrigues viu os
na tela dos próprios óculos. “Quando eu esboços e recrutou o rapaz para a equipe
acho que fiz algo parecido com o modo criativa do desfile. Sua primeira função
de fazer do Renato Lage, é sinal de que foi colorir os figurinos que outras pessoas
está começando a ficar bom”, diz Vieira. desenhavam. O trabalho agradou aos car-
Nos anos 1990, a concorrência de Lage navalescos e, dali em diante, Rodrigues
era Magalhães, que defendia a Impera- passou a levá-lo para onde fosse. Em 2009,
triz Leopoldinense com desfiles barro- como assistente, Vieira já cuidava de
cos, em que o narrativo predominava todos os aspectos dos desfiles, dos esbo-
sobre o visual. A disputa foi frutífera para ços dos carros alegóricos até a escolha de
ambos os veteranos. Nos doze campeo- tecidos para as fantasias.
natos de 1990 a 2001, só quatro vezes a Ele hesita em falar do fim da parceria
vitória não foi de um dos dois. “Para ser com Rodrigues, mas a história é conta-
bom carnavalesco, é preciso ter 1% de da com desembaraço pelo antigo chefe.
inspiração e 99% de transpiração”, me Eles estavam na Imperatriz Leopoldi-
disse Magalhães. “O ponto a que eu que- nense, em 2013, produzindo um desfile
ro chegar é o seguinte: o Leandro repre- sobre o jogador Zico. Vieira era o figuri-
senta a síntese do bom carnavalesco.” nista e supervisionava o trabalho no bar-
desfiles banhados de dinheiro. As escolas Vieira é o mais velho de três filhos e Ainda estudante, Vieira se deu conta racão, mas também fazia parte da equipe
foram obrigadas a procurar alternativas passou a infância no Jardim América, de que seria difícil ganhar dinheiro com de criação da Grande Rio. “Leandro
que não custassem tanto. E a nova gera- bairro da Zona Norte do Rio. A mãe, cos- a atividade artística. “Um dia, desci as es- tinha autorização para trabalhar com
ção encontrou um caminho: se apoiar tureira, e o pai, vendedor, tinham uma cadas da Escola de Belas Artes correndo outros carnavalescos, desde que fosse dis-
nas histórias bem contadas”, explica a pequena loja de tecidos, que funciona- e passei por um mural no sexto andar creto, para não desagradar a chefia da
curadora. Enquanto isso, a crise política va de segunda a segunda. com anúncio de vagas de estágio remune- nossa escola”, lembra Rodrigues. A notí-
se ampliava no país, com o impeachment Os filhos de Elizabeth passaram mui- rado na Liga Independente das Escolas cia do duplo emprego, porém, se espa-
de Dilma Rousseff e a ascensão de Jair tas tardes ao pé de sua máquina de cos- de Samba do Rio”, conta. Tomou um lhou pela Cidade do Samba – o local
Bolsonaro. “Essa nova geração fez os des- tura. Ela trabalhava ao som do disco ônibus até os barracões e bateu no por- onde as escolas preparam seu desfile –,
files voltarem a ser calcados naquilo que Álibi, de Maria Bethânia, uma paixão tão da Mangueira, mas disseram que ali o que desagradou Rodrigues e a direção
o Carnaval tem a dizer ao país.” que foi passada ao pequeno Leandro. não tinha vaga de trabalho. Ele então se da Imperatriz Leopoldinense. Em 2014,
Nesse cenário, o jornalista Aydano “Mas nunca tive muito interesse pelas dirigiu ao galpão do lado, o da Grande depois do desfile, Vieira foi demitido.
André Motta, autor de Blocos de rua do roupas que minha mãe fazia, nem pelo Rio, e pela primeira vez em muito tempo Prestes a fazer 31 anos e apavorado
Carnaval do Rio de Janeiro, chegou a processo de criação”, diz o carnavales- respirou aliviado. “Me chamaram para com o desemprego, ele resolveu aceitar
chamar Vieira de o mais importante ar- co. Ele preferia desenhar, se isolando trabalhar como empreiteiro e aderecista.” a primeira oportunidade que surgisse.
tista do Carnaval em atividade. “Basta em algum canto quieto com canetas e Isso significava passar dias e noites cor- Poucas semanas depois da demissão, foi
comparar com a trajetória de Renato papéis. O irmão do meio, Felipe, conta tando placas de acetato e decorando os convidado a ser carnavalesco pela pri-
Lage (quatro conquistas em 42 Carna- que, quando ganhou miniaturas dos carros alegóricos. Vieira percebeu logo meira vez pela Caprichosos de Pilares, na
vais) e Alexandre Louzada (seis vitórias dinossauros do primeiro Jurassic Park, que a função era, nas palavras dele, “hor- época em nono lugar no ranking do Gru-
em 36 desfiles)”, escreveu Motta em um Vieira desenhou os personagens huma- rível, repetitiva e pouco estimulante”. po de Acesso, a segunda divisão do cam-
artigo no jornal O Globo. Louzada é nos do filme e os recortou para aprimo- Na Grande Rio, deparou pela pri- peonato carioca. “Nenhum artista queria
atualmente o carnavalesco da Unidos rar a brincadeira. meira vez com um carnavalesco, mas o fazer o Carnaval da Caprichosos. O salá-
da Tijuca; Lage está num ano sabático. O Carnaval que o menino conhecia contato não foi nada bom. A escola era rio era baixíssimo”, diz Vieira. “Se eu não
Vieira, ele mesmo, aparenta pouca era o dos grupos de mascarados que pas- comandada por Joãosinho Trinta, o no- tivesse desempregado, provavelmente
pretensão. Avalia que não provocou tan- savam na sua rua batendo balões de plás- me mais importante do Carnaval naque- também não aceitaria o convite.”
tas transformações assim no Carnaval tico no chão de paralelepípedo – os le tempo. “Eu conheço a obra do João de Com pouca experiência e pouco or-
nem deixará um grande legado às futuras chamados clóvis ou bate-bolas, com suas trás para a frente. Sei de todas as suas çamento, ele fez o que pôde. A dois me-
gerações. “Isso nunca passou pela minha roupas coloridas e máscaras de arame qualidades artísticas. Mas havia um trato ses do desfile, quase nada estava pronto.
cabeça”, diz ele. “Para início de conversa, com furos nos olhos e no nariz. “Eu que- grosseiro comigo e com os que me cerca- Recrutou a mãe, os irmãos, a cunhada e
eu nem queria ser carnavalesco.” ria estar entre eles, mas a minha mãe vam”, diz Vieira. Ele observava o chefe amigos de infância para preparar as ale-
nunca deixou”, conta Vieira. “Ela dizia de longe, com “medo da grosseria”. Lem- gorias e fantasias que havia desenhado
F
oi a necessidade, e não o desejo, que a fantasia era muito quente e que bra uma ocasião em que Joãosinho Trin- sozinho. A Caprichosos de Pilares ter-
que levou Leandro dos Anjos Viei- andar em bando podia ser perigoso.” ta ficou tão insatisfeito com o trabalho minou o Carnaval de 2015 em sétimo
ra Ferreira às escolas de samba. Ele Nas noites de desfile na Marquês de dos artesãos que quebrou os espelhos lugar na disputa do Grupo de Acesso – e
queria ser artista plástico e se dedicar à Sapucaí, os pais colocavam a tevê no afixados em um carro alegórico. Vieira se viu outra vez no limbo do de-
pintura. “Sempre gostei do subúrbio e quintal de casa para assistir à passagem Vieira decidiu deixar o trabalho e, semprego. Então, quando o desespero ia
das suas pessoas, expressões e ambien- das escolas de samba enquanto faziam sem outra oportunidade em vista, restou começar a bater, uma porta se abriu na
tes. Era isso que eu queria pintar.” Aos um churrasco. As crianças brincavam se dedicar aos estudos. Os últimos anos Estação Primeira de Mangueira.
17 anos, entrou para o curso de pintura até cansar, depois repousavam em col- que passou na ufrj coincidiram com um
A
da Escola de Belas Artes (eba) da Univer- chonetes estendidos no chão. “Eu dor- movimento que ocorria no Centro da barba e os poucos cabelos de Lean-
sidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj). mia, acordava, dormia de novo, acordava cidade e que ele considera fundamental dro Vieira já foram da cor de ferru-
Era a primeira vez que um membro da para tomar café, e aquela festa colorida à sua formação artística: a retomada da gem. Aos 40 anos, os fios brancos
sua família cursava o ensino superior. continuava passando na televisão.” vida noturna nos Arcos da Lapa. “Fre- são cada vez mais numerosos e os cabe-
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BENETT_2024
nha, os ombros caídos lhe dão um as- meu nome no barracão”, conta Vieira.
pecto juvenil. Parece ter consciência do Levou um tempo até os diretores da
tom altivo que usa para falar de si, tanto Mangueira aceitarem que o novo carna-
que eventualmente se esforça em pare- valesco não faria um desfile apenas em
cer modesto, como ao dizer: “O convi- tons de verde e rosa, as cores da escola.
te para fazer a Mangueira também só “Eu sentia que essas cores não combina-
chegou para mim porque a escola não vam com absolutamente nada, não me
tinha dinheiro.” satisfazia enquanto pintor.” Vermelho e
Em 2015, a verde e rosa estava mes- azul eram cores vetadas pelo presidente
mo na pior. Terminara o desfile daque- Chiquinho, que as associava ao Salguei-
le ano na décima posição no Grupo ro e à Portela. Mesmo assim, Vieira deu
Especial, cujo campeonato não ganha- um jeito de introduzir um azul no piso
va havia treze anos. O presidente da do quarto carro alegórico, chamado Abe-
escola, Chiquinho da Mangueira, dizia lha rainha (sobre o ápice comercial de
à imprensa que a situação nada tinha a Bethânia), que só foi pintado poucas noi-
ver com o cofre da escola, enquanto tes antes da competição, às escondidas.
procurava alguém capaz de fazer mila- Na noite anterior ao desfile, as alego-
gre com o orçamento minguado. rias de todas as escolas são cobertas por
Chiquinho, que era também deputa- sacos pretos e deixam a Cidade do Sam-
do estadual (em 2015, pelo pmn), chamou ba, na Gamboa, em direção ao Sambó-
Vieira para uma reunião em seu gabinete dromo, na Rua Marquês de Sapucaí, no
na Assembleia Legislativa do Rio e lhe bairro Santo Cristo. Durante a manhã
apresentou esta ideia: colaborar com um e a tarde, os carros estacionam na Ave-
veterano para fazer um desfile que unisse nida Presidente Vargas e ficam expostos
renovação e tradição. Como nenhum ve- ao público pela primeira vez, enquanto
terano embarcou na proposta, a chave da são varridos e lustrados pelas equipes
escola foi entregue a Vieira. das escolas. “Eu me lembro das pessoas
Em 1932, quando ocorreu o primei- passarem por nós perguntando de que
ro desfile de escolas de samba no Rio de escola eram aqueles carros. Elas não
Janeiro, a Mangueira foi vencedora. viam a Mangueira no meu trabalho”, dos altares católicos brasileiros. “Coloquei ca comandada por Vieira, que se afei-
Ganhou os dois desfiles seguintes, e diz Vieira. Mas o desfile começou e ter- santos propositalmente arranhados, como çoou ao seu modo de trabalhar e a levou
dali em diante sua trajetória ajudou a minou sob os aplausos entusiasmados se estivessem desgastados. Queria dar o para a Mangueira.
moldar a tradição do Carnaval carioca. do público. A Mangueira estava de volta visual de uma coisa que um dia foi boni- A ala das baianas, tradicional reve-
Mas, até Vieira, o posto de carnavalesco ao páreo após duas décadas. Na Quarta- ta, mas com o tempo ficou feia. Chegar rência às matriarcas das escolas de sam-
da escola nunca havia sido ocupado por Feira de Cinzas, foi eleita a campeã do a esse resultado foi difícil, porque as pes- ba, é uma das mais importantes de um
um estreante no Grupo Especial, o que Carnaval de 2016. soas que trabalham em barracão de Car- desfile de Carnaval, e costurar as fanta-
dá a medida do peso que recaiu sobre naval estão acostumadas com o belo.” sias dessas mulheres é trabalho para
A
as costas do jovem. Ele optou por fazer vida no subúrbio é a fonte que ir- A maioria dos membros da equipe quem entende do assunto. Tia Sirley é
sozinho a pesquisa e a conceituação do riga o trabalho de Vieira, por isso de Vieira está com ele há anos. As fan- tratada com toda a consideração de uma
enredo – o texto que os carnavalescos ele se recusa a deixar o apartamen- tasias da ala das baianas sempre foram veterana no barracão. Mas isso não quer
apresentam aos diretores das escolas in- to em que mora de aluguel na Vila da costuradas por Sirley Martins, a Tia dizer que esteja livre dos olhos rigorosos
formando o tema a ser abordado no Penha, na Zona Norte, embora atual- Sirley, uma costureira baixinha e afável de Vieira, exigentíssimo em matéria de
desfile –, bem como o recorte e o tom mente tenha condições financeiras de de 71 anos, nascida na Vila Vintém e acabamento. Para o desfile de 2017 da
da apresentação. A proposta de fazer viver em qualquer outro bairro do Rio criada em Bangu, ambos na Zona Oes- Mangueira, ele desenhou para as baia-
uma homenagem à cantora Maria Be- de Janeiro. Em dia de desfile, toma o te do Rio. Ela está morando no barra- nas uma saia de filó forrada com saqui-
thânia foi bem-aceita. metrô na estação Vicente de Carvalho, cão da Imperatriz Leopoldinense desde nhos de pano imitando as embalagens
Cada desfile tem de seis a oito seto- desce na Central do Brasil e caminha 11 de setembro passado e improvisou de doce de São Cosme e Damião. A ideia
res, que são como os capítulos da histó- até o Sambódromo. “Eu faço as coisas uma cama com isopor e espuma nos era visualmente muito bonita, mas, para
ria que está sendo contada. Para cada pensando numa visão de Brasil, numa fundos do ateliê. Nos fins de semana, a funcionar, Tia Sirley teve que amarrar
setor, há um carro alegórico e várias criação artística de valor suburbano.” filha a visita para entregar frutas, café, manualmente dezenove saquinhos no
alas (os grupos de pessoas que desfilam Sua obsessão é “aquela coisa mal-ajam- pães e mudas de roupa limpa. “Minha revestimento de cada uma das oitenta
fantasiadas no solo). O carro alegórico brada e mambembe” dos Carnavais dos filha diz que eu levo vida de presidiá- saias. “O Leandro desenha loucuras e
vem depois das alas, como uma síntese anos 1970. “Eu não busco novidades ou rio”, conta a costureira, rindo. O mari- entrega para a gente executar”, diz a cos-
da proposta do setor. Vieira escolheu inovações, olho para a tradição. Meu do vive em São Paulo e não se conforma tureira. Muitos não aguentaram lidar
contar a história de Maria Bethânia a desejo é combater o luxo e a opulência.” com o tempo que ela passa no trabalho. com as exigências do carnavalesco e
partir da religiosidade, desde o momen- De certa forma, é como se ele buscasse Tia Sirley aprendeu a costurar sozi- foram embora. “Se ele fala que quer X,
to em que ela se iniciou no candomblé. contrariar o ideal de beleza e de luxo nha, muito jovem. Morava na favela da não adianta costurar Y. Ele não vai acei-
Também idealizou um carro-símbolo que predominou no Carnaval carioca Rocinha, criava os quatro filhos sem tar. Quem está acostumado a costurar
da devoção cristã da cantora e da sua por tantas décadas. Em particular des- ajuda e não aguentava mais acordar an- de qualquer maneira para outros carna-
crença na intercessão dos santos, uma de Joãosinho Trinta, que introduziu uma tes do amanhecer para pegar o trans- valescos sente a pressão. O trabalho que
herança da mãe, Claudionor Viana Te- parafernália luxuosa até então nunca porte público lotado. “Eu falei: ‘Meu fazemos aqui é de arte.”
les Veloso, conhecida como Dona Canô. vista nos desfiles e cunhou uma máxi- Deus, por favor, abre uma porta para eu A essa altura, Tia Sirley já sabe como
Outras três alegorias narravam a traje- ma famosa: “Quem gosta de miséria é trabalhar em casa e ter paz.’” As coisas agradar o chefe e deixa as fantasias com
tória artística, do começo no Teatro de intelectual, o pobre gosta de luxo.” deram certo, e ela passou dez anos traba- os franzidos mais franzidos, os volumes
Arena, com o show Opinião, nos anos Para o seu segundo desfile na Man- lhando como costureira em casa. Certo ainda mais volumosos, nem que para
1960, representado por um carcará – gueira, em 2017, Vieira escreveu um en- dia, um conhecido disse que estavam isso precise passar mais de quinze horas
nome de uma ave de rapina e da música redo sobre a religiosidade popular, cuja precisando de costureira na quadra da na máquina de costura. Ela se deita per-
que primeiro projetou a cantora –, até a pesquisa teve a participação de fun- Acadêmicos da Rocinha, e Tia Sirley em- to da meia-noite, mas às vezes só conse-
consagração. A alegoria final era um cionários do Instituto do Patrimônio brenhou-se no universo das escolas de gue pegar no sono às quatro, cinco da
grande circo de lonas verde e rosa, em Histórico e Artístico Nacional (Iphan). samba. Depois, trabalhou para a São manhã, quando os costureiros notívagos
referência ao sonho da menina de San- Desenhou um abre-alas (o primeiro carro Clemente e para a Grande Rio. Chegou, apagam as luzes do ateliê. Na Cidade do
to Amaro de ser artista circense. do desfile) inspirado no exagero barroco então, na Caprichosos de Pilares, na épo- Samba, não existe horário de trabalho
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O
trabalho. “Eu uso os tecidos como vela- telefone de Leandro Vieira toca a compositor Cartola e do cantor Jamelão.
