Câmara Dos Deputados - Reunião de Comissão - EVENTOS
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José Bonifácio, homem de letras, um dos homens mais cultos do seu tempo, com formação no Brasil e na Europa, um
grande cientista político na época do Brasil Império, ligado ao Imperador D. Pedro I, teve essa preocupação também.
"Vamos anotar. Não vamos deixar passar em branco aquilo que vai ser debatido, que vai ser falado na elaboração das
leis do momento do Brasil recém-independente." Ele teve essa preocupação.
Um ano antes, ele já fez esta convocação. Procurou um professor formado pelo método Taylor, que era um método inglês,
na época, de certa forma já adaptado à língua portuguesa, precariamente, e depois surgiram outros métodos de taquigrafia
adaptados à língua portuguesa.
Eu vou pedir licença para ler exatamente como tudo aconteceu. Eu fiz uma pesquisa um pouco alongada. Eu sei que o
tempo é curto, não vai dar para me estender muito, mas vou tentar resumir um pouco do que aconteceu justamente nessa
época em que José Bonifácio contratou esse professor para preparar alguns taquígrafos nesse método antigo, o método
Taylor, que foi composto para o idioma inglês e não para a língua portuguesa. Essa foi uma das grandes dificuldades
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
daqueles primeiros taquígrafos em fazer as anotações referentes à primeira Assembleia Constituinte Legislativa do Brasil.
Vejamos como tudo se deu.
Logo depois de expedido o decreto de 3 de junho de 1822, 3 meses antes da independência, convocando uma assembleia
dos representantes das Capitanias do Brasil, ato de decisiva emancipação política, até porque essa mesma assembleia viria
a ser depois a Constituinte de 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, tratou de organizar
o serviço do apanhamento taquigráfico dos debates que ocorreriam naquele grandioso momento histórico.
Homem da ciência, estadista, escritor, orador, Parlamentar, poeta, com formação numa das mais importantes universidades
europeias à época, a Universidade de Coimbra, considerado o mais culto dos brasileiros do seu tempo, José Bonifácio, ao
ver a grande utilidade da taquigrafia nos parlamentos de outros países — vejam que ele tinha formação europeia —, lutou
pela implantação de um corpo de taquígrafos no Parlamento brasileiro.
Como Ministro do Reino em 1822, em nome de sua Majestade, o Imperador Pedro I, já instituíra o Patriarca da
Independência a aula de taquigrafia da Câmara, que, regida por Isidoro da Costa e Oliveira Júnior — aquele que eu me
sinto aqui representando, professor de taquigrafia —, não deixou de funcionar mesmo quando foi dissolvida a Constituinte.
Isidoro da Costa, Oficial da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, conhecia o sistema com o qual Samuel Taylor, em
1786, daria grande impulso ao cultivo da taquigrafia na Inglaterra. Teve ele o encargo de lecionar o sistema, sendo os
seus alunos gratificados com a diária de 2 patacas, aproximadamente 640 réis. Semelhante diária, bastante elevada para
a época, constitui mais uma prova da importância atribuída ao serviço taquigráfico.
Detentor, portanto, de um conhecimento formidável em várias áreas da atividade humana, José Bonifácio se tornou figura
essencial no processo da independência do Brasil ao incentivar D. Pedro I a separar o Brasil de Portugal, garantindo a
integridade do território brasileiro. Cabe assinalar aqui a importância, em meio a tantas preocupações que necessariamente
o absorveriam no grandioso momento histórico da nossa primeira Constituinte, com que desenvolvia suas faculdades de
estadista de larga e serena visão.
O insigne patriarca se dedicava a todos os pormenores dos serviços indispensáveis à organização que projetava, dentro da
qual, desde logo, sentiu que a taquigrafia tocava lugar de maior relevo. Afinal, numa assembleia onde é aberto o amplo
debate sobre as mais importantes questões em âmbito nacional, a reprodução e a divulgação desses debates têm de merecer
especial carinho por parte de quantos se empenham pela seriedade na execução dos trabalhos legislativos.
Portanto, a implantação dos serviços taquigráficos no Parlamento brasileiro ocorreu em 3 de maio de 1823, data da
instalação da primeira Assembleia Constituinte Legislativa do Brasil — Dia do Taquígrafo, 3 de maio, em decorrência
desse fato. José Bonifácio tratou de organizar tais serviços com que os taquígrafos brasileiros exerceram a profissão pela
primeira vez no País.
Agora vamos falar, por alto também, dos desafios. Vamos citar inicialmente, in memoriam, os oito primeiros taquígrafos
parlamentares que fizeram parte do histórico período da Primeira Assembleia Constituinte Legislativa do Brasil, em
1823. Nós queremos citá-los e homenageá-los in memoriam, como em diversos momentos foi feito ao longo da história
da taquigrafia e do Parlamento brasileiro. Foram eles, conforme ordem de classificação em exame organizado pela
Assembleia — um pequeno teste.
Na verdade, eles não tiveram tempo suficiente para se preparar para o debate. Eu sempre digo nas minhas aulas que uma
coisa é o taquígrafo preparar-se para concurso, cuja velocidade média exigida é de 90 a 100 palavras por minuto. Na
taquigrafia, diferente da datilografia, são palavras por minuto; na datilografia, são toques por minuto, ou digitação, hoje
em dia, porque não se fala mais em datilografia. Eles fizeram um teste depois de alguns meses de treinamento e foram,
como dizia um professor antigo aqui em Brasília, jogados ao fogo. Foram lançados direto ao plenário em uma reunião com
tantas questões polêmicas a serem tratadas, quando havia toda aquela discussão na sociedade escravagista, quando havia
toda aquela discussão sobre o Império, sobre a limitação do poder do imperador e a autonomia maior para as províncias
— tudo isso. Imaginem a noite da agonia, que foi a noite anterior à dissolução da Assembleia, nos acalorados debates e na
dificuldade que esses profissionais, com pouca experiência, tiveram na prática e na execução de um método não voltado
exatamente para a língua portuguesa, como outros depois que foram criados e que são usados até os dias atuais.
Então, nós temos aqui Possidônio Antônio Alves, João Caetano de Almeida e Silva, Pedro Afonso de Carvalho, Manuel
José Pereira da Silva, João Estevão da Cruz, José Gonçalves da Silva, Vitorino Ribeiro de Oliveira e Silva e Justiniano
Maria dos Santos — oito. Foram esses os primeiros taquígrafos parlamentares brasileiros. E isso remonta ao início do
Parlamento brasileiro, ao início da taquigrafia executando a árdua tarefa de produzir notas taquigráficas em condições
extremamente adversas, sem auxílio algum da tecnologia.
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Não havia tecnologia alguma, gente, era o lápis e um bloco! Por volta dos anos 40, surgiu o gravador, em 1940 do século
passado. Isso aqui é século XIX, não havia sequer a máquina de escrever, que foi também criada, segundo alguns, por
um brasileiro anos depois. Aliás, o Prof. Azevedo, que era um padre, criou a máquina taquigráfica. Não deu muito certo a
máquina taquigráfica e adaptou-se a máquina taquigráfica em máquina de datilografia — ele foi o inventor da máquina de
escrever. Eles não tinham nada disso, nenhuma tecnologia. Foi árduo o trabalho dos primeiros taquígrafos. As condições
em que trabalhavam eram adversas, era reduzido o número desses profissionais, como já dissemos, em número de oito.
Escrevia-se com pena de pato na época, material não apropriado para apanhamentos taquigráficos em altas velocidades.
Eu sempre digo que uma coisa é preparar-se para concurso, outra, para o debate. O debate em plenário chega facilmente a
velocidades altíssimas, velocidades acima de 150 palavras por minuto. Isso é um absurdo, facilmente chega-se a isso! E a
velocidade para concurso é de 90 a 100 palavras por minuto. Eu sempre digo que se preparar para o concurso é o primeiro
passo, depois, com a experiência de alguns anos de quilometragem, como se diz, é a preparação para a vida profissional,
é o taquígrafo preparado para o debate.
Na época, usava-se o lápis. Se perdessem as palavras e não ouvissem dois ou três falando ao mesmo tempo... Imaginem
como eram acalorados os debates naquela época! O que se havia de fazer? Sentar-se, talvez, com um Parlamentar para
tentar compor o discurso, caso fosse possível. E os taquígrafos faziam o apanhamento em grupo, um ajudando o outro.
Vocês não imaginam o que é uma sessão tumultuada. Aliás, imaginam, porque aqui no plenário muitas vezes acontece,
muitas vezes nós temos isso aqui. Os taquígrafos não contavam com um sistema de som nem de gravação, como hoje em
dia, e faziam a tradução dos apanhamentos taquigráficos à mão — tudo era manuscrito. Os defeitos próprios do sistema
gráfico adotado à época ofereciam à decifração dos sinais taquigráficos imensos obstáculos.
A prática, em breve, revelou que o elemento básico fornecido pelo Estado, ou seja, o ensino de um método elaborado para
idioma de índole inteiramente diversa da do nosso, método que era lecionado quase sem alteração alguma do inglês para
o português, só podia ser bem aproveitado por pessoas que dispusessem de raras aptidões técnicas e intelectuais, reunidas
em teor máximo para o cumprimento dos seus deveres profissionais.
E não nos esqueçamos ainda de outro ponto importante: quando começou o serviço taquigráfico no Brasil, isto é, em
maio de 1823, os taquígrafos tinham apenas alguns meses de estudo por um sistema imperfeitamente adaptado e nenhum
período de prática para o registro de debates, principalmente se levarmos em conta a grave tensão daqueles tempos, com
acirramento das discussões no confronto político dos Constituintes com o Imperador.
É sabido que a formação de um profissional dessa natureza, nas melhores condições, exige pelo menos 1 ano de árdua
labuta, e o caso mais vulgar é o de ser necessário, para tanto, 1 biênio de prática ou mais.
Não se pode, em tais condições, deixar de consagrar a maior admiração ao trabalho desses homens, que, malgrado tanto
óbices, lograram salvar do olvidamento, do esquecimento, a primitiva história legislativa do Brasil e apresentar notas,
permitindo a reconstituição dos discursos e debates. Em que pese todos esses entraves para o bom desempenho de suas
funções, foi o trabalho abnegado dos oito primeiros taquígrafos parlamentares brasileiros que permitiu fosse conservado,
até hoje, o que nos legaram os primeiros legisladores do Império.
Gente, por hora, é isto: apontar essas dificuldades que tiveram esses homens, que foram verdadeiros heróis.
Depois darei alguns detalhes a mais, que veremos no prosseguimento dos trabalhos.
Obrigado a todos. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Agradecemos aqui as palavras do Dr.
José Oliveira Anunciação, que foi Diretor do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados, exatamente quando
estamos tratando aqui dos desafios da Assembleia Constituinte.
Na verdade, ele trouxe aqui um dos desafios que estavam nos bastidores, que é exatamente o registro histórico dos debates
da Assembleia Constituinte, quando houve todo um esforço para que aqueles debates fossem devidamente registrados e
ficassem para a história, como de fato ficaram.
Todo esse esforço coube aos taquígrafos, que foram preparados exatamente para acompanhar a Assembleia Constituinte,
que constituía a primeira experiência Parlamentar do Brasil. Na verdade, ninguém sabia o que era um debate parlamentar,
porque não existia Parlamento. A Constituinte, ao ser convocada, ao iniciar o processo eleitoral das províncias, elegeu
os primeiros Deputados — foi a primeira eleição que aconteceu —, que se reuniram na Capital, o Rio de Janeiro. Então,
foi a primeira experiência Parlamentar. E aí entrou o brilhante trabalho da Taquigrafia, que trouxe para nós, nos dias de
hoje, 200 anos depois, o registro daqueles acontecimentos.
Agradecemos as palavras ao Dr. José Oliveira Anunciação.
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Registramos também a presença, com grande alegria, da Diretora da Taquigrafia da Câmara dos Deputados, a Dra. Juliana
Baldoni.
Passamos a palavra agora à Profa. Cecilia Salles Oliveira, Historiadora do Departamento de História da USP.
A SRA. CECILIA HELENA LORENZINI DE SALLES OLIVEIRA - Muito obrigada.
Eu quero saudar a todos. Uma boa-tarde.
Quero agradecer imensamente a oportunidade de estar aqui. Agradeço o convite feito pela Câmara dos Deputados e
também agradeço o convite do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. É um prazer e uma honra ter sido convidada
para este evento.
O título da Mesa Os desafios da Assembleia Constituinte de 1823 é um tema muito amplo, que permite várias abordagens.
Então, o que eu trouxe para uma reflexão são algumas questões relacionadas a dois momentos fundamentais do processo
de separação de Portugal, do processo de Independência, que dizem respeito diretamente à Assembleia Constituinte. Ou
seja, eu vou abordar algumas circunstâncias históricas que presidiram a convocação da Assembleia e vou abordar algumas
circunstâncias históricas que acabaram por definir a dissolução da Assembleia Constituinte.
A convocação foi feita em maio de 1822. Depois, o Decreto de 3 de junho de 1822, de D. Pedro, sacramentou essa
convocação. E a dissolução foi em novembro de 1823, sendo que a Assembleia atuou de maio de 1823 a novembro de
1823. Foi um período relativamente curto, mas absolutamente intenso e muito importante do ponto de vista do debate
político e da definição de algumas das diretrizes constitucionais para o Império do Brasil naquele momento.
Eu escolhi esses dois momentos não só porque eles me permitem trabalhar um pouco os desafios enfrentados pela
Assembleia, mas porque eu penso que, através desses dois momentos, é possível voltar o nosso olhar para algumas questões
que nem sempre nós aprendemos através dos livros de história e dos bancos escolares. Geralmente, nós aprendemos
o processo da Independência como se fosse um processo mais ou menos linear, em que os mesmos grupos políticos
trabalhassem em conjunto, como se houvesse um consenso da sociedade em torno de determinadas decisões.
No caso da Assembleia, ocorre uma situação bastante complexa. O Governo de D. Pedro e os Ministros de D. Pedro,
naquele momento, em abril de 1822, estavam justamente se preparando para declarar a separação de Portugal, declarar a
Independência. Mas havia uma resistência muito grande não só em relação à separação de Portugal, por parte de inúmeros
grupos e setores sociais, como havia uma resistência e uma controvérsia em relação ao encaminhamento que o Governo
de D. Pedro pretendia dar ao processo de organização de uma monarquia constitucional. Nem todos os grupos políticos
concordavam com a forma como essa a monarquia constitucional deveria ser.
Um dos grupos mais importantes da cena política do Rio de Janeiro e que tinha muitas repercussões em Pernambuco,
na Bahia e mesmo em outras províncias, que era um grupo muito aguerrido, articulado em torno de alguns periódicos,
como o Revérbero Constitucional Fluminense e o Correio do Rio de Janeiro, estava muito ligado ao constitucionalismo
das Cortes em Lisboa, às principais diretrizes constitucionais das Cortes. Apesar de criticarem as Cortes, eles estavam
muito propensos a defender uma Constituição que as Cortes estavam elaborando em Portugal. Além disso, eles queriam
diminuir, vamos dizer assim, o espaço de atuação do Executivo e de D. Pedro.
Então, esses grupos optaram por propor ao Governo a convocação de uma assembleia que, na sua origem, não era uma
assembleia constituinte. A proposta desses grupos, feita em maio de 1822, através de uma ampla campanha popular, de
inúmeros abaixo-assinados que correram pela cidade do Rio de Janeiro, era de uma assembleia geral das províncias do
Brasil, que deveria definir os vínculos que manteriam o Brasil ligado a Portugal. Veja como a proposta é muito particular,
muito interessante.
Para não perderem as possibilidades abertas pelo constitucionalismo em Lisboa, esses grupos pretendiam, em nome dessa
assembleia geral, lutar pela incorporação da Constituição portuguesa no Brasil e pela reunião das províncias em torno
dessa Constituição. Portanto, a proposta da assembleia era articular novamente os vínculos entre Brasil e Portugal e refazer
as relações das províncias do Brasil com a Corte do Rio de Janeiro, principalmente nas áreas em conflagração. As guerras
de independência — Bahia, Pernambuco, Maranhão, Grão-Pará, e até mesmo no Sul, na Cisplatina, região que hoje é
o Uruguai — indispunham os grupos políticos dessas regiões ao controle da Corte do Rio de Janeiro. Então, a proposta
inicial era reunir os Deputados eleitos no Rio de Janeiro para discutir como estabelecer vínculos com Portugal e como
refazer as articulações com a Corte no Rio de Janeiro.
Muito a contragosto, o Governo de D. Pedro teve que aceitar a vitória desse movimento popular. Mas, ao aceitar a vitória
do movimento popular, o Governo modificou o sentido da convocação. É no decreto de D. Pedro de 3 de junho que aparece
a Assembleia Constituinte legislativa, o que queria dizer que a Corte do Rio de Janeiro efetivamente não ia atender a
demanda pela permanência da Constituição portuguesa e que se tratava de uma proposta de elaboração específica de uma
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nova Constituição. Além disso, a oportunidade da convocação da Assembleia Constituinte abriu a possibilidade não só
para que a declaração da separação de Portugal fosse efetivamente sedimentada, como também para estabelecer critérios
para a eleição dos Deputados que estabeleciam rígidas diferenças entre quem poderia ser cidadão e quem não era cidadão,
e os portugueses recém-chegados ao Brasil foram considerados estrangeiros.
O momento da convocação da assembleia é um momento de conflagração entre projetos políticos diversos e é um momento
também em que a antiga América portuguesa atravessava inúmeros confrontos armados de Norte a Sul, incluindo também
o Rio de Janeiro e as chamadas províncias coligadas, que eram Rio, Minas, São Paulo e Cisplatina. Também em São Paulo
e em Minas houve manifestações, mas o que acabou prevalecendo foi a disposição do Governo, mesmo a contragosto,
de refazer a proposta da assembleia, que em vez de ser uma assembleia geral que refizesse os vínculos com Portugal,
se tornou uma Assembleia Constituinte Legislativa. Isso abriu uma série de fissuras políticas. As principais lideranças
que propuseram a convocação de uma assembleia tiveram que se exilar. A imprensa foi perseguida. Houve uma série de
confrontos no Rio de Janeiro. E foi nesse ambiente que a separação de Portugal foi sacramentada.
Quando nós corremos no tempo e nos deparamos com o momento da dissolução da assembleia, o fato de a separação
de Portugal estar sedimentada e o fato de D. Pedro já ter sido aclamado e coroado Imperador não significam de maneira
nenhuma que, em 1823, as condições políticas e sociais estivessem apaziguadas. É exatamente o contrário.
Quando, em maio de 1823, a Assembleia Constituinte vai se reunir, a situação é muito complexa, em função das
dificuldades do reconhecimento internacional, tanto da independência quanto da proclamação de um império no Brasil.
Havia problemas diplomáticos e políticos seríssimos entre a Corte do Rio de Janeiro, a Corte de Lisboa e o Governo
da Grã-Bretanha. Por outro lado, as diferenças e as dificuldades de articulação interna da Corte do Rio de Janeiro para
com as províncias não tinham sido apaziguadas, ou não tinham sido diminuídas do ponto de vista das contradições e dos
confrontos.
É muito interessante observar o perfil dos Deputados. Alguns dos Deputados que foram eleitos para a assembleia tinham
realmente uma experiência política muito restrita, vamos dizer assim, às antigas Câmaras Municipais. No entanto, boa
parte deles vinha de uma formação política, de uma experiência política muito intensa.
É importante lembrar que antigos inconfidentes mineiros foram eleitos para a assembleia; muitos revolucionários de 1817
foram eleitos para a assembleia; muitos Deputados que representaram as províncias do Brasil em Portugal foram eleitos
para a assembleia. Então, eram pessoas que tinham um engajamento político de longa data, pessoas que acalentavam
projetos de futuro para o Brasil e projetos de Constituição e que tinham amealhado conhecimento para se posicionar com
muita clareza em relação àquele momento. Então, eles vinham de várias experiências políticas, inclusive a experiência
parlamentar das Cortes em Lisboa, o que foi muito importante para eles naquele momento.
Um dado fundamental é que o projeto de Constituição elaborado pela assembleia e que não foi inteiramente discutido,
porque a assembleia foi dissolvida, foi a base a partir da qual se fez a Carta Constitucional de 1824, com pouquíssimas
modificações. Um dos legados da Assembleia Constituinte foi justamente um projeto de Constituição que, posteriormente,
com modificações, se tornou a Carta de 1824.
Além disso, os trabalhos da Constituinte não foram só na direção da Constituição. Foram também trabalhos legislativos.
A assembleia elaborou um conjunto de leis fundamental para refazer os Governos Provinciais, para recompor ou procurar
recompor as ligações das províncias com a Corte do Rio de Janeiro. E, principalmente, a assembleia, não na totalidade,
mas na maior parte dela, justamente em função da experiência desses políticos, tinha uma certeza muito clara em relação
ao espaço que o Poder Legislativo deveria ocupar e ao espaço que o Poder Executivo deveria ocupar. Então, as tensões e
as contradições entre a assembleia, o Governo e o Imperador, desde o início do trabalho legislativo, foram muito grandes,
principalmente porque a maioria dos Deputados considerou que D. Pedro não teria direito de veto em relação a tudo o
que dissesse respeito ao projeto de Constituição. O Imperador poderia ter direito de veto sobre a legislação normal, a
legislação cotidiana, mas não sobre o que dissesse respeito à Constituição. E isso já gerou uma dificuldade.
