150anosparana HistoriaHistoriografia
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A dcada de 1980 foi de renovao das esperanas feministas, bem como da
populao em geral, pois algumas das lutas traadas nos anos 70 juntamente a outros
setores de esquerda como a anistia dos presos polticos, comeam neste momento a
obter resultados.
A publicizao das denncias de violncia cometida contra as mulheres e a
reivindicao de estruturas de apoio s vtimas eram os principais pontos das lutas
feministas. Em 1980, como obra pioneira no atendimento s vtimas, houve em Belo
Horizonte, a criao do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher. Por outro lado,
temos as primeiras entidades criadas para a prestao de servios s vtimas, os SOS
Mulher, instalados primeiramente em So Paulo no mesmo ano e, em seguida, no Rio
de J aneiro, Porto Alegre e Belo Horizonte.
Representantes do movimento feminista e mulheres, unidos em prol da
publicizao, legalizao e atendimento especializado s vtimas de violncia,
interpelaram o Estado negociando a criao de polticas pblicas, especialmente, de
rgos especializados nos nveis federal, estadual e municipal, centros de apoio
jurdico mulher, de delegacias especializadas e de alguns abrigos, bem como o
tratamento legal ao assunto.
1
Vrios servios de atendimento e proteo s vtimas foram criados em
diversas localidades e perodos. Um deles foi o Conselho da Condio Feminina do
Estado de So Paulo, em abril de 1983, amparado pelo poder estatal. Criaram-se
tambm os Conselhos dos Estados do Paran e de Minas Gerais, sendo que neste
ltimo o funcionamento se iniciou imediatamente, devido agilidade do governo em
empossar as conselheiras.
Estas iniciativas colaboraram principalmente para a criao das delegacias
especializadas. Esse espao institucional proporciona a ruptura do silncio que por
longos anos circundou as mulheres vtimas de violncia, visibilizando o fenmeno. O
fato da quebra do silncio, ao publicizar o privado, o ntimo, em trazer tona o cenrio
atroz em que conviviam, um largo passo para as mulheres vtimas. Elas rompem
com o fenmeno invisvel e permitem que a violncia seja considerada uma questo
pblica, que o fato seja politizado
2
e que o Estado, a polcia e a justia tomem as
medidas necessrias para cont-la e punir seus agressores.
A primeira delegacia a surgir em mbito nacional foi em So Paulo, em 06 de
agosto de 1985, e recebeu a denominao de Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).
A criao do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 29 de agosto do mesmo
ano, pela Lei N. 7.353, um rgo vinculado ao Ministrio da J ustia
3
, contribuiu para o
desencadeamento de reivindicaes em outras capitais e cidades do pas, para que se
instalassem novas delegacias especializadas ao atendimento mulher, vtima de
violncia, para suprir a necessidade em nvel nacional.
A institucionalizao da violncia contra a mulher abriu maior espao para a
penalizao de agresses outrora no consideradas como crimes, ampliando assim o
leque de atitudes comportamentais agressivas passveis de denncia e punio.
Portanto, nos rgos especializados, as vtimas se sentem mais vontade para
denunciar seus agressores e, conseqentemente, ajudam na elucidao da violncia
de gnero desmascarando um fenmeno invisvel e trazendo tona a gravidade e a
freqncia com que isso ocorre. Assim sendo, estas delegacias tm se tornado mais
uma via para o aumento da visibilidade da violncia contra a mulher.
4
A denncia a iniciativa mais encorajada, pois oficializada a queixa, muitos
agressores, flagrados em seus comportamentos agressivos, se sentem constrangidos
ao serem expostos s autoridades femininas. O encorajamento pblico das
autoridades prtica de denncia faz parte de uma proposta educativa que visa inibir
as mais variadas formas de violncia contra a mulher e guiado por um conceito de
cidadania que assegura a plena igualdade de direitos.
A necessidade de combater a violncia contra a mulher, assumida pelos
movimentos feministas e de mulheres, despertou a iniciativa de implantar uma
delegacia especializada ao atendimento das mulheres vtimas de violncia na cidade
de Maring, haja vista o ndice de crescimento da violncia em todo o pas.
Esta mobilizao local decorrente dos movimentos nacional e estadual em
prol da necessidade de criao de rgos especializados proteo e defesa das
mulheres vtimas de violncia. O Conselho da Condio Feminina do Paran foi criado
pelo Decreto 6.617 de 24 de Outubro de 1985, poucos meses depois da criao do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher(CNDM). Apenas em 28 de Abril de 1995,
que a designao de Conselho da Condio Feminina do Paran muda para Conselho
Estadual da Mulher do Paran.
A criao dos Conselhos Estaduais e Municipais da Condio Feminina,
desempenhou importante papel na luta pela criao das delegacias especializadas
que em meados de 1986, j eram em nmero de 26 e estavam espalhadas em vrios
Estados
5
. O ano de 1986, portanto, foi relevante no que tange mobilizao de
autoridades policiais locais e estaduais, bem como de vrias entidades e participao
social feminina em prol da luta pela implantao da delegacia da mulher em Maring.
A cidade experimentava considervel alto grau de desenvolvimento e servia de
atrao para habitantes de outros municpios em busca de melhores condies de
vida.
Durante o ano de 1986, ocorreram na cidade vrios debates reunindo mulheres
para discutir temas como a constituinte, a violncia, a sade, educao e tantos outros
que preocupavam a mulher brasileira e a sociedade de um modo geral. A instalao
da Delegacia Especializada na Defesa da Mulher, em Maring, ocorreu em 24 de
outubro de 1986. Isso resultou do apoio e das reivindicaes de entidades femininas
como a Unio da Mulher Maringaense, a Assistncia J udiciria de Maring,
representada por sua coordenadora Dra. Mara Catarina Mesquita Lopes, bem como
do delegado-chefe de polcia de Maring, Dr. Fauze Salmen.
Outro ponto culminante dessa mobilizao foi a manifestao de apoio da
delegada titular da primeira Delegacia da Mulher de Curitiba, Dra. Thereza Hermelindo
Santos, desde dezembro de 1985. Ela ressaltava a necessidade de uma delegacia da
Mulher em Maring. argumentando que, com os altos ndices de criminalidade que a
cidade atingia em 1986, seria importante uma instituio especializada, que revelasse
o fenmeno com a devida dimenso, demonstrando que o ndice registrado nas
delegacias no expressa a complexidade do problema devido aos vrios fatores
mencionados
6
.
Os dados estatsticos revelados em maro de 1986, atravs da Delegacia de
Polcia de Maring, demonstram que apenas 10 mulheres, em mdia, procuravam a
delegacia mensalmente para registrar queixas contra seus agressores o que expressa
claramente o sub-registro de denncias das agresses. Alm disso, Dra. Mara
Catarina Mesquita Lopes afirma que dos 198 casos atendidos no ms de fevereiro de
1986, 30% eram pedidos de separao ou de penso alimentcia. Na maioria das
vezes, o que determinava o pedido de separao era a violncia fsica, moral e
psicolgica. Lopes afirma ainda que se na delegacia de Polcia o nmero registrado de
violncia contra a mulher de dez, mensalmente, a procura na Assistncia J udiciria
por motivos de violncia ultrapassa o nmero de trinta por ms.
7
Segundo o delegado-chefe de polcia, Dr. Fauze Salmen, a necessidade de se
implantar uma delegacia da mulher, em Maring, era urgente na medida em que
incentivaria as vtimas denncia, pois por mais capacitado que seja, o homem ainda
inibe a mulher. Com a presena feminina, a mulher vai se sentir mais identificada,
principalmente quando se trata de crimes sexuais
8
. Percebe-se, portanto, o
reconhecimento e a luta de autoridades conscientes da falta de um rgo
especializado para atender as vtimas e deix-las mais vontade para denunciar seus
agressores, principalmente naqueles casos relacionados a uma violncia to ntima.
Com o atendimento feminino derivado da criao da delegacia da mulher,
mulheres aprisionadas no crculo violento e que por inmeras razes no formularam
denncia delegacia de polcia tradicional passaram a ver revertido este quadro.
No momento da instalao da Delegacia da Mulher, Dr.Fauze Salmen j no
era o titular da delegacia de polcia. Porm, seu sucessor o delegado-chefe da 9
Subdiviso de Polcia, Dr. Leonil Cunha Pinto, deu prosseguimento ao projeto e
colaborou para que o intento se tornasse realidade.
A violncia de gnero um problema cultural, reconhecido inclusive em
bibliografia internacional. E vrios so os elementos apresentados para sua prtica.
Um deles so os cimes, pois as mulheres esto expostas socialmente e merc de
flertes e cantadas. Alm disso, h o medo da competitividade uma vez que as
mulheres esto ocupando espaos antes exclusivos deles, bem como se sobressair na
vida profissional, receber melhores salrios e ser chefes de famlia. O constrangimento
diante do sucesso feminino no trabalho aliado ao crescente desemprego masculino,
por no cumprir com o dever estabelecido socialmente de provedor. Esses aspectos
econmicos e sociais ao ferir a superioridade masculina, colocam-nos em uma
situao constrangedora, acarretando muitas vezes um comportamento agressivo, que
causa os mais diversos tipos de violncia, uma vez que a fora fsica e a dureza so
ainda armas de que os homens dispem para provar sua virilidade e poder
Outro elemento que contribui para a prtica violenta o consumo exagerado
de bebidas alcolicas, seja por vcio, ou ento, como forma de anestesia para os
problemas enfrentados cotidianamente. O agressor quando embriagado comete as
piores atrocidades contra as pessoas de seu convvio, e depois alega no saber o que
estava fazendo. Entretanto, o que no fica claro nesses casos se as pessoas agem
de forma violenta porque esto bbadas ou se embebedam a fim de conseguir uma
permisso social de carter implcito para agir de maneira violenta
9
. Percebe-se que a
Embriaguez um estgio do agressor que culmina em violncia.
No recorte temporal abrangido pela pesquisa, o nmero de ocorrncias
registradas perfaz um montante de 6.399 queixas englobando nesse total uma vasta
tipologia de crimes cometidos contra a pessoa, a liberdade individual, o patrimnio, os
costumes e a famlia. H, ainda, as consideradas contravenes, nas quais se inclui a
embriaguez. Sendo assim, tomou-se como critrio a maior incidncia de dois tipos de
queixas registradas: a agresso fsica ou leso corporal, classificada como crime
contra a pessoa; e a embriaguez, considerada uma contraveno pelo Cdigo Penal.
No que se refere ocorrncia dos crimes, nota-se que a maior incidncia recai sobre
os crimes contra a pessoa, uma vez que as formas de agresses dirigidas aos
indivduos so freqentes e atingem, principalmente, a integridade fsica e moral e,
alm disso, atentam contra a prpria vida. Do total das queixas registradas na
Delegacia da Mulher, em Maring, no perodo em estudo, 53,30% se referem aos
crimes contra a pessoa. No cmputo dos crimes contra a pessoa, 26,25% so
referentes s leses corporais (agresso fsica), o que demonstra a grande freqncia
com que isso ocorre.
Crimes contra o patrimnio e os costumes apresentam um percentual nfimo de
incidncia, sendo superados pelos crimes contra a famlia que representam 8,42% do
total de queixas, bem como pelos 10,11% contra a liberdade individual. J das
contravenes, o percentual de 23,92% de incidncia bem representativo, uma vez
que no so considerados crimes, mas apenas contravenes, transgresses da lei.
Desse percentual referente s contravenes, a embriaguez se destaca com 17% dos
casos.
A apurao e anlise das queixas registradas na Delegacia da Mulher, em
Maring, entre os anos de 1987 a 1996, com intuito de compreender o universo
violento em que vtimas e agressores convivem, relacionou-se um nmero de 2.768
(43,25%) ocorrncias registradas como agresso fsica e embriaguez. Portanto, esses
dois tipos de queixas perfazem quase metade do montante registrado e a freqncia
com que isso ocorre reveladora. No que os outros tipos de queixas no sejam
significantes, o que acontece que 56,75% do total das ocorrncias esto distribudos
entre trinta (30) tipos de queixas distintas, representando uma mdia de 121 casos
para cada queixa no perodo em estudo. Se compararmos essa mdia com as
ocorrncias de agresso fsica e embriaguez perceberemos seu significado, pois
43,25% esto distribudos apenas entre esses dois tipos de queixas.
Estas queixas foram as mais freqentes e ambas, muitas vezes, se completam,
pois as registradas como agresso fsica tm vrias alegaes para os episdios
violentos, enquanto que as registradas como embriaguez, na realidade, no o estar
embriagado a causa do incmodo, mas o que resultou da embriaguez, ou seja, a
agresso fsica, moral, sexual, dano e perturbao da tranqilidade.
Com os variados tipos de queixas registradas na delegacia da mulher, em
Maring entre 1987 e 1996 percebe-se como o fenmeno da violncia complexo.
Alm das agresses fsicas, morais e sexuais, h ainda o cerceamento da liberdade
individual, ameaas, perseguio e crcere privado. H ainda os crimes contra a
famlia, como o abandono do lar e o abandono material, principalmente este, pois nos
dados levantados junto Delegacia da Mulher representa 2,9% do total das queixas.
Se pensarmos esse percentual isolado, seu significado mnimo. Contudo, se
considerado em um contexto violento, em que a maioria das denncias feita por
vtimas das classes menos favorecidas, onde a pobreza, o desemprego ou
subemprego e a violncia constante imperam, esse baixo percentual adquire um
significado extremo.
A revelao de condies precrias que as famlias convivem, agravadas pelo
descaso, abandono material e maus-tratos por parte dos homens, que segundo os
padres sociais deveriam ser os provedores da famlia, expressam o contexto em que
a violncia se manifesta. Em contrapartida, h aqueles casos em que os agressores
no cuidam de sua famlia legtima, deixando-a abandonada, materialmente, para
sustentar uma outra famlia, uma relao extraconjugal.
Independente da face que a violncia assume, o nmero de ocorrncias
relativo a cada uma delas surpreendente no apenas no aspecto quantitativo.
notvel, principalmente, o aspecto qualitativo, ou seja, a gravidade e os prejuzos
causados s vtimas, uma vez que a violncia contra a mulher resulta em
comprometimentos fsicos como fraturas, queimaduras, hematomas, aborto e morte.
J no aspecto psquico, causam frustrao, fragilidade emocional, bloqueio sexual,
medo constante, depresso, bem como a falta de vontade de viver
10
.
A denncia das agresses e o rompimento com o crculo violento, atravs da
iniciativa feminina, so essenciais para o vislumbramento das condutas violentas e o
contexto em que elas se inserem. Atravs dos Registros de Ocorrncias, percebe-se
que a dominao masculina sobre as mulheres intensa e impera em muitos lares
sob a forma mais cruel, a violenta. No somente nos lares, mas em outros espaos
sociais divididos por homens mulheres, ambos com responsabilidades e funes.
Derivam da resistncias, o mau-relacionamento, a incompatibilidade de pensamentos,
as indiferenas, os conflitos, as agresses morais, as ameaas e, por fim, as
agresses fsicas.
Portanto, a violncia de gnero parece ser a mais adequada para tratar desse
impasse e dessa desigualdade que revestem os relacionamentos afetivos, pessoais,
profissionais e intelectuais quando se trata dos sexos opostos. A tradio machista de
superioridade, a luta pela manuteno e permanncia do status quo o que
impulsiona os homens no embate contra as mulheres. a luta em mostrar s
mulheres que seus papis e espaos predefinidos so limitados que gera uma reao
violenta, pois os homens utilizam-se de fora fsica para impor seus desejos e
vontades, bem como seu poder
11
.
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IndicaesdeStios
no confirmados
* Ciudad Real
Notas:
*
Esta comunicao resume um artigo completo em fase de gestao, que dever ser publicado
brevemente. Os autores agradecem aos moradores de Altnia pela ateno e prestativa colaborao
durante as entrevistas e visitas em suas propriedades. Tambm agradecem ao Prof. Dr. Marcos Rafael
Nanni, do Departamento de Agronomia da Universidade Estadual de Maring, pela confeco da figura 1.
1
Bolsista do Programa de Iniciao Cientfica/Graduando em Histria/Estagirio do Laboratrio de
Arqueologia, Etnologia e Etno-Histria da Universidade Estadual de Maring.
2
Professor de Histria da Universidade Nacional do COMAHUE, Neuqun, Argentina.
3
Professor e Pesquisador Laboratrio de Arqueologia, Etnologia e Etno-Histria da Universidade
Estadual de Maring.
4
Ver, F. W. LANGE e M. MOLINA (eds.) Cultura y Naturaleza Sin Fronteras. Mangua: Instituto
Nicaragense de Cultura, USDA/Forest Service Southern Region y O E A, 1995.
5
Alessandro PORTELLI. Histria oral como gnero. In: Projeto Histria. (22) So Paulo, Edusc, jun.
2001, p. 9.
6
Michel THIOLLENT. Metodologia da pesquisa-ao. So Paulo: Cortez Editora, 1998, p. 14.
7
Curiosamente, Thiollent cita a Karl Marx como um dos pioneiros desse mtodo, atravs da sua Enquete
Operria de 1880! As 101 perguntas formuladas foram elaboradas tanto para obter uma informao
objetiva sobre a condio da classe operria na Frana, quanto (e em primeiro lugar) para fazer os
trabalhadores refletirem sobre o carter da sua situao de explorados. Ver Michel THIOLLENT. Crtica
metodolgica, investigao social e enquete operria. So Paulo: Polis, 1985.
HISTORIOGRAFIA PARANAENSE NA METADE DO SCULO XX
O PARAN TRADICIONAL E O PARAN MODERNO
Elzio dos Reis Marson
1
H uma produo intelectual paranaense, a partir da metade do sculo XX, que
realizou uma dualidade entre o norte e o sul do estado, cuja denominao se d ao sul
de Paran tradicional ou Paran velho e ao norte de Paran moderno ou Paran
novo. Os principais pesquisadores que redigiram esta distino entre o norte e o sul
so: Ceclia Maria Westphalen, Brasil Pinheiro Machado, Altiva Pilatti Balhana, Artur
Barthelmess, Ruy Wachowicz e outros. Diante desta questo, oportuno indagar:
quais so os fatores que atribuem esta distino entre o norte e o sul do Paran?
Ao construrem uma histria da primeira atividade econmica no Paran, a da
minerao, o pesquisador Artur Barthelmess ressalta que o ouro explorado no litoral e
arredores do que hoje a cidade de Curitiba, resultou na condensao dos primeiros
ncleos populacionais estveis
2
. Ceclia Maria Westphalen justifica o povoamento
serra acima face ao achamento de ouro nas proximidades de Curitiba. Tendo
aumentado o nmero de moradores foi necessrio a ereo do pelourinho em 1668
surgindo a vila de Curitiba
3
.
Brasil Pinheiro Machado registra que nas duas ltimas dcadas do sculo XVII
a cata de ouro de lavagem j se encontrava em estado de desagregao
4
. A partir
do sculo XVIII, uma nova economia se desponta para assegurar a continuidade de
povoamento nos arredores de Curitiba. Nos sculos XVIII e XIX pesquisadores
paranaenses remontam ao tropeirismo, como a principal atividade que abria caminhos
e fazia povoar a quinta provncia de So Paulo: o Paran. Ceclia Westphalen relata
que os caminhos existentes nos Campos Gerais
5
eram naturais, feitos por ndios pr-
cabralinos. Passando pelos caminhos naturais, as tropas que vinham do Rio Grande
do Sul seguiam para as feiras de Sorocaba, em So Paulo, ou vice-versa com
mercadorias. Para Westphalen, o povoamento efetivo nos Campos Gerais e nos
Campos de Curitiba resultou das tropas, dando origem a pousos com uma casa de
negcios pronta para fornecer alimentos e um cercado para os animais. Com este
pequeno comrcio nascem os primeiros povoados na regio
6
.
Nestes caminhos das tropas, em territrio paranaense, surgem as grandes
fazendas. Westphalen, Machado e Balhana observam que esta poltica agrria era
estabelecida com a posse inicial e posteriormente requeria a concesso de
sesmarias. Os historiadores explicam que para fundar uma fazenda o empreendedor
enviava o seu preposto, com alguns escravos, tomando posse da terra, para onde
conduziam algumas cabeas de gado. Depois, alegando essa posse, requeria a
sesmaria, emergindo os grandes latifundirios, tendo como principal via o caminho de
tropas
7
. Brasil Pinheiro Machado aponta que havia o comrcio de muares e a criao
de gado nos Campos do Paran
8
. Esta economia era estimulada pelo novo conjunto
de empresas dominantes do Brasil. Nos princpios do sculo XVIII a economia
aucareira arrefeceu em detrimento da economia de minerao cujo centro de
dominncia se localizava em Minas Gerais. O Brasil se estruturou com a nova
economia, estimulando o comrcio do gado muar vinda do Rio Grande do Sul para
suprir a necessidade de transporte nas minas de ouro que se fazia em lombo de burro,
surgindo o tropeirismo. Paralela ao tropeirismo, a atividade da minerao em
Minas Gerias favorecia a criao de gado. Para suprir a necessidade de alimentos,
principalmente de origem animal, para os ncleos mineradores, o governo de So
Paulo buscou o gado criado nos Campos do Paran para o sustento dos mineiros.
Portanto, as duas economias, o tropeirismo para servir de transporte e o gado para
servir de alimentao, estavam intimamente ligadas. Brasil Pinheiro Machado nos
esclarece que muitos grandes fazendeiros eram tropeiros cujo trabalho reunia toda a
famlia, alguns escravos e pees de tropa
9
. Com destino em Sorocaba, tudo era
redistribudo para as minas de ouro e fazendas de caf.
Brasil Pinheiro Machado tambm nos esclarece que havia uma poltica quanto
criao de muares. Machado observa que no sculo XVIII, no Brasil, era proibida a
criao de muares em qualquer de suas Capitanias, com exceo do Rio Grande do
Sul. Era necessrio dar provncia mais meridional do pas um motivo forte pelo qual
essa regio pudesse se integrar e se incorporar no Brasil
10
. Como a concentrao das
minas de ouro e das fazendas de caf estavam na regio sudeste do pas, e os
muares no Rio Grande do Sul, o Paran tornou-se a ponte entre o criatrio e o
consumo do gado.
Arthur Barthelmess constata que a regio dos Campos Gerais estava
assentada em um solo demasiadamente arenoso e o aproveitamento agrcola no foi
realizado. Sua atividade econmica se assentou na pastoril extensiva: o gado vacum e
o muar, cuja produo, durante sculos, s poderia ser escoada por trilhas ou picadas
nas matas face a ausncia de rodovias ou ferrovias naquela regio
11
. Barthelmess
salienta que os Campos Gerais se restringiu pecuria porque era a mentalidade
econmica da poca do povoamento. Esta tradio era acompanhada em todo o
Brasil. No se pensava em aproveitar os campos naturais para a agricultura, mas com
a criao de gado. Do ponto de vista econmico era mais vivel, face a ausncia de
estradas
12
. Portanto a economia do gado no organizou uma rede de estradas
carroveis ao longo das quais poderia ser realizado um povoamento rural, mas se
prolongaram caminhos que asseguraram apenas o transportes de mercadorias em
lombo de animais, tida como um meio de transporte tradicional que era executado no
to somente no Paran tradicional mas em todo o Brasil.
Enquanto as cidades nasciam e cresciam em funo de um pouso de tropas ao
longo de caminhos, as primeiras colnias agrcolas, em funo da poltica de
imigrao em povoar os Campos do Paran e solucionar a escassez de alimentos,
no foram bem sucedidas. Altiva Pilatti Balhana observa que a imigrao alimentava a
esperana das autoridades porque os imigrantes eram portadores de outra tradio
rural e poderiam substituir a criao de gado pelo sistema agrcola. As primeiras
colnias foram instaladas no final do sculo XIX em antigas fazendas dispersas e
distantes uma da outra
13
. Arthur Barthelmess salienta que no Paran nenhuma
colnia conseguiu manter-se fora da estrada carrovel; nem o transporte em lombo
de animais, nem carro de boi asseguravam a sobrevivncia destas colnias.
Assegurou os grandes latifndios, ocupados por pouca mo-de-obra e ligado por uma
rede de caminhos. Com seu mtodo tradicional e primitivo os fazendeiros no
dependiam de um ncleo urbano, decretando a falncia de cidades
14
. Era a fazenda
que fazia a integrao ao conjunto nacional, mantendo grandes famlias no contexto
social da provncia.
Diante desta historiografia, o sentido do Paran velho e Paran tradicional
definiu-se com os fluxos lentos, refletido com os efeitos da ausncia de estradas. Foi
herdada no tempo do tropeirismo e das boiadas apenas caminhos e trilhas. Em outras
palavras temos uma construo histrica que o povoamento da regio litornea e sul
foi povoada lentamente, percorrendo um caminho de trezentos anos de ocupao.
esclarecedor que a economia do tropeirismo e do criatrio de gado nos
Campos do Paran foi a principal atividade econmica durante os sculos XVIII e XIX.
Mas havia uma economia de subsistncia cujo principal produto que cultivavam era o
trigo. Brasil Pinheiro Machado observa que nas fazendas plantava-se, moa-se e
panificava-se o trigo. Havia tambm o plantio de milho e arroz cujo mtodo era um
dos mais rudimentares. Machado comparou dois documentos e percebeu que estas
roas, num espao de tempo de cento e quarenta e seis anos ainda se aplicava o
mesmo processo
15
.
Foi com a economia da erva mate, primeira atividade econmica exportadora
do estado, que Curitiba transformou-se de fisionomia de vilarejo colonial portugus,
para outra feio urbana. Arthur Barthelmess observa que as tentativas frustadas de
colnias agrcolas favoreceu a vinda de imigrantes para o ncleo urbano de Curitiba.
Os alemes, sendo pedreiros, carpinteiros, empreiteiros de obras, foi o executor da
renovao urbana de Curitiba. Tendo o domnio do transporte da erva mate com seus
carroes, mais eficiente que as mulas e muares, e favorecidos com a abertura da
estrada da Graciosa, em 1873, tornou o alemo um grande empreendedor pertencente
a uma classe burguesa e tendo em suas mos um comrcio importador e algumas
indstrias. A nova feio urbana tornaram ao gosto europeu. Construram uma
catedral em estilo gtico, o edifcio da prefeitura em estilo renascentista, palacetes que
comportaram famlias de exportadores de mate e dezenas de clubes
16
. Balhana
observa que os russos-alemes por desprezarem as atividades agrcolas se
ocuparam nos servios de transporte da erva mate ocasionando numa atividade
rendosa que alcanaram a prosperidade
17
. Mas esta expresso s resultou no final
do sculo XVIII.
Altiva Balhana, ao verificar as dificuldades das colnias agrcolas, salientou que
os Campos Gerais foi considerado imprprio para qualquer atividade agrcola e
portanto para a colonizao, s comportava a tradicional explorao pastoril
18
.
Assim pesquisadores descrevem aquela regio de Paran velho ou Paran
tradicional por manter uma estrutura quase que estagnada durante sculos, pois foi
somente no incio do sculo XIX que o governo elabora e executa um plano de
colonizao agrcola nos Campos do Paran
19
.
duvidosa a iniciativa da colonizao na regio norte do Paran. H vrias
verses. O que se sabe que a transao ocorreu na dcada de 20 e a colonizao
teve incio na dcada de 30. Westphalen, Machado e Balhana ressaltam que a
Companhia de Terras Norte do Paran, contando com tcnica superior, organizou
modernamente a colonizao da imensa rea que alcanaria 515 mil alqueires
paulistas. A rea foi dotada de boas estradas, colocando todas as propriedades rurais
em comunicao fcil. No havendo servides, nem propriedades encravadas, os
ncleos urbanos no distavam mais que 15 quilmetros, prevendo a integrao entre
o meio rural e urbano
20
. Nice Lecoq Mller tambm observou que esta colonizao
intensiva que ocorreu no norte do Paran, em moldes modernos empreendeu uma
das mais notveis obras de colonizao
21
. O espao para lanar-se nesta regio est
assentada em solo frtil, 20.000 Km2 de terras roxas legtimas, mais que o total
existente no estado de So Paulo. A ocupao processou-se aps reas produtoras
de caf paulistas alcanaram a sua saturao. Homens com excedentes em recursos
puderam adquirir pequenos lotes de uma empresa imobiliria com facilidades de
pagamento e proporcional segurana no litgio das terras. Com grande sucesso, Arthur
Barthelmess denominou a regio norte do maior dinamismo na rapidez e na
capacidade de penetrao que no Paran pode sentir
22
.
A primeira atividade econmica do norte do Paran est inserida no
capitalismo, dinamizando sua extrao: era a explorao industrial da madeira. A partir
de 1930 a economia madeireira no norte conquistou uma situao absoluta tornando
grande vulto com os mais novos e eficientes meios de transportes: o caminho e a
locomotiva, cujas estradas, de rodagem e ferrovia, j chegavam em Londrina ainda na
dcada da prpria fundao da cidade. A explorao da madeira foi to intensa que na
dcada seguinte, anos 40, o caf j estava substituindo a madeira, despontando como
a nova economia da regio, tornando o norte ainda mais dinmico.
Barthelmess observa que o norte do Paran, invadido por uma populao que
j trazia consigo o hbito da cultura do caf, obteve um progresso de poucos anos.
O pesquisador redige que a ocupao do norte do Paran foi favorecida pela
evoluo dos transportes rodovirios possibilitando um ritmo de penetrao mais
rpido do que havia ocorrido com o Paran velho, cujo avano se deu lento e
custoso
23
.
Uma companhia colonizadora abriu todos os caminhos para o migrante chegar
na regio, e este tornou-se um empreendedor capaz de construir cidades com
catedrais, universidades, escolas, hospitais e centros decisrios da poltica local em
menos de trinta anos. Altiva Pilatti Balhana observa que as cidades da regio norte do
Paran surgiram e se formaram com uma rpida maturao cujo processo de
urbanizao se realiza com um mundo rural recm formado
24
. Altiva Pilatti Balhana
observa que no norte do Paran ocorreu um aglomerado humano que a geografia
define como cidades cogumelos face ao adensamento populacional proporcionado
pelo cultivo do caf que exigia grande mo-de-obra
25
. sugestivo o contraste que se
constri entre o norte e o sul. O sul possui uma formao lenta, ocupada em trs
sculos, constituda por caractersticas coloniais: pelourinho, escravos, caminhos e
sesmarias/latifndios. Ocupado em trs dcadas, o norte dinamismo constitudo por
caractersticas contemporneas: centro de decisrios dos trs poderes, mo-de-obra
livre, estradas e pequenas/mdias propriedades.
A histria de Curitiba e Londrina tambm construda com um grande
contraste. Barthelmess observa que Curitiba nasceu no sculo XVII de um arraial de
faiscadores de ouro. Foi gradativamente se firmando como ncleo urbano, em
funo direta do desenvolvimento da pecuria nos Campos de Curitiba. O pesquisador
salienta que a cidade s foi reconhecida como centro de cristalizao regionalista em
sucessivas etapas. Com a pecuria, economia da erva mate e da madeira, Curitiba
tornou-se sede do Paran velho
26
. O ncleo urbano de Londrina foi configurada por
um topgrafo, esboada por um engenheiro, explorada por indstrias madeireiras,
limpada por mateiros, medida por um agrimensor e ocupada por migrantes. Definida a
atividade da colonizadora em empreendimento imobilirio em 1930, inicia a venda dos
primeiros lotes de terras. Com a abertura do que seria Londrina em 1931, deu-se um
rpido crescimento que em 1934 tornou-se municpio. Nice Mller relata que Londrina
foi destinada a lhe servir de sede e de capital de uma zona adquirida do governo do
Estado
27
. Assim Londrina nasceu como centro irradiador do Norte novo por
comportar a sede administrativa da Companhia de Terras Norte do Paran.
O contraste entre o norte com o sul no esto apenas na formao de suas
cidades plos. Barthelmess observa que as cidades e vilas do Paran velho nascera
sob o impulso da economia pastoril, sendo separadas da outra pela distncia de um
dia de viagem margens dos caminhos de tropeiros
28
. Na regio norte, as cidades so
separadas da outra pela necessidade de apoio pequena propriedade agrcola. Na
regio sul os grandes latifundirios, com seus mtodos tradicionais no dependeram
de cidades. Na regio norte os ncleos urbanos recebem agroindstrias para
beneficiar e comercializar os excedentes do agricultor. Este, por sua vez, necessitava
do comrcio para a aquisio de produtos, como arados e adubos para a sua lavoura,
onde s poderiam encontrar na cidade. Alm de apoio agricultura, as cidades da
regio norte comportava uma estao ferroviria, e no ptio destas uma caixa dgua.
Era necessrio abastecer com gua as caldeiras da locomotiva, as denominadas
Maria Fumaa, que tambm necessitava deste precioso lquido. No excedendo a 15
quilmetros de distncia entre uma caixa dgua e outra, e era o tempo suficiente para
a locomotiva caminhar com gua. Sua rota principal situa no espigo mestre, divisora
de guas entre as bacias dos rios Tibagi, Pirap e Iva. Sob esta crista, onde o caf
est protegido das geadas locais e as estradas sem grandes acentuaes, foi traada
e construda a estrada principal de rodagem e uma ferrovia.
Ao desenharmos o grmen de cidades no norte e sul, produzimos o histrico
de cidades que nascem beira de caminhos que passavam muares, cujo povoamento
dava assistncia ao tropeiro e ao seu meio de transporte: o muar. Na regio norte as
cidades surgem em pontos programados, para dar assistncia ao agricultor e ao seu
meio de transporte: a locomotiva. Ao norte elas surgiram projetadas, com uma
economia voltada exportao, sob o efeito da poltica de expanso rumo ao oeste.
No sul elas surgiram expontneas, com uma economia interna, sob o efeito de uma
poltica em integrar o Rio Grande do Sul ao territrio brasileiro.
Percebemos que o moderno ou novo e o tradicional ou o velho est
associado ao povoamento do Paran cuja ocupao se processou de modos
diferentes. A ocupao das terras no sul do Paran ocorrem sob a forma de uma
ocupao espontnea, primeiramente com a minerao, posteriormente com a criao
de gado surgindo as grandes fazendas. Como a ocupao se cristalizou numa
estrutura agrria herdada do perodo colonial ao longo de sculos, pesquisadores
denominaram a regio sul do Paran de Paran tradicional. Nos campos do Paran,
em 1772, Westphalen, Machado e Balhana registraram 50 fazendas instaladas, sendo
cada unidade entre 4 mil a 8 mil alqueires paulista
29
. A outra ocupao conseqncia
de colonizadoras que ocuparam a regio norte, oeste e sudoeste do Paran.
Westphalen, Machado e Balhana assinalam que, no ano de 1957, havia no oeste e
sudoeste do Paran, trinta companhias imobilirias, explorando com mtodos
modernos
30
. Portanto a definio de Paran moderno no se restringiu apenas
regio norte, colonizada pela Companhia de Terras Norte do Paran, tambm s
regies oeste e sudoeste do Estado que predominou a forma de ocupao por
companhias colonizadoras, ocorrido somente no sculo XX. Diante desta circunstncia
Barthelmess ressalta que na regio norte ocorreu uma gerao de cidades novas
enquanto ao sul ficou constitudo por velhas cidades, apresentando fenmenos
diferentes
31
.
Renato Ortiz em A Moderna Tradio Brasileira: Cultura Brasileira e Indstria
Cultural ao analisar a dcada de 50 e parte da 60, verifica que este perodo foi um
momento de efervescncia cultural. A recorrente utilizao do adjetivo novo, observa
Ortiz, trai todo o esprito de uma poca: bossa nova, cinema novo, teatro novo,
arquitetura nova, msica nova que contrastava na oposio entre o velho e a nova
sociedade
32
. Se Artur Barthelmess denominou o sul de Paran velho e a outra
regio de Paran novo, o sufixo novo demonstra vida nova, algo que ressurgiu
recentemente. Assim o novo apontava a construo de uma sociedade moderna,
animados por uma ideologia de transformao ou pelo menos de esperana por
mudana. Para Barthelmess e demais historiadores que rotulam regies de Paran
moderno, que foram colonizadas recentemente, por empreendimentos imobilirios,
esto associadas a algo novo, apontando mudanas com a transformao da
paisagem urbana e rural.
Diante da questo poltica, a historiografia paranaense tem encontrado outra
resposta para a denominao do norte de Paran moderno e sul de Paran
tradicional. Brasil Pinheiro Machado observa que desde que surgiu o Paran em
1853, os chefes das grandes famlias de fazendeiros comearam a participar da vida
poltica do Paran. Machado salienta que esta nova liderana poltica se processa
sob a forma de oligarquia que dominou a poltica do Paran por tanto tempo
33
. Esta
poltica oligrquica no Paran praticamente se restringiu no litoral e sul do estado,
exercendo a hegemonia poltica, pois seu comando de poder no conseguiam se
expandir at o norte e oeste do Paran.
Para o pesquisador Amilcar Vianna Martins Filho, o sistema Republicano foi
favorecido com a Constituio de 1892 que consagra autonomia aos Estados, sob os
moldes que desejavam paulistas e mineiros, transformando as regies em centros
polticos. Estruturado por grupos oligrquicos o poder se transferiu, no para os
Estados, mas para os grupos oligrquicos que segundo Amilcar Martins Filho era um
governo de poucas pessoas, pertencente ao mesmo partido, classe ou famlia que
predominam na direo dos negcios pblicos e passaram a dominar a poltica no
nvel estadual, coroando a antiga aspirao de autonomia destes grupos
34
.
Fazendo uma rpida genealogia dos governantes do Paran durante a primeira
metade do sculo XX, observamos que o poder executivo estadual pertencia a uma
mesma classe ou famlia. Neste cenrio o governador Affonso Alves de Camargo
(1916/20) pertenceu uma famlia de latifundirios dos Campos de Guarapuava; entre
1921/28 governa, por duas gestes, Caetano Munhoz da Rocha ligado ao grupo de
ervateiro; de 1928/31 retorna Affonso Alves de Camargo ao governo; natural dos
Campos Gerais, Manoel Ribas governou o Paran entre 1932/45, por 13 anos
seguidos, pertencente oligarquia daquela regio; em 1947/50 governou Moyss
Lupion, filho de latifundirios ligado ao setor madeireiro nos Campos Gerais, prximo a
Castro e foi considerado herdeiro poltico de Manoel Ribas; entre 1951/55 governou o
Paran, Bento Munhoz da Rocha Neto, filho de Caetano Munhoz da Rocha e genro de
Affonso Camargo; entre 1956/59 retorna ao governo Moyss Lupion; em 1961 Ney
Braga, genro de Bento Munhoz da Rocha Neto, se torna governador.
Portanto, numa historiografia mais recente se registra o sul de Paran
tradicional face ao comando poltico estadual se concentrar nas mos de grupos
oligrquicos dos Campos do Paran
35
. Sob este poder, a populao da regio norte
no conseguiu encontrar espao poltico nos cargos estaduais pois estavam ocupados
por uma oligarquia da regio sul do Estado.
Em sntese o que caracteriza a denominao de Paran tradicional a
formao de seus latifndios com mtodos coloniais formado primeiramente com as
sesmarias e assentada numa economia pastoril. Com a Repblica o poder do estado
se transferiu para os grupos oligrquicos ligados extrao da erva mate, da madeira
e latifundirios que dedicavam ao criatrio de gado. Eles assumiram os mais
importantes cargos pblicos, canalizando para si a vontade em atender suas
demandas. Com esta poltica a historiografia designa o sul de Paran tradicional, por
exercerem a hegemonia poltica do estado.
O oeste, sudoeste e norte do Paran so designados de Paran moderno
explicado pela inexistncia histrica de latifundirios, uma vez que a terra, nestas
regies, foi transformada em mercadoria, via empresas privadas de colonizao que
retalharam as regies, na maioria em pequenas e mdias propriedades, oferecendo
infra estrutura bsica para o seu cliente. Em outras palavras, constitui o Paran
moderno com a ao das colonizadoras experimentando mtodos modernos
favorecido pela conjuntura capitalista, povoando densamente regies.
Diante desta investigao entre o norte e o sul, pesquisadores perceberam
diferenas econmicas e polticas entre a regio norte com o sul. Ao forjarem dois
Parans, um moderno e outro tradicional, designam regies distintas com
caractersticas prprias. Era um Estado que compreendia partes e no um todo do
territrio paranaense.
1
Aluno formado em Histria e especializado em Histria Social pela Universidade Estadual de Londrina.
2
BARTHELMESS, Artur. Estado do Paran: Aspectos geo-econmicos. Boletim do Instituto Histrico,
Geogrfico e Etnolgico Paranaense. Fac. 3-4, Volume VII. Curitiba: julho-dez, 1957. pg. 33.
3
WESTPHALEN, Ceclia Maria. Paran: zona de trnsito. Boletim do Instituto Histrico, Geogrfico e
Etnogrfico Paranaense. Vol. VII, Fasc. 3-4, pg. 45-55, Curitiba: julho/dez, 1957. pg. 48.
4
MACHADO, Brasil Pinheiro. Formao da estrutura agrria tradicional dos Campos Gerais. Boletim da
Universidade do Paran. Departamento de Histria. n. 3, Curitiba: junho, 1963. pg. 08.
5
Campos Gerais dada regio que predomina campos abertos. Pesquisadores dividiram os campos em
Campos Gerais de Curitiba, Campos Gerais de Guarapuava, Campos Gerais de Palmas e apenas
Campos Gerais. Os Campos Gerais, sem utilizarem a cidade de origem, situa onde se localiza
as cidades de Castro, Lapa, Palmeira e Ponta Grossa. Para definirmos todos os Campos
utilizaremos os Campos do Paran, que se restringiram regio sul do Paran.
6
WESTPHALEN, 1957 ... op. cit. pg. 50.
7
WESTPHALEN, Ceclia Maria; MACHADO, Brasil Pinheiro & BALHANA, Altiva Pilatti. Nota prvia
ao estudo da ocupao da terra no Paran moderno. Boletim da Universidade Federal do Paran.
Departamento de Histria, n. 7, Curitiba, 1968. pg. 08.
8
Segundo Brasil Pinheiro Machado era nos Campos Gerais que predominou o latifndio tendo sua
base econmica a criao de gado, porm ressaltou que os latifndios campeiros da criao de
gado vo desde Curitiba at os Campos de Guarapuava e Palmas chegando at na divisa de Santa
Catarina. Veja: MACHADO, 1963... op. cit. pg. 07; veja tambm: WESTPHALEN, et. al.,
1968... op. cit. pg. 09.
9
MACHADO, 1963... op. cit. pg. 17.
10
Ibidem., pg. 06.
11
BARTHELMESS, 1957... op. cit. pg. 37/38.
12
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 45/46.
13
BALHANA, 1963 ... op. cit. pg. 36.
14
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 55.
15
MACHADO, 1963... op. cit. pg. 13.
16
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 57/58.
17
BALHANA, 1963 ... op. cit. pg. 39/40.
18
Ibidem., pg. 41.
19
Ibidem., pg. 51.
20
WESTPHALEN, et al., 1968 ... op. cit. pg. 18.
21
MLLER, Nice Lecoq. Contribuio ao estudo do norte do Paran. Boletim Paulista de Geografia. n.
22. So Paulo, 1956. pg. 75.
22
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 60.
23
BARTHELMESS, 1957... op. cit. pg. 41.
24
BALHANA, 1958... op. cit. pg. 24.
25
Ibidem., pg. 24.
26
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 47.
27
MLLER, 1956 ... op. cit. pg. 77.
28
BARTHELMESS, 1962 ... op. cit. pg. 46.
29
WESTPHALEN, et. al., 1968... op. cit. pg. 08.
30
WESTPHALEN, et. al., 1968... op. cit. pg. 42.
31
BARTHELMESS, 1962... op. cit. pg. 60.
32
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradio Brasileira: Cultura Brasileira e Indstria Cultura. 2 ed. So
Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. pg. 110.
33
MACHADO, 1963... op. cit. pg. 16/17.
34
MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. A economia poltica do caf com leite: 1900-1930. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1981. pg. 118., veja tambm pg. 21.
35
Veja: CESRIO, Ana Cleide Chiarotti. Poder e partidos polticos em uma cidade mdia brasileira. Um
estudo de poder local: Londrina PR, 1934/79. Tese/USP, So Paulo, 1986. pg. 30. e
WACHOWICZ, Ruy Christovan. Histria do Paran. 7 edio. Curitiba: ed. grfica Vicentina,
1995. pgs. 270/271.
Histria e literatura: as possibilidades dos dilogos possveis
Erivan Cassiano Karvat
( Universidade Tuiuti do Paran )
bem possvel que a tarefa mais difcil que a atual gerao de
historiadores chamada a realizar seja expor o carter historicamente
condicionado da disciplina histrica (...), que por estar fundada numa
percepo mais das semelhanas entre a arte e a cincia que das suas
diferenas, no pode ser adequadamente assinada nem por uma nem por
outra.
Hayden White, O Fardo da Histria, p.41.
1
I- algumas notas de leitura
Temos visto nos ltimos anos, o aumento significativo das discusses acerca
dos desdobramentos entre a histria e a literatura, seus limites, possibilidades e
intercruzamentos. Tal movimento, podemos dizer, decorre, em parte, dos prprios
processos de questionamentos da historiografia ocidental que, principalmente a partir
de fins dos anos 1980, diante da chamada crise dos grandes modelos explicativos se
acometem reflexo do historiador, naquilo que diz respeito s orientaes e
especificidade de sua ara de conhecimento.
2
Se por um lado, a literatura sugere fontes de estudo de inegvel alcance,
naquilo que se refere histria cultural (e seus desdobramentos: histria das idias e
histria intelectual) e de sensibilidades, por outro, permite que a histria pense outras
possibilidades de alianas, reinventando as, sempre necesssrias prticas inter ou
multidisciplinares.
3
Assim, em certo sentido, as articulaes ou, antes, as possibilidades de
desdobramento entre a histria e a literatura, decorre, parece-nos, de um movimento
de mudana nas orientaes e perspectivas,- e que afetam as prprias elaboraes
terico-metodolgicas- das construes do conhecimento histrico.
A historiografia brasileira segue, tambm, este deslinde da historiografia
ocidental. Vemos uma historiografia que se abre para novas temticas, debruando-se
sobre novos objetos, articulando-se a partir de diferentes problemticas e que parece
convergir para este campo, convencionalmente, alcunhado como histria cultural. A
partir de um presente que impe novas questes, o passado brasileiro avaliado a
partir de novos olhares, trazendo elementos at ento no focalizados pela mira da
historiografia.
Em linhas muito gerais, assim que vemos surgir no Brasil, tambm,- e
principalmente a partir da Segunda metade dos anos 1990-, um significativo nmero
de trabalhos que objetivam discutir as imbricaes entre a histria e a literatura e os
desdobramentos destas imbricaes.
A Histria Contada: captulos de Histria Social da Literatura no Brasil (1998);
Discurso Histrico e Narrativa Literria (1998); Literatura & Histria: perspectivas
e convergncias (1999); Pelas Margens: outros caminhos da histria e da literatura
(2000); De Sertes, Desertos e Espaos Incivilizados (2001); Civilizao e
Excluso: vises do Brasil em rico Verssimo, Euclides da Cunha, Claude Lvi-
Strauss e Darcy Ribeiro (2001); rico Verssimo: o romance da histria (2001), so
apenas alguns ttulos de coletneas organizadas neste perodo e que se voltam
problemtica das possibilidades de interao da histria com a literatura.
Contudo, de uma maneira em geral, chama-nos ateno, neste debate, a
recorrncia sugesto da idia dos dilogos na imbricao entre Histria e
Literatura. Leituras Cruzadas: dilogos da histria com a literatura; Fronteiras da
Fico: dilogos da histria com a literatura; Dilogo entre literatura e histria so
ttulos que supem o prprio dilogo como o elemento fundante da imbricao. Neste
sentido, cabe lembrar que todo dilogo impe limites, uma vez que, caracterizando-se
como intercmbio verbal entre duas ou mais personagens
4
- neste caso especfico,
duas ou mais reas de conhecimento- necessita do(s) limite(s) para propiciar a prpria
comunicao. Todo dilogo, construindo-se de questes, observaes rplicas ou
trplicas, exige, para que a comunicao seja encetada, pausas, ateno, intervalos
silenciosos. Em outras palavras, para que o dilogo faa-se possvel necessrio
saber ouvir. Depreendem-se da, talvez, os limites da interao da histria com a
literatura e, porqu no, depreendem-se tambm da, suas potencialidades.
Sandra J atahy Pesavento, autora do artigo acima citado, Fronteiras da
Fico, publicado no peridico Estudos de Histria em 1999, caracteriza o texto
histrico como uma forma de texto ficcional pois, comporta a fico, desde que o
tomemos na sua acepo de escolha, seleo, recorte, montagem, atividades que se
articulam capacidade da imaginao criadora de construir o passado e represent-
lo. A autora observa que a contemporaneidade, mais do que nunca, tem
problematizado a veracidade e a ficcionalidade do texto histrico, fazendo dialogar a
literatura e a histria num processo que dilui fronteiras e abre as portas da
interdisciplinaridade.
5
Assim, tanto o texto histrico quanto o texto literrio produzem
diferenciadas possibilidades de representao da realidade, exigindo- sempre- a
presena de um narrador que, no caso do texto de histria, produz inteligibilidades
acerca daquilo a que se prope dar a conhecer, partindo de determinadas escolhas e
recortes. A figura do autor-narrador , dessa forma, um elemento imprescindvel no
processo de produo do conhecimento, pois ele que mediatiza diferentes
temporalidades e as configura. Mais do que isso, a prpria veracidade do texto
histrico perpassa pela autoridade autoral deste mesmo texto, (como bem
demonstram/exemplificam as origens da historiografia grega). Pesavento caracteriza a
histria como uma fico controlada, pois o trabalho do historiador-narrador
limitado pelas fontes e pelos vestgios que, do passado, chegam ao presente. A tarefa
do historiador controlada, ainda, atravs dos rigores do mtodo e pela relao do
pesquisador com seu prprio objeto, relao fundada num regime de verdade.
Por fim, a autora objetiva, no seu texto, perceber o quanto a obra historiogrfica
comporta de fico controlada. Para tanto, intercruza os Captulos de Histria
Colonial, de Capistrano de Abreu, com o romance Iracema, de J os de Alencar.
Temos, assim, portanto, a sugesto do dilogo da histria com a literatura
sustentando-se, justamente, na caracterizao do texto histrico como texto portador,
tambm, de elementos ficcionais.
Ivnia Aquino em Literatura e Histria em Dilogo: um olhar sobre Canudos,
volta-se para a construo dos processos narrativos no texto literrio e no texto
histrico. Tendo por objeto a Guerra de Canudos, Aquino estuda a narrativa em La
Guerra del Fin del Mundo, de Mrio Vargas Llosa, bem como em Canudos: o Povo da
Terra, do historiador Marco Antonio Villa, tendo como preocupao- alm de perceber
a autoria nestas/destas diferentes construes discursivas e como estes autores
informam seus textos- principalmente verificar as evidncias de aproximao dos
procedimentos tcnico-narrativos na construo de discursos ficcionais e histricos.
6
A possibilidade de dilogo para a autora, portanto, parece proceder de
experincia do movimento narrativo, que transforma, graas ao prprio trabalho do
narrador, imagens em movimento.
A coletnea Leituras Cruzadas: dilogos da histria com a literatura,
organizado por Sandra Pesavento, mais um resultado da profcua produo do
grupo interdisciplinar e interinstitucional Clope, formado em 1994 e que se tem voltado
para as problemticas das interseces entre histria e literatura. A coletnea
apresenta mais de uma dezena de artigos e tem como eixo principal os cruzamentos
das leituras de Brasil, produzidas a partir dos anos 1930, por ficcionistas e no
ficcionistas, ou seja, leituras de Brasil resultantes de textos literrios e de textos
histricos e/ou crticos e que motivaram novos olhares sobre a realidade brasileira.
7
Cruza-se assim, por exemplo, Srgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo ou
Monteiro Lobato e Antnio Cndido. Enfim, se atravs da leitura recupera-se as
formas de pensar que atuavam em outro contexto histrico, atravs da historicizao
da escrita, produz-se diferentes efeitos de verdade. , portanto, o dilogo, neste caso,
resultado do prprio cruzamento de diferentes formas de escrituras, escrituras que se
empenham em re-apresentar aquilo que se entende por realidade.
Temos, assim, trs diferentes textos, ou melhor, trs diferentes ttulos que, de
forma direta, apresentam a relao histria e literatura a partir das possibilidades do
dilogo. O texto histrico tende a beneficiar-se, incorporando as possibilidades postas
pela aproximao com a literatura. Envolveria ou resultaria deste dilogo: I) o carter
ficcional- pois produto de escolhas e enrredamento- do texto histrico; II) a observao
aos procedimentos tcnico-narrativos que informam o discurso histrico e III) a
produo- atravs do cruzamento de leituras histricas e literrias- de diferentes
representaes que informam e formam dado contexto histrico.
II- notas de outras leituras
Obviamente as possibilidades de dilogo entre a histria e a literatura, como j
foi mencionado, fazem-se cada vez mais pertinentes. Conforme comenta Linda
Hutcheon, em sua Potica do Ps-Modernismo, a separao entre o literrio e o
histrico que hoje se contesta(...) as recentes leituras crticas da histria e da fico
tm se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita tm em comum do
que em suas diferenas.
8
Curiosamente a questo dos possveis dilogos, posta
dessa forma, parece nos permitir voltar aos incios da prpria teorizao da arte
ocidental.
Neste sentido, bem conhecida a diferenciao efetuada por Aristteles em
sua Potica:
(...) no ofcio de poeta narrar o que aconteceu; , sim, o de
representar o que poderia acontecer, que dizer: o que possvel segundo a
verossimilhana e a necessidade. Com efeito, no diferem o historiador e o
poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos
em verso as obras de Herdoto, e nem por isso deixariam de ser histria,
se fossem em verso o que eram em prosa)- diferem, sim, em que diz um as
coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia
algo de mais filosfico e mais srio do que a histria, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta o particular. Por referir-se ao universal
entendo eu atribuir a um indivduo de determinada natureza pensamentos e
aes que, por liame de necessidade e verossimilhana, convm a tal
natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que d
nomes s suas personagens; particular , pelo contrrio, o que fez
Alcebades ou o que lhe aconteceu.
9
A histria, tornada uma tradio de escrita, descende da prpria literatura,
mais precisamente da poesia pica. Ainda que concordemos com Aristteles, da
diferenciao que poderamos denominar de diferenciao de olhares sobre o/um
objeto, entre a poesia e a histria, fundamental que lembremos da poesia pica,
como uma tradio de escrita que, na Grcia, inspirar o surgimento da prpria prosa
histrica.
Assim, ainda que o estilo da histria grega [fosse] essencialmente regulado
por normas de escrita em prosa e por sua diferenciao de outros gneros literrios
10
,
justamente a partir dessa noo de gnero literrio- e da sua descendncia do estilo
epopeico- que a prosa histrica vir a traar seus prprios limites.
Curiosamente, portanto, a relao entre a histria e a literatura pode ser
analisada como parte fundante da(s) prpria(s) definio(es) acerca daquilo que se
entende por histria.
Sugerem, por exemplo, essa relao de origem, a tentao de considerar
Homero um precursor dos historiadores e de acrescentar os poetas do ciclo e os
escritores de poemas sobre as fundaes de cidades gregas(...)
11
. Por outro lado, o
objeto, tornado objeto primeiro da investigao histrica, a guerra, ou as guerras -, o
objeto de excelncia, da poesia pica.
12
Faz-se necessrio, ainda, lembrarmos que na fundao dessa tradio de
escrita, a histria - assim como na pica a posio autoral, tem um destaque
fundamental, legitimando o prprio discurso da histria. A reivindicao autoral modo
de afirmao e dispositivo de produo de um discurso atesta a prpria autoridade.
O historiador o autor de seu lgos (ou de seus lgoi) como ele designa sua obra
e desse lgos, da forma como o concebeu, escreveu e comps, que tira sua
autoridade
13
Nada mais distante disto do que as escritas cientificistas da histria, que
buscam neutralizar os signos do sujeito enunciante, objetivando enredar uma histria
que parece narrar a si mesma, gerando aquilo que Barthes denominou de iluso
referencial.
14
Assim, ainda que a histria, como diz Northrop Frye, possa ser chamada, em
sentido amplo, de imitao verbal da ao, ou de acontecimentos colocados na forma
de palavras, cabe ao historiador que, de forma direta, imita a ao formalizar num
enredo o acontecido, estabelecendo um efeito de verdade sobre este acontecido. da
verdade do que ele, historiador, diz, que se julga o j acontecido. O que realmente
aconteceu o modelo externo do seu padro de palavras e ele julgado pela
adequao com a qual suas palavras reproduzem aquele modelo.
15
Como escrevia J os Amrico Motta Pessanha,
Porque de fato existiu, Napoleo se distingue de James Bond. Mas o
historiador que escreve sobre ele, organizando e relacionando informaes,
interligando instantneos, montando seqncias e elos causais,
inevitavelmente cria, imagina, fabula: narrador. No permanece iluminado
pelas Musas, filhas de Mnemosine? No permanece irmo do poeta que
compe um belo canto- no nas alturas divinas e inalcanaveis da
montanha, mas na humana plancie, ao p de Heliconte?
16
Parecemos, hoje, reinstituir o momento fundante o mesmo e, ao mesmo
tempo, outro, da prpria histria, debatendo em torno dos prprios limites / clivagens
do nosso discurso. Se a histria, numa Atenas derrotada, no conseguiu efetivar-se
em Cincia Poltica, como Tucdides almejava, no restaria mais nada ao historiador,
como aponta Franois Hartog, do que convencer-se e convencer que a histria ,
sem dvida, til, (...), agradvel, mas tambm filosfica.
17
Contemporaneamente,
direo prxima parece tomar Hayden White, quando nos chama ateno para o
carter, concomitantemente, potico, cientfico e filosfico do fazer histria.
18
Querer
renunciar ao discurso histrico os laos que o aproximam da(s) arte(s), talvez seja,
tristemente, querer romper com a prpria radicalidade da histria, radicalidade que
implica em escrita/escritura, discursividade e enredamento. Enfim, radicalidade que
implica na prpria existncia de uma autoria. Pensar hoje a histria implica
necessariamente pensar sua prpria potica, criadora de sentidos que , forjadora de
modelos de realidade.
19
Se o metadilogo da histria peca por seu excesso de
formalismo, nem por isso pode ser dispensado. Da deve emergir a viabilidade e
plausibilidade do discurso histrico. Buscar dilogos possveis entre a histria e a
literatura, , parece-nos, buscar a prpria radicalidade da histria. reinventar a sua
prpria dimenso de artefato, de texto, de escrita, de produtora, dentre tantas outras
produtoras/ produtores, de sentido para o mundo.
1
Publicado em Trpicos do Discurso: ensaios sobre a crtica da cultura. So Paulo: EDUSP, 1994. O
texto originalmente foi publicado em 1966.
2
Sobre estes questionamentos da historiografia ocidental, ver os seguintes textos: Em Que Pensam os
Historiadores ?, de J ean Boutier e Dominique J ulia e Certezas e Descaminhos da Razo Histrica, de
Philippe Boutry. Ambos os textos aparecem em BOUTIER, J ; J ULIA, D. (orgs.). Passados
recompostos; campos e canteiros da histria. Rio de J aneiro: UFRJ /FGV,1998. P. p.21-61 e 65-77,
respectivamente.
3
Sobre a exigncia das novas alianas e ainda sobre os questionamentos contemporneos da
historiografia, ver: REIS, J os Carlos. Escola dos Annales: a inovao em histria. So Paulo: Paz e
Terra, 2000. p.126-146.
4
MOISS, Massaud. Dicionrio de termos literrios. Sa Paulo: Cultrix, 1974. p.143.
5
PESAVENTO, Sandra J . Fronteiras da fico: dilogos da histria com a literatura. Estudos de
Histria, Franca, v.6, n.1, 1999. p.70-71.
6
AQUINO, Ivnia Campigotto. Literatura e histria em dilogo: um olhar sobre Canudos. Passo
Fundo: UPF Editora, 2000. p. 12
7
PESAVENTO, Sandra J . (org.). Leituras Cruzadas: dilogos da histria com a literatura: Porto Alegre:
Ed. Universidade/UFRGS,2000. p.8.
8
HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Rio de J aneiro: Imago.
p.141.
9
ARISTTELES. Potica. So Paulo: Ars Poetica, 1992. p. 55.
10
MOMIGLIANO, Arnaldo. In. FINLEY, M. I. (org.). O legado da Grcia: uma nova avaliao.
Braslia: EdUnB, 1998. p.189.
11
MOMIGLIANO, A. op. cit. p.182.
12
MASSAUD MOISS, op. cit. p. 184.
13
HARTOG, Franois. Histria de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p.17.
14
BARTHES, Roland. O efeito do real. In. O rumor da lngua. So Paulo: Brasiliense, 1988. P. 164.
15
FRYE, N. Novas direes do passado. In. Fbulas da identidade: estudos de mitologia potica. So
Paulo: Nova Alexandria, 2000. p. 63.
16
PESSANHA, J . A. Motta. Histria e fico: o sono e a viglia. In. RIEDEL, Dirce Crtes (org.).
Narrativa: fico & histria. Rio de J aneiro: Imago, 1988. p. 298. Texto tambm publicado em
NOVAES, Adauto (org.). Tempo e histria. So Paulo: Cia. das Letras / Secretaria Municipal de
Cultura, 1992. p. 33- 55.
17
HARTOG, F. op. cit. p. 19.
18
WHITE, H. Meta-histria: a imaginao histrica do sculo XIX. So Paulo: EDUSP, 1992.
Principalmente p. 17-56.
19
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito esttico, vol. 1. So Paulo: Ed. 34, 1996. P.
138.
SANEAMENTO EM CURITIBA: SATURNINO DE BRITO E OS MODELOS
FRANCESES
Etelvina Maria de Castro Trindade
Universidade Tuiuti do Paran/
Universidade Federal do Paran
Introduo
O final do oitocentos marcou, para a populao europia, uma significativa
queda da mortalidade em relao s dcadas anteriores, tanto em funo do papel
exercido pelos servios de sade, quanto pela melhoria das condies de vida em
geral. Simultaneamente, o incremento vida urbana e o crescimento populacional da
decorrentes, acrescidos da entrada de contingentes de etnias diversas e grupos
sociais distintos, estimulou contatos mais prximos e maior propagao de molstias.