tura”, explica. É uma técnica da pintura cada cinco minutos. Geralmente, Por fim, moradores do Morro da Man-
Vermelho que consiste em aplicar uma camada de é algum funcionário do barracão gueira e artistas vinham atrás carregando
tinta sobre outra na tela, criando um pedindo para o carnavalesco dar um uma bandeira do Brasil reinventada na
efeito visual diferente da combinação pulo no ateliê ou no setor de ferragens. cor rosa (no lugar do verde), um losango
das mesmas cores diretamente na pale- Na tarde de 15 de dezembro, durante branco (no lugar do amarelo) e um círcu-
ta. “O meu processo é pensado a partir uma ligação com uma porta-bandeira, lo em verde-claro com a faixa no meio
da minha formação como pintor. Eu ele respondeu assim: “Fala, meu amor. em que se lia: “Índios, negros e pobres”
faço figurino para escola de samba pen- Está com saudade?” Deu para ouvir (em vez de “Ordem e progresso”).
sando em arte para ser vestida.” Ele uma voz de mulher perguntando se ele “Talvez tenha sido o Carnaval mais
também recorre a materiais baratos, iria ao aniversário dela. “É hoje? Na sua radical na questão do artista que quero
como o acetato, que dão menos peso à casa? Me manda o endereço e a hora que ser”, diz Vieira. “Ele marca um radicalis-
cabeça de quem veste e ajudam a cami- eu apareço aí.” Do outro lado da linha, mo estético e discursivo que é muito
nhar com leveza pela Sapucaí. A evo- a moça gritou: “Mããããããe, o Leandro meu, da minha maneira de pensar o
lução, o andamento do desfile, é um Vieira vai vir!” Perguntei se ele estava Carnaval: mais pra luta e menos pra fes-
14 quesito que os jurados levam em conta falando com a ex-mulher, a porta-ban- ta.” Foi justamente essa disposição com-
para escolher a campeã. deira Squel Jorgea, e Vieira apenas sol- bativa que levou o jurado Artur Nunes
De Stephen King O desfile da Mangueira em 2017 – tou uma risada. Ele se divorciou em Gomes, do quesito enredo, a tirar um
Direção Eric Lenate com o tema Só com a ajuda do santo 2018, depois de dez anos de casado. décimo de ponto da Mangueira, conside-
Com Mel Lisboa, Marcello Airoldi – rendeu à escola apenas o quarto lugar Antes de atender ao telefonema, o car- rando ter havido “exagero no tom de
e Alexandre Galindo no campeonato. Uma das alegorias, o navalesco falava da situação da Manguei- denúncia” e uso de “imagens antagôni-
Sex às 20h30, Sáb às 20h00 tripé Santo e orixá, trazia de um lado a ra nos preparativos para o Carnaval de cas ao espírito do Carnaval”.
e Dom às 17h00 | TUCA imagem de Jesus Cristo e de outro a de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro. O décimo de ponto, porém, não im-
NÃO HAVERÁ ESPETACULOS Oxalá. A Arquidiocese do Rio ficou in- Algumas semanas antes do desfile, o pre- pediu que a Mangueira ganhasse o cam-
NOS DIAS 09,10 E 11 DE FEVEREIRO comodada, e o presidente da escola im- sidente Chiquinho, na época deputado peonato. Com sua segunda vitória em
pediu o carnavalesco de levar o tripé estadual pelo psc, foi preso pela Polícia três anos na escola e um discurso tão
para o desfile. Mas o ano esteve longe Federal, acusado de favorecer o ex-gover- audacioso, o carnavalesco chamou, final-
NOSSO IRMÃO de ser ruim para Vieira. Em julho, ele nador Sérgio Cabral em troca de propi- mente, a atenção dos curadores de arte.
abriu no Paço Imperial, no Rio, a sua na. Vieira ficaria desamparado não fosse
A
primeira exposição. Não de pinturas, o esforço dos trabalhadores que atuavam o escrever sobre a visita de Hélio
mas de croquis, maquetes e fantasias de no barracão da Mangueira para levar à Oiticica ao Morro da Mangueira
Carnaval. “A ideia de que o Carnaval é Sapucaí o enredo sobre os heróis popula- em 1964, o poeta Waly Salomão
apenas uma festa popular já deveria ter res esquecidos, um tema que ele pesqui- anotou que a quadra da escola represen-
sido superada”, diz ele. “Essa é uma ten- sou na obra de historiadores e sociólogos tou “a descoberta do corpo tornado dan-
tativa muito inteligente de diminuir o como Sérgio Buarque de Holanda, João ça e de outros modos de comportamento”
pensamento cultural das camadas mais José Reis e Jessé Souza. “É o melhor que para o artista plástico. “O Hélio viven-
pobres e pretas da cidade. Carnaval é já escrevi. Foi uma resposta ao conserva- ciou a barra-pesada num processo de
uma manifestação política que flerta dorismo que se acirrava na nossa cara”, ruptura e recusa do mundo burguês que
com a vontade do bem viver.” diz Vieira. O samba-enredo História para o formou e rodeava”, observou Salomão.
Com a exposição no Paço Imperial, ninar gente grande, composto por Deivid Fascinado pelas alegorias e fantasias de
seu nome apareceu pela primeira vez nos Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Carnaval, Oiticica se viu estimulado a
cadernos culturais dos jornais. “É mui- Márcio Bola, Manu da Cuíca, Luiz Car- criar algo que condensasse a visualidade
to difícil vender uma pauta sobre o Lean- los Máximo, Ronie de Oliveira e Danilo dos desfiles. E começou a produzir os
dro para os editores de cultura. Eles Firmino, diz: Salve os caboclos de julho/ seus famosos parangolés, feitos com teci-
nunca têm espaço para o Carnaval”, diz Quem foi de aço nos anos de chumbo/ dos ou plásticos, e às vezes estampados
o assessor de imprensa Alan Diniz, que Brasil, chegou a vez/De ouvir as Marias, com frases políticas, que ao serem vesti-
já trabalhou com Chico Buarque e Ma- Mahins, Marielles, malês. dos pelo espectador faziam dele parte
risa Monte, é amigo do carnavalesco e A apresentação, de cunho fortemente constitutiva da própria obra.
12 presta serviços informais a ele. Nos jor- político para o Carnaval e o momento Oiticica, que desfilou pela Manguei-
De Alejandro Melero nais cariocas, a cobertura do Carnaval do país, começou com uma comissão ra como passista, queria levar os integran-
Direção Dan Rosseto é feita pelos repórteres da editoria de de frente protagonizada por quadros vi- tes da escola para vestir os parangolés na
Com Regiane Alves, Marina Elias cidade, não de cultura. vos de personagens históricos: princesa abertura da exposição Opinião 65, mon-
e Bruno Ferian Em 2018, Vieira redigiu para a Man- Isabel, Domingos Jorge Velho, Deodoro tada no Museu de Arte Moderna (mam),
Sex às 21h00, Sáb às 21h00 gueira o enredo Com dinheiro ou sem da Fonseca, dom Pedro I, José de An- no Rio, em 1965. Mas a direção do mu-
e Dom às 18h00 | TUCARENA dinheiro, eu brinco. Era uma resposta à chieta e Pedro Álvares Cabral. Em dado seu proibiu a exibição carnavalesca
decisão de Marcelo Crivella, que é momento, os personagens saíam de dentro do prédio. Mestres-salas, porta-
NÃO HAVERÁ ESPETACULO NOS
evangélico, de cortar pela metade os uma parede cenográfica e se revelavam bandeiras, percussionistas e passistas ti-
DIAS 09, 10 E 11 DE FEVEREIRO
recursos que a prefeitura do Rio trans- figuras pequenas, de pernas encurtadas, veram que fazer o seu samba na área
fere às escolas de samba. Pela primeira que ficavam ainda menores ao se posi- externa – um episódio que virou exem-
ingresso online vez, a escola apresentou um desfile em cionarem perto dos dançarinos negros e plo do preconceito das instituições artís-
tons pastel, como se estivesse doente, indígenas. A encenação terminava com ticas com a criação carnavalesca. Poucas
anêmica. O último elemento cenográ- uma menina, vestida de estudante, abrin- vezes ocorreu a confluência entre essas
Mais informações
fico da apresentação trazia os dizeres: do um livro que virava um cartaz com a instituições e o Carnaval das escolas,
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D
a Beija-Flor. lização que não fez parte de sua exibição estacionado na Central do Brasil. Foi epois do desfile da Mangueira de
Em 2020, a obra de Oiticica voltou original. De certo modo, foi esvaziada.” Vieira quem escolheu o local, buscan- 2019, sobre os heróis esquecidos
ao mam na exposição Hélio Oiticica: a Bandeira brasileira se tornou a obra do homenagear os funcionários do bar- da história do Brasil, outras esco-
dança na minha experiência, organizada de Carnaval mais exibida em museus até racão que moram no subúrbio e tomam las tentaram repetir a proposta de Viei-
em parceria com o Museu de Arte de hoje. O Instituto Moreira Salles* a re- o trem diariamente para ir ao trabalho. ra. A semelhança narrativa é explícita
São Paulo (Masp) e curadoria de Adria- quisitou para uma mostra sobre a escri- Pouco mais de trinta pessoas estiveram em alguns casos, como no enredo que
no Pedrosa e Tomás Toledo. Percebendo tora Carolina Maria de Jesus, em 2021, na abertura. Depois, Vieira foi almoçar a Beija-Flor apresentou em 2023 sobre
haver pouco da Mangueira na mostra, e o Masp a incluiu na exposição Histó- no Largo de São Francisco da Prainha, no os personagens excluídos da história
os diretores artísticos do mam na época, rias brasileiras, em 2022. A bandeira bairro da Saúde, com os amigos e a na- oficial brasileira. Os carnavalescos Ale-
Keyna Eleison e Pablo Lafuente, convi- também rendeu a Vieira uma indicação morada. “Mais tarde eu vou aparecer xandre Louzada e André Rodrigues
daram Vieira para mostrar sua Bandeira ao Prêmio Pipa, o mais relevante dado a na Mangueira pela primeira vez depois também fizeram uma versão da bandei-
brasileira verde e rosa ao lado das cria- jovens artistas do país. Ele não foi sele- de ter deixado a escola”, anunciou. ra nacional que foi exibida no mam.
ções de Oiticica. “Se o Hélio Oiticica cionado, mas até hoje é o único carnava- Às onze da noite, cinco crianças cor- Para alguns foliões, as mudanças fo-
disse que a Mangueira o ajudou a exis- lesco indicado para a premiação. reram para abraçá-lo na entrada da qua- ram ficando sérias demais. “Os temas
tir, cadê ela na exposição?”, questionou A própria Daniela Name convidou dra verde e rosa. O carnavalesco estava estão densos, muito intelectualizados”,
Eleison. Vieira também foi convidado a Vieira para uma exposição no Paço Im- lá para uma noite de samba promovida diz o carnavalesco Renato Lage. “Deixa-
realizar oficinas no museu com os tra- perial sobre o processo de elaboração das em conjunto pelas comunidades da Man- ram de lado a alegria e a leveza.” Vieira
balhadores da Mangueira. suas fantasias. Corpo popular foi inaugu- gueira e da Imperatriz Leopoldinense, não se sente responsável pela mudança
A crítica Daniela Name chama a rada em 2 de dezembro do ano passado a escola que ele defende atualmente. de discurso na avenida. “Eu não inven-
atenção para a importância do convite com croquis, entrevistas gravadas com as Foi tratado como uma estrela. “Eu cons- tei a roda”, afirma. “A roda só estava
feito a Vieira pelo museu. “É como se costureiras e monóculos que exibiam fo- truí o artista que sou na Mangueira”, parada porque o discurso havia sido es-
estivesse pagando uma dívida histórica tos dos desfiles. A curadora optou por não diz Vieira. “Mas, depois de um tempo vaziado em troca de patrocínio.”
com a Mangueira”, afirma. Mas se inco- mostrar fantasias em cabides e mane- lá, acabei ganhando o rótulo de car- Em seu penúltimo desfile na Man-
modou com o modo como a Bandeira quins, mas em fotografias e croquis, uma navalesco político, que me incomoda. gueira, em 2020, ele propôs um enredo
brasileira (o nome dado à criação de vez que, para Vieira, elas só ganham vida Primeiro porque essa compreensão não sobre Jesus – A verdade vos fará livre era o
Vieira) foi exibida no Salão Monumen- inclui o meu Carnaval da Bethânia, por título. Um dos carros alegóricos trazia
* O fundador da revista piauí, João Moreira Salles, é
tal do mam: pendurada na parede, em- presidente do conselho do Instituto Moreira Salles. exemplo. Não enxergam política num um jovem negro, de cabelo tingido de
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E
sisti: “A Portela?” O carnavalesco riu. vai ganhar outra vez”, ela me disse. m fevereiro de 2022, Daniela Name
“Não adianta, eu não vou falar.” O título do enredo, Com a sorte vira- foi convidada para a bancada de
da pra Lua, segundo o testamento da entrevistadores de Vieira no Roda
N
a segunda semana de janeiro, as cigana Esmeralda, é uma nova referên- Viva, da tv Cultura. Lá pela metade do
salas de trabalho da Imperatriz cia à carnavalesca Rosa Magalhães, que programa, a curadora lembrou que, na
Leopoldinense estavam lotadas, sempre deu nomes longos aos seus des- primeira conversa que os dois tiveram, o
com cheiro de resina e ventiladores ca- files. “E aquela alegoria bem ali é uma carnavalesco se definiu como “a antino-
quéticos lutando em vão contra o calor. homenagem ao modo de fazer Carna- vidade”. Ela perguntou se essa convic-
No escritório de Vieira, o ar-condicio- val do Renato Lage.” Vieira aponta para ção, que o faz buscar estímulo criativo no
nado soprava a 17ºC. Uma das suas cos- o abre-alas do desfile. É um carro com próprio Carnaval, em vez de olhar para
tureiras mais antigas se maquiava no tons dourados, azuis e roxos, adornado fora do festejo, é o seu maior ato político.
banheiro da sala para receber um repór- por imensas mãos com olhos nas pal- “Eu acho que sim”, respondeu Vieira.
ter da Rede Globo. “Ela não quer falar mas. Três quilômetros de luz neon fo- Ele lembrou uma entrevista que o
sobre o que é a entrevista. Acho que é ram instalados para iluminá-lo durante escritor Jorge Amado deu em 1986 à
para a segunda temporada de Vale o es- a passagem na Sapucaí. antiga tv Educativa do Rio. “Já se disse
crito”, brincou Dandara Vital, assistente Os esforços de Vieira também estão que Villa-Lobos compunha a mesma
do carnavalesco, se referindo à série do concentrados em impedir que os bisbi- música, e Fellini vive fazendo o mesmo
Globoplay sobre o jogo do bicho. lhoteiros da Cidade do Samba fotografem filme. E que você também escreve sem-
As apostas do jogo do bicho são feitas o que está sendo produzido no barracão. pre, Jorge, o mesmo livro. Essa repeti-
a caneta em talões de papel com núme- Ele teme que as imagens repercutam na ção de temas seria um privilégio dos
ros e ilustrações de 25 animais. Foi desse internet e influenciem a opinião dos jura- gênios?”, um jornalista perguntou ao
sistema de apostas proibido no país desde dos antes da apresentação na Sapucaí. “As escritor. Jorge Amado ergueu as sobran-
1941 que Vieira tirou a inspiração para pessoas criam preconceitos a partir do celhas, coçou o rosto e respondeu: “Eu
um carro alegórico do seu Carnaval des- que sai na internet”, diz. “Por exemplo, o escrevo o mesmo romance há mais de
te ano. “Meu avô vivia jogando no bicho, samba da Mocidade, que todo mundo cinquenta anos. Romance da gente
mas nunca ganhou. Lembrei dele quan- está comentando”, diz ele sobre Pede caju baiana. [...] Os personagens são os mes-
do comecei a conceituar esse desenho.” que dou, pé de caju que dá. “Em qualquer mos, os ambientes e os temas funda-
“O Leandro está acelerado, às vezes ano, seria considerado um samba ruim, mentais são os mesmos. Agora, não sei
chega a ser over. Nem deve conseguir digno de notas baixíssimas, mas teve um se é um privilégio ou uma limitação.”
dormir”, diz Vital. Ela o auxilia na ad- ótimo trabalho de marketing digital da Feita a recordação, o carnavalesco
ministração das planilhas orçamentá- escola e é apontado como um dos favori- encarou a curadora e disse: “Eu não me
rias, às vezes sai para comprar materiais tos desse Carnaval. Talvez os jurados te- incomodo com o fato de escrever, dese-
no Saara, região de lojas populares no nham medo de tirar pontos em função do nhar, pintar, por cinquenta anos, as coi-
Centro do Rio. Vieira não divide com que se tornou consenso antes do desfile.” sas do povo brasileiro. E, se eu tiver que
ninguém os desenhos das fantasias e ale- No dia 15 de janeiro, os carnavalescos ser a antinovidade por passar cinquenta
gorias, nem a supervisão dos ateliês. “Os das escolas do Grupo Especial se reuni- anos falando das coisas do Brasil, eu
concorrentes dele são os meninos da ram com o júri da Liga Independente serei até o meu último Carnaval.” J
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ROBERTO MUGGIATI
A
s novas gerações, batizadas ocuparam as listas dos mais vendidos, Kingsley Swift, é consultor financeiro do racterizou como seu primeiro “álbum so-
com as letras terminais do alfa- muitas vezes em primeiro lugar. banco de investimentos Merrill Lynch. noramente pop”.
beto – X, nascidos entre 1965 Foi nesse novo quadro social que se Sua mãe, Andrea, trabalhou como exe- A revista Rolling Stone escreveu:
e 1981; Y, ou millennials, nas- formou o culto a Taylor Swift. De certa cutiva de marketing de um fundo de “[Swift] pode ser tocada na estação coun-
cidos entre 1982 e 1996; e Z, forma, a cantora ocupa o lugar de uma investimentos. Deu à filha um nome try, mas ela é uma das poucas estrelas do
nascidos entre 1997 e 2012 – cresceram irmã mais velha benfazeja. Atuando na de gênero neutro na crença de que isso a rock genuínas que temos hoje em dia.” Se-
na era da internet embaladas pelas redes contramão do Big Brother controlador ajudaria numa carreira empresarial de gundo o New York Times, “não há muito
sociais e todas as suas sequelas. Para a e repressivo, ela vela pelo bem-estar e sucesso. Atirou no que viu e acertou no na música de Swift para indicar country
maioria, a compreensão do mundo se felicidade dos fãs, como uma Big Sister que não viu, porque o nome foi inspirado – algumas batidas de banjo, um par de
tornou praticamente impossível, a mera protetora e afetuosa. Além de atrair para no cantor de rock James Taylor... Taylor botas de caubói usadas no palco, um vio-
apreensão da realidade uma tarefa difí- o seu entorno milhões de pessoas com o Swift tem um irmão mais moço, Austin, lão deslumbrante –, mas há algo em sua
cil. Muitos vacilam até antes de clicar intimismo de suas canções autobiográfi- que estudou na Universidade de Notre mescla de firmeza e vulnerabilidade que
na opção “não sou um robô”. Ingressa- cas, Swift vem tecendo com elas uma tra- Dame. Um detalhe curioso: ela passou os é exclusivo de Nashville”. O jornal inglês
mos em tempos distópicos. Conceituan- ma de cumplicidade por meio de uma primeiros anos de vida numa fazenda The Guardian escreveu que Swift “arran-
do: distopia, segundo o dicionário, é um série de artifícios, como o culto cabalísti- onde eram cultivados pinheiros de Natal. ca a melodia com a eficiência impiedosa
lugar ou estado imaginário em que o co de suas datas pessoais, o 13 do dia e o Cresceu, portanto, sob o signo de Papai de uma fábrica pop escandinava”.