Eu acredito que existem dois pontos que merecem ser lembrados do momento da dissolução da assembleia e que se
constituíram em enormes desafios, não apenas para a Assembleia Constituinte, mas também para o Governo, uma vez que
o Governo estava enredado nas discussões diplomáticas e era contestado por várias lideranças provinciais.
Um ponto que era um desafio dizia respeito às pressões que o Governo sofria da parte dos diplomatas, e diplomatas
estrangeiros, principalmente ingleses, do ponto de vista da elaboração de tratados de reconhecimento. Esses tratados de
reconhecimento, pelo menos no caso da Grã-Bretanha, estavam relacionados à questão do tráfico de escravizados. Sob esse
aspecto, é muito importante perceber que, ao longo do debate na Constituinte, os Deputados da Constituinte estabeleceram
uma cidadania muito inclusiva, dentro dos limites do liberalismo do período, dentro dos limites da prática política do
período.
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É muito interessante observar como os Deputados votaram a favor de que os libertos, mesmo que não soubessem ler e
escrever e independentemente de serem africanos nascidos na África ou descendentes de africanos nascidos no Brasil,
tivessem direito de participar da primeira etapa das eleições, porque as eleições eram formuladas em voto censitário. Isso
acontecia no mundo inteiro.
Esse movimento de incluir os libertos, independentemente de serem africanos ou não, sinalizava no âmbito da assembleia
que o tráfico de escravizados iria ter uma supressão e que não iria demorar muitos anos. Isso criou um problema para
o debate diplomático. Eu acredito que o grande embate entre o Governo e a assembleia se deu justamente nas sessões
secretas, nas quais os Ministros procuraram obter da assembleia um aval para a continuidade das negociações com a
Grã-Bretanha, do ponto de vista do reconhecimento da independência e do império, tratados nos quais a Grã-Bretanha
colocava a supressão do tráfico em 1 ano após a assinatura do tratado. A assembleia se considerou soberana para propor
uma mudança nessa perspectiva e para impingir uma derrota ao Governo sob esse aspeto, criando e agravando uma enorme
dificuldade de reconhecimento internacional.
Normalmente se diz que o grande problema que acabou resultando na dissolução da assembleia foi uma tensão entre os
Deputados e o Imperador por conta do Poder Moderador, ou por conta de questões de natureza dos Poderes de Estado.
A questão que eu estou trazendo é um pouco mais complexa, porque ela remete à soberania dos Deputados eleitos,
representantes das suas várias províncias, que, no debate com o Governo em torno do reconhecimento internacional,
consideraram a assembleia soberana, a ponto de exigir do Governo que os tratados de reconhecimento passassem por ela
e, além de passarem por ela, acatarem a definição do tempo de duração para a continuidade do tráfico de escravizados, o
que colocou o Governo numa situação absolutamente dificílima, uma vez que as negociações diplomáticas que estavam
sendo feitas não caminhavam nessa direção.
A contribuição que eu trago para o debate, do ponto de vista dos desafios da Constituinte, é, por um lado, reconhecer a
multiplicidade de vozes que compôs a Constituinte, a multiplicidade de experiências políticas que estava ali reunida e os
embates enfrentados do ponto de vista não apenas da feitura de uma Constituição, mas também da feitura da legislação
ordinária. E, de outro lado, reconhecer as próprias circunstâncias complexas que cercaram a declaração de independência
e a declaração de fundação de um império no Brasil, porque, no final de 1823, nenhuma dessas circunstâncias e dessas
decisões estava efetivamente consolidada.
Uma das formas pelas quais o Governo optou por consolidar tanto a independência quanto o império foi dissolver
a assembleia, impor uma Constituição e impor tratados de reconhecimento internacionais. O resultado disso foi um
aprofundamento das distâncias, das controvérsias e das contradições entre muitos grupos políticos, uma parte considerável
da sociedade e o Governo de D. Pedro. Isso custou muito caro ao Imperador, porque, quando a Câmara dos Deputados
voltou a funcionar, em 1826, muitos Deputados tinham estado presentes na Assembleia Constituinte e não tinham
esquecido o que aconteceu. E, ao fim e ao cabo, nas disputas políticas, obrigaram D. Pedro a abdicar em 1831.
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Por muito tempo, o mundo ibero-americano esteve ausente das análises sobre o nascimento do constitucionalismo
moderno, centradas, em sua maioria, nas experiências norte-americana e francesa. De fato, mais do que um silenciamento,
na prática, predominou uma avaliação negativa das experiências liberais ibero-americanas. Especialmente nos anos 70 e
80 do século passado, a partir de análises eivadas de anacronismos, essas experiências foram vistas como inconsistentes,
fora do lugar, por não terem sido capazes de eliminar o clientelismo ou por não terem possibilitado a emergência de uma
vida política livre e com ampla participação da população.
Soma-se a esse diagnóstico a percepção de que as revoluções liberais em Portugal e na Espanha fracassaram, resultado
do atraso econômico e da fraqueza das suas burguesias. Na percepção desses analistas, sob uma fina camada retórica e de
instituições falsificadas nas mãos de uma oligarquia, o antigo regime teria permanecido intacto.
A despeito dessas interpretações, nos últimos anos, a partir de uma rica historiografia produzida nos dois lados do
Atlântico, cada vez mais esse espaço é percebido como um fecundo laboratório constitucional, para usar a expressão do
historiador Portillo Valdés, ensejando diferentes formas de articulação política, de concepções de poder e do seu exercício.
A publicação, em 1992, do livro Modernidad e independencias, da autoria de François-Xavier Guerra, para muitos
historiadores teria contribuído muito para essa virada historiográfica. Segundo François Guerra, a revolução liberal
espanhola, que culminou na promulgação da Constituição de 1812, em Cádiz, e as independências hispano-americanas
são faces de um único e mesmo fenômeno, isto é, a crise da monarquia hispânica decorrente da invasão napoleônica da
Espanha e da abdicação de Fernando VII, em 1808, processos revolucionários que não poderiam ser reduzidos somente às
mudanças socioeconômicas, mas que expressariam mudanças profundas no campo das ideias, do imaginário, dos valores
e dos comportamentos, enfim, uma mutação cultural que foi acompanhada por uma avalanche de impressos de todos os
tipos e de novas formas de sociabilidade.
Nas suas palavras, o avanço do individualismo é inseparável do triunfo de uma imagem da sociedade concebida como
uma justaposição de indivíduos iguais, homogêneos e, de fato, intercambiáveis. Essa imagem, que mais tarde se refletirá
nas Constituições modernas, já é presente na estrutura e no funcionamento das novas formas de sociabilidade. Foi nesses
novos espaços que um novo sistema de referências culturais nasceu e se espalhou, que se criou um novo modelo de
sociedade. É o triunfo de uma nova legitimidade à nação soberana.
No espaço luso-americano, a chamada modernidade política, para continuarmos na chave de leitura proposta por Xavier
Guerra, expressa na explosão da palavra impressa e no surgimento de novos espaços associativos, data do início da década
de 1820, resultado da eclosão da Revolução do Porto, de 24 de agosto.
O sucesso do pronunciamento militar deveu-se a uma cuidadosa preparação a cargo de magistrados, militares e negociantes
que integravam o Sinédrio, uma associação política criada em janeiro de 1818, ainda no calor das repercussões do
enforcamento de Gomes Freire de Andrade e que acabou por aglutinar os ressentimentos em função da precária situação
de Portugal após as invasões francesas e a permanência da Corte no Rio de Janeiro.
Uma das primeiras medidas da Junta Provisional do Governo revolucionário foi o decreto que estabelecia a liberdade de
imprensa, em 21 de setembro de 1820. Como ressaltado por tantos autores, dentre eles Marco Morel, é nesse momento
crucial que começa a se fazer, de maneira mais consistente, no Brasil, a passagem de um espaço público marcado pelas
formas de comunicação típicas do antigo regime para um espaço público onde se consolidavam debates através da
imprensa, que nem sempre era vinculada ao poder oficial do Estado, e onde ganhavam importância as leituras privadas
individuais, permitindo a formação de uma opinião de caráter mais abstrato, fundada sob o julgamento crítico de cada
cidadão leitor e representando uma espécie de somatório de opiniões.
Ao viajante desenhista João Maurício Rugendas, que chegou ao Brasil em 1821 como contratado da expedição científica
do Barão de Langsdorff, esse clima de efervescência e de formação de uma opinião pública não passou desapercebido.
Nas suas palavras, o que mais impressiona o observador é o interesse sempre crescente dos habitantes do País por todas as
questões cuja solução pode ser de alguma influência tanto na vida interna como externa do Brasil. Esse interesse manifesta-
se livremente, sem nenhum constrangimento.
Verifica-se que o espírito de exame de discussão substituiu o respeito cego que se professava pela superioridade da
metrópole. E é este um dos traços característicos dos costumes do Rio de Janeiro. Gente de todas as classes se entrega a
conversações políticas, e nos grupos que se formam veem-se eclesiásticos, oficiais, negociantes e operários.
Se a explosão da palavra impressa, no início da década de 1820, foi determinante para a formação de uma opinião
pública no sentido moderno, é importante chamar a atenção também para uma outra face dessa mesma moeda: o
crescimento de novos espaços associativos que acabaram por se transformar em locais importantes de aprendizados das
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práticas representativas de discussão e articulação política, constituindo-se instrumentos importantes de uma pedagogia
do constitucionalismo.
Em estudo publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de 1885, Moreira de Azevedo foi um
dos pioneiros a constatar esse avanço do movimento associativo inventariando diferentes tipos de associações, dentre
elas lojas maçônicas, sociedades políticas, culturais, filantrópicas, econômicas, públicas ou secretas. Dentre esses novos
espaços, o associativismo de tipo maçônico, marcado pelo caráter fechado ou secreto, foi um dos que mais mobilizou
os setores importantes da sociedade fluminense. Entre 1820 e 1840, esse tipo chegou a representar 42% do total das 73
associações inventariadas no Rio de Janeiro.
Talvez tenha sido Hipólito José da Costa aquele que melhor entendeu a capacidade de atração desse tipo de sociabilidade.
Para ele, a vida associativa favorecia a interiorização de certos códigos e regras de conduta, o que a transformava em
um fundamento da vida em comum. Nas palavras de Hipólito, o uso dessas sociedades ensina também, forçosamente, a
necessidade de leis e estatutos e mostra que, sem a existência e observância de leis, não podem os homens viver em comum.
Essa verdade aprende-se praticamente nas sociedades particulares. E é certo que os homens se convencem mais pela
experiência do que pela teoria. Os membros dessa sociedade passam, alternativamente, de superiores a súditos e de súditos
a superiores, e, portanto, hão de necessariamente adquirir conhecimento da utilidade das leis civis e da necessidade que
há de manter a ordem e o sossego público para se gozar da tranquilidade e da felicidade de que o mundo é suscetível.
Nesse sentido, essa exposição tem por objetivo principal analisar o quanto o associativismo de tipo maçônico ou
paramaçônico foi importante para a expansão de uma cultura do constitucionalismo nos anos iniciais da década de 20.
Esses espaços funcionaram como uma espécie de escolas de formação, nas quais os fundamentos da modernidade política
eram aprendidos, divulgados e, sobretudo, vivenciados.
Como destacado por Samuel Barbosa, nesse período a Constituição não designava uma estrutura já conhecida e assentada,
possibilitando escolhas colocadas à deliberação e à disputa, ora argumentada, ora violenta. Por um lado, desafiava
e transigia com estruturas práticas políticas do antigo regime. Por outro lado, introduzia contingência e abria novas
expectativas. Em diversas arenas com diferentes atores, decisões são tomadas em um jogo de desconstituição e constituição
do regime. Os acontecimentos de 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto ficaram conhecidos no Rio de Janeiro em outubro
de 1820. Na medida em que se consolidava a percepção de que o processo revolucionário em Portugal era irreversível, a
Corte joanina no Rio de Janeiro passou a agir no sentido de evitar que o movimento constitucionalista atingisse o Reino
do Brasil. Os esforços foram em vão. Depois de passarem pelo Pará e pela Bahia, os ventos revolucionários chegaram ao
Rio de Janeiro em fevereiro de 1821, quando, no dia 26, eclodiu um levante na então Praça do Rossio.
Com o apoio dos oficiais dos principais corpos militares do Rio de Janeiro, os revoltosos defendiam que o D. João VI
jurasse a Constituição que estava por ser feita em Portugal, com a destituição de Ministros e a revogação dos decretos
de 18 e 23 de fevereiro. Apesar de vitoriosos, as indefinições quanto ao retorno de D. João VI a Portugal e a situação do
Reino do Brasil contribuíram para aumentar as inquietações e apreensões quanto ao futuro, particularmente daqueles que
se mostravam coadunados com os princípios dos constitucionalistas vintistas, descontentamento que, em 21 de abril, na
reunião dos eleitores da Praça do Comércio, eclodiu novamente.
A princípio, essa reunião teria sido convocada para que fossem escolhidos os Deputados que representariam o Rio de
Janeiro nas Cortes de Lisboa. Entretanto, os seus rumos foram totalmente alterados quando, em meio ao clima generalizado
de radicalização, passou-se a defender que D. João deveria jurar a Constituição espanhola, enquanto a que se fazia em
Lisboa não estivesse pronta, e que uma junta governativa provisória deveria ser formada. Como é sabido, a madrugada
de 22 de abril terminaria mal. O Edifício da Praça do Comércio foi invadido pelas tropas, o que resultou em mortes e no
ferimento de várias pessoas. Quatro dias depois, em 26 de abril, D. João embarcava de volta para Portugal, deixando o
seu filho como regente do Reino do Brasil.
Para além dos diferentes interesses econômicos e projetos políticos em disputa, os acontecimentos de 26 de fevereiro e
21 de abril revelavam uma nova forma de fazer política. A política deixava os salões dos palácios e ganhava as ruas.
O panfleto assinado com as iniciais MJSP, possivelmente de Manuel Joaquim da Silva Porto, um dos principais editores
da cidade do Rio de Janeiro, se referiu aos acontecimentos de 26 de fevereiro como um dia memorável, quando, nas
suas palavras: "Alegraram-se os corações de todos os habitantes desta Capital, e anelavam coadjuvar os seus irmãos
na gloriosa luta da sua regeneração, e liberdade constitucional. Quanto devemos ao Supremo Arquiteto do Universo!"
Exclamava: "O Brasil afortunado exulta. Verás em teu grêmio acolhida a sabedoria, protegida a inocência, executadas
as leis, o mérito premiado, o vício punido, a estupidez agrilhoada, a agricultura, o comércio e a navegação florescentes,
estimadas as ciências e as artes, enfim, a tua grandeza, a tua glória".
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O uso de vocabulário maçônico pelo autor do panfleto chama-nos a atenção para outra novidade. Após as perseguições
decorrentes do Alvará de 1818, a atividade maçônica tinha recuperado a sua vitalidade com a crescente participação dos
maçons nos embates da vida pública do Rio de Janeiro e a sua ligação com os vintistas, em Lisboa, que, no ano anterior,
também davam graças ao Supremo Arquiteto do Universo pela obra da regeneração da nação portuguesa, mandando
publicar no jornal Regeneração de Portugal, nº 3, o seguinte artigo: “Graças ao Supremo Arquiteto do Universo, que
uniu as vontades de todos os portugueses para trabalharem na augusta obra da sua regeneração! Parabéns a todo o
povo luso, que hoje ressurge da sua humilhação e opróbrio, para figurar no mundo com todo o esplendor e majestade
que lhe afiançam suas grandes virtudes”. No panfleto anônimo do corcunda abatido e do constitucional exaltado, escrito
sob a forma de diálogo, a associação entre a defesa do constitucionalismo e o pertencimento à maçonaria era reforçada,
e, como era próprio desse estilo de publicação, enfatizavam-se as diferenças entre as novas ideias do liberalismo e os
valores identificados com o antigo regime. Neste panfleto, sob a forma de diálogo, o corcunda dizia: "Tenho ouvido e
desgraçadamente vejo que muitos dos que querem hoje ensinar não sabem para si e falam em Cortes como quem diz
e assim as tratam e com elas dão aviamentos às suas trolhas e colheres". E o constitucional respondeu: "O que queres
dizer com isso?" E o corcunda responde: "Quero dizer que todos são pedreiros". E o constitucional diz: "Dizes bem,
porque quem faz os alicerces de uma casa senão os pedreiros? Aqui as bases são os alicerces da nossa Constituição e
não podiam ser feitas senão por pedreiros. E, como em Portugal não há escravos, logo haviam de ser pedreiros livres,
como tu me querias dizer na tua reticência". E o corcunda responde: "Quem faz alicerce são pedreiros, mas passamos
adiante porque eu não quero nada com essa qualidade de gente". Marco desse maior dinamismo do associativismo do
tipo maçônico no Rio de Janeiro teria sido a reinstalação da loja Comércio e Artes, em 1821. Um ano depois, em 17 de
junho de 1822, foi criado o Grande Oriente Brasílico ou o Grande Oriente do Brasil, a partir da divisão da referida loja
em três. Para dirigir a nova obediência, foi nomeado, por aclamação, José Bonifácio de Andrada e Silva, então Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Reino. Apesar de Bonifácio ter assumido a Grão Mestria, na prática,
quem de fato a exerceu foi Joaquim Gonçalves Ledo, na qualidade de grande vigilante, em função da ausência do primeiro
na maior parte das reuniões. Sob a ascendência de Gonçalves Ledo, as lojas maçônicas vinculadas ao Grande Oriente
tiveram um crescimento bastante expressivo chegando a mobilizar, na cidade do Rio de Janeiro, aproximadamente 248
pessoas. Entre junho e novembro de 1822, foram iniciados ou filiados 152 maçons. Ao acompanhar as atas das reuniões,
é perceptível a intenção de transformar o Grande Oriente recém-criado em um centro de poder que passaria a subordinar
as atividades das várias lojas maçônicas existentes nas diferentes províncias do Brasil, dando-lhes um direcionamento e
uma administração comuns.
Seguindo o exemplo de outras organizações nacionais congêneres, os maçons do Grande Oriente trataram logo de elaborar
e jurar o que eles chamaram de Constituição Maçônica Brasílica. Esse texto constitucional teria sido escrito por uma
comissão composta por dois membros de cada uma das três lojas fluminenses. Só conhecemos os nomes indicados pela
Loja Esperança, de Niterói, que foram João José Vahia, professor de retórica e poética na Corte, e Francisco Julio Xavier,
doutor em medicina pela Universidade de Paris. Infelizmente, não consegui identificar nos arquivos em biblioteca nenhum
exemplar dessa Constituição ou mesmo de algum dos seus rascunhos.
Todavia, sabe-se que, na sessão de 31 de julho de 1822, por exemplo, a primeira parte da Constituição, já sancionada e
jurada, foi enviada aos maçons da Loja Mineiros Reunidos, da cidade de Ouro Preto. Já na sessão de 4 de outubro de 1822,
a direção do Grande Oriente deu conhecimento aos demais maçons que a Loja Capitular, de Pernambuco, reconhecia e
saudava o Grande Oriente do Brasil, pedindo, contudo, a faculdade de fazer algumas reflexões sobre a cópia da primeira
parte da Constituição que lhe fora apresentada pelo irmão Felipe Neri.
Entre 1821 e 1822, na medida em que o debate público mobilizava progressivamente as reuniões maçônicas e como num
movimento de mão dupla os debates internos também transbordavam para o mundo exterior, as disputas que atravessavam
a sociabilidade maçônica ganhavam maior solidez com a formação de dois grupos: o primeiro identificado com a liderança
do Joaquim Gonçalves Ledo e o segundo identificado com a liderança de José Bonifácio.
Apesar de vários pontos em comum, os dois grupos possuíam divergências. O grupo de Bonifácio teve atuação decisiva
nas articulações que culminaram no Fico de 9 de janeiro. Por sua vez, o grupo do Ledo teria hesitado quanto à conveniência
ou não da permanência do príncipe regente.
Inicialmente identificados com o constitucionalismo vintista e com as Cortes de Lisboa, o grupo de Ledo, ao longo dos
primeiros meses de 1822, passou a defender a convocação de Cortes no Rio de Janeiro, proposta que contava com a
resistência do grupo de Bonifácio.
O principal meio de divulgação das ideias defendidas pelo chamado "grupo do Ledo" foi o jornal Revérbero Constitucional
Fluminense, criado em setembro de 1821. Quando D. Pedro retornou ao Rio de Janeiro de sua viagem a Minas, no final
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de abril de 1822, seus redatores publicaram nas suas páginas um contundente artigo cheio de expressões maçônicas, no
qual pressionava o príncipe pela convocação de Cortes no Brasil — não é Assembleia Constituinte, como a Profa. Cecilia
Helena já bem disse, mas a palavra que aparece são Cortes no Brasil:
(...) que a nossa opinião está consolidada, que os nossos corações farão o baluarte invencível em sua defesa,
que esses abalos há pouco experimentados foram os últimos arrancos da discórdia, que a natureza mesmo,
obra do eterno Arquiteto do universo, também sofre essas concussões, mas nem por isso se desordena a
grande máquina, que se apressem por um remate à pedra triangular, que há de fechar a abóbada da grande
obra começada.