O prprio aperfeioamento dos meios de transporte foi responsvel por disseminar
doenas em locais ainda no contaminados.
Em contrapartida, a descoberta dos agentes de contgio responsveis pelas
epidemias eliminou certas resistncias s reformas sanitrias empreendidas em vrios
pases, e reforou o poder coercitivo do Estado no sentido de impor populao
condutas destinadas preservao ou recuperao da sade pblica. Tratava-se de
solues que iam desde o saneamento do meio urbano at atividades de pesquisa e
ensino nas reas mdicas e biolgicas.
Acompanhando o desenvolvimento do sanitarismo e do higienismo, em pases
como a Frana, a Inglaterra e a Alemanha, a interveno estatal de controle e
ordenamento do meio urbano, voltou-se especialmente para a adoo de polticas
voltadas ao abastecimento de gua e coleta e tratamento dos esgotos residenciais e
industriais. Foram criados institutos e surgiram publicaes voltadas discusso das
formaes urbanas e s condies de vida de suas populaes. Completava essa
nova noo de vida urbana, a valorizao crescente da preservao e conservao da
natureza na Europa e nos Estados Unidos.
Na Frana, particularmente, as melhorias urbanas tomaram corpo desde
meados do sculo XIX, sobretudo no governo de Napoleo III com as reformas
conduzidas pelo Baro de Haussmann, e pelas tentativas de implantao de cidades-
jardins em Tergnier, Lens e Lille, sob influncia dos modelos ingleses.
Nesse contexto, escritos de autores como Lonce Reynaud em seu Trait
dArchitecture ou J ean Claude Forrestier sobre a paisagem urbana tiveram aplicao
na gesto das cidades. E, se considerarmos a ascendncia exercida pelo pensamento
sanitarista nas modernas polticas urbanas, possvel reconhecer a presena das
idias de uma boa parte dos engenheiros formados pela Ecole des Ponts e Chausss
que vieram a ocupar cargos pblicos e a publicar trabalhos na rea, como Bechmann,
Debauve, Imbeaux, Thierry, entre outros. No setor mdico, a atuao e os escritos de
Calmette, Chantemesse, Mac e Mosny iriam estabelecer ligao com profissionais do
mundo todo, e com a Faculdades de Medicina, Institutos de Pesquisa e rgos
governamentais afetos aos setores da sade e saneamento.
Boa parte da produo da poca era apresentada sob a forma de grandes
colees e tratados, compreendendo vrios volumes, cada um dedicado a
determinado tema. o caso do Trait dHygine organizado por Brouardel,
Chantemesse e Mosny, contando aproximadamente, vinte tomos que abordam
assuntos como a higiene nas cidades, na zona rural, nas indstrias, nos hospitais, na
alimentao, bem como o controle dos animais, depurao dos esgotos e
fornecimento de gua potvel. Alm desse Tratado, outros so constantemente
mencionados poca sob os ttulos de Technique Sanitaire, Biologie Mdicale,
Histoire Naturelle denominaes genricas que, considerando-se os nomes dos
organizadores, indicam obras de largo uso na Frana daquele perodo.
Por outro lado, uma extensa legislao procurava dar conta das reformas
necessrias, como a legislao municipal francesa de 1837, a 1897 e as do sculo XX,
como a lei sanitria de fevereiro de 1902, todas igualmente importantes nas
determinaes emanadas dos relatrios oficiais feitos por tcnicos ligados ento
Prefecture de la Seine, depois de Paris.
Muitos dos reformistas urbanos brasileiros passaram pelas academias
francesas leram os tratados de higiene e sanitarismo, estudaram a legislao francesa
e empenharam-se em aplicar esses conhecimentos realidade local, mesmo que no
atingissem, in totum, os resultados desejados.
Polticas urbanas e sanitarismo no Brasil.
No que se refere s determinaes gerais para todo o territrio nacional, as
prticas sanitaristas da Primeira Repblica buscaram acompanhar, no Brasil, os
avanos mundiais da cincia e da tcnica nos campos mdico e sanitrio. Certos
estudos foram realizados individualmente por alguns pesquisadores ou em Institutos
de Pesquisa fundados em So Paulo e Rio de J aneiro. Tudo isso contribuiu, como
ocorrera em outros pases, para o estabelecimento e a consolidao dos saberes e
poderes dos mdicos e dos engenheiros.
Eixo das transformaes econmicas e sociais do perodo enquanto regio da
cultura cafeeira, o centro-sul do pas abrigava cidades que eram plos de atrao das
atividades econmicas e administrativas do pas: Rio de J aneiro e So Paulo - centros
que se tornam exemplares numa discusso que trate das polticas pblicas e de sade
no perodo em questo.
Em virtude das novas preocupaes sanitaristas, desenvolveram-se para essas
cidades, bem como para outras capitais do Brasil, projetos de vrios profissionais,
geralmente formados no exterior, que visavam a soluo de problemas tcnicos e
planejavam o embelezamento dos espaos urbanos, utilizando modelos exgenos.
Em grande parte dos casos, a apropriao de modelos gerou distores no
desenho urbano e causou grandes problemas no que se refere organizao e gesto
dos espaos comprometidos pelas reformas empreendidas, alm de gerar protestos
por parte da populao e crticas daqueles mais informados sobre a inadequao de
tais transposies.
Enquanto se implementavam essas reformas nos principais centros do pas,
comeava, na cidade de Campos, interior do Estado do Rio, a trajetria de um
personagem cujos conhecimentos influenciariam boa parte do pas na rea do
saneamento urbano. Engenheiro formado pela Escola Politcnica de Engenharia, o
campista Saturnino de Brito foi adepto das tcnicas francesas e mantinha interlocuo
com Edouard Imbeaux, doutor em medicina, engenheiro em chefe do Departamento
de Ponts et Chausss na Frana, especializado em questes de abastecimento de
gua e esgotos. Boa parte da obra escrita por Imbeaux versava sobre os alvos do
saneamento no meio urbano: solo, vias pblicas, habitao, indivduos, doenas
transmissveis e sociais, dejetos. (MACE, et alii., 1910). Sua presena no corpo
tcnico encarregado da gesto de Paris dava autoridade ao seu discurso sobre
assuntos urbanos.
A partir de sua atuao em Campos, Brito criou uma verdadeira escola de
seguidores e desenvolveu inmeros projetos para vrias cidades brasileiras, como
Santos, Recife, Santa Maria e Paraba do Sul.
Embora ligado aos princpios do sanitarismo e do higienismo francs, o
engenheiro campista opunha-se abertura de grandes avenidas moda de
Haussmann, como preconizavam vrios urbanistas brasileiros - e como fora realizado
no Rio de J aneiro. Seu carter de reformista e disciplinador dava preferncia
abertura de vielas sanitrias para saneamento de quarteires. Enfatizava tambm as
questes administrativas, legislativas e educacionais para o atingimento das reformas
planejadas.(CIDADES BRASILEIRAS, 1998 p. 198-119). Tecnicamente, Brito adotava
preceitos considerados os mais avanados para sua poca, enquanto, em suas
anlises do social, julgava a classe operria a principal responsvel pela insalubridade
e desordens urbanas; o que dava a suas propostas um tom preconceituoso, desigual e
elitista.
Apesar disso, sua fama nacional e a admirao mtua que o ligava a Moreira
Garcez, o impulsionador de vrios planos de tratamento de guas e esgotos em
Curitiba, trouxeram Saturnino a essa cidade no incio do sculo XX, numa tentativa de
dar soluo insalubridade e s epidemias que ali grassavam.
Saturnino em Curitiba.
Em Curitiba, como em todo o Brasil, em meados do sculo XIX quase nada se
havia alterado em uma concepo de cidade que se desenvolvia nos moldes do que
se pensava na Europa at o sculo XVIII. Mas, a partir de sua instalao como capital,
em 1854, o governo e as autoridades municipais passaram a conceber medidas que
controlassem suas condies de higiene. Mas foi depois de 1912, quando assumiu o
governo do Estado Carlos Cavalcanti de Albuquerque, e nas gestes seguintes de
Affonso Alves de Camargo e Caetano Munhoz da Rocha, que a cidade, enquanto
espao de beleza, sade e higiene foi colocada em questo. Entre 1912 e 1916,
embora tenha recebido crticas no que se refere a um certo descaso pelas medidas
sanitrias, o engenheiro Cndido de Abreu, prefeito nomeado no governo de Carlos
Cavalcanti tomou vrias iniciativas em direo ao embelezamento da cidade que
foram decisivas para seu desenvolvimento.
No arrolamento feito por Cavalcanti das obras conduzidas por Cndido de
Abreu no esto ausentes as preocupaes com a higiene preventiva. O governo de
Caetano Munhoz da Rocha, que se seguiu, no descurou, igualmente, da questo da
higiene pblica, planejando a construo do Laboratrio de Anlises Clnicas e
Microscpicas, do Laboratrio So Roque, do Instituto Pasteur e de dispensrios para
tuberculosos.
Foi tambm sob a direo de Munhoz da Rocha que ocorreu um dos
momentos mais marcantes dessas medidas. Trata-se do programa de remodelao
para o servio de distribuio de gua potvel e de esgotos proposto por Saturnino de
Brito para Curitiba, em 1920, por solicitao do governo estadual.
Redigido claramente por algum com bastante experincia no ramo, o plano de
Saneamento de Curityba. Estado do Paran por Francisco Saturnino de Brito
Engenheiro Civil, um texto alentado, dividido em duas partes. A primeira,
denominada Estudo Preliminar, traa o histrico e o panorama da situao sobre os
servios existentes e fornece um parecer sobre eles, seguido da proposta de
remodelao. Nesse item, Brito menciona freqentemente a incidncia de molstias
como febre tifide, paratifo e gripe, como conseqncias funestas do mau
agenciamento do transporte hdrico na cidade. E descreve os debates ocorridos na
Assemblia Legislativa sobre as solues possveis a serem dadas questo, e da
qual participaram mdicos e engenheiros cujos nomes so conhecidos at hoje em
Curitiba. A segunda parte, chamada Estudos Definitivos, de carter eminentemente
tcnico, esmia os detalhes da nova proposta, tratando de temas como topografia
sanitria, salubridade e abastecimento de guas e esgotos.
Ao mencionar iniciativas historicamente ocorridas na cidade na organizao da
rede de guas e esgotos, Saturnino refere-se utilizao de indicaes do mdico
francs Calmette e o uso das frmulas de Darcy. E quando descreve as discusses
desenvolvidas na Assmblia sobre o saneamento de Curitiba, d destaque a Moreira
Garcez, citando literalmente passagens em este se refere aos mestres de Saturnino,
Debauve e Imbeaux:
O Sr. Dr. Moreira Garcez que, com esclarecido discernimento em
relatrios de anos anteriores epidemia chama a ateno para a
necessidade de ser evitada esta (....) citando Debauve e Imbeaux, diz
que (...) a epidemia se tem desenvolvido em determinadas zonas.
Somente a anlise das guas acrescenta o orador, poder dizer
definitivamente a verdade.(BRITO, 1922-1923 P. 14).
Simultaneamente, o projeto de Brito, recheado de citaes de seus outros
programas para Recife, Santos e Paraba do Sul, contm ainda referncias a uma
obra de sua autoria redigida em francs, Le Trac Sanitaire des Villes, alm de
citaes de vrios sanitaristas franceses
O Relatrio do Governo do perodo seguinte (1923-1924) j faz menes a
obras executadas a partir do projeto de Saturnino de Brito, em relao captao de
guas e abastecimento da zona alta da cidade. (RELATORIO DA SECRETARIA
GERAL DO ESTADO, 1923-1924).
Nos anos de 1926, 1927 e 1928, foram constantes as referncias a uma
melhoria do abastecimento de gua em Curitiba, com grande benefcio da populao,
atravs de captaes realizadas nas serra, elevao mecnica das guas dos rios
Cayguava e Carvalho e remodelao da rede de gua para abastecimento da zona
alta da cidade, bem como ampliao da rede de esgotos.
Progressos a que certamente no estava alheia a proposta de Saturnino .
Reconsiderando as apropriaes.
O quadro que se tentou esboar at aqui, conduz, a uma inquietao sobre as
dificuldades de analisar-se a pertinncia dos modelos adotados. Pois em um estudo
que relacione sanitarismo no Brasil com a noo de apropriao de modelos,
sempre pertinente relembrar o que Marc Bloc considera condies indispensveis a
um estudo comparativo: uma certa analogia entre os fatos observados e uma certa
dissemelhana entre os lugares onde eles se produzem.(SALGUEIRO .....).
Tal observao, extremamente pertinente no caso da disseminao das
propostas de reformas urbanas no Brasil, se levarmos em conta a impossibilidade de
generalizar-se categorias e procedimentos que so especficos a uma sociedade, em
determinado tempo. No demais ainda recordar que os modelos estrangeiros
transpostos para o Brasil foram gestados nas condies de desordem urbana e
insalubridade geradas pela industrializao na Europa (TELAROLLI, 1996, 16-20).
J no caso brasileiro pode-se destacar que, ao final do sculo XIX e comeo do
XX, o pas passava por um momento totalmente diverso, de transformao da
economia escravocrata do perodo imperial para um regime que se pretendia liberal no
pensamento e nas prticas econmicas - o que no caracterizava, porm, uma
transio capitalista na sua forma clssica.
Cabe, igualmente, questionar aqui, em que medida os modelos importados
pelo Brasil, na Primeira Repblica, nas reas de higiene e saneamento, configuraram-
se como uma verdadeira poltica pblica ou foram mera aplicao de medidas
apropriadas, um tanto a esmo, em funo de modelos exgenos, como ocorria no
conjunto das reformas urbanas. Seja como for, verdadeiro que o discurso mdico e
sanitrio, em conformidade com as aes do governo, acabou por impor a implantao
de prticas que superaram o iderio republicano e positivista e a precariedade do
conhecimento cientfico disponvel no pas.
Assim, na questo especfica do sanitarismo brasileiro, sem abandonar as
referidas cautelas, talvez seja possvel adotar uma posio de meio termo. Pois
vlido que muitos autores levantem a tese das dias fora do lugar em suas anlises
sobre a transferncia das idias iluministas ou do liberalismo para o Brasil (Schwraz,
1981); ou que outros julguem inadequadas as apropriaes de formas e polticas
urbanas que so conjunturais e efmeras, sem levar-se em conta tanto as diretrizes de
sua concepo, quanto s condies de sua realizao (SALGUEIRO, 1995).
Na verdade, no que tange apropriao dos modelos sanitaristas no Brasil,
inegvel o descompasso da sociedade brasileira em relao aos pases em estgio de
capitalismo avanado no momento da implantao macia dos procedimentos na
Europa e Estados Unidos. Tal constatao foi um dos resultados desse estudo.
No entanto, igualmente inegvel, que o outro resultado foi perceber que o
esforo realizado pelo saneamento no Brasil incentivou a regularizao da profisso
mdica e de engenheiros cujos representantes ajudaram a legitimar a presena do
Estado nas questes de sade e higiene pblicas. Nesse sentido, a apropriao no
Brasil, e em Curitiba, das idias do sanitarismo europeu, especialmente o francs -
mesmo tendo-se em conta os obstculos e as inadequaes que acompanharam o
processo - apresentou menos distores em relao ao modelo original do que
transferncias verificadas em outras reas e circunstncias caso das reformas
urbanas empreendidas em territrio nacional, no perodo estudado.
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A VOZ INSTITUIDA: poder e instituio no olhar do bispo do Paran D. Jos
Camargo de Barros.
Euclides Marchi
UFPR/UNICENP
Este texto tem como objetivo aplicar alguns dos conceitos propostos pela
anlise do discurso utilizando-se para isso a primeira Carta Pastoral de Dom J os
Camargo de Barros, escrita no dia de sua sagrao, aps ser indicado para ocupar a
diocese de Curitiba, uma das quatro criadas no incio da Repblica.
Ao separar-se do Estado, a Igreja iniciava uma trajetria de liberdade e
precisava constituir-se e construir-se como instituio. De imediato, o episcopado
brasileiro solicitou ao papa a criao de dioceses e a sagrao de novos bispos. Em
atendimento a esse pedido, no dia 7 de abril de 1892, pela bula Ad universas orbis
ecclesias, Leo XIII dividiu o territrio brasileiro em duas grandes regies,
denominadas Provncia Eclesistica do Norte e Provncia Eclesistica do Sul com
Sedes na Bahia e no Rio de J aneiro, respectivamente. A primeira incorporava os
bispados de Belm, Maranho, Fortaleza, Olinda e Gois e os recm-criados do
Amazonas e da Paraba, enquanto a segunda ficava com o Rio Grande do Sul, So
Paulo, Mariana, Diamantina e Cuiab e os novos de Niteri e Curitiba.
Por esta mesma bula o bispado de Curitiba ocuparia os estados de Santa
Catarina e do Paran, desmembrados da diocese de So Paulo. Aos 19 de maro de
1908, Santa Catarina passava a ter sua prpria diocese com sede em Florianpolis e
em 07 de junho de 1908 a diocese de Curitiba era incorporada nova Provncia
Eclesistica de S. Paulo. Finalmente, pela constituio apostlica "Quum in dies", de
16 de maio de 1926, Pio XI elevou Curitiba a dignidade de Sede Arquiepiscopal, tendo
como sufragneas as dioceses de Ponta Grossa e J acarezinho e a Prelazia de Foz do
Igua .
Um olhar sobre as dioceses brasileiras daquele perodo revela, de imediato,
suas enormes extenses geogrficas e as dificuldades de transporte e de
comunicao. Tudo leva a crer que os contatos entre os sacerdotes e o povo catlico
para o atendimento das demandas religiosas eram raros e precrios. Essa situao
teve um reverso marcante: a populao brasileira, religiosa por tradio, ressentindo-
se da ausncia do clero afastou-se do culto tradicional e aderiu aos rituais caseiros,
passando a cultuar santos e a realizar festas que nem sempre agradavam a hierarquia
catlica.
A laicizao dos rituais foi registrada tanto pelos textos do clero, quanto pelos
relatrios dos governantes. O Dr. J os Pedrosa em 1881, quando Presidente da
Provncia, declarava:
Muito descurado, senhores, vai o culto pblico. Uns atribuem o mal, feitas
as devidas e raras excees, ao pouco zelo dos procos pelo interesse da
Igreja; outros explicam com o indiferentismo do povo pela causa da religio.
Os templos, outrora enchiam de fiis, aos domingos, para ouvirem a missa
conventual. Hoje rareiam os assistentes, e nesta capital, so os
estrangeiros que se mostram devotos
1
No relatrio de 1882, a descrio ainda mais contundente:
(...) o estado religioso da provncia no satisfatrio, e ao ver-se o
abandono, em que por aqui anda o culto, que se pode acreditar que a
religio ir desaparecer, a menos que se repita a encarnao do Verbo
Divino. As igrejas com obras que nunca se acabam, esto em estado
vizinho da indecncia. E o povo como que para furtar-se de to triste
espetculo, deixa de freqent-las, e assim se vai aos poucos a crena dos
nossos maiores
2
Mas, apesar dessa precariedade, o povo continuava fiel sua religiosidade,
porm um tanto afastado do culto proposto pela hierarquia catlica. J os Molinari,
missionrio escalabriniano no Paran, em carta enviada a seu irmo em 1889, assim
descrevia o esprito religioso do povo:
Diversas vezes estive na casa de brasileiros, e a primeira coisa que fazem
se apresentar ao padre com as mos juntas, cabea inclinada, pedindo a
bno. Logo em seguida oferecem alguma coisa para comer e beber.
Para assentar-se, no tem seno algum caixote ou tronco de madeira. Mas
se na casa houver uma imagem de um santo, avisam logo que no se pode
sentar por a pela presena do santo. Todos trazem um rosrio no pescoo,
que fazem eles prprios com aquelas sementes que chamamos de
lgrimas de Nossa Senhora, encontradas facilmente nas matas. O
brasileiro muito sbrio no comer e no beber. Pode-se dizer que no
conhece a blasfmia. Se no fosse o sexto mandamento, poder-se- ia dizer
que seria um povo modelo
3
.
A esse registro, acrescentava os comentrios sobre o comportamento do clero.
Assim escrevia: Mas que fazer, se os prprios procos tem mulheres em casa, tem
filhos e filhas que no se envergonham de manter em casa, e de apresent-los como
tais!" O padre Colbachini, colega de Molinari, narrava outro episdio representativo:
Um certo Revmo. Pe. Jos do Prado (filho sacrlego de sacerdote) era
proco de Curitiba, e dava tantos escndalos que a f do povo padeceu
gravssimo dano. No ouvia confisses, e aos nossos italianos que
solicitavam, respondia: no seja louco, no precisa de confisso! Em oito
minutos celebrava a missa (...), tomava caf antes da missa; tinha mulheres
em casa, sob o ttulo de afilhadas
4
.
Sobre o proco de S. J os dos Pinhais afirmou: "O falecido vigrio de S. J os
dos Pinhais tinha mulher e filhos em casa conhecidos por todos (tambm pelo bispo),
tendo j dado antes outros escndalos. A ltima mulher era uma esposa com marido
vivo. A igreja caindo aos pedaos, os paramentos dilacerados e imundos: tudo em
pssimo estado. Acrescentava que os procos: Dizem a missa quando lhes agrada
ou quando tem encomenda, e quase todos livram-se dessa obrigao em dez
minutos ou pouco mais. No se prestam para confessar sequer os moribundos. Sobre
100 pessoas, morrem 99 sem sacramentos seja na cidade seja na zona rural"
5
.
As referncias tanto aos catlicos quanto ao clero constituam a realidade da
nova diocese e davam os indicativos para o trabalho do primeiro bispo.
Embora criada em 1892, Dom J os Camargo de Barros assumiu o governo da
diocese somente em 1894. Era ele um paulista de Indaiatuba, formado nos mais
legtimos princpios do catolicismo romanizado. Um prelado zeloso e cnscio dos seus
deveres e decidido a cumprir o que determinava a S Romana.
Ao ser sagrado bispo D. J os enviou uma Carta Pastoral aos seus diocesanos,
escrita em 24 de junho de 1894, dia de sua sagrao. Nela estabelecia os conceitos
fundamentais de sua concepo sobre diversos aspectos da vida religiosa e definia os
parmetros do discurso que passaria a vigorar a partir daquele momento.
O texto da carta suscita uma srie de pontos que permitem analis-la como um
importante discurso da hierarquia catlica ou da autoridade mxima que assumia uma
nova diocese. uma carta de saudao aos diocesanos no dia da sagrao de seu
bispo. Portanto, um documento especial, anunciado num dia especial.
A carta comea com uma saudao do enunciador aos enunciatrios. A eles
refere-se assim: Venerveis Irmos e Dilectssimos Filhos. Expresso que repete por
cinco vezes. Empenha-se em estabelecer uma condio de irmandade entre os
sacerdotes e o bispo e de filiao e irmandade entre ele e os catlicos; e para que
esta relao seja melhor compreendida, assim descreve sua figura:
Surgindo do p em que jazamos, porm j collocado entre os prncipes da
casa de Deus (...); com a fronte ainda rorejada pelo leo santo (...) o nosso
primeiro pensamento voa para vs, venerveis Irmos e Filhos
diletectssimos, e o primeiro desejo de nosso corao ver-vos, afim de
communicar-vos algumas das celestes graas que a plenitude de Esprito
Santo acaba de depositar em nossas mos
6
.
O texto revela que o enunciador coloca-se humildemente perante seus
colaboradores. Irmo e pai, est ao lado de seus pares, porm acima dos demais fiis.
Observe-se que somente ele est colocado entre os prncipes da casa de Deus. O
enunciador foi sublimado s alturas do episcopado, enquanto os enunciatrios sero
atendidas por Deus por intermdio do enunciador. Eis o que declara: (...) fechando os
olhos nossa indignidade, nos sublimou s alturas do Episcopado e tocado pelas
vossas necessidades vos abre pelas mos de seu enviado os thesouros de sua
graa
7
.
O ser nomeado bispo no depende do enunciador e nem estava nos seus
planos. Todavia, sem que nunca tivesse ambicionado tal cargo, foi elevado
superiminente dignidade de Prncipe da Casa de Deus, de sucessor dos apstolos no
santssimo ministrio da salvao das almas. E reiteradamente repete: somos vosso
Bispo.
O enunciador insiste na idia do ser chamado e do ser enviado: Quando
assim vivamos tranqilo em nossa obscuridade, como um relmpago, das alturas do
Vaticano ouvimos uma voz, que apontando-nos para a nova Diocese de Curitiba,
disse-nos: Levanta-te, toma teu cajado e vai, aquele teu novo rebanho
8
. Est posta
neste texto a figura do pastor, to difundida e to conhecida de toda a catolicidade.
Todavia, na carta descreve tambm o momento da angstia, do medo; no
porque desconfiasse de seus enunciatrios, mas porque a dignidade episcopal era
algo muito srio. E porque deveria ser ele o bispo? A est um dos aspecto relevantes
do discurso: ele no vinha em nome dele, nem mesmo por deciso de seus fiis.
Havia algo que era comum a enunciador e enunciatrios e que definia a condio de
ambos: a Igreja e o Papa. Vinha por indicao do Papa, representante supremo da
Igreja. Por isso, se ele aceitou a misso com profunda humildade, os fiis deveriam
aceit-lo no por ser ele D. J os Camargo de Barros, mas porque ele era o BISPO.
Portanto, se foi Deus que o chamara, j no lhe restavam dvidas: deveria
responder positivamente voz do Santo Padre. Sua deciso foi ancorada no
exemplo de Cristo no J ardim das Oliveiras: seja feita a santa vontade de Deus e no
a nossa
9
.
Dada esta resposta, o discurso muda de tonalidade: do temor passa
fortaleza. O Bispo tornava-se apstolo, iluminado pelo fogo sagrado. E destacava:
No em nosso nome, no arrimado no frgil bordo da nossa pouca experincia,
no escudado pela insuficincia de nossas virtudes, que vamos vos dirigir; em
nome de Deus onipotente, daquele que pode converter as pedras em filhos de Abrao
(...)
10
. E reiterava: lembrai-vos que fomos enviado pelo Esprito Santo para reger
essa nobilssima Diocese em nome de Deus. E isto quanto nos basta
11
.
Havia portanto uma disposio do enunciador de pregar a mensagem e
certamente esperava que o mesmo ocorresse com os enunciatrios para receb-la.
Para isso, o discurso assumia um carter didtico: definia o cargo de bispo
perguntando: O que pois um Bispo? usando os dizeres de So Paulo respondia:
um servo de Deus, eleito apstolo por vocao divina e enviado para semear a palavra
da salvao, pela prdica do evangelho, que Deus prometeu por seus profetas nas
Sagradas Escrituras. O bispo era o continuador da misso de J esus com poder para
santificar e salvar: todo o poder me foi dado no cu e sobre a terra, ide, e com os
mesmos poderes que recebi de meu Pai eu vos envio; ide, pois, ensinai a todos os
povos
12
.
As duas principais virtudes do bispo eram: ser a Luz do mundo e o Sal da terra.
Assim: o que sanciona o poder do Bispo perante os povos a sua enviatura divina, e
acrescenta: o verdadeiro pontfice no aquele que por si mesmo usurpa esta honra,
mas aquele que chamado por Deus, como Aro
13
. Portanto, o bispo constitudo
apstolo pela vontade de Deus, por ordem de Deus, por J esus Cristo e no pelos
homens.
Cabe ressaltar que o reconhecimento da autoridade necessitava de um ritual
de nomeao. O enunciador assim se manifestava: A primeira credencial pois, a
reclamar daquele que vem vos anunciar a palavra divina que ele comprove a
legitimidade de sua misso, que mostre que foi enviado por Deus. Sem esta primeira e
essencial condio, ningum pode apresentar-se no meio de um povo, como pregador
do Santo Evangelho
14
. Mas esta nomeao para ser autntica deve ser tornada
pblica tanto pelo ritual de nomeao, quanto pelo ritual de instituio (ato de instituir
algum). E ele dizia: Quanto a ns, ficai tranqilos, temos recebido essa divina
misso e para prov-la, se no basta a nossa nomeao, se no basta o decreto
pontifcio de nossa confirmao, temos o fato solenssimo e pblico de nossa
sagrao
15
.
O ritual de sagrao conferia eficcia simblica autoridade do bispo
especialmente porque ele seria a garantia da fidedignidade da nomeao e do poder
legal conferido ao enunciador em ato pblico e solene. Por isso, o bispo vinha para a
sua nova diocese institudo do poder daquele que o enviou, sagrado e consagrado
pelo ritual presidido por aquele que o representa aqui na terra: o papa. Era ele
portador de um ttulo oficial que lhe outorgava o poder de representar uma autoridade
e como tal constitua-se em porta-voz dotado do direito e do poder de falar, de agir e
de mandar em nome do grupo e para o grupo (ou at mesmo sobre o grupo).
Portanto, passa a ser uma voz instituda, que far uso de uma linguagem
autorizada, portador das condies sociais e legais de uso do discurso e da ao.
Bourdieu diz que o poder das palavras apenas o poder delegado do porta-voz cujas
palavras constituem no mximo um testemunho, um testemunho entre outros da
garantia da delegao de que est investido
16
. Um exemplo dessa afirmao poder
ser encontrado na carta episcopal quando D. J os afirmava: Desta investidura divina,
como de sua verdadeira fonte, dimanam muito naturalmente as grande prerrogativas
do Bispo, os seus santssimos intuitos e seus gravssimos deveres
17
.
Respaldado nesta investidura, o discurso assume um carter institucional,
representa uma autoridade maior e por isso importante que se exprima em situaes
solenes. Sua autoridade no lhe era intrnseca, ao contrrio, vinha de fora, pois foi:
J esus que o fez participante dos divinos poderes que ele legou a sua Igreja. (...)
formada de fiis que esto subordinados a seus legtimos pastores em unio com o
Papa, Vigrio de J esus Cristo na terra, que professam a mesma f e que participam
dos mesmos sacramentos
18
.
Bourdieu ressalta ainda que: todos os esforos para encontrar na lgica
propriamente lingstica das diferentes formas de argumentao, de retrica e de
estilstica, o princpio de sua eficcia simblica, esto condenados ao fracasso quando
no logram estabelecer uma relao entre as propriedades do discurso, as
propriedades daquele que as pronuncia e as propriedades da instituio que o
autoriza a pronunci-lo
19
.
Por essa autoridade conferida ao bispo ele se considerava investido de trs
grandes prerrogativas: o poder de governar, de ensinar e santificar
20
. A partir da
investidura ele fora transformado em pastor, mestre e pontfice.
Todavia, o poder, para que seja representado e para que os enunciatrios o
visualizem, necessita de alguns componentes simblicos. Uma autoridade consegue
governar se tiver a colaborao daqueles a quem governa, ou seja, precisa da
cumplicidade dos governados. Por isso o Bispo no poderia abrir mo dos atributos
simblicos do seu magistrio ou de sua autoridade, dos objetos sagrados, dos ritos e
dos smbolos. D. J os deixava explcito essa representao simblica ao dizer que
como: Pastor, ele empunha o bculo do governo das almas (...). Mestre, ele tem em
suas mos o santo Evangelho (...). Pontfice, tem sua fronte ornada pelo brilho da
mitra e santifica os fiis pelo sangue da vtima divina com que asperge o seu povo
21
.
Seu poder de governar ficava ainda mais explcito quando afirmava que: O
Bispo, investido do poder de governar, recebeu de Deus o poder no s de dirigir pelo
conselho e pela persuaso, mais ainda de mandar por leis e de forar por um juzo
exterior e penas salutares a obedincia s suas leis
22
. Nele se concentrava o poder
legislativo, judicirio e coercitivo. Poder de definir leis, julgar, proibir, permitir, condenar
e absolver.
Cabe acrescentar que o discurso necessita das condies institucionais para
que seja reconhecido, isto , recebido e aceito como tal. Assim, o enunciador
destacava que o mesmo poder que o papa tem em toda a Igreja, ele (bispo) o teria em
sua diocese. Estabelecia, portanto, os parmetros e os limites de sua ao e de seu
poder, bem como redefinia os procedimentos dos procos e dos fiis.
Essa ao ganharia eficcia simblica se os diocesanos reconhecessem que
quem a estava definindo era o bispo e que ele poderia faz-lo. Sobre isso a carta era
explcita: Este vasto poder, porm, foi confiado ao Bispo para a edificao e no para
a destruio do templo mstico de Deus; pelo que no deve exerc-lo de modo duro e
cruel a guisa dos tiranos, que se comprazem em humilhaes e sofrimentos dos
sditos
23
. Ressaltava que os bispos eram pastores e no algozes e deveriam presidir
os sditos como a quem amam, como irmos e filhos.
A consolidao dessas diferenas entre quem detm o poder de mando e
quem deve obedecer passa pelo ritual de instituio. Trata-se de um rito de passagem,
de consagrao e de legitimao. O bispo falava como algum institudo e
consagrado; algum que passou pela cerimnia de sagrao episcopal, na qual a
instituio o fazia lembrar que ele deveria ser pastor e pai. Por isso, alm do bculo
que representava o regime pastoral, tambm colocava-lhe no dedo da mo direita um
anel. O anel representava o selo das npcias msticas que o bispo contraiu com sua
diocese e lhe recordava o dever de residncia e de fidelidade para com a Igreja, sua
mstica esposa, fazendo nascer em suas entranhas o amor paterno, ou melhor, a
solicitude materna para com os seus diocesanos.
Assim, se no dizer de Bourdieu, A investidura consiste em sancionar e em
santificar uma diferena, fazendo-a conhecer e reconhecer, fazendo-a existir enquanto
diferena social e portanto capaz de agir sobre o real e sobre a representao do
real
24
, D. J os, investido e sagrado, estabeleceu tanto os parmetros de seu poder,
quanto os smbolos institucionais que lhe garantissem a representao desse poder
como por exemplo as roupas, o anel, o barrete e as vestes cujo papel fundamental era
o de serem portadores de signos distintivos que confirmavam a passagem do Bispo
pelos rituais de instituio e de delegao de poderes. No entanto, se para garantir a
eficcia simblica era necessrio produzir representaes sociais, a pergunta sobre
Quem o bispo (?) tornava-se fundamental no pela sua resposta, mas pelo
referencial que ela estabelecia. Ele era um religioso investido da mais alta autoridade
na sua diocese, incumbido de reger as coisas sagradas sob orientao maior do papa,
falava com autoridade da e pela Igreja. Tinha a autoritas, dentro das fronteiras de sua
diocesis.
Para descaracterizar o estigma do poder pelo poder, a Carta ressaltava que, de
acordo com o que fez o divino mestre, o bispo tambm tinha o poder de ensinar e
esta era a sua grande misso. Seguindo os passos de J esus, a Igreja era a escola por
Ele fundada e, portanto, coluna e firmamento da verdade. Por isso, o Bispo, em sua
diocese, no trabalhava com conjecturas, mas sim com verdades.
Como nos ensina Bourdieu, o bispo tornava-se o especialista maior em
assuntos da religio e, em princpio, ele ou aqueles por ele indicados, deveriam deter
o monoplio das explicaes e do sentido dos bens sagrados. A missa, os
sacramentos e os demais bens sagrados da f e da liturgia recebiam interpretao e
anlise institucional, exarada pelos que foram consagrados e institudos para faz-lo.
Para que o conjunto de rituais e poderes tivessem eficcia era preciso que
ocorresse um desapossamento e uma fides implcita. Os enunciatrios deveriam
passar por um processo de converso e de aceitao de que aquilo que estava sendo
dito era realmente verdade possvel e passvel de crena. E destacava que eram
santssimos os intuitos do bispo e se Deus acumulara tantos tesouros em suas
mos, no eram para ele, mas para o povo. Por isso, Desde sua sagrao, o Bispo
no se pertencia mais: com sua vida, sua sade, suas foras, suas faculdades, seus
pensamentos, seus afetos, seus bens, com tudo quanto e quanto tem, ele pertence
ao seu rebanho e torna-se devedor a todos, aos ricos e aos pobres, aos grandes e aos
pequenos, aos sbios e aos ignorantes
25
.
Era o desapossamento pessoal e o mesmo deveria ocorrer com os seus fiis.
Por ele, o bispo deveria corrigir os erros, estimular as virtudes, opor-se ao mal,
proteger o bem, combater a iniqidade, propagar a santidade, enfim, salvar e
santificar. Portanto, receber um Bispo receber o mais eficaz elemento de concrdia
entre as famlias, a mais slida garantia da paz e o mais enrgico fator do bem
entendido progresso de um povo
26
.
Ele seria um vigiador e como pastor deveria proteger seu rebanho contra todos
os adversrios e inimigos. Era um evangelista, pregador no somente pela palavra,
mas pelo exemplo. Vigiar e Ensinar, cabendo-lhe o dever de definir o que ensinar e
como vigiar.
Se o enunciador tinha deveres, o enunciatrio tambm teria os seus e o Bispo
os definia dizendo: ao receberdes esta nossa carta pastoral, mensageira de nossas
cordiais saudaes e das primcias de nossa mais alta estima e santa afeio para
convosco, o primeiro dever que a vs incumbe o de orardes e orardes muito pelo
vosso Bispo
27
. O segundo dever era a docilidade; submisso a tudo o que emanasse
da autoridade episcopal. Finalmente, o terceiro dever era a dedicao e coadjuvao.
Com isso o discurso passava a integrar o enunciador e os enunciatrios no mesmo
processo de trabalho e nos mesmos compromissos. Todos se tornam co-responsveis
pelo sucesso do governo da diocese.
Na saudao final o enunciador destacava a importncia do clero, chamando-o
de venerando clero e reverendos procos. Envolvia-os na tarefa de salvar almas e
administrar a diocese. Sua prestabilidade no se limitava ao bispo, mas a Deus e
Igreja. O bispo no se colocava no lugar de Deus ou da Igreja, nem os substitua. Ele
era apenas mais um representante. Por isso, os seus deveres deveriam ser
partilhados. A ele caberia ensinar, pregar, administrar os sacramentos e conduzir a
cerimnias religiosas.
O enunciador no esquecia das autoridades constitudas: governantes e
cidados. Assumindo um discurso apotetico, a carta no seu final destacava:
Queremos apenas dizer que no meio de vs tereis um bispo disposto a sacrificar tudo
e a prpria vida, se preciso for, pela prosperidade de sua Diocese. Avante, pois,
Avante! Prossigamos em paz em nome do Senhor, porque nossa a vitria
28
.
1
AZZI, Riolando. A Igreja e os Migrantes. So Paulo: Paulinas, 1987, p.208.
2
Idem, p. 209.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, p. 210.
5
Idem, p.211
6
IGREJ A CATLICA. BISPO. BARROS, D. J os C. de Carta Pastoral (saudando aos seus Diocesanos
no dia de sua sagrao). Colleco das pastoraes, circulares e mandamentos etc. Corytiba: Imp.
Paranaense, 1900, p. 17.
7
Idem, ibidem
8
Idem, p. 18
9
idem, p. 19.
10
idem, ibidem.
11
idem, ibidem.
12
idem, ibidem.
13
idem, p.20
14
idem, p.20.
15
idem, ibidem.
16
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996, p.87
17
IGREJ A CATLICA. BISPO. BARROS, D. J os C. de Carta Pastoral (saudando aos seus Diocesanos
no dia de sua sagrao). Colleco das pastoraes, circulares e mandamentos etc. Corytiba: Imp.
Paranaense, 1900, p.20.
18
idem, p. 20/21.
19
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996, p.89.
20
IGREJ A CATLICA. BISPO. BARROS, D. J os C. de Carta Pastoral (saudando aos seus Diocesanos
no dia de sua sagrao). Colleco das pastoraes, circulares e mandamentos etc. Corytiba: Imp.
Paranaense, 1900, p.21.
21
idem, ibidem.
22
idem, ibidem.
23
idem, p. 22.
24
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996, p. 99.
25
IGREJ A CATLICA. BISPO. BARROS, D. J os C. de Carta Pastoral (saudando aos seus Diocesanos
no dia de sua sagrao). Colleco das pastoraes, circulares e mandamentos etc. Corytiba: Imp.
Paranaense, 1900, p. 26.
26
idem, ibidem.
27
idem, p. 27.
28
idem, p. 32.
POLTICA PBLICA AMBIENTAL: UMA GESTO LOCAL DE ORGANIZAO
(TOLEDO-PR).
Eugnia Aparecida Cesconeto
1
O lixo tem uma vinculao direta com o que no serve mais, com o insalubre,
com o sujo, com as epidemias e com a contaminao, aspectos que ultrapassam os
limites espaciais e atingem toda a sociedade. A higienizao avana com a
organizao das cidades, como uma estratgia dos poderes constitudos no Estado
Moderno, principalmente, por ter como pano de fundo a questo sanitria. Os hbitos
e as condutas familiares e sociais estabelecem socialmente o lugar de cada um. As
diferenas vo aos poucos sendo demarcadas pelo iderio de higiene, expressa sob a
forma de limpeza, ordenao e classificao dos sujeitos e do espao no qual esto
inseridos, apartando, especialmente o limpo e o sujo.
O medo social inclui-se tambm na noo de excluso social. Pela vigilncia
constante da demarcao da diferenciao da classe superior e inferior; esse medo
esta no somente no status, mas tambm na fala, nos gestos, nas distraes e nas
maneiras. [...] Os receios mergulham em parte, embora nunca inteiramente, nas
zonas inconscientes da personalidade, delas reemergindo apenas em forma
modificada, como automatismos especficos de autocontrole
2
.
A legitimao do lugar de cada um marcada pelo controle social, tanto interno
como externo. Nessa legitimao, a prepotncia, a explorao selvagem das relaes
de trabalho, o autoritarismo das relaes de mando, a violncia, o desrespeito aos
direitos civis e polticos que acabam por demarcar espaos segundo um imaginrio
que fixa a pobreza como sinal de inferioridade e de risco social. As representaes
formam um cdigo normativo de condutas que guardam muitas tenses e auto-
excluso, mas tambm semeiam muitas de outros significados.
O raciocnio econmico leva a uma transformao da higiene dos grupos e
comunidades, caracterizando o gesto de uma organizao sanitria
3
. A preveno
comea a depender de prticas polticas, integrando aos poucos a limpeza, a ponto
de atribuir-lhe um papel de salubridade pblica, que at ento ela no tinha. A
excluso social se constri com a imagem dos corpos limpos e sujos.
O mundo muda, mesmo quando para algumas pessoas parece ter parado. Se
as novas regras sociais conferem novos sentidos s prticas e representaes
sociais, os comportamentos vo sendo transformados em ritmos e em tempos
histricos diferentes; nem sempre mudam velhos valores e atitudes e nem sempre
novos so incorporados, da tanta estranheza na distncia de que nos fala Ginzburg
4
.
A vida urbana torna-se cada vez mais complexa na medida em que concentra
espacialmente as pessoas, com o agravamento das condies de higiene; em
algumas situaes, o ambiente torna-se insuportvel.
A palavra higiene
5
, passa a ocupar um lugar indito: os manuais que tratam de
sade mudam de ttulo. Todos, at ento, concentravam-se no cuidado ou na
conservao da sade. Todos definem seu terreno atravs dessa denominao antes
pouco usual. Um campo se especializou, a medicina contando com os vnculos
estabelecidos com a fisiologia, a qumica, a histria natural, insistindo em suas
pertinncias cientficas, propiciaram um novo status a esse saber.
Enquanto no foi associada desordem , a sujeira no incomodava j que, no
representava um perigo. Logo que associado s epidemias, o lixo, automaticamente,
passou a ser encarado como impuro e vinculado morte. Nesse sentido, transgredir
as normas de higiene passa a representar uma ameaa ao padro de ordem social
estabelecido.
Portanto, os hbitos populares em relao ao lixo, desde muito tempo, tm
representado uma ameaa nova ordem; necessrio, pois, eliminar as impurezas
para organizar o ambiente. Esta organizao supe, segundo os administradores e
mdicos, limpeza, ordenao, classificao.
Quanto ao saneamento, esgoto e limpeza pblica, pode-se dizer que o
municpio de Toledo no teve uma preocupao inicial com os usos sujos da cidade:
os esgotos domsticos, os dejetos humanos, as galerias pluviais, o lixo (recolhimento
e armazenamento), etc.
O lixo, at final da dcada de sessenta, era responsabilidade individual; os
moradores queimavam, enterravam ou jogavam em monturos nos terrenos baldios.
Com a institucionalizao do Servio de Limpeza Pblica do Municpio
6
, a rea central
da cidade passou a ser atendida por caminhes caamba comuns. Em 1976, foi
adquirido um caminho compactador, ampliando lentamente o servio pblico. O
armazenamento era feito de forma rudimentar; o lixo era despejado na orla da
Avenida Parigot de Souza, prximo ao, hoje denominado, Parque Ecolgico Diva Paim
Barth e prximo ao Recanto Municipal, sem nenhum tipo de tratamento.
Em 1988, ampliou-se o nmero de equipamentos para limpeza de ruas
(varredora e coletora), e demarcou-se o local destinado ao processo de decomposio
do lixo lixo a cu aberto, nas proximidades do Recanto Municipal, rea destinada
s indstrias poluentes do municpio.
O aterro a cu aberto permite a catao marginal, normalmente s pessoas
moram no prprio local do aterro ou regies prximas em condies precrias, esto
em contato direto com o lixo e, conseqentemente susceptveis toda sorte de
endemias. Muitas vezes, se vem at mulheres grvidas no local do aterro, e tambm
crianas se alimentando de restos de laranjas, salsichas, pes e manipulando
materiais como seringas, ampolas de sangue etc
7
.
A produo diria de lixo domiciliar totaliza, em 1990, 40 toneladas, com a
seguinte composio
8
: papel e papelo 14,45%, vidro 4,46%, plstico 10,12%, trapo
3,96%,metais ferrosos 2,21%, metais no ferrosos 0,35%, latas 12,83%, madeira
3,89%, borracha 4,55%, matria orgnica 37,13%, ossos e outros materiais 6,05%. O
lixo txico vem causando srios prejuzos ao meio ambiente, os agricultores tm sido
informados ao longo dos anos dos cuidados que devem ter com esse material.
Em 1992, a Secretaria da Agricultura e Meio Ambiente redimensionaram o
sistema de recolhimento do lixo, a definio de novas rotas e horrios de passagem
dos caminhes coletores, visando a racionalizao dos custos e adequao do servio
s reais necessidades da populao. Contando com seguintes equipamentos: 4
novas prensas, 2 novos caminhes, 1 furgo, 20 containers e 100 carrinhos
9
.
Esta preocupao com o meio ambiente no uma posio isolada, pois a
nvel internacional j vinha sendo discutida durante a dcada de sessenta, sob a
responsabilidade de instituies como ONU, BIRD, e das ONGs ambientalistas. A
deciso de realizar a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, ficou conhecida popularmente como ECO-92. Discutiram-se os
tratados sobre as alteraes climticas e sobre a biodiversidade, firmou-se a
declarao sobre a proteo s florestas, a Carta da Terra e a Agenda 21, a partir da
deflagram-se as discusses em vrios pases
10
.
O problema ambiental urbano passa a ter centralidade nas administraes
governamentais, sobretudo dos pases, pobres, uma vez que a pobreza associada
urbanizao acelerada e desordenada gera condies ambientais locais graves para
os pobres urbanos
11
.
Percebe-se que a preocupao central recai sobre a necessidade de um meio
ambiente urbano ecologicamente saudvel. A questo urbana apareceu como um
desequilbrio gerado pela insuficincia do crescimento econmico, da estabeleceu-se
a necessidade de se desenvolver polticas compensatrias, aumentando a eficincia
dos sistemas econmicos e corrigindo desequilbrios sociais.
No Paran o governo J aime Lerner, implantou o Programa Paran Ambiental, e
assinou convnios com 200 prefeituras
12
. O municpio de Toledo incorporou alguns
dos programas propostos pelo governo do Estado, entre eles o: Projeto Plantar,
Recuperao do Rio Toledo, Toledo Rural (readequao e cascalhamento das
estradas do interior, construo de bueiros, construo de pontes), habitao popular,
e lixo til.
A preocupao com o meio ambiente mobiliza no s o poder pblico, mas
tambm empresas privadas que procuram conjuntamente equacionar o problema. As
aes marcham a passos lentos frente ao desenvolvimento sustentvel que se almeja.
Em 1994, o Aterro Municipal
13
adotou o sistema de aterro sanitrio controlado,
juntamente com o Programa Caminho de Coleta Lixo til e de Troca o Cmbio
Verde, que baseado em experincia de outros municpios brasileiros, objetivava a
troca de material reciclvel por hortifrutigranjeiros.
A deposio final dos resduos slidos domsticos feita atravs de aterro
controlado com recobrimento do lixo feito semanalmente. Entende-se que esta no a
melhor maneira, ou melhor tratamento final para o lixo. O aterro, alm de ocasionar
perdas de rea acarreta problemas de poluio ou de contaminao do lenol
fretico
14
.
Em Toledo o Programa Cmbio Verde, incorporou as diretrizes propostas pelo
programa estadual
15
. Coordenado pela Secretaria Municipal de Ao Social e
Cidadania, em 1994, teve por objetivo incentivar e promover a troca de lixo reciclvel
por alimentos (hortifrutigranjeiros). Um nibus da Prefeitura foi adaptado para carregar
os produtos, deslocando-se at os bairros; 16 so beneficiados, geralmente, chega s
sedes das associaes de moradores, onde aguarda os moradores para proceder
pesagem e a troca, duas vezes por semana: para cada quatro quilos de lixo, os
moradores tinham direito a uma sacola com meia dzia de ovos e cerca de 800
gramas de batata. A mdia chegou a quase cinco sacolas por famlia
16
.
Os objetivos do Programa Cmbio Verde definiram-se como: conscientizar a
populao sobre a importncia da reciclagem do lixo como meio de preservao do
meio ambiente; promover a separao dos lixos reciclveis nos locais de troca,
evitando o recebimento de materiais indesejveis; propiciar a melhoria das condies
ambientais e sanitrias; induzir a populao s mudanas de hbitos alimentares
proporcionando enriquecimento nutricional; integrar o cidado na soluo dos
problemas ambientais da comunidade
17
.
Em maro de 1996, o Programa j contava com 3.700 famlias castradas; um
funcionrio da prefeitura anotava as informaes sobre a quantidade de lixo numa
carteirinha
18
de identificao individual, juntamente com o nmero de sacolas de
alimentos a que cada uma tinha direito. Os moradores da Vila Paulista e bairros
prximos recolheram mais de sete toneladas de lixo reciclvel, motivo pelo qual
divulgou-se matria na imprensa como feito da administrao pblica. Consta ainda o
depoimento de alguns moradores elogiando o programa, cerca de 400 famlias
participaram desse dia de troca. [...] apesar do tempo de espera na fila, os
moradores (homens, mulheres e crianas) aguardavam com expectativa
19
.
Para muitas das famlias cadastradas no Programa Cmbio Verde, este
funciona como garantia de alimento em casa. Algumas recolhem uma quantidade
grande de lixo e depois, nas mercearias do bairro, trocam parte dos alimentos que
conseguem, por outros alimentos da cesta bsica. Outra forma de solidariedade
existente entre as famlias a utilizao da carteirinha dos vizinhos, como declara a
secretria da Ao Social e Cidadania, Cerenita Corazza: o nmero atendido no
maior, porque muitos no se cadastram e acabam utilizando a carteirinha dos
vizinhos
20
.
Paralelamente, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, implantou como
projeto-piloto
21
o Programa Lixo til em dois bairros: J ardim Porto Alegre e conjunto
habitacional BNH Atlio Fontana, distribuindo cestas de plstico para a populao que
passou a separar o lixo reciclvel em suas residncias, e a coleta realizada uma vez
por semana, pelo caminho da prefeitura - equipado para esta atividade possui
divisrias para alocar papel, vidro, plstico e metais.
A empresa responsvel pela coleta era a Co-servios
22
, juntamente com a
Unio Toledense das Associaes de Moradores (UTAM). O material arrecadado
estava sendo reunido num depsito junto estrada Toledo Ouro Verde do Oeste,
onde o material embalado e estocado para formar as cargas para a venda a
empresas de reciclagem. Segundo os gerentes J uvenal Roque (Co-servios) e J uarez
Klaus (UTAM), uma parte do material arrecadado foi comercializado pela empresa,
representando um lucro adicional de R$ 254,00 reais, que ser dividido em duas
partes iguais
23
; a prefeitura mobilizou a Guarda Municipal para vigiar o local.
Provavelmente, as pessoas que realizavam os furtos trocavam esse material junto ao
Programa Cmbio Verde ou revendiam aos sucateiros.
Em 1997, com nova administrao, houve alteraes nas secretarias e
trabalhos desenvolvidos. Conseqentemente, reestruturou-se o Programa, agora
denominado Lixo til/Cmbio Verde, coordenado pela Secretaria de Meio Ambiente
em conjunto com a Secretaria Municipal de Assistncia Social, que tem como objetivo
trocar materiais reciclveis por alimentos (cesta bsica), nos postos fixos
24
existentes
nos bairros: J ardim Porto Alegre, Vila Boa Esperana, J ardim Coopagro, So
Francisco e J ardim Europa.
A mdia de arrecadao permite acesso a duas cestas bsicas mensais. Para
isso, uma cesta equivale a seguinte medida: vidro 220Kg, papelo 100Kg, papel misto
180 Kg, plstico 100Kg, ferro 300 Kg, alumnio 30 Kg. O programa autoriza somente o
cadastramento de um membro da famlia e apenas o titular retira a cesta. O valor da
mesma gira em torno de R$ 14,00 reais.
No permitido o pagamento em dinheiro no Programa. Isso ocorre, porm,
quando os catadores vendem diretamente para os sucateiros, que estabelecem
acordos com o poder pblico de manter valores prximos daqueles pagos pelos
produtos arrecadados. A impossibilidade do catador em vender sua mercadoria por um
preo justo, pode colocar a catao do lixo no rol de atividades consideradas como
no-livres.
A atividade de catar uma forma contempornea de relaes de trabalho que
pode estar traduzindo processos sociais recriados e atualizados o trabalho
compulsrio
25
, uma forma de excluso social. Ou talvez seja bem a ilustrao do
processo desigual e combinado do desenvolvimento capitalista ainda pouco estudado,
nele, co-existem duas faces opostas que se amalgamam na mesma atividade, o
trabalho no-livre e a modernidade tecnolgica da maquinaria utilizada na reciclagem.
J unto ao Aterro, organizou-se o Centro de Separao de Material Reciclvel,
onde ocorre a licitao para os compradores do material reciclvel arrecadado no
municpio,
mantido no local durante o prazo estabelecido pelo contrato, geralmente, por um ano,
sendo permitida a renovao.
Fora do controle do Poder Pblico, existem os sucateiros que compram o
material dos catadores, ou pagam por dia de trabalho, porm negociam diretamente
com as indstrias. Na situao atual proliferam as pessoas catadores que
procuram na coleta de lixo reciclvel a forma de sobreviver. Tornam a cidade mais
limpa e criam alternativas e estratgias de trabalho no mercado informal.
Os sucateiros, ou proprietrios de depsitos de compra de material reciclvel,
estabelecem suas prprias regras, compram ou contratam catadores para lhes prestar
servios. H sempre conflitos por falta de pagamento dos materiais ou trabalho
prestado.
A relao entre os sucateiros e os catadores e ou revendedores de lixo
tensa
26
. Pode se dizer que existe um cdigo normativo de condutas entre eles, porm,
este no aparece claramente. Sabe-se, por exemplo, da homogeneizao dos preos
em relao ao peso e ao material. Assim, o que esta presente no so as relaes de
confiana, mas a lei do levar vantagens. Os catadores encontram-se subordinados aos
sucateiros e ao programa.
1
Professora da UNIOESTE - Campus de Toledo. O texto desta comunicao faz parte da dissertao de
mestrado do Programa Interinstitucional UFF/UNIOESTE, sob a orientao da Professora Suely Gomes
Costa.
2
VIGARELLO, Georges. O Limpo e o sujo: uma histria da higiene corporal. Traduo Mnica Stahel.
So Paulo: Martins Fontes, 1996.
3
Ibidem, p.162
4
ELIAS, Norbert. A civilizao como transformao do comportamento humano. In: O processo
civilizador. Rio de J aneiro: Zahar, 1990, p. 65-213. Sobre estranhamento: GINZBURG, Carlo. Olhos de
Madeira. Nove reflexes sobre a distncia. Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
5
VIGARELLO,Georges. Op.Cit., passim. A palavra higiene j no o adjetivo que qualifica a sade
(hygeinos, em grego, significa o que so), mas o conjunto de dispositivos e saberes que favorecem
sua manuteno. uma disciplina especfica dentro da medicina. um corpo de conhecimentos e no
mais um qualitativo fsico.
6
O Servio de Limpeza Pblica do Municpio foi institudo pela Lei n 517, de 19 de setembro de
1969. Prefeitura Municipal de Toledo, Assessoria J urdica, 2001.
7
GIACHINI, Marilene B. de O. Uma anlise scio- econmica do lixo urbano sugestes para o
municpio de Toledo PR. Monografia (Bacharel em Cincias Econmicas).Toledo: UNIOESTE, 1990,
p. 107.
8
Fonte: Prefeitura Municipal de Toledo Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SDU), 1990.
9
Revista Toledo (Publicao Especial do 40 Aniversrio), 1992, p. 17.
10
A Agenda 21, abril de 1992, captulo 7 (p.65 66).
11
CARVALHO, Dayse Silva de. A favela, o lixo e a questo ambiental: um estudo do projeto favela-
limpa. Rio de J aneiro: Dissertao de Mestrado, PUC/RJ ,1999.
12
PARAN Ambiental ser modelo ao pas / PARAN ambiental: Estado pode virar modelo para o
pas. Jornal Dirio Popular, 4/6/1996, p.9.
13
Segundo a engenheira qumica Cludia Ribeiro dos Santos, existem trs modalidades para depsito de
lixo: lixo a cu aberto, onde desempregados catam restos; aterro sanitrio controlado e aterro sanitrio
com cobertura diria do lixo. Cf. SEM crianas, lixo de Cascavel modelo. Jornal o Paran, Cascavel,
10/10/1999, p.9.
14
GIACHINI, Marilene. Op. Cit., 1990, p. 104.
15
PREFEITURA reinicia ao do Cmbio Verde. Jornal Estado do Paran, Curitiba, 6/4/1995.
16
CMBIO Verde em Toledo lixo vale comida. Moradores trocam sete toneladas de lixo reciclvel por
alimentos. Revista A Imprensa, Cascavel, n 42, Ano IV, p. 29, mar./ 1996.
17
Estes objetivos constam no projeto Implantao gesto de qualidade participativa. Prefeitura
Municipal de Toledo, Secretaria de Assistncia Social, 1995.
18
A carteirinha uma forma burocrtica de controle dos usurios do programa, bem como, para o seu
melhor funcionamento. Contm os seguintes dados: nome do participante, endereo, associao (hoje
postos de troca), data da troca, quantidade de lixo entregue, quantidade de retorno de alimento (sacola). E
tambm um apelo participao ao programa, e um informativo sobre os benefcios da iniciativa.
19
LIXO til comea a virar dinheiro. Jornal Gazeta de Toledo, Toledo, n29, Ano I, p.5, 7/1/1995.
20
Revista A Imprensa, n 42. Op. Cit., 1996, p. 29.
21
O projeto-piloto foi iniciado em dezembro de 1994, com visitas s casas para entrega das cestas
plsticas, explicao sobre seus objetivos e entrega de um panfleto sobre o programa Lixo til.
Realizaram se tambm reunies nas Associaes de Moradores, propondo um mutiro de limpeza dos
terrenos pela UTAM e os moradores dos bairros que consistia na retirada do lixo para separao do
material reciclvel pelos moradores e remoo do restante pela Co- servios mediante uma taxa. Cf.
Jornal Gazeta de Toledo, n 29. Op. Cit., 1995, p. 5.
22
Co-servios, empresa cooperativa formada por ex-funcionrios pblicos e que faz prestao de
servios a terceiros na rea de limpeza. Cf. BARNABS integram-se campanha lixo til. Jornal
Gazeta de Toledo. n 19, Ano I, manchete de capa , 24/12/1994.
23
Jornal Gazeta de Toledo, N 29. Op. Cit., 1994, p. 5
24
Os cmbios mveis foram substitudos por pontos fixos, segundo a diretora da Secretaria do Meio
Ambiente, Gerte Filipeto: ...Ns achamos que era mais produtivo, substituir os cmbios mveis por
fixos, onde a gente consegue trabalhar mais diretamente com a pessoa que participa do programa... Cf.
Entrevista realizada em 19/03/1999, na Prefeitura Municipal de Toledo.
25
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Hctor Prez. O mundo colonial (sculos XVI a XVIII). In:
Histria econmica da Amrica Latina: sistemas agrrios e histria colonial economias de exportao e
desenvolvimento capitalista. Traduo Fernando Antonio Faria. 2 ed. Rio de J aneiro: Edies Graal,
1984, p. 63 a 122.
26
BOURDIEU, Pierre. O poder Simblico. Traduo Fernando Tomaz. 3 ed. Rio de J aneiro: Bertrand
Brasil, 2000. AZEVEDO,Ceclia. Identidades compartilhadas. Niteri, Programa de Ps-Graduao em
Histria/NUPHEC, 2002 (no prelo).
CATADORES DE LIXO: UMA EXPERINCIA DA MODERNIDADE NO OESTE
PARANAENSE (TOLEDO, 1980/1999).
Eugnia Aparecida Cesconeto
1
T
O interesse pelo tema partiu da indignao cotidiana de ver nas ruas da cidade
Toledo Paran, o aumento do nmero de pessoas desenvolvendo a atividade de
catar lixo. A partir de 1998, no trajeto percorrido de casa para o trabalho, encontrava
catadores das mais variadas idades e condies fsicas (homens, mulheres e
crianas). Passei a observ-los e a registrar minhas impresses sobre o que via.
A definio das fontes deu-se concomitantemente atravs da disciplina de
Questo Social e Servio Social. Realizou-se, ento um trabalho com as acadmicas
2
.
