Crianças o Descriançável

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ENSAIOS

“Criançar o descriançável”: a
transicionalidade da infância e o
paradoxo da proteção-liberdade
Maria Cristina Gonçalves Vicentin [1]

Resumo: Os novos direitos de crianças e adolescentes, assim como as experiências de demo-


cratização das relações entre crianças, adolescentes e adultos em curso desde a segunda
metade do século XX, têm produzido uma importante inflexão em torno do direito à autode-
terminação e aos direitos de liberdade de crianças e adolescentes. Tal inflexão não se fez
sem tensões relativamente aos direitos de proteção, estes últimos assentados muitas vezes
numa suposta incapacidade sociopolítica de crianças e adolescentes e na posição de subordi-
nação das infâncias – sua vulnerabilidade estrutural – nas sociedades contemporâneas. Neste
texto, em diálogo com as produções dos Estudos Sociais da Infância, consideramos as relações
entre direitos de proteção e liberdade como um paradoxo e não uma contradição. Com base
na noção de transicionalidade da infância em Winnicott, apresentamos algumas pistas para
uma posição ético-política para o mundo adulto interessado em habitar este paradoxo.

Palavras-chave: Infância. Direitos. Autonomia.

Childing what was unchilded: childhood transitionality


and the protection-freedom paradox

Abstract: The new rights of children and adolescents, as well as the experiences of
democratizing the relationships between children, adolescents, and adults that has been
occurring since the second half of the twentieth century, have produced new ways regarding
the right to self-determination and the right to freedom of children and adolescents. This
inflection has not transpired without tensions relative to the rights to protection, which are

[1] Professora doutora do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP. E-mail: [email protected]

O título “Criançar o descriançável” não é original. A “fórmula” compõe, ao contrário, um conjunto de outros textos
das quais sou autora ou co-autora, dirigidos a diferentes interlocutores (profissionais da saúde, educação e assistên-
cia) e sustentam uma estratégia de difusão de um ethos criançável na relação com crianças e adolescentes, reto-
mando alguns elementos indicados anteriormente em outra perspectiva e com outros desdobramentos. (VICENTIN,
2016a; 2016b; VICENTIN, M C G; GRAMKOW, G., 2018).

Este texto foi originalmente apresentado no Seminário Museus, infância e liberdade de expressão, proposto pelo
Museu de Arte Moderna, na semana de x a y , na mesa “Liberdade de expressão e infância: proteção dos direitos
das crianças e restrições à liberdade de expressão se completam ou se repelem?” realizada no dia 4/10/2018. A
apresentação está disponível no https://www.facebook.com/watch/live/?v=497790020701905&ref=watch_perma-
link. Pequenas modificações foram introduzidas na passagem para a forma escrita.

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often based on the supposed sociopolitical inability of children and adolescents, and the
subordinate position of childhood – its structural vulnerability – in contemporary Society.
In this text, in dialogue with the productions of Childhood Social Studies, we consider the
relationship between rights of protection and freedom as a paradox and not a contradiction.
Based on Winnicott’s notion of childhood transitionality, we present some indications for an
ethical-political position for the adult world interested in inhabiting this paradox.

Keywords: Childhood. Rights. Autonomy.