Sim, príncipe, rasguemos os véus dos mistérios. Rompa-se a nuvem que encobre o sol, que deve raiar na
esfera do Brasil. Eleva, eleva o templo da Liberdade brasileira; forme-se nele o livro da lei, que nos deve
reger, e sobre as bases já por nós juradas, em grande pompa seja conduzido e depositado sobre as aras
do Deus de nossos pais. Príncipe, só assim baquearão de uma vez os cem dragões que rugem e procuram
devorar-nos. Não desprezes a glória de ser o fundador de um novo Império. O Brasil de joelhos te mostra o
peito e nele gravadas as letras em diamante do teu nome.
Em maio de 1822, a Câmara da cidade do Rio de Janeiro dirigiu ao príncipe regente uma representação em que requeria a
convocação de uma Assembleia Geral das Províncias do Brasil. A redação dessa representação contou com a participação
dos membros do chamado "grupo do Ledo": Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, Januário da Cunha Barbosa,
Antônio João Lessa, João Soares Lisboa, Bernardo José da Gama. Aproximadamente 6 mil pessoas passaram pela
Tipografia Silva Porto para assinar a representação.
Como já foi dito na exposição anterior, caberia a essa Assembleia deliberar, em sessão pública, sobre as justas condições
com que o Brasil deve permanecer unido a Portugal, examinar se a Constituição que se está fazendo nas Cortes de Lisboa é
no seu todo adaptada ao Brasil e sobre as bases ali decretadas e aqui juradas estabelecer as emendas e reformas e alterações
com que a mesma Constituição deve ser recebida e jurada no Brasil.
Se no espaço público, o chamado "grupo do Ledo" defendia a convocação de Cortes no Brasil, no espaço fechado das
reuniões maçônicas, passou a defender a suspensão e a expulsão de alguns membros da maçonaria sobre a acusação de
serem opositores da chamada causa do Brasil. Essa teria sido a razão de suspensão dos trabalhos maçônicos de João
Fernandes Tomás, irmão do célebre líder da Revolução Vintista, Manuel Fernandes Tomás, medida que foi justificada pela
necessidade de impedir a presença em suas reuniões de "inimigos disfarçados que extraem nossos segredos a atraiçoem
o nosso sistema e a nossa segurança, ora transmitindo para Portugal, para Bahia, para Minas, São Paulo e Montevidéu
notícias falsas e desorganizadoras".
Por sua vez, na sessão de 9 de setembro, também do Grande Oriente, Frei Sampaio foi severamente admoestado e ameaçado
de expulsão em razão de seu alinhamento com as posições políticas do chamado "grupo do Bonifácio", explicitadas em
uma série de artigos publicados em seu periódico O Regulador Brasileiro.
Nesses artigos, ele defendia que, numa monarquia constitucional, o soberano deveria ser considerado como parte integrante
do corpo legislativo, sem necessidade de justificar a recusa ou a sanção de uma lei. No calor dos debates, ele foi
acusado de propagar doutrina política que era subversiva dos princípios constitucionais e jurados nesta augusta ordem,
enquanto pretendia fazer persuadir aos povos do Brasil princípios aristocráticos, que não se compadecem com a liberdade
constitucional que os brasileiros anelam.
O clima já radicalizado foi agravado pela tentativa do grupo do Ledo de impor a D. Pedro, por ocasião de sua aclamação no
12 de outubro de um juramento prévio à Constituição, que seria elaborada pela Assembleia Geral Constituinte Legislativa,
iniciativa que desagradou profundamente o grupo de Bonifácio e o próprio D. Pedro.
Assim, nem os esforços empreendidos pelos maçons no sentido de participarem dos festejos da aclamação foram
suficientes para impedir que, em 21 de outubro, D. Pedro, já aclamado Imperador do Brasil e agora na condição de
Grão-Mestre do Grande Oriente, enviasse uma carta a Ledo determinando a suspensão dos trabalhos e afiançando que a
suspensão seria breve. Quatro dias depois, o Imperador determinou o fim da suspensão.
Porém, os maçons não puderam comemorar por muito tempo. No dia 27 de outubro, 2 dias depois da autorização dada
pelo imperador para o recomeço das atividades, José Bonifácio e seu irmão Martim Francisco colocaram os seus cargos
de Ministros à disposição de D. Pedro. Tão cedo a notícia foi conhecida, iniciou-se uma movimentação no sentido de
fazer com que o Imperador reintegrasse os Andradas ao Governo, o que acabou por acontecer. Reintegrado e fortalecido
pelas manifestações favoráveis que tomaram o Rio de Janeiro, José Bonifácio desencadeou violenta repressão aos seus
adversários, acusados de conspirarem contra o Governo.
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Em 2 de novembro, foi aberta uma devassa que tinha por objetivo identificar indivíduos que espalhavam "doutrinas
erradas e contrárias ao sistema de governo escolhido", já em público, já em associações particulares e que pretendiam
desacreditar o mesmo governo, alterar a sua forma e fomentar a discórdia e a guerra civil. A devassa atingiu sobretudo
aqueles identificados com o Grupo do Ledo. Uns conseguiram fugir e se exilaram, outros foram presos. Todavia, a devassa
que ficou conhecida como "Bonifácia" foi encerrada em 1823, condenando apenas o réu João Soares Lisboa à pena de
10 anos de prisão.
No ambiente radicalizado da Corte do Rio, o chamado Grupo do Bonifácio articulava-se sobretudo através do
pertencimento à Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, fundada também em junho de 1822. Tratava-se de uma
sociedade secreta com sinais, toques e palavras especiais de reconhecimento entre os seus membros. Dividia-se em
palestras, que, por sua vez, eram divididas em decúrias. Acima das palestras, existia um poder central denominado
Apostolado, composto pelos membros mais importantes, em número de 12, que tinham por função dirigir as ações da
ordem e legislar sobre o funcionamento das palestras. O cargo maior, de arconte-rei, foi ocupado por D. Pedro, e José
Bonifácio foi seu vice. O principal local de reuniões era o Quartel do Comando das Armas, na Rua da Guarda Velha, no
Rio de Janeiro. Se, à primeira vista, a Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz possuía semelhanças com a maçonaria,
para os contemporâneos havia diferenças substanciais, para não dizer uma clara hostilidade, entre as duas instituições,
apesar do pertencimento comum de alguns membros, a começar por José Bonifácio, Frei Sampaio e o próprio D. Pedro.
Para Frei Caneca, o Apostolado era um clube de aristocratas servis, que "tem chegado a penetrar o santuário do soberano
congresso e contaminado seus membros ao ponto de nos darem espanto as pessoas, que são indiciadas desta confraria;
trazem espiões, que pesquisam, vigiam e denunciam ao ministério todos os que julgam inimigos, não da causa do Brasil,
sim do despotismo ministerial por não pensarem do mesmo modo que eles".
Caneca não estava desinformado. Em abril de 1823, D. Pedro, na condição de Arconte-Rei, propôs que os membros do
Apostolado, das diferentes palestras assistissem às sessões da Assembleia Constituinte — nas palavras que constam da
ata — "para observarem os que se mostrassem pouco afetos à causa da Independência do Brasil e às liberdades dos
Deputados e darem parte na palestra a fim de darem-se as providências que parecessem justas".
A principal tentativa de interferir nos preparativos e nos debates da Assembleia Constituinte foi a formação, no interior do
Apostolado, de uma comissão que tinha por objetivo a redação de um projeto de Constituição para o Brasil. As assembleias
gerais do Apostolado no mês de março de 1823 foram dedicadas a discutir e aprovar os artigos desse projeto, que tinha
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada como seu Relator. Faziam parte dessa comissão José Bonifácio, Martim Francisco,
António Teles da Silva, Barão de Santo Amaro, José Egídio, Caetano Pinto de Montenegro, José Joaquim Carneiro de
Campos e Frei Sampaio. Na introdução no referido projeto, seu autor faz uma defesa do sistema monárquico constitucional.
Diz que ele seria o mais adequado, tendo em conta a extensão do território e as circunstâncias morais da população.
Os brasileiros aclamando o monarca, a quem livre e espontaneamente outorgaram a categoria de
Imperador, a quem juraram obediência, e fidelidade, mostraram que adotaram o sistema monárquico com
a firme esperança de que a futura constituição conciliasse os direitos do povo com os do seu imperante,
sem ofender as formas essenciais e constitutivas de uma verdadeira monarquia mista. Continuam nesse
preâmbulo:
A essência desse governo consiste na divisão de poderes e em sua mútua harmonia, porque uma
Constituição não é um ato de hostilidade, porém um ato de união, que fixa as relações recíprocas entre
o monarca e o povo, mostrando-lhes os meios de se sustentarem, de se apoiarem e de se ajudarem
mutuamente.
Por esse projeto, o Brasil seria uma monarquia constitucional, a partir da divisão e da harmonia entre três Poderes: o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A pessoa do imperante seria inviolável e sagrada. O Poder Executivo seria exercido,
em nome do Imperador, pelos Ministros de Estado, que se responsabilizariam pelos seus atos perante o Senado ou na
presença de um júri composto de 12 membros. A acusação dos Ministros seria decretada pela Câmara dos Representantes,
por uma comissão.
Definia também que a liberdade civil consistia na faculdade de fazer tudo o que a lei não proibia, que só à lei competia
limitá-la por meio dos seus órgãos e debaixo de formas claras e determinadas. Garantia a plena liberdade de imprensa,
definindo que nenhum escrito poderia ser censurado nem antes nem depois de publicado. O voto seria de acordo com o
rendimento dos eleitores, sendo que os eleitores da Câmara dos Representantes não poderiam ser os mesmos da Câmara
dos Senadores. A religião Católica Apostólica Romana, una e indivisível, seria a religião do Estado e do povo brasileiro.
Prometia uma instrução pública primária gratuita e garantia a unidade de uma legislação civil e criminal, a uniformidade
do ensino público, a igualdade dos direitos civis e políticos, a existência de uma nobreza processual e vitalícia, com
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prêmios de serviços feitos, a abolição de todos os privilégios e qualificações feudais, do confisco de bens e da pena de
infâmia para os descendentes do réu infamado. Garantia a independência dos tribunais, que os juízes da justiça civil seriam
inomináveis e vitalícios. Em matéria criminal, os debates seriam públicos, o fato, julgado por jurados, e a lei, aplicada pelos
juízes. Garantia o direito de petição, os socorros públicos, a inviabilidade da propriedade e da dívida. Garantia também a
conservação da Ordem do Cruzeiro, das cores nacionais e das recompensas conferidas pelos serviços civis e militares.
Contudo, um dos pontos mais polêmicos era a composição do Poder Legislativo. A legislatura compõe-se, na perspectiva
do projeto, de três forças distintas em seus elementos, a saber: de um monarca, de uma Câmara dos Representantes e de
uma Câmara dos Senadores.
Depois de adiada a aprovação, quando da sua primeira discussão, esse artigo foi aprovado, não sem antes o relator
apontar as razões que tivera a comissão para a organização de uma segunda Câmara de Senadores, destruindo com
argumentos muito bem fundados os prejuízos daqueles que espalhavam entre o povo ideias de oposição contra esse
estabelecimento, figurando como um degrau para o despotismo e para um Senado de aristocratas. O Senado seria composto
por membros temporários, com mandatos de duração 4 vezes maior do que a dos mandatos de Deputados, embora a
comissão reconhecesse que a Constituição seria melhor garantida se os mandatos fossem vitalícios. Aprovou-se também
que os Senadores seriam escolhidos pelo Monarca a partir de uma lista tríplice apresentada pelos eleitores.
Outro ponto polêmico desse projeto, discutido no interior das reuniões do apostolado, muitos deles na presença do
Imperador, foi o art. 7º, que facultava ao Monarca a iniciativa de propor leis. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada,
como Relator do projeto, argumentou que, sendo o Monarca uma parte do corpo legislativo, competiam-lhe de direito as
atribuições de proposição, aprovação e oposição, que o Monarca é chamado impropriamente de Poder Executivo, porque
este Poder é exercitado pelo Ministério, que era preciso, a bem da Nação, dar-se ao Monarca o poder de se opor a leis
injustas e desarrazoadas, sendo certo que nada há mais despótico do que a reunião de homens com todo o poder e ao
mesmo tempo com a certeza de que não existe nem força política nem moral para lhes resistir, ficando, deste modo,
a Nação sujeita ao despotismo de muitos, quando pensava que escaparia ao despotismo de um só. Embora o artigo do
projeto de Constituição tenha sido aprovado, essa discussão não ficou restrita ao apostolado, ganhando as ruas, a ponto de
o Secretário da primeira palestra, o Frei Sampaio, defender, em reunião de 25 de março de 1825, que a luta deveria ganhar
a opinião pública, em defesa de uma monarquia constitucional. De certa maneira ele coloca esse debate nas páginas do
jornal O Regulador Brasileiro.
Como é sabido, as discussões em torno dos limites do Poder soberano acabaram por justificar a dissolução da Constituinte,
em novembro de 1823. O projeto de Constituição possuía 24 artigos, mas apenas os 16 primeiros foram discutidos nas
assembleias gerais da Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz. Essa interrupção foi motivada pelo encerramento das
atividades do apostolado, determinada pelo Imperador, em meio à crise política que resultou na demissão dos Andradas
do Ministério, em julho de 1823.
Se o processo de mudança política em curso não pode ser reduzido aos embates entre os chamados grupo do Ledo e grupo
do Bonifácio, essas disputas são paradigmáticas para pensarmos os diferentes projetos políticos e as diferentes concepções
de soberania em disputa. Enquanto o grupo do Ledo defendia um governo baseado na soberania popular, tendo D. Pedro
como chefe escolhido pelo povo e subordinado aos seus representantes, o grupo do Bonifácio defendia uma Constituição
que limitasse os poderes da Assembleia Legislativa, aceitando a autoridade soberana como o direito legalmente herdado
através da dinastia.
Ao longo da exposição, procurei chamar a atenção para o processo de constitucionalização do regime nos anos iniciais da
década de 1820, fora das Cortes ou da Assembleia Constituinte. Com seus rituais peculiares, com a valorização do vínculo
baseado no compartilhamento de um segredo, na prática do juramento, da discrição e do autocontrole, com a adoção de
constituições escritas, de práticas representativas e do debate, os espaços associativos de tipo maçônico funcionaram,
como eu já disse, como escolas de formação política. Ao propiciar a internalização de novas regras de conduta moral e
política, esses espaços foram fundamentais no processo de construção de uma cultura constitucional, que, como tivemos
a oportunidade de demonstrar, também esteve marcado pelo conflito, pelas disputas ou diferentes expectativas em relação
ao futuro.
Apesar dos conflitos e dos diferentes projetos, os dois grupos possuíam a clara percepção da necessidade de uma
Constituição para fundar e definir as regras do espaço político. Como assinala Iara Schiavinatto, "naquele momento tudo
encaminhou para atar D. Pedro à Constituição, com a qual conviveu tensamente. Chegou a fechar uma Constituinte,
porém, não podia negar-se à elaboração de uma Constituição, que estava entranhada à sua persona."
Obrigado. (Palmas.)
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O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito bem. Agradecemos a participação
do Prof. Alexandre Mansur Barata, que trouxe interessantes elementos sobre as reuniões internas da maçonaria e do
apostolado naquele período pré-Constituinte e até mesmo durante a Assembleia Constituinte de 1823.
Antes de abrir a palavra ao público, dirigindo-me aos palestrantes, vou fazer a primeira pergunta e quero endereçá-la à
Profa. Cecilia.
A Profa. Cecilia nos ouve?
A SRA. CECILIA HELENA LORENZINI DE SALLES OLIVEIRA - Espero que vocês estejam me vendo também.
(Risos.)
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Estamos vendo e ouvindo bem.
Profa. Cecilia, a senhora me ouve?
A SRA. CECILIA HELENA LORENZINI DE SALLES OLIVEIRA - Sim.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Prestando atenção à palestra que a
senhora nos apresentou, extremamente interessante, sobretudo sobre a questão dos debates, em função do elemento servil,
da escravidão e da dilação ou não do prazo em que poderíamos continuar tendo escravidão no Brasil, eu pergunto: a senhora
atribui esse debate, esse conflito, essa dúvida como uma das possíveis causas importantes da dissolução da Assembleia
Constituinte?
A SRA. CECILIA HELENA LORENZINI DE SALLES OLIVEIRA - Bem, muito obrigada pela questão.
Sim, eu acredito que sim, porque o que estava acontecendo era uma situação bastante complexa. Havia uma negociação
internacional muito difícil, muito complexa. A Grã-Bretanha forçava o Governo de D. Pedro, para obter o reconhecimento
da independência de Portugal primeiro e, depois da Grã-Bretanha, teria que acordar a supressão do tráfico internacional,
não propriamente da escravidão, mas do tráfico internacional, 1 ano após a assinatura do tratado. Esse era um dilema.
O próprio José Bonifácio deixou cartas, deixou vários registros, e, como ele, outros diplomatas, em que colocava com
toda a clareza que, se D. Pedro, naquele momento, aceitasse essa condição, a grande maioria dos pequenos, médios e
grandes proprietários de terras e lavradores ia se virar contra o Governo de D. Pedro. Por quê? Porque, se se coloca um
prazo para o fim do tráfico, coloca-se um prazo também para o fim da escravidão. O Governo não podia aceitar dessa
maneira. Então, o que houve? Enquanto se tratava dessa negociação, dessa conversação, vamos dizer assim, em off, nos
bastidores, o Governo tentou encaminhar uma negociação dentro da assembleia.
O objetivo não era obter da assembleia um prazo para o fim do tráfico, era obter da Assembleia Constituinte o aval de que o
Governo poderia negociar com a Inglaterra um prazo, mas não se sabia qual era. A Assembleia Constituinte, ao longo dos
seus debates, acabou estabelecendo uma série de medidas. A assembleia estabeleceu que o prazo de supressão do tráfico
seria de 4 anos depois da assinatura do tratado, mas que o tratado internacional deveria ser homologado, acompanhado
pela assembleia, o que era uma derrota para o Governo naquele momento. Isso criou uma tensão muito grande.
Nós sabemos que os tratados de reconhecimento da independência foram assinados entre 1825 e 1826, e o que está escrito
lá é que 3 anos depois de os tratados serem assinados haveria a supressão do tráfico. Só que isso não aconteceu. Através
de uma série de negociações — e a própria Câmara dos Deputados interferiu —, nós sabemos que o tráfico no Brasil só
foi suprimido em 1850.
Então, veja que naquele momento a negociação com a assembleia criou um impasse. Sem dúvida, um dos motivos da
dissolução foi esse. Eu penso dessa maneira. Não sei se me fiz entender.
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Perfeitamente. Muito obrigado, Profa.
Cecilia.
Eu indago aos presentes, aos que estão aqui presencialmente, porque essas palestras estão sendo transmitidas para todo
o Brasil pelo Youtube, no canal da Câmara dos Deputados, eu indago aos presentes aqui de maneira física, se desejam
fazer algum questionamento aos expositores. (Pausa.)
Vejo lá atrás um jovem se manifestar.
Como você se chama? (Pausa.)
O jovem Breno pergunta ao Prof. Alexandre Mansur Barata como ele enxerga o fechamento das lojas maçônicas por D.
Pedro I?
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Agradeço ao eminente Prof. Alexandre
Mansur Barata e indago se na plateia alguém deseja... (Pausa.)
O microfone será levado até aí. (Pausa.)
O SR. ANDRÉ HERÁCLIO DO RÊGO - Meu nome é André Heráclio do Rêgo, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
Eu queria recordar que houve outra experiência constitucional e maçônica muito importante, que não foi mencionada nesta
tarde, que foi a experiência da Revolução Pernambucana de 1817, e da sua lei orgânica. O autor dessa lei orgânica foi
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que também participou das Cortes Constituintes de Lisboa e foi o principal redator
do projeto da Constituinte de 1823. Há uma ligação, há uma filiação direta entre 1817 e 1823, daí para 1824, estendendo-
se o raciocínio um pouquinho para 1826 também, com a Constituição portuguesa.
Eu pergunto ao Prof. Alexandre: não se atribui à historiografia, tanto brasileira... Sobre a portuguesa até entendo, mas a
historiografia brasileira não atribui um valor, uma importância exagerada ao vintismo, às Cortes Constitucionais de Lisboa
de 1820, haja vista que nós tivemos aqui no Brasil, antes das cortes, uma experiência que também foi derivada do debate
constitucional que era feito sobretudo através das lojas maçônicas, dos dois lados do Atlântico? Se as Cortes Constituintes
de Lisboa foram originárias, de certa forma, da revolta de Gomes Freire de Andrade, em 1817, no mesmo ano houve em
Pernambuco a Revolução de 1817, que também teve consequência e teve a experiência constitucional.
Eu tenho a impressão de que se atribui uma importância exagerada ao vintismo. Eu queria saber a sua opinião. Aliás, o
professor pelo jeito não concordará comigo, mas eu queria mostrar isso, saber o que ele acha do assunto.
Obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Devolvo a palavra ao Prof. Alexandre.
O SR. ALEXANDRE MANSUR BARATA - Não, eu acho que não é nenhuma questão de concordar ou discordar. O que
eu tentei fazer um pouco aqui hoje foi chamar a atenção para o fato de que essa cultura constitucional não é exclusiva dos
espaços ditos, das Assembleias Constituintes, seja ela o vintismo, seja ela a de 1823. Quer dizer, essa discussão perpassa
outros espaços e outros lugares e constrói outras formas de experiência, que são muito importantes e às quais às vezes
a historiografia não dá o devido destaque.
Esses espaços associativos, dos quais a maçonaria é apenas um dos exemplos, parecem-me ser espaços importantes de
prática constitucional, sim, de debate, de definição de direitos, de definição de organizações, de divisão de poderes,
funcionando como um lugar de aprendizado. Nesse ponto, independentemente se é o vintismo ou se é 1817, essa cultura
política constitucional já está presente bem antes na tradição maçônica, recuperando o século XVIII.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Agradeço mais uma vez ao Prof.
Alexandre e ao Prof. André, que, como pernambucano que é, defende que o Oceano Atlântico nasce da união do Rio
Capiberibe com o Rio Beberibe. (Risos.)
Brincadeiras à parte, de fato, o Prof. André traz aqui um elemento interessante, ele traz aqui uma linha condutora: sendo o
Relator do texto de 1823 o Antônio Carlos, o próprio Antônio Carlos tinha sido também o autor da Constituição provisória
da República de Pernambuco, de 1817. Ele reclama que a historiografia brasileira não faz tanto esse link. Realmente, é
um tema vibrante para estudo.
Há mais uma pergunta da plateia.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
Por favor.
O SR. JOSÉ THEODORO MASCARENHAS MENCK - Boa tarde.
Sou José Theodoro Menck, da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados.
Eu gostaria de fazer uma pergunta à Profa. Cecilia sobre a questão vinculada aos tratados internacionais que estariam
sendo submetidos à Constituinte.
Mostro o meu espanto, porque, que eu saiba — e provavelmente estou errado —, a negociação da independência do
Brasil, o reconhecimento da independência pela Inglaterra se deu em Londres, onde se encontraram o futuro Visconde de
Itabaiana, o Marquês de Barbacena, auxiliados indiretamente, mas com não muito apoio do Hipólito José da Costa. Como
essas negociações em Londres acabaram refletindo no funcionamento da Assembleia Constituinte? É a questão que eu
gostaria que a Profa. Cecilia me esclarecesse.
Obrigado.
A SRA. CECILIA HELENA LORENZINI DE SALLES OLIVEIRA - José, agradeço a pergunta.
Você tem razão. As negociações começaram mais ou menos em agosto de 1822, um pouco antes até, em Londres, mas
havia uma correspondência muito ativa entre os enviados brasileiros: o Caldeira Brant e os embaixadores britânicos. O
que acontece é que, especialmente durante o período do Chamberlain, ele e José Bonifácio tentaram articular, mais para o
fim de 1822, começo de 1823, esses tratados. É interessante, porque, a despeito da enorme distância temporal, porque uma
carta demorava quase 2 meses para chegar a Londres e vice-versa, havia uma navegação muito contínua e havia também
a chegada e a saída de emissários e de correspondência diplomática.
A questão chegou à Assembleia, não por conta do Bonifácio, e sim por conta de Carneiro de Campos, que substituiu
Bonifácio no Ministério depois que ele se demitiu ou foi demitido. Essa é uma história que ainda precisamos analisar com
um pouco mais de cuidado, porque são muito controversas as razões da saída do Bonifácio e o fato de ele ter se tornado
uma oposição ao Governo de D. Pedro dentro da Assembleia.
O que aconteceu? Enquanto as negociações ocorriam nos bastidores, não havia a necessidade de fazer uma consulta à
Assembleia. Porém, como os enviados britânicos estavam pressionando para que o tratado tivesse um artigo dizendo
que, após 1 ano da assinatura, o Brasil suspenderia o tráfico de escravizados, o Carneiro de Campos, mesmo enfrentando
dificuldades dentro do gabinete — nem todo mundo dentro do Governo concordou com o que ele ia fazer —, resolveu,
como Deputado... Naquela época aconteceu uma coisa muito interessante: Ministros de Estado podiam ser Deputados ao
mesmo tempo. Não havia essa incompatibilidade. Então, Carneiro de Campos era Deputado e era Ministro também. E ele
resolveu levar à Assembleia o problema, não para que a Assembleia resolvesse... Aliás, foram três sessões secretas, em
outubro de 1823, e justamente em 13 de novembro, logo em seguida, a Assembleia foi dissolvida.
O Carneiro de Campos levou o problema à Assembleia pensando assim: "Eu vou pedir um aval, um apoio da Assembleia
para levar a conversa adiante, mas sem haver uma definição de prazo". E o que aconteceu foi que ele perdeu a mão.
Durante as discussões, o Vergueiro, o próprio Andrada e outros Deputados passaram na frente dele e disseram: "Não,
se você veio à Assembleia, então a Assembleia vai dizer como é que o Governo vai fazer. Nós queremos participar do
tratado, nós queremos mediar o tratado e nós queremos estabelecer o prazo para o fim do tráfico de escravizados".
Isso foi uma derrota para o Governo, porque os enviados britânicos ficaram completamente sem saber como agir. Então,
vejam que foi o próprio Ministro que acabou levando o problema para a Assembleia, não para que ela resolvesse, mas
para obter o apoio dela, só que não foi isso que aconteceu. Na verdade, houve um acirramento de tensões.
Espero ter encaminhado a sua pergunta.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito obrigado, Profa. Cecilia.
Indago à plateia se alguém mais deseja fazer alguma consideração. (Pausa.)
Não havendo mais quem deseje fazer alguma pergunta aos palestrantes, eu encerro a rodada desta Mesa, agradecendo
as participações do Prof. Alexandre Mansur Barata, da Universidade Federal de Juiz de Fora; da Profa. Cecilia Helena
de Salles Oliveira, da Universidade de São Paulo; e do Dr. José Oliveira Anunciação, ex-Diretor do Departamento
de Taquigrafia da Câmara dos Deputados, que se apresenta aqui presencialmente conosco e nos trouxe informações
interessantes e curiosas sobre a formação da Taquigrafia no Parlamento brasileiro em 1823.
Encerramos agora a presente Mesa mais uma vez agradecendo a participação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
e lembrando que o seminário está sendo transmitido ao vivo pelo canal da Câmara dos Deputados na plataforma Youtube.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
Nós vamos fazer um breve intervalo e retornaremos daqui a aproximadamente meia hora ou 40 minutos para a próxima
Mesa, a terceira Mesa, O Legado da Constituinte de 1823, com o Prof. Fabio Siebeneichler de Andrade, da PUC do Rio
Grande do Sul; o Prof. Marcelo Casseb Continentino, da Universidade Federal Rural do Semiárido — UFERSA; e o
Prof. Pablo Antônio Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste da Bahia — UFOB, que participará conosco
presencialmente.
Nós encerramos agora esta Mesa. Faremos um breve intervalo e, daqui a alguns instantes, iniciaremos a próxima Mesa.
Muito obrigado.
Boa tarde a todos.
(Pausa prolongada.)
Pontuo, como é sabido de todos, de muitos aqui presentes, que essa circunstância, a vigência, a permanência em vigor da
legislação portuguesa deveria perdurar até que se organizasse um código para o Brasil. Havia aqui, portanto, uma dupla
posição da Assembleia Constituinte. De um lado, enfatize-se, a decisão, que talvez não houvesse outra a tomar naquele
momento, no calor da hora, meses depois da proclamação da Independência, em setembro de 1822, menos de 1 ano da
proclamação da Independência, de manter em vigor a legislação portuguesa, e, de outro, essa diretriz, essa perspectiva,
essa idealização de que se realizasse a codificação no direito brasileiro.
Ressalte-se que essa disposição da Assembleia Constituinte, de algum modo, foi mantida na Constituição outorgada de
1824, no art. 179, inciso XVIII, que previa uma codificação civil e criminal para o Brasil, fundada nas sólidas bases da
justiça e da equidade.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
Então, caros colegas, eminentes autoridades, seriam essas as diretrizes, os tópicos principais da minha singela manifestação
na tarde de hoje. De um lado, quero destacar a decisão de manter e de, algum modo, estabelecer a permanência da matriz
lusitana no direito privado brasileiro. Esse seria o primeiro ponto.
E o que se pretende aqui enfatizar é que efetivamente deu-se uma trajetória ao direito brasileiro muito peculiar em relação
aos demais países, em especial à sua, entre aspas, "matriz". Isso porque o fato é que o direito brasileiro permaneceu, a
partir dessa decisão da Constituinte de 1823, tendo a vigência da legislação portuguesa, especialmente, como é sabido
não quero dizer de todos, mas de muitos que têm um conhecimento jurídico, as famosas ordenações. Essa legislação
portuguesa acabou se mantendo no direito brasileiro não só durante todo o Império, mas também até o advento do Código
Civil brasileiro de 1916, nossa primeira codificação.
E por que isso é importante? Porque, de alguma forma, com isso se manteve no direito brasileiro, e ainda se mantém,
a famosa conhecida forma romana de aquisição da propriedade, que é no sentido da diferenciação da exigência de um
chamado, permitam-me essa linguagem, binômio, o famoso título mais modo. Para que nós sejamos proprietários no
direito brasileiro, e pinço como exemplo a aquisição da propriedade imobiliária, nós precisamos ter, de um lado, o título,
mais precisamente um contrato, o contrato de compra e venda, e, de outro, a celebração desse contrato por escritura
pública, normalmente, e também levar o contrato ao registro do registro imobiliário.
Com a preservação desse ideal, o direito brasileiro se diferencia do direito português. Por quê? Porque o direito português,
em 1867, com o advento do seu primeiro Código Civil, adota o chamado princípio consensualístico, a ideia de que o
próprio contrato translativo, em geral o contrato de compra e venda, é suficiente para a aquisição da propriedade. O
direito brasileiro, portanto, vai resguardar uma matriz lusitana, dito em estilo singelo e até jornalístico, o que nos torna
mais depositários da herança lusitana do que propriamente Portugal, porque Portugal sofrerá a influência desse princípio
consensualístico decorrente da herança francesa do Código Civil de Napoleão.
É claro que, podemos dizer isto, não somos os únicos que mantivemos a forma romana. É famoso, é conhecido que o direito
alemão segue essa forma. A Áustria também segue essa forma. No entanto, o fato é que, no direito alemão, nós temos
o conhecido modelo da abstração, a completa separação entre o título e o modo, enquanto o direito brasileiro mantém a
forma, a solução romana, sendo possível uma interação entre as duas etapas de aquisição da propriedade.
É bem verdade que esse modelo pode ser criticado, pode ser objeto de indagações, porque muitos autores sustentam que
a manutenção desse sistema formal impede a regularização fundiária. São muitas as exigências que se fazem no Brasil
para o particular, para todos nós. Quem, às vezes, não se insurge contra as exigências burocráticas para aquisição da
propriedade no nosso País? A verdade é que esse sistema tem sido atualizado e há tentativas de flexibilizá-lo, mantendo-
se essa estrutura oriunda dessa decisão da Constituinte de 1823 de manter em vigor a legislação portuguesa.
Então, esse seria o ponto que eu gostaria de destacar aqui na tarde de hoje como um fator, um vetor possível do legado da
Constituinte de 1823 para a trajetória e para a moldura, para moldar, até para usar uma expressão francesa, a mentalidade
do ordenamento jurídico e da estrutura jurídica do nosso ordenamento.
O segundo ponto que eu gostaria de destacar também está nessa decisão e nessa diretriz da Constituinte de 1823. Trata-
se da circunstância de que a legislação portuguesa seria mantida em vigor até que se adotasse uma codificação para o
direito brasileiro. Temos aqui, então, uma diretriz que, de um lado, foi perseguida no Império e que, por outro lado, foi
adotada também no Império. Ela foi adotada, primeiro, no Código Criminal, de 1831, e, segundo, porque se trata de uma
particularidade do direito brasileiro... Somos um dos poucos países do mundo em que o Código Comercial antecede o
Código Civil. Isso não ocorreu na França napoleônica. Na França napoleônica, o Código Civil é antecedente ao Código
Comercial. O Código Comercial vem depois. Sendo um pouco repetitivo, ele é posterior, primeiro se fez o Código Civil.
No Brasil, temos, por larga margem, a circunstância de que o Código Comercial é de 1850. E o fato é que não tivemos
no Império a promulgação de um Código Civil brasileiro.
Trata-se, inclusive, de um dos maiores debates da nossa historiografia jurídica o porquê de o Brasil não ter tido um Código
Civil no Primeiro Império ou no Segundo Império, nem mesmo no século XIX, mas só ainda no alvorecer da República.
Os especialistas — categoria na qual eu não me incluo, eu sou um singelo professor de Direito Civil — debatem essa
circunstância. São muitos os fatores suscitados na doutrina para essas circunstâncias históricas que marcam o direito
brasileiro. Uma delas seria justamente uma herança da Constituinte de 1823, a circunstância de que, por força da vigência
das ordenações, teríamos no Brasil uma codificação sub-reptícia, já teríamos uma codificação, as ordenações fariam as
vezes de codificação. Desse modo, não se precisou adotar um código porque, na verdade, as ordenações teriam assumido
esse papel de centralidade.
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Alguns autores propugnam uma orientação mais pontual no sentido de fazer uma crítica ao nosso estamento. Não se
poderia fazer uma codificação em face do distanciamento entre o Estado e a população. Havia a ideia de que essa noção,
a codificação, uma noção liberal não teria lugar num país como o Brasil, onde as estruturas sociológicas não estariam
efetivamente em harmonia com essa diretriz liberal.
Uma terceira posição, talvez mais pragmática, é que a codificação exige uma centralização política. Essa centralização
política se deu na França pós-revolucionária, a partir da diretriz de Napoleão, que, como nós sabemos, teria participado
ativamente das discussões sobre o Código Civil, tendo inclusive adotado posições em várias das questões jurídicas ali
suscitadas.
Em segundo lugar, mesmo na Alemanha, no fim do século XIX, a codificação ou o famoso BGB — Bürgerliches
Gesetzbuch somente surge quando já temos o Império alemão. De algum modo já se unificou, sob a diretriz prussiana
de Bismarck, a Alemanha. Então, surge a dúvida sobre se teríamos as condições políticas, no século XIX, mesmo a
partir da segunda metade do Segundo Reinado, para essa codificação civil, quando muitas das províncias ainda não
tinham efetivamente se vinculado ao poder central. Isso é algo que vemos no Rio Grande do Sul, seja com a Revolução
Farroupilha, seja, mesmo depois, com a Guerra Civil de 1893. O Rio Grande do Sul é paradigmático para demonstrar
como as províncias ainda não tinham se unificado plenamente com o poder central. Então, será que isso não seria uma
verdadeira barreira para a codificação?
De qualquer modo, eu não quero, digamos assim, tornar isso um filme de suspense. Longe de mim isso. E ainda mais
num ambiente tão sério como é o nosso seminário. Mas o fato é que remanesce um mistério, porque é comum os grandes
protagonistas da história, os líderes, como Napoleão e, indo muito longe, até mesmo como Justiniano, com o Corpus Juris
Civilis, tentarem vincular o seu nome com a codificação de algum modo, uma vez que a codificação persiste, mas isso
não se deu no Império. Não se vê na figura do Imperador a empatia com a ideia da codificação.
Estabelecida essa circunstância, fato também é que, na República, teremos o primeiro Código Civil. Ao longo da
República, teremos tentativas inúmeras de reforma do Código Civil. Paralelamente a isso, teremos uma circunstância que
também merece ser destacada, que foi o advento da primeira das codificações processuais.
Esse é um ponto que merece ser destacado, porque, até a Era Vargas, tínhamos no nosso ordenamento, na nossa concepção
jurídico-política legislações processuais estaduais, e isso se extingue com a Era Vargas e com o nosso primeiro Código
de Processo Civil, que foi o Código Processo Civil de 1939. Então, de alguma forma, a partir da Era Vargas, efetivamente
se incrementa o processo codificatório que vai conduzir ao nosso estágio atual de termos um segundo Código Civil, um
terceiro Código de Processo Civil e, justamente agora, por iniciativa conjunta do Senado e atuação de integrantes da
sociedade civil e do Superior Tribunal de Justiça, um projeto de reforma do Código Civil.
Portanto, de modo singelo, considero que, sim, há um legado da Constituinte de 1823. Em primeiro lugar, há uma
matriz lusitana num dos pontos cruciais, nucleares, do direito privado, que é o processo de aquisição da propriedade.
A propriedade é um dos pilares do direito privado e, inclusive, do direito constitucional, porque a propriedade é um
direito fundamental do cidadão previsto na nossa Constituição. Então, a aquisição da propriedade é um ponto fundamental
da ordem jurídica privada e um direito fundamental do cidadão. Em segundo lugar, há legado da Constituinte de 1823
no nosso processo codificatório, porque os Constituintes de 1823 estabeleceram essa diretriz, que, de algum modo, foi
cumprida ao longo do Império e da República. Então, eu concluo sustentando que, de algum modo, nós estamos, sim,
conectados, para usar a linguagem atual, aos Constituintes de 1823.
daquilo que já estava nos livros sobre direito das coisas e sobre direito de família de Lafayette, que Clóvis Beviláqua
reverenciava muito e admirava. Clóvis Beviláqua era bem mais novo.
Mas, como não sou um palestrante da tarde, eu passo, com imensa alegria, a palavra para o Prof. Marcelo Casseb
Continentino, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco.
O SR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO - Eu queria iniciar esta minha intervenção de hoje à tarde agradecendo
ao Presidente da Comissão e da Mesa, o Deputado Lafayette de Andrada, pelo convite, que muito me honrou e distinguiu.
Eu quero, na sua pessoa, Deputado, cumprimentar todos os membros da Mesa, em particular o nobre confrade André
Heráclito, historiador também, com quem já dividi outras frentes comemorativas no passado.
Eu quero registrar, com muita satisfação, que é digna de louvor esta iniciativa da Câmara de comemorar, junto com o
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, o bicentenário da Constituinte de 1823. Devo dizer que essa iniciativa não é
inédita, porque outras instituições têm se alinhado com esse movimento de memória histórica, como, por exemplo, o
Supremo Tribunal Federal e o Senado Federal. Eu também tive a oportunidade de participar, numa universidade, de um
evento comemorativo no dia 3 de junho de 2023.
Essa inciativa não é inédita na própria Câmara dos Deputados, porque, há 100 anos, Presidente Deputado Lafayette, esta
Casa comemorou o centenário da Constituinte. O então Presidente Arnolfo Azevedo deixou um grande legado para a
história constitucional e política brasileira, que foi o Livro do Centenário da Câmara dos Deputados. Na ocasião, foi feita
uma exposição aqui no Rio de Janeiro, onde toda essa história se iniciou, no prédio da famosa Cadeia Velha, tão notável,
que sediou fisicamente a Constituinte de 1823.
Então, eu não tenho dúvida de que hoje, 200 anos após o dia 3 de junho de 1823, da Constituinte, que está na iminência de
completar o bicentenário de sua dissolução, nós temos várias instituições, pesquisadores e historiadores envolvidos nessa
temática, que é simplesmente fundamental para o percurso de nossa história constitucional.
Quanto à proposta da nossa Mesa, O legado da Constituinte, veio à cabeça um texto importante do grande historiador
Reinhart Koselleck em que ele discute a noção de legado como uma categoria historiográfica. Koselleck pergunta por que
os Estados e as instituições têm se empenhado tanto em celebrar as datas comemorativas. A partir do estudo dessa noção
de legado, ele chega a uma semântica em que, eu diria, há uma dupla intencionalidade de temporalidades distintas: uma se
dirige ao passado, ao que está na sua perspectiva de memória, de lembrança; a outra se dirige ao tempo presente e também
ao futuro, numa perspectiva de que essa instituição que se celebra no passado, de alguma forma, tem uma importância
atual e, por isso mesmo, tem que permanecer. É uma forma de legitimar o exercício dessa instituição que tem servido a
uma comunidade, a uma sociedade.
Parece-me que, de certa forma, quando nós lembramos a Constituinte de 1823, como ela funcionou, a sua importância
naquele momento, estamos querendo dizer para a sociedade, hoje, que aquele é um modelo digno de servir como espelho
para nós e que devemos fazer todo o esforço para manter essa tradição que se iniciou lá atrás.
Então, de certa forma, o legado significa um julgamento, no tempo presente, de um passado que aconteceu e que deve
permanecer.
Essa percepção de história — em certa medida, já diria Benedetto Croce que a história é sempre um exercício do tempo
presente — nos leva a uma perspectiva dialogada, que é essa perspectiva que eu penso ser importante nós adotarmos
aqui na minha fala de hoje. Como eu posso, estando hoje no presente, dialogar com o que aconteceu com aquela geração
do passado que esteve lá na Constituinte? Que formas de relações são possíveis de serem estabelecidas entre a geração
passada e a geração atual?