Foram entrevistados em Toledo, alguns sujeitos sociais: vereadores, padres,
advogados, estudantes, tcnico eletrnico, vigia, entre outros , no sentido de pensar
as representaes usuais sobre os catadores
3
.
As aproximaes com o tema se fizeram tambm atravs de leituras de
reportagens em jornais e revistas. Nelas, obtivemos uma viso preliminar do discurso
proferido pela imprensa, mesmo que parcial, sobre os problemas enfrentados no dia-a-
dia pelas camadas pobres e as aes desenvolvidas. As visitas ao Museu Histrico
Willy Barth, foi outra tentativa de exame de matria documental sobre a questo. Com
o aprofundamento dos meus estudos, fomos desvendando nos jornais e revistas no
s a construo dos silncios, mas tambm a dos discursos sobre os pobres,
geralmente, de divulgao das realizaes da administrao pblica e da elite local, de
reconhecvel uso poltico.
Dentre os jornais locais em circulao no perodo, destacaram-se: A Gazeta
de Toledo, o J ornal do Oeste e o J ornal O Estado do Paran, e as revistas:
Comunidade no Poder, A Imprensa, Revista Oeste, Revista de Porco a Suno: a
histria da suinocultura de Toledo e Regioe Estado a Revista do Paran. Todos
esses tentam, de alguma maneira, retratar a cidade, sua populao e suas
transformaes. Suas informaes nos fornecero a possibilidade de analisar as
transformaes ocorridas entre os anos de 1980 a 1999, perodo de grandes
mutaes na regio trazidas pela modernizao agrria, ocasionando as migraes
multialternadas na prpria regio, no Estado e no Pas, e do mesmo modo, colocando
em foco o cotidiano das pessoas pobres do municpio.
No contato direto com os catadores de material reciclvel, atravs de
entrevistas individuais, antecedidas de consultas prvias quanto ao interesse em
conceder a entrevista, obtivemos mais informes. Priorizamos os catadores de lixo,
moradores dos bairros prximos ao Posto de Troca do J ardim Coopagro, ltimo posto
instalado e por ser um local de loteamentos recentes, com vrias construes
irregulares e um conjunto habitacional denominado BNH Mutiro destinado a
pessoas de baixa renda, sua ocupao est em franco processo de expanso.
A crtica preliminar documentao consultada e a essas entrevistas tornaram
possvel recolhermos e observarmos falas perdidas ou at mesmo silenciadas nos
diversos tipos de fontes; aos poucos mais organizadas em seus marcos tericos, as
leituras dos documentos os tornaram vivos. Por esses caminhos, passamos a estudar
algumas idias, prticas e estratgias de sobrevivncia dos catadores de lixo da
cidade de Toledo.
A bibliografia sobre o assunto escassa. Inicialmente, a leitura da tese de
doutoramento em sociologia, de Vera da Silva Telles, A cidadania inexistente:
incivilidade e pobreza um estudo sobre trabalho e famlia na Grande So Paulo, de
1992, possibilitou-nos uma maior aproximao ao debate sobre o trabalho, a justia e
a igualdade, pondo em foco as iniqidades inscritas na trama das relaes sociais.
A dissertao de mestrado em Servio Social, de Ftima Valria Ferreira de
Souza, Sobrevivendo das sobras: as novas formas de misria urbana, de 1995,
coloca-nos frente discusso do lixo vinculado ao processo de trabalho, e tambem a
relao do lixo com a pobreza.
No artigo publicado na Revista Servio Social e Sociedade n 63, de Denise
Chrysstomo de Moura J unca, Da cana para o lixo: um percurso de desfiliaao?, de
1997, o recorte prioritrio o mundo do trabalho e o percurso da cana para o lixo, as
condies de seu exerccio, o valor que assume na preservao da identidade de
trabalhador.
Na mesma revista consultamos o artigo de Suely Gomes Costa, Sociedade
salarial: contribuies de Robert Castel e o caso brasileiro, de 2000, que procura
mostrar os desafios intelectuais, ao formular uma avaliao, ainda que preliminar, dos
recortes tericos em que se inscrevem os problemas do assalariamento, da
reproduo, e da noo de proteo social.
O livro de Robert Castel, As metamorfoses da questo social: uma crnica do
salrio, de 1998, possibilitou trazer tona a histria do processo de excluso social,
conceito polmico, confundido com desfeliao. Auxiliou na discusso das diferenas
entre as sociedades salariais e no-salariais em relao a reproduo e proteo
social.
Ao mesmo tempo, ao dar continuidade e pretender o preenchimento de lacunas
existentes quanto discusso sobre os catadores, chamou-nos a ateno o grande
interesse que essas pessoas tm despertado junto ao poder pblico, s empresas, s
entidades governamentais e no-governamentais, e mais a constatao de que essa
atividade torna-se extremamente funcional ao desenvolvimento dos grandes centros
urbanos. As questes que nos inquietavam, porm ainda no estavam respondidas:
quem so e como se sentem essas pessoas? Que estratgias de resistncia e
sobrevivncia so construdas no cotidiano? Que relaes o poder pblico, indstrias,
catadores e intermedirios estabelecem no processo de organizao social a partir da
catao do lixo? Como se deu a construo do imaginrio social sobre o catador de
lixo?
Aproximando-nos, cada vez mais, desse universo atravs das leituras, visitas
aos postos de troca entrevistas com catadores e tcnicos responsveis pelo programa
Lixo til/Cmbio Verde, parece-nos que as aes desenvolvidas para o atendimento
dos catadores mais reforam do que eliminam os obstculos na garantia dos direitos
sociais, acirrando o processo de excluso. So os prprios catadores que descobrem
e renovam a cada dia, formas inditas de trabalho e luta pela sobrevivncia.
As questes inicialmente levantadas levaram-nos ao objetivo do projeto de
pesquisa: examinar, em um enfoque histrico-cultural, algumas idias, prticas e
estratgias de sobrevivncia dos catadores de lixo da cidade de Toledo Paran, na
histria do tempo presente, abrangidos pelo Programa Lixo til/Cmbio Verde.
A experincia em curso do Programa Cmbio Verde, implantado em 1994,
coordenado pela Secretaria Municipal de Ao Social e Cidadania, tendo por objetivo
trocar lixo reciclvel por alimentos (hortifrutigranjeiros), revela que os muitos caminhos
pelos quais se tem feito a modernizao do campo incluem tambm a constituio do
espao da excluso social.
Pretende-se assim, desvendar processos sociais pouco conhecidos, revelando
um pouco que seja sobre os modos pelos quais essas pessoas tm sobrevivido, as
hierarquias sociais, o funcionamento das trocas comerciais, o que produzido na
esfera privada, os valores que organizam a sociedade local e a naturalizao da
pobreza. So todas elas questes relevantes.
Esta pesquisa se ocupa da excluso social. Muitas das situaes descritas no
caso em foco, como de excluso, representam porm, as mais variadas formas e
sentidos advindos da relao incluso/excluso. Sob esse rtulo esto contidos
inmeros processos e categorias, uma srie de manifestaes que aparecem como
fraturas e rupturas
4
do vinculo social (pessoas idosas, deficientes, desadaptados,
minorias tnicas ou de cor, desempregados de longa durao, jovens impossibilitados
de acender ao mercado de trabalho, etc.).
A fundamentao terica toma como ponto de partida os anos de 1980 e 1990
que, sob o impacto do avano das prescries neoliberais, constituem um marco no
tocante abordagem sobre o tema marginalizao social
5
, ou seja, quanto aos
excludos.
O agravamento da crise econmica e dos problemas sociais, tais como o
crescimento da pobreza, das favelas nos grandes centros urbanos, da violncia, da
criminalidade e do desemprego, associados ao processo de democratizao do pas,
revelaram aos estudiosos a necessidade de (re)pensar o papel histrico dos
marginalizados e excludos na sociedade brasileira ao longo dos sculos . os
catadores de lixo das grandes cidades mostram um tanto dessa face pouco conhecida
da histria brasileira.
No caso dos catadores de lixo, estabeleceu-se uma vinculao direta com o
prprio lixo, com o que no serve mais, com o insalubre, com o sujo, com as
epidemias e com a contaminao, aspectos que ultrapassam os limites espaciais e
atingem toda a sociedade. As diferenas entre pessoas e grupos sociais vo aos
poucos sendo demarcadas pelo iderio de higiene. Esto expressas nos cdigos
normativos da limpeza, da ordenao e da classificao dos sujeitos e do espao no
qual esto inseridos.
A pobreza e misria, se confundem com transvio e marginalidade, flagelos
contra os quais desenvolveu-se um sistema de defesa contra os pobres, gente -toa,
ociosos e ladres, todos misturados numa mesma penumbra. a existncia de
desvios mltiplos com relao regra que permite a histria trabalhar sobre os
deslocamentos, sintomas privilegiados dos movimentos profundos da sociedade.
Parte dos estudos sobre a escravido e o trabalho livre no Brasil (com
merecido destaque pela rica produo historiogrfica) passou a suscitar novas
questes e a reconstituir as relaes sociais estabelecidas no cotidiano entre as
classes dominantes e as camadas menos favorecidas das minorias como as
mulheres e homossexuais, os escravos, os alforriados, os loucos, os ndios, os
despossudos de terra, de teto - enfim dos excludos, numa ntida tendncia rumo
Histria Social e Cultural, expondo muito das singularidades concernentes ao
desenvolvimento das relaes capitalistas no Brasil. Sob a influncia da Histria Nova,
Histria das Mentalidades e Marxismo Revisionista, nessa orientao, tem sido
marcante a influncia de autores como: E.P.Thompson, Carlo Ginzburg, Robert
Darnton, Natalie Zemon Davis, Roger Chartier e Peter Burke.
O interesse pelos catadores de lixo alinha essa dissertao tendncia da
cincia histrica que tem se dedicado aos estudos dos marginalizados, tendncia que
conheceu seu ponto alto nos anos 60, ainda que a Escola dos Annales, j tivesse
aberto espao atravs da histria econmica e social para os excludos da histria.
Este trabalho trata de um conjunto de pessoas habitualmente silenciadas por no
serem consideradas atores do acontecimento histrico, reconhecendo que so as que
podem esclarecer grande parte do funcionamento das normas coletivas desta
sociedade.
Ao dar prioridade aos catadores de lixo, pretende a pesquisa seguir a trajetria
dos que se ocuparam com pessoas annimas: pobres, transviados, criminosos,
loucos, etc., daqueles que a ordem procurava constranger, reprimir ou corrigir,
buscando caminhos que a historiografia seguiu para responder questo to difcil
das relaes complexas e evolutivas que uma sociedade mantm com aqueles que
ficam fora, voluntariamente ou no, momentaneamente ou no, dos cdigos e regras
que a fundamentam.
Recolhemos em nossos estudos uma outra frtil contribuio: a da Histria
Oral. Pudemos reconhecer no andamento dos trabalhos, o quanto a experincia dos
historiadores nos anos 70, sob a influncia da antropologia, auxiliaria a divulgao
das experincias vividas por indivduos e grupos quase sempre excludos ou
marginalizados em narrativas histricas anteriores, lembrando aqui sua importncia
para a histria das mulheres, da memria, dos trabalhadores, dos fenmenos
migratrios e das comunidades minoritrias
6
.
Tambm os estudos sobre a Histria Cultural
7
levaram-nos a sentir e a
qualificar as aproximaes da histria com a antropologia e tambm com a longa
durao. Do mesmo modo, a relevncia da no recusa s expresses culturais das
elites ou classes letradas, mas tambm da aproximao com as manifestaes das
massas annimas, afeio pelo informal e, sobretudo pelo popular. Preocupamo-nos
em resgatar o papel das classes sociais, da estratificao, e mesmo do conflito social,
presente na histria dos catadores de lixo, sem perder de vista a possibilidade de
escolher caminhos novos de investigao histrica, na qual a abordagem do
cotidiano, da microhistria e da macro-histria se completam.
Ao tratar do limpo e do sujo, vimo-nos s voltas com processos culturais das
classes subalternas prprias, ou de modo mais amplo, com a cultura, termo
emprestado da antropologia, entendida como o conjunto de atitudes, crenas, cdigos
de comportamentos...
8
. Nesse enfoque, uma aproximao com o problema da
cultura
9
, principalmente a relao entre a cultura sobre o lixo, levou-nos a explicar, um
pouco melhor, o processo de marginalizao e de excluso social dos trabalhadores.
Tambm conseguimos entender, como Ginzburg (1 edio 1976), no estudo de caso
- Menocchio, que as idias no so produzidas apenas pelas classes dominantes e
impostas, sem mediaes, de cima para baixo. As idias longe de serem impostas por
um grupo a toda a sociedade, elas circulam.
Nesta anlise, nem classes dominantes tm o monoplio exclusivo da
produo de idias, nem as pessoas comuns tambm deixam de ser capazes de
produzir suas prprias idias, crenas, valores e cdigos comportamentais, que se
convencionou chamar de cultura popular. Ao recuperar o conflito de classe numa
dimenso sociocultural, e pelas relaes que mantm entre popular e erudito, o
conceito de circularidade ajudou-me muito a pensar as relaes entre os dois nveis
de cultura: tanto a classe subalterna como a dominante filtra a sua moda os elementos
culturais. Nessa noo de cultura, possvel entender os meios pelos quais alteram-
se as relaes sociais, ou seja, reconhece-se nas pessoas comuns (catadores de
lixo) o seu potencial de criao e transformao dos condicionantes impostos pela
sociedade.
As reportagens produzidas pelos meios de comunicao, apresentam os
catadores de lixo, como: prias, pessoas que ocupam um mercado divido com os
urubus, numa associao aos porcos e aos ratos que vivem no lixo, procriam
velozmente, produzem repugnncia e mostram o lado sujo do ambiente.
Pode-se dizer, nas condies empricas, mas tambm imaginrias da
modernidade, que a excluso torna-se um escndalo, e os excludos, um estorvo e um
mal-estar para quem os olha, e o desejo inconfesso de que eles desapaream.
Os catadores , porm lutam pelo reconhecimento. Nesse sentido, pode-se citar:
o encontro nacional realizado no incio de junho de 2001, durante trs dias, em Braslia
pelo reconhecimento da profisso e melhores condies de trabalho, as vrias
Associaes criadas no Brasil como: ASMARE em Belo Horizonte, CEMPRE em So
Paulo, Associao de Mulheres Papeleiras e Trabalhadoras em Geral em Porto
Alegre, so alguns exemplos da auto-representao.
Ao se discutir a pobreza e a luta pela sobrevivncia que impe a cada dia
formas- limites de submisso s condies mais srdidas de obteno de renda,
negao do direito dignidade de seres humanos, as aes e prticas cotidianas de
resistncias, dos diversos sujeitos histricos, que a vivenciam, aqui em especfico, os
catadores de lixo , no so to destacadas. Ou seja, as opes, abordagens, os
silncios sobre os catadores no podem ser encarados como algo natural, mas sim
como o resultado de um jogo de disputas, cujos desdobramentos informam o
significado social da sua presena na sociedade.
Uma forma utilizar e entender as fontes diversas. Nas orais, o conceito de
memrias ser til ao analisar as construes histricas, mediadas por ideologias e
pela linguagem. A memria assim transformada em objeto de interpretao: a
memria do indivduo depende do seu relacionamento com a famlia, com a classe
social, com a escola, com a Igreja, com a profisso, enfim, com os grupos de convvio
e os grupos de referencia peculiares a esse indivduo
10
.
A construo da memria sobre a excluso e a pobreza sta ligada s formas
como nossa cultura tende a valorizar as diferenas de conduta social, sinais externos
de status quo. Percebe-se uma clara tendncia para igualar padres de vida e conduta
e nivelar contrastes, gerando tenses nas relaes sociais, definindo identidades e
buscando alternativas que levem ao consenso social ou resistncias.
A legitimao do lugar de cada um marcada pela dominao e controle
social, tanto interno como externo. As relaes entre ricos e pobres no so unvocas:
cada qual sua maneira tm ganhos e perdas nas situaes de que fazem parte,
sempre correm em mo dupla. No caso especfico do processo de reciclagem do lixo,
a universalizao expressa-se no conjunto economia, ecologia, poltica, cultura, etc.,
ou seja, na relao entre catadores , poder pblico, empresas e sociedade.
Nessa relao, o catador passa a ser uma soluo barata e definitiva para o
problema do lixo; ele desenvolve uma atividade que necessria para o mundo
consumista de hoje, onde se evidencia a relao consumo/descarte e o
aproveitamento coletivo: de um lado, o poder pblico, as empresas e a sociedade, so
beneficiados pela limpeza, pelo material disponvel para reaproveitamento e reduo
de custos destas atividades; e do outro, o catador que extra a sua subsistncia; todos,
todos independentemente da posio que ocupam, tm seu valor.
1
Professora da UNIOESTE - Campus de Toledo. O texto desta comunicao faz parte da dissertao de
mestrado do Programa Interinstitucional UFF/UNIOESTE.
2
Disciplina do 1 Ano, Curso de Servio Social, total de 42 acadmicas, 2000.
3
Como forma de fugirmos um pouco das metodologias tradicionais de pesquisa; utilizamos uma tcnica
de opinio, no se estabeleceu a priori quais seriam os sujeitos entrevistados, por isso denominamos
metodologia do flagrante.
4
Para examinar a crtica noo de excluso social, ver CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo
social: uma crnica do salrio . Traduo Iraci D. Poleti. Petrpolis, RJ : Vozes, 1998. WANDERLEY,
Maringela Belfiori. Refletindo sobre a noo de excluso. In: Revista Servio Social e Sociedade, n 55,
ano XVIII, p. 74-83. So Paulo: Cortez, nov.1997.
5
Marginal, segundo o dicionrio Aurlio, aquele que vive margem da sociedade, ou da lei. A
identificao do marginal procede do centro dominante, irradiador de uma viso de mundo e de uma
ideologia, as quais se baseiam na noo de trabalho.
Na historiografia o tema ser indicado pela primeira vez em 1964, na obra La Civilisation de lOccident
Medieval, de J acques Le Goff, ainda no se falava muito em marginais, ele tratou como excludos. Em
1975, foi editada, no Canad, uma obra coletiva intitulada Aspects de la marginalit au Moyen Age. Em
1976, consagra-se o tema, pelo trabalho d Bronislaw Geremek, em Les marginaux parisiens aux XIV et
XV sicles. Pode-se disser que os medievalistas estabeleceram os que seriam os homens das margens.
Cf. DUARTE, Lus Miguel. De que falamos ns quando falamos de marginais? Portugal na baixa Idade
Mdia. In: Revista de Cincias Histricas, vol.XI. Universidade Portucalense, Porto, 1996, p. 55-68.
6
FERREIRA, Marieta de M. e AMADO,J anana (Orgs.). Usos e abusos da Histria Oral. 2 ed. Rio de
J aneiro: Editora da Fundao Getulio Vargas,1998.
7
CHARTIER, Roger. A histria Cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Defil, 1990
(Introduo).
8
GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela
inquisio. Trad. Maria Betnia Amoroso. 8 ed. So Paulo: Schwarcz, 1996, p. 15 34.
9
THOMPSON, E.P. Introduo: Costume e cultura. In: Costumes em comum- estudos sobre cultura
popular tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 13-24.
10
BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo: T.A Queiroz, 1979. FERREIRA,
Marieta de M. e AMADO, J anana (Orgs.). Usos e abusos da Histria oral. 2 ed. Rio de J aneiro: Editora
da Fundao Getlio Vragas, 1998. LE GOF, J aques. Histria e memria. Campinas. Editora da
UNICAMP, 1992.
Esboo de um Mapa Scio-demogrfico da Intendncia de Crdoba a
partir da Anlise do Censo de 1778
Eurico da Silva Fernandes
Seguindo as ordens do Ministro da Coroa espanhola J oseph de Glvez (1776),
efetuou-se em todos domnios espanhis, inclusive nas Filipinas, um censo com dados
para o conhecimento quantitativo e de algumas das caractersticas sociais dos sditos
do reino.
No Rio da Prata esta necessidade de conhecimento da populao respondia ao
contexto de reformas ilustradas espanholas que tentava, de um lado, barrar as
incurses comercias de sua principal inimiga, a Inglaterra; e, de outro, barrar a
constante tentativa de avano territorial do imprio portugus
1
T. Assim, o
conhecimento da populao tornou-se imprescindvel para um melhor ordenamento
produtivo da mesma e, caso fosse necessrio, para a mobilizao militar, como viria
acontecer no comeo do sculo XIX.
Na Intendncia de Crdoba o censo foi efetuado com duas estruturas bsicas:
listando pessoa por pessoa e famlia por famlia. Desta forma, tornou-se possvel
elaborar um banco de dados no qual se pde considerar as caractersticas trazidas
pelo censo para cada pessoa de forma isolada; e tambm considerar as
caractersticas da constituio familiar do perodo. A famlia foi considerada como
parte de um modelo explicativo da sociedade colonial tardia em questo
2
.
Para um esboo scio-demogrfico da Intendncia cordobesa foi escolhido trs
dos onzes curatos existentes
3
: Ro Tercero, Ro Seco e Traslasierra. Uma primeira
caracterstica notar que a maior parte da populao dos curatos de Ro Seco e
Traslasierra era de etnia no branca. Em Ro Seco, apenas 19.07% da populao
eram de pessoas brancas. Em Traslasierra a populao branca era de 40.75%. De
forma contraria, Ro Tercero possua a maioria de sua populao branca, 55.03% do
total era desta etnia
4
.
O censo de 1778 era, para a elite cordobesa, a comprovao emprica daquilo
que observavam no cotidiano da vida. Observou-se, por um lado, a retomada do
crescimento demogrfico da populao, j que desde fins do sculo XVII a Intendncia
se encontrava estagnada
5
. Porm, de outro lado, voltava crescer da maneira no
desejada, ou seja, voltava crescer atravs de mesclagens tnicas.
O problema do crescimento demogrfico pelas mesclas passava ento cada
vez mais a ser considerado e tratado pelos representantes da elite local,
principalmente a partir da nomeao do primeiro Intendente cordobs, o marqus de
Sobremonte (1782). Este disps de vrios mecanismos legais para coao e,
principalmente, para utilizao compulsiva destas pessoas no brancas como mo-de-
obra da elite local em servios pblicos, em servios militares de fronteira e outros. A
partir de ento qualquer pessoa no branca deveria portar um documento
comprovando estar empregada e conchavada a um branco, para assim livrar-se de
tais servios e de uma gama de preconceitos
6
.
Foi considerado para a elaborao do banco de dados a possibilidade de trs
tipos de famlias existente no censo de 1778: a famlia nuclear, formada por pais e
filhos; a ampliada, formada pela famlia nuclear mais membros com laos sangneos
(ex: netos, sobrinhos); e a famlia composta, formada pela famlia nuclear e/ou
ampliada, mais os membros unidos a esta famlia por uma relao de dependncia ou
conchavo, atravs do agregamento ou do escravismo
7
.
Ro Tercero, dos trs curatos em questo, era o que mais possua famlias
compostas, com 50.44% delas. Em Ro Seco esta porcentagem caia para 29.74%; em
Traslasierra 35.39% das famlias eram compostas. Quanto as famlias nucleares elas
eram mais presentes em Ro Seco e Traslasierra, do que em Ro Tercero. Ro Seco
possua 60.87% e Traslasierra possua 56.60%. As famlias ampliadas no
representavam um percentual muito elevado e chegavam a 9.38% apenas no curato
de Ro Seco.
Da mesma forma que os percentuais de famlias compostas de Ro Tercero
eram maiores que os dos outros dois curatos, tambm era maior seu percentual de
pessoas em relao de dependncia, ou seja, pessoas nas condies jurdicas de
agregados e escravos
8
. Este curato possua 36.48% de sua populao numa destas
duas condies de dependncia. J os curatos de Ro Seco e Traslasierra possuam
percentuais bastante aproximados, 20.08% e 21.24% respectivamente.
Estas diferenas que colocavam de um lado Ro Tercero e de outro Ro Seco e
Traslasierra, so reflexos (como tambm refletem) das diferenas de condies scio-
econmicas dos curatos em questo. Ro Tercero se caracterizava por participar da
principal atividade econmica da Intendncia, a cria e invernada do gado mular para
prover as minas de Potosi
9
. Sendo assim, era imprescindvel possuir uma maior
populao submetida, e que pudesse ser disciplinada para o trabalho.
J Traslasierra e Ro Seco, curatos ligados a atividades econmicas
secundrias, se caracterizavam por uma economia artes e de servios. Traslasierra
possua agricultura, produo de farinha, de telha, de mveis, de carreta, de vinho e
outros, que provia tanto os viajantes rumo as minas de potosi como a cidade de
Crdoba. Ro Seco, por sua vez, tinha uma economia eminentemente de subsistncia
apesar de tambm prover necessidades alimentares e de mo-de-obra dos viajantes
rumo a regio de minerao
10
. Isto ajuda a entender o porqu deste dois curatos
possurem uma menor porcentagem de populao submetida a relao de
dependncia, atravs da escravido ou do agregamento; bem como uma maior
populao de pessoas juridicamente na condio de livres, mesmo com suas maiores
porcentagens de populao no branca.
A anlise do banco de dados do censo de 1778 permitiu ainda observar que as
maiores concentraes de pessoas com condio jurdica de agregado ou escravo por
famlia, estava justamente em Ro Tercero. Foi tido como pressuposto que uma famlia
com grande nmero de membros numa destas duas relaes de dependncia possua
atividade econmica voltada ao mercado colonial; de forma contrria, famlias com
nmero reduzido de escravos ou agregados um ou dois ou sem estes membros,
foi considerada que tinham uma economia de simples subsistncia.
Em Ro Tercero 11.33% de suas famlias possua mais de 7 membros
agregados ou escravos. No curato de Ro Seco esta porcentagem caia para 4.79%
das famlias. Traslasierra, por sua vez, tinha apenas 5.01% de famlias com mais de 7
destes membros.
Este baixo nmero de concentrao de gente de trabalho, mesmo para Ro
Tercero, denota que parte considervel do trabalho despendido nestes trs curatos era
para simples subsistncia. O lema para grande parte da populao no branca
espalhada nestas reas rurais era la pampa y la baca para todos
11
. Da a grande
preocupao da elite cordobesa, representada pelo marques de Sobremonte, em
disciplinar esta populao em crescimento pela mesclagem tnica, agora expressada
no censo de 1778, em trabalhos pblicos e militares no remunerado.
Em suma, para a construo deste esboo scio-demogrfico da Intendncia
de Crdoba, tentou-se estabelecer algumas possveis relaes entre os dados tnicos,
jurdicos e familiares fornecidos pelo censo cordobs de 1778, com o apoio da
historiografia scio-econmico desta mesma regio.
1
Para um melhor entendimento das reformas ilustradas empreendidas no Ro da Prata, a historiografia
argentina possui bons escritores (Ver: CHIARAMONTE, J os C. La Etapa Ilustrada. 1750-1806.
Editorial Paids. Buenos Aires 1992).
2
Foi considerado o pressuposto de Marx e Engels de que a famlia pode ser entendida a partir da anlise
da sociedade em questo. Nas sociedades de capitalismo industrial, por exemplo, previram o fim da
prpria famlia, quando a filha do operrio se transforma em prostituta ou quando as relaes scio-
familiares se mercatilizam (Cf. MARX; ENGELS: Manifesto do Partido Comunista. So Paulo: Martin
Claret, 2002).
3
Os curatos eram sub-divises da Intendncia; em Crdoba havia 10 na campaa, rea rural, mais o da
cidade de Crdoba. No noroeste da Intendncia de Crdoba encontrava-se os curatos de Traslasierra,
Punilla, Rio Seco, Tulumba e Ischiln. No centro da Intendncia se encontrava a prpria cidade de
Crdoba e o curato de Anejos. Ao sudeste se encontrava os curatos de Rio Segundo, Rio Tercero,
Calamuchita e Rio Cuarto (Cf. CELTON, Estela Dora: Ciudad y Campaa en la Cordoba Colonial.
Crdoba: J unta Provincal de Historia de Crdoba, 1996).
4
Fonte: banco de dados elaborado para esta pesquisa. Toda a base de dados numricos utilizada no texto
advm deste mesmo banco de dados.
5
Este aumento populacional a partir de meados do sculo XVIII, advindo principalmente atravs da
mestiagem, consenso na historiografia cordobesa. Tal fenmeno deve-se a vrios fatores interligados.
Recuo da mortalidade causada pelas epidemias, que foram comuns na primeira metade deste mesmo
sculo. Neste perodo, vrias epidemias faziam que as taxas de natalidade, constatadas nos livros de
batismos das Igrejas, fossem menores que as taxas de mortalidade. Os ataques indgenas na fronteira sul
da Intendncia Ro Cuarto e Ro Tercero que dizimavam as populaes destas localidades,
empurrando-as para o litoral ou para Cuyo, tambm retrocederam. A economia cordobesa e de todo Rio
da Prata, em geral, melhorou com a paulatina liberalizao comercial e com o aumento da demanda de
gado muar para as minas do Alto Peru. Mas, um fato interessante que tambm contribuiu para o aumento
populacional foi que ... la presin de los colonizadores (sobretudo na populao indgena) disminuy,
fenmeno coincidente con la desmembracin de las encomiendas, (assim) la recuperacin demogrfica
vino acompaada de una mayor liberdad en las relaciones intertnicas que favoreci su
entrecruzamiento. (Cf. ARCONDO, Anbal: El ocaso de una sociedad estamental. Crdoba entre 1700
y 1760. Crdoba. Universidad Nacional de Crdoba, 1992).
6
Respondendo aos anseios da elite local, o Intendente da provncia de Crdoba, marqus de Sobremonte,
realizou diversas aes no sentido de nuclear as pessoas no brancas consideradas bagamundas em
fortes fronteirio, em trabalhos pblicos na cidade de Crdoba e nas vilas recm fundadas das reas
rurais. Para escapar destas obrigaes todas pessoas no brancas deveriam trabalhar para um branco ou
conchavar-se com ele. Foi criado uma categoria de juiz, chamado de pedneo, para agir nas extensas
reas rurais da provncia, combatendo supostos crimes de ociosidade, roubo de gado, sexuais e crimes
contra a religio (Cf. PUNTA, Ana Ines: Crdoba Borbnica. Persistencias coloniales en tiempo de
reformas (1750-1800). Crdoba: UNC, 1997).
7
Esta classificao familiar para fins do perodo colonial seguida pela historiografia argentina (Cf.
CARBONARI, Mara Rosa. Populao, fronteira e famlia. A regio de Ro Cuarto no perodo
colonial tardio. Niteri: Universidade Federal Fluminense, 2001. (Tese de doutorado)).
8
Em sociedades do Antigo Regime as relaes de dominao e dependncia pessoal, fundada no poder da
propriedade da terra, substituem o podem impessoal do dinheiro (Cf. MARX, Karl: Formaes
econmicas pr-capitalistas. Editora Paz e Terra. Rio de J aneiro, 1975. p. 96).
9
A regio mineira devido sua caracterstica geogrficas montanhosa, no era capaz de produzir mulas
para o transporte. Desta forma, Crdoba se aproveita para ajudar prover esta necessidade da regio
mineira criando mulas e exportando-as ela; ou preparando mulas de outras regies mais do litoral, como
Buenos Aires ou Corrientes, por exemplo. O preparo consistia no endurecimento de seus cascos em
terrenos pedregosos para a posterior longnqua viagem regio mineira, e tambm para que o animal
suportasse os grandes declives dos acidentes geogrficos, a isto d-se o nome de invernada (Cf.
CONCOLORCORVO: El lazarillo de ciegos caminantes. Buenos Aires. Emec Editores, 1997). A
economia cordobesa, desde meados do sculo XVII, seguiu dependente de suas vendas de mulas para o
norte mineiro. Desta forma, sempre que a demanda do gado mular decaa na regio mineira devido a
baixa produo de prata das minas, a economia cordobesa entrava em crise. Mesmo quando houve maior
liberalizao do comrcio a partir de 1778 com o Reglamiento del Libre Comercio, Crdoba prosseguiu,
ainda em grande parte, dependente das demandas do gado mular do norte mineiro (Cf. PUNTA, Ana Ins.
Crdoba Borbnica. Persistencias coloniales en tiempo de reformas (1750-1800). Crdoba: UNC, 1997).
10
Cf. CELTON, Estela Dora: Ciudad y Campaa en la Cordoba Colonial. Crdoba: J unta Provincal de
Historia de Crdoba, 1996.
11
Cf. FERRERO, Roberto A. Breve Historia de Crdoba (1528-1995). Crdoba: Alcin, 1999.
Memria universitria: o Sistema de Arquivos da UEM.
Evandir Codato
Tendo em vista a manuteno do padro de eficincia e qualidade das
diferentes aes da comunidade universitria, torna-se necessrio estabelecer
Programa Interdisciplinar de Implantao do Sistema de Arquivos que tenha como
objetivo a adoo de: princpios, diretrizes, normas e mtodos de organizao e
funcionamento dos arquivos; mecanismos que imprimam racionalidade recuperao
de informaes nas diferentes fases do ciclo vital dos documentos e uma poltica de
preservao do patrimnio arquivstico.
consenso que o ponto de partida para a organizao do arquivo universitrio
deve ser o entendimento do contexto nos quais os documentos foram criados. Bottino
observa que, o estudo das funes desempenhadas pela universidade leva ao
conhecimento, no s da instituio, como, tambm, do acervo acumulado, com todos
os problemas advindos dessa acumulao. A partir da, ter-se- condies de
estabelecer metas e "a anlise institucional funcional, por conseguinte, o primeiro e
apropriado passo para todos os arquivistas de instituies", tese defendida por
Samuels (1992). O conceito de arquivo universitrio traz, em seu bojo, duas
categorias de acervos, aqueles gerados e acumulados na prpria instituio, no curso
da administrao, denominados "arquivos universitrios por origem", ou "arquivos
institucionais" e aqueles formados por fundos privados provenientes de pessoas ou
organismos externos universidade, que suscitam interesse para o ensino e a
pesquisa e que se agregam aos j existentes; so denominados "arquivos
universitrios por adoo" ou "arquivos privados". Entende-se, pois, por arquivo
universitrio, o conjunto de documentos, tanto institucionais quanto privados,
produzidos, recebidos e acumulados por estabelecimento de ensino superior, no curso
da gesto jurdica-acadmica-administrativa, que servem de suporte informacional e
de prova de evidncia no exerccio de suas funes, constituindo a memria
institucional. A autora diz que,
O arquivo pode prover a universidade de recursos informacionais,
possibilitando "repensar" a instituio. A guarda de documentos
estratgicos, por parte do arquivo universitrio, fundamental para a
sobrevivncia da instituio e, por conseguinte, para a preservao de sua
identidade. A base de sustentao do arquivo universitrio encontra-se nas
funes por ele desempenhadas e conseqentes servios prestados
comunidade por ele atendida". (Bottino,1998: cd-rom)
Assim sendo, para a autora, h trs funes bsicas: administrativa,
pedaggica e cultural.
Na sua funo administrativa, o arquivo universitrio constitui um meio eficaz
de conhecer e gerenciar as fontes de informao da instituio. Como armazena
categorias de documentos institucionais, ele "ocupa posio privilegiada de como
alcanar-se a eficincia administrativa, passando o arquivo a constituir-se num
instrumento atravs do qual a instituio pode justificar, para si e para o pblico, sua
capacidade administrativa de execuo e gerenciamento e de como atingir metas
propostas" (Bottino,1998: cd-rom).
Enquanto "instrumento das atividades administrativas, atua na melhoria da
comunicao interna e propicia maior fluxo e rapidez da informao, trazendo a
excelncia dos vrios setores. Organizado e capaz de dar respostas, evita que a
universidade recrie coisas, refaa caminhos antes percorridos" (Bottino,1998: cd-rom).
Na sua funo pedaggica fundamental atua junto ao ensino, pesquisa e
extenso.
No que se refere ao ensino, o arquivo contribui na elaborao de trabalhos,
informaes sobre origem de cursos e estudos curriculares. "No que diz respeito
pesquisa, o acervo custodiado pelo arquivo universitrio uma fonte de informao
para seu desenvolvimento, pois acumula documentos oriundos de pesquisas
efetuadas na universidade, constituindo-se, pois, num referencial de informaes".
(Bottino, 1998)
Na funo cultural o "arquivo universitrio identifica-se como sendo um "locus"
facilitador na reconstituio histrica da instituio, face a existncia do acervo
acumulado e preservado ao longo do processo administrativo, assim como dos outros
acervos a ele integrados. Atravs de todo um trabalho de divulgao, exposies,
publicaes, atendimento ao usurio, o arquivo universitrio promove cultura e
dissemina conhecimento para fora da universidade". Ele "deve ser encarado sob um
ponto de vista mais amplo, com o delineamento de um programa abrangente,
integrando sua misso e suas funes s da universidade". (Bottino,1998)
A contribuio da Professora tambm no sentido da implantao desse tipo
de arquivo:
1. definir sua misso, esfera de atuao e poder, com a elaborao de um
documento com a devida aprovao institucional, assegurando sua existncia e
conferindo-lhe poder para desempenhar sua misso;
2. estudar a localizao do arquivo na estrutura organizacional da universidade,
cuja posio no organograma determinar os rumos das atividades
arquivsticas a serem desenvolvidas;
3. caracterizao do acervo institucional;
4. recursos humanos qualificados e em quantidade suficiente para o bom
desempenho do servio;
5. instalaes adequadas, levando-se em considerao as necessidades
bsicas;
6. prover os usurios com servios que satisfaam suas necessidades,
justificando, pois, a razo de existncia do arquivo.
O desenvolvimento do arquivo universitrio est relacionado implantao
de atividades de natureza tcnica, como: o estabelecimento de um
programa de gesto de documentos; cuidados quanto conservao e
preservao dos acervos; poltica de avaliao de documentos, com
elaborao de tabela de temporalidade; poltica de aquisio de acervos;
processamento do acervo, no que diz respeito classificao, arranjo,
descrio, recuperao da informao, enfim, atividades que visem a
organizao e manuteno do arquivo". (Bottino, 1998)
A autora chama a ateno para a qualificao profissional, na pessoa do
arquivista:
Finalmente, a qualidade de produtos e servios que podem ser sentidos: no
apoio que o arquivo universitrio pode fornecer administrao na tomada
de decises; na fixao de diretrizes do planejamento institucional; no apoio
ao ensino e pesquisa; no planejamento pedaggico, orientando na
elaborao de currculos e programas de curso; na formao de discentes,
orientando na elaborao de trabalhos e atuando como laboratrio prtico
de ensino e pesquisa, servindo de campo de estgio; contribuindo na
produo do conhecimento cientfico e na formao de novos
pesquisadores; apoiando a comunidade, facilitando o acesso aos
documentos, prestando assistncia tcnica e, no que tange difuso
cultural, contribuindo com publicaes, organizando exposies, palestras,
cursos, etc. (Bottino,1998: cd-rom)
Para ela ainda relevante que aconteam iniciativas como as abaixo descritas:
1. palestras de sensibilizao, com vistas conscientizao das
administraes superiores para a importncia e necessidade dos arquivos
universitrios;
2. a necessidade de uma postura dinmica e doutrinria por parte de
profissionais que atuam no arquivo universitrio, objetivando informar sobre a
razo de sua existncia, apelando para todas as formas de divulgao;
3. os documentos produzidos pela administrao universitria, no curso de
suas atividades, so propriedade da instituio e o arquivo universitrio o
local oficial de sua preservao;
4. os documentos no podem ser eliminados sem a aprovao do responsvel
pelo setor que retm os documentos bem como do arquivista da universidade;
5. a responsabilidade do arquivista da universidade nas atividades de
identificao e recolhimento sistemtico dos arquivos permanentes da
administrao para o arquivo;
6. aproximao do arquivista junto aos institutos e departamentos, a fim de
inteirar-se sobre as pesquisas em andamento e novos cursos a serem
ministrados, oferecendo, atravs do arquivo, apoio para pesquisa junto ao
acervo custodiado;
7. contribuio nos programas de cursos de graduao e ps-graduao,
mostrando como o material arquivado pode ser utilizado em sala de aula;
8. orientao do usurio no que diz respeito a que documentos usar e como
pesquisar;
9. estimular o uso dos documentos do arquivo, por parte dos discentes;
10. elaborao, por parte do arquivista, de artigos, panfletos e publicaes, no
s sobre o acervo, como, tambm, sobre a histria da instituio;
11. participao do arquivista em "comisses" da universidade, seja para
organizao e celebrao de festas de aniversrios, histria da instituio,
cooperando com departamentos, alunos, administradores, etc.;
12. no limitar-se, somente, aos recolhimentos da documentao
administrativa, devendo incentivar a doao de arquivos privados pessoais dos
membros da universidade, bem como da comunidade externa que sejam
significativos para a instituio;
13. incentivar o recolhimento, ao arquivo, dos documentos dos diretrios
acadmicos, publicaes estudantis, etc.;
14. estar atento aos eventos culturais estabelecidos no calendrio e
promovidos pela universidade (exposies, recitais, comemoraes, etc.), com
vistas a documentar os fatos, preservando a informao;
15. utilizar a histria oral (entrevistas) como mtodo de documentar a educao
superior. (Bottino,1998: cd-rom)
Enfim, para a autora, Universidade, Arquivologia e Arquivo Universitrio so
complementares e interdependentes. A organizao e a manuteno do arquivo
universitrio uma tarefa rdua, que requer a adoo de medidas que levem
otimizao dos servios e que haja muito empenho e dedicao. Porm, todos os
esforos sero recompensados se a universidade entender que a preservao e a
manuteno de seus arquivos faz-se necessria para atender s demandas internas e
externas. (Bottino, 1998)
A experincia que Rose Marie Inojosa adquiriu com arquivos universitrios
destaca como relevante: a responsabilidade do arquivista, a gesto de fundos, a
avaliao dos registros e a influncia da tecnologia para os suportes da informao.
Isto porque enquanto campo de formao profissional e de pesquisa cientfica a
universidade por excelncia o local de gerao e apropriao de informao. Ela
um ambiente,
onde a informao existe, por produo prpria ou por captao, e onde pode
ser apropriada e submetida crtica no processo de transformao que
caracteriza a construo de novos conhecimentos. A informao na
universidade ao mesmo tempo, um insumo estratgico e um produto. (...) e
sua disponibilidade, mediante acesso direto ou referencial cria a qualidade do
ambiente informativo para responder perguntas; orientar para outros ambientes
informativos; e, sobretudo, instigar perguntas. (Inojosa, 1998)
Tais responsabilidades, para ela, so dirigidas aos "clientes da informao
corpo docente, discente, administrao, comunidade -, que constituem o motivo da
existncia da organizao e o foco principal da qualidade". A responsabilidade dos
arquivistas em relao qualidade da informao do ambiente em que atuam no
deve ser somente dos documentos sob sua guarda. Atuam em dois ambientes:
primeiro, de acervos documentais e de outros arquivos que esto na universidade, e,
noutro ambiente, mais especfico, o arquivo gerado pela prpria instituio. O fundo
arquivstico da universidade informa como ela realiza seus servios, quais suas
relaes com a sociedade, quais resultados obtm segundo seus objetivos e quais
alcana ao longo de sua existncia. Quais informaes detm o arquivo da
universidade? Segundo seus objetivos e atribuies, as atividades bsicas so:
Ensino: projetos, programas de curso e de disciplina; cronogramas, apostilas,
avaliaes, etc.
Pesquisa: projetos e propostas, cronogramas, relatrios, avaliaes, etc.
Prestao de servio comunidade: correspondncias, projetos e propostas,
relatrios, avaliaes, etc.
Administrao do corpo docente: processos de contratao, de afastamentos e
disciplinas, registros, dossis, avaliaes, etc.
Administrao geral: documentos de gerenciamento de meios e recursos.
(Inojosa, 1998)
Em decorrncia dessas atividades, o fundo da universidade aberto, dinmico
e em permanente alimentao. Constantemente novos registros de informao
circulam entre seus agentes e parceiros. A sua potencialidade perdura para os clientes
internos da instituio durante toda sua existncia. Isto significa que, os gerentes e
profissionais da informao e de arquivo na universidade tm responsabilidades
singulares em relao preservao e qualidade dos registros. Trata-se do
processo de avaliao dos registros. As responsabilidades referem-se: " qualidade
intrnseca do registro da informao e em relao ao processo de avaliao". No caso
do registro da informao,
tarefa da gesto da informao contribuir e orientar os agentes produtores da
organizao para que os registros tenham as caractersticas de:
. clareza no sentido do cdigo comum entre as partes em relao;
. preciso que diz respeito ao que o registro conta em relao ao fato de que
trata;
. confiabilidade na medida que permite considerar de que ponto de vista est
sendo narrado ou apreciado o fato, pois identifica o autor e o momento da
produo.
A segunda responsabilidade na gesto do fundo arquivstico a orientao e a
coordenao do processo de avaliao. Esse processo deve ser realizado no
momento da produo e com a participao dos agentes, de modo a identificar e
preservar os documentos capazes de, na sua inter-relao, permitir a compreenso do
processo de produo das atividades da organizao e de seus resultados, ao longo
de sua existncia". (Inojosa, 1998)
Ainda no processo de produo e qualidade dos documentos de arquivo, a
autora considera importante destacar a influncia dos novos suportes da informao e
da dinmica que essa tecnologia determina para a gesto nos arquivos. Nos
dias de hoje, num estgio de superao da fase de postura passiva, o arquivo
submetido a um novo processo de avaliao dos documentos, ainda na fase corrente.
"Os arquivos passaram a assumir uma postura mais ativa, estabelecendo relaes
mais freqentes e prximas com os agentes produtores da documentao". Com o
aparecimento da informatizao h ainda outra dinmica: o ciclo de vida dos
documentos via de regra alterado ocorrendo a superao de fases e liames.
(Inojosa, 1998)
Iniciativa semelhante, em outros momentos foi tomada pela Unicamp, Unesp,
UFPB, UFS porm com estratgias diferentes. Na Universidade Estadual de Maring
a deciso pelo projeto toma corpo a partir de uma visita autorizada pela Reitoria em
28 janeiro 2000 - ao SAUSP, para conhecimento do sistema e reunio com o grupo
responsvel pela implantao. O compromisso que a partir daquele momento ficou
selado entre as partes teve como resultado este projeto. Segundo a orientao
recebida qualquer experincia com projeto piloto deve ser descartada quando o prazo
da gesto da Reitoria, em curso, de dois anos, em vista de que este prazo
equivalente implantao do projeto. Com dois anos de atividade, uma equipe de
trabalho tem condio de instalar simultaneamente, o arquivo corrente e o
intermedirio, em todas as unidades e setores da instituio, oferecendo, portanto
condio para a gesto documental. A instalao do arquivo permanente dever ser
um desdobramento desta primeira etapa, o que implicar em estratgias, com poltica
e durao diferenciada, inclusive de construo de prdio com padres tcnicos
especiais e com outros custos. Considera-se relevante a definio da estratgia de
implantao de um sistema de arquivos, no sentido da otimizao de recursos:
estabelecimento de polticas de curto e mdio prazo.
Orientando-se nessa direo e seguindo o modelo da Universidade de So
Paulo, prope-se a formao de atividade especfica - um Programa - para iniciar
etapas de discusso, com a formao de Comisso Tcnica, que estar autorizada
para o incio do tratamento documental nos diferentes setores. Para isto conveniente
destacar a importncia de um trabalho integrado entre trs grupos: a Comisso
Tcnica, o Grupo Executivo e as Comisses Setoriais. A Comisso Tcnica compe-
se de: Presidente, Vice-Presidente, Membros e Suplentes, com atribuies de
planejamento, coordenao e controle do Sistema a ser implantado. Com exceo dos
Membros, (os especialistas) os cargos so administrativos. O Grupo Executivo ter
sob sua responsabilidade a execuo dos objetivos segundo o cronograma proposto.
So 4 grupos de especialistas que atuam de forma integrada.
1 Compe-se de especialistas em arquivstica e biblioteconomia. So tecnicamente
preparados para a ministrar cursos e oficinas da rea arquivstica. Tm
responsabilidade de orientar e acompanhar as Comisses Setoriais. So
assessorados por um consultor externo.
2 Compe-se de um representante jurdico e dois membros da administrao.
Responsabilizam-se com as competncias jurdico-administrativas.
3 Os especialistas da rea financeira, da informtica e dos recursos humanos
assistem aos respectivos suportes.
4 Essencial neste Grupo ser a valiosa contribuio de estagirios para as atividades
de auxiliar de digitao, de analista de sistema e de expediente de secretaria.
As Comisses Setoriais compem-se de funcionrios, titulares e suplentes que
atuam nos rgos centrais de direo e servios, e, nas unidades de ensino, pesquisa
e extenso. Sero responsveis na aplicao do gerenciamento dos documentos, num
primeiro momento, sobretudo os de uso corrente. Etapas das estratgias de ao.
1 Formao tcnica: Grupo Tcnico orientar e acompanhar os Grupos
Setoriais:
2 Levantamento de rotinas administrativas geradoras de documentos: O
Grupo Tcnico orientar os Grupos Setoriais a partir do conhecimento da estrutura,
competncias e funes de cada unidade (formal ou informal); sero identificadas as
sries documentais geradas e acumuladas, os dispositivos legais que determinam sua
guarda e a freqncia com que so utilizadas. Utilizar-se- como estratgia a coleta e
sistematizao de dados em reas representativas de atividade-fim e atividade-meio,
de acordo com o re-escalonamento dos integrantes dos Grupos Setoriais.
3 Elaborao de instrumentos formais de gesto de documentos: Uma vez
identificadas as sries documentais resultantes das rotinas administrativas, o Grupo
Tcnico, em conjunto com os Grupos Setoriais (remanejados de acordo com as
respectivas especificidades), dever elaborar dois instrumentos bsicos e
indissociveis de gesto:
1. plano de classificao, a ser adotado nos sistemas informatizados de
recuperao e aplicado nas diferentes fases do ciclo vital dos documentos;
2. plano de destinao.
A estratgia para a classificao segue a seguinte ordem:
1 - coleta e sistematizao de dados.
2 - formao de comisso multi profissional de avaliao.
3 - aprovao e divulgao de tabelas de temporalidade.
4 - institucionalizao do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual de Maring.
(a partir do segundo ano)
A incorporao de determinadas prticas e a existncia de instrumentos
formais de gesto de documentos sinalizaro o exerccio de uma verdadeira poltica
de arquivos, coerente com o objetivo traado.
A estratgia para a destinao do acervo poder ser no sentido da:
1 - criao de arquivos centrais (como rgos setoriais do Sistema de Arquivos) nas
unidades que cumpriam as diversas etapas do processo.
2 - valorizao do profissional de arquivos no Plano de Carreira.
No cronograma fsico, os perodos referem-se realizao da atividade por
setor. Por exemplo: rgos Centrais de Direo e Servios, Ensino e Pesquisa, etc. A
definio do quadro da aplicao dos cursos segundo o setor ficar definido nos dois
primeiros meses de atividade do projeto e poder ocorrer em at trs turnos de curso.
BOTTINO, Mariza. Os arquivos universitrios no Brasil. Estudos & Pesquisas. A
informao: questes e problemas. Niteri: Ed. Universidade Federal Fluminense.
1995. p. 61-67.
___. Reflexes sobre a realidade arquivstica no contexto universitrio. CONGRESSO
BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 10, 1994, So Paulo. Anais do 10 Congresso
Brasileiro de Arquivologia: rumos e consolidao da arquivologia. So Paulo:
Associao dos Arquivistas Brasileiros Ncleo Regional de So Paulo, 1998. (CD-
ROM).
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. coord. Diagnstico dos Arquivos da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. So Paulo:
Centro de Apoio Pesquisa em Histria "Sergio Buarque de Holanda" CAPH/
Departamento de Histria FFLCH USP. 1996.
CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 10, 1994, So Paulo. Anais do 10
Congresso Brasileiro de Arquivologia: rumos e consolidao da arquivologia. So
Paulo: Associao dos Arquivistas Brasileiros Ncleo Regional de So Paulo, 1998.
(CD-ROM).
DEPARTAMENTO ESTADUAL DE ARQUIVO PBLICO. Manual de gesto de
documentos do Estado do Paran. 2. ed. Curitiba: O Arquivo, 1998.
DICIONRIO DE TERMINOLOGIA ARQUIVSTICA. Coordenao Ana Maria de
Almeida Camargo, Helosa Liberalli Bellotto; colaborao Aparecida Sales Linares
Botani et al. So Paulo: Associao dos Arquivistas Brasileiros Ncleo Regional de
So Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1996.
INOJ OSA, Rose Marie. Qualidade da informao e da documentao na universidade.
CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 10, 1994, So Paulo. Anais do
10 Congresso Brasileiro de Arquivologia: rumos e consolidao da arquivologia. So
Paulo: Associao dos Arquivistas Brasileiros Ncleo Regional de So Paulo, 1998.
(CD-ROM).
SISTEMA DE ARQUIVOS USP - SAUSP. Tabelas de temporalidade dos documentos da
Universidade de So Paulo. Manual de aplicao. Outubro 1997.
SISTEMA DE ARQUIVOS USP - SAUSP. Portaria GR n 3083/97. Anexo II. Outubro
1997.
SISTEMA DE ARQUIVOS USP - SAUSP. Portaria GR n 3083/97. Anexo III. Outubro
1997.
PESQUISAS ARQUEOLGICAS NA REGIO NOROESTE DO PARAN, ENTRE
OS RIOS PARANAPANEMA E IVA
1
Francisco Silva Noelli
; Joo
B. da Silva
Aproximadamente 2.500 anos atrs (A.P.), agrupamentos maiores de 300
pessoas passaram a ocupar a rea dos atuais municpios de Diamante do Norte,
Marilena, Nova Londrina, Porto Rico, So Pedro do Paran, Querncia do Norte e
Santa Cruz do Monte Castelo, noroeste do estado do Paran (Figura 1).
Figura 1: Localizao da rea da pesquisa
Tratava-se de uma das frentes da ampla expanso dos povos falantes da
lngua Guarani, que vinha ocupando sistematicamente o territrio do Mato Grosso do
Sul e dos canais dos rios Paraguai e Paran, a partir da bacia dos rios Madeira e
Guapor, em Rondnia. Esses agrupamentos possuam uma matriz cultural em
comum, que assegurava a reproduo e a manuteno de uma estrutura similar em
termos lingsticos, scio-econmicos, polticos, religiosos e materiais. Os elementos
derivados dessa matriz cultural tambm foram notados, com maior ou menor grau de
diferenciao, em outras partes do Brasil, entre as populaes genericamente
conhecidas pelo rtulo Tupi, englobando cerca de 41 lnguas distintas
2
. A unidade
bsica dos agrupamentos Guarani era definida como tekoh, o territrio onde
instalavam a aldeia, as reas de roa, pesca, caa e coleta, bem como, nas palavras
de Meli
3
, continha a inter-relao entre os espaos culturais, econmicos, sociais,
religiosos e polticos. O tekoh era autnomo em termos poltico-sociais, com uma
organizao do tipo kindred, composta por famlias extensas reunidas em torno de
uma liderana poltica e/ou religiosa, definida por laos polticos. O fator de agregao
dos grupos Guarani era a o prestgio de uma pessoa que reunia as qualidades de
0
10
20
30
50
60 70
30
20
70
60
50
MS
SP
PR
MS
SP
Capricrnio
de
PR
Trpico
Equador
BRASIL
PARAGUAI
PARAGUAI
50
0
20
10
50
liderana, de articulao poltica, de organizar trabalhos coletivos, de bom orador, de
bom guerreiro, assim como de bom agricultor, caador/pescador e de provedor de
grandes festas. Eventualmente poderia ser uma pessoa eleita por seus atributos
genealgicos, por herdar as caractersticas prestigiosas mencionadas. Os tekoh
formavam redes de alianas regionais, em agrupamentos unificados em torno de uma
personagem superlativa das qualidades arroladas acima. As alianas propiciavam a
circulao de pessoas, atravs de casamentos inter-aldeos, como meio de firmar as
alianas polticas. Essas alianas continham graus distintos de etnicidade, que
distinguiam scio-politicamente os grupos, em que pese o referido conjunto de
aspectos comuns da mesma matriz cultural. Cada tekoh era autnomo em termos de
subsistncia, principalmente atravs da agricultura de coivara, baseada no plantio de
uma larga lista de plantas, muitas com vrios cultivares. Os Guarani cultivavam em
suas roas a mdia de 39 gneros vegetais, subdivididos em pelo menos 159
cultivares
4
.
Alm das alianas polticas, existiam redes de comrcio entre os tekoh, nas
quais circulavam desde matrias-primas at bens manufaturados, alimentos e outros
itens materiais. O intercmbio assegurava contnua troca de informaes e
conhecimentos, contribuindo para a reproduo de vrios aspectos culturais e
garantindo a perpetuao do ande reko - o modo de ser Guarani. Em linguagem
antropolgica, era a manuteno do ethos, que, nas palavras de Geertz
5
, significa o
tom, o carter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e esttico e sua disposio,
a atitude subjacente em relao a ele mesmo... A viso de mundo que esse povo
tem o quadro que elabora das coisas como elas so na simples realidade, seu
conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade. O ande reko foi observado desde
o perodo colonial at o presente e a sua manifestao material pode ser encontrada
nos registros arqueolgicos, atravs de uma srie de objetos e contextos diagnsticos,
caracterizados pela uniformidade morfolgica e por indicadores constantes de padres
funcionais que indicam a reproduo de uma srie de atividades scio-
econmicas.Essa uniformidade material, cuja explicao desafia os paradigmas da
noo antropolgica de mudana, era garantida pelas caractersticas apresentadas
acima, graas a continuidade dos intercmbios locais e regionais, assim como pela
manuteno do ande reko. Nas fronteiras estabilizadas, a convivncia com
populaes no-Guarani pode ter sido elemento influenciador de mudanas, atravs
de trocas simblicas e materiais, alcanando inclusive trocas matrimoniais para formar
alianas polticas ou comerciais.
O processo de ocupao do espao ocorria com o desdobramento dos tekoh,
tanto por crescimento demogrfico quanto por fisses sociais devidas a causas
polticas, atravs da emergncia de novas lideranas. Eventualmente ocorria
mudanas territoriais devidas catstrofes naturais ou por derrotas em guerras.
importante considerar que o desdobramento no resultava no abandono do antigo
assentamento, mas apenas na formao de uma nova aldeia na periferia do tekoh
mater, em uma rea previamente preparada com a instalao de roas ou com a
reativao de antigas reas de cultivo que estivessem em pousio. Esse processo
garantia uma contnua expanso territorial, embalada pelo ritmo do crescimento
demogrfico e das fisses sociais atravs da ocupao de novas reas a cada
gerao. Conforme registros coloniais de 1590, ao redor de Vila Rica do Esprito Santo
(municpio de Fnix), existiam aldeias com at 1.600 Guarani e densidades mdias de
550 pessoas por aldeia
6
. A complexidade da organizao social Guarani, associada
poligamia e escravizao, garantia alta taxa de crescimento demogrfico e a
existncia de uma conduta expansionista. Alm dos impactos sociais e polticos, esse
crescimento causava alteraes ambientais, uma vez que na formao de cada tekoh
os Guarani inseriam um pacote de plantas teis, em roas que podiam ter mais de 100
hectares. Cada famlia extensa manejava vrias roas simultaneamente, de diferentes
idades e com finalidades distintas, pois quanto mais antiga a roa, mudavam as
plantas cultivadas. As mais novas eram destinadas s plantas alimentcias de rpido
crescimento (mandioca, milho, batata, amendoim, car, feijo etc.), enquanto que as
mais velhas eram destinadas ao cultivo de plantas medicinais, frutferas e outras
espcies alimentares que vegetam por longo tempo (como certas variedades de
feijes e de tubrculos). Espcies produtoras de madeiras e palhas, teis na
confeco da cultura material eram largamente manejadas, sendo inseridas junto com
as espcies alimentcias e medicinais, para serem utilizadas mais tarde, garantindo a
oferta futura de matrias-primas. Muitas dessas plantas foram transportadas ao longo
do processo expansivo para o sul do Brasil e dos pases vizinhos, num amplo
processo de interaes e trocas fitogeogrficas. Ao se expandirem para fora do
sudoeste amaznico e outras reas do leste da Amrica do Sul, os Guarani e outros
povos populaes Tupi contriburam para o aumento da biodiversidade com a
disperso de vrias espcies amaznicas, andinas e caribenhas, como, certamente
levaram, no sentido contrrio, espcies adventcias do Chaco, do Pampa e do sul do
Brasil para a regio amaznica, dentro do sistema de comunicao entre as reas
Guarani.