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Não é casual que tenha vindo do cinema – esta Nesta empreitada, romperam-se os vínculos
que talvez seja a arte que mais tenha aberto iniciáticos entre adultos e criança, a trans-
certos lugares de expressão singulares para missão dos saberes práticos, a liberdade de
a infância – uma arguta observação e umas movimento e de agitação que se encontrava
das mais fortes imagens sobre a infância em quando crianças e adultos andavam mis-
nosso tempo histórico. Diz Jean-Luc Godard: turados no trabalho e diversões, nas festas
“as crianças são prisioneiros políticos” (apud e cerimônias (DONZELOT, 1986; SCHÉRER,
DELEUZE, 1992, p. 55) para se referir a este 2002). Daí em diante suas tarefas e brinca-
tempo histórico (o do final do XVIII e mais deiras terão o único objetivo de construir
sua formação. E vigorará a crença de que os
particularmente o do XIX) que reconheceu
adultos é que podem envergar a bandeira da
a particularidade da infância mas às custas
proteção e do cuidado em relação às crianças
de sua conformidade às normas, de seu assu-
e adolescentes em função do saber que os
jeitamento a potentes dispositivos de codifi- qualifica e distingue para traduzir e interpre-
cação, de natureza sanitária, pedagógica e tar o que é interesse da criança e do jovem
política. (CASTRO, 2007). Oculta-se assim ou se mini-
miza o papel criador de crianças e jovens
De fato, o “dispositivo da infância” (CORAZZA, no processo de transmissão social ou inter-
2000), constituído na Modernidade, instituiu geracional. Sob a égide da imaturidade dos
a infância como um problema econômico-po- mais novos, se invisibiliza e legitima a pulsão
lítico, uma preocupação médico-moral, um de dominação adulta. Prisioneiros políticos
encargo pedagógico, um objeto de conheci- portanto na medida em que estão atados a
mento das Ciências Humanas e Sociais, a ser uma espécie de declaração de incapacidade
interrogado, investigado, mensurado, clas- sociopolítica; numa posição de subordina-
sificado e normalizado por um conjunto de ção (MÉNDEZ, 1994; CASTRO, 2001; JOBIM;
mecanismos disciplinares que circunscrevem SOUZA, 2009; MELO, 2011; ROSEMBERG;
o âmbito das experiências próprias de cada MARIANO, 2010).
idade, descrevem os cuidados de que elas
devem ser objeto e as operações necessárias As críticas a esta concepção se consolidam
para garantir sua transformação em cidadãos nas décadas de 1980 e 1990, especialmente a
partir dos Estudos Sociais sobre a Infância (na
úteis e ajustados à ordem social e econô-
tradição anglo-saxônica), ou Sociologia da
mica vigente. (DONZELOT, 1986; CORAZZA,
Infância (na tradição francófona), que bus-
2000). Nessa combinação das duplas forças
cam entender a infância como uma constru-
de infantilização e adultização, a forma-in-
ção social; atacar o conceito de socialização
fantil foi subjetivada “num espelho-simula- da criança como inculcação, até então pre-
cro do sujeito verdadeiro adulto” (CORAZZA, dominante, e conceber a criança como ator
2002, p. 200-201). Além de se orientar por social (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
uma “estrutura de racionalização adulta”
(JENKS, 2002, p. 212), tal perspectiva adota Esta brevíssima localização da posição da
uma concepção de infância como veículo da criança na Modernidade tem como propó-
reprodução social. sito apenas extrair como um legado histórico

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uma antinomia entre proteção e liberdades. crianças e adolescentes e ao reconhecimento


Afinal, a disciplina sempre prevaleceu em de direitos políticos. Daí a Convenção Inter-
relação à liberdade como um a priori da edu- nacional dos Direitos da Criança promulgar
cação e do adestramento da criança, aliás, simultaneamente direitos à proteção, à pro-
é ela mesma a condição da infância. Afinal, visão e à liberdade, expressão e participação
como sugere Schérer, “quando a disciplina (ou, como também são conhecidos: os três
não consegue se impor não é costume dizer Ps da promoção, proteção e participação)
que a criança é ou está impossível?” (2002, (MELO, 2011).
p. 34).
Deste modo, os direitos da infância trataram
Mas não vamos aqui nos ocupar exatamente de sustentar um paradoxo (ao invés de uma
de analisar estas heranças da Modernidade. antinomia): o de conjugar algo da ordem da
Tomamos a figura da tensão entre proteção proteção e algo da ordem das liberdades ou
e liberdade para ressaltar que a utopia ativa de lutar contra a vulnerabilidade estrutural
da construção ainda recente dos direitos da da criança (e contra sua “incapacidade polí-
criança e do adolescente (que data do pós- tica”) em nossa sociedade sem, no entanto,
Segunda Guerra Mundial e que se institui em deixar de reconhecer sua vulnerabilidade
nosso país em 1989 com a assinatura da Con- constitutiva.
venção Internacional dos Direitos da Criança)
parece sugerir um caminho nem antinômico, Sabemos, no entanto, que os direitos só
muito menos dicotômico entre estes dois podem ser efetivos se forem constituintes de
termos. Tal caminho nos convida a pensar na uma estratégia de transformação social, arti-
proteção não apenas como prática de governo culados com sentidos comuns e com práticas
da vida ou como prescrição mas como afirma- sociais (FREEMAN, 1997). Assim, a constru-
ção da dimensão libertária da vida e como ção do campo formal de direitos da criança
condição de cuidado de si e dos outros. De e do adolescente como sujeitos de direitos
fato, na esteira dos movimentos minoritários é importante mas insuficiente para pensar-
e das lutas transversais do pós-guerra (e mais mos a inserção de crianças e adolescentes
especialmente nos anos 1960/70), foi possí- na comunidade política. Como sugere Cas-
vel forjar um tipo de direito interessado no tro (2007), são especialmente os momentos
diálogo com a singularidade de certos modos instituintes criados na relação com as crian-
de vida. ças e adolescentes que podem configurar o
campo de sua posição política, quando os
Ao longo do século XX, começou-se a cons- vínculos da infância e da adolescência para
truir uma nova sensibilidade e uma nova ati- com a sociedade mais ampla podem ser res-
tude em relação às crianças que as considera significados e redefinidos, quando estes des-
sujeitos de direitos, como seres humanos centram a sociedade e interrogam o lugar da
em condição peculiar de desenvolvimento discursividade política hegemônica, introdu-
e com prioridade absoluta para promoção, zindo transformações.
proteção e defesa de seus direitos. Neste
processo, uma importante reflexão se deu Ou, dito de outro modo, sem uma análise
em torno do direito à autodeterminação de consistente das relações de poder, como a