A partir disso, eu quis enfatizar dois pontos que, a meu ver, são cruciais nesse exercício próprio de se fazer uma história.
O primeiro legado que eu acho que a Constituinte nos deixa é o legado de perceber e compreender a Constituição como a
pedra de toque do sistema político nacional. Poderíamos adotar várias soluções para resolver aquele problema crucial para
o qual a Constituinte foi chamada, mas nós resolvemos adotar a sistemática de um governo representativo constitucional,
com eleições para representantes extraordinários que iriam elaborar uma Constituição. O segundo legado principal é
entender a Constituinte como o elemento constitutivo de um governo legítimo, representativo e — bem entre aspas, porque
a palavra na época não tinha o sentido que tem hoje — "democrático". Esses são os dois grandes legados. Eu vou tentar
trazer algumas considerações e terei como objetivo analisá-los daqui por diante.
Em relação à Constituição como pedra de toque, eu diria que nós estamos vivendo hoje no Brasil, de um tempo para cá,
naturalmente, a era dos bicentenários, em que muitos dos marcos históricos fundamentais entrelaçam-se nessa tessitura
histórica, da qual se ergueu o Estado de Direito do Brasil. É um tempo único, sem dúvida alguma, de celebração, mas
também é — essa era que ocorreu lá atrás, que se inicia em 1808 — um período único de profundas mudanças, em que
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revoluções, crises, a própria imprevisibilidade do futuro e a aceleração do tempo foram marcas presentes no horizonte
daquelas gerações.
Nós tivemos o bicentenário de 1808, que registrou a chegada da Família Real ao Brasil, que, mais do que uma simples
anotação de um diário de bordo, significou o início de grandes mudanças em nossa vida colonial, a ponto de a então
colônia do Brasil se transformar em Reino Unido de Portugal. A partir daí, uma série de questões foi colocada e acarretou,
lá na frente, a própria Independência.
Dentre essas alterações, eu me lembro sempre da frase lapidar do historiador Evaldo Cabral de Mello de que, a partir
da chegada da Família Real, Lisboa não era mais Lisboa; o Rio era Lisboa, o Rio é Lisboa. O eixo gravitacional do
Império Português havia se transformado, havia modificado. Tudo estava agora girando em torno aqui do Brasil. Dentre
várias consequências dessa mudança do eixo gravitacional do Império, nós tivemos, em 1817, a Revolução Republicana,
que também teve seu bicentenário celebrado pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, pelo Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano, dentre outras tantas instituições, inclusive com sessões solenes aqui na Câmara
e no Senado. Ali, também, nós tivemos a Proclamação da Independência e tivemos a edição de uma lei orgânica que,
segundo análises e pesquisas já realizadas, pode ser compreendida como a nossa primeira Constituição Nacional: a Lei
Orgânica da República, de 1817, em que se pretendia uma república de âmbito nacional, dado o caráter emancipacionista
desse movimento libertário que foi a Revolução de 1817.
Passada a Revolução de 1817, nós tivemos o bicentenário da Independência, celebrado no ano passado. É claro que é
sempre difícil falar da Independência em nosso País, porque nós tivemos vários movimentos de independência — esta é
a realidade. Mas o fato é que o 7 de Setembro foi galgado na nossa historiografia nacional como um marco fundamental
dessa separação do Brasil em relação a Portugal. Inclusive, este ato, associado ao 12 de outubro, do qual mais à frente
um pouco falaremos, vai ressignificar profundamente o ato de convocação das eleições gerais pelo Imperador para a
elaboração de uma Constituição.
Finalmente, nós chegamos, neste ano, ao bicentenário da Constituinte de 1823. Lembro que 1823 é a antessala de
1824. Avizinham-se, portanto, em realidade, mais dois bicentenários: o bicentenário da Carta de 1824 e também o da
Confederação do Equador de 1824, mais um movimento de caráter constitucional de contestação à própria outorga da Carta
do Império, justamente um dos legados que nós estamos explorando. Para Frei Caneca, líder intelectual da Confederação
do Equador, na sua perspectiva, a Carta não poderia ser uma Constituição, justamente porque lhe faltava um elemento
essencial para que ela fosse legítima, que era a participação ou o consentimento do povo brasileiro em relação à Carta.
O fato é que a era dos bicentenários foi permeada por todo esse período desde 1808 — é claro que ele vai muito mais
para trás, mas 1808 é um marco importante — e por uma grande recepção de novas ideias políticas e constitucionais e
crenças num futuro melhor, futuro esse que poderia ser ordenado a partir dos dotes da racionalidade humana. O Governo
não era mais um fato natural, não era mais uma dádiva divina, mas, antes, deveria ser legitimado a partir da própria ação
humana. A Constituição e as revoluções que foram se seguindo — desde a norte-americana à francesa e também as da
Espanha, as de Portugal e as que ocorreram ao longo da América Latina — foram mostrando que havia um caminho muito
próprio para o que era um dos objetivos da Carta ou de qualquer Constituição, que era o alcance da felicidade das nações.
Não é à toa que o próprio Frei Caneca, em 1824, numa das edições do periódico Typhis Pernambucano, escreve com
palavras bastante significativas, marcando esse momento que se vivia não só no Brasil, mas no mundo ocidental em geral.
Dizia Frei Caneca: "O princípio deste século tem sido empregado em política: constituições e seus projetos ocupam todos
os espíritos". A Constituição, portanto, era o portão de entrada na sociedade internacional. Isso os nossos governantes
sabiam bem. Qualquer Estado que pretendesse reconhecimento internacional deveria, pelo menos, ter como pretensão um
passaporte válido, que seria a própria Constituição, que registrava a saída da era da barbárie para o ingresso numa era
do progresso e do desenvolvimento.
O constitucionalista alemão e também juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha Dieter Grimm iria destacar
que a Constituição integra a proposta de um projeto universal, por meio do qual ela própria se apresenta como uma etapa da
evolução necessária de qualquer sociedade. Então, para se autorreconhecer um agrupamento de pessoas como sociedade
organizada desenvolvida, a Constituição era o próprio instrumento para tanto. Isso era uma convicção que havia entre
todos os líderes políticos da época.
Mas o fato é que nem todos os caminhos são igualmente legítimos, pois, na semântica política da época, a Constituição
pressupunha um conceito de Constituição, não só o conteúdo, como ficou bem estabelecido na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789. Direitos individuais e divisão dos Poderes eram o conteúdo mínimo de uma Constituição
— não só o conteúdo, mas também uma forma e um procedimento bastante peculiar para a sua elaboração.
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Aí, é justamente na Revolução Francesa, a partir dos escritos de Siess, que são, na verdade, uma grande complementação
à teoria do poder soberano, de Rousseau, que nós vamos ver surgir o conceito do poder constituinte.
Exatamente dentro desse contexto de uma Constituição elaborada a partir de uma Constituinte é que devemos compreender
o papel da Constituinte de 1823 como parte fundamental do projeto de construção política da Nação brasileira, que
pretendia ingressar no rol das nações da sociedade global.
A Independência do Brasil e a elaboração de uma Constituição nacional não eram parte de um projeto político predefinido
— lembremos disso. Antes, foi fruto do recrudescimento da animosidade entre brasileiros e portugueses, especialmente
a partir de 1821, também das deliberações da Corte de Lisboa e ainda do delicado xadrez político e geográfico colonial,
decorrente da instituição das juntas governativas que foram instituídas aqui no Brasil, fazendo com que todo o poder
colonial fosse fragmentado, como Denis Bernardes colocaria, numa relação tripolarizada: Lisboa; juntas governativas,
portanto, províncias; e Rio de Janeiro, onde estava sediado o Príncipe Regente como condutor da política nacional. Então,
nesse complexo quadro político, desenhavam-se para o Reino do Brasil vários cenários possíveis, desde a fragmentação
política à transformação do Reino do Brasil em diversas Repúblicas, a exemplo do que aconteceu na américo-espanhola,
passando por uma reintegração na qualidade de nova colônia ou neopaleocolônia, uma restauração da posição colonial
anterior do Brasil, ou ainda a própria Independência — essa, sim, a que foi definitivamente assentada. Diante desses
riscos — nós conhecemos bem a história do Brasil e não é nosso objetivo retratá-la —, o Imperador, aconselhado pelo
seu Ministro José Bonifácio, resolveu instituir o Conselho dos Procuradores-Gerais das Províncias, que seria responsável
por sinalizar quais seriam as opções que nós teríamos no Brasil para manter a integridade nacional, a integridade política
e territorial. É quando o próprio Conselho de Estado, reunido inicialmente em 2 de junho de 1822, elabora um parecer,
que já faz encaminhar no próprio dia 3 de junho ao Imperador, dizendo que a solução para os males do Brasil seria a
eleição para uma Constituinte, Constituinte esta que deveria elaborar uma Constituição para o Brasil Vejam que a ideia
de se convocar uma Constituinte parte não apenas de um ato unilateral do Imperador. Ela já surge de todo um processo
que vem acontecendo, não só no Brasil, mas na Europa, na América, de ideias que vão sedimentando, de movimentos
internos dentro do Brasil, que vem procurando por uma Constituição como o caminho, como o canal para a solução dos
conflitos políticos existentes dentro de uma nação.
Esse é o primeiro legado que queremos registrar aqui: a Constituição como esse elemento inicial e basilar, a pedra de
toque ou a pedra fundamental do sistema político nacional.
Ao longo dos 200 anos de política que nós tivemos, mesmo nos períodos de maior restrição democrática, nos períodos de
exceção, nos períodos autoritários, a Constituição ainda foi procurada como esse elemento de viabilização dos projetos
políticos — para o bem e para o mal, é verdade. Mas o fato é que esse legado a Constituinte ajudou a construir, quando
convocada.
A Constituinte fez o seu projeto, nós sabemos, mas, uma vez dissolvida, não pôde concluir a sua obra, embora o próprio
projeto da Constituinte de 1823 tenha sido, em grande parte, aproveitado pelo Conselho de Estado, responsável pela
elaboração da Carta de 1824.
Podemos concluir, nessa primeira perspectiva do legado da Constituinte de 1823, que, a partir de então, não se poderia
mais pensar na existência de um Estado de Direito sem a Constituição. Esse, sem dúvida alguma, é um elemento crucial
para entendermos a relevância política da Constituinte de 1823.
Sobre a Constituinte — e aqui eu já passo para o segundo ponto ou segundo legado da nossa Constituinte —, os
historiadores John Armitage e, em menor grau, Varnhagen pintaram um quadro bastante desfavorável dos membros da
nossa primeira Constituinte de 1823. É claro que entendemos as razões desses dois historiadores e o modo especial
como eles elaboravam sua própria história, uma história que tinha por trás um projeto político de legitimação do Estado
nacional, o que era muito próprio dos séculos XVIII e XIX. Contudo, nós também sabemos que, ao contrário do que eles
tentaram defender, ou seja, minorar a importância da Constituinte, sobretudo no seu fechamento abrupto pelo Imperador,
os membros da Constituinte eram intelectuais de primeira ordem, eram políticos estadistas, pessoas com formação
profissional acadêmica invejável. É o caso, por exemplo, do Visconde de Cairu, que, dentre outras tantas atribuições, era
professor e tradutor do grego arcaico; ou do próprio José Bonifácio, um respeitável pesquisador na Europa, além de um
grande cultuador das ideias políticas.
De tal modo, parte significativa dos Constituintes estava familiarizada não só com os grandes modelos constitucionais,
mas também com os grandes pensadores políticos da época. Nós tínhamos, portanto, grandes representantes em nossa
Constituinte. Ela foi um reduto de discussões verdadeiramente aprofundadas de propostas tendentes a resolver os grandes
problemas nacionais. Aqui já fica, de antemão, uma luz de como ela deve ser vista também hoje pelos nossos representantes
e pelo nosso Poder Legislativo.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
A Constituinte, contudo, podia muito, mas não podia tudo. Ela estava autorizada, sim, a elaborar uma Constituição, mas
a questão é: autorizada por quem a elaborar a Constituição? Até que ponto a Constituinte teria a liberdade de organizar e
estruturar o Estado brasileiro? Poderíamos instituir aqui uma República? É evidente que não. Mas por que não? Devemos
notar que a posição adotada pelo Príncipe Regente, quando convoca a Constituinte, era uma posição favorável aos
interesses brasileiros e contrária aos interesses portugueses. Isso atribuiu ao próprio Imperador uma legitimidade política
extraordinária, porque, de certa forma, lhe foi conferida — e isso foi defendido na Constituinte por vários de seus membros
— a própria paternidade da Constituinte, de modo que o Imperador estaria legitimado a moderar e, no limite, fazer o que
fez, que foi dissolver a própria Constituinte.
Para entendermos como isso se dá, é preciso, mais uma vez, lembrar o sentido político de uma data muito importante —
na época, muito mais importante do que o próprio 7 de Setembro —, que foi o 12 de outubro de 1822.
Foi justamente nessa data, já proclamada a Independência do País, que o Imperador foi reconhecido como Imperador
Constitucional do Brasil pelo povo brasileiro e, mais do que isso, foi-lhe conferido o título de Defensor Perpétuo do Brasil.
Essa atribuição do título foi a solução encontrada pelos defensores de D. Pedro, pelos políticos que compunham toda a
base de sustentação dele, a fim de que o monarca exercesse legitimamente o poder político sobre o Império do Brasil.
Como justificar a atribuição de poderes ao futuro governante do Brasil, quando ele era filho do Rei de Portugal, nação
em face da qual o Brasil acabara de se emancipar? Esse era um paradoxo que, para além de uma questão teórica, tinha
uma dimensão pragmática extraordinária.
A aclamação de D. Pedro como Imperador Constitucional, para muitos dos Constituintes, teria configurado o verdadeiro
momento constituinte desse processo todo que aconteceu em prol da elaboração da nossa Carta Constitucional, já que
foi por meio da manifestação do povo, dessa vontade política genuína que foi eleito o legítimo governante do Brasil e,
sobretudo, teriam sido assentadas as bases que deveriam ser seguidas pela Constituinte. E as bases eram os princípios da
monarquia representativa constitucional, dinástica, sempre a partir da perspectiva da religião católica.
Essa limitação, obviamente, iria trazer um tensionamento extremamente delicado para o modo como a Constituinte
começou a se comportar e a expectativa que o Imperador tinha do funcionamento dessa própria Constituinte.
Em seu discurso inaugural, realizado na data de instalação da Constituinte, exatamente em 3 de junho de 1823, D. Pedro
ressaltou a missão que era conferida à Assembleia Constituinte, nesses termos: "Fazer uma Constituição sábia, justa,
adequada e executável, ditada pela razão, e não pelo capricho; que tenha em vista somente a felicidade geral, que nunca
pode ser grande sem que esta Constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenham mostrado que
são as verdadeiras para darem uma justa liberdade aos povos" — e aqui a gente enfatiza — "e toda a força necessária
ao Poder Executivo".
Essa parte final da fala do Imperador é importantíssima. Somente com uma Constituição que se apresentasse moderada
ou conciliada com os princípios da monarquia, da dinastia dos Braganças, dessa tradição histórica do povo brasileiro, o
que significava, em outras palavras, excluir qualquer possibilidade de radicalização — e aqui os sinais estavam sendo
dados em face da Revolução Francesa, em face das Repúblicas da América espanhola que vinham sendo estabelecidas
—, o Imperador afirmou que poderia conceder sua imperial aceitação à Constituição elaborada por aquela Constituinte,
e ela assim seria digna dele, Imperador, e do próprio povo brasileiro.
Isso mostra, portanto, que a Constituinte, diferentemente do que nós estudamos nas bancas de direito constitucional,
não era ilimitada juridicamente. Ela era limitada juridicamente, sim, por essas balizas que teriam sido estabelecidas
previamente à sua convocação.
E aqui poderíamos dar uma série de exemplos. Eu me lembro sempre desse fato da disputa interna que houve em relação
a um artigo do regimento interno da Constituinte que dizia respeito à posição do trono imperial, se ele deveria, por
exemplo, ficar acima da cadeira do Presidente da Assembleia ou no mesmo patamar. Após uma discussão bastante acirrada,
prevaleceu a ideia de que o trono imperial deveria ficar um degrau acima, porque o Imperador era um ente superior à
própria Constituinte. Era ele o responsável por sua convocação e, portanto, no limite, era ele quem poderia até mesmo
— e isso já se dizia àquela época — fechar ou dissolver a própria Constituinte. Então, ele não estava no mesmo pé de
igualdade. Havia limites muito claros para a Constituinte.
Por uma série de fatores que eu não vou aqui especificar, até porque isso vai ser objeto de uma Mesa que se seguirá a esta
Mesa, a Constituinte foi interrompida. Ela foi acusada de perjúrio pelo Imperador, que, por meio de um decreto de 12 de
novembro de 1823, determinou o fechamento da Constituinte. E, no mesmo ato, ele promete que irá convocar uma nova
Constituinte para que faça uma Constituição duplicadamente mais liberal.
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Aqui vale a pena nós até relembrarmos o próprio legado em si da Constituinte, aquele primeiro que nós mencionamos: a
Constituição como o elemento constitutivo da política nacional. Mesmo tendo determinado o fechamento da Constituinte
em 12 de novembro, o Imperador tinha a consciência de que ela era fundamental para legitimar a própria Constituição.
Então, de um modo imediato, a Constituinte trouxe em seu bojo os seus efeitos e o seu próprio legado para aquele momento
imediatamente posterior a sua própria dissolução e fechamento.
É claro que o Imperador nunca chegou a efetivar a convocação dessa nova Constituinte. Por isso ele pagou um preço
muito caro, muito elevado.
O Imperador, além de dissolver a Constituinte, também determinou, justamente pela prática do crime de perjúrio, a prisão
de alguns dos membros da Constituinte, sendo de se destacar a prisão de dois dos irmãos Andradas, o Antônio Carlos, uma
das figuras mais proeminentes da Constituinte, ele próprio o Relator do Anteprojeto da Constituição de 1823, e seu irmão,
o então Constituinte José Bonifácio, os quais permaneceram lá reunidos, naquele momento do fechamento da assembleia,
que se sucedeu à famosa Noite da Agonia, em que os constituintes ficaram a noite toda em vigília no prédio da Cadeia
Velha, até quando foram cercados pelas tropas imperiais, e foi dissolvida a Constituinte.
José Bonifácio, à sua vez, encontrava-se em casa. Tinha se deslocado da Constituinte logo no início da manhã e fora para
casa. E, antes mesmo de voltar, foi abordado com a ordem de prisão e levado pelo General Moraes à prisão do Arsenal da
Marinha. Ele pediu ao general, já se conheciam de longa data, segundo a biografia do Vasconcelos de Drummond, que
repassasse ao Imperador as seguintes palavras — estas são as palavras de José Bonifácio:
Diga ao imperador (...) que eu estou velho; e morrer hoje fuzilado ou amanhã de qualquer moléstia é coisa
para mim bem indiferente; que é por seus filhos inocentes que eu choro hoje; que trate de salvar a coroa
para eles, porque para si está perdida desde hoje; a sentença o imperador a lavrou e já não pode subtrair-se
aos seus efeitos, porque se o castigo da Divindade é tardio, esse castigo nunca falta.
O atropelamento da Constituinte fora a sentença que custou caro ao Imperador, que fez com que a Coroa já estivesse
perdida para ele, segundo José Bonifácio. Por mais força que detivesse o Imperador, por mais que o Brasil estivesse num
processo histórico de transição do modelo de Estado absolutista para um Estado de Direito, um Estado constitucional, não
se poderia negar que naquele momento a ideia da Constituinte era uma ideia que já tinha enraizamento na sociedade.
A decisão da Constituinte, como nós mencionamos um pouco antes, não foi um ato apenas unilateral do Imperador; foi
o objeto de uma construção coletiva decorrente de uma série de fatores que foram se aglomerando e fazendo com que
surgisse um ambiente político favorável e que esse ambiente fosse consentido por setores da sociedade para que se desse
o passo adiante. Daí porque houve essa convocação da própria Constituinte antes mesmo da Independência.
Estava muito claro, por mais que autores como Rousseau e Sieyès não fossem bem-vindos à Constituinte, porque eram
os radicais democráticos, que a ideia do pacto social, da Nação soberana elaborando e discutindo a sua própria Carta já
tinha esse grau de aderência bastante intenso na sociedade, tendo sido por isso mesmo a Constituinte erigida à categoria
de instrumento de legitimação e de garantia da estabilidade política e territorial do Império. Então, reitere-se que essa
solução foi, inclusive, objeto de discussão no próprio Conselho dos Procuradores-Gerais.
Em outras palavras, a Constituinte, quando convocada, foi levada a sério. Foi a primeira vez que a sociedade brasileira
se organizou para formar uma representação nacional e discutir as questões fundamentais do País através da elaboração
de uma Constituição, de uma lei fundamental que rumasse o povo brasileiro para o estágio superior de progresso e
de desenvolvimento. O Imperador, nessa transição do absolutismo para a monarquia constitucional, talvez por não
ter compreendido bem essas "demandas da sociedade" — sempre, entre aspas, demandas da sociedade —, achou que
ainda poderia governar autocraticamente. E, com a dissolução da Constituinte, ele terminou abortando um caminho
extremamente profícuo em prol da própria pacificação política nacional.