A pesquisa arqueolgica no noroeste do Paran
O texto acima resume um modelo que vem sendo desenvolvido h dez anos
por um dos autores deste trabalho, a partir de dados arqueolgicos, histricos,
etnogrficos e lingsticos
7
. O teste e a operacionalizao deste modelo depende das
pesquisas arqueolgicas regionais, que mostram como ocorreram os processos de
ocupao e manuteno nas reas do imenso territrio Guarani. O mapeamento de
stios arqueolgicos a base para iniciar a pesquisa sobre a vida cotidiana e tambm
possibilita constatar padres de continuidade ou de mudana cultural, atravs de
escavaes arqueolgicas desenvolvidas por um projeto duradouro em nvel local e
regional. Desde 1997 o Laboratrio de Arqueologia, Etnologia e Etno-Histria (LAEE)
Programa Interdisciplinar de Estudos de Populaes, na Universidade Estadual de
Maring (UEM), desenvolve pesquisas no noroeste do Paran e iniciou um programa
de formao de novos arquelogos. Atravs do LAEE elaboramos um programa de
pesquisa arqueolgica regional nos municpios mencionados acima, por ocasio dos
estudos preliminares para a formao da rea de Proteo Ambiental Federal do
Noroeste do Paran (APA). Esta rea tambm nos interessa por ser a provvel porta
de entrada dos Guarani no sul do Brasil e por apresentar uma seqncia contnua de
ocupao entre 200 a.C. e 1630 d.C. Isso implica em uma srie de problemas a serem
levantados e investigados, com destaque para o estudo sobre a morfologia, a durao
e a idade dos assentamentos; a formao dos registros arqueolgicos; a tecnologia; o
padro de assentamento; a explorao dos recursos naturais; a relao entre os
assentamentos; as dimenses das alteraes vegetais causadas pelo sistema de
manejo agroflorestal Guarani. O ltimo tema importante, pois, as pesquisas
botnicas em andamento na regio de Porto Rico, desenvolvidas por pesquisadores
associados ao Nuplia - UEM, vm revelando um padro de fitogeogrfico que abre a
perspectiva para a constatao dos antigos manejos realizados pelos Guarani na
regio
8
. Como o levantamento botnico est em curso e a lista de plantas conhecidas
e utilizadas pelos Guarani lacunar, provvel que os Guarani tivessem um
conhecimento de toda (ou quase toda) a flora da rea em questo, a exemplo do que
foi constatado por botnicos em outros povos da mesma tradio cultural dos
Guarani
9
. Com base nos estudos quaternrios desenvolvidos por gelogos
10
da UEM,
o incio da ocupao Guarani coincide com as mudanas climticas e fitogeogrficas
que ocorriam no noroeste paranaense. Os Guarani estariam entrando na regio nos
ltimos sculos de um perodo de aridez que perdurou cerca de 3.000 anos, entre
3.500 a.C. - 500 d.C. A aridez teria contribudo para a formao de reas de cerrado,
com predomnio de campos e capes de espcies arbustivas, com a retrao do
tamanho das reas florestais. O aumento da umidade a partir de 500 a.C. causou uma
inverso na fisionomia vegetal, contribuindo para aumentar as reas de floresta e
tornando o ambiente favorvel ocupao Guarani, que instalavam suas aldeias e
roas no interior da floresta. Este processo de ocupao tambm foi verificado em
reas prximas, no trecho a montante da hidreltrica de Porto Primavera, no mdio
Paranapanema e no rio Paran
11
.
Resultados preliminares da pesquisa arqueolgica
Os primeiros resultados so promissores, considerando que a pesquisa iniciou
em abril de 2000. J percorremos a p, para mapear ocorrncias arqueolgicas de
superfcie (OAS), beira do rio Paran, uma extenso de 120 km de comprimento por
3 km de largura, desde a represa de Rosana, em Diamante do Norte, at a foz do rio
Iva, em Querncia do Norte, bem como a maior parte do litoral do municpio de Santa
Cruz do Monte Castelo (Figura 2). No futuro examinaremos as microbacias e reas
potenciais para a instalao dos assentamentos mais afastados do rio Paran,
considerando o relevo, abastecimento de gua, tipos de solos e outros elementos da
natureza (a meta percorrer toda superfcie dos sete municpios). Essa estratgia de
caminhamentos sistemticos, planejados em funo das cartas geogrficas, fotos
areas e imagens de satlite, o meio mais preciso para localizar os stios
arqueolgicos, prescindindo de informaes de terceiros (estas foram procuradas para
valorizar o saber local e para estreitar relaes com os moradores e autoridades
municipais da APA; tambm recebemos informaes de pesquisadores da UEM).
Localizamos 68 ocorrncias, totalizando um nmero mnimo de 28 e um mximo de 33
stios arqueolgicos, caso algumas OAS sejam mais de um stio (Tabela 2). A figura 2
mostra a rea de pesquisa e a localizao das OAS. Tambm consideramos as
descobertas de outros pesquisadores que estiveram na rea, nos anos 60 e 80
12
. Eles
localizaram cerca de 11 ocorrncias, mas, contudo, no desenvolveram nenhum tipo
de pesquisa alm da localizao e do estabelecimento da filiao cultural. Como no
realizamos nenhum tipo de escavao ou coleta de superfcie, pois limitamo-nos
apenas ao mapeamento e registro das OAS, h alguns casos que podero
corresponder a mais de um stio arqueolgico. Essas ocorrncias representam antigas
aldeias Guarani, suas casas e reas de mltiplas atividades, como a cozinha, oficinas
e depsitos, reas de lazer e de rituais. Ainda temos poucas informaes sobre o
tamanho real dos stios arqueolgicos, mas alguns revelaram dimenses maiores que
1,5 km de comprimento, como um que est parcialmente soterrado/destrudo pelo
ncleo urbano de Porto Rico (Figura 2). A maioria ainda depende da continuidade das
pesquisas para definir efetivamente suas dimenses. Isto depende das futuras
escavaes e de um processo lento de pesquisas (leva-se em mdia 8 horas para a
escavao arqueolgica de 1 metro quadrado com 8 cm de espessura). As evidncias
encontradas possuem o mesmo padro dos registros arqueolgicos localizados no
Brasil meridional, apresentando concentraes de fragmentos cermicos e lticos de
superfcie com dimenses variando entre 25 e 1.000 m
2
, relativos aos pisos das casas
e das reas de atividade. As OAS possuem forma elipsoidal, com o eixo maior paralelo
ao leito do Paran.
Concluso
Encerramos a primeira etapa de um projeto de longa durao, concluindo o
reconhecimento arqueolgico inicial da APA Federal do Noroeste do Paran. De certa
forma, encontramos o que procurvamos, na quantidade esperada. A seguir, na
segunda etapa, comearemos a refinar nossas informaes com o aprofundamento
das pesquisas de campo, por meio de estudos estratigrficos e contextuais de cada
unidade, visando definir como eram as aldeias, quando e como os Guarani ocuparam
a regio. Tambm esperamos encontrar no registro arqueolgico uma srie de
evidncias que revelem aspectos de sua vida social e econmica. Nas fontes escritas
procuraremos elementos que nos ajudem a compreender aspectos estruturais de sua
organizao social e poltica, bem como diversos temas de interesse para a Histria
da ocupao e da desocupao Guarani no noroeste paranaense.
Tabela 2: Lista de stios e ocorrncias arqueolgicas localizadas na APA
Municpio Nome do
Stio
Cdigo
do Stio
Fonte Categori
a
Altitu
de
(m)
gua
+
prxi
ma
Comparti
mento
topogrfic
o
Diamante do Norte Diamante do
Norte
PR - NL
08
CNSA
25369
Ltico 250 40 Encosta
Diamante do Norte Pesqueiro
Bar. Rosana
PR - NL
07
CNSA
25368
Guarani 252 30 Encosta
Diamante do Norte Tigre 1 PR NL
09
LAEE Guarani 265 3 Encosta
Diamante do Norte Paranapane
ma 1
PR NL
10
LAEE Guarani 258 1 Encosta
Diamante do Norte PR NL
11
LAEE Guarani 262 200 Topo
Diamante do Norte Maracan 1 PR NL
12
LAEE Ltico 255 2 Encosta
Marilena Paranapane
ma 4
PR ML
01
LAEE Ltico 237 10 Terrao
Marilena Paranapane
ma 5
PR ML
02
LAEE Ltico 244 31 Terrao
Marilena Paranapane
ma 6
PR ML
03
LAEE Ltico 243 28 Terrao
Marilena Paranapane
ma 7
PR ML
04
LAEE Ltico 278 21 Terrao
Nova Londrina PR NL
13
LAEE Guarani 262
Porto Rico Caracu 2 PR PP
05
LAEE Guarani 287 5 Encosta
Porto Rico Paran 3 PR PP
06
LAEE Guarani 332 9 Encosta
Porto Rico gua Dois 1 PR PP
07
LAEE Guarani 267 15 Encosta
Porto Rico gua Dois 2 PR PP
08
LAEE Guarani 281 39 Encosta
Querncia do Norte Porto Braslio PR QN
04
Blasi
1961-
LAEE
Guarani 258 100 Encosta
Querncia do Norte Paran 4 PR QN
01
LAEE Guarani 300 100 Encosta
Querncia do Norte Patro 2 PR QN
02
LAEE Guarani 253 62 Terrao
Querncia do Norte Patro 1 PR QN
03
LAEE Guarani 289 52 Encosta
Querncia do Norte Porto
Pinheirinho
PR QN
05
LAEE Guarani 274 20 Encosta
Querncia do Norte Porto 18 PR QN
06
LAEE Ltico 274 47 Encosta
Querncia do Norte Porto Natal PR QN
07
LAEE Guarani 267 15 Topo
Querncia do Norte Bom Fim PR QN
08
LAEE Ltico 236 23 Encosta
S. Pedro do Fazenda So PR - NL CNSA Guarani 270 150 Encosta
Paran Pedro 01 26116
S. Pedro do
Paran
Stio das
Lanchas 1
PR - NL
02
CNSA
26117
Ltico 257 2 Encosta
S. Pedro do
Paran
Stio das
Lanchas 2
PR - NL
03
CNSA
26118
Guarani 270 20 Encosta
S. Pedro do
Paran
Arara
Vermelha
PR - NL
04
CNSA
26119
Ltico 260 2 Encosta
S. Pedro do
Paran
Arara
Vermelha 2
PR - NL
05
CNSA
26120
Ltico 254 2 Encosta
S. Pedro do
Paran
Stio das
Lanchas 3
PR - NL
06
CNSA
26121
Neobrasil
eira
260 30 Encosta
S. Pedro do
Paran
Paran 1 PR PP
01
LAEE Guarani 256 150 Encosta
S. Pedro do
Paran
Paran 2 PR PP
02
LAEE Ltico 262 9 Encosta
S. Pedro do
Paran
So Pedro 1 PR PP -
03
LAEE Guarani 250 50 Encosta
S. Pedro do
Paran
Caracu 1 PR PP -
04
LAEE Guarani 264 15 Encosta
S. Cruz do Monte
Castelo
Prata 1 PR MC
01
LAEE Guarani 233 5 Encosta
S. Cruz do Monte
Castelo
Prata 2 PR MC
02
LAEE Guarani 284 25 Encosta
S. Cruz do Monte
Castelo
Iva 1 PR MC
03
LAEE Ltico 272 80 Terrao
S. Cruz do Monte
Castelo
Iva 2 PR MC
04
LAEE Ltico 233 30 Terrao
Diamante do Norte
Marilena
Nova Londrina
So Pedro do Paran
Porto Rico
Pt. S. Jos
Loanda
Querncia do Norte
ZONEAMENTO ECOLGICO-ECONMICO (ZEE)
DA APA DAS ILHAS E VRZEAS DO RIO PARAN
LEVANTAMENTO
DE CAMPO
ARQUEOLOGIA
LEGENDA
S TI OS E OCORRNCI AS
ARQUEOLGI CAS
Muni c pi os
Lagos e l agoas
Ri os, cr r egos e r i bei r es
1:130.000
BASE CARTOGRFI CA:
I BGE FOLHAS SF- 22- Y- A- I V a VI ; SF- 22- Y- C- I a I I I
EXRCI TO MI - 2694 a 2696
I magemTM- Landsat bandas 5, 4, 7 emR, G, B
Conf eco: Eng. Agr . Dr . Mar cos Raf ael Nanni
Pr of . MS. Fr anci sco Si l va Noel l i
ESCALA GRFI CA
0 5 10 15 20 Km
PRNL10
PRNL13
PRNL09
PRNL11
PRML1
PRML2
PRML3
PRML4
PRPP1
PRPP3
PRPP2
PRPP4
PRPP5
PRPP6
PRPP7
PRPP8
PRQN8
PRQN9
PRQN10
PRQN11
PRQN12
PRQN013
PRMC01
PRMC03
PRMC02
PRNL2
PRNL3
PRNL6
PRNL4
PRNL5
PRQN6
Figura 2: Stios arqueolgicos da APA federal das ilhas e vrzeas do Rio Paran.
1
Este projeto foi financiado pelo Consrcio Municipal da APA Federal do Noroeste do Paran, em convnio
com a Universidade Estadual de Maring (Processo 524-00/Zoneamento Ecolgico/Econmico da APA
Federal das ilhas e das vrzeas do rio Paran). Agradecimento: Aos professores da UEM, Issa C. J abur;
Srgio L. Thomaz; J os C. Stevaux; Edvar E. Sousa F; Margarida P. Fachini; Maria Conceio de Sousa. A
Iriana Tanaka. A responsabilidade pelo contedo, evidentemente, restringe-se exclusivamente aos autores
dessa publicao.
; Carlos
Panek J r.*; Eurides R. Oliveira*; Ana P. Simo*; Eder Novak*, Washington C. Castilho*
Introduo
A regio noroeste do Estado do Paran possui imenso potencial arqueolgico,
segundo informao das fontes coloniais
2
e de vrios projetos de levantamento j
realizados
3
. As evidncias humanas mais antigas conhecidas at agora so datadas em
oito mil anos antes do presente (A.P.)
4
. Elas esto vinculadas a um amplo horizonte
cultural relacionado Tradio Umbu, que perdurou at cerca de dois mil anos (A.P),
quando a regio comeou a ser ocupada por populaes Guarani provenientes das
bacias dos rios Paraguai e Paran
5
. Os Guarani do Guair, antiga denominao colonial
da regio, conforme as projees de Meli
6
, poderiam alcanar at um milho de pessoas
no incio do sculo XVII, aproximadamente da populao atual
7
.
Pesquisando sobre a ocupao pr-histrica do noroeste paranaense, desde
1996, realizamos trabalhos de reconhecimento limitados ao registro de ocorrncias de
superfcie, sem qualquer forma de interveno arqueolgica. O noroeste do Paran foi at
o momento nossa rea de pesquisa permanente, onde vamos desenvolver atividades de
arqueologia cientfica e pblica de longa durao em nvel regional
8
. Temos realizado
levantamentos sistemticos no rio Tibagi, municpios de Londrina, Tamarana e So
J ernimo da Serra (1996-1997); rio Paran, municpios de Guara, Altnia, Vila Alta
(1996-1999); na APA Federal do Noroeste do Paran (2000)
9
, municpios de Santa Cruz
do Monte Castelo, Querncia do Norte, Porto Rico, So Pedro do Paran, Marilena, Nova
Londrina e Diamante do Norte (2000); na bacia do Pirap nos municpios de Lobato,
Colorado, Cruzeiro do Sul, Uniflor, Paranacity, Atalaia e Flrida; alm de registrar stios
arqueolgicos isolados em outros municpios atendendo notificaes feitas Universidade
Estadual de Maring. Tambm realizamos um trabalho de conscientizao sobre a
necessidade de preservar os stios e evidncias materiais e disseminao de
conhecimento arqueolgico junto s populaes das Vilas Rurais do vale do rio Iva.
Dessa forma j localizamos um total de cento e oitenta (180) stios, alm de vrias
ocorrncias isoladas.
A pesquisa arqueolgica no vale do Pirap.
Esta nota de pesquisa divulga os resultados de campo obtidos no baixo/mdio vale
do rio Pirap, entre julho e dezembro de 2000. a primeira de duas etapas de
reconhecimento arqueolgico de todo o municpio de Lobato. O municpio foi dividido em
faixas de survey: 1) permetro do municpio; 2) interior do municpio. Investigamos todo o
permetro, numa faixa mdia de 1 km de largura, subdividida em linhas para orientar
caminhamentos sistemticos. Tambm percorremos trechos fora do permetro de Lobato,
ao longo dos rios Pirap e Bandeirantes, nos municpios de Colorado, Paranacity,
Cruzeiro do Sul, Uniflor, Atalaia e Flrida. Percorremos pores do interior de Lobato,
subindo alguns cursos dgua at as nascentes. As demais equipes do convnio
Prefeitura de LobatoITCA/UEM fizeram os inventrios geolgicos, pedolgicos, hdricos,
botnicos e zoolgicos, que sero incorporados e analisados na continuidade da pesquisa
arqueolgica. Como no realizamos nenhuma modalidade de escavao ou de coleta de
evidncias, ainda no dispomos de dados que permitam especificar a rea efetiva e a
estratigrafia dos stios localizados. A realizao destas e de outras atividades
arqueolgicas iniciaro em 2004, aps obtermos autorizao do IPHAN e dispormos dos
recursos, previstos pelo ITCA/UEM. Localizamos quarenta e quatro (44) stios e trs
ocorrncias cermicas isoladas (figura 1) na rea pesquisada rios Pirap, Bandeirantes
e afluentes no municpio de Lobato. A observao in situ permitiu classificar as evidncias
cermicas como pertencentes s populaes Guarani, enquanto que os stios que
apresentaram apenas evidncias lticas no foram classificados, fato que ocorrer na
continuidade das pesquisas. As evidncias cermicas esto em trinta e nove (39) stios e
trs ocorrncias isoladas, enquanto que os stios apenas com evidncias lticas somam
cinco unidades. Levantamos as referncias mais elementares para identificar os stios,
identificando apenas o municpio, a localidade, a altitude, a distncia da gua mais
prxima e o compartimento topogrfico, bem como batizamos os stios com nomes e
cdigos (tabela 1). A maioria dos stios apresentou mais de quinhentos fragmentos por
concentrao, sendo que alguns possuem vrias concentraes e milhares de fragmentos
sobre a superfcie dos terrenos perturbados superficialmente pelo plantio de cana de
acar.
Concluses
O levantamento arqueolgico realizado numa pequena extenso da bacia do
Pirap, de aproximadamente trinta quilmetros, demonstra a presena de populaes
humanas na rea, tanto das filiadas Tradio Umbu, como as populaes Guarani. As
evidncias da cermica Guarani foram encontradas nas duas margens dos rios Pirap e
Bandeirantes, bem como em alguns de seus afluentes menores como os ribeires
Colorado, Potiguara e Sarandi, apontando para existncia de assentamentos Guarani no
somente nos rios maiores como tambm nos pequenos ribeires prximos dos
interflvios. Em alguns stios, como o localizado ao lado do Salto do Pirap, apesar de
no termos feito medies detalhas sobre sua extenso, as evidncias mostram a
ocupao de uma grande rea, apontando para a existncia de um grande Tekoh
Guarani no local, com destaque para a ocupao de locais prximos a saltos e
corredeiras. Os estudos tambm apontam para um complexo sistema de ocupao com
grandes assentamentos, como o do Salto Pirap, ligados a uma rede de pequenas
ocupaes e locais de roas permanentes e sazonais bem como locais de coletas. Por
fim, a pesquisa arqueolgica realizada nesse pequeno trecho do rio Pirap, junto com os
resultados de estudos realizados em outras reas, confirmam as fontes dos sculos XVI e
XVII, que mostram uma densa ocupao das populaes Guarani da antiga provncia do
Guair, como eram conhecidos os territrios envolvidos pelos vales dos rios Paran,
Paranapanema, Pirap Tibagi.
Tabela 1: Stios e ocorrncias arqueolgicas
Municpio Nome do Stio Cdigo CategoriaCoordenadas UTMAltitude (m)
gua +
prxima(m)
Compartimento
Topogrfico
Colorado
Bandeirantes
1
PR
BD
01 Guarani
7461219 405897 344
50 Encosta
Colorado Bandeirantes
3
PR
BD
03
Ltico
30 Encosta
Colorado
Bandeirantes
8
PR
BD
08 Guarani
7462401 403330 361
10 Encosta
Cruzeiro
do Sul Pirap 15
PR -
CZ
01 Guarani
7461089 391620 346
18 Encosta
Cruzeiro
do Sul Pirap 17
PR -
CZ
02 Guarani
7460779 393435 342
12 Encosta
Cruzeiro
do Sul
Pirap 18 PR -
CZ
Ltico 7459298 393151 354
2 Encosta
03
Cruzeiro
do Sul
Pirap 23 PR -
CZ
04
Ltico 7458774 393718 351
10 Terrao
Cruzeiro
do Sul
Pirap 24 PR -
CZ
06
OCI
10
7457955 393744 357
35 Encosta
Cruzeiro
do Sul
Pirap 25 PR -
CZ -
07
OCI 7457588 394422 368
30 Encosta
Cruzeiro
do Sul
Pirap 27 PR -
CZ -
05
Ltico 7455040 394782 333
25 Encosta
Lobato Ara 1
PR -
LB -
22 Guarani
7460953 404998 356
12 Encosta
Lobato
Bandeirantes
2
PR -
LB -
01 Guarani
7462012 404331 345
42 Encosta
Lobato
Bandeirantes
4
PR -
LB -
02 Guarani
7462810 402496 362
20 Encosta
Lobato
Bandeirantes
5
PR -
LB -
05 Guarani
7466701 396237 334
18 Encosta
Lobato
Bandeirantes
6
PR -
LB -
19 Guarani
18 Encosta
Lobato
Bandeirantes
7
PR -
LB -
20 Guarani
7462351 403884 368
15 Encosta
Lobato Colorado 1
PR -
LB -
23 Guarani
7448675 401970 366
15 Encosta
Lobato Pirap 12
PR -
LB -
09 Guarani
7464868 390286 351
32 Encosta
Lobato Pirap 13
PR -
LB -
10 Guarani
7465329 389991 347
20 Encosta
Lobato Pirap 14
PR -
LB -
11 Guarani
7465475 389709 356
30 Encosta
Lobato Pirap 19
PR -
LB -
12 Guarani
7469450 390353 346
18 Encosta
Lobato Pirap 20
PR -
LB -
13 Guarani
7459721 394306 342
15 Encosta
Lobato Pirap 21 PR - Guarani 7458203 393822 351 15 Topo
LB -
14
Lobato Pirap 22
PR -
LB -
15 Guarani
7458280 394329 350
15 Topo
Lobato Pirap 28
PR -
LB -
16 Guarani
7455344 394972 376
18 Topo
Lobato Pirap 29 PR -
LB -
25
OCI 7454574 394768 373
2 Encosta
Lobato Pirap 3
PR -
LB -
07 Guarani
7461376 391521 338
32 Encosta
Lobato Pirap 30
PR -
LB -
17 Guarani
7453119 393832 373
12 Encosta
Lobato Pirap 32
PR -
LB -
18 Guarani
7468471 388888 337
30 Encosta
Lobato Pirap 35
PR -
LB -
06 Guarani
7459669 393726 326
15 Encosta
Lobato Pirap 36 PR -
LB -
24
Ltico 7461474 392432 341
35 Encosta
Lobato Pirap 4
PR -
LB -
08 Guarani
7462144 391402 328
33 Encosta
Lobato Potiguara 1
PR -
LB -
21 Guarani
7458662 394870 362
30 Encosta
Lobato Sarandi 1
PR -
LB -
03 Guarani
7464943 397881 338
5 Topo
Lobato Sarandi 2
PR -
LB -
04 Guarani
7465307 396631 351
10 Encosta
Paranacity Pirap 10
PR -
PT -
06 Guarani
7467269 387650 327
20 Encosta
Paranacity Pirap 11
PR -
PT -
07 Guarani
7467895 388211 348
18 Encosta
Paranacity Pirap 16
PR -
PT -
12 Guarani
7461449 391431 350
15 Encosta
Paranacity Pirap 31
PR -
PT -
08 Guarani
7452894 395430 361
22 Encosta
Paranacity Pirap 33
PR -
PT -
09 Guarani
7468708 389128 350
30 Encosta
Paranacity Pirap 34
PR -
PT -
10 Guarani
7468414 389660 344
20 Encosta
Paranacity Pirap 5
PR -
PT -
01 Guarani
7461853 391469 327
20 Encosta
Paranacity Pirap 6
PR -
PT -
02 Guarani
7462206 391322 329
18 Encosta
Paranacity Pirap 7
PR -
PT -
03 Guarani
7462294 390796 352
15 Encosta
Paranacity Pirap 8
PR -
PT -
04 Guarani
7463296 390216 358
200 Encosta
Paranacity Pirap 9
PR
PT -
05 Guarani
7465551 388609 348
33 Encosta
Uniflor Pirap 26
PR
UN -
01 Guarani
7452762 395422 367
40 Encosta
Rios, crregos e ribeires
Arqueolgicos Stios
ARTICULAO DA FOLHA
ESCALA 1:150.000
STIOS ARQUEOLGICOS
MUNICPIO DE LOBATO
Execuo: Marcos Rafael Nanni - Francisco Silva Noelli
Universidade Estadual de Maring - 2002
Laboratrio de Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto
Laboratrio de Arqueologia, Etnologia e Etno-Histria
1250 0 1250 2500 3750 5000m
m
1
Convnio Prefeitura de Lobato e Universidade Estadual de Maring, financiado pelo Fundo Nacional do
Meio Ambiente (Projeto 012/2000 CPC, Processo Plano de Manejo das RPPN de Lobato).
T
1. Introduo
As anlises sobre o desenvolvimento regional no Brasil passaram a enfatizar
que este se deu, a partir dos anos trinta do sculo passado, de modo integrado. Ou
seja, a expanso do capitalismo no Brasil, mais especificamente a partir de So Paulo,
proporcionou a homogeneizao na estrutura produtiva e integrou os espaos
regionais em uma mesma matriz produtiva em escala nacional. Inicialmente esta nova
rearticulao dos espaos regionais foi impulsionada pela integrao comercial,
momento em que ainda havia maior espao de articulao das indstrias locais, em
razo da existncia de certo protecionismo dos mercados regionalizados
1
e,
posteriormente, pela unificao do mercado nacional, perodo em que a indstria do
Sudeste passou a colocar seus produtos em escala nacional, o que implicou maior
competio com as indstrias locais at ento protegidas em decorrncia das
dificuldades de transporte, de certas tarifas que ainda existiam entre os Estados.
Enfim, pelo isolamento relativo que se manifestava por essa poca. Em um momento
seguinte, teve incio as transferncias de capital produtivo em busca de novas
oportunidades de investimento, principalmente no Nordeste, e do aproveitamento dos
incentivos proporcionados pela poltica de desenvolvimento regional. Conferindo,
desse modo, economia brasileira o carter de economia integrada, porm com
grandes disparidades regionais
2
.
medida que a industrializao brasileira passava a concentrar-se fortemente
no Sudeste e, sobretudo em So Paulo, as demais regies passavam a se articular
com o centro dinmico e a adequarem sua estrutura produtiva em conformidade
dinmica imprimida pelo desenvolvimento capitalista desta regio. Em outros termos,
passavam a desenvolver-se como economias complementares economia que se
desenvolvia no Sudeste do pas.
Nesse nterim, ganhou fora no cenrio nacional o questionamento das
possibilidades de haver desenvolvimento nas demais regies do pas, principalmente a
partir da perspectiva de um desenvolvimento regional autnomo ou com determinado
grau de liberdade, visto que para alguns autores, a economia paulista imprimiria um
tipo de diviso do trabalho no espao nacional semelhana da clssica diviso
internacional do trabalho
3
. Isto , bloquearia o desenvolvimento das foras produtivas
regionais.
4
Apesar das descrenas em relao ao desenvolvimento das demais regies do
Pas, muitas delas apresentaram crescimento econmico, inclusive diversificando sua
estrutura produtiva. Em particular chama a ateno o desempenho apresentado pela
economia do Paran a partir da dcada de trinta do sculo passado, quando um
fenmeno extraordinrio de expanso e diversificao econmica ocorreu em
decorrncia da expanso capitalista a partir do centro dinmico da economia nacional.
2. Desenvolvimento regional e a economia paranaense: antecedentes histricos
A economia paranaense voltou a ganhar importncia no cenrio nacional a
partir da expanso cafeeira no territrio do estado, mais precisamente a partir da
dcada de trinta do sculo XX. O avano da atividade cafeeira no significou apenas a
introduo de uma nova atividade econmica nos limites territoriais do estado, em um
contexto de poucas perspectivas para suas tradicionais economias do mate e da
madeira. Mais que isto, representou o incio de uma nova fase no processo de
desenvolvimento de sua economia.
Esse processo tomou impulso a partir de meados da dcada de 40 do sculo
passado, quando a economia cafeeira se expandiu e transformou o Paran no mais
importante produtor de caf do Brasil, o que provocou taxa de crescimento da
produo agrcola elevadas. Este dinamismo tambm se fez notar sobre o incipiente
setor industrial, que passou a apresentar, a partir dessa dcada, taxas de crescimento
bastante superiores dos demais setores, correspondentes a 7,7% ao ano, contra
uma taxa de 4,9% para a agricultura, contribuindo para alguma diversificao da
economia paranaense no perodo.
Nos anos 60 o setor industrial era fortemente vinculado transformao de
produtos agrcolas, notadamente ao beneficiamento de caf, cereais e afins, que
respondia por quase 80% do valor adicionado do gnero, e da madeira, em que o
segmento desdobramento da madeira contribua com cerca de 90% do valor
adicionado. Em conjunto estes gneros contribuam com bem mais de 60% da renda
gerada pelo setor industrial paranaense. No setor agrcola, a atividade cafeeira se
destacava, uma vez que respondia por 58% do valor da produo agrcola estadual
em 1960.
Em mbito nacional consolidava-se o processo de integrao produtiva do
pas a partir de So Paulo, com fortes reflexos nos demais estados, dada a exposio
do incipiente setor industrial das demais regies e, em particular do Paran,
concorrncia imposta pelos grandes capitais sediados naquele estado. importante
lembrar que isso se consubstanciou na sedimentao de uma nova configurao na
diviso do trabalho no espao nacional, baseada na complementaridade da produo
inter-regional.
Diante dessa perspectiva em mbito nacional, da constatao da importncia
do caf para a economia paranaense e da fragilidade do seu setor industrial ante o
desenvolvimento industrial observado no centro dinmico da economia nacional,
passou-se a questionar as possibilidades de desenvolvimento de novas etapas da
produo capitalista em mbito estadual.
5
Somava-se a isso o fato de que o processo
de expanso do capitalismo no pas no proporcionou uma melhor distribuio de
seus frutos, como se imaginava, mas contribuiu para uma maior concentrao da
renda gerada, tanto entre os setores de atividades econmicas como entre as regies
do pas, inclusive, em termos de distribuio pessoal da renda.
Essas idias ganharam fora entre as dcadas de 60 e 70. Em face disso,
passou-se a questionar o padro de desenvolvimento vigente, uma vez que este
estava reproduzindo no pas uma relao tpica de centro-periferia. Essa configurao
do desenvolvimento regional brasileiro, segundo estes estudos, decorria do fato de
que a economia paulista, tendo-se diversificado, em decorrncia de sua liderana no
processo de industrializao via substituio de importaes, passou a determinar
uma diviso do trabalho no espao nacional semelhana da clssica diviso
internacional do trabalho, onde as demais regies brasileiras gradativamente foram
condicionadas a terem um padro de desenvolvimento voltado para fora.
6
Colaboravam para isso mecanismos de transferncia de renda, tais como: a
poltica cambial, que transferia renda do setor exportador para o centro dinmico; a
relao de preos entre os produtos industrializados e agrcolas; a aplicao dos
excedentes gerados pela economia cafeeira, mas captados pelo sistema bancrio e
aplicados no centro dinmico, entre outros argumentos. Outro aspecto tambm
apontado foi a implantao tardia de infra-estrutura para o desenvolvimento industrial,
em que se podia destacar a grande deficincia na oferta de energia eltrica e de
adequado sistema virio, principalmente no Norte, que se manteve isolado do restante
do estado pelo menos at bem prximo dos anos 60 e, por isso mesmo, grande parte
da renda gerada nesta regio era canalizada para So Paulo, contribuindo fortemente
para o desenvolvimento daquele estado, em detrimento do Paran.
Diante dessas constataes, acreditava-se necessrio e urgente romper com o
atraso paranaense, principalmente porque dentro da diviso do trabalho no espao
nacional este se caracterizava como grande importador de produtos manufaturados
paulistas e vendedor de produtos primrios e alimentos, o que colaborava para
acentuar as desigualdades e o seu maior empobrecimento, pois no se reproduziam
no interior de sua economia os efeitos dinmicos de uma produo tipicamente
capitalista.
A industrializao aparece como o veculo capaz de assegurar ao Paran sua
maior autonomia relativa perante a Unio e ao centro dinmico da economia nacional,
mas tambm como o mecanismo capaz de romper com a condio qual sua
economia fora submetida ao longo do tempo, em face da impossibilidade de fazer os
investimentos necessrios com vistas ao avano das foras produtivas, devido
evaso da renda gerada. Em outros termos, o no-desenvolvimento industrial
paranaense ocorria em razo de fatores externos ao Paran.
A partir dessas idias elaborou-se um projeto paranaense de
desenvolvimento, sob a responsabilidade da CODEPAR, o qual se centrava em trs
objetivos principais: a) a integrao do Estado, ento fracionado no Paran
Tradicional, no Paran cafeeiro-paulista e no Paran do Oeste; b) a integrao vertical
da indstria paranaense, via processo de substituio de importaes, principalmente
de bens de capital e intermedirios e, c) o fortalecimento e a expanso dos pequenos
e mdios capitais locais.
7
Diante destas perspectivas e com vistas a sanar os problemas de evaso da
renda gerada no estado, como tambm a diminuir as diferenas entre o padro de
desenvolvimento de sua economia e o observado no centro dinmico, o governo
paranaense passou a realizar uma poltica voltada para a realizao de infra-estrutura
bsica de transporte rodovirio, produo e transmisso de energia eltrica e
telecomunicaes, dada a crena, na poca, de que a precariedade de sua infra-
estrutura era o principal ponto de estrangulamento que impedia a expanso industrial.
A atuao do Estado, entretanto, no se restringiu criao de infra-estrutura,
mas tambm teve como meta intervir diretamente na promoo do crescimento
industrial, principalmente financiando novos empreendimentos. Entretanto, grande
parte dos esforos foi canalizada para o financiamento da produo de pequenas e
mdias empresas que se instalaram no Paran. Isso porque se procurava reter a
renda gerada no mbito do estado e acreditava-se que, em sendo pequenas, evitava-
se a formao de oligoplios e monoplios, considerados perniciosos ao
desenvolvimento econmico; portanto, que haveria maior competio entre as
empresas e maior grau de eficincia ao sistema produtivo estadual.
Outro aspecto a ser apontado que no se considerou que o processo de
industrializao no pas, em sua etapa de integrao produtiva, se fizera de maneira
oligopolizada e com a predominncia da grande empresa nacional, estatal e
multinacional.
Esse conjunto de fatores, pensando, conforme referido, como reprodutor da
situao perifrica, deixava perspectivas pouco otimistas para o desenvolvimento da
economia estadual. Ao Paran, diante da constatao da impossibilidade de realizar
um desenvolvimento autnomo, restaria apenas desenvolver alguns setores industrias
onde existissem melhores condies naturais, bem como dedicar-se fortemente ao
setor agropecurio, ampliando o seu papel como fornecedor de alimentos para o
centro dinmico da economia nacional, impossibilitado, porm, de fazer avanar o
desenvolvimento capitalista para novas etapas.
8
Apesar do aparente fracasso essas
medidas foram importantes em uma etapa posterior do desenvolvimento da economia
paranaense, principalmente porque o estado passou a contar com uma infra-estrutura
econmica importante para a atrao de investimentos industriais, notadamente a
partir da dcada de setenta quando se teve os estmulos das polticas pblicas de
desenvolvimento regional e se procurou atrair capitais com vistas diversificao do
setor industrial no estado. Assim o projeto inicial, o de um Paran autnomo, foi
abandonado e passou-se a aceitar a tese da complementaridade. A tese da
complementaridade ganhou fora a partir da retomada do crescimento da economia
nacional e, com ela, a possibilidade de uma nova articulao dentro da diviso do
trabalho no espao nacional. Este processo teve fortes reflexos para o
desenvolvimento regional e, em particular, para a economia paranaense, uma vez que
esta passou a contar com os investimentos oriundos da poltica de desenvolvimento
regional, bem como do espraiamento da indstria paulista no perodo. Some-se a
isso, a poltica de atrao de investimentos industriais para o Estado paranaense.
Em outros termos, a expanso capitalista a partir do centro dinmico da
economia nacional, possibilitava novamente maior insero da economia estadual no
mercado nacional e, se de um lado, criava mecanismos de bloqueio para as atividades
industriais baseadas na pequena e mdia empresa, predominantes na economia
paranaense, por outro, criava novos mecanismos de estmulo tanto produo
agrcola quanto industrial, pois atrelada s novas exigncias de acumulao de
capital no pas. Com isso, a to temida unificao do mercado nacional no se
consubstanciou em estagnao econmica como se supunha, mas em expressivas
taxas de crescimento da economia estadual e em elevado grau de diferenciao de
sua estrutura produtiva. Este fato colocou em cheque as anlises que viam na
complementaridade o principal determinante da no diversificao econmica regional.
Nesse particular chamo a ateno para o fato de que isso foi possvel porque a
economia paranaense apresentava condies de aproveitar as brechas criadas pela
expanso capitalista no pas, principalmente porque j contava na poca com certa
infra-estrutura econmica capaz de dar suporte expanso industrial no estado, fruto
dos investimentos estatais da dcada de sessenta, notadamente em termos de
energia, estradas e porto, bem como j se evidenciava uma maior integrao com o
centro dinmico da economia nacional.
digno de nota o fato de que essas mudanas no so mero produto da
dinmica da economia e do livre jogo das foras de mercado. O processo de
crescimento e diversificao da economia paranaense, descrito em largos traos
anteriormente, contou com os estmulos proporcionados pelas polticas de
desenvolvimento regional, tanto daquelas que se referem modernizao da
agricultura quanto das polticas de desenvolvimento regional constantes no segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento, notadamente para os casos de papel e papelo e
qumica, em funo da instalao de uma refinaria da Petrobrs no Paran.
Essas medidas possibilitaram o desenvolvimento de novos segmentos
industriais no estado e contriburam decisivamente para a diversificao do setor
industrial paranaense, criando, em ltima instncia, um ambiente industrial propcio,
que teve grande importncia na dcada de 90, quando do novo ciclo de investimentos
que se direcionaram para a economia brasileira e, notadamente quando o Paran
entrou no processo de barganha para atrair novos investimentos.
Para o Paran, sobretudo, isto implicou no rompimento tardio de uma fase
caracterizada pela predominncia da atividade exportadora agrcola, para uma nova
etapa de seu processo de acumulao de capital centrado na expanso agroindustrial
e, em grande medida, no avano de seu setor industrial, reforando o carter de
economia complementar em relao estrutura industrial do Pas.
Por isso, o panorama da evoluo da economia desenhado neste trabalho
mostra que o Paran pde (ou soube) aproveitar-se tanto do perodo de
desconcentrao da economia nacional quanto do perodo de arrefecimento deste
processo e colheu como resultado um parque industrial de porte respeitvel, com um
razovel grau de integrao local e com forte integrao economia nacional e, o que
mais importante, com um notvel grau de diversificao, fugindo da especializao
qual talvez esteja condenada a imensa maioria dos demais estados da federao.
3. Consideraes finais
O que torna interessante o estudo a respeito da formao econmica do
Paran que sua insero econmica no mercado nacional, desde a produo
cafeeira at a diversificao econmica dos anos noventa, foi fortemente impulsionada
pela dinmica do desenvolvimento da economia nacional. Isto no significa dizer que
as vrias iniciativas adotadas internamente com vistas diferenciao do aparelho
produtivo da economia estadual tenham sido em vo, ao contrrio, elas foram
extremamente importantes, principalmente em dois aspectos: primeiro, em capacitar o
estado quanto atrao de investimentos industriais, notadamente, em razo de sua
infra-estrutura econmica que sendo implantada desde os anos sessenta e, segundo,
na promoo de um ambiente interno industrializante que se formou ao longo do
tempo. Porm, a dinmica do crescimento foi fortemente impulsionada pelos seguintes
principais fatores: pelo avano do capitalismo no campo, que exigiu a modernizao
da produo agropecuria, pelo processo de desconcentrao econmica em mbito
nacional, resultante das polticas de desenvolvimento regional e, pelo espraiamento da
indstria paulista, que se traduziu em novas possibilidades de desenvolvimento
industrial para as regies prximas ao centro dinmico da economia nacional.
A vasta literatura de relatos, produzida por administradores e artistas, militares
e naturalistas, juristas, engenheiros e cientistas, ao longo de e por todo o Imprio
Colonial Portugus, vem chamando a ateno dos historiadores nos ltimos anos
devido s inmeras possibilidades de utilizao deste material textual, tanto como
testemunho histrico propriamente dito, quanto como documento narrativo de valor
literrio. Esta produo textual, ao ser tratada como fonte documental, presta-se para
uma melhor compreenso dos processos econmicos, sociais, polticos e culturais que
apoiaram a expanso europia, em especial a portuguesa, a partir do sculo XVI.
Tomando como fonte e objeto de pesquisa o material textual produzido por
funcionrios, administradores coloniais, militares e intelectuais portugueses, sobre
Moambique ao longo da segunda metade do sculo XVIII, procuro desenvolver uma
anlise voltada percepo da produo de Moambique como territrio/campo em
termos tanto administrativos como discursivos. Para efeito desta comunicao
utilizarei Incio Caetano Xavier, j que este autor combina modalidades discursivas
diversas como notcia, narrao, descrio etnogrfica, relatrio, construindo
itinerrios geogrficos e econmicos recorrendo retrica da exuberncia da terra
versus o histrico da ocupao e colonizao do territrio.
Incio Caetano Xavier foi o primeiro natural de Goa a ocupar um cargo de
proeminncia em Moambique, aps a autonomia desta capitania em relao ao
Estado da ndia em 1752
1
. Era tio materno de Sebastio Xavier, oficial-maior da
Secretaria do Governo do Estado da ndia. Depois dos estudos das primeiras letras foi
para Moambique e Sena, e ahi se applicou a todas faculdades, estreitando relaes
com alguns homens apreciados pela sua instruo, de maneira que tinha voto em
todos os negocios e era bom poeta.
2
Em 1748, voltou ndia onde aps ter exercido
clnica com boa reputao, retornou para Moambique e foi nomeado Secretrio de
Governo em agosto de 1758 para um mandato de trs anos, no concludo
integralmente. Veio a falecer em Moambique na data de 10 de maio de 1761.
A importncia de sua Memria, intitulada Noticias dos dominios portuguezes na
costa da Africa Oriental (1758), foi inicialmente pressentida por dois Secretrios do
Governo Provincial moambicano Francisco da Costa Mendes em 1849, e J oaquim
J os Lapa em 1882, quando utilizando-se praticamente dos mesmos termos,
lamentam a perda dos escritos do 1 Secretrio de Moambique. Segundo Costa
Mendes:
Tanto estas cartas e planos como a histria desta parte de frica,
extrahida, pelo referido Secretrio (Xavier), da livraria dos Padres de S.
Joo de Deus, foram remetidas para o Governo em Desembro de 1758. As
cpia de todo este trabalho ficaram na Secretaria do Governo de
Moambique, em um livro prprio e para isso destinado, porm em 1847,
quando fui encarregado de organisar o seu archivo, nada encontrei; - e
sinto que tivessem desapparecido to preciosos documentos, porque se os
encontrasse no ficariam entregues ao esquecimento.
3
J oaquim J os Lapa, lastimando-se de igual maneira, assim se refere aos
escritos deixados por Incio Caetano Xavier:
Pena , que um outro trabalho histrico, desde o tempo da conquista at
1758, feito pelo ento Secretrio do Governo, Incio Caetano Xavier,
quando o Governador Pedro de Saldanha dAlbuquerque, e que fora
extrahido dos livros existentes no convento dos Hospitalrios de S. Joo de
Deus em Moambique, que o auctor do autgrapho, diz, fora remettido para
o Governo da Metrpole em Desembro de 1758, no apparea, para
igualmente ser publicado. Queremos, que no ser difcil encontr-lo no
archivo do Reino, para onde foi remettido, conhecida a data em que foi
enviado de Moambique.
4
A respeito da Memria de Incio Caetano Xavier, pode-se inicialmente discutir
a inteno do autor em escrev-la, j que na invocatria ao Senhor General e
Governador com que faz a abertura de sua Memria, teve o cuidado de mostrar-se
aparentemente isento de interesses em angariar vantagens de cunho individual ou
patrimonialista:
Manda-me V. Senhoria fazer hua relao do estado prezente de
Moambique, Senna, Sofalla, Inhambane e todo o Continente de Africa
Oriental, que Sua Magestade Fidelissima domina nessta costa que conste
do estabelecimento dos habitantes, ou moradores, das condies dos
naturaes, do comercio dos Portos, das produces do Paiz, das rendas
reaes, do dispendio da Fazenda, das fortificaes, que tem, das foras dos
Potentados confinantes, das Misses desta seara, e de tudo o mais, que
pertence a hua exacta discripo de todo este vasto Paiz; e finalmente do
meio, por que se pode conseguir hum perduravel augmento de todo este
estado.
5
O texto induz a pensar por esta introduo que teria sido o Governador Pedro
de Saldanha de Albuquerque que encomendara a obra e at mesmo esquematizara os
captulos que relatariam sobre os focos de seu interesse. No entanto, em carta de 30
de dezembro de 1758, o Governador ao comunicar a nomeao de Xavier como
Secretrio, sentia-se satisfeito com sua escolha, porque pratica a poltica de me no
pedir favor algum nesta Praa, rogando-me s que o patroine na Corte onde tem
seos requerimentos.
No entanto, o Secretrio foi nomeado em agosto, e a Relao foi para Lisboa
junto com os referidos requerimentos. Alm disso, Saldanha de Albuquerque na
mesma carta faz referncia a uma Relao que lhe parecendo caps de ser vista,
mandey della fazer cpias que remeto a alguns amigos; e huma a meu conhado para
a pr na prezena de V. Ex.
6
Sobressai-se desse modo, que foi por iniciativa prpria que Caetano Xavier
escreveu a Memria, buscando assim aproximar-se do Governador e colocar-se ao
seu servio, o que efetivamente veio a ocorrer por um determinado perodo de tempo.
Ao contrrio de muitos relatos de carcter meramente administrativo da poca,
o contedo da memria escrita por Incio Caetano Xavier no se constitui numa
histria dos Governadores de Moambique at 1758, at mesmo de modo oposto,
pouco refere-se aos Governantes, preferindo ocupar-se do estado geral desta
possesso portuguesa seu comrcio, recursos, vidas civil, militar e religiosa. Deste
modo, insere-se na tradio dos escritos sobre Moambique, ao contrrio do ocorrido
para outras colnias portuguesas, de dar pouca fora aos chamados catlogos de
governadores.
Percebe-se em Xavier uma busca por mapear descritivamente o territrio
moambicano, apresentado-o com uma organizao textual que remete idia de um
itinerrio de viagem ou roteiro cultural e etnogrfico, que apesar de por vezes se
aproximar do domnio do maravilhoso, no deixa de exemplificar as estratgias de
construo do territrio teorizadas por J acques Revel
7
:
Geografia fsica: iniciada pela ilha de Moambique e continuada depois em cada
porto.
Geografia humana: os colonos; os missionrios; os indgenas.
Geografia econmica: as produes naturais em geral; as produes naturais em
particular; as finanas e o comrcio.
Aps fornecer os dados genricos com respeito localizao geogrfica de
Moambique, Xavier d incio ao seu texto referindo-se, at mesmo de forma pouco
lisonjeira, condio social dos colonos portugueses, pelo pouco ou nenhum respeito
tributado s autoridades constitudas, atribuindo inclusive a decadncia das mesmas
arrogncia dos colonos. Como se v, no toa que Xavier vir a enfrentar oposio
e acabar sendo retirado do cargo bem antes do trmino de seu mandato de trs
anos.
O estado em que se acho todas estas terras h totalmente decadente por
falta de hua radical cultura de que necessito em todo o sentido, e
igoalmente a Fazenda Real, e os diferentes meios que se tem aplicado
para o seu augmento, a tem conduzido sua maior ruina, como fallarei em
seo lugar. O estabelecimento dos moradores da Ilha, das Terras firmes e
de todas as sogeitas coroa, fallando em geral, posso dizer, sem faltar
verdade, que mais parecem feras do que homens, por serem opostos
vida civil, e sogeio politica, omittindo fallar na Religio; porque tendo
nome de Christos, parece que ainda esto por escolher ley.
8
Xavier, para reforar a imagem negativa que constri dos colonos, faz em
contraponto um elogio dos potenciais da terra, os quais no seriam devidamente
aproveitados pelos portugueses, que prefeririam ocupar-se de formas mais imediatas
e pouco trabalhosas de obteno de ganhos.
H o primeiro estudo destes homens o contrato dos Mujavos dos que vivem
em Moambique, e dos de outras partes, algum comercio de ouro, marfim,
e outros generos, em que mais fazem trabalhar os seos cafres do que
cuidarem elles nestas dependencias por pura perguia, que parece que a
herdo dos naturaes do Paiz; e pela mesma razo, cuidam muito pouco
nas lavouras das terras, e culturas dos palmares, que aqui podio ser mais
e muito mais rendozos que os da India pela bondade da terra.
9
Para Xavier, os colonos, imbudos de um esprito de resistncia ao poder do
Estado, procuram solapar toda e qualquer iniciativa de administrao com base
racional e profissional, parecendo preferir viver quase que num estado de natureza
hobbesiano, ou talvez, de uma sociedade contra o Estado a la La Botie.
A segunda aplicao destes moradores h o procurar todos os meios de
ver como ho-de embaraar ao Governo e domin-lo sobremaneira; e se
este em razo do seo pessoal respeito, e por maximas, que estuda para os
ter subjugados, e sujeitos razo, escapa de ser comprehendido nos
effeitos deste seo primeiro intento, no escapa da aleivozia com que,
mancomunados o encravem na sua rezidencia; sendo certo que desta
segunda avenida nenhum escapa; porque do hum juramento falso com a
mesma facilidade, com que costumam ordir a cada passo hua tramoya para
desordenar as aces de quem governa, sendo indubitvel que se deve
haver em hua destas povoaes 20 moradores, cada hum tem dezanove
moradores inimigos; porem todos o so do Governador.
10
E, especificamente aos habitantes da Ilha de Moambique, refere-se de
maneira ainda mais forte, ao adicionar atitudes de desrespeito religioso:
Chega ainda mais avante a insolencia destes moradores, sendo que os de
Moambique so mais pacatos, na extenso, sendo na inteno peiores;
porque depois de atropellados os respeitos humanos, tambem se tem
atrevido muitas vezes a perderem o decoro s cazas de Deos com
sacrilegos insultos de bulhas, feridas e mortes, etc., chegando o extremo da
sua barbara cegueira a cometer os mesmos desacatos diante do
Sacramento exposto, como sucedeu h poucos annos na igreja dos
Dominicos em Senna que hoje est reduzida a cinzas.
11
Continuando com suas apreciaes, pouco ou nada lisonjeiras a respeito dos
que ento habitavam o territrio moambicano, Xavier assim se manifesta em relao
aos religiosos, no os poupando de suas duras apreciaes, principalmente pelo seu
desvio das tarefas evangelizadoras tanto junto aos colonos como aos africanos:
Estas perniciosas desordens, que devio e podero emendar ou obviar os
Missionarios, que so mandados a dillatar o Evangelho nestas partes,
aplico todo o seo cuidado em materias totalmente opostas virtude,
fomentando vinganas, dios, discrdias, ambio, sensualidade e outros
disturbios.
12
Para os denominados indgenas as apreciaes so igualmente
desfavorveis. Xavier refere-se a eles como cafres inimigos do trabalho e da cultura,
sem religio estabelecida e que vivem ley da natureza e de sua natureza. Cultura,
aqui referida como produo agrcola, que somente era feita para subsistncia,
especialmente milho, arroz, do qual produziam farinha, e legumes. Desta dieta fazia
parte ainda a carne de caa, feita cozida ou assada. Vestem-se com peles de animais
diversos, sendo que s os distintos vestem panos, segundo a posse de cada hum.
Segundo Xavier, por no possurem religio e viverem ley da natureza, os
indgenas seriam presa fcil para a converso aos hbitos e costumes da civilizao
ocidental.
So de espirito inconstante, e faceis a reduzi-los a qualquer Religio, mas
inclinados naturalmente nossa, e se os que tem obrigao de os
converter trabalhassem nella, e lhes dessem exemplo, principalmente na
castidade que devem contra a sensualidade, sem duvida se conseguiria
delles aquella virtude a que tanto repugna o seo habito, que na continuao
delle parece natureza, porque todo o seo disvello consiste em procurar
meios de terem mais mulheres, e as tem quantas podem; os Reys de
ordinario chego a ter 1500 e mais.
13
A quase nica referncia explcita de Xavier, em todo o Relato. ao escravismo
reveladora do antagonismo que o autor estabelecia entre civilizados e brbaros.
14
Fazem comercio de seos proprios filhos, vendendo-os, e elles tambem se
vendem muitas vezes, e este ser o misterio por que em todos os seos
idiomas, que quaze todos desta costa entendo, no se articula palavra que
diga amor.
15
Seus comentrios se estendem um pouco mais quando faz meno aos
aspectos militares, onde ao lado de informar quanto ao poderio do armamento
utilizado pelas diversas naes africanas, no deixa de repetir sua opinio quanto
superioridade do europeu:
H o modo da peleja destes de peito a peito em campo aberto; formo
sempre duas fillas ou esquadres, a da vanguarda honde fica o segundo
Cabo, serve de contender com o inimigo, e a segunda, que h a retaguarda
se emprega de animar a primeira, refazella da gente morta, e
principalmente de matar a todo o que atraza o p, ou foje. As armas de que
uzo so arcos, frechas, jagayas, machados, punhaes, pos tostados, que
chamo gorimondos, jagayas de arremesso, e flechas de mo, rodellas de
couro cru, e estas uzo s os Borobresporem tanto os belicosos, como
os pouco guerreiros temem tanto de hua espingarda, ou qualquer arma de
fogo, que os que no so domesticos, julgo que a polvora he feitio.
16
O inventrio dos recursos naturais encontrados por todo o territrio
moambicano, feito por Xavier, inclui a diversidade de pedras preciosas e metais
(dentre as quais, lista ouro, prata, cobre, ferro, calaim, cristal, prolas, aljofares e
mbar), animais silvestres (dentre os quais, cita o unicrnio), animais domsticos,
aves silvestres, aves domsticas, aves marinhas, animais marinhos (dentre os quais,
cita as sereias), mantimentos, frutos e madeiras.
Esses recursos so tambm localizados pelas diversas localidades, quando
ento Xavier indica as reas, que a seu ver, deveriam ser objeto de proteo militar
em razo das investidas que holandeses e ingleses ocasionalmente faziam,
principalmente as localizadas no sul de Moambique, j que ao norte e ao leste eram
mantidos acordos territoriais e comerciais com as diversas naes africanas e seus
rgulos que l habitavam.
O escoamento das riquezas moambicanas, em especial seus recursos
minerais, atravs dos portos com o consequente recolhimento de impostos, se
constitua na principal fonte financeira da Fazenda Real. Entretanto, Xavier indica
incisivamente que as atividades de contrabando, negcios clandestinos e corrupo
eram a regra, pois envolviam tanto pessoas grandes, como pequenas, j que as
autoridades responsveis no executavam as ordens reais com o zlo e exao
necessrios.
E esta talvez pode ser o espirito da razo que deo fundamento a aquelle
vulgar adagio, que eu venero por sentena, que diz O dinheiro de
Moambique no luz nem chega aos filhos e eu tenho visto por
experiencia o repetido cumprimento delle. E assim, Senhor, havia de
succeder, porque como pode luzir hum metal que se adquirio por principios
to escuros?
17
Para procurar escapar das iniciativas meramente individuais de algum bom
servidor de Sua Magestade, quanto s providncias para superar aquelles vicios e
obviar estes desvios, Caetano Xavier prope um humilde parecer sobre os meios,
que a minha tosca compreheno alcana para ser lucrozo o comercio destes Portos.
Tal proposta a de formao de uma nova Companhia de Comrcio, aliada a hua
guerra geral a todos os Principes confinantes das terras da Coroa, e ainda estas
mesmas necessito de castigo porque a obediencia que do he apparente.
18
Ao compasso destas utilissimas deligencias cresceria notavelmente o
comercio, e por consequencia as rendas reaes, porque fazer despeza em
hua Colonia, sem aplicar meios para crescer a sua receita que he o que
nestes annos da separao tem sucedido mais que augmento he buscar
ruina terra.
19
A soluo Companhia de Comrcio para as vicissitudes das relaes
mercantis coloniais, inmeras vezes apresentada pelos mais diversos autores
setecentistas ao longo de todo o Imprio Colonial. Para estas terras bem cultivadas,
que podem dar mais interesses em vinte annos do que daro em cem as da America,
Xavier justifica-a com os seguintes argumentos:
Hua Companhia de mercadores de Lisboa, e dos mais, que quizerem
poder fazer respirar de decadencia este agonizante Estado. A primeira
razo he, porque j se experimentou que o estabelecimento antigo de outra
companhia s colheo interesses do comercio deste Portos, como j fica
rellatado. A segunda, porque na formalidade della, os mesmos interessados
trabalho pessoal, e occularmente no trafego de seo negocio, em que com
facilidade no pode haver dollo. A terceira, porque todos os estrangeiros,
como so Francezes, Inglezes, Holandezes e Dinamarquezes, que tem
comercio e terras nas partes da India, s por companhias se governo,
desfrutando todos grandes interesses, e se achassem que outro methodo
era mais conveniente, o no deixario de abraar para sua utilidade.
20
Dessa maneira, a Companhia de Comrcio aparece em Xavier, como uma
espcie de elemento catalisador, em torno do qual solucionar-se-iam as questes
fiscais, territoriais, sociais e polticas que conturbavam Moambique em meados do
sculo XVIII, pois se constituiria a Companhia de Comrcio no elemento organizador
da sociedade, expresso icnica da vitria da civilizao europia em solo africano.
No decorrer dos pargrafos acima atravs de uma anlise do relato de Xavier,
acompanhou-se um exemplo da produo textual de Moambique colonial. Pode-se
dizer que para alm das estratgias prprias de construo textual, o mtodo da
escrita organiza o texto e faz transparecer seus objetivos atravs da tcnica de
formular problemas para os quais oferece-se uma soluo ao final.
Neste caso: a precria organizao social, em razo da alegada decadncia
moral dos colonos e clrigos, e a inapetncia dos brbaros pela civilizao; para a
qual formula-se como soluo a reorganizao a partir de uma mtica Companhia de
Comrcio, cujo papel seria o de orientar e disciplinar as atividades comerciais e fiscais,
mas que transbordaria para todo conjunto de relaes que se estabelecessem na
colnia.
Este estudo que apresentamos nesta comunicao coordenada, intitulada
Espaos mltiplos, mulheres singulares, resultado de nossa pesquisa sobre a
participao da ndia Bororo Cibe Modojebdo - a Rosa Bororo - na pacificao de
seus irmos Coroado, que habitavam a regio do Alto e Baixo rio So Loureno, no
contexto da poltica indigenista imperial desenvolvida na Provncia de Mato Grosso
entre os anos de 1845 e 1887.
A histria de contato entre os Bororo e os agentes colonizadores inicia-se com
a chegada dos bandeirantes ao territrio hoje denominado de mato-grossense. No
Setecentos esses mamelucos paulistas se utilizaram de contingentes de Bororo como
guerreiros nas lutas contra outros grupos indgenas e na ocupao de seus territrios,
ocasionando a disperso, diviso e depopulao do grupo indgena Bororo.
Aps a diviso dos Bororo em trs subgrupos - da Campanha, Cabaal e
Coroado -, o procedimento de guerra utilizado pelas autoridades mato-grossenses,
representadas por proprietrios de terras, presidentes da provncia e diretor-geral dos
ndios, resultou na pacificao dos Bororo da Campanha e Cabaal.
Na segunda metade do sculo XIX, dentre os subgrupos Bororo, apenas os
Coroado resistiam ao contato. Na descrio do diretor-geral dos ndios podemos
perceber a classificao dos Coroado:
Bororo Coroado habitavam as cabeceiras de diversos galhos do rio So
Loureno. Poucas e exatas so as notcias que temos do seu nmero, de
sua ndole e dos seus usos, pois no se relacionam com os nossos
moradores e viandantes, e para hostiliz-los com tais disposies e
dominado por sua situao, as estradas que vo desta cidade para Gois
e para So Paulo, os Coroados tornariam as mesmas estradas
intransitveis para os cristos se no fosse o sentimento de covardia
comum a quase todas as naes indgenas, que faz com que rarssimas
vezes acometam rastos descobertos ou expostos a sua vida ao menor
risco. Os mesmos ndios chegam a cometer estragos matando e
incendiando at em stios do termo desta cidade e distncia dela menos de
vinte lguas
1
.
A descrio dos Coroado nesse relatrio demonstra a situao de indgenas
que realizavam correias, tanto nas estradas prximas a suas aldeias como no Termo
do Cuiab, investindo contra viandantes e fazendeiros, atitudes que justificavam, do
ponto de vista governamental, a necessidade de aldear esses ndios, conforme
instrua o Regulamento das Misses de 1845.
Apesar de o Regulamento estabelecer a brandura como estratgia de
contato, o combate armado aos Coroado continuava, uma vez que as autoridades
governamentais no logravam organizar este subgrupo em aldeias, conforme
determinava a Lei Imperial.
Ademais, o territrio desse subgrupo servia como ponto de passagem em um
projeto de construo de uma ferrovia que ligava Cuiab ao Rio de J aneiro, via So
Paulo, em 1876, o que reforava a necessidade de aldeamento.
Dessa forma, ante a necessidade de adequar os Coroado sociedade
civilizada e de considerar a legislao indigenista, os representantes provinciais se
viram obrigados a substituir o contato por intermdio de bandeiras pelo mtodo da
persuaso, que levar ao processo de pacificao deste subgrupo em 1886, o que
se tornou possvel pelo uso de alguns ndios Coroado, como Cibe Modojebdo, a
Rosa Bororo, que apresentaremos nesta comunicao.
O contato entre os Coroado e as autoridades governamentais da provncia era
marcado pela utilizao de armas, porm, nas expedies de 1880 e 1886 novas
estratgias comearam a ganhar visibilidade.
O Presidente da Provncia Rufino nas Galvo, o Baro de Maracaj, que
havia assumido o cargo em 1879, solicitou do governo imperial, considerando a
possibilidade do contato atravs da catequese e no mais pela guerra, o envio de seis
missionrios franciscanos para a provncia, mas obteve resposta negativa.
Diante da necessidade de solucionar o conflito com os Coroado, uma vez que
as queixas com relao s correrias continuavam, o Presidente Maracaj
organizou, em 1880, duas expedies para a regio do rio So Loureno, visando
combater esse subgrupo: uma partiu da Colnia Militar de So Loureno e outra de
Cuiab. A que partiu da colnia militar de So Loureno comandada pelo diretor da
mesma colnia militar, major J orge Lopes da Costa Moreira - afugentou para longe os
ndios Coroados. A que foi ao Alto So Loureno comandada pelo alferes Antonio
Duarte fez o mesmo aos ndios daquela grande tribo
2
.