indivíduo vive em condições de extrema 1989 do ano do seu nascimento, suas pos- Noel. John Lennon se autoproclamava Será que ela é tudo isso mesmo?
opressão, desespero ou totalitarismo. tagens nas redes sociais e as pulseiras da “herói da classe operária”. Taylor Swift Taylor descreveu sua sexta turnê, cha-
O clássico da distopia é 1984, o livro de amizade. No polo oposto de divas do pode ser vista como uma autêntica “he- mada The Eras Tour, como “uma jorna-
George Orwell, publicado em 1949. Nele, passado – como Greta Garbo, com seu roína da classe média”. da por todas as eras musicais de minha
a figura de um irmão mais velho, o Big brado de guerra “Me deixem em paz” –, Tecnicamente, é hoje uma bilioná- carreira”. Primeira excursão depois de cin-
Brother, vigia e controla 24 horas por dia Swift se faz sempre transparente e pede: ria, com a fortuna pessoal calculada em co anos, cobrirá o mundo até 8 de dezem-
a vida de cada cidadão, do qual exige total “Não me deixem nunca.” torno de mais de 1 bilhão de dólares. bro de 2024 com 71 apresentações na
submissão às regras repressivas do Estado. Outro contraste marcante de época: Um patrimônio construído com cada América do Norte, 13 na América Lati-
Até o pensamento é policiado, na maneira os hippies se definiam como We are the nota de sua música, cada letra de suas na, 10 na Ásia, 7 na Oceania, 50 na Eu-
de se expressar de cada indivíduo, que people our parents warned us against canções. O segredo de sua arte? Cito da ropa, num total de 151 shows.
deve aderir ao newspeak – a novilíngua. (Nós somos as pessoas que nossos pais nos salada mista preparada por vários críti- Num ano horrível para a humanida-
Em 1999, a televisão holandesa criou um mandaram evitar), num tempo em que cos e servida pela Wikipédia: de, Taylor Swift teve o seu annus mirabi-
reality show inspirado no mundo distópico pais e filhos viviam em guerra permanen- A música de Swift consiste principal- lis coroado ao ser escolhida pela revista
de Orwell. O sucesso foi tão grande que te. Já os swifties contam com o apoio irres- mente em elementos de pop, synth- Time como “A Pessoa do Ano”, com di-
tevês do mundo inteiro compraram o for- trito da família na sua dócil idolatria. pop, country, country pop e rock. Seus reito a uma caprichada reportagem de
mato. O Big Brother Brasil começou em trabalhos posteriores se baseiam em gêne- capa. Alguns destaques do texto, escrito
O
2002 e logo se tornou um dos campeões s dados vitais da estrela: nasceu ros como indie folk, rock alternativo, R&B por Sam Lansky:
de audiência da Rede Globo. Outro dado Taylor Alison Swift, em 13 de de- [rhythm and blues], EDM [eletronic dan- Este foi o ano em que ela aprimorou sua
sintomático da adesão à distopia: nos anos zembro de 1989, em Reading, Pen- ce music], hip-hop e trap. Swift se descre- arte – não apenas com a música, mas na
da pandemia no Brasil, os livros 1984 e silvânia. Descendente de três gerações veu como uma artista country até o posição de uma contadora de histórias ma-
A revolução dos bichos, também de Orwell, de presidentes de banco, seu pai, Scott lançamento de 1989 (2014), que ela ca- gistral da era moderna. O mundo, por sua
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Galeria de mitos: a partir do assassinato de John Lennon, em 1980, começaria a pairar sobre a cabeça de cada ídolo a ameaça: “Cuidado, você pode estar sob a mira de um fã”
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ela dá às pessoas, particularmente a garo- encantava não só as plateias, mas tam- o início do século xx, a música
A
tas, condicionadas a aceitar rejeição, abuso idolatria devotada a Taylor Swift, bém os corações femininos, o que o obri- ganhou um efeito multiplicador
psicológico e físico de uma sociedade que com fãs acampados durante dias à gava às vezes a fugir às pressas da cidade, com a gravação fonográfica. Um
trata suas emoções como inconsequentes, porta dos estádios e movendo mun- acossado por um marido ciumento ou dos ídolos que se beneficiaram da nova
permissão para acreditarem que sua vida dos e fundos para conseguir um ingresso pai ultrajado. Gottschalk também sabia tecnologia foi o tenor italiano Enrico
interior tem importância. para o show, é algo que espanta. Mas seduzir povos e poderosos com sua mú- Caruso (1873-1921), cultuado por uma
E numa daquelas declarações cate- não tem nada de inédito. sica, compondo variações em torno de multidão de fãs em seu curto tempo de
góricas típicas da Time: “Ela é a última Quando comecei a escrever este texto seus hinos pátrios. Fascinado pelo tema vida. Sua interpretação de Vesti la giub-
monocultura a sobreviver em nosso sobre a devoção dos fãs de Taylor Swift, de Francisco Manuel da Silva, compôs a ba (Veste a fantasia), da ópera Pagliacci,
mundo estratificado.” uma amiga sugeriu que eu evocasse os Marcha solene brasileira e produziu sua em 12 de novembro de 1902, foi a primei-
A revista explicou o critério da escolha: fanatismos musicais do passado, voltando Grande fantasia triunfal sobre o Hino ra gravação na história a vender 1 milhão
Todo ano contém luz e trevas; 2023 foi até a época de Frank Sinatra e Elvis Pres- Nacional Brasileiro, op. 69. de cópias. Entre as cantoras, no mesmo
um ano com uma dosagem significativa ley, entre os anos 1940 e 1960. Mas me dei Adepto dos concertos de proporções período, destacou-se a soprano austra-
de escuridão. Num mundo dividido, em conta de que tudo começou bem antes: gigantescas, iniciados por seu mentor liana Nellie Melba (1861-1931), que do-
que muitas instituições estão falindo, em meados do século xix, com a lisztoma- Berlioz, Gottschalk não se restringiu às minou a cena lírica a partir do Covent
Taylor Swift achou um meio de transcen- nia. Os concertos do pianista húngaro metrópoles, mas levou sua música às ci- Garden de Londres e, entre suas fãs, con-
der fronteiras e se tornar uma fonte de luz. produziram tamanha histeria nas plateias dades de fronteira, aos campos de mine- tava com ninguém menos do que a rai-
Ninguém mais no planeta é hoje capaz de europeias que a onda de entusiasmo foi ração e até às frentes de batalha da Guerra nha Vitória. Nada eterniza melhor um
comover tantas pessoas tão bem. A con- chamada “febre de Liszt”. Algo equivalen- de Secessão. Numa turnê de catorze me- artista do que uma iguaria célebre: no
quista desse feito é algo que geralmente te só seria visto mais de um século depois, ses pela América do Norte, chegou a jantar de comemoração do seu sucesso
creditamos ao alinhamento dos planetas com o fanatismo em torno dos astros de fazer quatrocentas apresentações, co- em Lohengrin, o lendário chef francês
ou ao destino, mas dar exagerado crédito rock – uma analogia tão flagrante que brindo 64 mil km de diligência, trem e Auguste Escoffier, do Hotel Savoy, em
aos astros equivale a ignorar a capacidade Ken Russell, o diretor de Tommy (baseado barco a vapor. Londres, criou a sobremesa Pêssego Mel-
e o poder de Taylor. [...] Enquanto sua na ópera-rock da banda The Who), deci- Nascido em Nova Orleans, completou ba em homenagem à cantora.
popularidade foi crescendo ao longo das diu realizar Lisztomania (1975), o princi- 40 anos cinco dias depois de desembarcar Nos anos 1920, os discos de 78 rpm
décadas, este é o ano em que Swift, aos pal de seus filmes sobre o culto popular no Brasil, em maio de 1869. No Rio, en- (rotações por minuto) alcançaram vendas
33 anos, alcançou uma espécie de fusão aos músicos eruditos. controu a atmosfera e os recursos ideais fabulosas. As campeãs de vendagem eram
nuclear: combinando arte e comércio para Também o Brasil foi agitado, no século para encenar seu primeiro “concerto as cantoras de blues. Bessie Smith (A Im-
liberar uma energia de força histórica. Ela xix, por dois surtos notáveis de idolatria. monstro”, com dezesseis pianos tocados peratriz do Blues), ainda na era acústica,
conseguiu isso entregando aquilo que sabe Um deles em torno de Maria Baderna, por 31 pianistas e duas orquestras sob sua em 1923, vendeu 800 mil cópias da sua
fazer melhor do que todo mundo, entreten- prima ballerina assoluta do Teatro alla regência. Obtendo de Pedro ii jurisdição primeira gravação, Downhearted blues.
do e escrevendo canções que se conectam Scala de Milão, que se exilou no Brasil sobre as bandas do Exército, da Marinha A evolução para a gravação elétrica au-
com as pessoas. com o pai, médico e músico, depois que o e da Guarda Nacional, reuniu 82 tam- mentou a qualidade e a vendagem dos
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BENETT_2024
sivo de dois andares com 30 metros de com- do palco para cantar junto à seleta pla-
primento. Em seus discos, Bessie e Ma teia do gramado, eu o vi se aproximar de
Rainey eram acompanhadas pelos melho- mim, microfone na mão, e iniciar minha
res músicos de jazz da época, como os trom- canção favorita dos irmãos Gershwin, So-
petistas Louis Armstrong e King Oliver. meone to watch over me (Alguém que cui-
A era do swing colocou em relevo as de de mim). Que mais podia eu pedir a
big bands e seus líderes solistas, como Deus, em quem passei até a acreditar
Glenn Miller, Benny Goodman e Tommy naquele momento fugaz?...
Dorsey. Mas eles não podiam prescindir
E
dos seus crooners. Frank Sinatra tinha m 1954, o epicentro da canção ame-
24 anos quando começou a cantar na ricana se deslocou para Memphis,
banda de Tommy Dorsey em novembro no Tennessee, no coração do Sul
de 1939. Gravou mais de quarenta can- dos Estados Unidos. Chofer de uma
ções no primeiro ano. Em maio de 1941, companhia de eletricidade, Elvis Aaron
já liderava as pesquisas de melhor can- Presley, de 18 anos, estacionou na hora
tor. Os shows das grandes orquestras se do almoço diante de uma pequena gra-
deslocaram dos auditórios das rádios para vadora, a Sun Records, e registrou duas
as mais espaçosas salas de cinema, como canções num acetato de 10 polegadas.
o Paramount Theatre, na Times Square, Pagou 4 dólares e saiu dali com o único
com seus 3 664 assentos. A estreia de Si- exemplar do primeiro disco de Elvis Pres-
natra ali, em dezembro de 1942, quase ley na mão. Era sábado, e a secretária que
abalou as estruturas do edifício. Nascia fez a gravação anotou o endereço de El-
o fenômeno das bobby soxers, garotas vis. Ela sempre ouvia Sam Phillips, o
adolescentes que usavam meias soquete dono da gravadora, dizer o tempo todo:
e eram fanáticas por Sinatra. Os agentes “Se eu encontrasse um branco com a
do cantor cobravam dele total interação musicalidade e o sentimento de um ne-
com as devotas, distribuindo autógrafos gro eu faria 1 bilhão de dólares!” Ela
e posando para fotos. Brotaram pelos Es- achou que Elvis era aquele homem. julho de 1971, todos aos 27 anos. E ban- sua lata de lixo em busca de material
tados Unidos milhares de fã-clubes do Das primeiras gravações para a Sun a das de som multifacetado como Jefferson inédito. Nos últimos anos, Weberman
cantor, que recebia toneladas de cartas, um contrato exclusivo com a rca foi um Airplane, Grateful Dead, Beach Boys, mentiu, trapaceou, chantageou e roubou
religiosamente respondidas por seus fun- pulo, e Elvis emplacou seu primeiro hit Creedence Clearwater Revival, The Band para conseguir os itens que hoje ostenta
cionários, sempre acompanhadas de uma em janeiro de 1956, com Heartbreak Ho- e muitas mais. em sua casa de Nova York no que cha-
foto autografada. tel. Sinatra brilhou nos anos da era do Um segundo Elvis – a antítese daque- mou de Os Arquivos de Dylan.
Sinatra explicava o seu sucesso: “É mui- rádio, Elvis projetou sua imagem na era la fúria rebelde – reencarnou para outra Em 7 de junho de 1988, Dylan come-
to simples: vivíamos os anos da guerra, da tevê. Em 1973 tornou-se o primeiro faixa de público – o de Las Vegas –, ba- çou sua Never Ending Tour, que prosse-
havia muita solidão e eu era o garoto de artista solo a ter um show transmitido lofo e suarento, com vistosos macacões guiria por trinta anos, com uma média de
cada drugstore da esquina, o garoto recru- pela televisão para várias partes do mun- brancos cravejados de lantejoulas, can- cem apresentações por ano. Seu show
tado para a guerra.” Na verdade, Sinatra do, Aloha from Hawaii. Sinatra era The tando baladas xaroposas como Love me de número 3 mil da turnê interminável
foi considerado incapaz para o serviço Voice, Elvis, The Pelvis, por causa da tender, até a morte súbita, de parada foi em 19 de abril de 2019 em Innsbruck,
militar por causa de um tímpano perfu- ginga sensual dos quadris. Ambos tam- cardíaca, aos 42 anos, na sua mansão na Áustria. Em 2020, as apresentações
rado ao nascer: bebê de 6,1 kg, teve de ser bém fizeram carreira no cinema: Sinatra de Memphis, chamada Graceland, com previstas para o Japão e os Estados Unidos
arrancado a fórceps do ventre da mãe. com mais de cinquenta filmes, Elvis com uma polifarmácia de catorze medica- foram canceladas devido à pandemia de
Nas fichas do Exército, constava, porém, trinta. Os filmes de Elvis eram geralmen- mentos no organismo. Elvis foi encontra- Covid-19. Em setembro de 2021, Dylan
que ele “não era aceitável do ponto de te veículos para divulgar a sua música, ao do desmaiado, sentado na privada com anunciou uma nova turnê, Rough and
vista psiquiátrico, por causa de sua insta- passo que Sinatra se impôs como um dos um livro sobre o Santo Sudário, e mor- Rowdy Ways World Wide Tour, que se es-
bilidade emocional”. De qualquer modo, galãs e grandes atores dramáticos de reu a caminho do hospital. tenderia de novembro de 2021 até 2024.
no front interno e participando de shows Hollywood. Embora não tivesse o physi- Nascido nas lonjuras de Duluth, Em 2016, o Prêmio Nobel de Litera-
para as tropas, Sinatra foi um grande que du rôle, sobrava-lhe esprit de corps. Minnesota, Robert Allen Zimmerman tura foi concedido a Bob Dylan “por ter
trunfo moral para o esforço de guerra. No auge da fama e da fortuna, Elvis adotou o nome artístico de Bob Dylan e criado novas expressões poéticas dentro
Desmistificando a suposta frieza do teve que abrir mão da carreira para um foi tentar a sorte tocando folk nos bares da grande tradição da canção america-
crítico de música, vai aqui um toque pes- gesto patriótico: foi prestar o serviço militar do Village, em Nova York. Conseguiu na”. Segundo o New York Times, Dylan,
soal. Na noite de 26 de janeiro de 1980, na Alemanha, onde conheceu uma ado- contrato com a Columbia aos 20 anos e aos 75 anos, “é o primeiro músico a rece-
sábado, vibrei como poucos ao assistir Si- lescente, Priscilla, filha de militar, que se gravou seu primeiro lp, Bob Dylan, uma ber a honraria, e sua premiação talvez
natra ao vivo pela primeira vez. Uma das tornaria sua única esposa oficial e lhe da- prensagem de 4,2 mil cópias com custo seja a escolha mais radical na história
condições que ele impôs era cantar para ria a única filha. Priscilla é retratada num de produção de 403 dólares. Nada acon- desde a criação do Nobel em 1901”. Ao
um público de não menos do que 60 mil filme recente de Sofia Coppola como teceu. Mas, em 1963, de repente, Dylan retomar sua turnê interminável no vi-
pessoas. Lá estavam 175 mil, comprimi- uma jovem que sofreu abuso psicológico. estourou nas paradas com o single Blo- gor dos 82 anos, Dylan – por sua gene-
das nas arquibancadas do Maracanã, mas Elvis reinou no período fugaz do win’ in the wind, que logo se tornou, ao rosidade artística – será candidato não
uma catástrofe climática ameaçava a rea- rock‘n’roll, quando rapazes e moças exe- lado de We shall overcome, um dos hinos só ao Livro dos Recordes, mas também
lização do espetáculo. Um temporal incle- cutavam as mais elaboradas acrobacias e do movimento pelos direitos civis. à canonização pelo Vaticano (aliás, cer-
mente impedira a passagem de som – os cambalhotas em suas danças, superados Discreto, Dylan não chegou a gerar ta vez ele deu um show para o papa
técnicos não queriam molhar os microfo- no início dos anos 1960 por ritmos mais uma dylanmania, mas seu lado intelectual João Paulo ii em Bolonha).
nes, os violinistas não queriam arruinar letárgicos como o twist, o hully-gully e provocou uma dylanologia. Em 1971,
M
seus Stradivarius –, e Sinatra avisara que, o calipso. Foi nesse vácuo que surgiu o publiquei um texto na revista Fatos & orei três anos na Inglaterra. Che-
se a chuva não parasse até as oito da noi- rock, música para ser ouvida, que culmi- Fotos que dizia o seguinte: guei em 1962 a uma Londres ain-
te, ele voltaria para o hotel. nou com a beatlemania em 1964. A nova De repente a dylanologia se transfor- da vitoriana, saí em 1965 da
O palco, montado no centro do gra- onda não se restringia à invasão britânica mou num pesadelo, começou a tomar Swinging London, uma cidade transfor-
mado, era cercado por 5 mil cadeiras re- dos Beatles, Stones, Yardbirds, Animals e forma física e a ameaçar a intimidade e mada por uma revolução cultural sem
servadas para os vips – entre os quais eu The Who, havia também a contrapartida a segurança do cantor. Ela se encarnou na precedentes, atingindo todas as áreas de
me incluía, como editor da revista Man- americana com a santíssima trindade dos figura de Alan Jules Weberman, 24 anos, atividade, do cinema (a nouvelle vague
chete. A sete minutos do prazo fatal, a J – Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Mor- cujas proezas incluem espionar de luneta britânica) ao teatro (com as peças dos an-
chuva parou e um céu coberto de estrelas rison –, mortos entre setembro de 1970 e a casa de Dylan e revirar toda manhã gry young men), da nova moda (com as
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pode estar sob a mira de um fã.” sua letra agressiva causou polêmica, ge-
rando até acusações de antissemitismo.