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relação de idade, os direitos podem conti- lugar de proteção e simultaneamente de pro-


nuar sendo mecanismos de ampliação do dução de autonomia. Para isto vamos tomar
poder adulto. Ainda que estejamos, quando a noção de transicionalidade como lugar da
falamos de crianças e adolescentes, no “dis- multiplicidade processual da infância (WIN-
positivo da cidadanidade” (CORAZZA, 2001) NICOTT, 1975) que resiste assim às formas
que privilegia a moral universalista do sujeito normalizadoras, abstratas e universalizan-
de direitos, “autônomo e participativo”, tes (FONSECA, 2002) e vamos trazer algumas
incitado “a lidar com conflitos e entender pistas para uma posição ético-política para
direitos e obrigações”, a posição de crian- o mundo adulto interessado em habitar este
ças e adolescentes nos conta mais da gestão paradoxo ou em experimentar a transiciona-
da participação pelas instâncias de controle lidade como um modo de vida.
adulto do que das ações de crianças e ado-
lescentes como atores sociais. Entendemos, Chamamos de agir criançável o ethos que
ainda, que no Brasil, prevaleceu uma lógica pretende sustentar, na relação com as crian-
de proteção normalizadora e nem tanto ças e adolescentes, a abertura a situações e
exercícios de liberdade entendidos como a problemáticas que não estão dadas a priori,
ampliação das capacidades de ação e parti- mas que são produzidas nas relações, e que
cipação de crianças e adolescentes (MELLO, requerem a sustentação de territórios de con-
2011; ROSEMBERG; MARIANO, 2010; ARAN- vivência, a experimentação do pensamento e
TES, 2012). a intervenção contextualizada e coletivizada
(VICENTIN; GRAMKOW, 2018). Descriançável
Aqui cabe um esclarecimento: não estamos é a fórmula que me foi dada por uma criança
negando que tal construção dos direitos que atendi no contexto de um serviço de
seja, sem dúvida, um passo à frente no saúde para se referir aos efeitos “de interio-
contexto histórico em que crianças e ado- rização das coações e dos comportamentos
lescentes foram - e ainda são ­­- considera- embrutecedores, a pretexto de amadureci-
dos apenas objeto de cuidado e tutela dos mento” (SCHÉRER, 2009, p. 35) que ela vinha
adultos (PINHEIRO, 2001) quando não têm, vivendo cotidianamente.
como no caso da infância pobre, suprimidos
ou subalternizados seus direitos (MARCHI & A ideia de transicionalidade foi sugerida
SARMENTO, 2017), no contexto brasileiro de por Winnicott (1975), um pediatra inglês
profundas desigualdades sociais. Sinalizamos que viraria um psicanalista na relação com
apenas que é necessário construir outros sen- as crianças, a partir principalmente de sua
tidos para a visibilidade de crianças e adoles- observação quanto ao período do desmame
centes no cenário social, mais além daquelas da criança e sua ativa invenção de um lugar ou
determinadas pela sua condição de porta- de objetos de passagem entre o seio materno
dores de direitos ou pela visibilidade mais e a apreensão do mundo exterior. Ele chamou
recente dada a eles pelo mercado e pelo de objetos transicionais o pedaço de cober-
consumo. tor, um brinquedo, um elemento do corpo
do adulto que não tem por função dissimular
Assim, nos interessa sustentar este lugar uma carência ou uma falta mas produzir uma
paradoxal da proteção com liberdade, um nova organização do desejo, buscar novos

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mapas, outros encontros. A transição ou o 309); “a suspensão do encadeamento exten-