O ato de força do Imperador não foi só o amordaçamento da Assembleia constitucional, mas foi também um ato contra
uma instituição, que, no fundo, era a própria representação da sociedade, a sociedade em ação. Foi a primeira vez, como
já mencionamos, que o povo brasileiro elegeu seus representantes para debaterem uma Carta Maior de acordo com os
seus melhores princípios e valores. E a Constituinte — é preciso que entendamos isso, porque parece que não ficou claro
para o Imperador — é uma questão, sobretudo, de forma representativa, que hoje nós diríamos que é a questão mesmo da
democracia, é a participação do povo. Não podemos esperar uma Constituição que seja apenas um ato de concessão de
uma autoridade ou de uma simples comissão. Já naquela época, isso não se admitiu, faltou legitimidade à Constituição de
1824. Frei Caneca que o diga: pagou com a própria vida por haver questionado a legitimidade dessa Constituição.
Essa Constituição somente passou a perder essa mácula de legitimidade a partir do momento em que a profecia de José
Bonifácio se realiza. Em 1831, D. Pedro renuncia, e, em 1834, nós temos um ato adicional que é considerado ou lido como
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uma vitória ou um regresso dos liberais ao poder. Com isso, tem-se uma legitimação da Constituição, que, no entanto,
algumas décadas depois, voltará a ser cobrada por esse ato de outorga pelo Imperador.
Vejam que esse legado que fica da Constituinte, como o elemento constitutivo e legitimador da política, foi aproveitado
pelos nossos Constituintes de 1987/1988. Quando a Comissão Afonso Arinos foi formada e elaborou o anteprojeto a
ser encaminhado para a Constituinte de 1987/1988, o próprio Presidente nem o encaminhou à Constituinte, porque a
Constituinte disse que não receberia, pois entendia que deveria elaborar um projeto de Constituição que estivesse antenado
com a sociedade, que fosse produzido a partir da discussão com a sociedade, que fosse democrático.
Então, esses são os dois principais legados que a Constituinte nos deixa: a Constituição, como solução aos problemas
fundamentais da sociedade e, mais do que isso, como elemento de fundação e legitimação do sistema político; e a
Constituinte, como procedimento aberto e participativo para a solução do problema da Constituição que precisamos.
Para encerrar, gostaria de trazer aqui uma breve citaçãozinha do historiador José Honório Rodrigues, que tem um livro
específico sobre a Constituinte de 1823, inclusive, um capítulo em que ele destaca as lições da Constituinte. Esse trecho
não está nem inserido nesse capítulo, mas eu acho que ele fica mais como quase um lema que deveria ou deve ser um
terceiro legado da Constituinte para nós da sociedade brasileira, especialmente para os nossos representantes que estão
no Congresso Nacional.
Diz José Honório Rodrigues: "A Assembleia Constituinte revelou a novidade da nova Nação e reuniu, para nossa
admiração e reconhecimento, homens de tanta inteligência, visão tão clara e de tanto devotamento à liberdade nacional
e às garantias individuais". Em outras palavras, o que José Honório gostaria de dizer é que a Constituição conseguiu
captar, debater e formalizar uma linguagem constitucional em que as precisões e as necessidades maiores dos setores mais
representativos da sociedade estavam ali presentes.
Que o Congresso Nacional hoje e sempre tenha a mesma capacidade de se sensibilizar com esta precisão de todo o povo
brasileiro e vazar em boas leis e medidas, a partir desta essência representativa que lhe cabe e é inerente num governo
democrático, as balizas capazes de realizar este mesmo Governo de respeito aos direitos fundamentais, e que busque
realizar, de forma plena, a felicidade do nosso povo brasileiro. Se conseguirmos seguir este exemplo, sem dúvida alguma,
1823 não terá sido em vão.
Muito obrigado, Presidente Lafayette de Andrada, pelo convite.
Boa tarde a todos. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito obrigado, Sr. Marcelo Casseb,
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e da Universidade Federal Rural do Semi-
Árido. Agradecemos suas palavras, que trouxeram para nós importantes reflexões sobre o legado da Constituinte de 1823.
Passo a palavra ao Sr. Pablo Antônio Iglesias Magalhães, professor na Universidade Federal do Oeste da Bahia — UFOB,
que está conosco de forma presencial.
O SR. PABLO ANTÔNIO IGLESIAS MAGALHÃES - Boa tarde a todos e a todas.
Começo agradecendo o convite e a honra de participar desta Mesa ao Deputado Lafayette de Andrada, com quem já tenho
dialogado ao longo dos últimos 2 anos, diálogo que tem sido muito proveitoso. Aproveito para saudar os membros da
Mesa e os demais presentes.
Quando me pediram que falasse sobre o legado da Constituinte, pensei em levar a discussão para as províncias do Norte
e a participação delas, para pensar a Constituinte. A primeira coisa que me vem à mente é o que significa Constituição. O
que significa ser brasileiro em 1823? É muito diferente do que significa hoje. Trata-se de uma tecnologia conceitual muito
inovadora para a época. Eu gosto muito de trabalhar os dicionários. Quando estou trabalhando com pesquisa e escrita de
textos, eu gosto de olhar os dicionários da época, não os de hoje.
Eu fui buscar estes conceitos. Primeiro, o conceito de brasileiro. O que significa ser brasileiro em 1823? A palavra
"brasileiro" aparece dicionarizada, pela primeira vez, em 1818 em um dicionário feito por um baiano. Aliás, ele foi
Deputado desta Casa nos anos de 1830: Inocêncio da Rocha Galvão. Publicou um dicionário que hoje é muito, muito raro.
Eu acho que o único exemplar que há atualmente no Brasil é o que está na minha coleção. Eu o consegui da coleção de
Francisco Ramos Paes, um bibliófilo fluminense do século XX que deixou uma bela coleção. Passou por Kurt Prober e,
como eu comprei parte da biblioteca de Kurt Prober, este dicionário veio junto. Trata-se de um dicionário muito precioso.
Embora não tenha sido concluído, ele tem um instrumental conceitual bastante sofisticado para 1818; ele traz a palavra
brasileiro, que é a primeira vez que eu vi ser dicionarizada.
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A palavra brasileiro foi uma constituição do fim do século XVIII e começo do século XIX, mas com um pertencimento
do local em que nasceu. Estava ainda em processo de construção a ideia de Nação brasileira. Isso foi processual.
Na verdade, a primeira vez que eu vi a palavra brasileiro grafada, ela era pejorativa. Foi um jesuíta italiano do século
XVII que escreveu "esses brasileiros", mas em sentido muito pejorativo, isso no século XVII. No século XVIII, a palavra
começa a aparecer como adjetivo pátrio em alguns textos do fim do século XVIII, escritos por um poeta baiano pouco
conhecido chamado Joaquim José de Sant'Anna Esbarra, sobre o qual conhecemos pouco. Ele grafa a palavra brasileiro
em dois livrinhos dele. Num deles, ele diz que era um "mimbro" de uma arcádia brasileira. Este livro é de 1791. Isso,
no entanto, não era consensual.
Quando Hipólito da Costa publicou o Correio Braziliense, tido como o primeiro jornal relativo ao Brasil, em 1808, ele
botou o nome de Correio Braziliense, e não Correio Brasileiro.
Vejam que a palavra brasileiro, ainda no início do século XIX, era sinônima de quem trabalhava com pau-brasil. Veja
que o sufixo da palavra brasileiro, "-eiro", é um sufixo que indica ideia de trabalho, assim como acontece a pedreiro,
carpinteiro, padeiro. Portanto, brasileiro ainda era, muitas vezes, associado ao sujeito que trabalhava com o pau-brasil,
que fazia o trato do pau-brasil.
Normalmente, usava-se a expressão "brasílico" para quem nasce no Brasil. O português que nasce no Brasil é brasílico.
Brasílica era a obra da história da guerra brasílica, de 1675, o orbe seráfico brasílico de Frei Jaboatão, do século XVIII.
Brasílico, por esta via, era próprio do Brasil. Não pegava bem, no contexto de transformação política do início do
século XIX, continuar usando a expressão brasílico. Não se tinha muita certeza sobre o que se usar; então, pensou-se em
"brasiliense". Muitas vezes, porém, brasiliense era relativo a índio. Os índios já eram chamados de brasilienses desde o
século XVI. No fim das contas, acabou sendo usado o termo brasileiro como adjetivo pátrio.
Este era um conceito muito novo, que demorava a entrar nas províncias. Este processo de trazer um novo conceito
e de ele ser aceito ou legitimado na memória, no imaginário, demora um tempo. É muito mais usual encontrar nos
documentos da época o sujeito dizer que é pernambucano, baiense ou paulista, enfim, vários adjetivos pátrios relativos
ao que são as antigas capitanias ou as novas províncias, a partir de 1821. Este "brasileiro" é um novo conceito, assim
como a Constituição, que é, antes de tudo, um marco civilizatório. Um país com uma Constituição entra em um processo
civilizatório superior, digamos, supera os conceitos de ordenações que vinham desde o início da Idade Moderna.
Eu volto à ideia do dicionário que eu tinha citado, para pegar dois conceitos. O primeiro deles é o da própria Constituição.
Vejam a expectativa que havia do que seria uma Constituição! Eu vou pegar dois dicionários. Um deles é mais conhecido
aqui, feito por um fluminense, Antônio Moraes Silva, publicado em 1789, com segunda edição em 1813, ou seja, 10 anos
antes da Constituinte. Ele define a Constituição da seguinte forma: "Estatuto, lei, regra civil ou eclesiástica". Ponto! Esse
é o conceito emanado num dicionário do fim do século XVIII.
Vejam o conceito de Constituição no chamado Dicionário Universal de Língua Portuguesa, que foi publicado em Lisboa
a partir de 1818. Ele foi publicado em fascículos. Por isso, é difícil achá-lo. Foi muito difícil arrumar os fascículos. A
Constituição é definida como "um corpo de leis fundamentais que constitui o Governo de um povo". Há a palavra "povo".
Essas palavras são muito mais fortes. Não se trata de uma questão eclesiástica nem de um simples estatuto. Trata-se de
uma coisa com muito mais força dentro do imaginário: "um corpo de leis fundamentais que constitui o Governo de um
povo". É óbvio que isso está muito mais orientado pelos eventos políticos, sejam da Revolução Francesa, sejam até mesmo
das transformações políticas na Península Ibérica.
Existe outro conceito que eu queria também ler, além do conceito de Constituição, que é o de cidadania. Existe um conceito
de cidadania de 1813, no dicionário do Moraes Silva, o mais antigo. Ele diz o seguinte: "O homem que goza dos direitos
de alguma cidade, das isenções, e privilégios, que se contêm no seu foral, posturas. Homem bom". O conceito de "homem
bom" nesse período é muito restrito. Era o sujeito que tinha uma vida política, mas essa vida política era muito restrita a
membros de câmaras, vilas. Não era um conceito muito amplo.
Quando passamos para 1818, a definição fica muito mais interessante. O que é um cidadão nesse dicionário? O Rocha
Galvão disse o seguinte, na página 478: "Nome que se dá a alguns moradores de alguma cidade ou país livre, cuja
Constituição política lhes dá certos direitos, privilégios e segurança, tanto a respeito de suas pessoas como dos seus bens
e propriedades". Vejam que há aqui uma evolução conceitual bastante significativa entre uma definição de cidadania, de
um lado, e a definição de cidadania, por outro lado, emanada também de uma Constituição.
Então, havia uma grande expectativa sobre o que seria essa Constituição. A princípio, seria a Constituição portuguesa.
Em 1818, ainda se está falando de uma Constituição portuguesa que se almeja, apesar de a Capital do Império português
ser o Rio de Janeiro.
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Eu queria chamar a atenção, nessa diferença conceitual, para outra coisa também. Esses sujeitos que atuaram na
Constituinte de 1823 não eram jovens inexperientes. Esses sujeitos estavam na vida política não oficial desde o fim
do século XVIII. Isso é verdade para mineiros, para pernambucanos, para os da Bahia, para os do Rio de Janeiro. A
Constituinte de 1823 não era a primeira experiência política desses sujeitos. Pelo contrário, eles estavam a experimentando
já na maturidade. A maioria desses sujeitos já tinha experimentado um quarto de século de vida política não oficial. O
que eu quero dizer com vida política não oficial? Como não lhes era facultada uma ampla participação na vida política
dentro da monarquia portuguesa, esses jovens que nasceram por volta da década de 1760 ou de 1770 buscavam vias
não oficiais. A maçonaria, como já foi colocado aqui por outros expositores, é uma dessas vias políticas não oficiais,
mas bastante eficientes quando se discute política, ainda mais naquele contexto, já que estamos falando de um contexto
bastante complexo.
Há outra dimensão para a qual eu chamo a atenção. Nós subestimamos muito esses indivíduos que estavam na Constituinte.
Eu acho que isso é uma falha, na verdade, dos historiadores. Nós os subestimamos no sentido de não entender ou não ter
sido pesquisada ainda a capacidade que eles tinham de se articular entre si. Eu já discuti isso com o Deputado Lafayette.
Isso aparece no livro lançado ontem, que mostra como também esses indivíduos se articulam, mas é algo ainda novo na
historiografia.
Nós temos um vício na historiografia, um equívoco nosso, talvez decorrente de nossas vaidades. Aliás, acho que nem é
decorrente de vaidade, mas foi um vício que herdamos do século XIX. Nós separamos as províncias a partir de institutos
históricos, o que fazia muito sentido no século XIX: o instituto histórico do Rio de Janeiro, o instituto histórico de
Pernambuco e, mais tardiamente, o da Bahia.
Aí você tem aquela perspectiva de que os historiadores locais trabalhavam com fontes locais. Eram homens do século XIX,
que não tinham a tecnologia que temos hoje. Então, era muito comum que historiadores do Rio de Janeiro, como Joaquim
Norberto, fizessem um excelente trabalho, buscando aspectos da Inconfidência Mineira. Ele foi o sujeito que resgatou a
história do Tiradentes. Foi ele que começou ali. Depois os historiadores mineiros também avançaram significativamente
nas pesquisas sobre a Inconfidência Mineira.
O mesmo pode se dizer dos historiadores pernambucanos. A Revolução Pernambucana, que foi muito importante para
entender todo o processo constitucional brasileiro, é um marco, é um divisor de águas, é uma experiência republicana,
inclusive, dentro do Brasil. Foi breve, efêmera, durou 3 meses, mas as marcas que ela deixou vão ficar por décadas.
Entretanto, ela ficou muito limitada à pesquisa feita pelos historiadores pernambucanos, do instituto de Pernambuco. Eles
fizeram um bom trabalho. Não estou dizendo que o trabalho não foi bem feito. Foi muito bem feito.
Na Bahia, ocorreu a mesma coisa. A Conjuração Baiana apareceu mais tardiamente na historiografia. Ela apareceu já no
fim do século XIX, mas ficou a cargo dos historiadores baianos, também dentro dos arquivos do instituto baiano. Eles
fizeram um trabalho bem-feito? Fizeram também, mas se limitaram a arquivos locais.
As universidades, no século XX, mantiveram essas práticas: os pernambucanos com a Revolução Pernambucana; os
mineiros com a Inconfidência Mineira; os baianos com a Conjuração Baiana. Ora, você tem esses sujeitos articulados entre
si. Você tem baianos, pernambucanos, mineiros, paulistas e fluminenses que estão além dessas fronteiras. Eles estão se
articulando, estão trocando ideias, estão avançando conceitualmente nessas discussões. Eu até brinco com os meus alunos
dizendo: "Vocês nunca contaram o número de pernambucanos e de alagoanos que existiu dentro da Conjuração Baiana".
Ela é mais pernambucana do que francesa. É isso que diz o livro Presença Francesa no Movimento Democrático Baiano
de 1798, da Prof. Kátia Mattoso — há uma presença muito forte de pernambucanos e alagoanos já ali em 1798. Temos falas
de cronistas mineiros do século XIX que dizem: "Olha, Tiradentes estava muito articulado com a Bahia. Ele, inclusive,
teria trazido ordens secretas da Bahia". Não há prova documental disso, mas alguns cronistas do século XIX sinalizam
nesse sentido. Assim como vai haver também uma aproximação entre baianos e pernambucanos em 1817, em um plano
que circula dentro do Grande Oriente do Brasil, estabelecido ali na Bahia, em Salvador, a partir de 1813. Era um espaço
de discussão política que congregava homens de São Paulo, homens de Pernambuco, homens do Rio de Janeiro, homens
da Bahia. Então, não havia uma diferença muito clara. E, nesse aspecto, eu penso que esses sujeitos ultrapassaram essas
fronteiras. Poucas instituições perpassam o Brasil naquele período. Existe a escravidão — a escravidão é uma instituição
que perpassa o Brasil de norte a sul —, mas existem essas vias não oficiais que se articulam. E aí o Antônio Carlos é uma
figura proeminente nessa rede de pessoas, que ainda não foi muito bem investigada. Eu coloco isso aqui até como um
desafio para os historiadores do século XXI. Há muito trabalho a ser feito em arquivos, não só do Brasil, mas também
da Europa, dos Estados Unidos, que foram muito pouco explorados, em arquivos ingleses também. Então, há muito a ser
feito ainda. Mas já se vê que esses sujeitos estão articulados não só dos dois lados do Atlântico, eles estão articulados até
o extremo oriente. Foi um professor baiano quem criou o primeiro jornal da China, foi um professor baiano quem liderou
a revolução liberal na China. E tudo isso não pode ser excluído. Houve até uma tentativa de Macau se aproximar para
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se tornar uma província do Brasil. Foi um blefe na época? Foi, mas se vê que possibilidades estavam em aberto. Então
nós vamos para a Constituinte de 1823.
Volto a dizer, esses sujeitos já vinham de uma larga experiência política. Eles vão experimentar pela primeira vez uma
política oficial nas Cortes de Portugal. Muitos desses sujeitos que estavam ali em 1823 vão ter essa primeira experiência
a partir de 1821, quando a palavra "constituição" se torna muito usual no Brasil, na imprensa brasileira. A Bahia saiu
de 1 jornal — ela só tinha um jornal chamado Idade d'Ouro do Brazil — para, acho, 14 ou 15 jornais. Quase todos eles
traziam a palavra "constituição" no nome.
Essa expectativa que se gera em torno de uma constituição, a princípio portuguesa, é gigantesca. As músicas são todas
com o tema "constituição". Eu tive a felicidade de encontrar recentemente a primeira letra de música impressa na Bahia,
em 1821. Essa letra de música é toda dedicada a uma ideia de constituição, feita pelo professor régio de música da época,
o Negrão.
Esta expectativa gerada em torno de um novo tempo, um tempo onde os povos também iriam ter voz, — era essa a ideia
de uma constituição, a partir dos seus representantes —, foi o que deu o tom da política a partir de 1820, no chamado
Vintismo, mas, óbvio, já havia precedentes, como eu falei, em Pernambuco inclusive. Eu imagino que André também vá
tratar disso muito bem amanhã. Há, então, uma expectativa gigantesca, volto a dizer, e que acaba ali em 1822, muito aquém
do que se esperava. Os Deputados do Brasil que estavam em Lisboa tiveram que fugir, que sair fugidos para a Inglaterra e,
da Inglaterra, passaram para Pernambuco. Alguns desses Deputados que fazem esse périplo, digamos assim, de fuga, até
para salvar as próprias vidas, vão participar da Constituinte do Brasil no ano seguinte. Essa é uma questão. Primeiro, quero
colocar a trajetória desses homens. Mas há outra questão: como estava a situação política, na época em que a Constituinte
começa, das Províncias do Norte? Eu vou falar para vocês das do Norte, abordar as da Bahia para cima. A Bahia estava em
guerra civil. Naquele momento em que a Constituinte é estabelecida, a Bahia sustentava 10 meses de guerra civil. Claro,
contou com a participação de sergipanos, alagoanos, fluminenses, pernambucanos, que foram decisivos para enfrentar as
tropas portuguesas do Madeira de Melo. Mas, vejam, é uma província em guerra, e todo o recurso estava sendo aplicado
no esforço de guerra. Ali a ideia de brasileiro começa a aparecer com muita força. Se você pegar os jornais da época,
verá que a ideia de brasileiro é em oposição ao maroto. De forma pejorativa, os baianos chamavam os portugueses de
marotos, os pernambucanos chamavam também de marinheiros — "os marinheiros" —, sempre de forma pejorativa —
"os caiados". Essa definição de brasileiro vai aparecer muito no sentido de oposição aos portugueses.
Mas, vejam, a Bahia estava em guerra. Não era a única província em guerra: o Piauí e o Maranhão também tiveram seus
problemas. O Piauí e o Maranhão, inclusive, estiveram ausentes da Constituinte por conta desses problemas políticos.