O
ferino Fellini dizia que o rock era James Hunter, da revista Rolling Stone,
um eletrodoméstico. Superado o escreveu que o cantor pop se mostrou
trauma da morte de Lennon, o rock aqui “mais combativo do que nunca”.
continuou sendo a trilha sonora da ju- Em 2010, um ano depois da morte de
ventude; até no Brasil ele brotaria nas Michael, uma estátua de bronze em ta-
principais cidades sob a sigla brock. No- manho natural, do escultor Ique Woits-
vas bandas (Nirvana, U2, Oasis) deixa- chah, foi erguida na pracinha que leva o
vam sua marca, grandes nomes rolavam seu nome e o mostra como se estivesse
em suas megaturnês (Rolling Stones, velando pela comunidade do morro.
Paul McCartney, Eric Clapton, Pink No mesmo ano, eu pagava o mico,
Floyd, Madonna) e multidões eram atraí- tentando imitar seu passinho famoso na
das por megaeventos como o Rock in homenagem global pela internet (o leitor
Rio, iniciado em 1985. pode ver no YouTube em Muggi’s tribute
Quem reinou neste período foi um to Michael Jackson, está lá até hoje e me
negro com a musicalidade e o sentimen- sobreviverá). E, ainda, por uma dessas
to de um negro que ganhou milhões anedotas do destino, eu me vi em 2022
com sua música: Michael Jackson. Ain- mergulhando fundo no complexo e tor-
da hoje, quinze anos depois de sua mor- turado universo do cantor, ao traduzir
te, seu álbum Thriller, de 1982, continua Moonwalk: a autobiografia, de Michael
sendo o mais vendido de todos os tem- Jackson (editora Estética Torta) – um
pos, com mais de 100 milhões de cópias. mistério que não entendi até hoje: por
Menino-prodígio numa família de sete que o livro, publicado em 1988, levou
irmãos e três irmãs, adestrados como fo- tanto tempo para chegar ao Brasil?
cas para o sucesso por um pai repressor,
O
Michael se tornou o megastar do seu canto da nossa época é rico em
lojas de Carnaby Street e a minissaia de da para trás. Seu fim já havia sido pon- tempo. Mas tinha problemas com a sua divas trágicas. Maria Callas na
Mary Quant) ao florescimento da im- tualmente decretado por John Lennon negritude, a ponto de submeter seu cor- ópera, Edith Piaf na chanson,
prensa satírica e, acima de tudo, o rock uma década antes na canção God, com po a várias mutações/mutilações até se Billie Holiday no jazz. No rock, quem
britânico. Conheci os Beatles em sua o refrão The dream is over e corroborado tornar uma nova criatura. Sua sexualida- interpretou o papel à perfeição foi a
versão juvenil de peões de xadrez, com pela entrevista à revista Rolling Stone de também era envolta em mistério, inglesa Amy Winehouse. Ela não só re-
seus terninhos e cabelos pajem. Lamen- proclamando que “O sonho acabou”. com acusações de abuso e pedofilia, en- senhou sua miséria nas canções auto-
tei perder os Beatles da explosão psicodé- Ironicamente, um dos episódios que carou até um estranho casamento de biográficas como a desfilou pelos palcos
lica pós-Sgt. Pepper’s – eu já tinha voltado contribuíram involuntariamente para dois anos com a filha única de Elvis e turnês do mundo, esquecendo as le-
ao Brasil para minha longa peregrinação essa virada teve um dedo dos Beatles: as Presley, Lisa Marie. tras, perdendo a voz e caindo incons-
por revistas como Manchete e Veja. chacinas em Los Angeles conhecidas Como Elvis, Michael Jackson morreu ciente no meio de muitos shows.
A geração de Woodstock viveu os como o Caso Tate-LaBianca, cometidas cedo, de parada cardíaca, em 2009, aos Posso dizer que vivi com Amy uma
anos da utopia. Por algum tempo, o Po- pelo bando de “hippies do mal”, coman- 50 anos, em Los Angeles, resultado de experiência sincrônica em sua turnê
der Jovem acreditou que seria capaz de dado por Charles Manson. Na noite de uma overdose dos medicamentos pro- brasileira no início de 2011. No dia 11 de
implantar a justiça social no mundo. Os 9 de agosto de 1969, a atriz Sharon Tate, pofol e benzodiazepina. Assolado por dí- janeiro, arrastei-me com o pé direito
movimentos Women’s Lib e o Black Po- mulher do cineasta Roman Polanski, vidas colossais, ele iniciaria dali a três quebrado até a remota hsbc Arena pa-
wer surgiam com força para combater o grávida de oito meses, três convidados e semanas uma megaturnê com cinquen- ra assistir ao seu segundo show no Rio.
machismo e o racismo. O portfólio ideo- o caseiro foram mortos a facadas em sua ta apresentações em Londres – mais de O pé inchado mal cabia num tênis lar-
lógico-cultural daqueles jovens vinha da casa pelos seguidores de Manson, que 1 milhão de ingressos esgotaram em me- go sem cadarço. Na verdade, eu não
leitura de livros: a resistência pacífica escreveram com sangue nas paredes slo- nos de duas horas. sabia que tinha quebrado o pé, era uma
aprendida em A desobediência civil, de gans incitando a um conflito racial. No Também guardo em minha memó- fratura por estresse só detectada depois
Henry David Thoreau; a viagem ao Orien- dia seguinte, também em Los Angeles, ria afetiva os detalhes dos três encontros por ressonância magnética. A dor lanci-
te guiada por Hermann Hesse, a abertu- foram mortos Leno e Rosemary LaBian- presenciais que tive com o ídolo, ao lon- nante fundia-se ao desânimo moral de
ra da mente por As portas da percepção, ca, segundo o mesmo modus operandi. go de três décadas. ver minha ídola reduzida a uma sombra
de Aldous Huxley (que inspirou o nome Manson interpretou equivocadamente a * Em 1974, como editor da revista da estrela que empolgara tantas pla-
do grupo The Doors), o feminismo por canção Helter skelter, do Álbum Branco Manchete, no Rio, recebi a visita de um teias. Amy conseguiu, milagrosa e ata-
O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, dos Beatles, como se fosse uma convo- insólito grupo de cinco adolescentes ne- balhoadamente, completar as cinco
e A mística feminina, de Betty Friedan, cação de uma guerra apocalíptica entre gros com vastas cabeleiras afro. Michael apresentações no Brasil; na última, no
a revolução socialista por Os condenados brancos e negros. Creditada à dupla destacava-se entre os irmãos Jackson. Anhembi, chegou a ser vaiada.
da terra, de Frantz Fanon. John Lennon e Paul McCartney, na ver- * Em 1984, viajei a convite da sua Quatro meses antes de morrer, Amy
O jovem dos anos 1960 queria ficar dade a canção foi composta totalmente gravadora até Jacksonville, na Flórida, gravou Body and soul com Tony Ben-
bem, em paz e amor com todos. Nas por Paul McCartney, que queria gravar para assistir a um dos primeiros shows da nett. Quase choro ao ver e rever esse
gerações seguintes a maioria queria se a música mais ruidosa e caótica do rock Victory Tour. Michael, no auge do suces- vídeo: Tony, com sua voz marcante, len-
dar bem, de preferência passando a per- – e conseguiu muito mais do que isso. so pós-Thriller como um dos maiores do a letra numa folha de papel (seria
na no próximo. (No Brasil viralizou um A prova mais visceral do fim do sonho vendedores de discos do planeta, dava diagnosticado depois com Alzheimer),
anúncio de uma marca de cigarro que viria em dezembro de 1980 com o assas- uma força para os irmãos, que o acom- Amy no seu melhor momento, entortan-
ficou conhecido como a Lei de Gerson, sinato de John Lennon pelo fã Mark panhavam. O espetáculo me impressio- do com inflexões de soul e jazz a canção
interpretado pelo craque campeão do David Chapman. Esse episódio radical nou pelo domínio de Michael sobre a número 1 no ranking dos standards.
tri, que ordenava “levar vantagem em veio destacar toda a promiscuidade e – plateia e por sua grandiosidade. A piro- Um fã postou no YouTube que “ela
tudo”.) A virada começou em 1980 com por que não? – a periculosidade da rela- tecnia que marcava cada final de apre- irradia vulnerabilidade o tempo todo,
o oposto dos hippies, os yuppies (young ção entre fã e ídolo. O laudo psiquiátrico sentação excedeu em muito à famosa parece cantar à beira do abismo, é a be-
urban professionals), carreiristas e mone- revelou que Chapman queria se suici- queima de fogos do Réveillon carioca. leza absoluta da artista genuína”. Não
taristas, magistralmente descritos por dar, mas não tinha coragem de fazê-lo. * Em 1996, a uma quadra de minha fazem mais divas trágicas como Amy
Tom Wolfe no romance A fogueira das Projetou-se então mentalmente na figu- casa em Botafogo, Michael Jackson gra- Winehouse. Vivemos o tempo de estre-
vaidades. Vieram juntos um novo século ra do ídolo e matou Lennon como se vou o clipe da canção They don’t care las saudáveis e saradas como Taylor
e um novo milênio, e a utopia foi deixa- estivesse matando a si mesmo. A partir about us (Eles não se importam conos- Swift. Um tempo de musas distópicas. J
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ADEUS ABRUPTO
Brent Fay Sikkema, um embaixador da arte brasileira
B
rent Fay Sikkema era copro- cia permanente no país. Sua preferência galerista uma espécie de embaixador trado morto, no dia 15 de janeiro, com
prietário da Sikkema Jenkins por artistas “cujos trabalhos combina- ideal para artistas brasileiros mundo afo- diversas facadas no corpo, em seu aparta-
& Co., uma importante gale- vam cores brilhantes e acessíveis com ra. Sua galeria representou, entre outros, mento no Rio de Janeiro. Tinha 75 anos.
ria de arte em Nova York. Ele temas substanciais como memória, raça, artistas como Maria Nepomuceno, Jac Um suspeito pelo assassinato foi preso,
vinha ao Brasil com frequên- e identidade” – conforme a descrição no Leirner, Vik Muniz e Luiz Zerbini, au- mas as motivações por trás do crime ain-
cia, e estava tentando estabelecer residên- obituário do New York Times – tornou o tor do retrato acima. Sikkema foi encon- da não foram esclarecidas. J
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O MAGO
Como César Aira, o excêntrico das letras argentinas, ocupou o centro da literatura latino-americana
N
o fim de 2002, Michael vessia que Rugendas e seu colega Robert A tratativa foi rápida e cordial, e Gaeb pas- para sete idiomas. (No Brasil, o livro saiu
Gaeb tinha acabado de abrir Krause tentam fazer dos Andes até Bue- sou a representá-lo fora da Argentina. em 2007, pela Editora Nova Fronteira,
sua agência literária. Com nos Aires, passando por Mendoza e pe- De barba feita, óculos e cabelos cheios, sob o título Um acontecimento na vida
29 anos, viajou de Berlim, los pampas argentinos. O protagonista Gaeb aparenta menos que seus 50 anos, e do pintor-viajante.) Os outros livros,
onde ainda vive, até Guada- está mobilizado pela ideia sincrética do falava comigo do México, onde há mais porém, demoraram a engatar. “Me dei
lajara, no México, para visitar uma das explorador Alexander von Humboldt – de duas décadas leu o escritor pela pri- conta que o problema fundamental de
principais feiras latino-americanas de de uma suposta “fisionomia da nature- meira vez. Naquele ano, encerrada a fei- promover a obra de César é que, se você
autores. Na primeira manhã do evento, za”, a fusão da arte e da ciência numa ra, com contrato já assinado, Gaeb viajou quer vender direitos numa feira, quando
caminhando a esmo pelos estandes, a totalidade ideal – e se convence de que a Xalapa para visitar aquele que, até havia você tem trinta minutos, o editor sempre
capa de um livro lhe chamou a atenção. só na vastidão da planície cisplatina con- pouco, era seu primeiro e único cliente te pergunta: ‘Sobre o que é o romance?’
Um homem sentado, de quepe e sobre- seguirá a inspiração necessária para seus latino-americano – o autor mexicano Ser- E, no caso de César, não dá para respon-
tudo, aparecia concentrado sob a copa retratos. Lá, sofre um acidente traumáti- gio Pitol (vencedor do Prêmio Miguel de der a essa pergunta.”
imensa de uma árvore, pintando uma co e é desfigurado. Dependente de mor- Cervantes de 2005 e falecido em 2018). Em 2007, Gaeb resolveu mudar a
tela na beira de um rio, em meio a ro - fina e sujeito a alucinações, envolve-se “O César é um gênio, Michael!”, Pitol abordagem. Produziu um folheto de
chas e uma vegetação densa. Atrás dele, numa batalha campal entre indígenas e disse, entusiasmado com a nova contrata- quarenta páginas, em inglês, e o intitu-
em pé, um peão de chapéu o observava, estancieros, acessando um nível mais ele- ção. Pitol e Aira tinham se conhecido al- lou How to read and publish César Aira
afastando um pouco o rosto como se vado de potência artística e adquirindo guns anos antes na Venezuela, também (Como ler e publicar César Aira). O fo-
tentasse enquadrar a pintura em curso. uma compreensão mais profunda das numa feira literária, a mesma que daria lheto tinha traduções de trechos de três
Filho de mãe mexicana e um pai ale- paisagens e do mundo ao redor. origem ao romance El congreso de litera- romances do autor, muito diferentes en-
mão arqueólogo que trabalhara no Mé- “É um livro mais convencional para os tura, livro de 1997 que hoje é um dos tre si, e um pequeno ensaio sobre a obra,
xico, Gaeb já tinha visto a pintura na padrões da literatura de César”, Gaeb dis- mais famosos do autor argentino. Nessa de mais ou menos três páginas, escrito
coleção de livros e catálogos de sua famí- se, quando conversamos no fim de no- história – um pouco mais representativa pelo próprio Gaeb. “Foi aí que começou.”
lia. Logo reconheceu que o pintor retra- vembro, por Zoom. De fato, a densidade do ouevre – um tradutor, espécie de alter
H
tado no quadro – de autoria de François das reflexões (sobre arte, viagens, arte feita ego de Aira, inventor maluco nas horas oje, Aira está traduzido em 37 idio-
Mathurin Adalbert, o Barão de Courcy em viagens) e o corre-corre da trama soa- vagas, vai à Venezuela para uma feira de mas. No Brasil, após traduções es-
– era Johann Moritz Rugendas, um ar- riam excessivos para qualquer um, menos autores e, entre outras coisas, tenta reatar porádicas por diferentes editoras, a
tista bávaro do século xix, conhecido para Aira, cujos pequenos livros surrealis- com um amor do passado e arregimentar Fósforo pretende lançar dezesseis de
por suas viagens pelo continente latino- tas mudam de atmosfera e às vezes até de um exército de clones do escritor Carlos seus livros nos próximos anos, sendo que
americano, seus retratos de montanhas gênero, de uma página a outra. Ainda as- Fuentes para dominar o mundo. Um erro os quatro primeiros – O vestido rosa,
e selvas tropicais e, no Brasil, sobretudo, sim, sem conhecer o resto da obra, Gaeb no processo de clonagem leva a uma ca- A prova, O congresso de literatura e Atos
pelas aquarelas da época da independên- se encantou pela fecundidade inventiva tástrofe com minhocas azuis gigantes. de caridade – devem sair já em março.
cia do país. O livro, Un episodio en la do autor. “Foi a primeira coisa que me im- Tomando emprestados muitos livros Há alguns anos, Patti Smith tocou
vida del pintor viajero, era assinado por pressionou. Essa variedade de imagina- que Pitol tinha, Gaeb se familiarizou num festival cultural na Dinamarca – e
César Aira, um autor argentino de quem ção, essa riqueza. E também a falta de com o universo aireano e passou a tentar o organizador do evento depois confiden-
Gaeb nunca ouvira falar. respeito pelas formas literárias. Ele faz o vendê-lo. “Em 2002 eu não tinha muita ciou a Gaeb que ela só tinha ido porque
À noite, no hotel, antes de sair para que quer, o que dá na telha.” Depois de ler ideia de como funcionava uma agência Aira estaria lá (durante o show, ela convo-
uma festa, Gaeb leu o romance, que era o romance naquela noite, Gaeb entrou literária.” Mesmo assim, em cerca de seis cou o público para fazer uma ode a ele).