Apesar de constar no relatrio que os Coroado foram apenas afugentados,
em um ofcio datado de 1887, enviado pelo Diretor-Geral dos ndios Thomaz Antonio
de Miranda, ao Presidente da Provncia J os J oaquim Ramos Ferreira aparece a
notcia de que as expedies de 1880 resultaram no aprisionamento de nove
indgenas Coroado, dentre eles Cibe Modojebdo.
Neste documento, Miranda citou o contato bem sucedido com os indgenas,
dizendo que o mtodo poderia servir de modelo para levar a efeito a catequese dos
ndios Maibiri, ligados aos Cabixi, que poca hostilizavam os habitantes do Distrito
de Mato Grosso (Vila Bela da Santssima Trindade):
A V. Excia, no estranho que h anos, h muitos anos, os nossos
lavradores e fazendeiros eram vtimas das correrias dos Coroados, contra
os quais expedio foras armadas para afugent-los das imediaes
dos povoados, e essas foras conseguiram apreender algumas ndias e
crianas. Em 1881, quando se recolheram, as foras expedidas pelo ento
presidente Visconde de Maracaj, trouxeram algumas prisioneiras, das
quais tomei uma ndia, que fiz batizar com o nome Rosa, e depois de
quase cinco anos em meu poder e preparada completamente para o fim
que tinha em vista, fiz seguir acompanhada de algumas outras para o
serto, como intrpretes, para aliarem os ndios bravos de sua tribo, e
trazendo em resultado a submisso total dessa numerosa nao
3
.
Aps ser aprisionada com suas duas filhas, Cibe Modojebdo foi trazida a
Cuiab no incio de 1881 e adotada pela famlia de Thomaz Antonio de Miranda.
A cerimnia de transformao de Cibe em Rosa aconteceu na parquia do Bom
J esus de Cuiab, no ms de maio de 1882, onde recebeu, juntamente com suas filhas
Rita e Roslia, nomes cristos, depois de batizadas e apadrinhadas por
representantes de autoridades provinciais, como o Diretor-Geral dos ndios e sua
esposa.
Este acontecimento revela a estrutura da poltica indigenista, que pretendia
trazer indivduos mulheres de grupos considerados selvagens para o seu meio
social, coloniz-los e, a partir da, realizar a chamada pacificao. Assim, o
pacificado receberia um nome e educao de civilizado, proporcionando o
pagamento, por parte do Estado, de um soldo famlia que o acolhera.
Rosa permaneceu durante cinco anos com a famlia do Diretor-Geral dos
ndios, sendo preparada para servir de intrprete nas expedies de contato,
organizadas em 1886.
As expedies de 1886 foram ordenadas pelo ento Presidente J oaquim
Galdino Pimentel e comandadas pelo alferes Antonio J os Duarte. A primeira partiu
de Cuiab no dia 2 de abril, seguindo o trajeto fluvial. Saindo do Cuiab, tomava o So
Loureno, at chegar s aldeias dos Coroado, situadas exatamente s margens deste
rio. A estratgia que Duarte ps em prtica consistia em chegar prximo s aldeias e
soltar os ndios Coroados que levava consigo no serto, e esperar pelo resultado da
catequese que iam promover. O alferes ainda acrescentou: Alm de brindes para os
selvagens levava como medianeiras seis ndias e um ndio daquela tribo de ndio, que
h tempo tinham sido aprisionados e viviam entre ns j afeitos aos costumes da vida
civilizada
4
.
Vemos, pois, que Duarte levava consigo no apenas Rosa, mas todas as
ndias e um ndio Coroado que havia capturado nas expedies que comandou nos
anos de 1880 e 1881, que provavelmente tambm foram tutelados e batizados por
famlias cuiabanas.
A nosso ver, o detalhe mais significativo das aes conduzidas para esse
processo foi o registrado por J oo Augusto Caldas que, como cadete forriel, tambm
compunha aquela expedio: As ndias escreveu ele para entrar no aldeamento
despiram-se de toda a roupa e pintaram-se de vermelho de urucum a moda dos
seus
5
. Ou seja, dentre as estratgias usadas por Duarte estava aquela de fazer com
que as ndias, que j atendiam por nomes ocidentais, se despissem e pintassem seus
corpos com desenhos correspondentes aos cls a que pertenciam, como forma de
serem reconhecidas pelos seus e, ento, mais facilmente atra-los aos conquistadores.
O resultado dessa primeira investida foi o aprisionamento de vinte e oito
Coroado, que foram trazidos para a capital da provncia, Cuiab, no dia 24 de junho de
1886. Esses indgenas tambm foram batizados e receberam nomes escolhidos por
seus padrinhos, ocupantes de cargos polticos e suas respectivas esposas, inclusive
incorporando o sobrenome dessas famlias.
Passada a euforia provocada pelo sucesso dessa primeira expedio, Galdino
Pimentel, com o objetivo de pacificar um nmero mais significativo de Coroado,
determinou ao alferes Duarte, em agosto de 1886, que voltasse regio de So
Loureno, dessa vez com uma fora mais numerosa: 44 praas e 47 ndios Coroado.
O alferes Duarte utilizou nomes portugueses para identificar os sete ndios, como
Amlia, Mariana, Duarte e outros. Rosa tambm compunha a expedio, inclusive com
o sobrenome da famlia que a tutelou Rosa de Miranda.
Aps terem acampado margem direita do rio So Loureno, o alferes Duarte
recomendou s ndias Amlia e Mariana e ao ndio Duarte que internassem para o
centro, a fim de empregarem os meios de conduzir a sua presena os selvagens ali
aldeados
6
. Repetindo o xito, este grupo trouxe mais sessenta e oito ndios, que foram
recebidos por Duarte, e presenteados com diversos brindes, tais como roupas e
refeies.
Nos dias seguintes esses fatos repetiram-se contabilizando, ao final desta
expedio, um total de 430 selvagens, sendo 337 do Alto e 93 do Baixo So
Loureno
7
. Em 6 de outubro de 1886, Duarte deu como vitoriosa a sua empreitada e
retornou a Cuiab, onde foi recebido como responsvel por promover, enfim, a
pacificao dos indmitos Coroado.
Os Coroado pacificados foram encaminhados para duas colnias militares,
Teresa Cristina, localizada no rio Prata, e Isabel, no Piquiri, ambos afluentes do rio
So Loureno, dando continuidade estratgia governamental de reuni-los em reas
reduzidas, principalmente para exercer o controle militar sobre os pacificados. A
utilizao dos nomes das filhas de D. Pedro II para designar as colnias militares
pode ser entendida como uma representao da presena do poder imperial sobre
aqueles ndios.
O nome da ndia Rosa como responsvel pela pacificao surge em 1895,
em uma crnica de Maria do Carmo de Mello Rego, esposa de Francisco Rafael de
Mello Rego, presidente da provncia que sucedeu a Galdino Pimentel.
Neste artigo, a cronista descreveu a participao de Rosa no contato com seu
povo:
Rosa, radiante de felicidade, por ver terminado a cruel guerra de
perseguio e extermnio feita aos seus, tornou a vestir as roupas que
deixara e l ficou prestando relevantssimos servios, na primeira trica das
novas relaes, e fora abenoada mensageira
8
.
A publicao do texto de Maria do Carmo na Revista Brasileira foi viabilizada
pelo presidente Mello Rego, que tambm escreve um artigo nesta mesma revista,
demonstrando que antes da crnica escrita por sua esposa no se havia dado nfase
participao de Rosa no processo de pacificao dos Bororo, sendo totalmente
esquecido o nome dessa ndia em Mato Grosso no perodo ps-pacificao.
Podemos entender que a situao dos Bororo era de inferioridade frente s
armas de fogo trazidas pelos colonizadores e que a presena de Rosa, inspirando-lhes
confiana, evitou um conflito no qual seus irmos seriam perdedores. Com isso, os
Coroado aceitaram a paz imposta por Duarte.
A divulgao do resultado da expedio de 1886 na capital da Corte, por meio
do artigo escrito por Maria do Carmo, principalmente no relato do desfecho do contato,
quando simbolicamente o cacique Moguiocuri passa seu arco para o conquistador,
sempre atravs da intermediao de Rosa, deu incio criao e divulgao de uma
representao em torno dessa ndia como personagem fundamental pacificao dos
Coroado.
No entanto, a pesquisa revelou alguns dados que nos permitem redimensionar
a atuao de Rosa. Duarte se refere s expedies de 1886 em dois relatrios. Um
deles, impresso, publicado na Revista da Sociedade de Geografia; o outro, enviado ao
Presidente Galdino Pimentel, documento manuscrito, indito, pesquisado no Arquivo
Pblico de Mato Grosso.
H alguns pontos, num e noutro documento, que nos pareceram importante
ressaltar. No artigo publicado na Revista Sociedade de Geografia, Duarte registrou o
sucesso das expedies, referindo-se a Rosa apenas na lista dos indgenas que
estavam no acampamento Couto Magalhes para retornar ao So Loureno.
Contudo, no relatrio manuscrito que Duarte enviou ao presidente da provncia
em 1886, dando conta do resultado da expedio pacificadora, o comandante
registra um comportamento diferente do que foi posteriormente proclamado pela
cronista Maria do Carmo: o papel desempenhado pela ndia Cibe naquela expedio
no foi de pacificadora. Muito ao contrrio, ela teria incentivado o conflito entre
colonizadores e ndios. Assim escreveu Duarte:
A catequese que incentei, produziu o mais brilhante resultado. Os
selvagens vinham se apresentar diariamente e recebiam brindes. O ndio
Coqueiro quem mais se esforou, para a realizao da catequese,
andando por todos os aldeamentos e convencendo os ndios de tal forma
que vinham em turma, e encontraram com fora minha, no corriam pelo
contrrio, chamavam os soldados e pediam que os levassem presena
do capito, como me chamam. A ndia Rosa, em vez de auxiliar-me, pelo
contrrio, procurava plantar a desarmonia entre os ndios, que eu em ato
contnuo destrua. Esta ndia no convm regressar e nem merece
considerao alguma
9
.
Vemos, pois, que longe de realizar feitos hericos para a pacificao, Rosa,
segundo o comandante das expedies, procurava plantar a desarmonia. A
descrio que o alferes faz do comportamento de Rosa no manuscrito nos lembra
Michel de Certeau, permitindo pensar a reiveno de atitude por parte da ndia, ao
contatar os Coroado do So Loureno. De Certeau qualifica a reinveno como uma
ttica de jogar no terreno do outro atravs de procedimentos astuciosos
10
.
Nesse contexto, Rosa passa ao imaginrio mato-grossense como herona e
traidora, tal como Malinche, a ndia sul-americana. Mas, usando as palavras de Maria
do Carmo, qual ter sido o fim da boa Rosa?
11
. Segundo a cronista, Rosa retornou
para junto de seu povo, sendo tambm aldeada na Colnia Militar de Teresa Cristina.
H tambm o relatrio de um dos integrantes da Comisso Rondon, Tenente Antonio
Pyrineus, quando esteve entre os Bakairi, que registrou a circunstncia em que
encontrou Rosa Bororo: mais tarde, em luta entre os ndios Coroado e Bakairi, aliados
dos civilizados que foram se estabelecer na barra do So Manoel, foi morto o pai de
Jos Coroado. Desde ento, Rosa e seu filho, ainda muito criana, ficaram na aldeia
Bakairi
12
.
T
I . Introduo
A apresentao de resultados parciais das pesquisas em desenvolvimento em
um evento como so os promovidos pela ANPUH, tem, entre outros mritos, a
possibilidade de dilogo com outros pesquisadores. No se necessitando um trabalho
acabado, pronto, existem contribuies que se pode dar aos colegas que trabalham
com temas semelhantes ou com recorte semelhante, assim como pode-se incorporar a
discusso surgida no desenvolvimento da prpria pesquisa. Dessa forma, o texto que
ora se apresenta anseia, muito mais do que mostrar discusses fechadas, levantar
questes que demandam por pesquisa. Muito mais que certezas, so trazidas
algumas perguntas.
O tema que aqui se pretende explorar derivado do estudo do comrcio de
animais oriundos do extremo-sul da Colnia, quais sejam, o Continente do Rio Grande
de So Pedro, Banda Oriental e entorno da Colnia do Sacramento. Um dos pontos
intermedirios da rota que ia deste extremo-sul ao interior de So Paulo e da para o
restante da Colnia passava por Curitiba. Devido sazonalidade desta atividade e os
rigores do clima, era hbito deterem-se no entorno de Curitiba, nos Campos Gerais,
para a invernada, no aguardo de melhoras do clima para que pudessem dar
prosseguimento viagem. Este transporte e comrcio de tropas, portanto, no
influenciavam apenas a vida nos plos produtores e consumidores das mercadorias
animais. Os caminhos trilhados pelos gados, usando a feliz expresso cunhada pelo
pesquisador Andr J acobus, eram vetores de relaes sociais e econmicas no Brasil
Colonial
1
. Acrescentar-se-ia, apenas a palavra polticas a ela, j que os poderes
locais e suas relaes com os governos da Colnia e do Imprio Portugus
construram-se e possuram nexo com o fluxo dos animais aos seus mercados.
II. Algumas palavras sobre os Registros e sua estrutura
A explorao dos animais sulinos, levados em p ou sob forma de produtos at
os seus mercados consumidores, fossem eles na Colnia, na Pennsula ou mesmo na
frica
2
, era um dos elos de ligao do Continente do Rio Grande de So Pedro uma
parcela do atual estado do Rio Grande do Sul com o restante do Imprio Portugus.
A Coroa, atravs dos sistemticos contatos com seus representantes no Estado do
Brasil tentou regulamentar e instituir estruturas de cobrana de fisco sobre as
transaes e deslocamento dessas mercadorias, fossem elas extradas dos animais
ou organizadas em tropas.
Os dzimos eram cobrados sobre os animais que ficavam nos pastos; sobre os
couros e os sebos, cobravam-se os quintos. Estes eram referentes a toda e qualquer
comercializao, inclusive sobre o que era adquirido pelos sditos da Coroa lusa dos
ndios e castelhanos. Por ltimo, para as tropas postas em movimento, era cobrada
uma quantia fixa sobre cada animal que passava em unidades estabelecidas ao longo
da rota.
Havendo o sucesso do Caminho e do comrcio dos animais, a Coroa
apressou-se em transformar as antigas Guardas, estruturas militares que faziam
tambm a contagem dos animais para fins de arrecadao de fisco, em outro tipo de
unidade de cobrana, os Registros das Passagens dos Animais. H indicao de
terem existido Guardas com cobrana de direitos sobre a passagem das tropas no
Chu; na travessia do Rio Grande; nos Campos de Viamo a chamada Guarda Velha
e em Curitiba. Na dcada de 1740, a guarda de Rio Grande no mais estava
ocupada na cobrana dessa taxa e a Guarda Velha tornou-se o Registro de Viamo
3
.
Posteriormente, no territrio do atual Rio Grande do Sul foi institudo um
segundo Registro, nos campos da Vacaria, em Cima da Serra, dentro dos limites do
atual municpio de Bom J esus, na rea de fronteira entre os estados do Rio Grande do
Sul e Santa Catarina. Denominava-se Registro de Santa Vitria. A sua criao aponta
para a possibilidade de tropas estarem sendo despachadas a partir da regio oeste do
Continente do Rio Grande de So Pedro, no passando, assim, pelo Registro de
Viamo, situado j na rea litornea.
Estas tropas que vinham do oeste poderiam ser oriundas dos territrios
espanhis ou ainda acusar uma nova expanso territorial sem explcita anuncia da
Coroa ou de seus representantes em direo s fronteiras com as terras de
Espanha. Provavelmente se utilizavam de rotas pr-existentes, criadas pelos
indgenas, pelos bandeirantes ou ainda utilizadas pelos padres da Companhia de
J esus, j que para oeste ficavam tambm as Misses J esuticas.
No ano de 1733, a Guarda existente no acampamento das proximidades de
Curitiba, tornou-se um Registro de Tropas. A transformao ocorreu sob pretexto de
ressarcir os cofres reais da praa de Santos pela despesa feita com a expedio de
Francisco de Souza e Faria, sargento-mor da mesma praa, encarregado da abertura
do Caminho das tropas
4
.
A exemplo de outra taxao aplicada sobre os produtos animais, os quintos
dos couros e seus efeitos, cobrados na Colnia do Sacramento e posteriormente
tambm na Vila do Rio Grande, os primeiros anos de arrecadao ficaram a cargo da
Coroa, com os militares que chefiavam os acampamentos se ocupando da cobrana.
Em 1743, tambm a exemplo do que ocorrera com a arrecadao sobre os couros e
seus efeitos, o Conselho Ultramarino resolveu por colocar o contrato do Registro
arrematao em leilo, fazendo passar o direito e a responsabilidade de cobrana
deste encargo para as mos de particulares
5
.
Um Registro, por possuir arrecadao em moeda sonante por vezes coisa
rara no interior da Colnia propiciava certas facilidades aos seus administradores.
Apresentar-se- o caso do Mestre-de-campo Manuel de Oliveira Cardoso, que durante
certo tempo, acredita-se, ter administrado o Registro de Curitiba, exercendo a
cobrana do fisco sobre os animais que dirigiam-se do sul para alm. Tudo parece
indicar que, antes de chegar aos cofres da Coroa ou de seus arrematantes, os valores
arrecadados percorriam longo caminho, passando diferentes mos e possivelmente
gerando lucros para aqueles que podiam faz-lo girar num interessante mercado de
capital existente no interior da Colnia.
Diz-se isso a partir de uma listagem que revelou alguns aspectos do
funcionamento do Registro da Passagens dos Animais de Curitiba que jamais haviam
sido aventados. Esta uma lista de pessoas que deviam ao Registro de Curitiba
desde algum ano entre 1740 e 1743, sem que tenha se podido datar com preciso
desde quanto remontavam cada uma das dvidas assinaladas, incluindo devedores
dos primeiros anos do sculo XIX
6
.
Um militar, o falecido Mestre-de-campo Manuel de Oliveira Cardoso havia
sido o responsvel por cobranas. O documento redigido tambm por homem de
patente, ainda que no se saiba ser esta militar ou de ordenanas, o Capito
Francisco de Paula Teixeira. As pessoas relacionadas nesta listagem so moradores
das vilas e outras localidades prximas ao Registro, como o acampamento militar da
Faxina e certas fazendas. No fica claro desde quanto tempo remontavam as tais
dvidas, nem exatamente qual a origem delas. Fica claro, entretanto, que boa parte
delas no relativa passagem de animais, e sim da cesso de crdito.
Provavelmente os valores que davam sustento a este crdito eram aqueles
arrecadados na cobrana dos direitos.
Em se tratando de um perodo com uma frgil circulao de moedas,
instituies como os Registros de Passagens de Animais contavam com alguma
receita em espcie. Tudo indica que estes valores eram reaplicados pelos
administradores, sob forma de crditos concedidos ou mesmo sob forma de
emprstimos. Tais procedimentos faziam com que os valores girassem nestas
localidades e talvez mais para alm, financiando a subsistncia e at mesmo o seu
desenvolvimento. A receita do Registro, de certa forma, funcionava como uma espcie
de Caixa Econmica.
A Cpia da Lista dos Devedores... tambm deixa entrever que, no interior da
Colnia, atravs destas estruturas montadas para a cobrana de fisco e, no caso dos
Registros, predestinadas ao recebimento de um grande nmero de transeuntes com
suas mercadorias semoventes, a existncia de uma vida ativa e diversificada, no
destinada a subsidiar, nica e exclusivamente, com seus produtos agrcolas, as
regies agro-exportadoras. Havia ento, outras possibilidades para os habitantes da
Colnia, e que com certeza foram exploradas pelos homens e mulheres que viveram
estes tempos.
Percebe-se que associadas ao Registro estavam uma ou mais lojas que
vendiam gneros e fazendas. Infelizmente no foi possvel saber a quem pertenciam
estas lojas, se ao militar encarregado da administrao do Registro ou a algum
particular. Quando da retirada destas mercadorias por parte dos habitantes do entorno
dessa estrutura, geravam-se algumas das dvidas, que esto arroladas no mesmo
documento. Para estas retiradas de mercadorias, o documento discrimina como sendo
o valor devido de fazendas. Em outras anotaes, no parece que o montante devido
tenha surgido desse tipo de crdito, dando a entender que os valores foram retirados
como emprstimos ou outra sorte de crdito que no despesas com gneros tomados
loja.
Note-se bem, o homem que estivera encarregado da administrao do Registro
no era um arrematador. Era um Mestre-de-campo, um homem das hostes de Sua
Majestade. Por conseqncia, os valores movimentados no eram seus por direito.
Como muitos outros oficiais da Coroa, este Mestre-de-campo, valendo-se de seu
cargo, movimentava dinheiro que pertencia a Coroa ou ao arrematador. O que era
cobrado era um imposto, uma taxa e como, a finalidade seria dar sustento sociedade
tributada, ainda que com o direito temporariamente transferido terceirizado, diramos
hoje para um particular. No entanto, um servidor da Coroa valia-se da sua posio
para aumentar a prpria receita. Tal atitude, longe de tratar-se de exceo, parece ser
a regra do perodo. O fato de ter emprego certo nas tropas de Sua Majestade no
implicava em uma dedicao exclusiva. O Mestre-de-Campo, assim como outros
homens da Colnia, dedicava-se a outras atividades que podiam render-lhe mais
algum ganho. Com relao arrecadao de um Registro de Tropas, era uma forma
de acumulao nesta sociedade pr-industrial, usada por aqueles que detinham
alguma forma de acesso poupana social e prtica comum burocracia do
Estado
7
.
Exceo feita a dois homens, ento falecidos, que deviam juntos quantia
aproximada de 1$900:000 ris, raramente os valores atingiram 100$000. Grande parte
das dvidas foram feitas por soldados, por pessoas de ofcio, tais como alfaiates,
ourives e carpinteiros, geralmente pardos, assim como por camaradas do serto.
III. As camadas subalternas e seu acesso a um mercado de capitais
Estes homens podiam tambm exercer funes de condutores de tropas,
todavia, as dvidas no so relativas s condutas j que no aludem nenhum tipo de
animal sob responsabilidade do devedor passando pelo Registro. Para vrios deles h
a indicao do local de moradia, tais como morador da vila, morador em Tamandu
ou o preto Flix da Fazenda dos Papagaios. margem do documento, vai
assinalado por crdito, indicando, portanto, dvidas no originadas pela passagem de
tropas. Em contraste, aquelas que eram geradas pela conduo de animais acusam
que o valor devido relativo essa passagem, discriminando o tipo de animais e em
que nmero foram conduzidos. Os homens de ofcio eram moradores em fazendas
prximas, moradores ao p do Registro, da Vila da Lapa, dos Campos Gerais, do
Acampamento da Faxina
8
. Eram pessoas que mesmo sem ter dinheiro, podiam pagar
seus dbitos pois podiam ganh-lo com seu trabalho especializado ou com ele prestar
servios aos seus credores.
Tambm os escravos contraam dvidas. Isso indica uma certa autonomia
destes ante a seus senhores, tanto no ato de endividar-se como na possibilidade de
obter algum dinheiro para sald-las. Diz-se isso porque dificilmente se permite a
algum contrair dvidas se este algum no tiver uma mnima possibilidade de sald-
la. Exceo so aquelas dvidas feitas para no serem pagas. Estas geram a gratido
que entra no jogo dos dons e contra-dons, prendendo o devedor nos grilhes de
reciprocidade com seu benemrito.
Todavia, no parece ser este o caso dos devedores o Pardo Incio oficial de
ferreiro escravo de J os dos Santos Rosa morador em Tamandu ou do mulato
J oaquim Alfaiate, escravo de J os dos Santos que constam na Cpia da Lista dos
Devedores. Seriam estes dois escravos com ofcio propriedade do mesmo senhor? E
se assim o fosse, seriam escravos postos ao ganho? So questes que ficam em
aberto, mas que, todavia, ajudam a delinear o perfil dos devedores do Registro no
envolvidos em condutas de animais.
A listagem inclui tambm e somente mulheres ditas pardas. Mulheres, at
onde se conseguiu ver, nunca faziam parte das condutas de tropas, havendo uma
nica exceo em que uma mulher diz ter seguido em uma conduta. Nos
procedimentos para seu casamento, Ana da Silva e suas testemunhas alegam ter ido
ela para o sul com um grupo de condutores
9
. Todavia, seu noivo tambm fazia parte
dessa comitiva, e a viagem talvez fosse a mudana do futuro casal para a freguesia
de Viamo.
As mulheres listadas no documento de Curitiba, portanto, deviam por algum
crdito fornecido pela administrao da estrutura, fosse por retirada de mercadorias,
fosse por receber algum emprstimo. Algumas dessas mulheres, ao final do
documento, do mostras de terem abatido com dinheiro uma parcela do montante
devido, ao contrrio de muitos devedores que permanecem sem nada saldar da sua
dvida. No se tem idia acerca das atividades exercidas por estas mulheres e que
lhes conferiam um certo ganho. Percebe-se, porm, que estas atividades eram
capazes de garantir a quem lhes cedia o crdito um certo grau de certeza de que
seriam pagos. H aqui, pois, mais um instigante ponto para a pesquisa histrica das
cercanias dos Registros de Passagens de Animais: a existncia de famlias e, nestas
famlias, mulheres ditas pardas que dedicavam-se a algumas atividades to certas e
rentveis que o crdito lhes era aberto por um oficial da Coroa. Quais eram estas
atividades? Da renda que obtinham vinha o sustento delas ou de suas famlias? Seria
este um ganho suplementar a outras atividades desenvolvidas por elas e seus
maridos? Quem era a clientela de seus servios ou produtos: condutores de tropas, os
militares ou outros habitantes da regio. So perguntas que ainda ficam aguardando
resposta.
IV. Consideraes finais
Para os arrematadores, deter o contrato de um Registro, podia ser, ento, uma
forma de atuar como fornecedor de crditos no interior da Colnia. Alm da captao
de recursos em moeda sonante ou em animais como paga pela passagem das tropas,
quem detivesse o controle desta unidade de fisco tinha a possibilidade de vender
mercadorias nas lojas a ela associadas e liberar crdito sob forma de emprstimo ou
por retirada de produtos. A lucratividade na posse destas estruturas extrapolava,
portanto, a mera arrecadao dos valores estipulados para os animais.
Interessante pensar que, uma vez tendo um homem penetrado por uma porta
em certas atividades rentveis do sul da Colnia, e entre estas esto certamente as
arremataes dos contratos para a cobrana de fisco
10
, uma srie de outras portas se
abriam a ele, possibilitando-lhe outras rendas, que aumentavam-lhe mais ainda o
cabedal e as suas redes de relacionamento. Tornavam-se credores de vrios setores
da sociedade interiorana. Assim como esta atividade, a de administrao de um
Registro de Passagem de Tropas, outras tantas poderiam dar possibilidades de
acumulao, por vias tortuosas, a membros de certos estratos da sociedade colonial.
Muito resta, portanto, a ser pesquisado sobre estas estruturas de cobranas de fisco e
sobre formas de acumulao no interior da Colnia lusa na Amrica.
T
O objetivo do presente texto investigar o problema da recepo e da
adaptao de teorias na Histria das Idias no Brasil; questo esta que preocupou
inmeros historiadores da cultura brasileira, entre os quais podemos entre outros
destacar Slvio Romero, Antnio Cndido, Hlio J aguaribe, J oo Cruz Costa e mais
recentemente Roberto Schwarz e Paulo Eduardo Arantes. Na presente Comunicao
nos deteremos em apenas trs momentos desta evoluo: Slvio Romero, que como
afirmou Antnio Cndido o fundador da moderna crtica no Brasil, no prprio
Cndido, e por fim em Roberto Schwarz, um dos principais crticos contemporneos, e
que marcou os debates a partir do final da dcada de 70, com sua concepo de
idias fora do lugar. O nosso recurso, preferencialmente a crticos literrios se
justifica, pelo fato da literatura e da crtica literria terem alcanado uma densidade
terica que no foram alcanadas pelas outras disciplinas, e portanto, esta pode
servir de modelo para as a Histria das Idias como um todo.
Em uma sntese da evoluo da literatura brasileira entre 1900 a 1945, A.
Cndido delimita o espao desta problemtica: se fosse possvel estabelecer uma lei
de evoluo da nossa vida espiritual, poderamos talvez dizer que toda ela se rege
pela dialtica do localismo e do cosmopolitismo, manifestada de modos mais
diversos.
1
E acrescenta, algumas linhas adiante: O intelectual brasileiro, procurando
identificar-se a esta civilizao, se encontra todavia ante particularidade de meio, raa
e histria, nem sempre correspondentes aos padres europeus que a educao lhe
prope, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes
aberrantes.
2
Como resultado das relaes entre externo e interno, se constituiria,
segundo o referido autor, uma tenso dialtica entre uma substncia local e uma
forma herdada da tradio europia. A partir desta idia geral, tentaremos
primeiramente reconstruir a evoluo da idia de recepo na cultura brasileira, para
em um segundo momento identificar as eventuais contradies que surgiriam entre as
idias europias e a realidade nacional ao longo deste processo, para em um ltimo
momento, tematizar estas questes a partir do conceito de repetio, tal como foi
desenvolvido por Paul Laurent Assoun.
A referida tenso entre o particular e o universal, resultante da recepo de
idias europias no Brasil, j era objeto de anlise, desde o final do sculo XIX, por S.
Romero que, analisando a pouca densidade do pensamento filosfico entre ns,
afirmou, em uma passagem j tornada clssica:
Na histria do desenvolvimento do desenvolvimento espiritual no Brasil h
uma lacuna a considerar: a falta de seriao nas idias, a ausncia de uma
gentica. Por outros termos: entre ns um autor no procede de outro; um
sistema no uma conseqncia de algum que o precedeu. uma
verdade afirmar que no temos tradies intelectuais no rigoroso sentido.
Na histria espiritual das naes cultas cada fenmeno de hoje um ltimo
elo de uma cadeia; a evoluo uma lei...
3
Aps dar o exemplo do desenvolvimento da Msica e da Filosofia alem, acrescenta:
Neste pas ao contrrio, os fenmenos mentais seguem outra marcha; o
esprito pblico no est ainda criado e muito menos o esprito cientfico. A
leitura de um escritor estrangeiro, a predileo por um livro de fora vem
decidir da natureza das opinies de um autor entre ns. As idias dos
filsofos, ... , no descendem umas das dos outros pela fora lgica dos
acontecimentos. Nem, talvez, se conheam uns aos outros na maioria dos
casos e, , se se conhecem, nenhum aproveitou do antecessor. ... Que lao
os prende? No sei. que a fonte onde nutriam suas idias
extranacional. No um prejuzo; antes eqivale a uma vantagem.
4
Slvio Romero, na passagem acima, enumera inmeras caractersticas do
problema em questo; a ausncia de seriao na evoluo das idias, a pouca
densidade das reflexes filosficas, a ausncia de dilogo e por fim a recepo das
teorias europias. Entretanto, segundo a sua concepo fortemente marcada pelo
evolucionismo, a referida situao, antes de representar um problema era uma
vantagem, pois permitiria que os diferentes autores se elevassem acima do meio
social e adquirissem as ltimas conquistas dos povos civilizados. Na Introduo de
sua principal obra Histria da Literatura no Brasil, refere-se imitao estrangeira
como um dos cinco fatores determinantes da formao de nossa literatura, ao lado
dos portugueses, do negro do ndio e do meio fsico, que poderiam ser reduzidos a
trs: o meio a natureza americana (geologia, clima, fisiologia), as raas e a imitao
das idias estrangeiras. Para ele todo problema histrico e literrio no Brasil deveria
ser analisado a partir de um duplo ponto de vista, o universal (a influncia do momento
europeu) e o particular (a influncia do meio nacional).
5
Se, para o Slvio Romero, o problema da recepo das idias e da ausncia de
seriao, como vimos acima, no se apresentava ainda como um problema, por outro
lado, para Antnio Cndido, em meados do sculo XX, a superao deste trao
caracterstico de nosso processo evolutivo, assume uma importncia decisiva; ,
segundo ele, uma das razes que contribuem para explicar a grandeza de Machado
de Assis:
Se voltarmos, porm as vistas para Machado de Assis, veremos que esse
mestre admirvel se embebeu meticulosamente da obra dos
predecessores. ... Ele pressupe a existncia dos predecessores, e esta
uma das razes da sua grandeza: uma literatura em que, a cada gerao,
os melhores recomeam da capo e s os medocres continuam o passado,
ele aplicou o seu gnio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo
das experincias anteriores. Este o segredo da sua independncia em
relao aos contemporneos europeus. ... Por isso, o escritor mais
brasileiro que jamais houve, e certamente o maior.
6
Machado de Assis, representa portanto um exemplo da possibilidade de uma
sntese entre o particular e o universal, e justamente nisso reside a sua grandeza. O
exemplo do escritor fluminense, no representa, entretanto, o trao paradigmtico de
nosso desenvolvimento cultural, antes uma exceo.
Retomando, a partir de um universo terico totalmente distinto, uma concepo
largamente difundida na histria das idias no Brasil (presente por exemplo em
Oliveira Viana e Alberto Torres entre outros), Roberto Schwarz vai analisar a
disparidade existente entre a sociedade brasileira e as idias europias. Partindo de
uma observao de Srgio Buarque de Holanda, que afirmava: Trazendo de pases
distantes nossas formas de vida, nossas instituies e nossa viso do mundo e
timbrando em manter tudo isso em ambientes muitas vezes desfavorvel e hostil,
somos uns desterrados em nossa prpria terra,
7
Schwarz passa a analisar o
deslocamento existente entre idias originrias do liberalismo europeu e a realidade
escravista brasileira aonde a prtica do favor como uma prtica de dependncia
pessoal- ocupava um lugar central.
8
O critico de Machado de Assis observa: embora
a relao produtiva fundamental, a escravido no era o nexo efetivo da vida
ideolgica. A chave desta era diversa. Para descrev-la preciso retomar o pas como
um todo.,
9
uma vez existindo este deslocamento de sentido entre idias europias e
realidade nacional, Schwarz mostrar que o conceito de ideologia (entendido como
falsa conscincia) como tal no pode ser plenamente aplicado, uma vez que esta nem
mesmo descreve a realidade nacional, e se faz necessrio design-la como ideologia
de segundo grau; portanto nem mesmo o teste da realidade e da coerncia parece
ser decisivo.
10
Schwarz introduz, em sua anlise, o conceito de dependncia, desenvolvido
naquele momento por inmeros economistas e cientistas sociais brasileiros e latino-
americanos (podemos aqui nos restringir aos nomes de Ruy Mauro Marini e Fernando
Henrique Cardoso como dois exemplos extremos desta concepo). Ele afirma:
o ritmo de nossa vida ideolgica, ..., foi outro tambm ele determinado pela
dependncia do pas: a distncia acompanhava os passos da Europa.
Tanto a eternidade das relaes sociais de base quanto a lepidez
ideolgica das elites eram parte a que nos toca- da gravitao deste
sistema por assim dizer solar, e certamente internacional que o
capitalismo. Em conseqncia, um latifndio pouco modificado viu
passarem as maneiras barrocas, neoclssica, romntica, naturalista,
modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram
transformaes imensas na ordem social.
11
Como afirma o autor, esta situao dar origem, a um sistema de
impropriedades ou sistema de ambigidades, a um sentimento de desconcerto; e
indica de uma maneira sistemtica a persistncia destes aspectos na cultura brasileira:
a sensao que o Brasil d de dualismo e fictcio contrastes rebarbativos,
despropores, disparates, anacronismos, contradies, conciliaes e o que for-
combinaes que o modernismo, o Tropicalismo e a Economia Poltica nos ensinaram
a considerar.
12
E, concluindo sua argumentao, afirma: Ao longo de sua
reproduo social, incansavelmente o Brasil pe e repe idias europias, sempre em
sentido imprprio.
13
Aproximadamente dez anos aps, Schwarz retomar esta problemtica,
propondo como que um balano:
Brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experincia do
carter postio, inautntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa
experincia tem sido um dado formador de nossa reflexo crtica desde os
tempos da Independncia. Ela pode ser e foi interpretada de muitas
maneiras, por romnticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita,
cosmopolitas, nacionalistas etc., o que faz supor que corresponda a um
problema durvel e de fundo. Antes de arriscar uma explicao a mais,
digamos portanto que o mencionado mal-estar um fato.
14
Criticando Slvio Romero, o estudioso da obra de Machado de Assis vai
mostrar que o problema no consiste na ideologia da cpia cultural mais antes de
tudo um problema de nossa formao histrica:
A discrepncia entre os dois Brasis no produzida pela veia imitativa,
como pensava Slvio e muitos outros, nem marca um curto momento de
transio. Ela foi o resultado duradouro da criao do Estado Nacional
sobre base de trabalho escravo, a qual por sua vez, com perdo da
brevidade, decorria da Revoluo Industrial inglesa e da conseqente crise
do antigo sistema colonial, quer dizer, decorria da histria contempornea.
Assim, a m-formao brasileira, dita atrasada, manifesta a ordem da
atualidade a mesmo ttulo que o progresso dos pases adiantados.
15
Antes de concluirmos a questo analisada importante lembrar aqui, a
concepo desenvolvida por Wanderley Guilherme dos Santos em seu artigo
Paradigma e Histria: A Ordem burguesa na imaginao social brasileira; no qual o
autor elabora uma periodizao das Cincias Sociais no Brasil, utilizando a noo de
percepo dicotmica da realidade, que, segundo ele, seria o paradigma dominante
nas reflexes sociais no Brasil no perodo aberto com a proclamao da Repblica e
concludo com o golpe militar de 1964; a este paradigma pertenceriam a grande
maioria das obras de interpretao da realidade brasileira do referido perodo, que tem
seu incio com o escritor Euclides da Cunha e que prolonga-se com diferentes matizes
nas obras de Alberto Torres, Oliveira Vianna entre outros at chegar ao ISEB.
16
Por
outro lado, o socilogo Bolivar Lamounier em uma passagem crtica concepo de
Wanderley Guilherme sublinha que este paradigma dicotmico no uma
caracterstica exclusiva do pensamento poltico brasileiro; mas antes de tudo uma
caracterstica comum aos pases que conheceram uma forte reao contra as Luzes
e o Constitucionalismo abstrato do liberalismo francs do sculo XVIII..
17
Uma vez reconstrudos em linhas gerais os termos da problemtica em
questo, passamos agora a problematizar
18
, a questo da recorrncia da questo da
recepo na Histria das Idias no Brasil, a partir do conceito de repetio. Como
conhecido a questo da repetio foi desenvolvida na Histria da Filosofia por
diferentes autores, entre os quais cabe aqui destacar, Vico e Nietzsche entre outros.
No final dos anos setenta, Paul Laurent Assoun, retorna a esta questo na obra de
Marx, dedicando uma anlise ao estatuto deste conceito em O Dezoito Brumrio de
Lus Bonaparte;
19
como tambm o utiliza para analisar a trajetria do conceito de
Crtica na Filosofia Alem.
20
Neste ltimo texto, os autores tentam problematizar a
recorrncia de uma problemtica crtica em dois universos tericos distintos: o
aparecimento deste conceito em 1840-1845 na teoria marxista, e seu reaparecimento
em 1920-1930 na Teoria Crtica. Tanto para Assoun e Raulet (como tambm para ns
aqui) trata-se apenas de um fato, restando estabelecer o sentido terico.
21
Na
tentativa de elucidar o estatuto terico da repetio, os autores afirmam:
A histria do pensamento registra com freqncia, como um fenmeno em
certa medida crnico, essa impresso de j visto, pela qual elementos ou
reas inteiras de significantes tericos parecem repetir-se, em momentos
da diacronia distintos ou afastados. A certa altura da investigao dos
sistemas se desencadeia esse eco insistente que perturba o princpio da
individualidade dos sistemas. No se sabe mais quem repete quem. O
princpio da prioridade cronolgica no explica esse efeito do retorno que
turva a progressividade do sentido
22
Aps esta exposio sobre o sentido do conceito, os autores estabelecem a
pergunta que julgamos fundamental: Qual ser o significado dessa repetio na
genealogia das teorias?
Aps interrogar as diferentes possibilidades de leitura do estatuto da repetio,
os autores interrogam: Deve-se diagnosticar-se um recurso fundado na prxis
histrica, destinado a reativar um instrumento conceptual adaptado, tal uma arma
antiga que se recupera para novos combates? Haveria uma necessidade objetiva da
teoria a estimular a recuperao de armas consideradas inteis, agora eficazes para
as tarefas de um presente que se repete?
23
Ao longo desta comunicao pretendemos, por um lado, reconstruir alguns
momentos da problemtica da recepo na Histria das Idias no Brasil, e tentando
indicar como ela est estreitamente associado a questo dos deslocamentos de
significado existentes entre o lugar ocupado pelas diferentes concepes tericas no
interior da totalidade social na qual foi criada e do lugar ocupado na totalidade dentro
da qual foi recebida; sublinhamos a recorrncia destas questes e tentamos mostrar
que esta recorrncia poderia ser entendida a partir do conceito de repetio; e por fim,
tentamos mostrar que esta repetio era a manifestao de um sintoma, ou seja, a
no soluo dos problemas reais.
T
INTRODUO
Durante o perodo de consolidao do Estado Moderno, o intenso processo de
mudanas vivenciado pela sociedade ocidental, no plano econmico, social cultural,
provocou transformaes no mbito da famlia, com forte desdobramento nas prticas
de sociabilidade e na crescente diferenciao entre a infncia, a juventude e o mundo
adulto. Essa nova configurao implicou a necessidade de homogeneizao e de
maior controle social, levando os espaos institucionais a adotarem sistemas mais
rigorosos de classificao e controle. Como sabemos, a partir dos sculos XVI e XVII a
disciplina foi introduzida no espao escolar com o propsito de submeter o aluno a um
controle cada vez mais estrito e a distribuio por faixa etria passou a obedecer
critrio cada vez mais precisos. Contrapondo-se pedagogia humanista, que no fazia
distino entre a criana e o homem, o processo de diferenciao da massa escolar,
iniciado no final do sculo XV, e sobretudo a partir do sculo XVI, com o objetivo de
adaptar o ensino ao nvel dos alunos, indicava a preocupao com as particularidades
da infncia e da juventude.
Assim, sobretudo durante o sculo XVIII, o esforo empreendido para produzir
o homem esclarecido fez com que as idades fossem reinventadas e a passagem da
infncia idade adulta passasse a ser ritmada pela educao e pela instruo
(CARON, 1996: 141). Dessa forma, as novas prticas pedaggicas procuravam
evidenciar o papel preponderante da educao na modelagem do homem e, a partir
da, o ensino secundrio, mais do que ensinar, tinha a obrigao de educar
moralmente o futuro adulto (CARON, 1996: 138-9). Ao mesmo tempo, o processo de
substituio da famlia pela escola, consolidado na passagem do sculo XVIII para o
XIX, transformou o colgio numa instituio essencial sociedade, abrindo-se para os
leigos, nobres, burgueses e tambm para famlias mais populares (ARIS, 1981: 171-
3). A abertura dos estabelecimentos de ensino populao em geral tambm era uma
resposta aos novos tempos, descortinados pela Revoluo Industrial, que
evidenciavam a necessidade de instituies dirigidas a outras camadas da populao,
que no apenas elite.
Diante desse quadro, a partir do sculo XIX, a Igreja ultramontana procurou
estimular, em muitos pases europeus, o renascimento e a criao de vrias ordens e
congregaes religiosas voltadas educao e assistncia das camadas mais
empobrecidas. Entre essas estava a dos Irmos Maristas, cujo modelo educacional
originou a presente reflexo.
A congregao Marista
1
, tambm conhecida como Pequenos Irmos de Maria,
foi fundada por Marcelino Champagnat, em La Valla, na Frana, em 1817, justamente
no bojo do movimento de retorno que caracterizou o perodo posterior Revoluo
Francesa. Como sabido, o cenrio poltico francs e o desenvolvimento das
congregaes religiosas durante a primeira metade do sculo XIX, possibilitou Igreja
a penetrao no ensino do Estado e no desenvolvimento de ensino livre, favorecendo
a atuao do movimento ultramontano. Nesse contexto, em 1851, logo aps ter
incorporado outras duas instituies voltadas ao ensino, a congregao Marista foi
reconhecida como instituto para as finalidades legais de ensino.
No entanto, com o advento da Terceira Repblica na Frana, o conflito entre a
Igreja e o Estado, que passou a defender o ensino livre, obrigou as congregaes
religiosas a redirecionarem seus projetos no combate ao ensino leigo e difuso de
outras escolas confessionais.
Diante desse quadro, a partir de 1880, a congregao
Marista deu incio ao processo de expanso dos limites de atuao para outros pases
e continentes, chegando ao Brasil no final do sculo.
No quadro poltico brasileiro, a Igreja vivia um momento delicado, devido ao
rompimento com o Estado e, nesse sentido, a vinda de congregaes religiosas
voltadas ao ensino, significava uma colaborao importante ao movimento reformista,
especialmente no sentido de contrapor-se ao ensino leigo proposto pelo regime
republicano de inspirao positivista (AZZI, 1996: 240).
Beneficiados pela atuao ineficiente do Estado na poltica educacional, as
congregaes religiosas conseguiram instalar-se, em pouco tempo, em diferentes
regies do pas, buscando consolidar sua ao tanto na rea educacional quanto
religiosa. No Paran, devido ao perfil religioso de grande parte da populao,
composta por imigrantes europeus, essas congregaes desempenharam importante
papel, no apenas na transmisso da educao formal, mas sobretudo na construo
de modelos de conduta, manifestos e reproduzidos no espao social por meio das
prticas culturais.
Embora, as mudanas polticas ocorridas no mbito interno da Igreja,
sobretudo a partir do Conclio Vaticano II, apontem para o esgotamento dos modelos
de educao catlica, muitos estabelecimentos religiosos resistem e permanecem
ocupando um lugar privilegiado no mercado educacional. Que questionamentos
podem ser levantados em relao a essa constatao? Quais os fatores que
possibilitariam a permanncia de algumas instituies catlicas, como a dos Maristas,
enquanto outras fecharam suas portas ou foram incorporadas por instituies mais
slidas? A partir dessas indagaes e de algumas evidncias formulamos nossa
problemtica, tentando investigar as estratgias utilizadas pela congregao Marista
para efetivar um modelo educacional, destinado originalmente para a sociedade
europia do sculo XIX, que fosse aceito por determinadas camadas da sociedade
brasileira no sculo XX.
O guia das escolas maristas
A prtica educativa da congregao Marista, independente do perfil da clientela
ou do espao geogrfico, sempre pautou-se no Guide des coles a lusage des petits
frres de Marie, manual que continha as preposies educacionais formuladas por
Marcelino Champagnat, publicado pela primeira vez em 1853, alguns anos aps sua
morte.
Para a elaborao desse modelo pedaggico, Champagnat inspirou-se em
duas obras bastante conhecidas poca: o Ratio Studiorum dos jesutas e A conduite
des coles chrtiennes, de So J oo Batista de La Salle. Vale notar que, embora as
duas propostas apresentassem caractersticas comuns, sobretudo no que se refere
necessidade de oferecer uma educao completa, que levasse em conta o corpo, o
intelecto e a alma do indivduo eram destinadas a clientelas distintas. Enquanto o
projeto jesutico estava mais voltado educao da elite, a obra de La Salle, publicada
no incio do sculo XVIII,
2
defendia a necessidade de transmitir cdigos de boa
conduta para as camadas mais pobres, como forma de garantir a ordem e a
moralidade pblica e preparar trabalhadores produtivos para a nova sociedade que se
institua (AZZI, 1996: 22).
Assim, incorporando alguns aspectos fundamentais presentes nesses dois
modelos, a congregao marista, atenta s demandas educacionais provocadas por
uma clientela cada vez mais numerosa e exigente, procurou se adequar ao contexto
socioeconmico do sculo XIX, adaptando seu mtodo s novas exigncias sociais.
Dessa forma, aliando princpios catlicos aos ideais positivistas de ordem e progresso,
que pautavam o ensino laico, o Guia Marista se propunha a preparar os jovens,
adequadamente, para inseri-los na sociedade do trabalho, sem, contudo, deixar de
lado o principal objetivo da instituio, que era o de manter e disseminar o catolicismo
dentro dos moldes tradicionais pregados pela doutrina ultramontana.
A partir dessa perspectiva, o modelo Marista objetivava a formao de
cidados cristos, disciplinados e virtuosos que, alm de incorporarem as noes
aprendidas no espao escolar, fossem capazes de promover a reproduo desse
modelo no espao social. Para tanto, era necessrio oferecer uma educao completa
sedimentada na obedincia e na disciplina, consideradas como meios eficazes para
a formao da vontade, definida no Guia como o poder que possui nossa alma de
decidir deliberadamente e de agir livremente em funo de uma boa causa
apresentada pela razo (GUIDE, 1923:38). Dentro da educao moral, a vontade
deveria ser construda, da mesma maneira que se constri um msculo, visando
produzir atos repetidos da virtude desejada, como por exemplo, o amor ao trabalho.
Para atingir esse objetivo, o professor deveria fazer entrar em jogo os meios
disciplinares para que o aluno possusse vontade de trabalhar, exigindo que ele
cumprisse as tarefas impostas no prazo fixado(GUIDE, 1923:42). Nesse sentido, a
regularidade das atividades dirias, cumpria importante papel, no somente no sentido
de facilitar a internalizao de normas e regras, mas tambm como uma frmula de
controle e dominao, uma economia de poder que visava introjetar nos alunos o
hbito do trabalho.
Outro aspecto fundamental que deveria ser explorado devidamente pela escola
era o controle do corpo. A exigncia de manter o corpo ereto, o olhar atento, as mos
sobre a mesa e os ps juntos durante as atividades escolares, bem como de andar em
filas silenciosas pelos corredores, exemplifica os dispositivos de controle utilizados
pelos colgios catlicos, os quais visavam no apenas levar o aluno a usar o tempo e
o espao de uma forma particular, mas exercitar o autocontrole, ou seja, entre as
diversas tecnologias de controle utilizadas pela escola, o autodisciplinamento visava
exercitar o domnio sobre o prprio corpo como uma das maneiras de aprender a
administrar a vontade e governar a si mesmo (LOURO, 2000: 22).
Para alcanar esses objetivos era fundamental que o aluno permanecesse o
maior tempo possvel no estabelecimento de ensino, protegido das ameaas do
mundo externo. Nesse sentido, uma das estratgias utilizadas era dispor de amplos
espaos ao redor dos edifcios escolares como um recurso pedaggico que levasse o
indivduo a aprender a mover-se no grande espao, de forma organizada e
disciplinada (FOUCAULT, 1987:136). As slidas paredes externas, muito mais do que
estabelecer limites entre o mundo sagrado e o profano, tinham como atribuio
demarcar as dicotomias entre o interno e o externo, o fechado e o aberto, o proibido e
o permitido, procurando distinguir seus alunos dos outros, daqueles que estavam fora
de seus muros (LOURO, 1999:91). A escola passava a constituir, assim, a um s
tempo, um espao e um lugar no qual o aluno, alm de aprender a orientar-se e a
mover-se na vida em sociedade, aprendia, sobretudo, a conhecer o seu lugar na
estrutura social e o papel que lhe foi destinado (FRAGO, 1993-4:27). Nessa
perspectiva, o espao adquiria uma dimenso educativa, podendo ser visto como um
componente da arquitetura escolar que encerraria uma espcie de discurso que
institui em sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e
vigilncia, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que
cobre diferentes smbolos estticos, culturais e ainda ideolgicos (ESCOLANO, 1993-
4:100). Ou seja, os espaos constituam-se em um importante recurso didtico, cujo
objetivo primordial era o de produzir novas categorias de pensamento e novos
sistemas de representao que se traduziriam em formas diferenciadas de
organizao social (VARELA, 2000:73).
Alm da utilizao do espao como um recurso pedaggico, outra estratgia
utilizada pelos colgios maristas era a separao do alunato, de acordo com o perfil da
clientela em estabelecimentos distintos. O carter homogmico do grupo, alm de
possibilitar uma maior eficcia nos mtodos de vigilncia, evitava a utilizao de outros
mecanismos de controle e disciplina, que eram necessrios em estabelecimentos
mantidos por outras congregaes religiosas, onde alunos internos, externos e
seminaristas, ao conviverem nos mesmos espaos escolares, eram constantemente
vigiados e impedidos de qualquer contato.
Outro fator explicativo para a diviso da clientela escolar tambm pode ser
atribudo ao desejo das congregaes masculinas em atender s exigncias de
determinados grupos sociais, ou seja, de famlias s quais interessava manter os filhos
num espao de relaes sociais homogmicas. Conforme observa HOBSBAWM
(1998: 253), na Inglaterra no final do sculo XIX e incio do XX, esse era, por exemplo,
um dos critrios adotados pela elite e pela burguesia ascendente para a escolha do
colgio de seus filhos.
Embora a separao dos estudantes em estabelecimentos distintos
minimizasse os problemas causados pelo contato entre internos e externos, nos
internatos masculinos a convivncia diria e a proximidade dos alunos em reas
comuns (refeitrios, dormitrios e sanitrios), onde as possibilidades de vigilncia
eram menores, exigiam um maior rigor na delimitao dos territrios ocupados por
crianas, adolescentes e jovens. No J uvenato Champagnat
3
, por exemplo, os internos
eram separados fisicamente, em dois grupos, de acordo com a faixa etria. Alm de
ocuparem alas distintas no interior do prdio, crianas e adolescentes eram separadas
em ptios localizados em espaos radicalmente opostos da grande propriedade.
Assim, o isolamento visual, nos momentos de atividade fsica e lazer, obtido pelo
prprio edifcio, garantia que os alunos jamais se encontrassem, nem mesmo no
horrio da missa.
A preocupao em reforar a vigilncia nesses espaos est evidenciada em
um dos captulos do Guia das Escolas, ao trazer recomendaes explcitas sobre os
cuidados a serem tomados nos dormitrios que deveriam permanecer fechados
durante o dia e nos banheiros, onde era imprescindvel a presena do irmo
responsvel durante o horrio de banho coletivo dos grupos. Da mesma forma, a
proibio expressa no Guia de que os meninos colocassem as mos no bolso durante
as atividades de recreao ou passeios chama a ateno para a tentativa dos Irmos
de domar os impulsos da sexualidade, procurando manter a inocncia dos alunos e
retardar o mximo possvel as descobertas indesejadas.
4
Nesse sentido, o mestre
tambm deveria cuidar para que no existisse jamais relaes mais ntimas ou
familiaridade perigosa entre os alunos. De acordo com o Guia, uma unio muito
estreita entre duas crianas, sobretudo se a diferena de idade for considervel dever
ser desfeita(GUIDE, 1923: 110). Uma das medidas recomendadas nesse aspecto era
mudar de tempos em tempos os lugares dos alunos, evitando assim a possibilidade de
uma amizade mais estreita. Nem mesmo durante as refeies era permitido o contato
dos menores com os maiores.
Tambm era preciso tomar todas as precaues para que os alunos
internalizassem comportamentos adequados ao padro de masculinidade construdo
pela sociedade da poca. Nesse aspecto, a questo da homossexualidade era um
fantasma que deveria ser combatido ferozmente e, por isso, os cuidados com a
exposio do corpo eram uma preocupao constante: Ningum podia ficar nu no
ginsio (...) a camisola intermediava tudo. Punha-se a camisola para tirar a roupa,
punha-se a camisola para botar o calo (tomava-se banho de chuveiro usando
calo), punha-se a camisola para tirar o calo... (Maia, In: AZZI, 1999: 69-70). O
depoimento sobre o cotidiano de um colgio marista, no incio da dcada de 1930,
retrata os cuidados tomados pelos Irmos para impedir que os jovens tivessem
qualquer contato, ainda que de forma apenas visvel, com os perigos do corpo.
Cercados por duas modalidades distintas de tecnologias de poder (a do corpo
e a dos espaos), a ao dos alunos estava, portanto, condicionada a um sistema de
imposies previamente definidas, que levavam os diferentes grupos, classificados de
acordo com o nvel escolar, a manterem relaes intergrupais, inscritas num quadro de
territorialidade, onde cada grupo acabava constituindo uma configurao social
especfica, com fronteiras delimitadas. Dessa forma, os alunos eram condicionados a
reconhecer o territrio assinalado, o lugar reconhecido a cada indivduo, o que
correspondia a uma hierarquia social e poltica materialmente representada no espao,
que deveria ser tambm reproduzida na sociedade.
Nesse sentido, outra estratgia utilizada pelos colgios maristas para manter
os alunos atrelados a uma comunidade de inscrio era incentivar as prticas de
sociabilidade que congregassem exclusivamente seus alunos, procurando, dessa
maneira, afast-los dos demais grupos de jovens, principalmente daqueles oriundos
das escolas pblicas.
Para manter essa separao, as escolas catlicas vo procurar criar espaos
prprios de sociabilidade, tanto no mbito interno quanto externo ao colgio, onde os
estudantes pudessem desenvolver atividades esportivas, culturais e religiosas que os
mantivessem longe do cio, dos perigos e das tentaes que rondavam o espao
urbano.
Alm das atividades regulares, alguns eventos, como os jogos catlicos, as
festas religiosas, excurses, piqueniques, exposies, peas teatrais e apresentaes
musicais, tambm tinham o objetivo de minimizar as possibilidades de relacionamento
com grupos alheios ao seu universo cultural.
De modo geral, por no serem de carter obrigatrio, essas prticas davam ao
estudante a possibilidade de escolha, permitindo que a formao dos grupos internos
fosse determinada por interesses individuais ou afinidades eletivas. O maior grau de
liberdade dos alunos para selecionar as atividades das quais desejavam participar
permite perceber, com maior clareza, como eram engendradas as redes de
sociabilidade entre os diferentes grupos e, ao mesmo tempo, como, a partir dessa
agregao, era forjada uma identidade especfica que distinguia a comunidade
formada pelos alunos dos colgios catlicos dos jovens em geral.
Ao colocar em prtica o modelo pedaggico elaborado por Champagnat, o
principal intuito da congregao era o de criar um sistema de pensamento e de
condutas singulares que possibilitasse ao aluno marista reconhecer e ser reconhecido,
em qualquer situao, como componente de um grupo exclusivo. Ou seja, para
designar a identidade coletiva era preciso delimitar o territrio e as suas relaes com
o meio ambiente, formando imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados
(BACZKO, 1995: 309). Para a inculcao dessa identidade especfica era preciso um
esforo no sentido de criar condies para que os alunos permanecessem no colgio
o maior tempo possvel, evitando dessa forma a convivncia mais estreita com
indivduos estranhos ao grupo.
Os estranhos ou outsiders, conforme definio de Norbert Elias, eram,
principalmente, os estudantes das escolas pblicas e leigas, vistos como companhia a
ser evitada devido formao religiosa inadequada, ou deficitria, recebida nesses
estabelecimentos. Quanto aos estudantes de outros colgios catlicos, masculinos e
femininos, a convivncia era aceita, ocorrendo at mesmo parcerias em alguns
eventos religiosos e culturais. Sendo assim, a identidade dos alunos maristas era
construda em oposio a outros grupos
5
, tendo como vis principal a prtica religiosa
e as prticas de sociabilidade.
Em Curitiba, particularmente, o modelo marista encontrou ressonncia, na
medida em que veio atender aos anseios de determinadas camadas, formadas
especialmente por famlias tradicionais ou de descendentes de imigrantes, que, aps
terem obtido sucesso na rea do comrcio e da indstria, estavam interessadas em
investir na formao superior de seus filhos, direcionando-os para outras atividades
sobretudo as liberais mais condizentes com o meio social no qual estavam inseridos,
graas conquista do capital econmico. Assim, a inteno dos colgios maristas era
justamente oferecer o capital cultural que possibilitasse a essas camadas no apenas
ampliar o seu universo de ao profissional, mas, sobretudo, mover-se com
desenvoltura num espao econmico e social que exigia cada vez mais o domnio de
cdigos comuns e o controle de si. Assim, o papel do colgio era o de criar um padro
comum de comportamento, por meio de cdigos de conduta, que fizessem a mediao
entre as prticas individuais, adquiridas pelos alunos no mbito da famlia, e a
estrutura social. Se, como diz Hobsbawm, as atividades formais desenvolvidas na
escola j cumprem esse papel, os Maristas foram alm, procurando utilizar os espaos
de sociabilidade para complementar a interiorizao dos cdigos e as relaes de
interdependncia.
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Doutora em Histria do Brasil pela Universidade Federal de Paran (UFPR) e Professora do Curso de
Histria da Universidade Tuiuti do Paran (UTP).
1
So chamados Irmos Maristas os membros de vrias congregaes religiosas consagradas Virgem
Maria. As duas mais importantes so a dos padres maristas, congregao fundada pelo padre Coin,
aprovada em 1816 e formada por padres e freiras; e a dos irmos maristas, instituto de ensino formado de
religiosos leigos, com votos simples, aos quais este estudo se refere.
2
Alm da obra A conduite des coles chrtiennes publicada em 1717, La Salle escreveu Devoirs du
chrtien, editada em 1703 e Les Rgles de la biensance et de la civilit chrtienne, publicada pela
primeira vez em 1729.
3
O estabelecimento foi fundado juntamente com o Externato Santa Maria, em 1924, logo aps a chegada
da congregao Marista em Curitiba. Trs anos depois foi transferido para uma sede prpria, no bairro do
Bigorrilho (BONATO, Colgio ..., 1980. n. p.).
4
Ocultar o rosto atrs dos livros, ficar com as mos debaixo da carteira e falar com os colegas eram
proibies previstas no Regimento Interno do Colgio Santa Maria.
5
A idia de que a identidade resulta de uma construo social que existe sempre em relao a uma outra
tambm defendida pelo etnlogo Denys Cuche, que analisa os grupos tnicos vendo a identidade como
uma modalidade de categorizao da distino ns/eles, baseada na diferena cultural. Nessa
perspectiva, identidade e alteridade constituem uma relao dialtica, ligadas ao processo de incluso e
excluso (CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru: EDUSC, 1999. p. 175-202).