A Bahia teve seus representantes na Constituinte. Desses representantes, eu chamo a atenção para dois em especial, não
porque eles foram, mas porque eles não foram. As ausências falam muito também. E são dois personagens por quem
tenho certa admiração — foi uma escolha até pessoal trazer os dois nomes. São eles: Cipriano José Barata de Almeida e
Francisco Agostinho Gomes. São dois sujeitos que estiveram na vida política não oficial desde o final do século XVIII. São
homens que estiveram envolvidos na Conjuração Baiana, que desafia a autoridade do Governo português, numa tentativa
de sedição, no final do século XVIII, bastante influenciada pelo pensamento da Revolução Francesa e que teria talvez, há
suspeitas disso, até mesmo participação da República francesa nesse movimento. Na verdade, já sabemos que, em alguma
medida, Antoine René Larcher, que era chefe militar da Marinha francesa, esteve envolvido com esses personagens da
Bahia.
Esses sujeitos foram eleitos para a Constituinte, mas eles, na verdade, não foram. Eles nem estavam na Bahia na época,
nem Agostinho Gomes nem Cipriano Barata estavam em Pernambuco. Isso em 1823. O Antônio Carlos, o Cipriano,
o Agostinho Gomes e o Lino Coutinho chegam da Inglaterra em dezembro de 1822. A partir de janeiro, em Recife,
começaram a publicar os primeiros periódicos, o Sentinella da Liberdade vai vir depois.
É interessante ver a conjunção dessas figuras no Recife, porque a Bahia não podia fazer resistência a uma ideia de
constituição que não contemplasse o diálogo com os povos. Na Bahia não poderia ser, porque estava em guerra. Então,
Pernambuco seria o espaço possível. Vamos ter ali o Frei Caneca. E seria o espaço possível não só para baianos e
pernambucanos, mas para fluminenses também. O João Mendes Vianna, que era uma figura altamente relevante dentro da
maçonaria fluminense, se dirige para Pernambuco. Ele sai do Rio de Janeiro e se associa a esse grupo de pernambucanos.
Como eu falei, a questão não é o lugar de nascimento. O que define mais esses indivíduos é a conjunção das ideias.
Naquele momento, havia a ideia de se ter uma constituição. Eu acho que com isso todos concordam, a não ser algum
sujeito que absolutista ao extremo. Mas, para todos os homens sensatos ou inteligentes, naquele momento a Constituição
seria o melhor caminho. Agora, como fazer essa Constituição é que era o grande desafio. Não era algo fácil. Realmente,
não era algo simples. O que estava em jogo era a própria integridade de um Brasil que se constituiu como Império a partir
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de 1822. O Império era um ente novo e frágil também. Não havia um corpo militar eficiente, não havia uma experiência
política oficial, digamos assim, larga — tudo era muito novo. Esses sujeitos que estão se articulando ali no Recife vão
usar a imprensa. É interessante ver esses jornais. Ao trabalhar com meus alunos, quando discuto essa fase da Constituição,
sempre uso esses jornais, particularmente o Sentinella da Liberdade. Também havia o Escudo da Liberdade do Brazil,
que foi redigido pelo Francisco Agostinho Gomes.
Dos dois personagens que eu trago aqui, o Cipriano e o Francisco Agostinho Gomes, nós temos boas biografias. Temos
uma biografia do Cipriano feita pelo Marco Morel, que é excelente, e da qual saiu a segunda edição agora. E temos uma
dissertação de mestrado sobre Francisco Agostinho Gomes feita pela Profa. Maiara Alves do Carmo, em 2018. Trata-se
de uma dissertação de mestrado, mas que compila a vida do Francisco Agostinho Gomes.
Há outros personagens importantíssimos. O Antônio Carlos de Andrada é imprescindível. Agora tem boas biografias feitas
pelo Lafayette e pela Cecília Cordeiro também, que vai falar amanhã. Então, é interessante resgatarmos essas trajetórias.
Ao olhar essas trajetórias, conseguimos entender alguns posicionamentos políticos dali. Não era fácil estar no lugar do
Antônio Carlos, um homem moderado, mas que estava no Rio de Janeiro.
E como o Cipriano Barata define a Constituinte? O Francisco Agostinho Gomes e o Cipriano não foram. E o Barata
simplesmente diz o seguinte da Constituinte: "Ali é uma armadilha cercada por 7 mil baionetas". Diferente, por exemplo,
da Bahia, de onde saíram de 8 mil a 15 mil portugueses, no processo de guerra e ao fim da guerra. Esses portugueses foram
retirados da Província da Bahia. A Província do Rio de Janeiro continuava com uma forte presença portuguesa, na esfera
militar, na esfera jurídica, na esfera administrativa. O próprio Imperador era um filho de Portugal, nascido em Portugal.
Então, há uma série de questões ali que geraram discussão. Essa discussão que aparece na imprensa pernambucana, mas
é redigida, inclusive, por baianos, volto a dizer, vai ter fortes críticas à postura do Imperador no processo de formação
daquela Constituinte, especialmente no ponto 41, que foi um dos mais criticados por Cipriano Barata. Ele diz que não se
pode aceitar esse ponto 41, no qual o Imperador se coloca acima de uma assembleia. Eu não lembro exatamente agora
quais as palavras, mas havia a ideia de que o Imperador estaria acima da Assembleia. O que se queria era uma divisão
equitativa de Poderes, em que um Poder fiscalizasse o outro, e não uma Constituição em que um Poder se sobrepusesse
ao outro. O resto da história já sabemos. A Constituinte é encerrada. Algumas causas foram discutidas ao longo deste
seminário. Eu tenho uma leitura muito particular — nem tão particular —, mas era um momento de incertezas, e havia
a possibilidade até de um retorno ao Reino Unido, pensando na perspectiva do Rio de Janeiro. Afinal de contas, havia o
Imperador, filho de D. João VI, que era um rei muito querido, inclusive. Ele havia sido um soberano muito benquisto.
É óbvio que não era unanimidade, mas, no geral, D. João VI tinha alguma expressão, e alguns grupos nutriam simpatia
por ele. Essas possibilidades agitaram um cenário que já era complexo, de guerra, de disputas internas dentro do Brasil.
E a Constituinte é fechada. Com três meses e pouco do final da guerra na Bahia, na verdade, a Constituinte é fechada.
A guerra termina em 2 de julho. Então, havia ódio ao português, a ideia de que o português era um inimigo venal, um
inimigo mortal. Famílias foram desfeitas. A Bahia arcou com o peso da guerra. Claro, volto a dizer, o principal peso foi
econômico, a crise econômica. Há um livrinho publicado na Bahia... A imprensa na Bahia quase parou ali em 1823, a não
ser A Cachoeira, que foi a primeira imprensa interiorizada no Brasil, numa vila interiorana, que efetivamente funcionava.
A não ser A Cachoeira, a imprensa de Salvador estava quase paralisada. Só alguns poucos folhetos foram publicados.
Eu queria muito achar um desses folhetos, mas nunca consegui, infelizmente. Porém, eu achei o nome dele, chama-se
"Declaração" — "feita a todos os brasileiros e demais cidadãos para conhecerem o doloso e falso sistema do governo do
Rio de Janeiro, pelo brasileiro, etc." —, de Luís da Nóbrega de Souza Coutinho, na Bahia, na Tipografia da Viúva Serva,
em 1823. Infelizmente, não encontrei exemplar desse folheto. Gostaria muito de entender o que o Luís da Nóbrega estava
querendo dizer, inclusive porque ele era partidário do Gonçalves Ledo, lá no Rio de Janeiro, ele era do grupo do Ledo.
Eu queria entender exatamente por que a Bahia publica esse folheto em 1823. Mas, sem conseguir acesso a um exemplar,
não há muito que fazer. Então, a imprensa estava quase paralisada.
A situação da Bahia estava tão ruim em 1823 que não se publicava livro. A Bahia só voltou a publicar livro mesmo 3
anos depois, em 1826. E ela saía de um mercado editorial bastante intenso. A Bahia ficou sem aulas por 7 anos, sem
publicar livro, com a economia devastada. E havia muita esperança de que a Constituinte resolvesse pelo menos parte
dos problemas ou desse um encaminhamento.
Até há uma preocupação com algumas questões da Bahia. O Antônio Carlos, por exemplo, falava em elevar Itaparica
à vila, no sentido de que Itaparica tinha sido responsável por duas vitórias significativas no processo de Independência.
Então, a ideia era colocar a Ilha de Itaparica na condição de vila, ou seja, um reconhecimento.
Essa situação da Bahia é uma consequência dessa Constituinte, que não é tão cara. Na verdade, essa Constituinte tem
alguns problemas que vão permanecer pelos anos seguintes. É sempre bom fazer uma reflexão. Criou-se uma expectativa
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grande. Não era o que nós queríamos, o que nós desejávamos. A forma como a Constituição foi outorgada em 1824 vai
continuar gerando um legado bastante complexo, que vai se materializar na Confederação do Equador, no 2 de julho dos
pernambucanos. E não só ali, vai seguir para a década de 30. Mesmo com a deposição de D. Pedro I, em abril de 1831, a
ideia de que a Constituição poderia ter sido algo mais bem dialogado com as diversas Províncias vai reverberar até o final
da década de 30. Chegou-se ao ponto, no final da década de 30, de o Brasil estar em frangalhos. As revoltas regenciais
estavam pontuando o Brasil do norte ao sul.
O Constituinte Francisco Agostinho Gomes escreveu um artigo muito controverso. Ele escreveu um artigo, em Salvador,
chamado O Sete de Setembro, e respondeu judicialmente por esse artigo, que foi publicado no dia 7 de setembro de 1839.
A Bahia estava saindo da Sabinada, uma guerra civil bastante violenta, que gerou muita morte em Salvador. Ele dizia
que a independência deu errado.
Ele era um sujeito que estava lutando pela independência, ou pelo menos por maior liberdade, desde o final do século
XVIII. O Barata foi preso em 1798. O Agostinho Gomes não foi preso porque tinha muito recurso, ele saiu do Brasil e
se aproximou dos Ministros em Portugal. Depois ele volta, já no final da vida, com quase 70 anos, e, desiludido, diz que
o Brasil errou: "Esse caminho que nós tomamos foi muito perigoso". Ele diz que talvez tivesse sido melhor se o Brasil
continuasse como Reino Unido de Portugal. Isso foi publicado em 1839, no dia 7 de setembro.
Um juiz de paz foi em cima, para descobrir quem tinha publicado o artigo, que saiu de forma anônima. Ele descobriu que
foi o Agostinho Gomes, que era uma figura muito respeitada, um ancião com problema de saúde. Para livrar a cara do
Francisco Agostinho Gomes, alguns elementos mais jovens da maçonaria disseram que eles haviam escrito. Esse é um
dos poucos processos de liberdade de imprensa que eu encontrei no Arquivo Público da Bahia.
Essa trajetória do Agostinho Gomes é muito emblemática. Na juventude, ele lutou por ideais de liberdade, que foram se
transformando ao longo do tempo, obviamente, mas ao final da vida estava desiludido pelas escolhas feitas e por ver a
Bahia empobrecida.
É curioso que, quando as aulas retornam à Bahia, não se estudava a história do Brasil. Nas escolas, ensinava-se a
Corografia Brazilica, do Padre Casal, para os meninos. Mas eles só estudavam a parte da Bahia, e se excluía o resto
do Brasil.
Então, ficou esse legado, que não é bonito, que não é positivo, digamos assim, mas que precisa ser pensado, porque são
decisões políticas. Existem outros legados também. Eu sinalizei com esse, mas fica a percepção de que, quando esta Casa
é enfraquecida, temos problemas graves. O Congresso é uma expressão de civilização, é uma expressão do povo na Casa
do Povo. E precisa ser sempre forte, porque, se ele está enfraquecido — e a história do Brasil mostra isso —, temos
problemas muito sérios em seguida. Então, eu acho que esses legados precisam ser considerados e pensados.
Eu volto a dizer que, como historiadores, temos muito trabalho pela frente. Entender essas redes e esses sujeitos não é
simples. Vamos precisar de um batalhão de pesquisadores para fazer buscas em arquivos.
Deixo esta provocação: esta Casa tem que ser sempre forte.
Obrigado.
Eu fico por aqui. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Agradecemos a participação do Prof.
Pablo Magalhães, que nos trouxe interessantes reflexões sobre o momento da Constituinte e do pós-Constituinte, sobre
os reflexos e o legado da Constituinte.
Eu queria registrar que o Prof. Pablo nos trouxe trabalhos inéditos, há alguns anos, sobre o Grande Oriente do Brasil.
Sempre se considerou, pelo menos na história oficial, que o Grande Oriente do Brasil teria surgido em 1822, no Rio de
Janeiro. O Prof. Pablo Magalhães conseguiu documentação inédita, fora do Brasil, que demonstrava, de maneira muito
clara, que o Grande Oriente do Brasil nasceu em 1813, em Salvador, e que o primeiro Grão-Mestre foi Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada.
Eu agradeço essa contribuição, Prof. Pablo, no meu livro eu cito, obviamente, a fonte.
Para encerrar esta última rodada, eu indago aos presentes se desejam fazer alguma pergunta ou algum comentário aos
expositores da última Mesa.
Está aqui ao meu lado o Embaixador André Heráclio, que será o primeiro a falar.
O SR. ANDRÉ HERÁCLIO DO RÊGO - Eu queria dar os parabéns aos expositores.
Pegando uma carona no que disse Pablo, eu queria cometer duas inconfidências e fazer uma pergunta.
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A primeira inconfidência é a seguinte: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico Pernambucano e o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará estão em tratativas para
comemorar o bicentenário da Confederação do Equador. Se a Câmara dos Deputados quiser se unir a nós, será muito bem-
vinda. Há também uma comissão estadual em Pernambuco designada para tanto.
A segunda inconfidência é que o meu confrade e amigo Marcelo Casseb é também um dos maiores especialistas brasileiros
— se não o maior — no estudo da Lei Orgânica da Revolução Pernambucana de 1817. Eu gostaria de perguntar a ele,
abstraída a questão da forma de Governo — república ou monarquia —, qual é a continuidade entre a Lei Orgânica
de 1817 e o projeto da Constituinte de 1823, tendo em vista, inclusive, que dois personagens participaram de ambas as
construções, o já tão mencionado Antônio Carlos, mas também o Padre Muniz Tavares. E também participaram das Cortes
Constituintes de Lisboa.
Então, fica essa pergunta para o Marcelo. Qual é a continuidade entre uma Constituição e outra?
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Indago ao Prof. Marcelo se está nos
ouvindo?
O SR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO - Eu consegui, sim, ouvir a pergunta.
Mais uma vez, quero agradecer a oportunidade.
Agradeço ao confrade André Heráclio pela distinção em fazer a pergunta.
Essa não é uma pergunta simples, André, mas eu costumo dizer que existem duas temporariedades bem distintas entre
aquela em que estavam inseridos os revolucionários de 1817, por um lado, e aquela outra em que se encontravam os
Constituintes, por outro lado.
Na Constituinte, foram veiculadas várias visões ou vários projetos constitucionais para o Brasil. Comumente a
historiografia distingue três grandes grupos da Constituinte: um grupo que buscava uma Constituição mais conservadora,
mais próxima ao projeto do Imperador; um grupo majoritário, que via a monarquia constitucional como a própria ideia
a ser estabelecida pelos Constituintes e da qual não se poderia fugir; e, eu diria, uma meia dúzia que compunha o grupo
dos radicais.
O próprio Muniz Tavares, que era Constituinte de 1823, já não assumiu essa postura tão radical. O Frei Caneca, inclusive,
não poupou críticas à condução que Muniz Tavares teve como representante da província. Aliou-se mais à ideia de uma
monarquia, algo mais temperado.
O projeto de Constituição de 1823 é essencialmente moderado, em que a autonomia ou o caráter federalizado ou de
federalismo do País não estava tão bem delimitado como se pretendia em 1817.
A grande inspiração dos revolucionários de 1817, sem prejuízo da inspiração dos modelos franceses de construção, vinha
sobretudo do modelo norte-americano. Eu acho que o federalismo norte-americano dava respostas mais interessantes
àquela que era a pretensão dos revolucionários, que era o estabelecimento de um governo em que a administração
ou a capacidade de autogerir as questões públicas fosse preservada, assim como vinha sendo desde a Restauração
Holandesa, mais ou menos, até a chegada da família real, em que a intervenção da Coroa nos assuntos internos aumentou
gradativamente.
Se considerarmos a República como pensada pelos revolucionários, eu não diria que há uma linha de continuidade.
Realmente, trata-se de um projeto que somente vai ser resgatado décadas após, com a Proclamação da República, se
pensarmos em termos de sistema de governo e modelo de governo. Inclusive, na Constituinte, o modelo de 1817 é lembrado
por diversas vezes como aquele que não deve ser seguido, porque foi um modelo que não deu certo, foi um modelo de
oposição. Os próprios historiadores, como conhecemos bem, na historiografia da revolução, abominam essa iniciativa de
contestação do Governo português.
Então, do ponto de vista do sistema de governo república federativa, não há uma continuidade; pelo contrário, há uma
clara mudança de opção política, há uma rejeição da proposta de 1817. Mesmo Frei Caneca, que participou de 1817, tinha
pendores monárquicos. Ele era um monarquista que defendia uma monarquia descentralizada; mas, quanto à República,
ele assumiu essa bandeira, uma vez que o próprio Imperador não cumpriu com a promessa da Constituinte de celebrar
o pacto social.
Por outro lado, podemos, sim, identificar continuidades no que tange, por exemplo, à questão dos direitos individuais.
Essa linguagem dos direitos individuais e a ideia de um governo limitado estavam na Lei Orgânica e também num outro
documento manuscrito que não integrava essa lei, um documento dos revolucionários com a declaração dos direitos, bem
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à moda francesa, que foi escrito e também consta dos arquivos. Essa declaração de direitos é apropriada pela Constituinte.
A linguagem de proteção dos direitos individuais é uma linguagem universal.
Nessa perspectiva, podemos, sim, pensar em certa linha de continuidade e também podemos pensar numa continuidade
no sentido de que, de algum modo, a República de 1817 era uma não escolha. Então, considerando-se esse passado que
estava presente a todo momento e era a todo momento lembrado como uma opção a não ser seguida, porque República
era sinal de um governo democrático e, portanto, de uma anarquia, isso não poderia acontecer em 1823.
Então, apesar de serem próximos no tempo, havia projetos de governo, projetos constitucionais bastante distintos e
separados na prática. E o que perceberemos é essa retomada apenas com a República. Inclusive, a própria historiografia
pode identificar, pelos estudos históricos de história constitucional ou dos constitucionalistas já do fim da monarquia e
início da República, uma recuperação desse espírito republicano que foi tão presente em 1817 e, depois, ficou latente
em nossa história.
Então, isso é outro elemento de continuidade que vamos perceber não em 1823, mas de 1889 em diante.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Prof. Marcelo, aproveito aqui o gancho
da pergunta do André, mas nessa linha ainda de fazer aqui uma conexão do projeto de 1823 com a Constituição de 1817.
Quanto ao aspecto daquele caderno de princípios em que serão garantidos o tribunal do júri e as liberdades individuais,
parece-me que muito do que está presente lá em 1817 se repete no texto de 1823. Ou estou equivocado?
É claro que são contextos diferentes: lá era uma república; aqui, uma monarquia. Na minha opinião, essa estrutura era
avançada para a época, pois havia princípios e garantias individuais do cidadão, direito de propriedade, instituição do júri.
Esses princípios individuais, na minha humilde visão, têm certa semelhança, pelo menos nesses capítulos, entre o texto
de 1817 e o texto de 1823.
O SR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO - Eu concordo. Do ponto de vista do conteúdo relativo aos direitos
individuais, a Lei Orgânica não chega... A Lei Orgânica — e o nome aqui é importante —, do ponto de vista conceitual,
não se reconhece como constituição. Tanto o art. 1º quanto o art. 28 da Lei Orgânica, que é o seu último artigo, deixam
muito clara a necessidade de convocação de uma assembleia constituinte para elaborar a constituição do Estado. Ela é uma
lei preocupada com a estruturação do Governo republicano provisório, mas ela vai além para trazer algumas garantias
individuais.
O discurso e a linguagem dos direitos individuais são um dos objetivos claros dos revolucionários. Inclusive, a escravidão,
que é um tema proposto implicitamente na Constituinte, no bojo da mentalidade dos revolucionários, gerava certo
paradoxo, mas estava ali. Quando eles defendiam a igualdade entre as pessoas e prometiam a liberdade para aquelas que
assumissem postos à frente dos batalhões... Então, podemos perceber que foi proposto o reconhecimento dos direitos
individuais. Mas a Lei Orgânica não vai a fundo para tratar do rol clássico, embora assegure, por exemplo, a liberdade
religiosa, a liberdade de imprensa e ainda a igualdade entre brasileiros e não brasileiros, especificamente os portugueses
que aderissem à causa da revolução. Nesses direitos que estão expressamente previstos na Lei Orgânica, sim, sem dúvida
alguma, há um elemento de continuidade.
Já tive oportunidade de escrever um trabalho em que eu falo que ali começa a surgir uma cultura constitucional cuja
essência vai ser proposta novamente em todas as nossas Constituições, desde 1824. A Constituição de 1824 é de
vanguarda para a época. Os constitucionalistas imperiais não cansavam de dizer, naquele tom de autoelogio, que era a
mais progressista e avançada Constituição do mundo. Até certo ponto, isso é verdade, porque ela avança em temas como
direito à educação e à saúde, que estavam previstos. O projeto da Constituinte de 1823 trouxe previsão sobre a escravidão,
dizendo que se tratava de um contrato entre senhores e escravos. Isso gera a necessidade de se fazer uma pesquisa muito
grande para saber o que se queria dizer com isso e qual era a intenção dessa proposta.