curtinho, febrilmente. Terminou-o em em contato com Marcelo Uribe, o editor meses conseguiu vender os direitos de No início de outubro passado, o site inglês
duas horas. Na história, Aira relata a tra- do livro, que lhe deu o telefone do autor. Un episodio en la vida del pintor viajero de apostas Nicer Odds colocou o autor
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Aira em Sevilha, em 2021: El mago pode ser lido como alegoria da carreira do próprio escritor, que tem o dom da escrita, mas a quem as arraigadas convenções do ofício parecem inócuas
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Mas depois da pandemia, os bares e cafés Potter aos 11 anos e tudo bem, porque é
começaram a lotar muito. E tem a coisa feito para eles. Mas aí tem mais uns, sei
dos telefones. Se numa mesa vizinha, tem lá, oito Harry Potters e aos 20 anos não
duas pessoas conversando entre si, dá para estão lendo Sartre e Camus, continuam
ignorar. Mas se há só uma pessoa falando lendo Harry Potter!” A precocidade era
no telefone, é como se estivessem falan- estimulada não só pelas leituras, como
do com você. É horrível!” Ainda assim, também por uma educação pública ama-
Aira vai a bares e cafés com frequência, dora, em que as aulas eram dadas não
geralmente nos intervalos de poucas horas por professores especializados, mas por
ao dia quando sua mulher fica com uma voluntários com bibliotecas privadas gi-
cuidadora. Me mostrou uma nova desco- gantes. Havia médicos que se prestavam
berta que o estimulava nessas saídas: ca- a dar aulas de filosofia (“na época, os
dernos de anotação grandes e bons para a médicos eram humanistas”) e advogados
vista, com pautas imensas, que manuseou que se prestavam a dar aulas de história.
e folheou com carinho. “Não tive aquele tipo de educação bu-
Estávamos no seu escritório, um am- rocrática, em que o professor sabe mais.
biente escuro e abarrotado de pilhas e Era algo muito mais livre.”
estantes de livros. Aira insistiu para que Por volta dos 14 anos, Aira conheceu
eu me sentasse na cadeira em frente ao Arturo Carrera, um amigo que, como
seu computador e buscou uma de plásti- ele, também viria a se tornar um escritor
co em outro recinto. Sua voz trêmula, reconhecido nacionalmente. Aira era da
frequentemente baixa, às vezes soava prosa; Carrera da poesia. Em Pringles, os
como se estivera prestes a ficar embarga- amigos tentavam se manter atentos às
da pela emoção. Ao encontrá-lo na frente novidades do mundo literário e conseguir
do prédio, minha impressão foi de tê-lo revistas lançadas na capital. Em uma des-
sacado de algum estado de comoção. sas publicações – chamada Testigo – ha-
Mas depois a impressão se desfez: as os- via um concurso de poesia e de contos.
cilações de timbre pareciam ter mais a Carrera enviou alguns poemas e Aira um
como um dos favoritos ao Prêmio Nobel e levava um relógio simples no pulso. ver com uma suscetibilidade incomum conto. Os dois saíram vencedores.
de Literatura, pagando 13 para 1, taxa Era visível que a mudança fora recente. aos rumos de uma conversa. Aira drama- Naquela época, a maioria dos secun-
ligeiramente mais favorável do que a de A atmosfera do escritório ainda era a de ticamente imprime emoção ou ironia daristas promissores de Pringles seguia
candidatos mais perenes e menos mere- uma casa habitada e, no quarto princi- em suas falas, e não é raro ele reconside- com os estudos universitários em Bahía
cedores, como Haruki Murakami, que pal, rodeado de caixas de papelão cheias rar respostas ou deliberar em voz alta, Blanca. “Direito era o único curso de
pontuava 15 para 1, e Salman Rushdie, de livros, havia uma cama de casal feita. como se estivesse, de forma similar a seus graduação que eles não tinham”, disse
que aparecia pagando 19 para 1. Aira estava de barba, um detalhe que narradores, sempre entre um grande mo- Aira. Simulou aos pais estar interessado
“Já sei que, até minha morte, todos os me desconcertou por destoar do rosto afei- mento revelador ou um dar de ombros. na carreira de advocacia e se mudou para
meses de outubro, vou ter que suportar tado que aparece em suas fotos (avesso ao Outra característica da ficção aireana é a capital. Por dois anos cursou direito na
isso”, Aira me disse numa tarde em mea- ambiente político do meio literário e às a cronologia linear. Talvez porque suas Universidade de Buenos Aires (uba) e em
dos de novembro, quando nos encontra- intrigas da política nacional, o autor não tramas já sejam tão rocambolescas, ele seguida se transferiu para o departamen-
mos no seu escritório em Buenos Aires. fala com a imprensa argentina, mas dá não faz jogos temporais e costuma narrar to de letras. A nova especialidade era
Estava um pouco enfadado com a histe- entrevistas ocasionais a veículos estrangei- as coisas do início ao fim. “Estive justa- mais próxima de sua vocação, mas a es-
ria dos jornais sobre o eventual prêmio. ros e muitas imagens suas circulam na mente pensando nas minhas primeiras colha acadêmica pouco lhe importava.
Dita por qualquer outro escritor, a frase internet). O desconcerto tinha também memórias de infância, porque são da revo- “Eu queria vir por causa das galerias de
soaria teatral: um jeito obtuso de se van- outra razão: a barba sugeria uma pequena lução de 1955”, ele me disse, logo que nos arte, por causa dos cinemas.”
gloriar ou driblar o próprio narcisismo. variação, um vago desleixo na rotina, con- sentamos. Contou que naquele ano, Carrera tinha se mudado para Buenos
Mas, dada a obsessão com que Aira sem- tradizendo sua fama de repetidor manía- quando o general Juan Domingo Perón Aires por volta da mesma época e lá os
pre manteve uma rotina de escrita – ou co. Aira raríssimas vezes se desloca de caiu pela primeira vez, houve um bom- dois conheceram também Alejandra Pi-
uma rotina, pura e simplesmente –, é Flores, um bairro residencial de classes bardeio dos militares num córrego perto zarnik, hoje uma das mais consagradas
compreensível que a atenção em torno média e média baixa, hoje mais conheci- de Coronel Pringles, o pequeno municí- poetas latino-americanas do século xx.
do prêmio que negaram a Jorge Luis Bor- do por ser um polo têxtil para lojas de rou- pio no Sul da província de Buenos Aires “Alejandra era muito sociável. Hoje em
ges lhe incomode. Prestes a completar pas em áreas mais abastadas da cidade, onde nasceu, a 500 km da capital. “As dia se construiu esse mito da poeta mal-
75 anos, vivendo no mesmo bairro há mais como Palermo e Recoleta. Ali, quando tropas fiéis a Buenos Aires queriam sufo- dita e poeta da angústia por causa de seu
de meio século, Aira não parece ser o ti- ainda era um autor lido por um círculo car um motim em Bahía Blanca [outra diário. Na verdade, ela era muito alegre.
po de pessoa que aprecie eventos desestabi- diminuto e fervoroso de leitores, desenvol- cidade no Sul da província] e vieram os Saíamos para comer pizza.” Com a cola-
lizadores. “Mas às vezes a tal candidatura veu um método chamado la huida hacia aviões da Armada, cruzaram o céu de boração de Pizarnik, Aira e Carrera fun-
me serve. Por exemplo, agora moramos adelante (algo como “fuga para a frente”), Pringles. Eu tinha 6 anos, mas me lembro daram uma revista de poesia chamada El
num apartamento mais luxuoso, que está que consiste em escrever algumas horas muito bem dessa noite porque mandaram Cielo, que durou pouco (“como todas as
um pouco acima das minhas possibilida- ao dia e nunca voltar para revisar, até che- apagar todas as luzes do povoado e pedi- revistas de poesia”), mas que hoje pode
des”, contou, rindo. “E me alugaram por- gar ao fim de um relato. “Reviso muito ram que todos ficassem trancados em suas ter seus números acessados no site do
que viram que sou candidato ao Nobel.” mais do que antes”, me disse, casualmente casas. No dia seguinte, todo mundo foi ao Arquivo Histórico de Revistas Argenti-
O apartamento onde vive fica a ape- desmistificando o que talvez seja a infor- córrego ver as ruínas, o estrago das bom- nas (ahira.com.ar), um projeto de restau-
nas cinco quadras de seu escritório que, mação mais repetida no meio literário bas e se falava de um soldado morto. Em ração digital de publicações já extintas.
por sua vez, foi a casa na qual morou sobre ele. “Acho que fiquei mais exigente. todo o resto da minha infância fui com “É uma vergonha para mim. Mas eu tinha
durante mais de quarenta anos com seus Ou então estou escrevendo pior do que minha bicicleta até o córrego em busca do 19, 20 anos. Foi um pecado de juventude.”
dois filhos e sua mulher, a poeta e estu- antes. Mas reviso muito mais.” tal soldado morto e nunca o encontrei.” Os poemas de Carrera que vence-
diosa da literatura japonesa Liliana Pon- Os romances eram – e às vezes ainda Em Pringles havia apenas um cinema ram o concurso de Testigo foram publi-
ce. A mudança recente se deu porque são – escritos em bares, cafés e até em lojas e a televisão ainda não tinha entrado cados. O conto de Aira, não. A revista
Ponce sofre de uma doença que afeta de fast-food do bairro, como McDonald’s com força nos lares. Mas o povoadinho acabou antes que o texto pudesse sair.
seus movimentos e o novo prédio tem ou Pumper Nic, uma cadeia portenha já tinha duas bibliotecas públicas abastadas. Mas um dos jurados do prêmio, Abelar-
elevador. Na tarde em que me recebeu extinta, famosa nas décadas de 1970 e Sem acesso a best-sellers, os habitantes do Arias – romancista famoso nos anos
no escritório, Aira vestia uma camisa xa- 1980, cuja logomarca inicial era uma imi- eram obrigados a recorrer aos clássicos 1960 e 1970, vencedor do Prêmio Na-
drez de manga curta, calça jeans, tênis, tação clara do Burger King. “Começou da literatura para fugir do tédio. “Ainda cional de Literatura em 1972, honraria
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E
screver todo dia sem revisar até che- era difícil entender todos os detalhes do ta icônica azul, com a frase Yo tengo Sida rém, com seu bigodinho e olhar alarma-
gar ao fim de um relato gera uma imbróglio. A certa altura, Strafacce, um (Eu tenho Aids) em letras coloridas, assi- do, Aira, que usa óculos de grau e um
quantidade obscena de livros. Entre sujeito intenso e em geral amável, se nada pelo artista experimental Roberto corte de cabelo curto, tem a aparência
romances, coletâneas de ensaios e outras exasperou com minha lentidão cognitiva Jacoby; um desenho de uma amazona em inconspícua de um funcionário público.
miscelâneas, ninguém que encontrei em e tomou a lapiseira da minha mão. “Eu cima de uma espécie de lobo, com o pôr A honraria de editores “oficiais” deve
Buenos Aires se arriscou a cravar com anoto para você. El hornero. É aquele do sol ao fundo. Havia também dois qua- inspirar algum orgulho em Ríos e Gara-
exatidão quantos livros Aira já publicou. passarinho que faz o ninho”, disse, refe- dros pintados pelo próprio Aira. mona, porque não são poucas as edito-
ESPECIAL
AS UTOPIAS
E A URGÊNCIA
DE SONHAR
A interseção
entre desejo,
memória, discurso
ano 27 • fevereiro 2024 • edição 302 • R$ 34,50 • revistacult.com.br e ação política
ENTREVISTA
MICHAEL
LÖWY
Sociólogo trata das
sutilezas e nuances
desconhecidas
na obra de Marx
Nas bancas,
livrarias e em
cultloja.com.br
cultrevista revistacult
DOSSIÊ
INVEJA
NA FILOSOFIA, RELIGIÃO, SOCIEDADE, HISTÓRIA, PSICANÁLISE E CULTURA
revistacult.com.br
mais de vinte anos, com mais ou menos uma referência inescapável.” Aira foi o
um romance por ano saindo pelo selo. primeiro autor publicado não apenas da
Mas não era uma relação exclusiva. De Beatriz Viterbo, mas também da Man-
memória, Contreras tentou puxar as ou- salva e Blatt & Ríos, efetivamente dando
tras pequenas editoras pelas quais Aira o pontapé inicial a essas editoras. Riveiro
já publicou: “El Broche, Bajolaluna acabou alterando o rumo de sua tese, ar-
Nueva, Eloísa Cartonera, Simurg, Bel- gumentando que ele havia rompido com
leza y Felicidad... tem um monte.” as formas tradicionais de se fazer literatu-
A década de 1990, a era de Menem, da ra. Recentemente, ela escreveu o prólogo
paridade entre o peso e o dólar, privilegia- de La ola que lee (A onda que lê), uma
va importações e empresas com escala. coletânea de resenhas do autor; e hoje,
Editoras menores como a Beatriz Viterbo junto com Strafacce, está entre o grupo
eram a exceção. “Hoje tem mais editoras seleto de pessoas que leram toda a obra.
independentes muito boas, que estão fa- Quando Gaeb notou a capa que retra-
zendo coisas bem interessantes, mas por tava Rugendas, em Guadalajara, em 2002,
anos não foi assim. O meio literário era Aira, portanto, já começava a ocupar sua
dominado por multinacionais”, disse Ga- posição central nas margens da cultura
ramona. “Começou a mudar com a crise – uma aparente incongruência semânti-
de 2001. Já não dava para importar livros ca que qualquer leitor seu intuitivamente
em dólares porque era caro, o peso argen- compreende e um paradoxo crucial para
tino tinha se desvalorizado muito. E os entender seu apelo. “Com os prêmios, ele
livreiros começaram então a prestar aten- saiu dessa espécie de clandestinidade, na
ção nas produções locais para poder en- qual permaneceu por muitos anos e que
cher as mesas de novidades. E aí teve uma de alguma forma ainda perdura”, me dis-
espécie de boom editorial.” Depois de se o ficcionista e crítico Alan Pauls, de
passar anos privilegiando os lançamentos seu escritório em Berlim, numa conversa
espanhóis, os livreiros finalmente tinham por Zoom. “Porque uma das coisas mais
olhos para as produções argentinas. interessantes do Aira é isso. Ele é um es-
ras pelas quais Aira já publicou. Sua La princesa primavera, romance que Aira publicou alguns poucos livros na critor que existe em campos diferentes,
obra numerosa está descentralizada em Aira me confessou ser o seu preferido en- década de 1980 e chegou a ser traduzido em níveis distintos. Por um lado, ele tem
dezenas de casas, a grande maioria delas tre todos – “porque foi o que mais chegou pontualmente na França, a pedido do bastante popularidade. E, por outro, se-
minúsculas, o que faz dele um autor perto do conto de fadas” –, foi lançado editor Maurice Nadeau, conhecido por gue sendo um escritor de nicho, um escri-
ubíquo e ao mesmo tempo elusivo. Uma originalmente no México. “Foi o primeiro sua ligação com o surrealismo. Mas, se- tor cult. Seguimos pensando nele como
controvérsia como a do El hornero não romance que ele publicou e não saiu aqui, gundo Contreras, foi a partir de Os fan- um escritor de vanguarda, um fabricante
é difícil de entender nesse contexto. nem circulava na Argentina”, me contou tasmas, romance publicado em 1990, de objetos muito sofisticados. O lugar de
Aira deve ser um dos poucos escrito- Sandra Contreras (o livro chegaria anos que Aira acelerou sua produção e falou Aira sempre foi o do excêntrico. No senti-
res no mundo, talvez o único, a vender depois por outro selo). Professora da Uni- mais explicitamente de uma nova fase, do mais literal da palavra. Alguém que
25 mil exemplares de dado título (o nú- versidade Nacional de Rosario e pesquisa- “o início da publicação periódica de suas ocupa o centro a seu pesar e não porque
mero atingido, segundo Gaeb, por Diez dora do Conselho Nacional de Pesquisas novelas y novelitas”. Quando o iceberg o tenha buscado.”
novelas de César Aira, publicado na Es- Científicas e Técnicas (Conicet, na sigla da era Menem começou a derreter, Aira
A
panha pela Literatura Random House) em espanhol), Contreras é ex-sócia da se viu numa posição ideal para ser tanto forte presença cultural de Aira hoje
e lançar outros em tiragens muito me- Beatriz Viterbo, uma das primeiras casas instigador como beneficiário da peque- disfarça o quão atravancado foi o
nores, às vezes dificílimas de achar. editorais independentes a publicar o autor. na revolução descrita por Garamona. início de sua carreira. “Durante
Das editoras pequenas na Argentina, Leu Aira pela primeira vez no fim dos María Belén Riveiro, docente de so- muitos anos, isso aqui foi a única prova de
ele nunca cobrou royalties ou adianta- anos 1980. Em 1990, o peronista neolibe- ciologia da uba, também pesquisadora que eu era um escritor”, disse ele, mos-
mentos. “À Garamona e à Damián eu ral Carlos Menem assumiu a Presidência. do Conicet, começou seu doutorado por trando um punhado de páginas amarela-
dou meus livros de presente, não cobro”, “Eu me lembro de ser uma década, um volta de 2010, interessada nos artistas per- das, um miolo de livro sem capa. Sua voz
disse. “Esse foi o acordo que fiz com Mi- tempo em que tudo parecia congelado, formáticos do underground argentino da oscilou e fiquei em dúvida se dessa vez
chael. Eu não me meto no mundo. E ele gélido.” Contreras e uma amiga, Adriana década de 1980. Eram figuras marginais, estava de fato comovido. Em suas mãos
não se mete na Argentina. Na Argentina Astutti, passavam os dias fechadas no como Batato Barea, que desafiavam as havia uma cópia de Moreira, considerado
é tudo grátis.” Para Michael Gaeb, o mé- quarto estudando. Um dia, para sair um normas do bom gosto e não tinham a por uns como seu primeiro romance pu-
todo é às vezes exasperador. Podem se pouco da vida acadêmica, resolveram lan- chancela do establishment. Queria en- blicado e, por outros, como o segundo.