UMA MULHER EM SEU TEMPO: CLIA PERIOTO ANTUNES
*
T
Ruth Ribeiro de Lima
**
Cntia da Silva Arruda
***
Esta artigo objetiva apresentar algumas reflexes a respeito do depoimento
acolhido junto pioneira Clia Perioto Antunes,
1
na cidade de Maring-PR. A
entrevista, em profundidade, gravada em audiocassete, foi realizada na residncia da
pioneira, na data de 24 de maio do ano em curso e teve durao de quatro horas.
Primeiramente, permitam-nos apresentar a entrevistada.
A personagem
A depoente chegou em Maring, cidade do norte paranaense, em companhia
de seus pais, Otvio Periotto e Vitria Espanha,
2
em maio de 1945. Provinham da rea
rural do Estado de So Paulo. Contava, ento, com onze anos de idade. Trata-se,
portanto, de uma pioneira de segunda gerao. Aqui, considera-se pioneiro todo
aquele que chegou nessas plagas durante a dcada de 1940, e que veio por livre e
espontnea vontade. Portanto, dois fatores determinam o ser pioneiro: ter chegado na
dcada em que foi inaugurado o ncleo inicial, denominado Maring Velho e ser
responsvel pela deciso de migrar. E pioneira, a consorte deste, que para c veio,
independente de sua vontade. Aos seus filhos, denominamos pioneiros de segunda
gerao.
Aos dezesseis anos, casou-se com J os Pedro Antunes, que aqui chegou em
1942. Portanto, Clia filha de pioneiros e esposa de pioneiro. Teve seis filhos, trs
rapazes e trs moas. Foi dona de pia enquanto o marido vivia. Aps a morte deste,
trabalhou fora para complementar penso deixada pelo consorte e poder sobreviver
e sustentar os filhos. Com os predicados naturalmente conquistados pela sua
condio de mulher e aperfeioados na luta diria para administrar um lar, exerceu a
funo de zeladora em escolas da cidade. Hoje, com os filhos j casados e donos de
seus destinos, Clia dedica-se apenas a cuidar de sua filha Helosa Helena, que, por
erro mdico, j h catorze anos leva uma vida meramente vegetativa.
Clia uma mulher alegre, cheia de vida. tambm solidria e corajosa. Aos
63 anos de idade, doou um rim para a irm Sebastiana. , tambm, o sonho de todo
oralista, pois uma excelente narradora. Como diriam alguns, uma narradora
exemplar. Em todo o desenrolar de sua histria de vida, no se observam zonas de
silncio.
3
Tudo pode e deve ser narrado. Tudo assumido! No h, ento, sofrimento
na vida desta depoente? Sem dvida, h: a morte do marido, a morte do caula, a
morte do pai, do irmo mais novo... A doena da me, da filha... Mas, Clia uma
mulher sbia. H uma compreenso de sua parte de que tudo merece ser vivido, e se
mereceu ser vivido, pode e deve ser narrado! Desde que voc lhe indague!
Para Walter Benjamin, a arte de narrar uma relao alma no olho: assim
transforma o narrador sua matria, a vida humana.
4
E sob essa compreenso, que
distingue dois tipos de depoentes: o que sente e o que conta. Clia, sem dvida, est
entre os primeiros, pois ao narrar sua trajetria de vida faz relatos que tm interesse
por tempo indefinido.
5
A riqueza de detalhes uma constante, independente se o
relato se refere a experincias recentes ou remotas. E ela ainda apresenta duas outras
caractersticas. A primeira: raramente se reporta a outrem. Seu depoimento todo
centralizado em si mesma. As incontveis pessoas que fizeram ou fazem parte de seu
universo, vo desfilando uma a uma conforme vai desenrolando o novelo de sua vida.
Porm, s desfilam porque esto imbricadas em seu viver. So citadas porque so
personagens de uma vida e no desculpas para esconder o que no se quer revelar! A
segunda: sua narrativa no linear, ou seja, o ir e vir no tempo dos acontecimentos
sua marca registrada. Marca esta, regida pelo nascer dos filhos.
Porm, o que tem Clia para nos transmitir? Que experincias e emoes
6
podemos com ela compartilhar? Sem dvida, inmeras. Porm, dado os limites aqui
impostos, destacamos, apenas, alguns momentos relevantes das suas recordaes e
subjetividade em relao ao mundo privado. Vamos, ento, mergulhar no narrar de
Clia e com ela vislumbrar o cotidiano feminino em um ncleo pioneiro. Vamos?
O tempo da chegana
Corria o ms de maio do ano de 1945, quando Clia, seus pais e seis irmos
chegaram nessas plagas. Diferentemente da maioria de outras mulheres, que para c
vieram forosamente acompanhando maridos e pais, Clia, era agitada por
sentimentos contraditrios. Queria vir e, ao mesmo tempo, no queria deixar o local
de origem. Pois,
No incio, eu fiquei triste, n? Porque, a bem dizer, eu me criei naquela
fazenda. Eu j morava l desde os trs, quatro anos. Fiquei triste, n?
Porque ia largar as amigas, as filhas das comadres, ia largar o cavalo, em
quem eu gostava de andar..[...] Mas, ns no mandvamos, n? Se ns
mandssemos, ns no tnhamos vindo!
7
Mas, por outro lado,
... Meu pai veio passear aqui na regio. E veio at Maring. Quando voltou,
ele levou umas pencas de banana. Umas pencas de banana que era a
coisa mais linda do mundo! [...] Quando ele voltou, s pensava em ir
embora! [...] Puxa l vida! Meu pai entusiasmou tanto a gente! Ele no se
cansava de repetir que aqui dava de tudo! At pedra, se plantasse dava!
8
Porm, a primeira impresso sobre a nova terra, no foi diferente de outros
pioneiros, independente do sexo e da idade com que chegaram:
Maring era apenas um patrimnio com vrios ranchos! [...] E era mato,
mato e mato. Mato de tudo quanto era lado! S mato! O caminho que
trouxe os nossos cacarecos de Arapongas, veio assim...
9
Oh! Porque era
uma estradinha desse tamanho! Uma lameira que s vendo! Pois, havia
chovido o ms inteiro. E, durante a viagem, tinha um barro que os dedos
dos ps da gente chegavam a ficar assim arreganhado! [...] Fazer o qu? O
ms inteiro chovendo! Naquela poca, chovia muito, muito! Mas, muito
mesmo!
Vivendo a adolescncia
Diferente de seus irmos, Clia revelou-se extremamente independente e
ousada para uma menina em meados da dcada de 1940. Pois, como ela mesma se
encarrega de confirmar:
Eu escapava do hotel
10
e l ia eu. E minha me no queria que a gente
sasse na rua, porque estava assim... Fervendo de homem. De homem
sem famlia, tudo peo! E havia muito homem, porque estavam construindo
a estrada de ferro. E minha me tinha medo! Mas, eu escapava e ia danar!
[...] Eu era doidinha pra ir numa gafieira! Eu ia e danava com todo mundo.
Danava com preto, com branco... Eu no estava nem a. E no tinha
quem me segurasse, no!
Outro drama vivenciado pelos pais de Clia foi o namoro. Alis, o nico namoro
em sua vida. Nesse aspecto, a depoente seguiu os mesmos passos, no s das irms
que lhe correspondiam em idade, mas seguramente das moas casadoiras que no
Maring Velho residiam poca. So suas as declaraes:
O Zezinho foi o meu primeiro e nico namorado. Com todas as minhas
irms foi assim, arrumou um namorado e casou com o primeiro que
arrumou. E acabou! Se houve alguma que foi meio vassourinha, com
certeza, isso no teve significncia nenhuma, porque com o primeiro moo
que namorou, casou! E eu falava sempre pra minha me: A senhora tem
que agradecer a Deus, a todo instante, porque a senhora teve seis filhas e
nenhuma das filhas fez a senhora passar vergonha!
Eu casei bem apaixonada pelo meu marido. Mas, eu morria de medo de
avanar o sinal e punha medo nele tambm, n?[...] Eu sempre falava pra
ele Eu sou tua namorada e voc meu namorado. Mas, no banca o
besta no, porque o meu pai no flor que se cheire! E nem meus irmos!
E voc j est enjoado de saber como que tem que se comportar, e,
depois, tem tempo, vai ter muito tempo! Bem no dia em que eu me casei,
eu fiquei menstruada! Coitado, esperou tanto!
A rebeldia de Clia encontrava campo frtil na sua paixo pelo namorado.
Porm, o moo Zezinho estava longe de se encaixar no modelo de genro idealizado
por seus pais, pois
Meu pai no queria o casamento com esse rapaz. Ningum da minha
famlia queria o meu casamento com ele. Porque diziam que ele era peo,
que ele era um sem famlia! [...] Quando eu comecei a namor-lo, ele j
estava com vinte e dois anos de idade. Ele era dez anos e um dia mais
velho do que eu.
Vivenciando o casamento:
No tardou muito para Clia viver o que prematuramente seus pais j haviam
vaticinado. Ela mesma quem d uma pista do que foi esse tempo, o tempo do
matrimnio.
At o fim, eu fui apaixonada pelo meu marido Se Deus me devolvesse o
meu Zezinho! Mas, tem horas que a minha vontade ir l no cemitrio [em
Campinas] e oh!
11
Fazer farinha dele! Sabe por qu? s vezes, eu fico me
lembrando de tudo o que eu passei, e me d uma... Porque o Zezinho
queria continuar levando uma vida de solteiro, sem dar satisfao pra
ningum. E isso eu no podia aceitar, n?A, o pau quebrava! Quebrava
feio!
fcil entender as razes de Clia. A instabilidade em sua vida d para ser
aquilatada pelo nmero de mudanas de residncia. Contamos juntas e chegamos ao
nmero dezessete. Uma cifra, sem dvida, surpreendente para um tempo em que a
norma era as famlias se transferirem de residncia quando passavam da casa
alugada para uma prpria ou quando construam uma outra melhor, no geral, no
Maring Novo!
Enquanto se dividia entre as delcias e as agruras da vida de casada, algumas
mudanas vo se operando em sua forma de ser. Por um lado, em funo da falta de
opo. No dava para deixar o marido sem o apoio dos pais. Como sustentar a si e
aos filhos? E esse apoio ela nunca teve. O que era comum na poca. Clia nos contou
que sempre que manifestou essa vontade, seu pai lhe recordava o seguinte: Ns
cansamos de lhe avisar. Tanto eu como sua me. Mas, no era o que voc queria?
Ento, volte para sua casa e trate de cuidar bem dos seus filhos e do seu marido. No
era o que voc queria? Por outro lado, pela prpria forma de ver e viver o papel da
mulher, enquanto mera coadjuvante do elemento masculino nos papis de gnero
atribudos pela sociedade machista da poca. Com isso, a menina rebelde se torna
uma mulher dcil. Extremamente dcil. Dcil e obediente! Uma questo de
sobrevivncia?
12
ela quem conta. ela quem justifica:
Quando eu voltei de Campinas e falei: Vamos para nossa casa, agora? O
Zezinho me respondeu: Que casa? Ns no temos mais casa, no. Eu
vendi a casa. [...] Ele sempre me enganava para vender as nossas coisas!
H um tempo atrs, ele j tinha mandado eu ir ao cartrio assinar uns
papis. E eu fui assinar os tais papis. Ele estava vendendo a nossa casa e
os dois lotes de terra! Eu falei pra minha sogra: Dona Santa, quando me
casei com ele, eu no tinha nada, eu no o ajudei a ganhar nada. Era tudo
dele! Eu s tive que obedecer! E eu fui obediente! S que eu no vi a cor
desse dinheiro! No vi nenhum tuturris, nenhum tuturris! Como sempre!
Mas, eu fui obediente! S isso que eu tenho pra contar. Mais nada! Eu fui
obediente! E ela, a minha sogra, comentou: isso a. Voc foi obediente
mesmo! [...] Eu fui obediente!
E a cega obedincia tambm se verificava em relao sogra. Pois,
Mas, a, o corpo[do Zezinho] j estava todo tomado pela doena. E sabe o
que a minha sogra me falava? Pelo amor de Deus, se ele te procurar,
voc no fuja dele, heim? Porque eu no quero que ele saiba que ele est
com a doena que ele est! E eu nunca o rejeitei!
E, quando ele morreu, ele estava na casa da minha sogra. Quando ela o
tirou do hospital, ela no quis lev-lo l pra nossa casa. Ela me disse o
seguinte: Onde vocs moram muita baguna, oficina, baile,
gritaiada! muito barulho l, Clia! Posso lev-lo pra minha casa? E, eu
falei: Pode, dona Santa, o que a senhora fizer est bom e eu estou de
acordo. Aceitei, porque eu a obedecia de todo o jeito!
Talvez procurando compensar a submisso forada, Clia se volta para criar a
sua famlia. No espao de 17 anos, seis gravidezes e seis partos. Clia teve opo?
Sim, e optou por ter os filhos que teve. E se no teve mais, porque enviuvou em
1966, sendo que o ltimo filho quando nasceu, o pai j havia falecido. O pioneiro J os
Pedro Antunes falece em 15 de agosto de 1966 e o filho nasce em 1 de janeiro de
1967. interessante observar trs fatores: primeiro, Clia periodiza a sua vida atravs
do nascimento dos filhos. Antes de o Carlos nascer, eu... Depois que a Clia nasceu,
ns... Hum... foi em 1959, porque eu ganhei o Paulinho em 1960. Segundo, d para
perceber a angstia quando constatou que no engravidava e que o problema era seu.
E, terceiro, foi o nico terreno em que sua rebeldia voltou a aflorar. Portanto e a nosso
ver, o ter filhos determina o ser Clia aps o casamento. um espao que s dela.
Um espao em que ela no admite interferncias. Nem do marido, nem da sogra, de
ningum! E ela quem vem sustentar as nossas afirmaes, quando narra que:
Inclusive, para ganhar a menina, eu tive que fazer tratamento. Porque eu
no engravidava mais. Ento, eu tomei um remdio que me ensinaram, um
tal de Defensol. Parecia um vinho moscatel de to gostoso que era! No
tomei nem a metade do vidro e j engravidei. E, antes da Sueli completar
dois anos, eu ganhei o outro, o Paulinho. L em Terra Roxa.
Provavelmente, j intuindo a gravidade da doena e o fim que se avizinhava, o
marido de Clia tenta, sua maneira, intervir para dar um paradeiro no tamanho da
famlia que, num tempo no muito distante, ficaria somente a cargo de Clia. Porm,
como ela poderia concordar em dar cabo da razo de sua existncia? Deixemos que
ela prpria narre:
Depois que eu ganhei a menina em Campinas, o Zezinho em vez de
conversar primeiro comigo, n? Falar pra mim: Vamos l no doutor. Voc
vai operar para no ter mais filho. O doutor vai fazer assim, vai fazer
assado! Ns j temos quatro filhos, chega, n? No, ele me levou no
doutor... Levou-me l e me mandou entrar na sala do doutor. E o doutor
me perguntou: A senhora quer ser operada? Eu respondi: No senhor, eu
no estou sabendo nada disso. Meu marido no falou nada pra mim.
Primeiro, ele tinha que ter conversado comigo. Agora, ele manda conversar
com o senhor e eu sem saber nada? Doutor, o que isso? No, eu no
quero ser operada, no. Deixa eu do mesmo jeito que eu sou! A mulher
nasceu no mundo pra ter filho, deixa-me ter quantos filhos eu tiver que ter.
Eu era novinha naquela poca. Quer ver? Eu tinha vinte e dois vinte, vinte
e trs anos, por a!
Todavia, em que condies as mulheres tinham filhos? O que significava parir
no incio da j distante dcada de 1950?
Ter filho naquela poca era uma histria parte! Os partos eram uma
tristeza! Era tudo parteira curiosa, n? Eu mesma se for contar... Eu no
gosto nem de falar! Eu nunca mais fui a mulher que eu era quando me
casei. A mulher que eu era antes de eu ter filho, porque depois que eu tive
filho, eu oh!
No era bem que no havia mdico. Havia sim. J havia vrios quando eu
fui ter o meu primeiro filho. Inclusive, no Maring Velho, o doutor Lafaieth
Tourinho cansou de fazer partos. Acontece que o mdico era caro. E a
gente era boba. Muito boba! E acabava sempre por repetir os costumes da
me!
13
Eu sei, minha filha, que oh! S parteira curiosa, viu? Uma me
estragou de um lado, a outra deixou um pedao de tripa dentro do meu
tero. E se eu no descubro sozinha aquele pedao de tripa, eu tinha tido
um treco. Eu podia ter morrido!
Como era a vida das mulheres na dcada de 1940 e 1950? Do que se
compunha o cotidiano feminino numa frente pioneira?
Naquela poca... A minha vida era uma vida louca. Muito louca! Eu tinha
que cuidar da casa. Eu tinha que cuidar de tudo, n? Porque eu cuidava da
horta, eu criava galinha, eu criava porco... Eu s digo que a gente
trabalhava muito! Eu punha gua no banheiro pro meu marido tomar banho.
Era daquele chuveiro de carretilha. Eu engraxava o sapato dele, a bota,
tudo. E a minha casa era limpinha! [...] Eu areava as panelas de ferro com
pedao de telha. Os alumnios, todo sbado, eram areados, n? E eu
pendurava tudo na cerca, porque o alumnio para no embaar o brilho,
tinha que secar ao sol! Ah! Os alumnios ficavam todos expostos na
cozinha, pois eles eram pendurados nas baterias. Aqueles alumnios
brilhando era o orgulho de toda dona de casa! [...] Nessa poca, eu ainda
tinha que buscar lenha no mato pra fazer comida. Eu e mais uma vizinha.
Trazia tudo na cabea! Ns cortvamos a lenha no machado ou no
traador. No traador, cada uma pegava dum lado! Eu ainda puxava gua
do poo, fazia po, torrava e moa caf, lavava roupa... Tudo isso,
carregando menino no colo e com filho na barriga!
Antes de encerrar, queremos ainda registrar mais uma fala de Clia:
A vida era diferente naquela poca, n? Mas, eu adorava aquela vida! O
que eu mais gostava no Maring Velho... Eu gostava de tudo. Mas, eu
gostava, principalmente, do meu namorado!
No teatro das lembranas de Clia, as situaes vivenciadas na adolescncia
so espelhos onde brilham todas as iluses de como deveria ser a vida. Livre, leve e
solta! Em suma, plena de felicidade! A fixao romntica em um determinado perodo
da vida bastante comum em indivduos que tiveram a vida marcada por mudana
abrupta. Principalmente, quando o tempo do depois est marcado por momentos
dolorosos.
14
simples entender porque o tempo da adolescncia transforma-se no
tempo da utopia!
*
Este artigo uma verso modificada do que foi originalmente apresentado na Comunicao
Coordenada Histria Local. Histria Oral. Diversos Olhares, com o ttulo de Possibilidades e Limites
do Relato Oral.
**
Doutora em Histria Econmica, professora do Departamento de Economia da UEM e Coordenadora
do Ncleo de Estudos Locais.
***
Acadmica da UEM e pesquisadora do Programa de Iniciao Cientfica.
1
A importncia desta entrevista parte da compreenso de que ... todo relato sempre um relato social. O
narrador ao reconstruir sua histria estar tambm reconstruindo a histria do seu grupo, do seu tempo.
Cf. MONTENEGRO, Antonio Torres. FERNANDES, Tnia Maria. Introduo. In: ________, _______
(org.). Histria Oral. Recife : Universitria; UFPE, 2001, p. 10.
2
Como informa a depoente: Naquela poca, no usava a mulher levar o nome do marido.
3
Porm, a repetio constante e desnecessria de quase tudo o que j havia sido contado foi integrante e,
porque no dizer, estruturante do relato. Caracterstica da fala que fica solicitando anlise!
4
KOTHE, Flvio R. (org.). Walter Benjamin: Sociologia. So Paulo : tica, 1985, p. 164.
5
CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza. Mulheres de diferentes classes sociais em So Paulo: a
famlia e a penetrao no mercado de trabalho. In: MEIHY, J os Carlos Sebe Bom. (Re)introduzindo
Histria Oral no Brasil. So Paulo : Xam, 1996, p. 195.
6
preciso levar em conta A lgica das lembranas a da emoo. [...] Partindo-se apenas da fala do
narrador, j se pode perceber as diversas vozes com as quais ele expe suas lembranas do passado, o
grau de envolvimento emocional com o assunto, os momentos em que deixa que as lembranas tenham
voz em suas falas, em verdadeiros retornos ao passado (reproduzindo dilogos, recuperando a linguagem
e as expresses que usavam na poca) e nos momentos em que mais friamente interpreta a situao
ocorrida. Cf. KENSKI, Vani Moreira. Memria e prtica docente. In: BRANDO, Carlos Rodrigues
(org.). As faces da memria. Campinas : Editora da UNICAMP, [s.d], p. 101 14. (Coleo Seminrios,
2)
7
A entrevista foi por ns trabalhada seguindo os ensinamentos do oralista J os Carlos Sebe Bom Meihy.
Ou seja, utilizamos os conceitos de transcrio, textualizao e transcriao. Portanto, o depoimeto sofreu
todo um processo de recriao, objetivando, com isso, facilitar a leitura e a compreenso da mesma.
Trata-se de um processo demorado e trabalhoso, dado que no se pode interferir nem nas idias e nem na
forma do depoente exprimir o pensamento. Para maiores informaes sobre essa maneira de lidar com a
entrevista, consultar, entre outras, as seguintes obras de Meihy: Metodologias de Pesquisa. Cadernos
Ceru. So Paulo : USP, n. 5, 2 srie, p. 53 68, 1994 e Manual de Histria Oral. So Paulo : Loyola,
1998. E tambm GATTAZ, Andr Castanheira. Braos da resistncia : uma histria oral da imigrao
espanhola. So Paulo : Xam, 1996 e Lapidando a fala bruta: a textualizao em histria oral. In: MEHY,
J os Carlos Sebe Bom. (Re)introduzindo histria oral no Brasil. So Paulo : Xam, 1996, p. 135 40.
8
Apesar do espao limitado, fazemos questo de incluir, dentro do possvel, as falas de Clia. Pois, se
assumimos que o processo de entrevista em Histria Oral uma via de mo dupla, onde entrevistador e
entrevistado (denominado de colaborador) fazem um trabalho conjunto, queremos tambm que a
participao desta colaboradora no se restrinja somente relatar sua histria de vida e participar das
etapas de transcrio e reviso do texto. Fazemos questo de lhe abrir espao para sua participao
quando o texto, de que foi co-autora, vem a pblico. Clia destruiu seu velho lbum de retratos no af de
nos ced-los e nos fez inmeras ligaes telefnicas para informar nomes e sobrenomes de personagens
que, no momento do depoimento, no conseguiu lembrar. um tributo nosso Clia e um
agradecimento pelo seu total envolvimento com a nossa pesquisa.
9
Clia complementa com as mos, indicando um caminho que serpenteava. salutar o pesquisador estar
bem atento para toda uma linguagem corporal do depoente. Linguagem que se manifesta nos gestos, no
riso, nas Expresses da face e nas lgrimas contidas e incontidas. O depoimento sempre um somatrio
das vozes da fala e do corpo.
10
Clia complementa com as mos, indicando um caminho que serpenteava. salutar o pesquisador estar
bem atento para toda uma linguagem corporal do depoente. Linguagem que se manifesta nos gestos, no
riso, nas Expresses da face e nas lgrimas contidas e incontidas. O depoimento sempre um somatrio
das vozes da fala e do corpo.
11
A primeira atividade, exercida por Otvio Periotto e sua famlia, foi dirigir um hotel, o Hotel Guara,
arrendado de outro pioneiro, o J oo Tenrio.
12
Sem dvida, pois atravs da dominao imposta pela sociedade, vo sendo construdos,
inconscientemente, modelos prontos de comportamento, pensamentos e sentimentos. Os modos de agir
que possam por em risco a manuteno da sociedade, a estabilidade social, no so destrudos, mas
reprimidos e impedidos de manifestarem-se atravs de ameaas, castigos e proibies. Esta relao com a
cultura , portanto, uma relao neurtica, em que o indivduo renuncia a uma suposta individualidade, ao
seu comportamento original, para adotar comportamentos e padres valorizados e aceitos pelo grupo
social. Os comportamentos indesejveis so reprimidos em favor daqueles que possam garantir um
sentimento de identificao, uma gratificao afetiva ao sentir-se igual aos demais. Essa busca de
identificao, a necessidade de ser igual para ser aceito, pode ser uma das necessidades psquicas que leva
o indivduo, ainda que de forma inconsciente, busca de seus modelos de comportamento social.... Cf.
KENSKI, op. cit., p. 111.
13
Ainda em KENSKI, op. cit., p. 111, que vamos compreender que A necessidade de apresentar uma
resposta adequada s exigncias culturais e sociais que o momento impe, faz com que o sujeito busque
[...] a forma de agir de algum que exerc(e) algum tipo de autoridade sobre ele, e adote esse tipo de
comportamento.
14
A respeito, vide o interessante artigo de FELDMAN, Bela, HUSE, Donna. Entre a saudade da terra e a
Amrica: memria cultural, trajetrias de vida e (re)construes de identidade feminina na interseco de
culturas. In: BRANDO, op. cit., p. 25 60.
MARING PIONEIRA: ECONOMIA E SOCIEDADE ATRAVS DOS RELATOS
ORAIS.
*
T
Ruth Ribeiro de Lima
**
Este artigo presta uma homenagem pioneira Clia Perioto Antunes, por
trs bons motivos. Primeiro, pelo belssimo ser humano que ela .
Segundo, pela extraordinria narradora que se revelou. E, terceiro, pelo seu
total envolvimento com esta pesquisa.
Este artigo tem por meta trazer para o debate, fundamentalmente, dois pontos,
a saber:
1. A motivao para esta pesquisa ou que fatores me levou a investigar um tema
que, aparentemente, j est suficientemente investigado?
Ao desenvolver um projeto de pesquisa que tinha por meta produzir e resgatar
fontes para, num primeiro momento, criar um Centro de Documentao e,
posteriormente, registrar e publicar a histria de uma associao local, entrei em
contato com a Diviso de Patrimnio Histrico e Cultural, conhecida pela sigla
D.P.H.C., rgo pertencente Secretaria de Cultura, da Prefeitura Municipal de
Maring.
E desse contato nasceu o desejo de realizar esta pesquisa. Desejo este, que
se prende a alguns fatores. Vejamos:
Primeiro, a constatao do descaso por parte da Prefeitura Municipal gesto
1997/2000 com o rgo. Descaso que ficava evidente com a constatao da falta
de uma simples mquina xerogrfica, impossibilitando o usurio de tirar uma cpia do
documento pretendido no prprio local. Obrigando, com isso, a documentao, muitas
vezes original, a passear pelas ruas maringaenses. Com isso, colocando em risco a
existncia da prpria documentao.
Segundo, o fato de ainda ser, a meu ver, muito pequeno o nmero de
entrevistas gravadas com pioneiros e pioneiras fundadoras.
1
Pois, para um total de
1147 pioneiros fundadores registrados, somente 86 foram ouvidos por intermdio de
gravao de entrevista. Acusando, portanto, um percentual de apenas 7,5%. O quadro
01, na pgina a seguir, comprova o que estou afirmando.
QUADRO 01
NMERO DE PIONEIROS FUNDADORES ENTREVISTADOS
Ano N de
Pioneiros
Fundadores
N de Entrevistas
Gravadas em
udio
N de
Entrevistas
Transcritas
N de Entrevistas
Gravadas em
Vdeo
1933 01 01 01
1934 01
1038 08 02 02
1939 13 01 01
1940 15 03 03
1941 21 02 01
1942 42 05 04
1943 62 05 01
1944 99 11 10
1945 116 03 02
1946 143 09 06
1947 151 09 09
1948 169 13 12
1949 137 13 11
1950 169 10 08
TOTAL 1147 86 70 01
Fonte: Quadro construdo a partir dos dados contidos em Catlogo. Acervo da diviso
de Patrimnio Histrico e Cultural. Maring : Grfica Municipal, 1995, p. 109
43.
Terceiro, o pequeno nmero de entrevistas transcritas. Conforme se pode
tambm observar no quadro 01, somente 70 entrevistas foram transcritas, das 86
gravadas.
Quarto, dentre as entrevistas transcritas tenho em mos uma cuja transcrio
se encontra manuscrita. Acredito pela falta de verbas que tem sido uma constante
no rgo que haja outras. Muitas outras!
Quinto, dentre ainda o total de entrevistas gravadas, apenas uma o foi em
vdeo. O quadro 01 tambm testemunha a minha afirmao. Reter a imagem desses
pioneiros tambm desejo deste projeto de pesquisa.
Sexto, o fato de ainda haver homens e mulheres pioneiros fundadores que no
tem seus nomes registrados enquanto tais. Como exemplo, cito: Ernesto Lima,
Geraldo Lima, J oo Lima, Antonio Lima, J os de Lima, Izolina Alves de Lima, Inhr
Lima Pompeu, J udite Pompeu Lima inclusive uma das primeiras professoras, e
Clotilde Lima. Exemplo este, que tem lugar apenas em uma famlia. Acredito que
muitos outros nomes iro surgindo medida que esta pesquisa for avanando.
Stimo, o registro de alguns fatos pela historiografia local em desacordo com
quem o vivenciou. Por exemplo:
Vocs querem saber quem foi que, de fato, teve a primeira serraria l no
Maring Velho? O primeiro foi o Santiago. O primeiro nome no sei se era
Divino, Valdevino... Todo mundo o chamava somente por Santiago. Uma
coisa dessas... Depois que o Balani montou a serraria. Portanto, o
Santiago mais antigo que o Balani. Inclusive, quem cedeu a madeira para
a construo do Ceclio,
2
foi o Santiago, para ele pagar aos poucos em
servio.
Oitavo, o fato das entrevistas gravadas pelos pesquisadores do D.P.H.C., ter
enfocado o testemunho dos pioneiros somente a partir de sua chegada nessas plagas.
Aqui interessa e muito saber a respeito da origem, infncia e juventude destes
homens e mulheres.
Nono, a forma de tratamento dispensada mulher pioneira casada, enquanto
depoente, pois me parece que ela foi sempre ouvida juntamente com seu marido. A
meu ver, ela figurou apenas como apndice. E quando figurou! Pois, conversando com
uma das pesquisadoras do D.P.H.C., esta me narrou o fato de um determinado
pioneiro ter fechado a boca de sua consorte, com o clssico: Voc no sabe de nada.
Fique quieta!. E ela ficou. Ficou calada durante todo o tempo em que durou a
entrevista. E continua calada at hoje, pois, salvo erro de minha parte, a equipe de
pesquisadores no a procurou depois para registrar seu depoimento. E continuar
calada ao longo de todos os tempos, caso no esteja mais entre ns. Registrar a
vivncia feminina tambm preocupao desta investigao. Sobretudo, porque a
pioneira Eullia Ribeiro de Lima jamais se conformou com o papel secundrio que lhe
foi atribudo. O testemunho abaixo eloqente.
At hoje me muito viva na lembrana a revolta de minha me, que
considerava extremamente injusto no darem vez, nem voz, s mulheres,
s pioneiras. Na sua indignao, dizia: Ele (meu pai, no caso) s veio
desbravar essa terra porque eu concordei em vir junto. Sozinho, jamais
teria vindo! Sem dvida, coberta de razo, pois desconheo, at o
momento, a existncia de um nico pioneiro que tivesse vindo para essa
plaga sem a anuncia, apoio e companhia de sua consorte. Ao lado de um
pioneiro, sempre esteve uma pioneira! Uma verdade simples, mas que a
historiografia oficial ainda teima em no enxergar.
3
Dcimo, primordialmente, o fato de estar entre ns ainda vrios homens e
mulheres que viveram esse perodo. Ou seja, seus pioneiros, reconhecidos ou no
oficialmente. E quando me refiro a um reconhecimento oficial, estou aludindo
listagem publicada no Catlogo de Acervo da D.P.H.C., constante s pginas 109 a
143.
4
Portanto, esta pesquisa se interessa pelo possvel testemunho de todos os
homens e mulheres que aqui aportaram e aqui viveram os anos que compem a
dcada de 1940.
Dcimo-primeiro, este projeto visa, preferencialmente, criar uma documentao
que possa subsidiar os pesquisadores do futuro ao analisarem (ou aprofundarem as
anlises j existentes sobre) os primrdios das atividades econmicas (produtivas ou
no) numa zona pioneira, bem como as relaes que se estabeleceram entre seus
agentes. Porm, antes de continuar, salutar explicitar o que estou entendendo por
atividades urbanas, produtivas e no-produtivas. Vejamos: por atividades urbanas
produtivas conceituo todas as atividades comerciais e de prestao de servios, que
tiveram por metas subsidiar as atividades agrcolas, no caso, as primeiras lavouras de
caf e cereais. E, por atividades urbanas no-produtivas todas as atividades
realizadas pelo elemento feminino no cuidado de seus familiares, como, por exemplo,
lavar, cozinhar, coser, tirar gua do poo, fabricar o po, cortar e armazenar lenha,
torrar e moer caf, etc. Atividades estas realizadas em lares localizados no permetro
citadino.
2. A gravao em vdeo, recurso ainda pouco explorado pelos oralistas
Levando em conta o que registra, at o presente momento, a bibliografia
existente sobre a temtica da histria oral, d para perceber que pouco tem sido
usado a gravao em vdeo. As citaes abaixo, simbolizando o ontem e o hoje da
pesquisa, testemunham o que estou dizendo. Inclusive, ALBERTI, ao relatar a
experincia do CPDOC, no incio dos anos 1990, explicita, alm da elevao do custo
operacional, ainda as seguintes desvantagens:
Em primeiro lugar, seria necessrio realizar a entrevista em um ambiente
suficientemente amplo para que fosse possvel filmar no s o entrevistado,
como tambm os entrevistadores, isto , a situao mesma da entrevista: a
localizao dos que dela participam, suas reaes, expresses e
movimentos, procurando assim registrar o clima e as circunstncias de
produo de um documento de histria oral. Isto porque acreditamos que o
papel do(s) entrevistador(es) tambm fundamental para a anlise
posterior deste tipo de documento, no se justificando, portanto, limitar-se a
filmagem ao entrevistado.
Em segundo lugar, ocorre que a dimenso da aparelhagem de vdeo-
cassete incluindo-se a o aparato de iluminao, necessrio para filmar
em ambientes fechados muitas vezes inibe entrevistado e
entrevistador(es), prejudicando seu relacionamento e os resultados da
entrevista como um todo...
5
SANTOS, em final do ano de 1998, caminha no mesmo diapaso, quando
afirma:
... depois de uma primeira experincia, abdicamos da idia de realizar as
gravaes em vdeo, pois o uso do mesmo implicava numa inibio maior
dos colaboradores diante de temas importantes, sem contar outras
limitaes como valor, transporte, manuteno e segurana do
equipamento... [...] Assim, particularmente em razo dessas limitaes, o
vdeo continua sendo um desafio para a prtica de uma boa histria oral de
vida.
6
No se pode, sem sombra de dvida, negar que, ao se fazer histria oral em
udio e em vdeo, h um substancial aumento do custo operacional. Contudo, a minha
experincia tem afirmado, mais e mais, medida que vou gravando os depoimentos,
primeiro em udio e logo em seguida, em vdeo, que o resultado vale a pena.
Porm, preciso observar que no estou advogando em defesa de entrevistas
apenas em vdeo. No, no isso que, pelo menos at o momento, considero a
melhor forma de registrar a experincia humana. Porm, de que maneira tenho tratado
a questo? Vejamos:
Inicialmente, gravo a entrevista em udio. Essa forma de agir tem propiciado ao
depoente (o colaborador no linguajar do oralista): primeiro, ordenar a histria de vida,
dado que o convido a falar, dentro do possvel, seguindo a ordem natural da vida, ou
seja, sobre a infncia, a juventude e a idade adulta. Segundo, falar livremente, pois a
presena apenas do entrevistador e tambm de uma histria compartilhada, dado que
sou filha de pioneiros, tem levado a confidncias. Inclusive, com pedido de
desligamento do gravador. Ou seja, a vontade de falar desordenadamente e sem
preocupao com o que est sendo dito, se esgota nessa primeira fase. Quando
chega a segunda, ou seja, na gravao em vdeo, que sempre feita num outro
momento, os colaboradores tm discorrido tranqilamente sobre a histria de vida que
querem ver registrada. A gravao em udio age como uma preparao do depoente
para a gravao em vdeo. Inclusive, comovente observar o esforo que alguns
fazem para romper a barreira da timidez, que s notada, por exemplo, no enrolar e
desenrolar da ponta da fralda da camisa. Contudo, o recado que ele se prope a dar
realizado com muita competncia, independente do grau de timidez.
Necessrio, tambm, deixar registrado que na gravao em vdeo, alm da
imagem do colaborador que ficar gravada (para sempre?), ainda se tem a vantagem
da reteno de todos os sinais de expresso no verbal, que enriquecem a entrevista
e que perdida na gravao em udio. Porm, e sobretudo, necessrio registrar que
na gravao em udio que a histria oral de vida e a histria oral temtica se
desabrocham em toda a sua plenitude. Portanto, uma complementa a outra. Essa a
minha experincia. E essa experincia que quero aqui compartilhar!
*
Este artigo uma verso modificada do que foi originalmente apresentado na Comunicao
Coordenada Histria Local. Histria Oral. Diversos Olhares, com o ttulo de Pioneiros. Pioneiras. Uma
experincia em histria oral. Uma experincia em histria local.
**
Doutora em Histria Econmica, professora do Departamento de Economia da UEM e Coordenadora
do Ncleo de Estudos Locais. Acadmica da UEM e pesquisadora do Programa de Iniciao Cientfica.
respectivamente.
1
Nesta pesquisa, considerado pioneiro fundador todo o cidado ou cidad que chegou e fez sua
morada na cidade de Maring, no decorrer do ano de 1940.
2
O pioneiro Geraldo Lima, refere-se ao seu irmo, o tambm pioneiro Ceclio de Lima, quando da
construo do barraco para a instalao da primeira oficina mecnica em Maring. A respeito, vide
CHATALOV, Wilson Roberto. Geraldo Lima : um pioneiro esquecido. Histria de vida. Histria de
uma atividade econmica. Maring, 2000. 152 p. Monografia. Departamento de Economia, Universidade
Estadual de Maring. Monografia esta, realizada sob a minha orientao.
3
Cf. LIMA, Ruth Ribeiro de. Nunca tarde para saber. Histrias de Vida. Histrias de Guerrilha. So
Paulo, 1998 : 626p. Tese (doutorado) Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, p. 9.
4
PREFEITURA MUNICIPAL DE MARING. Catlogo. Acervo da Diviso de Patrimnio Histrico e
Cultural. Maring : Grfica Municipal, 1995.
5
Cf. ALBERTI, Verena. Histria oral : a experincia do CPDOC. Rio de J aneiro : Contempornea do
Brasil, 1989.
6
Cf. SANTOS, Andra Paula dos. Objetividade histrica, subjetividade exposta: o trabalho de campo em
histria oral de vida com os militares de esquerda. Neho-Histria. So Paulo, n. 0, p. 53 70, junho de
1998.
A pesquisa histria por intermdio de imagens cinematogrficas
Sandra de Cssia Arajo Pelegrini
DHI/UEM e PGH/UEM-UEL
T
O estudo das imagens e a anlise dos espaos produzidos pelo homem so
imprescindveis para a apreenso da histria da humanidade. Valendo-se de
diferenciadas representaes artsticas, e no apenas de registros escritos, os seres
humanos procuram expressar seus anseios, modos de vida social, interesses e
emoes. Partindo desse pressuposto, a presente comunicao buscar discutir
metodologicamente a utilizao das fontes imagticas como documentos da pesquisa
histrica.As inmeras perspectivas de leitura histrica, aventadas no decorrer dos
ltimos dois sculos, estimulou os profissionais da rea a repensarem pressupostos e
prticas metodolgicas. Nesse mbito, observou-se uma considervel transformao
da tica e da narrativa tradicional da histria. Por certo, nos anos vinte, Marc Bloch e
Lucien Febvre j haviam evidenciado os limites da produo historiogrfica cujo
axioma se centrasse na idia de que as fontes textuais deveriam constituir o
instrumental privilegiado do historiador.
Ana Maria Maud e Ciro Flamarion Cardoso destacaram que a ampliao das
noes de texto e de documento alargou o mtier do prprio historiador que passou a
estabelecer contatos e articulaes tericas com outras reas do conhecimento em
busca de procedimentos metodolgicos condizentes com as necessidades de
descodificao dos documentos essencialmente imagticos (1997: 412). No que tange
a relao entre cinema e histria, duas tendncias de anlise tem se mostrado
bastante recorrentes. Do ponto de vista de Alcides Freire Costa, uma delas tende a
abordar o traado de diferenciadas trajetrias do cinema buscando identificar traos
estilsticos, indcios de continuidade ou ruptura, evolues e retrocessos considerados
relevantes num amplo ou restrito agrupamento de produes flmicas. Normalmente,
tal procedimento busca a confeco da histria do cinema. Alguns desses estudos
optam por especular sobre as origens do prprio cinema e sobre o contexto
econmico, social e poltico do seu surgimento, discutindo as bases tecnolgicas da
inveno e os resultados da criao dos primeiros pequena metragens. Outras
anlises visam explorar a memria do cinema desenvolvido em determinadas regies
e pocas (Ramos, 1991: 221) .
A segunda tendncia circunscreve-se a tentativa de abordar a produo
cinematogrfica como corpus documental. Inscritos nessa esfera, alguns trabalhos
tendem ainda a identificar as conexes entre o cinema e as lutas polticas e sociais do
seu tempo, enquanto outros buscam identificar traos estilsticos de filmes produzidos
com o intuito de atingir um pblico alvo comum a outros veculos de comunicao.
Com efeito, a historiografia que se ocupa do cinema vem superando paulatinamente
as armadilhas dos enfoques tericos positivistas, alargando seus referenciais
conceituais e tcnicos de modo a lhe permitir a compreenso das especificidades da
linguagem imagtica. As incurses metodolgicas que essas anlises vem exigindo
no admitem mais apenas o reconhecimento da imagem cinematogrfica como
importante testemunho da sociedade que o produziu, conforme sugeriam, desde a
dcada de 1960, os historiadores vinculados a Escola dos Annales (Le Goff, 1990).
Nem to pouco, o simples reconhecimento do filme como forma de narrativa que
comporta uma dada memria social, como afirmava Marc Ferro, um dos historiadores
pioneiros no estudo do cinema como fonte para pesquisa (1990:123).
A despeito da significativa contribuio desses pesquisadores no campo da
utilizao da imagem como fonte e do alargamento dos objetos da histria, faz-se
necessrio reconhecer que o estudo embasado na fonte imagtica, mais
precisamente, no documento flmico no pode supor que a mesma constitua uma
verdade incontestvel, nem to pouco, um reflexo direto ou indireto da realidade a
que se refere. Ela deve ser interpretada como mais uma forma de manifestao das
percepes humanas, inserida no mbito de prticas e representaes culturais,
polticas e ideolgicas de seu tempo. Nesse sentido, o presente exerccio supe o
enfrentamento de outros perigos, como por exemplo, o freqente enfoque
desabonador do cinema que no se afasta das convenes do mercado da cultura
industrializada ou da cultura de massa. Nesse sentido, torna-se oportuno retomar as
contribuies de Umberto Eco no tocante aos conceitos-fetiche da indstria cultural,
uma vez que os mesmos, normalmente, implicam concluses que beiram o excesso
de positividade ou, no extremo oposto, de negatividade
1
. Tais anlises terminam se
convertendo em uniformidades esquematizantes que, em ltima instncia, se
restringem a mensurar o quanto tais produes destinam-se a desviar e consumir as
energias necessrias reflexo e a constatar o esvaziamento artstico de produes
voltadas para o entretenimento
2
.
Inicialmente, faz-se necessrio reconhecer que a produo flmica, conforme
o axioma sugerido por Christian Metz, comporta a confeco de um texto e, como tal,
implica opes narrativas. Embora o autor, embasado na perspectiva derivada dos
estudos semiticos de Saussure, considere o cinema uma fala sem lngua e
proceda a uma anlise classificatria dos diversos gneros cinematogrficos, ressalta
que o filme consiste num texto cuja mensagem simultaneamente complexa e mista,
pois comporta diferentes nveis de matrias significantes e envolve, alm das imagens
e da sonoridade, roteiros, montagens, movimentao de cmeras, seleo de
tomadas. Esses recursos tcnicos, por sua vez, inserem-se na esfera das convenes
estticas e sociais derivadas de padres de significao e de representaes
caractersticas de um dado contexto histrico.
Em outros termos, torna-se interessante explicitar que os procedimentos
metodolgicos aqui expressos partiram da proposio, segundo a qual, o filme
combina diferentes graus de categorias vinculadas ao elemento visual e auditivo,
centrando-se na tentativa de descodificao dos sinais flmicos de O Auto da
Compadecida. Nos horizontes dessas preocupaes, ocupar-se- da leitura isotpica
da referida obra, buscando perceber, como sugeriu Ana Maria Mauad e Ciro Flamarion
Cardoso, o domnio visual e auditivo das imagens. Tal opo, de imediato, implica o
reconhecimento de que a observao da fotografia flmica comporta a percepo de
imagens que do a iluso do movimento e de textos ou palavras que, grafadas na tela
na forma de legendas, placas ou cartazes, podem sugerir a supresso de
determinadas ambientaes. Por outro lado, implica tambm o trato da categoria
auditiva, na qual se explicitam as falas gravadas dos personagens (dilogos), a trilha
sonora e os rudos selecionados ou pretensamente produzidos como se fossem
naturais (1997: 413).
A leitura da operao audiovisual, embora mobilize ncleos emocionais que
extrapolam o mbito puramente racional, pressupe a descoberta do seu
engendramento e a percepo de tcnicas desenvolvidas com o intuito de despertar
distintos sentimentos no telespectador. Portanto, torna-se imperiosos reconhecer que
as matrias significantes da narrativa flmica no se inscrevem na esfera da
espontaneidade, muito pelo contrrio, cada roteirista ou diretor tem uma maneira
prpria de contar ou de mostrar uma mensagem. O acompanhamento do
desenvolvimento das produes cinematogrficas tem evidenciado como a linguagem
flmica vem sendo construda, como abandonou o simples registro de cenas do
cotidiano e passou a investir em produes que buscavam uma forma alternativa de
narrativa atravs da cmera.
Nessa direo, talvez um dos primeiros indicativos a serem detectados na
composio da linguagem flmica seja a da tomada da imagem, uma vez que, esta
constitui a unidade principal do filme. J ustamente a sucesso de tomadas torna-se
responsvel pela definio da forma e do contedo das mensagens captadas e
transmitidas atravs das lentes da cmera. A tomada acompanha os movimentos da
cena ou da cmera, distinguindo-se uma tomada de outra a partir da substituio do
interesse visual que se pretende tornar evidente. Conseqentemente, em toda cena
so privilegiados determinados ngulos e planos que tendem a destacar o que se
deseja enfocar de modo a chamar a ateno do espectador (Oliveira, 1999: 9-10).
Na descrio audiovisual, o enquadramento e a iluminao constituem
elementos fundamentais pois colocam em foco as partes densas das imagens,
reunindo em torno das partes iluminadas o que dever ser mostrado e excluindo as
demais. Esse processo de adensamento atravs da contiguidade espacial
semelhante ao detectado nas artes plsticas e na fotografia. As imagens descartadas
inserem-se na obscuridade, ou seja, entre os intervalos decorrentes da seleo das
cenas e montagem das seqncias (Almeida, 1999: 37-38).
Por certo, a tomada adquire importncia preponderante e de realce daquilo
que se tenciona enfocar, conduzindo o espectador a entender o contedo das tramas
da estria, fazendo-o raciocinar. A seqncia de tomadas torna-se responsvel por
despertar no espectador vontade de ver o que se lhe vai mostrar logo em seguida.
Partindo dessas consideraes, conclui-se que todos os movimentos da cmera, todas
as aes dos comunicadores e todas as imagens que se sucedem na tela reprodutora
atendem a uma motivao, e para utilizar a terminologia de Wilson A. Aguiar, vale
dizer que a motivao pode ser natural - quando decorrente da mensagem do texto,
ou intencional quando pode ser provocada pelo diretor (1967: 37 e 116-117).
No que diz respeito s tomadas, h que se destacar que normalmente as
cenas podem ser realizadas com a cmera parada, utilizando-se somente das lentes e
movimentos dos comunicadores, ou com a cmera em movimento, ou ainda, com a
combinao das trs situaes. Na linguagem flmica, os scripts e os planos eleitos,
somados aos movimentos das cmeras e aos efeitos e cortes planejados, constituem
uma linguagem dinmica e determinam a fora comunicativa do filme.
O Plano Geral Absoluto (PGA); Plano Geral (PG); Plano Mdio (PM) ou Plano
de Conjunto; Plano Americano (PA); Primeiro Plano (PP); Grande Plano (GP); Detalhe
so alguns tipos de tomadas que podem ser utilizadas na composio da cena ou da
imagem. As tomadas de planos que podem apresentar certa variao quando se
pretende captar imagens de pessoas. So elas: Full Figure Shot (corpo inteiro);
Knee Shot (do joelho para cima); Thigh Shot (de coxa para cima); Waist Shot (de
cintura para cima); Busta Shot (do busto para cima); Head Shot (cabea enchendo o
quadro); Tight Shot (detalhe: mo, olhos, boca, etc.). Para Aguiar as tomadas menos
usadas em tev so as de corpo inteiro, as chamada full figure (que correspondem ao
Plano Mdio ou Plano de Conjunto) e as de detalhe nas partes do corpo (como mos,
olhos ou boca). A utilizao de cada uma dessas posies da cmera pressupe a
inteno de evidenciar determinados enfoques na imagem. Nos casos acima, a
cmera mantm-se parada, registrando apenas o movimento efetuado pelos atores
e/ou comunicadores em cena. Contudo, algumas outras tomadas podem ser
realizadas atravs do movimento da prpria cmera, como: Panormica Vertical e
Horizontal (PAN), Pndulo ou Arco. Cada um desses planos implica resultados
especficos.
Dentre eles, os mais comumente utilizados nos primeiros filmes eram o
Primeiro Plano (ou Close Up) e o Grande Plano (ou o Big Close Up), talvez pelo fato
de que ambos viabilizavam com maior facilidade o contato entre comunicadores e
comunicados. Mas, em especial, porque, em termos tcnicos, a mensagem tendia a
ganhar maior fora psicolgica, aproximando o espectador do clima experimentado
pelos atores, fazendo-o viver as tramas da mensagem mais intensamente,
transmitidas pelos planos fechados. O Primeiro Plano procura desencadear uma
maior aproximao entre o telespectador e o comunicador, estabelecendo um impacto
visual dramtico, pois preenche todo o espao da tela com uma nica imagem. O
impacto causado pela proximidade tende a imputar a esperana da descoberta dos
propsitos e dos pensamentos do comunicador que est sob esse enquadramento.
Nesse sentido, o Primeiro Plano acaba sendo considerado um dos trunfos no apenas
da linguagem cinematogrfica, mas, especialmente, da narrativa confeccionada para a
televiso. O Grande Plano aprofunda essa aproximao entre o pblico e o
comunicador pois preenche toda a tela com o rosto do personagem, procura colocar
em evidencia uma viso interior, captando e transmitindo as emoes que deveria
suscitar (Aguiar, 1967: 118-120).
Algumas tomadas so mais usadas do que outras, contudo, todas carregam
consigo uma dada singularidade. Quando acionado o Plano Geral Absoluto (PGA),
normalmente processa-se uma viso mais ampla do ambiente no qual ir se
desenvolver a mensagem. Essa tomada permite uma viso geral do conjunto,
possibilitando ao espectador o contato com elementos que tendem a contextualizar as
cenas mostradas em plano fechado e enfatizando o todo do ambiente. A utilizao, por
exemplo, do Plano Americano visa destacar o personagem principal; enfocando-o da
cintura para cima, a imagem procura mostr-lo mais intimamente.
Alm disso, a mensagem pode ser contada mediante tomadas fechadas ou
abertas, demoradas ou no, de acordo com a opo do diretor, podendo, ainda, ser
transmitida atravs do prprio movimento da cmera. Nesse caso, pode-se lanar
mo de uma pontuao que melhor explore as possibilidades do texto por intermdio
de efeitos eletrnicos processados nas passagens de substituio de planos, no
comando dos cortes, dos escurecimentos, das superposies, dos desfoques, entre
outros.
No caso da utilizao da cmera em movimento panormico (PAN), horizontal
ou vertical, a inteno normalmente promover a especulao. Os movimentos
panormicos lentos ou rpidos podem induzir assimilao de uma ao subjetiva.
Em outros termos, esse recurso acionado com o intuito de mostrar o que estaria ao
alcance dos olhos de um personagem que penetra em ambiente no familiar. Sua
caracterstica principal, em especial quando executado lentamente, de
esquadrinhamento, de procura ou de sondagem. A tomada panormica com
freqncia segue uma velocidade ditada pela prpria ao do personagem em foco,
mas torna-se mais lenta quando tem por objetivo mostrar o ambiente. Um outro
recurso muito utilizado o da aproximao e distanciamento das lentes da cmera,
tornando-se quase imperceptvel quando efetuado devagar ou mais evidente quando
se processa a troca de plano das tomadas (Aguiar, 1967: 24-25).
O filme, como toda linguagem, obedece a determinadas convenes. A
motivao verificada por intermdio das tomadas das cmeras fixas ou daquelas em
movimento no d conta de toda a sua complexidade. A tessitura do enredo e a
tonalidade da voz dos personagens, assim como os efeitos da pontuao das
imagens, tambm interferem no produto final pretendido. A transio um desses
efeitos que pode sugerir o aparecimento/desaparecimento, a desfocagem ou a fuso
de imagens. Algumas transies podem levar a ambientes idnticos ou para outros
diferentes, podem transportar o personagem ao mesmo ambiente, mas sob
angulaes diversas. Outras podem lev-lo ao passado, ao futuro. A utilizao do
efeito da fuso e do aparecimento/desaparecimento tem um significado mais
especfico, qual seja o da descontinuidade de tempo ou lugar (em maior ou menor
graus); opera um processo de perda de intensidade de luz, at que a imagem se
desfaa totalmente, ou vice-versa.
A produo da cena envolve outras atividades, como a confeco de
cenrios, projeo de ambientes e organizao das roupas, e ainda, o planejamento
de efeitos atmosfricos diversos (como a chuva, neblina, sol, entre outros). Igual
importncia atribuda msica-tema, que tem por finalidade caracterizar a
mensagem, preparando o clima das cenas que sero apresentadas, ou seja,
traduzindo as caractersticas essenciais da mensagem, sejam elas de carter cmico,
dramtico, violento ou romntico. Enquanto a sonoridade de cada um dos acordes
escolhidos proporciona uma atmosfera propcia ao desenvolvimento da cena, as
frases ditam-lhes as partes dos dilogos que constituiro o todo do enredo. A
importncia do tema musical dos filmes destacada na abordagem dos especialistas,
recomenda-se que nas cenas de beijo predominem os acordes romnticos, nas de
violncia imperem os metais (na medida em que exalta a interpretao) e nas de
mistrio, o bater sonante dos tambores.
Do ponto de vista dos especialistas, a composio do quadro, os planos de
tomadas e a msica constituem as bases de sustentao da mensagem flmica. Esses
elementos fortalecem a narrativa, capacitando-a a suscitar emoes, empatia ou
averses. A espacializao de objetos no quadro filmado produzem um dado sentido
no fio narrativo e esttico e tendem a situar ou localizar a ao em um dado espao
fsico. A presena de elementos no humanos nas descries flmicas parece
bastante comum na tradio cinematogrfica. Paisagens, fenmenos da natureza,
jardins e casas , ou ainda, objetos inanimados podem desempenhar at mesmo o
papel de protagonista. Muitas vezes, objetos e cenrios revelam significativos
aspectos do cotidiano humano. Determinados tipos de roupas ou artefatos indicam
representaes simblicas de um estilo de vida ou de uma profisso, entre outras
indicaes (Panofsky, 1982: 331)
Normalmente a mensagem cujo formato privilegie o tom dramtico tende a
utilizar de modo equilibrado os planos abertos e fechados, reservando para estes
ltimos inteno de mostrar mais intimamente o personagem, enquanto o anterior
busca apenas tornar-se indicativo ou revelador de suas caractersticas . Na comdia, a
marcao dos planos freqentemente ocorre de maneira mais vivaz, predominando o
plano aberto, uma vez que oferece maiores possibilidades de acompanhar a
movimentao dos atores e permite mostrar com agilidade mais acentuada os seus
gestos.
Outros aspectos da construo da narrativa flmica merecem destaque na
anlise do historiador, quais sejam, a utilizao de incursos mitolgicos e ideolgicos
da composio cinematogrfica, e ainda, a organizao dos quadros, cenas e
tomadas. A composio das cenas tambm podem variar segundo alguns critrios de
marcao como o triangular; o plano e contraplano, a associada, a descritiva e a
simblica. O primeiro tipo, explorado em mensagens de fundo dramtico, pressupe a
marcao em tringulo das posies de grupos de trs atores, ou de dois e um ponto
de referncia. Em meio a essa marcao, os atores movimentam-se desmontando e
formando novo tringulo. No caso do plano e contraplano mantm-se em foco uma
imagem em primeiro plano e outra em plano secundrio, promovendo-se a alternncia
entre ambos. Essa composio pode tambm ser mesclada composio triangular,
sendo determinada, neste caso, de associada (Aguiar, 1967: 190).
No raro a ordenao das aes somadas a certa inteno de causalidade da
narrativa flmica tendem a criar a iluso de naturalidade. Evidentemente, esse tipo de
linguagem que parece primar pela sua prpria negao, num movimento que
formalmente dissimulava a inteno de promover a narrativa, tendendo a buscar a
identificao do filme com a vida ou os sonhos do espectador tornou-se um das
caractersticas da produo em massa. A percepo desse efeito levou Adorno a
radicalizar sua crtica a chamada indstria cultural e a enfatizar que as tcnicas de
duplicao dos objetos empricos, quanto mais densas e integrais, tanto mais fcil
levaria a crer que o mundo de fora fosse o simples prolongamento daquele que se
assistia nas telas do cinema. Assim, inferia que todos os elementos da obra
cinematogrfica, desde o enredo at a trilha sonora, tendencialmente, buscavam
impedir a distino entre o filme e a vida das pessoas, absorvendo-lhes a razo e o
senso crtico (1978: 164-165).
Por ltimo, cabe lembrar que no horizonte dos possveis caminhos para a
anlise da narrativa flmica pode-se recorrer tambm utilizao de metodologias
derivadas de percepes semiticas que auxiliam o trabalho de identificao das
categorias de significao adotadas no discurso flmico. Essa opo se inscreve no
mbito de uma leitura isotpica que busca identificar a significao do conjunto da
obra e no apenas de seus signos isolados. Portanto, atravs de uma perspectiva
macrossemntica pode-se perceber a intensidade de elementos recorrentes, detectar
as categorias de significao e trs nveis semnticos representados no filme que est
sendo analisado, quais sejam, o temtico, o figurativo e o axiolgico. Por envolver um
amplo sistema de valores ticos, estticos, polticos e religiosos, o estudo semntico
axiolgico pode oferecer expressiva contribuio ao trabalho do historiador,
especialmente, porque evidencia a euforizao de determinados temas e conceitos,
enquanto desnuda a desforizao de outros, de acordo com os interesses dos
produtores e dos diretores e os valores da poca em que o filme foi elaborado
(Cardoso, 1997: 397-399).
A documentao flmica constitui um significativo manancial de narrativas,
gestos, posturas, referncias, e especialmente, de memria social. Cabe ao historiador
agir como um detetive, procurando pistas e evidncias que possam auxilia-lo a
desvendar um dado contexto histrico.
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A monarquia visigtica e questo judaica: de Sisebuto a Recesvinto
Sergio Alberto Feldman (UTP/UFPR)
O pensador iluminista Montesquieu, em sua obra O Esprito da Leis, afirma:
Devemos ao cdigo dos visigodos todas as mximas, todos os princpios e todas as
concepes da Inquisio de hoje; e os monges nada mais fizeram seno copiar,
contra os judeus, as leis feitas outrora...As leis dos visigodos so pueris, canhestras,
idiotas; elas no atingem de modo algum o objetivo; cheias de retrica e vazias de
sentido, frvolas nas bases e gigantescas no estilo
1
. A reflexo de Montesquieu deve
ser devidamente contextualizada, visto a maioria dos filsofos iluministas serem
anticlericais. Ainda assim diramos que reflete uma realidade muito especfica da
Antiguidade Tardia, na Pennsula Ibrica. Por que os visigodos realizaram uma poltica
to severa contra seus sditos judeus? Tentaremos explicar de maneira superficial,
nesta breve comunicao.
A queda do Imprio Romano do Ocidente gerou uma certa instabilidade na
Pars Ocidental, que levou a necessidade de adaptaes e ajustamentos entre a
populao romanizada e os invasores germnicos. Na Hispania, os invasores
visigodos, germnicos e arianos
2
, eram uma minoria diante da populao local, ibero-
romana e catlica. Aps um longo perodo de conflitos pelo poder, crises e divises,
ascende ao poder, Leovigildo. Este rei, realizou um trabalho de fortalecimento do
poder central, submetendo populaes do norte e da Btica e posteriormente
anexando o reino suevo. No conseguiu expulsar os bizantinos da parte sul da
Pennsula, mas fortaleceu muito o poder monrquico. Sua obra, consolidou a
unificao territorial, que se concluiu com Suinthila. Para aumentar o prestgio da
realeza, promoveu a adoo de um simbolismo, inspirado nos modelos baixo imperiais
e bizantinos, no intuito de consolidar sua dinastia e a instituio monrquica, usando
da imitatio Imperii, com a adoo de smbolos rgios (trono, cetro, diadema e
vestimentas reais), fundao de cidades (Recopolis e Victoriacum), criao de um
ritual de corte
3
. A territorializao da monarquia, exigia uma certa unidade dos
sditos. Esta unidade foi objetivada nas tentativas de Leovigildo de aproximar
catlicos e arianos, criando uma Igreja Nacional ariana, sob a gide da monarquia. A
populao hispano-romana no se entusiasmou e o clero catlico reagiu prontamente.