Então, vemos claramente esse elemento de continuidade, sim, no que tange aos direitos, e uma não continuidade, uma
ruptura clara, uma tomada de posição muito evidente em termos de projeto político quanto ao modelo de Estado. Aqui
há uma distinção, mas, do ponto de vista dos direitos, há continuidade, sem dúvida alguma. Estou plenamente de acordo
com suas ponderações.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito obrigado, professor.
O SR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO - Eu lhe agradeço.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Passo a palavra ao Prof. Menck, que
deseja fazer uma observação.
O SR. JOSÉ THEODORO MASCARENHAS MENCK - Boa tarde. Eu gostaria de fazer uma observação a cada um.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
O Prof. Fabio de Andrade, que foi o nosso primeiro palestrante, falou que é um enigma a razão pela qual o Código Civil
demorou tanto a ser promulgado, o que foi uma falta. E ele citou várias possibilidades, inclusive disse que as ordenações,
por si sós, já supriam as necessidades. Mas ele não se lembrou da Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, de
1858. Ele falou que o Código Comercial é de 1850 e que o Código Civil só veio em 1916. Porém, em 1858 já existia a
Consolidação do baiano Teixeira Freitas, que talvez tenha suprido as necessidades. Só mais tarde, na República, é que foi
feito o Código Civil, até por uma questão de ingerência. Dizia-se que faltava um código civil, então Clóvis Beviláqua o
teria feito e aprovado a toque de caixa, porque ele escreveu aquilo em 6 meses. Escrever um código civil em 6 meses é
mais revolucionário do que o projeto da Constituinte do Andrada, que escreveu em 15 dias a Constituição. Não sei qual
dos dois foi mais veloz. Então, eu gostaria de ouvi-lo comentar se essa minha conjectura tem fundamento.
O Prof. Marcelo Casseb falou muito da falta de legitimidade da Constituição de 1824 e disse que essa falta de legitimidade
se deu porque a Constituinte teria sido dissolvida. Portanto, a Carta Constitucional, ainda que apoiada no texto que estava
sendo discutido, foi outorgada. Eu lembro que Pedro I não aceitava essa observação. Isso é muito comum; todos dizem
que a Carta de 1824 foi outorgada, mas Pedro I não aceitava isso. Ele dizia que houve uma consulta, e foi a consulta
mais democrática de todas, porque não foi para um representante, foi para as Câmaras Municipais do Brasil inteiro. Todas
elas teriam se manifestado, duas tendo sido contrárias: a de Itu e a de Olinda e Recife. Então, houve consentimento das
Câmaras. Esse consentimento, então, não seria válido? Não teria sido válido? Eu pergunto ao Prof. Marcelo Casseb se
esse consentimento das Câmaras, por si só, não daria peso à decisão.
O Prof. Casseb falou que o ato de aclamação do dia 12 de outubro teria sido uma ruptura. Eu concordo plenamente com
isso, porque, afinal de contas, aquele foi um ato de felonia. Felonia era o mais grave dos crimes na ordem jurídica medieval,
e era um período de fim de... Já se tratava, é claro, da era contemporânea, mas os elementos ainda permaneciam. Então,
ainda havendo em vida um rei que tinha sido aclamado — e no Brasil —, que foi D. João VI, o seu filho se deixa aclamar
Imperador. Isso, por si só, dentro da ordem jurídica medieval e monárquica, é um ato de felonia. Então, concordo que
ali houve uma ruptura, sim.
Mas o título de defensor perpétuo D. Pedro teria recebido no dia 13 de maio. Então, ele o recebeu antes, não foi no ato
da aclamação; ele recebeu no dia 13, que era o aniversário do pai. Na verdade, no momento em que se festejava o pai,
o povo do Rio lhe deu esse título, e ele o aceitou. E ele escreve a D. João dizendo que está recebendo esse título como
forma de consolidação do Reino Unido, o que é muito interessante. E esse título de defensor perpétuo do Brasil ele vai
usar mesmo quando abdica. Quando ele abdica, ele volta para Portugal, passa a ser um mero duque de Bragança e coloca,
no seu brasão, como lema, o título de defensor perpétuo. Ele tem tanto orgulho disso que vai fundamentar muitos dos seus
atos como Imperador com o fato de ter recebido dos povos do Brasil o título de defensor perpétuo. Mas isso foi em um
momento diferente, não foi no dia da aclamação.
Por fim, com relação à palestra do Prof. Pablo Iglesias Magalhães, falou-se muito dos candidatos, dos Deputados. Agora
uma coisa que seria interessante lembrarmos é que havia eleições, eleitos, mas não havia candidatos. As pessoas não se
candidatavam. As pessoas chegavam, os eleitores vinham, porque o voto era aberto, e diziam em quem votavam: fulano,
sicrano e beltrano. No final, na apuração, víamos quem tinha a maior quantidade de votos, e esses eram os eleitos. Então,
não havia candidatos. Talvez, por isso, os eleitos fossem pessoas com tanta experiência, porque eram as pessoas que já
estavam lá pelo sistema eleitoral, e este era pela pluralidade de votos, como se dizia na época. A pluralidade de votos
foi para o sicrano ou para o beltrano.
E não havia possibilidade de a pessoa rejeitar. Isso é outra característica muito interessante. Nós vemos nos anais da
Constituinte que um Deputado mineiro escreve para a Constituinte pedindo que fosse dispensado de aparecer, porque
ele tinha seus setenta e tantos anos e a viagem até o Rio de Janeiro lhe era muito penosa. Ele acreditava que poderia
perder muita saúde, por já ser idoso, em um período em que não havia médico. E a Comissão de Poderes fez um voto,
assinado pelo Antônio Carlos, dizendo que isso não era justificativa, que, pelo fato de ele ter sido escolhido pelos povos
para representar, no caso, os povos mineiros, doença não era justificativa para não ir tomar posse e determinava que ele
aparecesse. Na verdade, Cipriano Barata e Francisco Gottino Gomes fugiram a uma obrigação legal. Eles negaram a sua
participação na formação do Brasil.
Já na Constituinte republicana, nós vamos ter muitos jovens inexperientes. Então, vamos ver que é uma distinção enorme
isso, porque, da Constituição republicana, foram excluídos todos os velhos políticos do sistema imperial, do sistema do
jogo político da monarquia. Então, vai sobrar quem? Vai sobrar meia dúzia de membros, um ou outro velho, mas quase
todos jovens e militares, e são eles que vão fazer a República.
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Reunião de: 08/11/2023 Notas Taquigráficas - Comissões CÂMARA DOS DEPUTADOS
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Indago ao Prof. Fabio se ele escutou
as ponderações do Prof. Theodoro Menck.
O SR. FABIO SIEBENEICHLER DE ANDRADE - Escutei, sim. Muito obrigado, Sr. Presidente. Eu escutei. Como
sempre, foi muito lúcida a observação do Prof. Menck.
Eu só faria uma ponderação a ele e aos demais colegas. Efetivamente, nós tivemos a consolidação, e essa circunstância
abre outra frente de debate. Não é que eu tenha me olvidado da questão, mas isso abriria outra frente, que até fugiria um
pouco, ou talvez bastante, do nosso foco, que é o legado da Constituinte de 1823.
É que realmente se tratou de uma consolidação. E a consolidação, pelo menos semanticamente, não equivale à codificação.
É um ponto debatido e que encontra ressonância também no processo codificatório francês, porque, antes da codificação
de Napoleão, nós tivemos as ordonnances. Nós podemos nos indagar, afinal, qual seria a distinção entre uma ordonnance,
uma ordenação, portanto, e uma codificação. Da mesma forma como lá, nós tivemos essa etapa, que é a consolidação,
e temos a CLT até hoje. Desde a década de 40 do século passado, temos a Consolidação das Leis do Trabalho. Não se
trataria de uma codificação.
Mas o fato, para ir além, é que justamente por não se tratar de uma codificação, posteriormente à consolidação, Teixeira de
Freitas foi contratado pelo Governo imperial para elaborar o código, que "culminou", entre aspas — não sei se a palavra
"culminou" é a mais apropriada —, no esboço, teve como remanescente o esboço. Então, essa é a circunstância.
Do processo codificatório, sim, nós tivemos a consolidação. Efetivamente, foi uma obra muito elogiada, mas teria sido
uma obra, entre aspas, de "arrumação" da ordem jurídica de direito privado até então existente nessa metade do século
XIX. E essa circunstância tem a corroboração de haver sido posteriormente contratado Teixeira de Freitas para realizar
o código que culminou no exposto, o que demonstra também outra vicissitude do direito brasileiro. Teixeira de Freitas,
sempre tido como genial, pretendeu realizar algo que na época não havia e que hoje nós temos: a unificação do direito
privado, com a extinção do Código Comercial e a elaboração de um código único. Esse teria sido um dos fatores que
levaram o contrato firmado entre ele e o Governo imperial a não ser renovado, não ser efetivado. Teria havido uma rejeição
dessa proposta avant la lettre, uma proposta antes do tempo, proposta essa que se implementou com o Código Civil de
2002, a partir da visão do atual codificador, o Prof. Miguel Reale.
Há, realmente, uma série de situações, Prof. Menck, que tornam particular esse processo no direito brasileiro, como
microcosmo da história nacional.
Seria essa a ponderação que eu faria ao ilustre colega e aos demais presentes.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito obrigado, Prof. Fabio.
Indago ao Prof. Marcelo se ele escutou as ponderações trazidas pelo Prof. Menck.
O SR. MARCELO CASSEB CONTINENTINO - Sim, consegui escutá-las. Obrigado mais uma vez, Deputado
Lafayette.
Queria agradecer ao colega as ponderações e dizer que essa questão da legitimidade de 1874 é simplesmente um dos mais
belos temas, eu diria, que envolve o constitucionalismo imperial. Sabemos que a ideia de legitimidade e, muito mais,
de legitimidade da Constituição advém de alguns pressupostos que se pode adotar como condição de reconhecimento da
própria validade e legitimidade de uma norma jurídica.
O principal crítico — para mim, o maior de todos eles — foi o Frei Caneca. Depois, foi ele próprio quem se tornou a
grande liderança intelectual da Confederação do Equador, movimento que surge quase que exclusivamente para contestar
a outorga da Constituição de 1824 ao argumento de sua falta de legitimidade.
Mas o que seria essa legitimidade? Bom, é muito forte a presença, em Frei Caneca, das influências filosóficas tanto de
Rousseau quanto de Sieyès, que seria o teórico do poder constituinte. Nessa perspectiva, a ideia de que uma constituição,
para que seja legítima, deve passar por uma assembleia constituinte com representantes eleitos é uma ideia simplesmente
imprescindível à legitimação da Constituição.
Isso, de fato, não aconteceu. O Imperador seguiu esse caminho com o decreto de 3 de junho de 1822. Depois, vieram as
instruções para as eleições gerais, instadas pelo seu Ministro José Bonifácio. Houve as eleições, em momentos espaçados.
Em algumas regiões, nem eleição foi realizada. E, enfim, houve a eleição geral para Assembleia Constituinte. Esse é o
procedimento que, digamos, seguia o que estava preconizado pelos livros e que vinha sendo defendido.
Quando o Imperador dissolve a Constituinte, ele próprio — Frei Caneca é quem assume a defesa da ilegitimidade da
Constituição de 1824 por conta disso — promete a convocação de uma nova Constituinte, que ele não convocou. Em
contrapartida, ele submeteu, enviou às diversas Câmaras no Brasil uma cópia do projeto da Constituição de 1824 para que
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elas se manifestassem. A Câmara do Recife, sob o voto de Frei Caneca, cuja fala proferida nessa ocasião está publicada,
decidiu simplesmente rejeitar a Constituição.
Houve outros casos — e esse eu acho que é um tema que ainda merece uma pesquisa mais concentrada — de outras
Câmaras que enviaram sugestões de alteração da Constituição de 1824, como a de Itu, que foi destacada e também se
manifestou pela rejeição da Constituição.
E o que o Governo imperial fez com isso? Como ele respondeu a isso? Lembro que Constituinte é sobretudo um
procedimento, é sobretudo forma. E foi precisamente essa forma inexistente, que sugere a condução por meio de um ato
de força do próprio Imperador, o que gerou o questionamento da ilegitimidade. Então, é totalmente compreensível que o
Imperador tenha rechaçado essa acusação de que a Constituição não era legítima.
E outras Câmaras, em outras regiões, preferiram simplesmente aderir à Constituição, decidiram simplesmente seguir em
frente, tocar adiante. Foi isso o que aconteceu. Então, quase que por uma conivência com esse ato, e talvez pelo próprio
desejo de virar a página dessa Constituição, é que se seguiu com a Constituição nesses termos. E, de fato, não houve
questionamento.
Quando nós examinamos todos os livros de direito constitucional que foram publicados e outros trabalhos, ninguém discute
a contento essa questão da dissolução da Constituinte e do eventual caráter de ilegitimidade que a Constituição de 1824
possa ter tido por conta do fechamento e da dissolução da Constituinte. Alguns aludem ao fato de que, com o assentimento
das Câmaras, como foi destacado, essa questão estaria suprida, porque passou pelo crivo popular. Volto a dizer que o crivo
popular não é só dizer "sim" ou "não"; o crivo popular seria a própria participação no processo por meio da Constituinte,
o que não houve. Então, nesses termos, permanece o questionamento quando à legitimidade da Constituição.
A partir da crise política das décadas de 1860 e 1870, esse argumento da falta de legitimidade da Constituição voltou à
discussão no debate político, o que inclusive é registrado nos livros de história. E isso depois contribuiu para o processo
de queda da própria monarquia. Então, concretamente, foi dessa forma que a Constituição de 1824 passou. Considerou-
se o assentimento das Câmaras como um gesto legitimador da Carta de 1824.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Agradecemos as considerações ao Prof.
Marcelo.
Tem a palavra agora o Prof. Pablo Antônio Iglesias Magalhães, para comentar as ponderações do Prof. Theodoro Menck.
O SR. PABLO ANTÔNIO IGLESIAS MAGALHÃES - Agradeço ao Prof. Menck as considerações.
De fato, nós temos uma particularidade em relação a essa documentação eleitoral de 1823. Eu não a vi impressa na Bahia,
diferentemente do que ocorria nas Cortes portuguesas, nas quais toda a documentação foi impressa. A Bahia chegou a
publicar a Constituição de Cádiz — encontrei lá um exemplar da Constituição de Cádiz — e, em 1823, chegou a publicar
a Constituição portuguesa — 2 mil exemplares — por ordem do Governo.
Toda a documentação do processo eleitoral de 1821 e 1822 é possível encontrar nos arquivos da Bahia. Nunca se encontram
muitos exemplares, mas, revolvendo a documentação da época, encontra-se às vezes um exemplar mutilado. No entanto,
de 1823 não encontrei absolutamente nada impresso na Bahia em relação a isso.
De fato, há a questão da pluralidade de votos. É interessante notar também que o Agostinho Gomes foi reeleito, foi
indicado uma segunda vez, em 1826. Ele volta a não assumir o cargo, porque se nega a ir para o Rio de Janeiro. Em algum
momento, acho que talvez ele até tenha ido para o Rio de Janeiro, mas não assumiu o cargo.
Então, há sempre esse manifesto de desobediência por parte de alguns políticos da Bahia. É um ato de desobediência, e
isso é muito grave. Mas a ideia era de que fosse isso mesmo. A ideia era manifestar isso de forma muito clara, não só no
ato em si, mas também na divulgação por meio da imprensa.
O Prof. Marcelo falou do Frei Caneca. O Cipriano Barata também era muito agudo na imprensa. Então, não era só fazer
o ato de desobediência, mas também usar as mídias da época — e o mais moderno em mídia era o jornal impresso, que
circulava rápido — para criar uma comoção pública e, de certa forma, tecer uma crítica a um projeto que não contemplava
parte significativa dos brasileiros. Essa era a grande questão. Está contemplando quem? Está favorecendo quem? Por que
determinados segmentos estão excluídos desse processo ou estão colocados à margem desse processo? Então, foi muito
nesse sentido mesmo de desobediência clara e ampla a manifestação por parte desses indivíduos.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito bem. Agradeço ao Prof. Pablo.
O Prof. Menck não está satisfeito e deseja fazer mais uma intervenção. (Risos.)
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O SR. JOSÉ THEODORO MASCARENHAS MENCK - Não é o caso. É que ele me lembrou de que o sistema levava
a algumas incongruências.
O Cipriano Barata, por exemplo, foi eleito — e bem eleito —, mas não tomou posse. Tomou posse o suplente dele, o
Visconde de Cairu, que tinha posições completamente díspares em relação às de Cipriano Barata. A mudança foi de 8
para 80.
Então, era um sistema muito curioso, que permitiu que viesse a se constituir um grande luminar, porque as manifestações
do Cairu, o José da Silva Lisboa, são muito interessantes, muito amplas e muito eruditas. Elas são uma aula do antigo
regime, da antiga legislação. No entanto, ele só tomou posse porque o Cipriano não quis assumir o cargo, recusou-se a
tomar posse.
O SR. PABLO ANTÔNIO IGLESIAS MAGALHÃES - Eles eram amigos de infância. Eles tinham relação de
proximidade. O Cipriano conhecia muito o Silva Lisboa.
Há uma frase do Cipriano sobre o Visconde de Cairu: "Conheci o Visconde fanfarrão, cujo tio era mendigo, pedinte, na
Igreja do Carmo. Ele andava de canga rota". Ele descreve Silva Lisboa como alguém vindo de uma família muito pobre
e que, por questões de articulações na vida, conseguiu ascender ao título de Visconde e ao cargo de Senador também.
Silva Lisboa é mais do que parece ser. Eu não o colocaria como uma figura conservadora. Ele é outro sujeito muito
complexo também. Precisamos olhar para o Silva Lisboa à luz de algumas leituras. Há um trabalho muito bom da Tereza
Kirschner sobre ele.
Silva Lisboa usava muitos pseudônimos. Ele era mestre em anagramas e pseudônimos. Então, muita coisa dele nós não
alcançamos. Bonifácio dizia que ninguém lia Cairu, porque ninguém entendia o Cairu. Ele saiu uma vez com essa.
Como você disse, o Cairu dava aulas de erudição também. Era um homem eruditíssimo. Então, acompanhá-lo era bastante
complicado.
O SR. JOSÉ THEODORO MASCARENHAS MENCK - Só mais uma coisa: se o Cairu se vestia mal, o Cipriano
aprendeu, porque a crônica em Portugal de como o Cipriano se vestia era péssima.
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Muito bem. Foi muito rica a tarde de
hoje, portanto agradecemos a todos.
O Prof. André Heráclito do Rêgo quer fazer mais um comentário.
O SR. ANDRÉ HERÁCLIO DO RÊGO - São dois comentários. O primeiro é para o Pablo. Que desperdício de dinheiro
dos baianos, com duas Constituições que não tinham validade nenhuma: a de Cádiz, que a torto e a direito era invocada,
e a portuguesa, que não durou 6 meses.
Para o Theodoro o comentário é o seguinte: essa questão da legitimidade não se deve a que a legitimidade de D. Pedro I
era a do antigo regime e a de Frei Caneca já era a da modernidade? Pode ser essa a explicação.
E um esclarecimento para o Marcelo Casseb, a pedido do Theodoro Menck: Marcelo, não leve nada para o lado pessoal.
Tanto o Theodoro quanto o Deputado são nossos confrades do arqueológico. Eles também são partidários do grande
Pernambuco.
Obrigado. (Risos.)
O SR. PRESIDENTE (Lafayette de Andrada. Bloco/REPUBLICANOS - MG) - Está certo. Eu tive a oportunidade de
ver a junção dos dois rios fazendo nascer o Oceano Atlântico. (Risos.)
Mais uma vez, agradeço muito a todos a riqueza dos debates de hoje à tarde. Agradeço a participação ao Prof. Fabio
Siebeneichler de Andrade, do Rio Grande do Sul; ao Prof. Marcelo Casseb; e ao Prof. Pablo Magalhães, que está conosco
de forma presencial.
Portanto, encerramos a rodada desta tarde, da terceira Mesa: O legado da Constituinte de 1823. Retornaremos amanhã
com novas Mesas no Seminário comemorativo dos 200 anos da Assembleia Constituinte de 1823, promovido pela Câmara
dos Deputados, em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a partir das 9h da manhã, com transmissão
para todo o Brasil pelo canal da Câmara dos Deputados no Youtube.
Amanhã pela manhã, a primeira Mesa terá como tema O ideário jurídico da Constituinte de 1823, tendo confirmado a
presença o Prof. José Levi, ex-Advogado-Geral da União e Procurador da Fazenda; o Subprocurador-Geral da República
Dr. José Bonifácio de Andrada; o diplomata e escritor Paulo Roberto de Almeida; e o Ministro do Supremo Tribunal
Federal Dr. Gilmar Mendes. Eles estarão aqui na primeira Mesa, amanhã, às 9h da manhã. Estão todos convidados.
Estão encerrados, então, os trabalhos desta tarde.
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