passar meses até ele ser avisado de dois, çar uma editora. “Não sei bem na verdade contrar movimentos análogos na literatu- Enquanto conversávamos, tocava ao fun-
três livros que saíram na Argentina. “Eu por quê. A juventude é destemida.” Con- ra. “Naquele momento circulava a noção do uma combinação atmosférica de acor-
ligo para ele e falo: ‘César, poxa, me man- treras tinha 26 anos. Com a ajuda de Su- da Nueva Narrativa Argentina”, me disse des dissonantes e notas de piano que aos
de os livros!’” Por muito tempo – pelo sana Zanetti, uma crítica literária amiga e Riveiro, durante um café num restauran- poucos se esvaíam. “Só ouço Morton Feld-
menos até seus 50 e poucos anos –, Aira admiradora de Aira, elas conseguiram o te de Palermo, próximo ao prédio de La man hoje em dia”, disse Aira, quando lhe
viveu apenas de suas traduções e do arren- telefone do autor. Ligaram para ele e se Rural, onde todo ano, entre diversos ou- perguntei quem era o compositor. Só en-
damento de uma propriedade rural perto encontraram para explicar o projeto. tros eventos, ocorre a feira de livros de tendi o sentido literal da frase quando
de Pringles, herança do seu avô materno, “Lembro que ele ficou encantado com o Buenos Aires. “Esse é um termo que se pouco depois ele se retratou, dizendo que
um comerciante de máquinas agrícolas. nome. Quando lhe contei que a editora se referia a um grupo de escritores que ha- recentemente abrira uma exceção para
A propriedade fica em El Pensamiento, chamava Beatriz Viterbo, os olhos dele viam começado a publicar seus livros por ouvir Now and then, a música nova dos
um povoadinho cujo nome foi, segundo brilharam.” (Beatriz Viterbo é a mulher volta de 2000, 2001, em editoras inde- Beatles, lançada graças à inteligência arti-
Aira, inspirado nos acessos de depressão da por quem o narrador de O Aleph, de Jorge pendentes. Alguns publicavam em edito- ficial. (Gaeb, seu agente, me diria depois:
esposa francesa de um latifundiário que, Luis Borges, é apaixonado.) “Quinze dias ras que eles mesmos haviam fundado. “Ele é incapaz de jogar conversa fora.”)
quando indagada sobre seu humor, res- depois, nos enviou Copi, o seu primeiro Algumas dessas existem até hoje, como Depois de subir ao escritório da editora
pondia: C’est la pensée (É o pensamento). livro de ensaios, que compilava algumas Mansalva e Blatt & Ríos.” Galerna em 1969, e num gesto meio im-
O nome também é o título de um livro palestras dadas em 1988. E esse foi o nosso “Eu queria explicar o surgimento des- pulsivo pedir seu manuscrito de volta,
mais autobiográfico que deve sair pela primeiro livro também.” sas editoras em termos sociológicos”, con- demorou alguns anos até Aira voltar a ter
Random House na Espanha, em 2025 Copi saiu em 1991; El llanto, um ro- tinuou Riveiro. “E aí notei que todos os uma chance de publicar. Moreira era para
(das editoras grandes, mesmo na Argenti- mance, foi publicado logo em seguida, textos que eu vinha lendo [sobre o perío- ter saído em 1975, o ano que consta na
na, ele obviamente cobra royalties). em 1992. Aira passou a visitar Rosario e do], fossem de teoria literária, resenhas ficha catalográfica do miolo. O responsá-
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(“antes ele tinha uma editora com um teriormente conhecido. Uma identidade,
sócio que lhe roubou e depois disso jurou nas palavras de Pauls, quando conversa-
que sempre tocaria tudo sozinho”). Em mos, do escritor que “contrabandeia toda
1976, houve outro golpe militar na Argen- uma região do saber, de pensamento filo-
tina. “O livro estava nesse estado aqui sófico, e de algum modo o converte
quando aconteceu. Horacio era militante numa ficção bem Pulp fiction, uma mis-
político e teve que ir embora, desapare- tura aberrante para a literatura argentina
ceu, foi para o Uruguai.” Os exemplares, dos anos 1980”. Mas ali a máquina airea-
ainda sem capa, ficaram encalhados num na parece ainda estar pegando no tranco:
depósito. Anos mais tarde, Achával voltou o motor funciona, mas a fumaça exalada
ao país e finalizou a capa. O livro foi lan- é às vezes insalubre. Eis o encontro inicial
çado oficialmente em dezembro de 1981, entre Julián Andrade, o gaucho do cavalo
um pouco depois de Ema, la cautiva, que amarelo, e Paspartú, outro gaucho:
saiu em novembro de 1981 por outra edi- Os temas que surgiam eram tétricos e
tora e hoje disputa com Moreira a alcu- incoerentes. O oriente, recém-lavado, ficou
nha de estreia oficial. vermelho. Os amigos foram arrebatados
Strafacce, porém, contou uma histó- por um triste silêncio, pois o dia sempre os
ria diferente. “Moreira foi impresso em fazia lembrar de uma morte amada...
junho de 1975. Acabou o dinheiro e não Paspartú enterrou seu pé, como um te-
deu para fazer a capa porque no mesmo souro, embaixo das raízes de um eucalipto.
mês teve uma corrida bancária e cam- Um jato de bile subiu à sua cabeça e disse:
bial aqui na Argentina, o Rodrigazo”, “Falo como sou. Um fantasma recorre
disse, referindo-se ao plano de ajuste aos pampas!... traçando diagramas. Seria
fiscal anunciado no dia 4 de junho de Sherlock Holmes? É alguma imagem que
1975 por Celestino Rodrigo, então mi- conhecemos? Se recorre aos pampas: não
nistro de Economia do governo de Ma- poderíamos reconstruir sua história, fa-
ría Estela Martínez de Perón, a Isabelita, zermo-nos presente nela, atuarmos em
terceira mulher de Perón. “De um dia seus teatros? É uma construção teórica?
para o outro o peso se desvalorizou O que o anima? vencer o público de suas habilidades. desto (a modéstia, fingida ou não, é outra
1 000%.” Quando lhe relatei a história do “Você há de saber, Julián, que todas Escreve o narrador: “Talvez, paradoxal- convenção do ofício). Sobre o manuscri-
exílio de Achával que Aira me contara, essas perguntas não guardam relação mente, a vantagem que tinha jogara con- to que pediu de volta à editora Galerna,
Strafacce disse, com um tom cético e ao causal com nada que já dissemos. Tam- tra ele e o condenava à mediocridade. Se em 1969, disse: “Era melhor que qual-
mesmo tempo afetuoso: “Sim, sim... pouco com o que viremos a dizer. Se trata precisava tirar um coelho da cartola, o quer coisa que se publicava na época.”
Mas não foi por isso a demora da capa. apenas de um deslocamento de matéria.” fazia sem recursos, fundos falsos, espe- Num café a algumas quadras de seu
[O editor] não tinha dinheiro para pa- Essa autoconsciência pesada, a an- lhos.” Sem paciência para o teatro da escritório, ele criticou alguns de seus con-
gar. Ele [Aira] sabe bem disso.” siedade da piscadela metaficcional, está magia, Chans se limita a tirar panos de temporâneos com uma calma desafetada.
Aira tirara o exemplar de uma estante ausente em livros posteriores, a tal pon- copos de vinho e coisas do tipo. Mas, aos Estávamos num salão amplo, cheio de
no seu escritório onde havia vários outros to que uma das originalidades de Aira é 50 anos, quer se emancipar de seus me- mesas espaçosas com sofás confortáveis,
exemplares, a maioria deles com capa. justamente resgatar a vanguarda de seu dos. “Por acaso um homem que havia onde Aira costuma escrever de vez em
Conseguir um Moreira hoje não é fácil solipsismo, tornando-a divertida (para recebido o dom de voar, ia passar a vida quando, e que, conforme ele temia, exi-
– no site do Mercado Libre Argentina, em todos, e não só para iniciados). Sua pro- toda sem voar por medo de chamar a giu uma espera até conseguirmos lugar.
meados de dezembro, havia um exemplar sa é límpida e convidativa; e sua mão atenção? Era absurdo, lamentável, patéti- De Roberto Bolaño – um admirador cujo
à venda por cerca de 1,2 mil dólares (cer- para contar histórias aparece nitida- co. De fato, ele podia voar, se quisesse; texto elogioso serviu de prefácio à edição
ca de 6 mil reais). Outros sites não exi- mente mesmo quando ele troca uma nunca o tinha feito, porque sofria de ver- inglesa de Un episodio en la vida del pin-
biam preços muito mais em conta. O valor história por outra no meio do caminho. tigem e, também, havia de reconhecer, tor viajero – confessou ter lido apenas um
vem subindo há alguns anos e certamen- Eis o início de El mago, publicado qua- para não chamar a atenção.” romance, o qual lhe pareceu terrível.
te disparará caso Aira ganhe o Nobel. Um se exatamente vinte anos depois: O público aplaude, mas ignora que “Algo sobre uns assassinatos no México”,
repórter do jornal diário Clarín certa vez Em março deste ano o mago argentino o protagonista sabe tão pouco quanto disse (possivelmente se referindo a um
chamou o livro de o “bitcoin dos cole- Hans Chans (seu nome verdadeiro era eles sobre como um ilusionista conven- trecho de 2666, obra póstuma do autor
cionadores”. Na capa que por anos ficou Pedro María Gregorini) participou de cional age. O narrador explica: chileno). Sobre Juan José Saer, foi mais
inacabada, há uma figura monstruosa, uma convenção de ilusionistas no Pana- O espetáculo da magia tinha suas leis, ambíguo: gosta de algumas coisas, outras
soturna, montada em um cavalo amarelo. má; o evento, tal como explicava o convite [ele] não podia fazer as paredes e o teto do não. Contou que, no início da década de
Embaixo do desenho, a primeira frase do e o folheto promocional, era uma reunião teatro sumirem, ou fazer flutuar sob a ca- 1990, Saer se aproximou dele por causa
romance aparece em destaque: Un día, regional de profissionais prestigiosos, beça dos espectadores hipopótamos de ní- de uma resenha que escrevera sobre sua
de madrugada, por las lomas inmóviles del uma preparação para o grande congresso quel em tamanho natural, ou transformar obra na revista El Porteño alguns anos
Pensamiento bajaba montado en potro mundial do ano seguinte, que era celebra- uma senhora do público num Volkswa- antes. Saer lhe disse que era a melhor coi-
amarillo un horrible gaucho (Um dia, de do a cada dez anos e desta vez aconteceria gen... quer dizer, até podia, mas corria o sa que já tinham escrito sobre ele. Quan-
madrugada, pelas colinas imóveis de Pen- em Hong Kong. O anterior tinha sido em risco de assustar, ou despertar curiosidades do um pouco depois Aira viajou a Paris,
samento* surgia montado num potro Chicago e ele não tinha ido. Agora pla- incontroláveis, e acabar matando a sua onde Saer vivia, ficaram amigos. “Aí eu
amarelo um gaúcho horrível.) nejava não apenas participar, mas tam- galinha dos ovos de ouro, tão laboriosa- comecei a ter leitores, a ver resenhas sobre
A frase dá um gosto do tipo de mistura bém estabelecer-se de vez como o Melhor mente criada ao longo de vinte anos. mim”, disse Aira. “E disso ele não gostou
que o romance encampa. Evocando Juan Mago do Mundo. A ideia não era dispa- nada. Não, não... começou a ver que eu
N
Moreira, herói folclórico das brigas de ratada e nem megalomaníaca; tinha um ão seria disparatado ler El mago podia ser uma ameaça.” Segundo Aira,
faca nos pampas argentinos, o livro narra fundamento tão razoável como curioso: como uma alegoria para a carreira Saer morreu amargurado por não ter ga-
uma pantomima gauchesca, atravessada Hans Chans era um mago de verdade. do próprio Aira: de alguém que nhado o Prêmio Cervantes. “Os prêmios
por alusões filosóficas e imagens oníricas Aira leva essa premissa mágica a sério, tem o dom da escrita, mas a quem as con- espanhóis são todos arranjados”, disse.
– ao mesmo tempo homenagem e paró- extraindo do dilema um relato cômico e venções mais arraigadas do ofício pare- Fez uma breve pausa e emendou: “Aqui
dia de ancestrais. Já há, em Moreira, a – na exploração das relações complexas cem inócuas. Há alguma cláusula mais também, provavelmente. Não sei...”
entre ser e parecer – densamente filosófi- inegociável na Constituição da Literatu- A crítica mais famosa que Aira já fez a
* Na versão original em espanhol, “El Pensamiento” co. Hans Chans tem o dom, mas não a ra do que revisar? Assim como Hans um contemporâneo, porém, foi a Ricardo
pode referir-se tanto ao substantivo abstrato quanto
ao povoado próximo de onde Aira nasceu e passou
vocação para ser ilusionista. É indolente Chans, o autor sabe de seu dom. Aira é Piglia. Em 1981, ele escreveu um ensaio
a infância. demais para se dedicar ao ofício e con- afável e gentil, mas está longe de ser mo- para a revista acadêmica Vigencia, recen-
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encontramos uma vez em Curitiba”, dis- qual Aira também publicou, e dali come-
se, sobre Noll. “Ele era tão desanimado çaram uma relação de amizade.
que achei que nunca leria esse homem.” “Damián acha que existem critérios,
Aira arregalou os olhos, recapitulando mas não tem muito, não”, disse Aira. Da
seu equívoco, e começou a rir. mesma forma, ele recusou grandes teori-
O primeiro parágrafo de Novela ar- zações sobre sua decisão de dar livros de
gentina: nada más que una idea ainda se graça e publicar majoritariamente em edi-
sustenta como pedra de toque da litera- toras pequenas. As explicações sociológi-
tura aireana, que resiste não só ao que cas e políticas relacionadas a esses gestos
ele chama do “romance realista chato”, sempre existiram, mas ficaram mais pre-
mas até a variações um pouco mais ou- sentes desde que Aira se consolidou como
sadas dessa forma, como o romance de o grande autor nacional. “A forma de pu-
ideias praticado em Respiração artifi- blicar é parte de sua poética, de sua resis-
cial. Os livros de Aira rompem até o tência ao capitalismo editorial, sua parte
nexo causal que esperamos de uma his- punk”, diz Gaeb. Sandra Contreras clas-
tória, um efeito que geralmente vem sifica a hiperprodução de livrinhos em
acompanhado de certo choque porque editoras pequenas como uma decisão es-
o autor gera mundos convincentes em tética. “Algo como: basta que um relato
apenas duas ou três páginas. Em Yo era seja imaginado para que seja necessário
una chica moderna, por exemplo, depois publicá-lo. Há também o fascínio pelo li-
de uma imersão completa no vago té- vro como objeto único.” E Pauls interpre-
dio de duas amigas passando a noite nu- ta o ato como um jeito vanguardista de
ma boate, nos vemos diante de um aborto pensar. “Se o tipo de literatura que faço
forçado, onde quantidades tarantinescas nunca vai ter centenas de milhares de lei-
de sangue jorram e de onde sai um feto tores, o que acontece se inundo o mercado
malandro chamado El Gauchito. de livros? Essa ideia, por disparatada que
Essa forma – a combinação peculiar soe, é uma ideia de escritor. E no caso do
entre uma narração meio inocente e fe- Aira é uma ideia muito boa e eficaz. Nes-
temente desenterrado na coleção La ola O romance argentino atual, quem du- cunda (“como os irmãos Grimm”, Pauls se sentido, ele é um pouco descendente de
que lee. Nele, diz que Respiração artificial vida, é uma espécie raquítica e malfada- sugeriu) e momentos surrealistas por ve- Marcel Duchamp.”
é “o pior romance de sua geração”. No da. Em linhas gerais, o que define uma zes grotescos – se cristalizou desde muito A explicação do próprio Aira para ter
café, perguntei sobre o livro, que me pa- produção novelística pobre é o mau uso, cedo. Ainda que Moreira não esteja à al- enveredado para o lado de editoras meno-
rece incrível. “Quando eu li gostei tam- o uso oportunista, em bruto, do material tura dos seus livros seguintes, não há um res, porém, é mais singela. Quando San-
bém”, respondeu, surpreendendo-me um mítico-social disponível. Em outras pala- senso claro de progressão na trajetória de dra Contreras o procurou no início da
pouco. “Mas depois pensando melhor, vras, os sentidos sobre os quais vive uma Aira. Não existem saltos evolutivos, obras- década de 1990 para começar a editora
não. É um desses romances que deveria sociedade em dado momento histórico. primas ou arcos de aprendizagem. A des- Beatriz Viterbo, ele disse que daria o livro
vir com índice temático. Índice de nomes A transposição literária de uma realidade crição de Patti Smith sobre a obra de Aira com “a condição de que publicassem o
– Barthes, Sartre, Camus...” Seu tom não exige a presença de uma paixão muito – “fragmentos de um interconectado e que eu queria publicar na extensão que
era tão crítico quanto o da resenha de dé- precisa: a da literatura. E um exame rá- infinito universo em expansão” – de re- eu quisesse publicar. Porque as editoras
cadas atrás. Elogiou bastante um ciclo de pido e provisório, nada exaustivo, dos lance parece inócua, mas no fim tem grandes viam qualquer coisa com menos
palestras sobre Borges que Piglia deu em romancistas argentinos não versados re- certo valor descritivo, porque a essência de duzentas páginas com desconfiança”.