A situao se complicou com a revolta de Hermenegildo, o filho de Leovigildo, contra
seu pai. Hermenegildo, convertido ao catolicismo se apoiou em determinados setores:
segmentos do clero catlico e no apoio dos bizantinos. Sua revolta fracassou mas
deixou um ensinamento. A diviso do reino visigtico em catlicos e arianos, impedia
uma unidade efetiva. Com a morte de Leovigildo, seu filho e sucessor, Recaredo,
promoveu a converso dos visigodos ao catolicismo, atravs de um cuidadoso
processo que culminou com o III Conclio de Toledo (589). A unidade culminou com
uma aliana entre a Igreja e a Monarquia. A monarquia se tornava a protetora da
Igreja e esta sacralizava a instituio monrquica. No tomo rgiodo III CT, o rei
afirma que a origem de seu poder est em Deus, e que sua misso seria cuidar das
gentes que o Senhor nos confiou
4
. No mesmo conclio foram decretadas as primeiras
converses foradas de judeus
5
, atravs do cnon 14, que obrigava o batismo dos
filhos de casamentos ou de concubinato misto entre judeus e crists
6
. No mesmo
cnon diversas restries aos judeus, como a restrio da compra e converso de
escravos cristos, desempenho de cargos pblicos que permitissem aos judeus ter
poder para punir cristos.
7
. Recaredo mostra a sua aprovao deste cnon e promulga
uma lei civil, recolhendo varias das normas contidas no cnon 14 e acrescentando a
posse de escravos cristos e enfatizando a proibio de circuncid-los
8
. Esta lei de
Recaredo foi includa no Lber Iudiciorum (XII, 2, 12), e inaugura a vasta legislao
judaica decretada pela monarquia visigtica catlica. Na tica de alguns autores,
inicia-se um processo de perseguio aos judeus, no qual atuam de forma conjunta o
Estado e a Igreja
9
. Mas como entender que o papa Gregrio Magno proibia as
converses foradas e os reis visigodos ignoravam tais recomendaes?
10
Os sucessores de Recaredo, no promulgaram leis relativas aos judeus. Esse
o caso de Liuva, Witerico e Gundemaro
11
. Thompson afirma que as normas de
Recaredo relativas aos judeus no haviam sido estritamente aplicadas por Witerico e
Gundemaro
12
. A ascenso ao trono de Sisebuto (612-621) o ponto de partida para
uma radicalizao no tratamento dos judeus. O novo rei uma personalidade
complexa. De maneira diferente dos reis brbaros da Antiguidade Tardia, trata-se de
um soberano culto, letrado e mstico. Era fortemente influenciado pelo modelo
isidoriano de monarca, no qual a viso do papel do rei era muito importante para
direcionar as transformaes que levariam ao Reino de Deus na Terra. Isidoro, bispo
de Sevilha (m. 636), autor de uma vastssima obra literria, exerceu influncia em toda
sua gerao, na Hispania e fora da mesma. Autor das Etimologias, uma espcie de
enciclopdia medieval do saber clssico, que Isidoro tenta preservar, devidamente
remodelado sob uma viso crist de mundo. Entre muitas outras obras de sua autoria
temos a De natura rerum, um manual sobre a natureza e a Historia Gothorum,
Vandalorum et Sueborum uma das fontes mais importantes sobre o perodo
analisado. Isidoro entendia a monarquia como um oficio (officium) sacro
13
. O rei era o
protetor da Igreja e sua misso evangelizadora era ampla. Diz Isidoro: Rex eris, si
recte facias: si non facias, non eris
14
, afirmando a necessidade do rei agir com
retido ou seja ser justo. Dentro desta concepo isidoriana, a monarquia um
instrumento, entregue por Deus ao prncipe cristo, para objetivar sua misso de
conduzir seus sditos, a paz, a harmonia e ao bem estar, dentro de princpios
cristos
15
. O rei teria, como modelo, o rei David, rei santo que reconhece sua
fraquezas e erros e que incumbido por Deus de encaminhar seu Reino na Terra
16
. O
rei no est acima das leis, mas regido pelas mesmas
17
. A interveno do rei em
assuntos eclesisticos se resume aos deveres que os prncipes receberam de Deus,
para afastar os povos do mal
18
. A monarquia sacralizada ser construda de maneira
plena no IV Conclio de Toledo (633), atravs do cnone 75.
19
Neste se decreta a
uno dos monarcas, que aparentemente, na prtica, s se iniciar mais tarde com a
uno do rei Wamba. Isidoro retrata modelos de reis que espelham as qualidades que
almeja num rei cristo e virtuoso. As virtudes rgias principais seriam a justia e a
piedade.
20
Isidoro v em Recaredo um modelo de monarca cristo, religiosssimo
prncipe, pacificador, justo e unificador
21
. O novo monarca, Sisebuto, era amigo
pessoal de Isidoro. O rei sofreu forte influencia deste na sua formao e nas suas
idias, pelo menos na primeira metade de seu reinado. Isidoro escreveu a sua obra
De natura rerum a pedido de Sisebuto e dedicou sua primeira redao das
Etimologias, ao mesmo.
22
O monarca revela certa erudio: autor de um tratado
denominado Astronomicum que estuda o fenmeno das eclipses e da obra
hagiogrfica Vita Sancti Desiderii.
23
Essa ultima obra pode ser definida como uma
espcie de speculum principis relacionado com o conceito de rei desenvolvido por
Isidoro nas suas Sentenas.
24
Culto e piedoso, se enquadra no modelo isidoriano de
monarca em muitos aspectos. Consideramos que sua poltica em relao aos judeus
tem relao direta com a teoria poltica visigoda e com a concepo isidoriana do
monarca. Vamos tentar descrev-la de maneira sucinta. Sua ao em relao aos
judeus foi severa e ineficaz mas ter conseqncias graves por cerca de um sculo
mais, at a queda da monarquia visigtica em 711. Imediatamente aps ascender ao
poder Sisebuto, publicou em 612, leis que reafirmavam os decretos de Recaredo
relativos aos judeus. Seu objetivo inicial era retirar a posse de escravos cristos de
mos judaicas, impedindo que exercessem influncia sobre os mesmos e os
convertessem ao judasmo. Os judeus deveriam vender seus escravos cristos (junto
com seus peclios) a um comprador cristo, por um preo de mercado e no local
aonde residiam, para no permitir que os entregassem a judeus de outros pases.
Havia a opo de manumitir os escravos, liberando-os de laos de patrocinium com
seus ex senhores judeus, para que os judeus no tivessem nenhuma influncia sobre
os libertos.
25
A circunciso dos escravos era severamente punida. Os casamentos
mistos eram novamente proibidos e os matrimnios j existentes deveriam ser
desfeitos se a parte no crist no se convertesse imediatamente, sendo os mesmos
exilados e seus bens confiscados
26
. Em relao aos filhos nascidos de unies entre
judeus e cristos, deveriam ser convertidos, sem escolha de sua parte, religio
catlica.
27
Sisebuto conclui lanando uma terrvel maldio sobre os seus sucessores
que no futuro no cumprissem as suas determinaes.
28
No temos evidencias da
participao direta do clero. A concepo do papel do rei como vigilante da f e da
integridade do povo cristo que lhe era confiado, se cumpria de maneira plena.
Poucos anos depois, (616) no reinado do mesmo Sisebuto, ocorreram as
converses foradas de judeus. O decreto oferece a converso ou o abandono da
Espanha visigtica. No est absolutamente claro o nmero de conversos, nem os
que fugiram ou permaneceram sem se converter, pois no reinado de Suintila (621-631)
as presses diminuem e ocorrem apostasias. A partir desse evento, as leis
denominam confusamente muitas vezes de judeus, os conversos e seus
descendentes, seguidamente acusados de apostasia, tema que abordaremos em
outra ocasio. Katz acredita que, apesar dos cuidados de Sisebuto, muitos judeus
continuaram possuindo escravos cristos.
29
A atitude de Sisebuto, contrariava a
poltica oficial da Igreja, que no estimulava converses foradas. O grande papa
deste perodo, Gregrio Magno (590-604) acreditava na importncia da converso dos
judeus atravs da catequese e deplorava as converses foradas, prevendo o retorno
superstio.
30
Por isso a atitude de Sisebuto, ao converter fora os judeus foi
criticada por Isidoro e pelos componentes do IV Conclio de Toledo (633), como sendo
contrria aos princpios da Igreja. Isidoro de Toledo, em sua Historia, considera o
monarca bastante zeloso pela f, mas no agindo com sabedoria.
31
Qual seria a razo
deste aparente radicalismo? O autor do sculo XIX, Amador de los Rios, aponta a
influncia de Herclio, imperador bizantino, que aconselhou o monarca godo expulsar
seus sditos judeus.
32
Mas a atitude de Sisebuto mais radical e alm de expulsar,
inicia a converso forada de judeus em 616. Isso s pode ser compreendido,
enfocando alguns aspectos da vida deste perodo. Aps o III CT a monarquia
visigtica assumiu um papel de vigilante da f e da pureza do povo de Deus, numa
misso apostlica. Isso se juntava a personalidade de Sisebuto, j descrita acima. O
contexto da poca pode e deve ter tido grande influncia, j que as primeiras leis
datam de 612, mas a converso forada data de 616. Durante as negociaes entre
Sisebuto e os representantes do imperador Herclio na provncia da Spania (615),
chega a notcia da tomada de J erusalm pelos persas de Cosroes em maio de 614,
com a colaborao dos judeus da Terra Santa, perseguidos pelos bizantinos nas
ultima dcadas. As relquias da Vera Cruz foram desrespeitadas por Cosroes. O fato
comoveu todo o mundo cristo, ainda mais pela tradicional desconfiana existente em
relao aos judeus. Tratava-se de um momento de tenso e confronto entre cristos e
seus inimigos infiis, aliados.
33
Em 616 o rei decreta a expulso dos judeus do reino
de Toledo ou sua converso forada.
34
A efetividade deste gesto foi pequena: at 711
sero legislados dezenas de cnones conciliares ou leis reais com o objetivo de
reprimir o judasmo, mas sem conseguir acabar com o problema judaico. A poltica
radical de Sisebuto, mesmo sendo condenada, anos mais tarde, no IV Conclio de
Toledo (633) nunca ser revogada, pois implicaria em burla de um dos sacramentos, o
batismo.O IV CT dedicou cerca de dez cnones a questo judaica. A partir desta data,
os convertidos sero discriminados e acusados de cripto judasmo durante dcadas,
num vaivm de tolerncia ou perseguies. A legislao conciliar e a legislao real
tentaro superar a resistncia dos conversos e as tentativas de retorno ao judasmo.
Na Lex Visigothorum, editada por Recesvinto em 654, uma coletnea extensa de leis
se avoluma na parte XII, ora se complementando, ora se contradizendo ou sendo
imprecisa. A implementao destas leis foi bastante complicada e gera dvidas sobre
sua eficcia. Alguns reis sero tolerantes ou no se preocuparo com a questo
judaica [caso de Suintila (621-631) e Chindasvinto(642-653)], porm outros como
Recesvinto (653-672), Ervgio (680-687) e gica (687-702) legislaro inmeras leis,
severas e cruis, na tentativa de extirpar o judasmo e o cripto judasmo do seio da
Spania e da Gens visigtica. Temos evidencias que houveram A questo judaica se
tornar um srio problema para a monarquia visigtica at 711.
1
MONTESQUIEU, Esprito das Leis, apud POLIAKOV, L. De Maom aos marranos: histria do anti-
semitismo II. S. Paulo: Perspectiva, 1984
2
Arianismo movimento teolgico iniciado por rio, presbtero de Alexandria, no incio do sculo IV.
Condenado como hertico foi adotado por alguns elementos dentro da Igreja. Questionava a Trindade e
gerou grandes debates teolgicos. Alguns de seus pregadores, liderados e orientados pelo clrigo godo
Ulfilas, converteram os visigodos. Os burgndios, os vndalos e suevos tambm se tornaram arianos.
Isidoro em suas Etimologias, livro 8, cap.V, cita algumas dezenas de heresias derivadas do Cristianismo,
mas de maneira estranha se omite de citar o Arianismo.
3
VALVERDE CASTRO, M. R. Ideologa, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarqua
visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 179 et seqs.
4
VIVES, J . Conclios visigticos y hispano-romanos. Madrid;Barcelona: C.S.I.C., 1963, p. 108.
Quamvis Deus omnipotens pro utilitatibus populorum regni nobis culmen subire tribueret...Ainda que o
Deus onipotente nos deu a carga do reino em favor e proveito do povo....
5
GONZALEZ-SALINERO, R. Las conversiones forzosas de los judos en el reino visigodo. Roma:
C.S.I.C.;Escuela Espaola de Historia e Arqueologa en Roma, 2000, p.23. O autor entende que o
processo j se inicia com o primeiro rei catlico.
6
VIVES, op.cit.,p. 129. ut iudaeis non liceat christianas habere uxores vel concubines; set et si qui
filii ex tali coniugio nati sunt adsummendos esse ad baptisma que nao esta permitido aos judeus ter
esposas e nem concubinas crists...e se de tais unies nascerem filhos, conduza-se-os ao batismo.
7
VIVES, op. cit., p. 129.
8
ORLANDIS, J . Historia de Espaa: la Espaa visigtica. Madrid: Gredos, 1977, p.129; v. tambm
ROTH, N. Jews, visigoths, and muslims in medieval Spain: cooperation and conflict. Leiden; New
York; Kln: Brill, 1994, p. 21. Os dois autores do nfases diferentes ao fato. Orlandis no percebe que
aqui se inicia o processo de converses foradas; j tanto Roth, como Gonzalez-Salinero entendem que
aqui se inicia a tentativa de suprimir o judasmo atravs de converses compulsrias.
9
KATZ, S. The jews in the visigothic and frankish kingdoms of Spain and Gaul. Cambridge (Mass.):
Mediaeval academy of America, 1937, p.11. que afirma: Thus the persecution of the Jews was due to the
union between the Church and State . ZIEGLER, A. K., Church and state in the visigothic Spain.
Washington D.C: Catholic university of America, 1930, p. 197-199, acredita que os reis geralmente
tomavam a iniciativa em matrias de legislao relativas aos judeus e os conclios os seguiam, salvo em
ocasies que os reis radicalizavam, num esforo comum para converter os judeus ou expuls-los do reino.
10
ROTH, op. cit , p. 21.
11
KATZ, S. op. cit., p.11.
12
THOMPSON, E. A. Los godos en Espaa. Madrid: Alianza, 1971, p. 190.
13
REYDELLET, M. La conception du soverain chez Isidore de Sville. Leon: Isidoriana, 1961, p. 459.
Mostra a forte influncia de autores como Sneca, Suetonio e Tcito na viso do poder de Isidoro. Trata-
se de um fardo, de uma misso. O poder implica em perigos e vaidades e deve ser direcionado para a
misso de conduzir o povo na senda divina.
14
ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, 9, 3, 4. V. FRIGHETTO, R. Aspectos da teoria politica
isidoriana: o cnone 75 do IV conclio de Toledo e a constituio monrquica do reino visigodo de
Toledo. In: Revista de Cincias Histricas, XII, Porto, 1997, p. 73-82. REYDELLET, op. cit., p. 457-
466.
15
REYDELLET, op. cit., p. 461-462. V. VALLE RIBEIRO, D. A sacralizao do poder temporal:
Gregrio Magno e Isidoro de Sevilha. In: SOUZA, J .A. de C. R. (org.) O reino e o sacerdcio: o
pensamento poltico na alta Idade Mdia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 91-112, desenvolve uma
reflexo sobre as concepes polticas de Gregrio Magno e Isidoro de Sevilha.
16
Id., ibid., ...il rve dun saint couronn.Le modle du roi, cst David, le roi saint, celui qui sut
reconnaitre ses fautes, unissant ainsi la royaut politique celle du Coeur.
17
Id. , ibid., Isidore fait aux princs une obligation formelle dobir leurs propres lois. ISIDORO DE
SEVILHA, Sentenas, III, 51 diz Iustum est principem legibus obtemperare suis
18
VALLE RIBEIRO, op. cit., p. 110, que salienta que Isidoro no objetiva transformar este poder de
natureza secular em poder eclesistico ou supra eclesistico. Mas inegvel: estamos bem distantes do
dualismo gelasiano
19
FRIGHETTO, op. cit., analisa de maneira ampla o significado deste cnone na tentativa de proteger a
figura do monarca de atentados e na utilizao da uno dos monarcas imitando a monarquia bblica
(SAMUEL I, cap. 10 e 16)
20
ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias, IX, 3.5 onde se l: Regiae virtutes praecipuae duae: iustitia et
pietas As virtudes reais essenciais so em nmero de duas: a justia e a piedade.
21
ISIDORO DE SEVILHA, Historia rerum gothorum, suevorum et vandalorum: ed. e trad. C.
RODRIGUEZ ALONSO Las historias de Isidoro de Sevilla. Leon: Centro de Estudios e Investigacin
San Isidoro, 1975.Vers. 52-56 (p. 261-267) aonde exalta Recaredo e constri um modelo de monarca .
Um tpico speculum principis
22
GARCIA MORENO, Historia de Espaa Visigoda. Madrid: Ctedra, 1989, p. 148.
23
Id., ibid., p. 147.
24
Id., ibid., p. 148.
25
THOMPSON, op. cit., p. 190; GARCIA MORENO, op. cit., p. 150; ORLANDIS, op. cit., 137
26
GONZALEZ-SALINERO, op. cit., p. 25-26
27
Id., ibid., loc.cit.. THOMPSON, op. cit., p. 191
28
Id. ibid., p. 27; THOMPSON, op. cit., p. 191
29
KATZ, op. cit., p.99
30
MARCUS, J acob R., The jew in the medieval world: a source book. Cincinnati: U.A.H.C., 1938, p.
112 que cita Gregrio: For, when any one is brought to the font of baptism, not by the sweetness of
preaching but by compulsion, he returns to his former superstition. O organizador da coletnea
acredita entende que Gregrio estava disposto a converter pagos a fora, mas acreditava que os judeus
deveriam ser convertidos pela pregao e exemplo. V. tambm um trecho de Gregrio em portugus em
BEREZIN, Rifka (org.) Caminhos do povo judeu, v.III. So Paulo: FISESP, 1974, cap. III.
31
ISIDORO de SEVILHA, Historia..., op. cit. , p. 272. No versiculo 60, diz: Qui initio regni Iudaeos ad
fidem Christianam permouens aemulationem quidem habuit, sed non secundum scientiam:
32
AMADOR de los RIOS, J os. Historia social poltica e religiosa de los judios de Espaa y Portugal.
Madrid: Aguilar, 1973, reimp. p. 55/56. O original de meados do sculo XIX. Diz o autor: Acept
[Sisebuto] el consejo del imperador Herclio, y aun pas mas adelante; porque no solamente los judos
fueron echados de Espaa y de de todo el seoro de los godos, que era lo que pedia el emperador, sino
tambien con amenazas y por fuerzas los apremiaron para que se bautizasen; cosa ilcita y vedada entre los
cristianos que a ninguno se haga fuerza, para que lo sea contra su voluntad....
33
GARCIA MORENO, op. cit. , p. 152. O autor complementa: No se olvide que existen testimonios
claros de que Espaa debi tambin vivir por aquellas fechas claras tensiones escatolgicas en gran
medida compartidas por el propio rey...
34
GARCIA MORENO, op. cit. , p. 150-512; ORLANDIS, op. cit. , 139-139; THOMPSON, op. cit. , 190-
193; KATZ, op. cit. , p. 193 e diversos outros com diferentes enfoques e anlises.
El Rei D. Duarte: a viso do amor e do sexo.
Srgio Alberto Feldman- UTP
O rei D. Duarte, segundo rei da dinastia de Aviz, representa uma gerao
denominada por Lus de Cames, a nclita gerao, altos infantes (Lusadas). Trata-se
dos filhos de d. J oo I, modelos de retido e postura moral. O santo infante d. Fernando, o
mrtir de Tanger; o genial d. Henrique, considerado pela historiografia tradicional
portuguesa como o grande incentivador das descobertas e da expanso martima
lusitana; o culto, prdigo viajante d. Pedro, autor da Virtuosa benfeitoria, tratado de
moral; o infante d. J oo e finalmente o primognito, el rei D. Duarte, autor do Leal
Conselheiro. A sua obra se prope a ser um novo espelho de prncipes. Conceitua os
diversos graus de amor e baseado em clssicos, como Sneca, define por exemplo que a
amizade, se eleva como realizao amorosa que engloba o que h de melhor nas outras
formas de amar. Em seu texto o amor carnal considerado como inferior, mantendo-se
nos valores existentes no medievo, que valorizam o espiritual e desprezam o carnal e o
material. A revoluo moralista lanada pela rainha d. Felipa de Lancastre, tem em D.
Duarte um fiel e refinado defensor, o que no impedir que reapaream relaes
extraconjugais tais como existiram na dinastia borgonhesa, durante a dinastia de Aviz,
fato que analisamos de maneira ampla em livro
1
. Enfoquemos um pouco a vida e a obra
de D Duarte. O rei D. Duarte, cabe frisar, era entre os filhos de D. J oo I o de natureza
mais introvertida e interessado nos estudos literrios, como diz o autor de sua crnica, Rui
de Pina:
foi homem sesudo e de claro entendimento, amador de sciencia, de que teve
grande conhecimento, e nom per descurso descollas, mas per continuar destudar
e leer per bos livros
2
Adiante o cronista descreve o Leal Conselheiro dizendo:
abastado de muitas e singulares doctrinas, specialmente os bees dalma.
3
O Leal Conselheiro, como diz o ttulo, pretendia ser um pilar da moral e das normas de
boa conduta para uma nova gerao. Tal como seu autor deixa antever no incio da obra:
que a todos estados seja necessrio saber como devem seguir virtudes,
guardando-se de pecado e outros facilitamentos.
4
Ou ento quando declara o livro um ABC da lealdade:
...A se podem entender os poderes e paixes que cada huu de ns h. E por ho B
o grande bem que percalam os seguidores das virtudes e bondades. E por ho C
dos males e pecados do nosso corregimento
5
O rei D. Duarte disserta sobre os mais variados temas. Em diversas partes de sua obra
aborda temas da relao conjugal, do amor e do afeto.
Na sua compreenso existem quatro estgios distintos do afeto:
a) Benquerena seria um sentimento de fraternidade humana e crist, um tam
geeral nome que, a todas as pessoas que mal nom queremos, podemos bem
dizer que lhe queremos bem. Ca nos praz de sua salvaom, vida e sade...
6
b) O desejo de bem fazer relativo s pessoas mais prximas e he j mais
special, por que todos teem tal voontade a todos, ainda que o possam bem
cumprir.
7
O que significa que seja incomum que se tenha tal desejo a todos, j
que um grau mais elevado e profundo de afeio.
c) Amores seria algo como o nosso conceito vulgar de amor: principalmente se
deseja sobre todos seer amado, aver e lograr sempre mui chegada afeiom
com quem assi ama. E muitas vezes como cego ou forado nom cura de seu
bem nem tem o mal.
8
D. Duarte adverte para o perigo de amar sem ser amado. E aconselha a moderao, j
que o amor cega e impede a razo de agir: Os amores em todo o caso ajamos por
duvidosos, se tanto crecem e que ceguem ou forcem, por que, se leixarmos de nos reger
per dereita e boo entender que valleremos?
9
D. Duarte compreende que o amor puro era uma forma de obstar a depravao to
difundida nos meios aristocrticos e era para a juventude uma forma de purificao, mas
considera-o um obstculo para uma vida crist virtuosa:
He verdade que fazem gente manceba melhor se trazer e percalar algus
manhas custumadas nas casas dos senhores, mas por o perigoo que muitas
vezes delle se recrece, convem muito dessa prisom se guardarem os que
virtuosamente desejom viver
10
A concepo do estgio ideal, segundo o monarca, estava num quarto estgio, mais
elevado e puro, que seria a amizade.
d) A amizade tinha elementos dos trs outros estgios mas evitava os seus
defeitos e somente dispunha de suas qualidades. Assim afirmava:
Tem a vantagem dos primeiros (benquerena e desejo de bem fazer), por que
mui special bem quer ao amigo, e assi deseja de lho fazer como pera si medes o
queria. Dos amores desvaira (difere), porque amam principalmente regidos por o
entender, e dos outros (benquerena e desejo de bem fazer) per movimento do
coraom.
E prossegue dizendo do desservio que a dependncia dos apaixonados e recorda que
o amigo quando compre de se partir, ainda que del sinta suidade, seguramente e bem o
soporta.
11
Como conclui Oliveira Marques esse sentimento que D. Duarte tenta exprimir era o que
se sentia para com os pais e irmos.
12
Mas D. Duarte no resumia suas anlises e conselhos na definio dos estgios do afeto.
Tendo vivido numa poca de grandes mudanas e crise nos costumes procurava tecer
crticas morais, que ao seu ver, poderiam ajudar aos que lessem sua obra a encontrar um
caminho repleto dos valores da moral clssica e crist. Sua tica era baseada ora nos
escritores de Ccero, Salustio ou Sneca, ora nas obras de S. Agostinho, S. J ernimo, S.
Toms de Aquino, etc. Procurando eventuais citaes da Bblia para melhor atestar a
validade de suas proposies.
D. Duarte se chocava com a luxria e era rgido na advertncia dos perigos do contato
entre os sexos. Adverte que ...pecam por veer, ouvyr, fallar, desejo, pensamento e
obra.
13
Cita o texto do Evangelho de Mateus e conclui que sendo os olhos a luz do
corpo, sua simplicidade far que o corpo seja limpo. Mas caso o olho seja mau causar
trevas.
14
Por isso s o desejo no olhar j bastava: Do desejo se screve, quem vyir a
molher e a cobiiar j pecou.
15
E prossegue criticando os riscos do ouvir e falar que corrompe os bons costumes. E em
relao obra adverte que o Apstolo manda fugirmos da luxria e fornicao. E
aconselha: E para guardar desde pecado, nosso primeiro fundamento deve seer amar e
prezar virgindade e castidade quanto mais poder fazer, avendoa por grande virtude, que
muyto desejamos sempre daver e possuyr.
16
Dessa forma o sexo, mesmo dentro da vida conjugal, pecado carnal e deve ser evitado.
Caso isso seja impossvel de ser evitado, conclui o autor, a vida conjugal mal menor.
Usa-se de S. Agostinho ao afirmar que este defende que jamais nom se acoste acerca
dalgu molher, demonstrando que necessariamente convem aos que castidade querem
guardar que sempre se afastem de sua conversaom.
17
Mesmo sendo o casamento um mal menor e inevitvel d inmeros conselhos para o
relacionamento do casal.
Os maridos devem trabalhar para serem amados e temidos. Adverte para o abandono dos
bons costumes por parte de algumas esposas e a indiferena dos maridos que se nom
querem correger, nem aver boa guarda namaneira que com ellas devem de teer porque ja
enganarom quem avyo denganar.
18
Aos crticos que apontavam a imoralidade na aristocracia e a pouca fidelidade conjugal
retruca; defendendo as mulheres de moral elevada:
Se disserem, poucas som as boas, eu digo que muytas em este caso, pois ao presente
eu nom sei, nem ouo molher de cavalleiro, nem outro homem de boa conduta em todos
os meus Reynos que aja fama contraria de sua honra em guarda de lealdade
19
cita uma
centena de casamentos ocorridos nos reinados de J oo I e dele prprio e afirma no
haver um caso de donzela que incorrera em infidelidade conjugal. O interessante que D.
Duarte no aborda a questo da infidelidade conjugal masculina, como se esta na
existisse ou fosse pouco importante.
A viso da mulher contraditria. O exemplo das cantigas de Sta. Maria, de Afonso O
Sbio se repete aqui. Se por um lado a mulher representada pela Virgem Maria que
concebeu sem pecado e um modelo de castidade, por outro lado D. Duarte impiedoso
ao relacionar a mulher com o pecado e a luxria. Afirma que:
se a molher foy poderosa a vencer aquel que j estava no parayso nom he sem razom
poder empachar aquelles que ainda ao parayso nom chegarem.
20
Por isso, deve-se t-las distncia. D. Duarte, baseado nas obras de S. Toms de
Aquino, adverte sobre o perigo das conversas espirituais entre membros dos dois sexos.
Essas conversas criavam, segundo D. Duarte, uma intimidade nos confidentes espirituais,
e abriam espao para outro tipo de intimidades menos espirituais.
21
Por isso adverte, usando-se de um conselho de So J ernimo, que convm manter
distncia das mulheres de honesta vyda e de sancta conversaom, podendo-se am-las
maas nom ir amehude onde ella esta corporalmente, porque amehude vysitar as
molheres, comeo he de luxuria. Diz que o melhor a fazer fugir das mulheres pois a
todollos outros pecados o homem pode contradizer e punar com elles mas a este nom
pode fazer resistencia senom fugyndo das molheres.
22
Assim a mulher declarada como um poderoso inimigo, tentador e perigoso, e imbatvel
em combate direto. At os idosos devem delas se isolar, visto que o demnio nelas atua.
Por isso aconselha ao idoso que deseje assumir castidade que nom confies porem ainda
que assy fosse que posto que a carne morta seja, o diabo vivo he, cujo sopro he de tanta
fora que faz arder as brasas mortas e os carves em fogo.
23
D. Duarte portador, como todos na sociedade medieval portuguesa, de conceitos
patriarcais e de obedincia e temor do homem por parte da mulher. Ele repete com
insistncia termos como obedecidos como devem
24
e serem de suas molheres bem
amados e temydos
25
e ainda que recomende respeito, carinho e brandura com todas as
esposas para obter delas o amor, compreende-se que uma relao de domnio. O
mesmo se d na questo da infidelidade, que j citamos anteriormente, onde a
infidelidade masculina coisa sem importncia.
Conclumos, portanto, que a literatura portuguesa medieval um retrato fiel das
contradies entre o ideal e o real nas relaes entre homens e mulheres. O amor dentro
da nobreza era expressado em algumas formas que eram contraditrias com a moral
vigente.
Por maior cuidado ou censura existentes, a arte da palavra escrita deixa essa contradio
em aberto.
A situao no mudar durante o final do sculo XV, apesar dos esforos do rei D. Duarte
em oferecer um guia moral para o abandono dos maus costumes. Ainda que o Leal
Conselheiro desejasse, os bons costumes morais no foram a norma de conduta da
maioria. Isso fica expresso na obra do cronista e poeta Garcia de Resende, que
freqentou a corte de D. J oo II e de D. Manuel e que conhecia os costumes da nobreza.
No prlogo da sua Miscellanea ele nos diz que muita coisa aconteceu nos anos em que j
viveu, grandes acontecimentos e desvairadas mudanas de vidas e costumes.
26
Mais
adiante descreve as amantes e barregs, cujos filhos eram legitimados, dizendo: vimos
gente viverem com mulher, e os filhos serem dos benefcios herdados.
27
A atitude do clero que fazia negcios com propriedade eclesistica, havendo
escandalosas simonias, e mosteiros mui honrados de mitra e bago ordenados, para ter
abbades bentos, vimos, livres e isentos, dados a homens casados.
28
Garcia de Resende censura os costumes dos que se amigavam sem casar-se ou que
tinham relaes pr-conjugais. Eram as moas com moos casados ante tempo fazer
bodas.
29
Censura as mulheres honradas que vimos por deshonra haver e aquelas que
por deshonestas haviam.
30
1
V. FELDMAN, Sergio A - Amantes e bastardos: as relaes conjugais e extras
conjugaisna alta nobreza portuguesa no final do sculo XIV e incio do sc. XV. Curitiba:
Aos Quatro Ventos, 1999.
2
PINA, Rui de Chronica del Rey D. Duarte. In: SERRA, J . Correia da, ed. Colleco
dos reinados de D. J oo I, D. Duarte, D. Afonso V e D. J oo II. Lisboa, Officina de
Academia Real das Sciencias, 1790, v. 1, p. 79-80
3
id., ibid., p. 80
4
D. DUARTE O Leal Conselheiro, ed. Costa Marques, Lisboa, Clssica, 1942, p. 32
5
id., ibid., p. 34
6
id., ibid., p. 65
7
id., ibid., p. 65
8
id., ibid., p. 65-66
9
id., ibid., p. 68
10
id., ibid., p. 68
11
id., ibid., p. 66-67
12
MARQUES, A. H. de Oliveira A sociedade medieval portuguesa, op. cit., p. 114
13
D. DUARTE O leal Conselheiro, ed. J . I. Roquete, Paris, Lisboa [s. ed.] 1842, cap. 30
p. 181
14
Mateus, cap. 6, vers. 22-23
15
D. DUARTE O leal Conselheiro, ed. J . I. Roquete, op. cit., cap. 30, p. 181
16
id., ibid., cap. 30, p. 181
17
id., ibid., cap. 31, p. 185
18
id., ibid., cap. 45, p. 250
19
id., ibid., cap. 45, p. 252
20
id., ibid.,
21
id., ibid.,
22
id., ibid.,
23
id., ibid.,
24
id., ibid.,
25
id., ibid.,
26
RESENDE, Garcia de Miscellnea. In: PEREIRA, Gabriel, ed., Chronica de El Rei D.
J oo II, 3 v. em 1, biblioteca dos Clssicos Portugueses, v. 3, p. 135
27
id., ibid., v. 3, p. 204
28
id., ibid., v. 3, p. 204
29
id., ibid., v. 3, p. 213
30
id., ibid., v. 3, p. 212
A DRAMATURGIA COMO ESPAO DE CONSTRUO DE
IDENTIDADE NACIONAL : APONTAMENTOS PRELIMINARES
Silvia Cristina Martins de Souza
1
O estudo do Brasil Oitocentista nos coloca diante da imagem de um
perodo prdigo em projetos de construo de identidade nacional. De tal
monta a tradio da presena destes projetos que muitas das nossas
primeiras leituras foram impregnadas por valores como a beleza natural da
terra brasileira, as caractersticas positivas do nosso solo e a manuteno da
unidade nacional, apenas para citarmos alguns deles.
Estas riqueza e diversidade, contudo, tenderam a ser extintas pela
historiografia tradicional, que ofereceu uma interpretao linear sobre o tema
legitimando uma determinada memria sobre o assunto. de carter recente
um movimento diferente em relao a esta postura anteriormente assumida,
com a emergncia de estudos historiogrficos que procuram elucidar silncios
referendados e vislumbrar diferentes ngulos que permitam uma maior
compreenso a respeito da construo da identidade nacional no perodo.
2
Neste artigo pretende-se elaborar uma sistematizao preliminar de
alguns dados de um projeto mais amplo, que encontra-se em andamento, e
que tem como ponto central a compreenso do papel que a dramaturgia
assumiu como campo de embates e conflitos em torno da construo de uma
identidade brasileira consubstanciada na noo de criao um teatro nacional,
procurando mostrar que em torno deste assunto alinharam-se diferentes
grupos que, ainda que mobilizados pela idia mais geral de criar uma
dramaturgia que expressasse nossas particularidades frente s outras naes,
interpretaram de maneira particular a prpria idia de dramaturgia nacional,
bem como a forma de viabiliz-la.
Antes de adentrarmos ao assunto propriamente dito faz-se necessrio
remontarmos uma observao elaborada pelo historiador Ilmar Mattos no seu
livro O Tempo Saquarema. Ao analisar a constituio dos Saquarema
enquanto grupo articulado que exerceu o papel de controlador da poltica
imperial por um longo perodo, Ilmar Mattos observa que os grupos se
caracterizam enquanto tal a partir da condio de agir a partir de uma lgica
organizadora prpria compartilhada pelos seus membros. Tal lgica, que
aparece como elemento de coeso do grupo, ao mesmo tempo que fornece as
bases necessrias para imprimir-lhe uma identidade prpria, que resulta de
experincias vivenciadas de maneira comum, expurga do seu seio tudo e todos
que questionam ou agem no sentido contrrio do curso dos acontecimentos por
ele definido como natural. Em decorrncia, tais comportamentos diferentes ou
mesmo antagnicos so vistos como atpicos e devem, dentro desta mesma
lgica, ser esquecidos, silenciados ou estigmatizados. Dito de outra forma, o
que Ilmar Mattos observa que nesta capacidade de silenciar certos eventos
que se alicera o mecanismo que permite a um grupo criar e delimitar seu lugar
numa sociedade.
3
A anlise empreendida por este historiador elucidativa por trs
motivos. Em primeiro lugar, por enfatizar que a memria cristalizada por um
grupo fruto de uma construo que se d no interior de um jogo de relaes
de poder estabelecido por este grupo em confronto com outros, sendo este
jogo que autoriza manipulaes conscientes ou inconscientes que obedecem a
interesses coletivos. Em segundo lugar, e como decorrncia do que foi dito
anteriormente, que esta memria fruto de uma escolha e, neste sentido,
seletiva, parcial, filtrada e distorcida. E, em terceiro lugar, aponta para o fato de
que qualquer anlise que pretenda adentrar a questes concernentes
memria e silenciamentos deve levar em conta que lembranas e
esquecimentos so historicamente construdos; se articulam com lugares de
produo scio-econmicos, polticos e culturais; implicam um meio de
elaborao circunscrito por determinaes prprias e dependem das aes e
representaes dos sujeitos histricos que com elas se envolvem e contribuem
para sua existncia.
Feitas tais observaes poderamos tomar como porta de entrada para
adentrarmos ao assunto que abordaremos neste artigo um texto assinado por
Machado de Assis, escrito e publicado em 1873, cujo ttulo Instinto de
Nacionalidade.
4
Nele, Machado observa que aps experimentar um perodo
promissor, por ele localizado nas dcadas de 1850 e 1860, a dramaturgia
nacional tornara-se uma linha de reticncia, j que haviam desaparecido os
textos escritos por autores da terra em palcos nacionais. Ainda de acordo com
sua viso, a cena teatral do Rio de J aneiro vivenciava um momento e
decadncia, nos anos 1870, j que o que se representava eram gneros
dramticos considerados menores, que estariam mais preocupados em
divertir e satisfazer o gosto pouco polido das platias do que debruar-se sobre
o objetivo mais nobre de promover a civilizao e educao das mesmas.
As sensaes experimentadas por Machado de Assis estiveram longe
de ser excepcionais a muitos de seus contemporneos. Para quem saiba
alguma coisa da atuao de indivduos como Machado de Assis, J os de
Alencar, J oaquim Manuel de Macedo e Quintino Bocaiva, neste perodo, no
surpreende a meno a seus nomes como membros deste grupo que
participou ativamente de um movimento que objetivava a construo de uma
dramaturgia nacional, movimento este que, ao fim e ao cabo, foi parte
integrante de um outro, de carter mais amplo, capitaneado pelo prprio
Pedro II e que tinha como alvo a construo de uma identidade para a nao, e
que por isto preocupava-se em referendar uma memria, literatura e cultura
nacionais, vistas como elementos essenciais para a demarcao das
peculiaridades da nao brasileira diante de outras do perodo.
5
Foi dos homens de letras, como os acima mencionados, que partiu a
divulgao de um repertrio dramtico que, dentro de uma viso peculiar, daria
a resposta, em termos culturais, a questes que tinham como objetivo formar o
povo, construir a nao e buscar respostas s mazelas nacionais. Refiro-me
aqui encenao das primeiras peas ditas realistas nos palcos do Rio de
J aneiro. E foi da Frana, por outro lado, que chegou tal repertrio, intitulado
alta dramaturgia, tanto pela crtica francesa quanto pela brasileira, partindo
delas tambm a propagao de uma outra noo, construda com base nos
preceitos desta nova concepo esttica que ento se impunha
paulatinamente: a de escola de costumes. Dentro desta noo, o teatro
passava a ser visto como instrumento eficaz de interveno poltica, cabendo
ao palco a funo edificante de colocar a sociedade nos trilhos do progresso e
da civilizao atravs da propagao de certos preceitos morais que deveriam
influenciar os modos de agir e de pensar das platias.
Para que se tenha idia de como este novo campo esttico se estruturou
tendo em vista esta busca de moralidade e perfectibilidade, vale mencionar
algumas idias a respeito da funo do dramaturgo tais como forjadas por
Alexandre Dumas Filho, um dos precursores do realismo teatral francs que
mais influenciou a crtica teatral e a dramaturgia brasileiras do sc. XIX.
Segundo ele, ao dramaturgo cabia mostrar ao homem como ele , mas para
indicar como poderia tornar-se e como consegui-lo, estando a ele delegada a
funo de buscar inspirao na realidade, reproduzindo-a para apresent-la no
palco, mas adicionando-lhe os corretivos que julgava necessrios para
aperfeioamento da imagem retratada.
6
Dentro deste raciocnio, ao expor a realidade, era como se o teatro
fizesse com que ela prescindisse de ser analisada e discutida, cabendo ao
espectador aceitar este tipo de fico que lhe entrava pelos olhos e ouvidos.
Cpia e lio, portanto, passavam a ser os requisitos bsicos aos quais os
dramaturgos deveriam estar subordinados, correspondendo a uma dupla
exigncia de verossimilhana e utilidade. Neste movimento, para alm de
divertimento, o teatro assumia a funo, por assim dizer, bem mais edificante
de buscar na sociedade os exemplos que esta lhe oferecia, recambiando-os
em forma de lio a ser seguida, denotando que a imagem a ser refletida no
palco no deveria ser uma reproduo neutra e mecnica do real, sendo este o
mecanismo que permitia tirar partido da idia de liberdade de criao para
defesa de uma tese. Chegou-se mesmo a criar um personagem especfico,
denominado raisonneur, intencionalmente concebido para aliciar o espectador,
que funcionava como porta-voz das idias do autor, cabendo a ele emitir
advertncias aos demais personagens e discursos moralizantes s platias.
7
Foi esta dimenso didtica do nova esttica teatral que seduziu os
literatos fluminenses descortinando-lhes um espao de interveno social at
ento desconhecido, transformando o realismo em teatro de tese e, neste
sentido, numa forma dramtica quase nica por ser completa a congruncia
entre seu pblico alvo, pertencente a um determinado segmento social, seus
dramaturgos, oriundos deste mesmo meio, e seu material dramtico, preso a
esta mesma vida.
V-se assim que, da forma como tais noes foram elaboradas, o papel
destinado aos literatos na dramaturgia ficava revestido de grande
responsabilidade e importncia, uma vez que deveria sair das mos destes
indivduos bem-pensantes os textos que influenciariam os espectadores que
tomavam assento nos teatros. E, como decorrncia, estes espectadores
passavam a ser vistos como uma massa amorfa, pronta a ser modelada por
estes mesmos dramaturgos. Foi, por fim, esta viso arbitrria e parcial do papel
atribudo aos letrados um dos elementos que lhes permitiu a afirmao de uma
identidade enquanto grupo, que assumiu a dianteira deste processo de
transformao cultural que ento se tinha em mente.
Ocorre, porm, que, em fins da dcada de 1850, o teatro se transformou
no divertimento pblico mais popular da Corte, vindo contradizer a morte da
cena teatral brasileira anunciada pelos literatos do perodo, dentre eles o aqui
j citado Machado de Assis. Como decorrncia deste fato vivenciou-se um
perodo em que duplicaram as casas de espetculos na cidade; em que o Rio
de J aneiro transformou-se em uma das cidades que compunha, junto com
Buenos Aires e Montevidu, um circuito obrigatrio percorrido por companhias
dramticas estrangeiras que realizavam turns pela Amrica do Sul; ocorreu
um aumento significativo de empresas dramticas nacionais e, como era de se
esperar dentro deste quadro que vimos traando, assistiu-se entrada em
cena de novos dramaturgos.
Os gneros dramticos ento representados, por sua vez, tenderam a se
diversificar cada vez mais, extrapolando os limites da esttica realista e abrindo
espao para uma dramaturgia de carter, poder-se-ia dizer, mais espetacular
do que literrio, cuja inspirao vinha dos tradicionais espetculos de feira, da
Commedia dell Art, das rcitas circenses, dos entremezes e outros gneros
dramticos similares. No surpreende que em pouco tempo tais gneros
passassem a ser chamados baixa dramaturgia, teatro ligeiro ou alegre pela
crtica ilustrada e que esta no se cansasse de propagandear serem eles
indignos de ser considerados arte, na medida em que estariam supostamente
apenas comprometidos com o divertimento das platias ou com o lucro dos
empresrios. Foi com a noo de superiores e inferiores, alta e baixa
dramaturgia que a crtica teatral brasileira da poca operou, consolidando em
terras brasileiras uma vertente de critrio inspirada na crtica teatral francesa.
Esta alegada ausncia de valor artstico atribuda a alguns gneros
teatrais passou a ser uma bandeira cada vez mais empunhada pelo grupo
formado pelos homens de letras que atuavam na imprensa. De maneira quase
que consensual, aqueles crticos no se furtaram a proclamar a deflagrao do
processo de abastardamento da cena nacional, posto que invadida por tal
dramaturgia, bem como a considerar os dramaturgos que a ela se dedicavam
empecilhos reais criao de um teatro nacional que se pretendia formador do
povo e da nao.
Bem, esta foi a viso referendada pela crtica ilustrada. Os significados
atribudos pelas platias aos dramaturgos que se dedicaram a estes novos
gneros dramticos foram inversamente proporcionais aos propagandeados
pela crtica, tanto que enquanto esta proclamava a decadncia da dramaturgia
nacional, por no abraar a esttica realista de maneira incondicional, o pblico
apresentava os primeiros sinais de cansao em relao dramaturgia realista.
Este o caso de um espectador que atravs de uma nota publicada no Dirio do
Rio de Janeiro, no ano de 1858, pedia ao ator Areas, ento ensaiador do
teatro Ginsio Dramtico, que tivesse mais cuidado na escolha do repertrio e
no seguisse
tanto esse mau gosto, filho dos excessos da escola realista; e o
mesmo esperamos de todos aqueles que tenham de fazer escolhas
de peas (...). Sentimos vermo-nos obrigados a estas observaes,
mas elas esto longe de traduzirem m vontade de nossa parte. O
que desejamos que em matria de teatro haja cuidado em tudo.
8
No que diz respeito aos novos dramaturgos, por sua vez, no foi como
degeneradores da cena nacional que aqueles homens foram vistos por uma
parcela significativa do pblico. Ao contrrio, para este pblico tambm eles
estavam contribuindo para a construo de um teatro nacional, tanto que um
deles, assinando sob o pseudnimo O Ginasista, fez questo de sublinhar, a
respeito da cena-cmica As Ninhadas do Meu Sogro, que estreara em 1863,
consider-la um bonito trabalho literrio, que honrava as letras do nosso pas,
e que tinha como mrito adicional demonstrar a possibilidade de existncia de
uma dramaturgia genuinamente nacional que no mendiga[va] estilos e
costumes que no so nossos, e com os quais nada temos.
9
Se no sc. XIX tais dramaturgos tiveram que lidar com a situao
incmoda de ser aplaudidos pelos espectadores e condenados pela crtica, a
posteridade no lhes reservou melhor destino. Sua memria vem sendo
mantida no esquecimento pela historiografia que se dedica ao teatro brasileiro,
sendo poucos os que conhecem ou ouviram falar no nome do ator e
dramaturgo Francisco Correa Vasques, um dos mais atuantes e profcuos
dramaturgos desta nova safra a que vimos no referindo. Vasques, no entanto,
escreveu o nmero significativo de 62 peas teatrais sendo que uma delas a
pardia Orfeu na Roa superou a marca de 400 representaes num
contexto em que 9 espetculos configuravam um sucesso teatral.
10
Entender o modo como crticos andaram pensando a relao entre arte
dramtica e teatrlogos desconsiderados como Vasques; a insero destes
indivduos num grupo que compartilhou uma noo diferente de teatro nacional
da veiculada pelos homens de letras e como a memria deste grupo foi
silenciada pela historiografia, estas as questes que naturalmente emergem
deste quadro que vimos elaborando. E ainda que nossas pesquisas estejam
em fase inicial, creio que alguns elementos j podem ser elencados e
analisados, na medida em que permitem arriscar respostas s perguntas que
vimos levantando.
Por estarmos nos movendo no interior de um mundo dentro do qual
determinados indivduos constrem relaes organizacionais e simblicas por
meio de suas trajetrias de vida, torna-se necessrio recompor, ainda que
correndo o risco da incompletude, as teias das relaes que os unem.
Pensando em termos de um certo perfil sociolgico deste grupo como um
primeiro aspecto a abordar, poderamos observar que estamos lidando com um
grupo que, na sua maioria, no pertence a uma elite, pensando-se elite no
sentido de riqueza econmica e insero poltico-intelectual. Numa sociedade
senhorial-escravista, na qual o direito de liberdade e propriedade estava
reservado a alguns e definia as relaes de poder, os espaos a serem
ocupados e os papis sociais a serem exercidos, o acesso a uma educao
ilustrada, fornecida pelo ensino superior regular, era essencial para a
demarcao das diferenas entre os homens livres, distinguindo-os,
hierarquizando-os e levando manuteno de redes de relaes pessoais que
possibilitavam adentrar espaos mais amplos.
11
J foi acertadamente sublinhado que a elite imperial era uma ilha de
letrados num mar de analfabetos.
12
A entrada de pessoas de menores recursos
nas escolas superiores era dificultada por conta do peneiramento para o
ingresso que exigia uma formao prvia anterior, fornecida pelos cursos
preparatrios pagos, bem como pelas taxas de matrcula, sempre muito altas.
Se os filhos de famlias abastadas podiam aspirar a uma educao superior, as
pessoas de menores recursos quando muito chegavam a completar a
educao secundria nos seminrios e escolas pblicas. A partir da, a
escolha podia ser a carreira eclesistica, com a passagem por seminrios
superiores; a Escola Militar, para a carreira militar e a escola Politcnica ou a
Escola de Minas, para uma carreira tcnica, nas quais no eram cobradas
anuidades, ofertadas bolsas (Escola de Minas) ou pagava-se um pequeno
soldo ao aluno (Escola Militar).
13
No que diz respeito ao perfil social dos dramaturgos que passaram a se
popularizar a partir de meados do sc. XIX, a sua grande maioria era oriunda
de segmentos sociais pouco privilegiados. Esto neste o mesmo Francisco
Correa Vasques, anteriormente citado, e o ator e dramaturgo J os de Oliveira
Santa Rita, ambos descendentes de famlias de homens livres pobres.
Vasques, por exemplo, s conseguiu terminar o curso elementar, no Colgio
Marinho, indo ento empregar-se como carregador, na Alfndega da cidade do
Rio de J aneiro, de l saindo para integrar-se Guarda Nacional por um breve
perodo, de onde retirou-se para seguir a carreira de ator.
14
Outro aspecto digno de ser enfatizado o que diz respeito ao acesso
atividade jornalstica no decorrer do perodo examinado. O jornalismo
representava uma forma de ingresso no mercado de trabalho intelectual e uma
profissionalizao que expandia contatos, sendo em alguns casos uma porta
de entrada privilegiada para esferas polticas e sociais maiores. Atuar em
jornais era fundamental porque fazia parte de uma estratgia de ascenso
intelectual e tambm porque os peridicos eram a base de circulao das
idias na poca.
O jornalismo, no perodo, contudo, foi espao reservado aos homens de
letras de renome ou nefitos na profisso. A delimitao deste espao de
atuao foi alvo de exprobaes de indivduos envolvidos com as artes cnicas
poca, que ainda que reconhecendo na crtica ilustrada o direito de avaliar o
mrito das obras que subiam cena, entendiam que os folhetins dramticos
dos jornais eram entregues
(...) a uns sujeitos que trabalham de graa, unicamente em troca de
bilhetes de entrada. E estes sujeitos escrevem ao sabor de suas
convenincias, porque so amigos de um autor reputado, porque
antipatizam com um autor que lhe no d importncia, ou porque
fazem a corte a uma atriz.
15
Para Souza Bastos, autor deste texto, a crtica ilustrada no passava de
um espao regido por convenincias pessoais incompatveis com o mtier do
homem de teatro estando, desta maneira, inabilitada para emitir julgamentos
imparciais a respeito do assunto a que se dedicava.
Mesmo tendo que se deparar com os obstculos que se lhes eram
colocados, alguns daqueles indivduos que passaram a atuar na dramaturgia, a
partir de meados do sc. XIX, conseguiram romper este cerco. Tais excees,
contudo, confirmam a regra. Refiro-me, aqui, por exemplo, ao caso de Augusto
de Castro, que atuou no jornalismo e na imprensa como folhetinista, alm de
escrever pardias para serem encenadas em vrios palcos da Corte, vrias
delas musicadas por Chiquinha Gonzaga
16
, bem como a Francisco Correa
Vasques, que nos anos de 1883 e 1884 exerceu a funo de folhetinista da
Gazeta da Tarde, jornal de propriedade de J os do Patrocnio. Ambos no
completaram ensino superior e muito do que conseguiram foi fruto do sucesso
alcanado no palco, do autodidatismo ou de contatos pessoais, que lhes
permitiram atuar num espao que lhes era pouco receptivo. Exemplar desta
questo a que vimos nos remetendo o segundo artigo da srie de folhetins
que Vasques assinou para este a Gazeta da Tarde, intitulada Scenas
Comicas, no qual mencionaria que sua estria como folhetinista no fora feliz,
devido ao fato de os leitores dos jornais estarem habituados a ver tal atividade
como uma misso
(...) confiada a melhores penas; h quem se ocupe desta crnica
com muito mais vantagem, ao passo que eu tenho apenas o prestgio
do palco Quem vai ler, calcula a maneira porque poderei inflexionar o
meu folhetim, e a frase fria, sem nexo, que deixo cair da pena, por
cima dom papel, toma vida, cor e apresenta-se tal qual deve ser no
teatro fantstico do crebro do leitor.
17
Era, portanto, com o prestgio conquistado no palco e com o teatro
fantstico do crebro do leitor que Vasques contava para atrair o leitor, e no
com a qualidade literria do seu texto, sobretudo, segundo suas prprias
palavras, se este fosse comparado com os que saiam das melhores penas
que tradicionalmente assinavam os folhetins dramticos dos jornais
fluminenses da poca. Creio ter residido nesta questo da ausncia de
educao ilustrada formal um dos elementos de rejeio da crtica ilustrada aos
dramaturgos aos quais vimos nos referindo, estando tal rejeio intimamente
associada ao fato de sua produo artstica ser vista como fruto do trabalho de
indivduos que dominavam apenas a maquinaria do palco, pejorativamente
denominados carpinteiros teatrais, no estando eles, a partir desta
perspectiva, habilitados a ditar o que as platias deveriam assistir e absorver
como lio.
18
V-se, assim, que participar do mundo fechado das letras era
uma exigncia que delimitava os espaos de atuao cultural e hierarquizava a
atuao dos diversos agentes histricos.
Por fim, mas no em ltimo lugar, um outro elemento merece meno.
Refiro-me ao fato de que ao elaborarem seus textos dramticos voltando-se
para elementos por assim dizer mais populares, aqueles carpinteiros teatrais
tomaram como ponto de partida uma tradio dramtica j existente, porm
sem negar-se a inserir na mesma inovaes exigidas pelos novos tempos,
particularmente a adoo de novos ritmos musicais, gneros teatrais e temas
do cotidiano, ampliando seu espao de recepo junto ao pblico cada vez
mais heterogneo das cidades brasileiras, frequentador assduo dos teatros da
poca.
E pela ltima vez Francisco Correa Vasques entra em cena para ajudar-
nos a elucidar a questo. Orfeu na Roa, pardia do Vasques ao Orfeu nos
Infernos, de Offenbach, manteve as caractersticas desta ltima, mas
traduzindo as questes abordadas em termos que pudessem ser captados pelo
pblico fluminense. Assim, nas mos do Vasques, Orfeu aparece como o
msico Zeferino Rabeca; Morfeu, o deus do sono, transformou-se em J oaquim
Preguia; Cupido passou a responder por Quinquim das Moas e a Opinio
Pblica foi batizada com o nome Chico da Venda. Tais adequaes ao
contexto local, por sua vez, foram bem percebidas na poca tanto que houve
quem assim observasse:
Desta vez Vasques lavrou um tento!
O enredo da pera constitui o enredo da pardia. Sem que esta seja
uma traduo, tem no obstante todo o aticismo daquela. (...)
A pardia de Offenbach j de si burlesca. Dali ao ridculo pouco vai.
No obstante o diretor da Fnix soube vert-la para os usos e
costumes de nossa populao do interior, conservando-lhe todo o
chiste e evitando a queda.
19
Levando-se em considerao o exemplo fornecido por Vasques, poder-
se-ia adicionalmente afirmar que esta dupla face de tradio e modernidade
imprimiu a seu teatro um aspecto, simultaneamente, conservador e rebelde,
que questionava os preceitos estticos referendados pelos homens de letras. A
prova da vitalidade da sua dramaturgia, bem como a de teatrlogos como ele,
estaria, portanto, nas razes por ela fincadas para a consolidao de uma
tradio identificada com a comdia de costumes, com a stira, o duplo
sentido, o tom jocoso e crtico, com as vozes das ruas e as msicas que caem
no agrado do grande pblico, marcando indelevelmente a dramaturgia
brasileira.
* * *
Durante muitos anos, os estudiosos do teatro brasileiro vm
despendendo um grande esforo para explicar uma suposta decadncia do
teatro nacional num momento em que ele demonstrava uma grande vitalidade,
repondo sem questionar argumentos construdos no contexto do sc. XIX.
20
Contudo, a poltica traada para a construo de um teatro nacional, dentro
daquele contexto, operou no interior de uma relao que no poder ser
entendida sem a anlise de tenses e conflitos envolvendo diferentes grupos
que interpretaram de maneira particular o apelo mais geral de engajamento na
misso de construo de um teatro nacional.
Se, ao ingressarem na dramaturgia, certos escritores o fizeram, por
assim dizer, pelas portas dos fundos, nada poderia ser considerado mais
excntrico para indivduos que transformaram a literatura em trincheira de
defesa de um lugar social privilegiado para si em uma sociedade na qual a
valorizao das atividades do intelecto tornara-se um smbolo de diferenciao
e marca de status. A rejeio recorrentemente expressa ao trabalho de
dramaturgos que insistiram em operar com elementos que ultrapassavam os
limites traados por uma elite letrada, por sua vez, indicativa da ausncia de
controle, por parte desta ltima, sobre um processo de transformao cultural
idealizado sobre determinadas bases. Aceitar estes carpinteiros teatrais em
seu crculo fechado transformou-se, para muitos daqueles letrados, numa
espcie de perda da base de sustentao moral que justificava seus
argumentos de interveno social. Desconsiderar esta incmoda presena,
como era de se esperar, foi a postura assumida por grande parte deles, que se
colocaram como meta a busca de justificativas para este movimento de
excluso denotando seu despreparo para o dilogo cultural como se deve dar,
isto , atravs do reconhecimento das diferenas.
1
Professora do Departamento de Histria da Universidade Estadual de Londrina, doutora em
Histria Social pela Unicamp e autora de As Noites do Ginsio: teatro e tenses culturais
na Corte (1832-1868), Campinas, Editora da Unicamp, Cecult, 2002
2
Ver para o assunto Maria Clementina Pereira Cunha (org), Carnavais e outras f(r)estas.
Ensaios de histria social da cultura, Campinas. Editora da Unicamp, Cecult, 2002;
Fernando Antnio Mencarelli, Cena Aberta. A absolvio de um bilontra e o teatro de
revista de Arthur Azevedo, Campinas, Editora da Unicamp, Cecult, 1999; ; Leonardo Affonso
de Miranda Pereira, O Carnal das Letras, Rio de J aneiro, Secretaria Municipal de Cultura,
1996 e Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso de Miranda Pereira (orgs), A Histria Contada:
captulos de histria social da literatura no Brasil, Rio de J aneiro, Nova Fronteira, 1998.
3
Ilmar Mattos, O Tempo Saquarema, So Paulo, Hucitec, 1987, p.286.
4
Machado de Assis, Obra Completa, Rio de J aneiro, Aguilar, 1992, vol.3, p.808.
5
Ver para este assunto Lilia Moritz Schwarcz, As Barbas do Imperador, So Paulo,
Companhia das Letras, 2000, Arno Wehling, As Origens do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro in RIHGB, Rio de J aneiro, 338:7-16, 1983 e Lcia M.P. Guimares, Debaixo da
Imediata Proteo de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro in
RIHGB, Rio de J aneiro, 156(338):473-83, jul-set.
6
Alexandre Dumas Fils, Thtre Complet, vol. III, Paris, Calman Lvy diteur, p.p. 29-34
7
Segundo Arnold Hauser (Histria Social da Literatura e da Arte, tomo II, So Paulo, Mestre
J ou, 1982, s/d, p. 92), nenhuma personagem foi mais artificial do que o raisonneur, porque, na
maior parte das vezes, era colocado em cena para emitir solues foradas pelas
convenincias do autor.
8
Dirio do Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1858
9
Jornal do Comrcio, 12 de abril de 1863. A dita pea de autoria do dramaturgo Francisco
Correa Vasques recorrentemente citado neste artigo.
10
Baseio-me para estas consideraes em pesquisas que venho realizando a respeito do
dramaturgo Francisco Correa Vasques que sero brevemente publicadas sob o ttulo Scenas
Comicas.
11
Utilizo-me da expresso sociedade senhorial-escravista tal como elaborada por Sideny
Chalhoub em Vises da Liberdade: as ltimas dcadas da escravido na Corte, So Paulo,
Companhia das Letras, 1991
12
A observao de J os Murilo de Carvalho e encontra-se no seu estudo intitulado A
Construo da Ordem: a elite poltica imperial, Rio de J aneiro, Relume Dumar, 1996.
13
idem, p.p.
14
Ver Gazeta da Tarde, 25 de outubro de 1883.
15
Souza Bastos, Coisas de Teatro, Lisboa, Bertrand, 1985, p.94 Souza Bastos foi um ator e
dramaturgo portugus com atuou regularmente em palcos fluminenses, tanto como ensaiador
quanto como empresrio e dramaturgo.
16
Ver Edinha Diniz, Chiquinha Gonzaga: uma histria de vida, Rio de J aneiro, Rosa dos
Ventos, 1994
17
Gazeta da Tarde, 25 de outubro de 1883.