2013 para a tevê pública, durante o gover- vela uma ausência completa dessa pai- do universo de fato está ali desde o início, Entre seus amigos e editores, só Strafacce
no de Cristina Kirchner. Garamona, por xão e seu epifenômeno, o talento. na origem – o resto é expansão, prolifera- deu uma resposta similar: “Ele gosta de
sua vez, disse que, pouco após a fundação Nos parágrafos seguintes, Aira, que ção. Talvez por isso, nenhum dos leitores escrever e vai bem nisso, simples assim.”
da editora Mansalva, Piglia foi à sua livra- nem sequer tinha publicado um roman- com os quais conversei souberam apontar Quando perguntei a Aira se ele era
ria. Garamona ofereceu ao autor que es- ce àquela altura, critica, de forma rápida um livro preferido. Todos se defendiam editado hoje em dia, primeiro disse que
colhesse um livro do catálogo. Piglia e impiedosa, uma série de livros e auto- da pergunta, como se corressem o risco “ninguém revisa nada”. Depois concedeu
escolheu El pequeño monge budista, um res – nomes como Luisa Valenzuela, de serem reprovados num exame. Desde que Damián Ríos às vezes fazia um ou
romance de Aira. “Não sei se fez para Carlos Arcidiácono, Ramón Plaza – to- os anos 1980, Aira estava ali. Foi o mundo outro comentário. Ríos corroborou a his-
agradar, mas o fato é que foi esse o livro dos agora mais ou menos esquecidos, que demorou a perceber. tória, mas não soube dizer bem qual era
que ele escolheu.” com a exceção de Piglia, que é ironica- a natureza dos seus comentários e deixou
A
Pauls conecta as críticas do início de mente o último criticado do texto. ira me disse que tem duas noveli- claro que não se tratava de nada estrutu-
carreira à ambição que Aira tinha de re- Para Aira, a literatura de seu país não tas novas prontas e que planeja dar ral (uma possibilidade que Aira, por sua
configurar o romance argentino. “Quan- é a maior do continente. Esse título fica um dos romancezinhos a Damián vez, refutou quase como ofensa). Contre-
do ele surge no meio literário, sabe com a literatura brasileira. Em Desdeñosa Ríos e o outro a Francisco Garamona. ras disse que em sua época no máximo
perfeitamente quais são os escritores ignorancia por la literatura del Brasil, ou- “E agora ando pensando, porque tem corrigia algum erro de digitação. E Gara-
com quem tem que brigar, porque são tra resenha da mesma coleção, ele escre- um que saiu melhor que o outro, mais mona riu da noção de editar ou revisar
os únicos dois (Saer e Piglia) que de al- ve: “À autonomia da rigidez hispânica de imaginativo. Para quem será que vou um texto do autor. “Ele escreve desde que
gum modo podem rivalizar com ele.” nossos países, o Brasil opõe uma retórica, dar esse?”, perguntou, rindo. é adolescente sem parar e tem uma maes-
Para Pauls, Aira perturbou o paradigma de raiz literária, baseada em transforma- “No caso das editoras grandes e das tria da forma e do conteúdo que no fim
de certa literatura progressista argenti- ções, maleável, mestiça, com sutilezas menores, ele escolhe com muito cuida- não sobra muito que fazer. É pegar e sim-
na, uma literatura de esquerda, muito imperiais, africanas, cortesãs, indígenas, do”, me disse Ríos, quando nos encontra- plesmente fazer uma boa capa, um dese-
masculina e politicamente comprome- europeias.” Aira critica Borges por não ter mos na sede de sua editora, a Blatt & nho bonito, corrigir duas ou três erratas.”
tida. “Algo que essa escola literária não se interessado por autores brasileiros – “e Ríos. “Eu não consegui decifrar qual é o Na Espanha, Aira era editado por
suportava, por exemplo, era certo traba- alguns estavam feitos para ele, como os critério, mas ele tem um. Ele tem crité- Claudio López Lamadrid (1960-2019),
lho com a frivolidade, com o banal, prodigiosos adolescentes românticos – Ál- rios para cada livro que dá às editoras.” diretor editorial do braço espanhol da
com o que é superficial.” vares de Azevedo, por exemplo – para não Ríos tem 54 anos, é natural da província Penguin Random House, que foi também
A resenha de 1981 na qual Aira men- falar de Cruz e Sousa ou Machado de de Entre Ríos e migrou para Buenos Ai- editor de Gabriel García Márquez, Javier
ciona Piglia é de fato um ataque mais Assis”, este último bem superior a Henry res no início da década de 2000. Tam- Cercas e outros autores ilustres da literatu-
geral à literatura da época. Intitulado James, de acordo com Aira. Enquanto bém ficcionista, é uma das figuras ligadas ra em espanhol. “Morreu repentinamente
Novela argentina: nada más que una explorávamos alguns títulos em sua bi- ao momento literário da Nueva Narrativa e foi um grande amigo meu, um amigo
idea, o primeiro parágrafo é peremptório: blioteca, Aira definiu Guimarães Rosa e Argentina descrito por Riveiro. Conhe- muito querido. E foi o pior editor que já
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“Não, não alterava. Mas fazia tudo tão rativas. Enquanto um conto de Borges
mal...” O autor foi à estante e voltou com pode versar sobre um manuscrito per-
Las aventuras de Barbaverde, uma coletâ- sa do século xix que se perdeu, um ro-
nea de quatro romances seus. Segundo mance de Aira o colocaria detrás de um
Aira, ele e Lamadrid tinham combinado balcão de um McDonald’s em Flores,
de lançar os romances em separado, um vigiado por um adolescente com um
a cada seis meses, numa coleção de mes- problema de acne. Esse conforto maior
mo título. “Aí, um dia, me deparo com com a cultura pop e gêneros menores
isso aqui”, disse, mostrando a compilação talvez esteja ligado ao abraço mais com-
num volume único e a capa do livro com pleto de Aira às vanguardas do início do
a figura de um homem de blazer, chapéu século xx, com as quais Borges sempre
verde e máscara verde. “É o Besouro Ver- manteve uma relação mais ambivalente.
de! [personagem de quadrinhos e série de Borges era um ser remoto, quase infan-
tevê]. Não tem nada a ver com nada!” Aira tilizado em sua dedicação total como
reclamou também da diagramação. Per- leitor, em sua distância do empurra-
guntei por que seguiu tanto tempo com empurra comezinho do mundo. Nin-
Lamadrid. “Por amizade.” E deu de om- guém que entrevistei tinha algo muito
bros. “Viajávamos muito juntos. Fomos a substancial a dizer sobre a vida privada
Cuba, à França, ao México...” de Aira. “Ele gosta de tomar café e falar de
literatura”, disse Damián Ríos. “Acho que
os hombrecitos con sobretodo é o para ele tudo é literatura”, opinou Contre-
E
va um pouco a figura de Borges. u tinha ouvido falar que, por sair do cigarros: uma edição especial, minúscula, havia também um quadro seu – uma pin-
Para um argentino, dizer que um bairro muito raramente, Aira podia que a Biblioteca Nacional fizera de El ilus- tura amadora de duas casas idênticas, no
grande escritor local se parece ou é in- caminhar tranquilo por Flores. E ele tre mago, outro romance seu. Mas, por estilo arquitetônico parisiense de Hauss-
fluenciado por Borges deve soar absurda- de fato não é importunado por pedestres alguma razão, desejava se livrar da caixa mann. Fomos depois a outra sala, ligada
mente preguiçoso – algo como dizer que pedindo autógrafos ou paparazzi, o que de com a edição holandesa. ao corredor, onde havia uma vitrine com
Machado de Assis é importante para um todo modo seria estranho para um escritor Com uma entrada discreta, tetos altos alguns de seus livros.
medalhão brasileiro ou Tolstói para um rus- do século xxi. Mas mesmo em seu bairro, e um interior iluminado, o Museu Barrio Quando abrimos a porta, um grupo de
so. “Borges não produz influência, ele é enquanto caminhávamos, notei sorrisos de Flores faz exatamente o que seu no- senhoras maquiadas estava sentado ao re-
uma presença”, Strafacce me corrigiu, excessivamente gentis e olhares furtivos. me sugere, exibindo toda sorte de memo- dor de uma mesa grande. Havia uma aula
quando lhe sugeri a similaridade. Mas no É um tipo de atenção mais desconcertan- rabilia – calculadoras e rádios antigos, em curso. Todas sorriram gentilmente,
caso de Aira, depois de reparar nos para- te. É como se houvesse uma expectativa quadros, recortes de jornal, pôsteres de focando a atenção nele. Só a instrutora do
lelos, é impossível voltar atrás. Os dois no ar, a esperança de alguma mágica à la propaganda política –, todos itens relacio- curso parecia ter menos do que 65 anos.
começam seus livros compactos com Hans Chans. Um ângulo diferente do pa- nados de alguma forma a habitantes ilus- – Qual o nome do aviãozinho que
anedotas literárias ou memórias, escritas ralelo entre Borges e Aira, que Garamona tres do bairro. A definição de ilustre é voa bem rente à terra? – uma das senho-
numa prosa límpida. Nos dois há digres- sugeriu, tem a ver com essa nova fase de plural, abarcando desde Perón – que viveu ras perguntou.
sões ensaísticas frequentes. Os dois são sua carreira, a atual unanimidade em tor- lá com sua primeira mulher, Aurelia Ti- – O quê? – disse Aira.
adeptos contumazes da écfrase. Há jogos no de sua figura. “Quando César triunfou zón – até duas sobrinhas de 10 e 11 anos – O aviãozinho – repetiu a senhora,
metaficcionais e metaliterários, referên- mundo afora, aqui ele se tornou indiscutí- de Roberto D’Anna, diretor do museu, com certa impaciência, botando sua pal-
cias a outras obras. “Essa noção da litera- vel. Mas antes os grandes jornais nem se- que criaram uma biblioteca infantil du- ma aberta próxima ao chão. – Aquele
tura conceitual, de duas páginas que quer publicavam artigos sobre ele. Porque rante a pandemia e saíram na primeira que voa bem rente à terra.
brilham com a força de uma ideia, isso sua obra é provocadora, mas também página do jornal Clarín. Esse critério pro- Por um tempo, todos fitaram Aira, es-
ele herdou de Borges”, disse Pauls. Os tex- zombeteira, e isso deixa as pessoas furio- vinciano gera algumas combinações es- perando uma resposta.
tos de Borges sempre foram tomados de sas. Não sabiam se era um autor para ser tranhas. A bicicleta de uma atleta de – Uma pergunta inesperada – brincou
empréstimo por vanguardistas, em que levado a sério, se tudo era uma grande triátlon falecida roça ombros com as botas a instrutora, sem jeito, tentando mitigar
pese o desgosto de sua viúva María Koda- piada. O mesmo aconteceu com Borges de um veterano da Guerra das Malvinas. um pouco a tensão da espera.
ma; Aira também é personagem de diver- quando ganhou um prêmio internacional Um pôster patriótico (“Joven de Flores: El Aira deu de ombros e fomos ao canto
sos romances de autores mais jovens. em 1961. De repente, ele vira o grande nacionalismo está en marcha”) fica a al- ver sua vitrine. J
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VALENTINA FRAIZ_2023
CRISÁLIDA
O tesouro que herdei da minha bisavó
BÁRBARA MAZZOLA
A
primeira vez que escrevi foi sobre Naquela manhã, minha mãe me colo- pedra você tem... Credo!” Meu julga- de uma jukebox e cinco entradas brilhan-
morte. Eu tinha 10 anos e esta- cou na lavanderia, sozinha e a portas fe- mento infantil só foi interrompido pela do em neon que levam para doze dimen-
va na minha casa. No mesmo chadas, para que eu não visse o pessoal da voz da minha mãe, um pouco trêmula: sões, posso. Se quero contar sobre um
terreno, ficava a casa dos meus funerária retirar o corpo da bisa. Talvez “Sim, é por aqui.” O homem caminhou homem que se transformou numa barata,
avós, onde também moravam minha mãe tivesse esquecido que ali ha- em direção à lavanderia e, quando pas- também posso. Ou se quero dizer de uma
minha tia-avó e minha bisavó. Vivíamos via uma janela que dava exatamente para sou em frente à janela, fechei meus mulher que um dia acessou o mistério da
em casas separadas, mas com uma escada o quintal. Assim, a primeira coisa que fiz olhos. Eu queria me despedir da bisa e condição humana ao encontrar, esmagar
que fazia a ligação entre os dois quintais. foi subir numa caixa, abrir o vitrô e esticar achei que, se fechasse os olhos, ela ia me e comer outra barata, ainda posso.
Minha bisa era paraense, filha de bem o pescoço. Fiquei olhando atenta ouvir melhor. Falei que sentiria muito a Mas se preferir
uma indígena e de um português que através das grades. Eu sempre me interes- falta dela e rezei uma única ave-maria. crisálida
entrou no Brasil pelas portas de Belém. sei pela morte, acho. Quatro anos antes, Logo depois, tudo ficou em silêncio. um fio e
Pequena, magrinha, tinha a pele more- quando minha tia morreu, pedi para que Não lembro como, mas arranjei um a luz se fez
na, os olhos grandes e puxados, os cabe- me levassem ao velório. Queria ver como jeito de escapar dali e correr até o por- do corpo à nudez
los brancos bem lisos, sempre amarrados era um corpo morto, saber como minha tão. Ainda consegui assistir ao momen-
num coque baixo, os ombros ossudos e tia havia ficado depois desse acontecimen- to em que o carro da funerária saiu da o papel receberá. Se quero gritar “Bisa,
um temperamento doce, como o hu- to tão definitivo. Lembro que ela estava garagem com o caixão no porta-malas. olha pelos teus antigos, olha pelos nossos
mor dos sábios. Mesmo depois de adul- com aquela coisa muito estranha nas na- Nunca mais vi a bisa – nem em sonho. porque aqui continuamos todos perdi-
ta, corria para baixo dos móveis, cheia rinas, mais pálida... e gelada, eu encostei! Dessa vez, não quis ir ao velório. dos e cruéis. Bisa, ajuda porque estamos
de medo, ao ouvir um trovão. Não sei bem por que, mas, na minha me- morrendo sem tempo nem hora, agora,
E
“Macãeda, Macãeda!”, sua melhor mória, esse dia ainda tem a cor roxa. Com nquanto o carro desaparecia pela agora e agora!”, posso.
amiga a chamava. Maria Cândida era seu a bisa, não foi diferente. Eu queria ver o rua, não sei o que me deu. Senti Foi naquele momento que compreen-
nome. Toda tarde, às 18 horas, ela rezava que havia mudado nela. uma urgência atravessar meu corpo, di que escrever é, na verdade, o traba-
o terço que ouvia no rádio. Quase sempre Então permaneci ali, olhando da ja- uma necessidade estranha de buscar ca- lho de traduzir o invisível para o visível
trazia um lenço na cabeça. Muito católi- nela, na espreita do que ia acontecer. neta e papel. Escrevi meu primeiro poe- e que um caderno, muitas vezes, faz a
ca. Não foram raras as vezes em que lhe Um homem forte e muito alto, que vestia ma. Tal como aconteceu com minha bisa, gente se distrair da solidão. Um caderno
fiz companhia naquele horário – que, calça e camisa sociais pretas, apareceu nunca mais vi esse texto. Não sei onde o pode ser uma mão no escuro para crian-
para mim, era mágico. Eu ficava debru- no quintal. Sobre seu ombro esquerdo, coloquei ou se ainda o tenho. Quando ças com coração de pedra.
çada na mesa da cozinha, observando levava o corpo da bisa, todo enrolado terminei de escrever, estava aos prantos. Quando a gente quer se esconder ou se
seus dedos enrugados rolarem calmamen- num tecido branco. Da cabeça aos pés. Foi ali que tive a percepção tão níti- revelar, quando a gente quer se esconder
te sobre aquelas bolinhas coloridas que Parecia uma crisálida, só que do tama- da, tão corpórea e concreta de que, para e se revelar, quando queremos olhar para
pareciam não ter fim, enquanto ela sus- nho de uma pessoa. “Ah, é isso! Depois algumas coisas, só caneta e papel. Se a os nossos medos, desejos, vaidades e ver-
surrava orações imensas. Vai ver foi daí de morrer a bisa se transformou numa gente falar, não resolve; se a gente calar, dades, ou simplesmente quando a gente
que tomei gosto por Nossa Senhora. crisálida”, falei baixinho, secretamente. não resolve; se a gente dançar, se a gen- quer fazer da vida algo mais bonito e, por
Minha vó conta que não havia pamo- Não senti nada. Apenas olhei. Me te cantar, se a gente beber, não resolve. isso, mais suportável, há caneta e papel.
nha nem tapioca como as da bisa. Nin- concentrei para reparar se algo se passava Há coisas de que só a escrita dá conta. Bisa, se você estiver lendo isso, saiba
guém as preparava com tanto cuidado, em mim, tristeza ou dor. Nada. Nenhum A partir daquele dia, também descobri que foi ali que comecei. Que presente
tanta calma, tanta bênção. Eu não peguei choro, nem uma lágrima. Curiosidade um mundo onde cabe absolutamente a sua crisálida me deixou! A invenção
esse tempo, infelizmente, porque, quan- apenas. E um vazio por dentro. Em pen- tudo, até mesmo o que não conhecemos. dessa herança imensurável: a possibili-
do nasci, a bisa já estava bem velhinha e samento, briguei ferozmente comigo Se quero narrar as aventuras que vivi na dade de escrever. Talvez, ao longo dos
não podia mais se dedicar às atividades pela insensibilidade de não derramar Amazônia, sem nunca ter tirado os pés de anos, esse tenha sido o seu jeito de rea-
que demandavam muita elaboração. nem sequer uma lagriminha por alguém São Paulo, posso. Se quero falar sobre parecer para mim. Melhor do que em
Morreu dormindo, aos 100 anos. que eu amava tanto. “Que coração de uma máquina do tempo com o formato sonho, em letra. J
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KOAN
Se o primeiro verso
nos dão os deuses
ANDRÉA EBERT_2024
“Névoa matutina”,
“Vulto de montanha”,
Quem dá origem
a este silêncio?
MORPHIA
Aprenda: só se arrependa
do que não se escreve.
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com exceção do Chile, cujo governo de CARTAS por André Gravatá (“De repente, eu
piauí Allende foi defenestrado em 1973 com Quero parabenizar o editor de cartas aprendi”, piauí_207, dezembro). Não é por
ordem internacional, com certeza Kis- fato existem fora da redação. rou suas atividades”. E, antes que per
singer fará falta pela sua enorme expe- FELIPE BERNARDO_BELO HORIZONTE/MG guntem novamente, não, não estou
riência na matéria. Lembro a questão disponível, nem tenho formação para
ucraniana e sua posição contrária ao nota exultante da redação: A gló atuar como revisor (Cartas, piauí_191,
FLÁVIO DINO ingresso na Otan. ria! O reconhecimento! A imortalida agosto de 2022).