18
A expresso carpinteiro teatral, vrias vezes utilizada pela crtica ilustrada, aparecia
recorrentemente associada ao fato de ser o trabalho que saa das mos destes dramaturgos
pouco considerados o fruto de qualquer incapacidade que se julga habilitado a ser
comediante que ajunta a vontade execuo e produz um aleijo, um Quasimodo, tal como
emerge das palavras de Bittencourt da Silva, crtico teatral e censor do Conservatrio
Dramtico Brasileiro.( Ver Biblioteca Nacional, Setor de Manuscritos, documentao relativa ao
Conservatrio Dramtico Brasileiro, rgo oficial de censura da Corte Imperial). A explicitao
desta noo, tal como foi sendo construda ao longo do sc. XIX, baseava-se num critrio de
superioridade intelectual segundo o qual valorizava-se o exerccio da dramaturgia como alta
literatura passvel, portanto, de ser exercida apenas por letrados. Tal expresso, por sua vez,
adentrou o sc. XX, aparecendo em trabalhos como o de Dcio de Almeida Prado ( ver Seres,
coisas e lugares: do teatro ao futebol So Paulo, Companhia das Letras, 1997.
19
Jornal do Comrcio, 8 de novembro de 1868. Na ocasio, Vasques era o empresrio e
diretor do teatro Fnix Dramtica, no qual a pea estreou.
20
Refiro-me, aqui, aos estudos elaborados por Dcio de Almeida Prado, J . Galante de Souza,
Sbato Magaldi e J oo Roberto Faria.
O ENSINO DE HISTRIA ATRAVS DO USO DE RPG
SLVIA GORETTI DUTRA ESTEVAM
O objetivo deste artigo comprovar, atravs de pesquisa, a viabilidade do uso
do Role Playing Game, mais conhecido pela sigla RPG, como metodologia
complementar de ensino, tanto no Ensino Fundamental quanto no Mdio.
Para atingir este objetivo foi realizada uma pesquisa embasada em projetos
disponveis na Internet, os quais foram realizados em instituies de ensino e
obtiveram grande sucesso junto aos alunos, agradando tambm os educadores.
O professor, ao abordar uma metodologia de ensino diferenciada muitas vezes
tem como objetivo aproximar o aluno da disciplina, tentar fazer com que este
abandone sua postura passiva diante da matria dada, assumindo o seu real papel na
construo histrica, o de agente ativo.
Um dos grandes desafios dos educadores atualmente, ajudar o educando,
atravs do que ele aprende dentro e fora da escola, a se tornar um ser crtico, capaz
de formular suas prprias hipteses, conseguindo compreender situaes complexas;
no intuito de que este se torne um membro atuante na sociedade e desenvolva sua
capacidade de discernimento.
Esta pesquisa tem a pretenso de mostrar ao educador uma metodologia pouco
convencional, que poder ajud-lo a desenvolver a capacidade do aluno de resoluo
de situaes onde sero exigidos desde conhecimentos acerca matria trabalhada em
sala, a como lidar com conceitos e sistemas sociais complexos, alm de estimul-lo
difcil tarefa de tomar suas prprias decises, assumindo desta maneira as
conseqncias de seus atos.
Surge ento o RPG, como uma alternativa na complementao do ensino.
Alm de ser um jogo de fcil assimilao, extremamente divertido e interessante,
geralmente agradando aos alunos e despertando, na maioria dos casos, seu interesse
para disciplinas e contedos que, muitas vezes, estes no conseguem conceber como
parte integrante de suas vidas. No caso da Histria, importante que o educando
consiga compreender que ele tambm um dos construtores da disciplina.
O RPG um jogo de representao, com regras definidas, no qual os
jogadores interpretam personagens criados por eles prprios. Como o sistema de jogo
bem malevel, praticamente qualquer temtica pode ser utilizada em uma aventura
de RPG.
Para a elaborao deste trabalho foram utilizados obras sobre metodologia de ensino,
livros de RPG dos mais diferentes sistemas, informaes disponveis em sites de
editoras e especializados na Internet, dados coletados durante um estgio realizado
pela autora em 1999, alm de muitas conversas com jogadores de RPG que se
interessaram por este projeto.
Despertar e manter o interesse do aluno em uma disciplina que ele no
entende e no consegue aplic-la em seu cotidiano uma das mais difceis tarefas do
educador. Mas, nos dias atuais, como a Histria pode ser "til"?
Das mais diversas maneiras, mas principalmente estimulando o aluno a pensar por si,
a criar suas prprias reflexes acerca do mundo que o cerca e, voltando Histria, a
tentar entender como se deram os acontecimentos com os quais ele se depara
durante uma aula, sendo esta convencional ou uma aventura de RPG. A finalidade do
ensino, segundo os Parmetros Curriculares Nacionais, das disciplinas ditas Humanas
nas escolas, a formao tica, o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crtico.
RPG, ou Role-Playing Game, pode ser traduzido para o portugus como J ogo
de Interpretao de Personagens. Trata-se de um jogo cujos objetivos principais so a
diverso de seus participantes e a interao de seus personagens com a trama. No
h ganhadores nem perdedores no RPG.
A caracterstica marcante do J ogo de Interpretao seu carter cooperativo:
para superar os obstculos que surgem no decorrer do jogo, os participantes deste
devero ajudar-se uns aos outros.
Para simplificar o entendimento do leitor acerca das explicaes que viro a
seguir, foi feito um pequeno glossrio, contendo os principais termos utilizados para se
jogar RPG:
- campanha, uma saga completa, com incio, meio e fim. Pode
durar horas, meses ou anos para terminar;
- sesso de jogo, uma noite, uma tarde, uma aula, enfim, um perodo
de
tempo em que se joga uma parte da aventura;
- aventura, a histria em si, podendo durar mais de uma sesso
de jogo, uma campanha composta de uma ou vrias aventuras;
- narrador ou mestre do jogo, jogador que "dirige" o jogo, ele
quem cria o esquema da campanha e dita as regras e interpreta os
personagens secundrios, da vem o verbo mestrar;
- Npc ou non player character sigla utilizada para designar
personagens
secundrios essenciais histria contada, os quais so
interpretados pelo
mestre;
- planilha, uma espcie de histrico, geralmente computado por
pontos,
montada pelo jogador para descrever as caractersticas de seu
personagem;
- grupo de jogo, jogadores que compe uma campanha;
- ambientao, o cenrio do jogo, onde ele se passa.
Mas, afinal de contas como se joga RPG? Tudo comea com o mestre: cabe a
ele montar uma campanha. No necessrio ter todo o esquema de um jogo pronto, o
narrador pode simplesmente desenvolver algumas idias. No caso de uma aventura
histrica, preciso que uma intensa pesquisa seja feita antes de se iniciar o jogo, ou
mesmo, antes do mestre esquematizar sua histria.
Com a aventura pronta, o mestre monta um grupo de jogo (convida os
jogadores) para iniciar a diverso. Ele ir coloc-los a par dos aspectos da histria a
ser contada, como localizao, poca, contexto histrico, costumes e o que mais for
considerado importante para o desenrolar da aventura. Com estas informaes em
mos, os jogadores montaro seus personagens, que devero estar de acordo com o
contexto da histria a ser contada.
Cada jogador dever criar para seu personagem uma histria de vida, a partir
de algumas perguntas, como: quem ele ? Qual sua idade? O que ele faz? Como
ganha a vida? Para poder responder a estas e a outras perguntas que o mestre possa
formular no intuito de saber mais de cada personagem, o jogador poder fazer uma
pesquisa, no caso de uma aventura histrica esta ser mais necessria ainda.
Para se jogar RPG so necessrios poucos recursos, um livro de regras
(opcional), algumas planilhas, lpis, borracha e dados . Esse o material bsico para
se desenvolver uma aventura, mas o mestre pode se utilizar de alguns complementos
como mapas (verdadeiros ou no), pergaminhos, bilhetes misteriosos, e o que mais
sua imaginao mandar. O mais importante que o recurso utilizado esteja inserido
no contexto da aventura.
Aps todos os passos acima terem sido seguidos comea a diverso. O mestre
inicia o jogo dizendo o que est acontecendo em sua histria naquele momento: uma
luta, uma revoluo, tudo est calmo, ou nada disso. Cada jogador dever dizer o que
seu personagem est fazendo, uma ao de acordo com as caractersticas de seu
personagem.
O mestre ento ir criar situaes que exigiro decises dos jogadores, que
devero ser condizentes com a ndole de seus personagens. Um exemplo: o mestre
diz ao jogador, o mesmo ouve gritos na rua e pergunta a ele o que ir fazer. Cabe ao
jogador decidir se o seu personagem curioso ou valente o bastante para sair e saber
do que se trata ou no. Esta somente uma ao simples. O jogador pode decidir se
manda lanar ou no uma bomba atmica em determinada cidade. Tudo depende do
contexto da aventura, da construo dos personagens e da imaginao de seus
participantes.
Para se jogar RPG no necessrio interpretar um papel como no teatro, toda
ao somente sugerida, os jogadores, assim como o mestre, permanecero a maior
parte do tempo sentados, em hiptese alguma poder haver contato fsico entre os
participantes do jogo. Armas, mesmo de brinquedo no devem ser permitidas. O jogo
deve acontecer de preferncia em locais fechados, e as pessoas das proximidades
devero estar cientes do que est ocorrendo.
importante salientar que uma campanha de RPG nunca contada somente
pelo mestre, os jogadores tambm contam sua histria, pois atravs das decises
tomadas por estes, que o jogo toma certos rumos. Cabe ao mestre adaptar sua
histria de acordo com o desenrolar da aventura.
O RPG ento demonstra sua caracterstica mais interessante, para que os
jogadores ultrapassem os obstculos surgidos no decorrer da campanha, preciso
cooperao entre si. Os jogadores comeam a perceber que todas atitudes tomadas
por seus personagens tm conseqncias, sendo estas boas ou ruins. Isto desperta
no indivduo uma maior compreenso do alcance de seus atos e de como um simples
gesto pode mudar o rumo dos acontecimentos.
Os livros de RPG so de fcil acesso, a maioria das livrarias conta com um
espao reservado para estas obras. Os preos podem variar entre R$ 20,00 e R$
60,00. Para os iniciantes, porm, mais fcil procurar uma banca especializada,
chegando mais perto do universo do jogo e podendo contar com o auxlio de quem
realmente entende do assunto.
Uma das grandes vantagens dos livros de RPG so as regras simplificadas,
trazendo a possibilidade de variao e at da no utilizao destas. Dispem tambm
de um glossrio de termos bastante elucidativo e, geralmente na ltima pgina est
um original de planilha para ser copiado e distribudo aos jogadores. O mestre pode
adaptar as regras da maioria dos jogos disponveis no mercado de acordo com a
aventura que ir mestrar, ou ainda criar suas prprias regras, depende somente de
sua vontade.
O mestre o nico jogador que obrigado a ler o livro de regras inteiro. Os
demais participantes do jogo podero ler somente os captulos que auxiliam na criao
de personagem, porm, quanto maior o contato dos jogadores com o universo do RPG
mais interessante ser a aventura.
Para montar a aventura histrica, alm de ler um livro de RPG, o mestre
dever pesquisar sobre o perodo que ser retratado em sua histria, a regio, o local,
os costumes, as supersties, religies e o que mais considerar necessrio para
embasar a aventura.
Toda essa pesquisa imprescindvel para que, durante o jogo, o mestre possa sanar
dvidas dos jogadores, assim como limitar aes e comportamentos de acordo com a
histria da aventura.
O passo seguinte a criao da aventura, geralmente uma esquematizao
simples suficiente para dar incio ao jogo, durante o desenrolar dos acontecimentos
e de acordo com as atitudes tomadas pelos jogadores o mestre pode fazer
modificaes no esquema original, tudo depende do andamento do jogo e das
intenes de quem est mestrando. A utilizao de recursos como mapas,
pergaminhos (fabricados pelo mestre), bilhetes pode deixar a aventura mais
interessante e ajudar o aluno a entender a histria a ser contada.
No caso de um professor mestrando uma aventura, cabe a ele fazer com que o
tema abordado no se desvie nem seja deixado em segundo plano em favor da ao,
tambm deve ser observado se todos os alunos-jogadores esto participando ou
somente assistindo tudo o que acontece durante uma sesso de RPG.
O professor ao mestrar uma aventura histrica em sala de aula, deve sempre
se lembrar da nica regra que no pode ser quebrada nem deixada de lado ao se
jogar RPG, o mestre tem poder absoluto sobre a aventura e o que ele disser lei.
Entre os rpgistas esta regra chamada de Regra de Ouro, sempre cabe ao mestre a
ltima palavra sobre alguma dvida que surja durante o jogo, no importando o que
esteja escrito no livro de regras ou em qualquer outro. Em uma aventura histrica esta
regra acaba se tornando uma responsabilidade a mais para o mestre.
Uma aventura histrica aplicada em sala de aula pode se tornar um grande
problema se o professor-mestre no estiver devidamente preparado; um anacronismo,
ou qualquer outro deslize pode se tornar um grande problema quando se for usar RPG
para ensinar Histria.
Em muitos casos os prprios jogadores realizam uma extensa pesquisa
histrica para poderem "incrementar" seus personagens e melhor entender e reagir de
acordo com o perodo retratado. Se os alunos tiverem esta iniciativa e o professor
cometer um erro como mestre, pode haver problemas, os educandos podem perder o
interesse pela aventura se perceberem que o mestre no se empenhou tanto quanto
eles.
Caso queira utilizar o RPG em suas aulas, o educador deve ter saber que
estar lidando com algo de fcil acesso para seus alunos, por este motivo, o jogo deve
ser conduzido com muita clareza e com limites bem claros. Um bom mestre sabe a
hora de encerrar uma sesso de jogo.
O jogo desperta muito interesse em crianas e adolescentes, alguns
educadores decidiram ento utiliz-lo como um recurso auxiliar no ensino de algumas
disciplinas, entre estas, a Histria.
A utilizao do RPG como instrumento auxiliar de ensino comeou nos Estados
Unidos h cerca de oito anos. Um dos principais divulgadores desta novidade foi um
dos criadores do D&D, Dave Arneson. Segundo os dados disponibilizados por ele,
sempre que os diretores, professores e pais de alunos decidem ouvir atentamente seu
projeto, este aprovado.
A maneira mais acertada de aplicar o RPG como atividade complementar,
no obrigatria, se possvel fora do horrio de aula normal. Infelizmente, poucos
educadores tm tempo ou interesse em ministrar atividades extra-classe. Tambm a
resistncia dos alunos em voltar para a escola fora do perodo de aula pode ser um
empecilho.
Apesar dos empecilhos descritos acima o RPG tem seus mritos e pode
conquistar e educandos, fazendo com que estes queiram retornar escola fora do
horrio de aulas; como se trata de um jogo, carregado com altas doses de aventura,
os alunos sentem-se, no mnimo curiosos, para conhec-lo. Geralmente aps a
primeira experincia so os prprios alunos que decidem partir para uma nova
aventura.
O pr-requisito essencial para o sucesso da utilizao do RPG como atividade
complementar no ensino a no-obrigatoriedade deste para com o aluno. O jogo no
deve, em hiptese alguma, ser imposto, mas deve partir do educando o interesse em
participar ou no desta atividade.
O grande trunfo do RPG desenvolver a fantasia e a criatividade de seus
participantes, mas no se resume somente a estes aspectos. Em uma aventura com
alunos de uma determinada classe pode-se criar ou fortalecer laos de socializao,
cooperao e interatividade.
H de modo geral, uma maior interao entre os alunos participantes de uma
aventura, pois alguns fatos acontecidos no decorrer da aventura acabam aproximando
a sala e permitindo uma maior sociabilidade.
Os educadores podem utilizar o RPG para complementar suas aulas sobre,
praticamente, qualquer contedo. No caso da disciplina Histria, o leque de
alternativas imenso.
O primeiro passo para a implementao do RPG como atividade complementar
a realizao de uma palestra com o objetivo de esclarecimento para pais,
educadores, direo e alunos. As dvidas que geralmente surgem, como em relao a
regras, possveis conflitos e outras podero ser sanadas durante esta apresentao do
jogo comunidade escolar.
Para que o RPG possa chegar as salas de aula, necessria a mobilizao
dos rpgistas j acostumados a mestrar aventuras (a maioria no se contenta em
somente jogar), mas tambm das escolas, que deveriam buscar novas formas de fazer
com que os alunos interajam com as disciplinas que constam em seu currculo,
procurando aplicar o que consta Parmetros Curriculares Nacionais, fazer com que
esse conhecimento adquirido seja til e aplicvel no dia-a-dia do educando.
A grande dificuldade na elaborao deste artigo foi, sem dvida, a falta de
fontes disponveis para pesquisa, a maioria est defasada, com informaes
ultrapassadas, complicando sua compreenso.
Atravs do estudo realizado, pde-se comprovar que o uso de RPG como
metodologia complementar de ensino vivel, porm no foram encontradas fontes
que comprovem a utilizao desta nova modalidade de ensino por profissionais da
Histria, somente por rpgistas, pedagogos e psiclogos.
Em todas as fontes pesquisadas, o RPG apontado por quem o aplicou em
sala de aula como uma metodologia inovadora e extremamente produtiva. Tambm o
aceitao entre os alunos e os educadores que acompanharam as experincias
estudadas descrita como bem elevada.
Os relatos porm so incompletos e defasados, no foi possvel entrar em
contato para obter mais dados com as pessoas que aplicaram o RPG em sala de aula
e escreveram sobre esta prtica. O que se nota uma espcie de sigilo de
informaes que no esto a disposio de todos. Como se as maravilhas do uso do
RPG nas escolas possa ser do conhecimento de muitos, mas o privilgio de aplicao,
de poucos.
Infelizmente no foi possvel a aplicao do RPG antes da entrega deste artigo,
o projeto segue adiante, com esperanas de ser aplicado que se possa confirmar
realmente a viabilidade e a validade do uso do RPG como metodologia complementar
de ensino de Histria, para os Ensinos Fundamental e Mdio.
POLITICA EXTERNA PS-INDEPENDNCIA: A INTERMEDIAO
BRITNICA E OS TRATADOS CONSULARES DE 1827
1
Sylvia EweL Lenz
2
Para a compreenso dos tratados firmados aps o reconhecimento do Imprio
brasileiro pelas naes europias, devemos considerar os reveses econmicos
durante as guerras napolenicas. Estes fizeram os ingleses voltar-se diretamente para
o mercado brasileiro, via transferncia da corte portuguesa sua antiga colnia
americana
3
, de modo a dar vazo a seus produtos, cujo comrcio fora bloqueado em
todos os portos europeus, inclusive os historicamente neutros. O Congresso de Viena,
liderado pelos representantes da Santa Aliana - Rssia, Inglaterra, Prssia e ustria
restaurou a velha ordem, assim como a manteve a paz europia atravs de tratados e
casamentos dinsticos. No Brasil, tal se consolidou, em 1816, com o matrimnio entre
D. Pedro e D. Leopoldina, unindo as dinastias dos Bragana com a dos Habsburgo,
garantindo a nica monarquia existente no continente americano.
Rssia e Inglaterra, lderes do congresso, representaram, respectivamente os
sistemas arcaico e absoluto, moderno e representativo na poltica externa. O imprio
austraco, conservador, junto com a Frana da restaurao e o Reino da Prssia,
formavam o grupo das potncias europias secundrias, manipulveis pelos maiores.
Assinado, inicialmente, pela Prssia, ustria e Rssia, seguia as propostas desta: o
legitimismo monrquico, o intervencionismo destinado a esmagar as revoltas
populares, a mstica do cristianismo, o governo supranacional dos povos.
Posteriormente, a Inglaterra imps a sua contraproposta, oficiosamente aceita
pela Frana que consistia em: combater a interveno, sendo favorvel ao
movimento das nacionalidades; induzir as potncias europias a se vigiarem
mutuamente e a respeitar os governos representativos. Quando das independncias
dos pases latino-americanos, houve um embate entre os princpios absolutistas da
Santa Aliana e os interesses mercantis de Frana e Inglaterra sobre os mercados
emergentes. A poltica externa brasileira fora condicionada pela continuao do
predomnio ingls sobre Portugal e seus reflexos na colnia, conforme o tratado de
1810 que: Obtido em conjuntura favorvel Inglaterra, devido s guerras
napolenicas, serviro eles posteriormente de modelo para regulamentar as relaes
com a Amrica Latina, sob o ngulo das pretenses europias.
4
A poltica externa lusa, durante a transferncia da corte portuguesa para o
Brasil, em 1808; a elevao deste a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em
1815; e ainda aps a independncia poltica, durante o Primeiro Reinado, foi
elaborada em funo fatores, tais como os:
...da herana colonial com suas estruturas sociais, do Estado bragantino
com seus valores, conexes e desgnios, da emergncia de um sistema
internacional resultante da revoluo industrial, do peso das foras
reacionrias aglutinadas na Santa Aliana, dos estreitos vnculos ingleses
transferidos pela metrpole, da transformao do continente americano em
rea de competio internacional.
5
Poucos anos antes da abertura oficial dos portos, em 1808, a mercadorias e
povos no lusitanos, a nao inglesa, respaldada pelo seu poderio naval e pela sua
produo excedente, impulsionada pela crescente industrializao em seu pas, j
vinha impondo, na prtica, a abertura de mercados no Imprio Colonial Portugus:
A partir de 1800, os comerciantes do Rio de Janeiro comearam a sentir
os efeitos da concorrncia britnica. Portugal fez um acordo nesse ano
com a Inglaterra, concedendo-lhe o direito de comerciar diretamente com o
Brasil. O Contador Geral do Tesouro (...) critica o acordo na introduo
balana comercial do Imprio portugus no ano de 1808 (...) assinalava
que o valor das exportaes portuguesas para o Brasil havia diminudo 18
milhes de cruzados de 1799 a 1808, apesar do valor total das
importaes da colnia Ter permanecido igual, em virtude da concorrncia
britnica.
6
A poltica externa portuguesa deu-se passivamente - uma continuidade secular,
quando da transferncia da corte para o Brasil, antiga aliana de Portugal com
Inglaterra. Um acordo garantia, desde 1808, a presena da Estao Naval britnica na
corte imperial, estabelecida extra-oficialmente:
Os ingleses instalaram-se na baa de Guanabara com intenes de
longa permanncia. Convenientemente, o Tratado de 1810, entre Portugal
e Inglaterra , revogou uma disposio portuguesa segundo a qual, nos
portos do Reino, no poderia existir fora naval estrangeira superiora seis
navios. A partir disso, a presena naval inglesa no Rio de Janeiro passou a
ser respeitvel e ostensiva, aumentando a partir da independncia. [...]
Alm disso, era preciso assegurar o pagamento dos vultosos emprstimos
feitos, e a serem feitos, ao nascente Imprio moreno. Da a indisfarvel
misso da Estao Naval inglesa no porto do Rio, relativamente ao Imprio
Brasileiro: proteger com uma das mos e ameaar com a outra.
7
J os Honrio Rodrigues ressaltou o importante papel, para a consolidao do
Brasil, da liberdade de comrcio, dos negcios e mesmo da esquadra britnica. As
clusulas do tratado de 1810 entre a Inglaterra e Portugal permearam os demais
tratados, aps o reconhecimento europeu do jovem Estado brasileiro
8
. Segundo
Cervo, as negociaes britnicas foram coercitivas, resultando em trs tratados que
enquadraram o Brasil no sistema inter-estatal da supremacia inglesa:
Os produtos ingleses entrariam a 15%, o que significou a morte da
indstria brasileira que florescia; introduziram-se franquias recprocas, num
sistema de reciprocidade fictcia; asseguravam-se aos sditos ingleses no
Brasil direitos especiais, que compreendiam uma justia privativa, dando-
lhes, assim, condies de se instalarem e agirem livremente; no se dava
contrapartida aos produtos brasileiros no mercado ingls, onde seus
direitos seriam regulados unilateralmente; excluiam-se do mercado ingls o
acar, o caf e outros produtos
9
.
Frana e Inglaterra inundavam o mercado luso-brasileiro com seus produtos
industriais, a primeira com artigos de luxo, a outra com bens de consumo:
A formao social brasileira estar a partir do sculo XIX subordinada
ao modo de produo capitalista atravs do mercado mundial. Apenas
atravs, porque as relaes de dominao no podem se constituir ao
nvel das trocas, mas esto enraizadas ao nvel da produo, subordinada
aos interesses dominantes ingleses.
10
Neste sentido, o comrcio hansetico com o luso-brasileiro foi fundamental
tanto para a produo proto-industrial alem como para a agrcola brasileira. Alm
daqueles no representarem uma ameaa, posto que careciam de uma marinha de
guerra, foram os grandes consumidores dos produtos brasileiros, no comprados,
nem pela Frana, nem pela Inglaterra, ambas abastecidas pelas suas colnias e/ou
protetorados. Entretanto, o jovem imprio perdeu a oportunidade de negociar, pelo
menos com os Estados alemes, tratados impondo condies mais favorveis, e no
somente com uma reciprocidade abstrata:
Os desgnios do governo ingls no Brasil poca da Independncia
permaneciam os mesmos de 1808, porque idntico era o seu projeto de
supremacia. So eles o comrcio favorecido, a reciprocidade fictcia,
facilidades e privilgios para seus sditos; a extino do trfico de
escravos, tudo a ser consentido politicamente, sem recurso fora, a cujo
emprego at ento se opusera
11
.
A Gr-Bretanha no s manteve como reforou as suas metas anteriormente
firmadas com Portugal, em 1810, com o Brasil. Desta feita, o Tratado de Amizade,
Navegao e Comrcio, de 1827, adaptou-se aos novos avanos da economia
exportadora inglesa, vida por garantir mercados externos para seus produtos
industriais. O Brasil, entretanto, encontrava-se excludo do mercado ingls que
importava produtos agrcolas de suas prprias colnias. Desta feita, teve de procurar
outros parceiros comerciais para exportar acar, caf, tabaco e algodo e, tambm,
couros, madeiras e drogas do serto: Foi o preo exigido pesos servios ingleses em
prol do reconhecimento da Independncia. A Dom Pedro, os tratados trouxeram a
antipatia nacional, a revolta do Parlamento e a queda em 1831.
12
Fato que os tratados firmados com a Gr-Bretanha, primeiro com a corte
portuguesa no Brasil, depois com este pas, j autnomo, foram uma continuidade dos
acordos comerciais anglo-lusos firmados durante o sculo XVII.:
A transferncia de privilgios especiais que a Inglaterra desfrutara
durante anos no comrcio portugus foi completada, e a continuao da
preemincia da Gr-Bretanha na vida econmica do seu velho aliado,
assegurada na Amrica portuguesa, apesar da separao da colnia da
metrpole. A linha de continuidade muito clara, remontando dos anos de
transio de 1810-1827 at as relaes anglo-portuguesas sculos
dezessete e dezoito. Num sentido bem real, os trs tratados
complementares de 1642, 1654 e 1661 podem ser considerados como as
bases do acordo comercial anglo-brasileiro de 1827.
13
A este acordo, seguiram-se os demais com as principais naes europias,
mais favorveis ao Brasil do que o britnico, posto que, ao menos estes pases,
compravam os produtos brasileiros, enquanto que os ingleses praticamente s
vendiam as suas manufaturas, tais como tecidos, peas decorativas e patins de gelo,
alm de lucrarem com fretes obtidos pela sua frota mercante
14
.
Quadro nico: Os tratados comerciais do Estado brasileiro com
Data Pas Ttulo dos documentos
29.08.1825 Portugal Tratado de paz e aliana
08.01.1826 Frana Tratado de amizade, navegao e comrcio
23.11.1826 Gr-Bretanha Conveno sobre o comrcio de escravos
16.06.1827 ustria Tratado de comrcio e navegao
09.07.1827 Prssia Tratado de amizade, navegao e comrcio
17.08.1827 Gr-Bretanha Tratado de amizade, navegao e comrcio
17.11.1827 Cids. Hanseticas Tratado de comrcio e navegao
26.04.1828 Dinamarca Tratado de comrcio e navegao
12.12.1828 Estados Unidos Tratado de amizade, navegao e comrcio
20.12.1828 Pases-Baixos Tratado de amizade, navegao e comrcio
07.021829 Sardenha Tratado de amizade, navegao e comrcio
Fonte: Cervo e Bueno, Histria da poltica exterior do Brasil, p. 27.
Os interesses da Gr-Bretanha, desde a escolta da corte portuguesa ao Brasil
quando das guerras napolenicas, visavam o comrcio antes com a Amrica
Portuguesa do que com a sua Metrpole. Assim, empenhou-se pelo reconhecimento
de Portugal perante a sua antiga colnia e pela abertura diplomtica da nica
monarquia americana s principais potncias europias, legitimando este processo em
termos de relaes exteriores, consolidado nas vias diplomticas e possibilitado
pelos acordos consulares e comerciais. Mas no foi s isto, a Inglaterra tambm
pretendia, como os membros da Santa Aliana, evitar a formao de mais uma
repblica na Amrica, suscetvel aos interesses dos Estados Unidos e sua doutrina
e Monroe, e que, de fato, tornaram-se os maiores importadores da produo
brasileira, seguidos pelas Cidades Hanseticas alems. Desta feita, o jogo de foras:
... que compunham o sistema internacional no incio do sculo XIX e os
objetivos dos Estados dominantes, a insero do continente americano
nesse sistema, a herana colonial brasileira tanto scio-econmica quanto
jurdico-poltica e, finalmente, o precoce enquadramento luso-brasileiro no
sistema internacional vigente, atravs da aliana inglesa.
15
Apesar do comrcio da Prssia ter sido, inicialmente, quase inexistente, tal
no minimizou a importncia das relaes consulares daquele pas com o Brasil.
Politicamente, era o Estado mais importante da Liga Alem, com maior concentrao
de produo industrial, mas boicotado em suas exportaes pelo protecionismo
imposto pela Inglaterra, Frana, Rssia e ustria
16
. A abertura de mercados na
Amrica Latina, principalmente na jovem monarquia, soava promissora para a
incipiente economia prussiana
17
; a importao de produtos, majoritariamente
brasileiros, tambm lhe era fundamental, uma vez que carecia de colnias e, portanto,
de fornecedores de matrias primas e alimentos
18
.
O tratado do Brasil com as Cidades Hanseticas fora assinado aps o
prussiano, apesar do comrcio alm-mar ser feito pelos dos hanseticos cujos portos
de Hamburgo e Bremen escoavam a produo e consumo da Prssia. Estas cidades,
quase atlnticas, foram, portanto, fundamentais para tornar este Reino em condies
de competir com a Frana, Inglaterra e Pases-Baixos.
J escassos negociantes austracos no tinham, por sua vez, experincia no
comrcio atlntico, alm da ustria continental carecer de portos adequados, exceto o
de Trieste no Mediterrneo. Aps o falecimento de D. Leopoldina, as relaes
diplomticas entre o imprio dos Habsburgo e o brasileiro, tenderam a esfriar
19
. O
prprio Baro de Walther, incumbido pelo governo austraco pelos negcios com o
Brasil, relatou a improvvel insero satisfatria de seu pas no comrcio mundial:
A ustria jamais poder tornar-se uma potncia martima de importncia
que lhe permita estabelecer um comrcio martimo extenso. Est colocada
fora da rota principal do comrcio do norte, e por isso nunca participou, em
nenhuma extenso, do comrcio internacional. Seus comerciantes no
esto acostumados a transaes de vulto, nem esto habilitados a
estabelecer contatos proveitosos com o mundo transatlntico dos negcios
[...]. Os obstculos acima provam a extrema dificuldade de relaes
comerciais proveitosas entre a ustria e o Brasil, especialmente se Trieste
tiver de ser o nico porto de embarque.
20
A histria dos tratados das cidades hanseticas
21
mostram que, ao contrrio
dos ingleses e franceses, no dispunham de exrcito prprio e muito menos de uma
marinha de guerra; nada que ameaasse a soberania nacional. J os ingleses, num
primeiro momento, e franceses at mesmo mantinham navios de guerra na Baa de
Guanabara
22
:
Na verdade, Sr. Presidente, eu no posso ver a sangue frio o que se
est praticando no Brasil. Admittir-se em nosssos portos um numero
indeterminado de navios de guerra estrangeiros, choca e afflige a todo o
homem de bem. Ns sabemos que no antigo regimen no havia tratado
expresso que prohibisse admittir em nossos portos mais de seis navios de
guerra; mas como possivel, Sr. Presidente, que desde esse desgraado
anno em que se conluiro tratados de reciprocidade entre Inglaterra,
Portugal e Brazil, se permitisse a entrada de um to considervel nmero
de foras navaes? E por que em todos esses tratados no h um s artigo
em que se determine o numero de navios de guerra que podem entrar
livremente nos portos do Brazil.
Portanto, o Ministro dos Negcios Estrangeiros, Marqus de Queluz bem que
poderia ter imposto condies mais favorveis para o Brasil, principalmente nos
acordos com estes micro-Estados. Enquanto hamburgueses e bremenses vinham de
uma tradio medieval em selar negcios externos, os brasileiros viam, na assinatura
destes acordos, o reconhecimento prtico da independncia brasileira e de sua
participao na economia mundial. Na nsia de ampliar os tratados consulares que
abrissem o mercado para alm dos limites do comrcio ingls e francs, descuidaram-
se em defender os interesses reais da nao posto que preferiam somente amenizar o
predomnio britnico, atravs destes acordos com os demais pases europeus
23
.
Estes tratados esto relacionados tradicional poltica comercial das cidades
hanseticas: a manuteno como Estados neutros, mesmo em tempos de guerras, de
modo a garantir a livre-circulao de seus navios em quaisquer portos europeus e
mesmo americanos, como ocorreu durante as lutas pela independncia dos Estados
Unidos
24
. O eixo girava em torno da igualdade de direitos tanto para negociantes
hanseticos no estrangeiro, como negociantes estrangeiros nestas cidades: o direito
de permanncia e proteo do negociante no exterior, da no obrigatoriedade do
servio militar e da liberdade religiosa
25
. Como a economia hansetica baseava-se
tanto na expanso dos mercados existentes como na conquista de novos, sem contar
com poderio naval militar, tinha de alcanar seus objetivos atravs de negociaes e
acordos amigveis.
26
Desta forma, notamos a recente monarquia americana
inserida nas regras do comrcio europeu, dentro de um sistema mercantil liberal, mas
ainda baseado em mo-de-obra escrava, grande entrave nos acordos com a Inglaterra
que exigia o fim do seu trfico no obstante este assunto de amplo conhecimento
geral.
1
* Parte do projeto Formao da Marinha de Guerra do Brasil (1821-1845), aprovado pelo CNPq e
coordenado pelo Prof. Dr. Miguel Arias Neto da Universidade Estadual de Londrina.
2
Professora adjunta de Histria Moderna e Contempornea da Universidade Estadual de Londrina
3
NORTON, Luiz. 1938. A Corte de Portugal no Brasil. 2a. ed. So Paulo, Ed.Nacional, Braslia, INL,
1979. Este autor mostra os antecedentes desta transferncia, plano acalentado desde fins do sculo XVI.
4
Ibidem, p. 18.
5
Ibidem, , p. 20.
6
LOBO, Eullia Maria Lahmeyer. Histria do Rio de Janeiro, Rio de J aneiro, IBMEC, 1978, p. 76.
7
LEMOS, J oo Saldanha. Os Mercenrios do Imperador, Rio de J aneiro, BIBLIEX, 1996, p. 446.
8
RODRIGUES, J os Honrio. Independncia: Revoluo e Contra-Revoluo. A Poltica Internacional.
Rio de J aneiro, Livraria Franciso Alves, 1975, pp. 16 e 87.
9
CERVO, Amado Luiz. Histria da poltica exterior no Brasil. 2
T
O Projeto Histria e Memria de So J ernimo da Serra
1
, desenvolvido na
escola Arlindo J os dos Santos, para turmas de terceira srie do ensino fundamental,
neste mesmo municpio, tem como primeiro objetivo, oferecer aos professores da
escola, subsdios tericos e metodolgicos prprios ao ensino de Histria, seguindo,
desta forma, a proposta curricular da terceira srie do ensino fundamental, indicada
pelo Estado do Paran
Ao assumirmos as turmas, ns
2
, estagirias da Universidade Estadual de
Londrina, atuamos como professores de Histria na escola, para esta srie,
oferecendo aos alunos e professores, um trabalho que visa resgatar a Histria desta
cidade, bem como a sua Memria, inserindo-a num contexto maior, no contexto da
histria do Brasil.
Mas como trabalhar a histria de uma cidade como So J ernimo da Serra,
uma cidade que possui como qualidade mais requisitada o fato de ser pioneira no
norte do Estado do Paran? Como abordar a Memria da cidade, entendendo esta
memria como um fenmeno histrico e por isso uma fonte histrica? E como aplicar
estes recursos tericos e metodolgicos em sala de aula?
Ocorre que, ao trabalharmos com um tema que envolve os pressupostos
tericos da Memria e da Histria, somos levados a perceber que estes dois
elementos formam uma s coisa, mas, existem diferenas que so significativas em
cada uma. Como afirma o autor Peter Burke, ao partimos para uma viso tradicional
da relao entre Memria e Histria, simplificamos seus significados, fazendo com que
a memria reflita o que aconteceu na verdade e a histria reflita a memria. Mas, ao
contrrio desta simplificao, tanto a memria quanto a histria, dispem de
mecanismos complexos para suas abstraes
3
.
As tradies orais, os documentos escritos, o prprio espao de transmisso
da memria e as representaes que fazemos de fatos ou pessoas, so pressupostos
que leva-nos a especular os caminhos de transmisso desta memria, aberta
dialtica da lembrana e do esquecimento
4
, social, uma vez que estamos analisando
as pessoas que habitam a cidade de So J ernimo da Serra, ou seja um espao
coletivo. No caso, nosso foco se desloca para a sala de aula, onde as crianas, alunas
da escola municipal, esto em fase de crescimento fsico e intelectual, e por isso,
ainda mais suscetveis s tradies da cidade.
A histria possui como princpio a reconstruo problemtica daquilo que
aconteceu, como afirma Edgar Salvadori de Decca, opondo-se essencialmente ao
presente, para que atravs do passado possamos esclarec-lo, fazendo til a
aplicao de mtodos que avaliem as dinmicas estruturas e documentos histricos,
tornando-se uma cincia da mutao histrica
5
.
Como podemos observar, histria e memria so dois elementos que no se
distanciam de forma abrupta, mas cada uma, dentro de sua especificidade, possui
suas caractersticas e princpios que se diferem complexamente, onde:
A memria a vida, sempre guardada pelos grupos vivos ... a histria a
reconstruo sempre problemtica e incompleta daquilo que no mais... a
memria um fenmeno sempre atual, uma ligao do vivido com o eterno
presente; a histria uma representao do passado. Por que ela (
memria) afetiva e mgica, a memria se acomoda apenas nos detalhes
que a conformam; ela se nutre de lembranas vagas, telescpias, globais e
flutuantes, particulares ou simblicas...a histria ... exige analise e o
discurso crtico... A memria se enraza no concreto, no espao, no gesto,
na imagem e no objeto. A histria no se liga a no ser em continuidades
temporais...a memria um absoluto, a histria no conhece mais que o
relativo... A memria sempre suspeita histria, donde sua verdadeira
misso a de destru-la e de rechaa-la.
6
Ao trabalharmos a proposta curricular da terceira srie do ensino fundamental,
comeamos por discutir O Brasil e seus diferentes povos, etnicidades, diferenas
sociais e culturais, sempre voltando o nosso olhar cidade, de forma que os alunos
percebam que estas diferenas esto presentes no contexto vivido por eles. Para fazer
entender este contedo, difcil, comeamos retomando a Histria do Brasil, ou seja, a
histria oficial do descobrimento, inserindo-a em seu contexto temporal, cultural e
social.
Surge ento um dos primeiros problemas a serem rompidos, a temporalidade.
O tempo para a criana algo difcil de abstrair. Desta forma, trabalhamos o tempo
utilizando mecanismos que fazem parte do presente e cotidiano das crianas. Ao
falarmos do descobrimento, situamos ele em seu ano e sculo, mas como estes
caracteres da histria, como j foi dito acima, so consideraes que dificilmente os
alunos iro abstrair por uma falta de maturao prpria da idade dos mesmos,
indicamos que naquela poca, no existia, por exemplo, a televiso, os automveis, os
avies, as geladeiras, os foges gs...enfim, objetos prprios da nossa prtica
cotidiana, que auxiliam e muito na compreenso da temporalidade
7
.
Outro problema a questo do espao. Falar que Pedro lvares Cabral, saiu
de Portugal, para encontrar as ndias, e encontrou o Brasil, muito vago, na
percepo espacial dos alunos. Surgem dvidas tais como: Onde fica Portugal? Onde
ficava
8
o Brasil? O que a Europa? Desta forma, a utilizao de mapas, e recursos
como imagens, lbuns seriados, recortes de revistas, msicas, esclarecem estas
dvidas e trs sala de aula incentivo e muitas curiosidades sobre o assunto, uma vez
que os alunos ficam situados no tempo e no espao
Podemos, desta forma, perceber que, o projeto de Histria e Memria de So
J ernimo da Serra, primeiramente levanta a discusso sobre a histria do Brasil e os
diferentes povos e culturas que constituem este pas. Posteriormente, inserimos a
histria da cidade neste contexto, atravs de uma analise que contempla So
J ernimo da Serra no contexto do Paran como um todo e no Brasil.
Para tratarmos da histria de So J ernimo da Serra, fazemos um
levantamento em sala, a fim de avaliar a representao que os alunos fazem de sua
cidade, atravs de desenhos e redaes. E para cada discusso, salientamos que a
cidade possui seu passado e que este est inscrito em um contexto histrico, situado
no tempo e no espao.
A histria oficial da cidade, privilegia seus heris, como o Baro de Antonina,
J oaquim Francisco Lopes, Frei Timteo Castelnuovo e Frei Luiz de Cemitille. Eles
desbravam uma regio habitada por ndios Kaingangues, aborgenes, que necessitam
de catequizao. Como uma vila destinada a escoar pelo rio Tibaji os recursos
extrados da regio sul do pas para o Mato Grosso, a pedido do rei D. Pedro II, a
regio possui uma importncia estratgica na dinamizao dos transportes fluviais e
terrenos, assim como, recebe sempre mais novos contingentes de elementos
civilizados, que muito contriburam para o seu progresso.
9
Percebamos que este tipo de Histria, que contempla heris, lugares e a
populao residente no local escolhido, suporta elementos memorveis, com um
passado glorioso, quase mtico, que se arrasta at no presente, delimitando-o e se
esforando para assegurar um sentimento de identidade. Erige-se no presente...a
memria histrica, que no memria porque est alheia experincia do vivido e
nem histria por que destitudo do seu valor crtico com relao ao passado. E j que
ns historiadores temos a misso de destruir, mesmo que nisto se construa uma nova
dimenso para irradiao de outra memria, estes tipos comuns de afirmaes de
identidades, so encontrados na histria oficial de So J ernimo da Serra, alguns
problemas de ordem fundamental na vivncia da prpria cidade, que variavelmente
entram em discusso na sala de aula.
Um destes casos remete-nos questo indgena.
A questo indgena na cidade, alm de ser uma especificidade das
caractersticas de So J ernimo da Serra, tratando-se de uma questo histrica,
tambm nos encaminha para as dimenses sociolgicas desta problemtica. A regio
antes de ser conquistada, era povoada por uma grande quantidade de povos
indgenas, que pelo embate cultural, foram dizimados e hoje, em pequena quantidade,
se encontram nos arredores da cidade situados em duas reservas. Desta forma, a
construo da identidade cultural que valoriza os grandes heris fundadores e seus
grandes feitos, num passado mtico, revela o indgena atravs da sua barbrie,
faltando-lhes o quesito maior existente nas populaes brancas, a civilidade.
10
Numa das aulas em que discutamos a cultura indgena no Brasil, perguntei
aos alunos:
O que vocs acham dos ndios que vivem aqui em So J ernimo?
A resposta, me surpreendeu, no apenas pelas palavras utilizadas, pois estes so os
adjetivos atribudos aos ndios de uma maneira geral na cidade, mas tambm, pelo
tom de voz e o prprio desprezo atribudo aos indgenas.
Um dos alunos respondeu:
Eles so uns preguiosos, vagabundos, bbados, sujos, fedorentos...
Outra vez, em sala, perguntei aos alunos se existia algum que fosse
descendente de ndios. Todos responderam que no. Ento insisti, dizendo que era
impossvel no ter ningum na sala que no seria descendente de alguma tribo
indgena do Paran. E reportei-me histria da minha famlia paterna onde meus avs
me contam, que a me da minha av fora ndia. A partir disso, uma grande maioria
dos alunos comearam a se lembrar de fatos e histrias de suas famlias.
Estes e outros tantos exemplos, servem para ns analisarmos a irradiao de
uma memria seletiva, que exclui um segmento importante da sociedade local, e que
faz tambm com que os homens e mulheres miscigenados, derivados de etnicidade
nativa, no se vem como fruto de uma sociedade que contou com o elemento
indgena para a sua construo. Fica muito evidente, na sala de aula, os reflexos
fsicos da miscigenao, mas falar que so descendentes de ndios, soa como uma
ofensa, que demostra o perigo de difundir uma histria, por mais ingnua que seja,
que privilegie grupos sociais em detrimento de outros.
Em suma, tratar de Histria e Memria numa cidade como So J ernimo da
Serra, tendo como base uma sala de aula, nos trs o privilgio de tentar, pelo menos,
uma discusso que avalie certos aspectos vivenciados pelas crianas na sua cidade.
Ainda mais importante, porque estamos lidando com uma faixa etria que vem a
cada dia crescendo fisicamente e intelectualmente, formando seus conceitos e valores
com relao as suas vidas.
A escola um espao dinamizador de memria, onde se celebra as festas
comemorativas da nossa identidade nacional e local, trabalha-se com as tradies
orais e escritas, verifica-se as atitudes e gestos dos professores e tambm dos alunos
que provem individualmente de suas famlias, carregando uma bagagem de crenas,
valores e opinies ... enfim, um local que alm de transmitir conhecimentos
intelectuais, no se reduz somente nestas bases, mas possui um papel muito
importante na sociedade local.
T
As relaes femininas com o mundo da leitura e da escrita tm sido objeto de
estudo dos trabalhos historiogrficos contemporneos. A histria da leitura revela que,
desde o sculo XIX, as mulheres vm ampliando suas oportunidades de acesso aos
livros, particularmente aos romances, prtica essa que contribuiu para reforar
comportamentos conjugados aos valores sociais da poca. Os personagens e suas
tramas serviam de modelo para o universo feminino burgus, modelando atitudes e
padronizando sentimentos. Posteriormente, a partir do ingresso nas escolas de formao,
as mulheres inseriram-se no mundo da escrita, expressando idias e pensamentos,
inicialmente em produo de restrita envergadura, para mais tarde ousarem at mesmo a
fundao de seus prprios jornais. As pesquisas que buscam a participao das mulheres
nas atividades intelectuais tm trazido novas referncias para os estudos feministas e
revelado que possvel trabalhar as produes literrias como fontes histricas.
De leitoras de romance aos primeiros ensaios da escrita, inicialmente registrados
em alfarrbios caseiros dirios, correspondncias, livros de receitas , o ingresso das
mulheres no mundo da intelectualidade acentuou-se, particularmente, aps a criao de
escolas de formao feminina, o que ocorreu no Brasil a partir da segunda metade do
sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX. Via de regra, as mulheres passaram a
freqentar escolas destinadas formao de professoras normalistas, profisso
entendida como essencialmente feminina, medida que esse tipo de pblico reunia
virtudes e qualidades indispensveis para o exerccio da educao s crianas e jovens.
Como modus vivendi de uma poca, grande parte das mulheres, que pretendia ampliar
seus estudos e exercer uma profisso, ingressou nas escolas de formao de
professores. Nessas unidades cumpriam um programa de estudo e trabalho
particularmente voltado para a educao das moas Conhecimentos Gerais, Gramtica,
Puericultura, Trabalhos Manuais, Literatura, Histria, Geografia e Matemtica Bsica. Na
Curitiba dos anos 30, um nmero significativo de jovens que freqentava as escolas de
formao de professores dedicava-se escrita de poemas, ensaios e atuava na imprensa
opinando acerca de temticas que traduziam as conquistas femininas obtidas naquela
poca. No movimento de conquista produo literria, elas conviveram com um pblico
masculino formado por poetas, cronistas, ensastas atuantes no contexto estadual e
nacional; viajavam para o Rio de J aneiro constantemente como forma de se manterem
atualizadas em relao ao mbito artstico-cultural, bem como para incorporar as idias
de modernizao que atingiam as cidades, de maneira geral.
A intelectualidade paranaense tem sido alvo de freqentes estudos, em razo da
fertilidade do tema, uma vez que o Paran apresenta uma certa tradio nesta rea, pois
legou nomes que fizeram a histria da literatura brasileira, particularmente nos
movimentos do final do sculo XIX, em que se destacam Emlio de Menezes, Andrada
Murici, Tobias Barreto, entre outros. Esse perodo da histria da intelectualidade
paranaense foi intenso. Seus representantes agitavam a cidade, criando revistas, crculos
de encontros, publicando ensaios. No contexto literrio, inicialmente marcado pela
presena masculina, registrou-se tambm a participao de mulheres que manifestaram
pensamentos em forma de crnicas, ensaios e poesias. A poesia destacou-se como um
gnero literrio bastante evidente entre as mulheres paranaenses que alcanaram algum
reconhecimento da sociedade. Escrever poemas revelou-se como inclinao para
mulheres das tradicionais famlias paranaenses que desejavam ampliar seu universo
cultural, manifestando pensamentos e sentimentos em revistas, jornais e em
programaes culturais especialmente criadas para este fim. Essas programaes
revelavam-se um complemento educao feminina, canalizando e orientando aptides
intelectuais para um espao que lhes era apropriado. Ou seja, a mulher moderna nos
anos 30 do sculo XX, buscava seu aperfeioamento intelectual, sem, no entanto, abdicar
das tarefas a elas inerentes: dedicar-se educao, entender de arte em geral, participar
de eventos culturais, ocupar-se de obras assistencialistas. Em uma sociedade que
aspirava modernizao, o significado de ser mulher pouco se alterou em relao s
concepes do sculo XIX. Em outras palavras, a mulher tambm alcanava as
possibilidades de gestar idias e manifest-las nos meios de comunicao daquela
poca, sem, no entanto, trair o modelo pensado para o universo feminino da poca.
Ainda que outras mudanas se evidenciassem, representando um caminho sem retorno,
por exemplo, o ingresso da mulher no mundo do trabalho, bem como as conquistas do
movimento feminista/sufragista, no que diz respeito aos direitos polticos a condio
feminina mantinha-se arvorada nos modelos do sculo XIX. Nessa linha de pensamento,
o acesso da mulher a atividades para alm da esfera domstica foi bastante lento e trouxe
consigo preconceitos.
O estudo das fontes acerca do ingresso da mulher no mundo das letras no Paran
dos anos 30 sugere que as escritoras buscaram a convivncia pacfica com o pblico
masculino, procurando demarcar seus lugares e ocupar um espao compartilhado com os
homens. Na leitura e estudo dos documentos daquela poca transparece os cuidados por
elas mantidos, quando deixavam claro para o pblico masculino que seu ingresso no
trabalho urbano ou no mundo intelectual no iria alterar o quadro das funes pblicas;
que os encargos administrativos seriam conservados sob a responsabilidade dos homens.
Seguindo esta linha de pensamento, s mulheres caberia a humanizao da sociedade,
tais como, os cuidados com a assistncia social, o combate violncia, a preveno ao
alcoolismo e o desenvolvimento de um programa de amparo s famlias carentes.
Mariana Coelho, escritora e representante do movimento feminista, juntamente com
Bertha Lutz, expressa essa preocupao logo na introduo de sua obra A evoluo do
feminismo, publicada nessa poca e que se tornou uma referncia para os estudos
acerca do assunto:
Vivemos h muito da nossa modesta e nobre misso do ensino; no temos,
portanto, com a elaborao do nosso presente livro, absolutamente, em mira, a
posse e fruio de direitos polticos e profisses masculinas isto ,
administrativas. A nossa efusiva adeso relativa s aspiraes femininas
representa, apenas, repetimos, o nosso muito natural desejo de prestar um
servio que v ao encontro da justa causa que defendemos. Alm disso,
comove-nos at a admirao, a constante luta sem desnimos nem
esmorecimentos, que abalizadas feministas as representantes do so
feminismo sustentam no somente para conseguir os direitos civis e polticos
ambicionados, mas tambm e principalmente promover o aperfeioamento
moral da humanidade.
1
E continua: Alm de tudo, as feministas, nas suas aspiraes, no pensam,
absolutamente, no absurdo de suplantar o sexo masculino; elas querem, pelo contrrio, a
igualdade sexual para melhor provarem as qualidades de uma mais condigna
companheira nos grandes surtos morais e sociais que devem transformar o mundo.
2
O mesmo cuidado est presente na fundao do Centro Paranaense Feminino de
Cultura, em dezembro de 1933, iniciativa esta que recebeu o apoio das autoridades
masculinas, sendo alvo de intensos cuidados de suas fundadoras. Ao receber a
incumbncia de fundar um centro que agregaria mulheres para atender formao
intelectual, artstica e esportiva das representantes do pblico feminino elas afirmaram:
A Sociedade Paranaense de Cultura Feminina est sendo constituda de modo
a desenvolver uma alta cultura capaz de servir de ncleo de irradiao
intelectual e de elemento coordenador da mulher conterrnea. E tudo isso sem
poltica, sem idias imprprias e extravagantes, procurando-se apenas
congregar os nossos elementos femininos para uma cruzada nobilitante da
formao psquica e social da mulher.
3
E a seguir reforam: O nosso centro no se prope a realizaes incompatveis
com o temperamento e a ndole da mulher paranaense. Queremos, principalmente, dirigir
as nossas atenes para umas tantas funes, sobretudo no terreno da educao e da
famlia, que no podem e no devem ser descuradas, sob pena de falsear nossas
finalidades.
4
Essas afirmativas confirmam a demarcao das funes sociais entre
homens e mulheres, em se tratando dos negcios pblicos e da formao de opinies ou
crticas. Por esses caminhos, eclipsava-se que, naquele momento, as mulheres
pudessem ter tido uma atitude revolucionria ou de radical transformao, mas que, na
sua maioria, pactuavam com as iniciativas masculinas, inserido-se nos lugares a elas
destinados, aceitando o modelo hegemnico masculino. possvel que fizessem uso de
uma forma elegante, munido-se de concrdia como instrumento poltico para ascender
vida pblica e participar efetivamente da gesto da cidade, conciliando papis que lhes
possibilitassem concesses. O refinamento dos gestos e a troca de gentilezas podem ser
observados nos documentos escritos, revelando reciprocidade de cordialidades, para que
se evitassem confrontos e tenses decorrente das mais recentes conquistas femininas.
Nessas circunstncias, o quadro de valores institudo e pensado para as mulheres
dos anos 30 pouco avanou sobre aquele que se pronunciava no final do sculo XIX.
Ainda que galgassem as instncias do ensino superior, freqentando cursos, como
Medicina e Direito, integrassem o quadro da intelectualidade e participassem de projetos
de assistncia social em acordo com as polticas pblicas de modernizao do Estado,
suas funes vinculavam-se a cumprir um programa de reconstruo moral da
sociedade, a moderna cincia da Eugenia, posta em ao para conseguir a sublime cura
de todas as chagas que atingem a alma humana.
5
Em 1953, por ocasio dos festejos do Centenrio da Emancipao Poltica do
Paran, foi lanada pelo Centro Paranaense Feminino de Cultura a obra Um sculo de
poesia, que reunia a produo literria de, aproximadamente, 42 mulheres, a maioria
procedente de cidades paranaenses, como Ponta Grossa, Paranagu, Curitiba, Castro,
bem como algumas representantes estrangeiras e de outros estados que, por motivos
diversos, fizeram da capital paranaense seu espao de vivncia social e de trabalho. As
organizadoras desta obra tiveram o cuidado de apresentar dados biogrficos das
poetisas, bem como situar, cronologicamente, a produo literria das escritoras. O
estudo destes dados fornece um perfil das mulheres que se dedicavam escrita,
particularmente poesia. De maneira geral, como j foi afirmado, cinqenta por cento das
poetisas da obra citada freqentaram escolas de formao de magistrio, em Curitiba e
em outras cidades, exercendo a funo de professoras; algumas se tornaram inspetoras
de ensino; uma grande parte delas apresentava talentos artsticos, notadamente para a
msica e pintura; muitas eram procedentes das tradicionais famlias paranaenses,
distinguindo-se por laos de parentescos com personalidades do meio intelectual; as
estrangeiras que se estabeleceram por intermdio dos vnculos estabelecidos por seus
cnjuges, como Georgina Mongruel, Lucie Laval. Os dados biogrficos destacam
aspectos da vida destas mulheres vinculados a talentos artsticos, habilidades mltiplas,
afetividades e sentimentos, revelando em alguns casos, uma certa tendncia melancolia
e tristeza, o que tambm est presente em seus poemas. As mulheres poetisas eram
moas de comportamento exemplar, como esposas, filhas ou atuantes de uma sociedade
em transformao, participando do movimento feminista na luta pelos direitos da mulher e
pelo seu ingresso na sociedade. Na esfera poltica, destacaram-se Rosy Pinheiro Lima
que, em 1947, se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo de deputada estadual e
Florentina Vitel que, em 1934, teve seu nome indicado para concorrer ao cargo de
deputada estadual.
O estudo dos poemas revela temas que foram constantes nas produes literrias
destas intelectuais. Tomando como referncia Ilnah Secundino intelectual bastante
atuante na sociedade paranaense e que pode ser citada como um exemplo bastante
singular, sendo jovem universitria, advogada, fundadora do Centro Paranaense Feminino
de Cultura. Ocupou duas vezes a presidncia do referido centro, publicou poemas em
vrias revistas de circulao na cidade e participou intensamente dos jornais, concedendo
entrevistas acerca de assuntos que exigiam a opinio feminina. Suas poesias foram
reunidas em trs partes, denominadas Quando o sol surge no Oriente, publicada em
1934; Vozes da Cidade, em 1935 e Missanga, em 1937. A primeira coletnea de
poemas trata de temticas gerais presentes nas produes das mulheres, como exaltao
das belezas da terra, em que figuram motivos paranistas, por exemplo, a araucria, o
clima frio; nessa coletnea, ainda esto presentes temas que revelam sentimentos e
subjetividades considerados femininos que denotam tristeza, saudade, sonho, renncia e
desencanto acompanhados de nostalgia, angstia e que expressam um certo desconsolo
e resignao. Os poemas falam de uma mulher sentimental, frgil, sujeita a certos
perigos, mas que est aberta s experincias da vida: Seduz-me divagar ao sabor da
emoo, de uma coisa qualquer, que provm do doce mal e amargo bem do meu
subjetivismo de mulher. Ou: Eu amo o riso, o pranto e tambm a tristeza, a nossa eterna
companheira.
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H poemas que tambm traduzem a preocupao com o social, sendo
que um deles reflete um olhar mais crtico sobre o mundo vivido naqueles tempos :
Ecoam os silvos prolongados,
as chamins expelem rolos de fumaa.
Passam os operrios
homens humildes
de tmperas rijas, nervos de ao.
Homens de crebros vrios,
filhos da era vertiginosa,
obreiros incansveis do progresso
feitos custa do seu suor e sacrifcio,
homens que se batem contra a fome,
que pelejam e s vezes so vencidos
por outro mal ainda maior: O vcio
o meu voto de f por esses homens-mquinas
de fainas cotidianas
heris sem nome
das misrias dirias, das tragdias urbanas.
Heris hericos das cidades-frmitos,
homens que vivem o drama dos vencidos
dentro da vida febril das oficinas.
Quantos e quantos ais ficaro abafados
no crepitar das fornalhas ardentes
no rumor incessante das turbinas.
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De uma certa forma, a poetisa no deixa de ler a vida do operrio com base nos
elementos que eram evidentemente femininos, demonstrando compaixo com os
proletrios, arautos do progresso, bem como preocupaes em relao ao vcio,
possivelmente o alcoolismo, o que se tornou uma bandeira de luta das mulheres
feministas daquela poca, na perspectiva de humanizao da sociedade. A poetisa no
deixa de reconhecer o drama/conflito das metrpoles com a excluso social e o
anonimato dos obreiros das cidades que se esboavam modernas. Possivelmente o
poema tambm testemunha o incio da industrializao do Paran, quando as chamins
expelem fumaa e os homens vivem o drama da vida febril das oficinas.
Em Vozes da cidade, Ilnah Secundino sada a cidade de Curitiba descrevendo
cenas da vida cotidiana:
A cidade toda uma tela doirada
Cada rua, cada casa, cada rvore
Um pomo louro,
Como se o sol, que acaba de surgir,
Estivesse derramando sobre a Terra
Uma grande nfora de ouro!
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O poema conjuga-se a outras fontes que sinalizam para Curitiba como a cidade
hospitaleira, onde todas as raas encontram espao para se estabelecer: Qu compra
paia, mio, fijon, batata doce? Doces so seus olhos, italianinha! Doce so seus lbios; a
sua fala musicada que faz pensar num pedao da Itlia l distante. A Itlia que na alma
dos seus vive sempre lembrada. Preserva ainda tipos urbanos caractersticos desta
cidade to artisticamente polimorfa. O dolezeiro, o vendedor de pastis, o rabe que
vende meia; o vendedor de bala Baal...iro! Bala de cco! Quem no experimentar fica
loco. O vendedor de bilhete de loterias Olhe o ltimo pedacinho! Arrisque, corre hoje.
As crianas que fazem roda e cantam quando chega a noite Senhora D. Sancha, coberta
de ouro e prata descubra seu rostinho, ou as serenatas dos jovens enamorados
entrecruzadas pelo grito do jornaleiro a anunciar Dirio da Noite.
Na terceira coletnea de poemas, Ilnah aborda os mesmo temas, mas revela a
mulher que deseja liberdade de viver:
Meus lbios esto cheios de coisas para dizer.
Minha alma est cheia de sonhos para viver.
E imagino o que seria
Se eu gritasse bem alto meus pensamentos
Cheios de vibraes estranhas.
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Neste breve artigo, buscaram-se aproximaes entre Histria e Literatura,
particularmente no que se refere a relaes de gnero. Procurou-se exercitar as
possibilidades de leitura dos poemas como expresso de um modo de ser feminino que
foi marcante na trajetria de um grupo de mulheres na primeira metade do sculo XX.