Ótimo perfil sobre o ministro Flávio de! Finalmente o editor de cartas tem Em tempo: saibam que o espaço para
Dino (O espalha-brasas, piauí_208, ja *** seu esforço reconhecido. Foram 209 a interlocução com os leitores é muito
neiro). Minha admiração por ele só Gostaria de parabenizar o repórter edições – quase dezoito anos – aguar positivo para a piauí, ainda que críticas
aumentou. O stf só teve a ganhar com Allan de Abreu, que mais uma vez nos dando por este dia. Nessas páginas já daí venham. Podem publicálas e res
a aprovação dessa figura sensacional surpreende com sua excelente reporta- passaram elogios a toda sorte de repór pondêlas ou refutálas.
que é um ser humano correto, inteli gem sobre El Salvador, menor país da teres, cartunistas, fotógrafos, poetas, ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP
gente e visionário. Só esqueceram de América Central, com área menor que mas nunca – até este sagrado momen
dizer que o responsável pela “politiza nosso Sergipe e uma população de pou- to – um reles “olá” ao respondedor das nota de nariz arrebitado da reda-
ção” do stf tem nome e sobrenome: co mais de 6,5 milhões de habitantes, missivas. O apagamento não era acaso; ção: Um tanto ofendido pela menção
Jair Messias Bolsonaro. idh 0,659 e de escassos recursos natu era projeto: afinal, em que parte do ao “erro de concordância”, o Departa
VALÉRIA BORDIN_FLORIANÓPOLIS/SC rais (O método Bukele, piauí_208, ja expediente consta o cargo de “editor mento de Checagem, Revisão e Certe
neiro). A grande novidade é o governo de cartas”? Mas hoje, com a sua men zas Gramaticais informa: o verbo fica
KISSINGER & BUKELE de Nayib Bukele, que apesar de estabe sagem, meu caro Felipe Bernardo, o no singular quando a ação se refere a
O jornalista Roberto Simon faz um re lecer um estado policial com mais de jogo começa a mudar. O gigante acor uma única pessoa. Portanto, o correto é
sumo competente da trajetória de Hen 100 mil detentos, tem total apoio da dou! E ele sonha grande, com o dia em mesmo “Jandira Motta foi uma das
ry Kissinger no seu artigo Muy amigo população, cansada da insegurança que Djalma, Dirceu e Adilson comen clientes que se enganou...” e “a Rádio
(piauí_208, janeiro). Natural de Fürth, causada pelas organizações criminosas tarão não uma matéria – e sim uma Pelotense... foi uma das que encerrou
Baviera, na Alemanha, onde nasceu em que dominavam o país. resposta do editor de cartas! suas atividades...”.
1923, de família judia que fugiu do na Bukele foi prefeito de San Salvador
zismo para os Estados Unidos em 1938, entre 2015 e 2019 e com 38 anos assu CONTRADIÇÕES QUIÉISSO, MEURMÃO!
obteve a cidadania americana em 1943 miu a presidência em 2019 com a pro A mentira tem perna curta, mas dinhei
e, após servir ao país na Segunda Guerra messa de limpar a área das quadrilhas, ro longo, como vemos pela matéria de
Mundial, completou seu doutorado pela as pandillas, assim como acabar com a Pedro Pannunzio sobre a Kwai (Cen-
Universidade Harvard em 1954, tendo corrupção. Mesmo tendo um passado tral da manipulação, piauí_208, janeiro).
obtido o título de professor. Daí então suspeito de negociações com algumas A manipulação de mensagens e ima
começou sua escalada política, primei gangues, transformouse num autocra gens está influenciando o (des)equilí
ramente como conselheiro de Relações ta acumulando todos os poderes, tor brio de forças políticas no mundo, o
Exteriores de todos os presidentes desde nando sua nação um enorme campo que deixaria Goebbels com invejinha.
Eisenhower a Gerald Ford. Assumiu o de concentração. Aliás, na edição anterior, após dezoi
cargo da Secretaria de Estado de 1973 a Para a alegria dos extremistas de di to anos de piauí, achei que a tradição Olá! Veja na foto acima, tomei um sus
1977, sob as presidências de Richard Ni reita no mundo, que aplaudem a solu havia sido quebrada e nenhuma referên to hehehe (socorro!) em meio à densa
xon e Gerald Ford, além de acumular o ção radical por ele traçada, esse é o cia ao Natal havia sido estampada na narrativa...
cargo como oitavo conselheiro de Segu caminho. Aqui no Brasil, a família Bol capa da piauí_207, dezembro. A primeira Ah, tá, escapou, no calor da escritu
rança Nacional, de 1969 até 1975. sonaro sonha com algo parecido caso impressão assim ficou até constatar que ra, compreensível, mas, se fosse eu, não
Essa participação ativa na política da retornem ao poder. O que esse pessoal o nordeste do mapa da Argentina cor deixava escapar, conheço bem as trapa
grande potência, no auge da Guerra não enxerga são os problemas que advi responde à silhueta do bom velhinho! ças que derrubam revisores.
Fria, tornouo peça fundamental da geo rão para um país que mantém em cati O típico pompom no chapéu está em Mi Umas coisas ainda, grato pela aten
política americana naquele período, veiro tantos jovens, sem planos para siones, e a barba do Papai Noel, em Bue ção: essa matéria As princesas fugitivas
cometendo equívocos como o envolvi recuperálos, para integrálos futura nos Aires. Aliviado, pois, ainda que de Dubai (piauí_208, janeiro) está um
mento maior dos Estados Unidos no mente na sociedade como cidadãos pro faltando ao menos um pontinho verme primor, fantástica de ler, ritmos e entra
Vietnã, embora, depois, tenha negocia dutivos. O outro aspecto é que certas lho, esperando que não venha nas pró das, saídas de aportes ao conjunto muito
do o cessarfogo, que lhe rendeu o Prê falsas soluções podem trazer alívio a ximas edições como representação do bem posicionados, às vezes parece até
mio Nobel da Paz em 1973. Outro uma população sofrida de um país pe sangue que o país vizinho passará a coisa de inteligência artificial. A autora
ponto positivo foi ter sido o pioneiro na queno como El Salvador. O buraco é pôr para fora, inevitável tragédia que Heidi Blake e o tradutor Rogério Galin
política de détente com a União Sovié mais embaixo quando se trata de um bem conhecemos. do fizeram um tremendo e excelente
tica, assim como estabelecer as relações país como o nosso, com toda a complexi Formado em ciências exatas e acos trabalho, difícil parar de ler, e o tempo
diplomáticas com a República Popular dade econômica própria de uma nação tumado a relatórios com métodos, resul todo senti o fantasma de uma desejada
da China. Realmente, a maioria da de dimensão continental, com diver tados, tabelas, gráficos e explicação justiça, lendo junto com o(a) leitor(a).
América Latina, quase totalmente do sos problemas estruturais para ainda científica correspondente, surpreendi Haja fôlego (catorze páginas, direto)!
minada por ditaduras fiéis aos america serem equacionados. me com o relato de um exitoso experi Também sendo um leitor da revista
nos, não era motivo de preocupações, DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ mento social de alfabetização, elaborado RAW (ixe), sei que, mais especialmente
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MAX KRICHANÃ_FORTALEZA/CE para a revista piauí e pergunta se eu gosta- Raquel Freire Zangrandi J EDITORA ALVINEGRA
rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
ria de falar. “Se topar, será maravilhoso”,
EDITORES 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
nota de nariz tampado da redação: disse ela. Declinei o convite e desejei Alejandro Chacoff, Armando Antenore, Luigi Mazza tel [21] 3511 7400
Eita, ferro! Vamos abrir a porta do De- sucesso no projeto. A jornalista voltou a Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 / 1º andar
partamento de Checagem, Revisão e enviar mensagem, insistindo no convite REPÓRTERES 05415-030 - São Paulo / SP
Certezas Gramaticais com o bilhete e sugerindo a possibilidade de eu falar Allan de Abreu, Amanda Gorziza, tel [11] 3061 2122
azul na mão! em off. Novamente, declinei a ofer- Ana Clara Costa, Angélica Santa Cruz, e-mail: [email protected]
ta. Em nenhum momento fui procura- Bernardo Esteves, Breno Pires, Consuelo Dieguez,
RÁDIO AM da para confirmar qualquer informação Fernando de Barros e Silva, João Batista Jr.,
Tatiane de Assis, Thallys Braga, Tiago Coelho
Sobre a reportagem Ondas migratórias, concreta sobre minha carreira em re-
da piauí_207, dezembro de 2023 (a res- portagem eivada de menções tenden- Associação Nacional dos Editores de Revistas
DIRETORA DE ARTE
peito do fim das rádios am de alcance ciosas. São notadamente mentirosas as Maria Cecilia Marra
local), sei que hoje a comunicação se dá aspas a mim atribuídas pela repórter.
majoritariamente pela internet. Mas é MARIA NAZARETH FARANI AZEVÊDO_GREENWICH, EDITORAS DE ARTE
um erro depender exclusivamente dela. CONNECTICUT Isabela Magalhães da Silveira, Paula Cardoso
É preciso garantir a toda a população Instituto Verificador de Comunicação
uma comunicação de longo alcance, de nota da redação: A piauí mantém as REDES SOCIAIS
Emily Almeida, Fabio Brisolla, Isa Barros PRÉ-IMPRESSÃO
acesso livre e gratuito, independente- informações publicadas na reportagem.
Antonio Rhoden
mente da internet. Sou contra a inter-
COORDENADORA DE CHECAGEM
net? Claro que não. Mas é preciso ter Por questões de clareza e espaço, a piauí Marcella Ramos
uma alternativa de comunicação de se reserva o direito de editar as cartas
caráter nacional, fora da internet, onde selecionadas para publicação. Solicitamos CHECAGEM E REVISÃO
basta girar um botão e escutar, sem ne- que as cartas informem o nome e o endereço Carlos Santos, Carolina Rodrigues, Fábio Martins, A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
cessidade de pagar boletos, sem gastar completo do remetente. Gilberto Porcidonio, João Felipe Carvalho, Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
dados e banda, de antena para antena, Cartas para a redação: Luciene Gomes, Luiza Barbara e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
sem nenhuma infraestrutura no meio. [email protected]
COORDENADOR DIGITAL Papel e Celulose S/A.
Pieter Zalis
TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 36 115 exemplares
COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS
Mariana Faria PARA ANUNCIAR
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Fernanda Catunda PARA ASSINAR
revistapiaui.com.br/assine
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Lara Machado, Leandra Souza, Segunda a sexta, 9h às 17h30
Maria Júlia Vieira, Pedro Tavares
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DIRETOR FINANCEIRO site: minhaabril.com.br
Guilherme Terra [email protected]
WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
ADMINISTRAÇÃO Renovação: 0800 775 2112
Daniella de Amo, Elena Abramcheva, Segunda a sexta, 9h às 17h30
Elisangela Prado, Leandro Arruda,
Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
Abril Assinaturas
DIRETOR COMERCIAL [email protected]
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piauí_fevereiro 81
1 de 1 26/1/24 PROVA FINAL
ACERVO PESSOAL
PIMENTA-ROSA
O percurso brilhante, rebelde e trágico de Denise Assunção
LUIZ CHAGAS
A multiartista passou os últimos anos vivendo com Cornélio, seu gato, em hotéis baratos
N
em bem 2024 raiou e Denise da em 27 de abril de 2004, possivelmen- dar aqui, musical sobre Itamar Assump- duções do Teatro Guaíra. O cineasta e
Assunção partiu. Sua morte te por atraso no pagamento de aluguéis. ção. Aos diretores com os quais traba- ator Amácio Mazzaropi a viu numa des-
em 4 de janeiro, aos 67 anos, Ao longo da obra, a autora falava de si lhava, Denise alertava: “Quando estou sas apresentações e a colocou na comé-
mereceu chamada na primei- sempre na terceira pessoa. Logo de cara, criando, não gosto de intervenções nem dia Jeca e seu filho preto, de 1978, que
ra página da Folha de S.Pau- se dizia “ex-integrante do Teatro Ofici- de moralismo frouxo.” Ela dificilmente en- atraiu quase 2,9 milhões de espectado-
lo e velório no Teatro Oficina, onde a na”, o que não correspondia exatamente saiava. “Não ensaio. Confiem!”, repetia. res. No ano seguinte, Denise participou
atriz, cantora, compositora e performer à verdade. Ela jamais largou a compa- Como cantora, gravou dois álbuns: de outro sucesso estrelado por Mazzaro-
se apresentava desde 1984. As duas ho- nhia por completo, embora a renegasse A maior bandeira brasileira (1990) e Está- pi, A banda das velhas virgens. O filme
menagens, apesar de significativas, dão e se afastasse dela quando as rusgas com tua da paciência (1997), que reunia can- vendeu 2,3 milhões de ingressos.
somente uma tênue ideia da dimensão o diretor atingiam níveis insustentáveis. ções de Noel Rosa. Em 2021, dirigida Enquanto a atriz e Itamar ascendiam
artística dessa mulher preta, desconhe- Certa ocasião, num texto registrado em pelo ator Alexandre Borges, protagoni- no meio artístico, Narciso se consolida-
cida fora das rodas culturais alternativas. cartório, Denise chegou a declarar que zou o show Pantera. Por não ter formação va como repórter de televisão. Apesar
O diretor José Celso Martinez Corrêa nunca participou do grupo. Entretanto, musical, preferia o acompanhamento de do reconhecimento profissional, o trio
– fundador do Oficina, que morreu há durante o velório de Zé Celso, também instrumentistas exímios. “Se vocês não nunca usufruiu de estabilidade finan-
sete meses – se referiu assim à parceira de no Oficina, a atriz cantou de improviso tocarem sempre igual, vou errar”, avisava ceira. Denise atribuía os percalços
trupe em 2012, numa entrevista ainda diante do caixão dele, como se a dupla para os músicos. “Não posso me dar ao econômicos da família à discrimina-
inédita: “A Denise é uma coisa estranhís- estivesse reatando definitivamente. luxo de improvisar. Não sei.” ção racial.
sima. Negra, no escuro do teatro emite O encenador a descobriu em 1982, no Recentemente, num camarim, lhe As pressões do racismo acabaram
uma luz... Irradia, porque tem uns olhos Complexo Cultural Funarte, em São Pau- perguntaram o que é arte. Ela se levan- conduzindo a atriz para uma situação de
fortes, um sorriso maravilhoso. Às vezes, lo, cidade onde a artista passou boa parte tou da cadeira, cruzou os braços, apru- delírio constante. Ela passou os últimos
fica com essa luz acesa o tempo todo.” da vida. Ela deitava e rolava como mestre mou a cabeça e respondeu, um tanto anos vivendo com Cornélio, seu gato,
Em 12 de janeiro, no jornal literário de cerimônias da banda Isca de Polícia, agitada: “Arte é a minha comida, o san- em hotéis baratos. Sofria de esquizofre-
Rascunho, a escritora Cidinha da Silva, liderada por seu irmão, o cantor Itamar gue que escorre da minha cabeça até os nia paranoide e se julgava perseguida.
também negra, definiu Denise como Assumpção. Zé Celso ficou fascinado dedinhos dos pés. É um dom, é a mi- Escutava vozes que a ameaçavam e a
“Blade Runner, Grace Jones, indomável, ao vê-la no show e a convidou para uma nha fé, é aquilo que transforma.” xingavam de escrava. Seus espetáculos,
indestrutível e feroz”. No Instagram, outra leitura pública de Roda viva em 1984, porém, continuavam irrepreensíveis.
D
artista negra, a atriz Lena Roque, lamen- no teatro paulistano Maria Della Costa. enise Aparecida Januária de Assun- Nessas fases conturbadas, Denise
tou a morte da colega com um punhado O Oficina já havia montado a peça de ção nasceu no dia 5 de dezembro contou com a solidariedade de amigos
de perguntas incômodas: “E se pudesse Chico Buarque em 1968, quando apoia- de 1956, em Tietê, município do e da sobrinha, a cantora Anelis Assump-
ter sido diferente? E se pudesse ter sido dores da ditadura militar destruíram o interior de São Paulo, onde também ção, filha de Itamar. Embora amargasse
possível o Brasil ter conhecido a genialida- cenário e espancaram os atores, acusan- nasceram seus dois irmãos, Itamar (1949- transtornos psiquiátricos, a atriz já ha-
de de Denise? E se Denise fosse midiáti- do-os de subversão. Na leitura pública, 2003) e o primogênito, Narciso Júlio (1948- via se livrado do álcool e da cocaína.
ca? Seria reverenciada? E se fosse possível Denise incorporou o personagem Cape- 2001). O sobrenome dela era o único da Ela deixou de usá-los após se converter
ter domado-enquadrado-formatado Deni- ta e usou como rabo uma vassoura, sím- família sem o “m” e o “p” mudo. Na in- ao neopentecostalismo. Ultimamente,
se? Haveria mil e um posts chorando sua bolo da campanha presidencial de Jânio fância, a futura atriz se mudou com os cursava uma faculdade de teologia.
partida? E se Denise tivesse sido premia- Quadros, em 1960. Mais tarde, a intérpre- pais para Arapongas, no Norte do Paraná. Seu último show, Relembrança, ocor-
da, bajulada, cortejada? Seria sua passa- te atuaria em outros espetáculos marcan- Ali Narciso viraria locutor de rádio, se ini- reu no Sesc Guarulhos em 25 de novem-
gem lamentada em rede nacional? E se tes da companhia, a exemplo de Hamlet, ciaria na carreira de ator e conheceria a bro. Naquela tarde, Denise mal conseguiu
fosse rica? E se não fosse ‘fora da curva’? Mistérios gozosos, Bacantes, Cacilda!!!! diretora de teatro Nitis Jacon, criadora do subir no palco, de tão magra. Estava doen-
E se não fosse ‘endoidecida’? [...] E se tives- e Os sertões. Festival Internacional de Londrina, o te, mas não contava para ninguém. Uns
se tido filhos, propriedades, espólios, pen- Em 1994, recebeu um dos raros prê- Filo. Ela logo percebeu o talento dos três dias depois, entregou os pontos. Foi in-
são, herança? E se não fosse preta, numa mios de sua carreira. Foi considerada me- irmãos e os incentivou. Em 1969, quando ternada no Hospital das Clínicas com um
época em que preto não tava na moda?” lhor atriz de curta-metragem no Festival dirigiu uma montagem paranaense do câncer intestinal avançado, mesma doen-
A entrevista de Zé Celso serviria para de Cinema de Gramado por Lumpet, de musical Arena conta Zumbi, de Gianfran- ça que matou Itamar.
uma nova edição, nunca concluída, do Ricardo Elias. Onze anos depois, fez Hoje cesco Guarnieri e Augusto Boal, escalou Em homenagem à atriz, companhei-
livro de memórias que Denise lançou é dia de Maria, minissérie de Luiz Fer- Denise como percussionista e membro ros do Oficina plantaram uma aroeira
em 2006 e batizou de “Ela” (com aspas nando Carvalho, na tv Globo. Pouco do coro. A menina tinha apenas 12 anos. na parte externa do teatro. A árvore me-
mesmo). A autobiografia, irreverente e antes da pandemia, entre novembro de Narciso representava Zumbi. dicinal oferece um fruto muito bonito,
ácida, trazia o fac-símile de uma ordem 2019 e janeiro de 2020, interpretou um Na década de 1970, a atriz se transfe- de sabor tão picante quanto adocicado.
de despejo contra a própria atriz, emiti- anjo em Pretoperitamar: o caminho que vai riu para Curitiba e integrou diversas pro- O povo o chama de pimenta-rosa. J
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