transicional é tudo que se opõe a uma com- sivo, espacial e cronológico nos estados de
partimentalização estrita, que cria novos coisas e a entrada no estado intensivo em
laços e que escapa a uma lógica dualista (ou que a própria vida se deixa tomar por ‘entre-
dentro ou fora). -tempos’, por ‘entre-mundos’” (ORLANDI,
2008).
Tal é a condição de transição da criança:
“ser em qualquer instante e ao mesmo Identificamos o “descriançável” no panorama
tempo, a mesma e outra, sobrepondo-se a das relações contemporâneas quando estas
vários meios e grupos, passando facilmente produzem um empobrecimento ou mesmo
de um a outro. Condição de maleabili- um sufocamento dos processos de abertura,
dade, de meta estabilidade e de aderência” acolhimento e invenção de territórios com as
(SCHÉRER, 2009, p. 101). Nos conta Schérer crianças e adolescentes. Identificamos o des-
que o caráter próprio das transições é o de criançável nas situações em que crianças e
que em vez de se identificar, a criança se dis- adolescentes são “menorizados”, isto é, são
perse em uma multiplicidade de novas rela- construídos na posição da carência, da anor-
ções; de que ela se expanda ao invés de que malidade e do perigo, tendo como resposta a
permitamos que desabroche, como se diz. tutela, distância e/ou a segregação. Menori-
zar é um modo de descriançar.
Quando nos dirigimos à criança em sua
própria infância, quando aceitamos esta Hoje temos um conjunto de complexos afe-
transicionalidade, quando nos aliamos ao tivos que atravessam o coletivo-multidão
desejo-força das crianças, contornamos dois (a antecipação ansiosa, a culpa, o medo,
inconvenientes: o da infantilização no seio a tirania, a sedução) que atingem, atacam
da família fechada e de suas estruturas de e oprimem o que chamamos de criançar.
proteção e o da adultização precoce, o da O corpo-afeto encontra-se ocupado por for-
tipificação na norma adulta. ças imperativas de fomento à homogeneiza-
ção das formas de perceber e sentir, clichês
Criança é pura potência de afetar e ser afe- mentais que conduzem o singular à figura de
tada, força de desmanchamento do consti- um equivalente geral, monetário, que con-
tuído. A criança detém uma fragilidade que duz a todos para o assentamento na roupa de
está justamente a serviço da construção de um consumidor endividado, autocontrolado
mundos, de potência de ser. Criança é dese- e sempre ameaçado de desterritorialização.
jo-força entregue ao aberto, à maleabilidade E que conduz os corpos não capitalizáveis às
e disponibilidade que diz de uma superabun- lógicas de privação, ameaça e violência física
dância de ser. Criançar é a expansão desta (ARAGON; VICENTIN, 2010).
força no mundo. Chamamos de criançar esta
“disposição para o imprevisto e para a sus- Desta maneira, encontramos uma gama de
pensão da rigidez das regras”; este “desman- expressões que vão desde crianças preco-
char e inventar figuras”; esta “produção de cemente tornadas adultas (consumidoras/
desvios nas lógicas dadas”, “o brincar neces- trabalhadoras imateriais) até adultos infanti-
sário e vital” (CECCIM; PALOMBINE, 2010, pg. lizados e ocupados por teorias-mandamentos

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que não se encarnam em uma experiência A primeira é uma regra ética fundamental
tecida através dos “afetos existenciais” para se compor com a infância: uma regra
(GUATTARI, 1987), adultos inseguros e neces- da delicadeza e da sutileza. Isso que Win-
sitando desesperadamente de fiadores que nicott (1984) nos ensinou, por meio do jogo
possam lhes dizer o que é o normal e como do rabisco, no qual a criança não desenha só
devem proceder a cada momento. E encon- (como nos “testes psicológicos”), mas o tera-
tramos, como efeito da desigualdade social peuta se lança com ela num jogo de dese-
estrutural de nosso país, um conjunto de nhar. Sustentação das zonas de vizinhança
crianças e adolescentes que, considerados nas quais ser e devir não se distinguem.
“fora da norma da infância”, são criminaliza- A delicadeza se efetua por uma regra de late-
dos ou patologizados, na forma de uma pato- ralização e não da sobrecodificação. Ficar do
logia ontológica ou social (MARCHI, 2007). tamanho da criança para ter com elas uma
zona de vizinhança. “Criar epidermes capa-
Trata-se então não de construir outro mito zes de amaciar certos contatos e iniciar o
para a infância, mas uma frente comba- corpo para a vida junto a muitos outros”
tiva de resistência ao que a infância se tor- (SANT’ANNA, 2001, p. 125). Ser delicado com
nou como efeito das proteções por um lado o outro implica certa lentidão no trato com o
(“liberação progressiva para certas infân- tempo, para que seja possível observar, inte-
cias”) e como efeito de um tipo de proteção ragir e encontrar a medida certa. Ser sutil
que constrói ela mesma as negligências e as envolve cultivar um tempo que permita acei-
vulnerabilidades transformadas em restrição tar o paradoxo de ser si e outro, se implicar,
e sequestro de direitos (“liberdade vigiada se colocar no lugar de, sem deixar de ser o
para os pobres”) (DONZELOT, 1986). De fato, que se é, ou melhor, o que está se tornando
o direito da infância foi e tem sido um instru- junto.
mento decisivo na construção e fixação das
vulnerabilidades: os que não têm recursos ou A segunda regra, a do exercício do multilin-
capacidade jurídica de fazer valer os direitos guismo, em contraposição à hiper-comunica-
são os candidatos mais propícios a conver- ção do adulto em relação à criança (LOURAU,
ter-se em sujeitos vulneráveis; e, o mesmo 1991). É Daniel Stern (1992), psicanalista e
direito tem servido para legitimar a “prote- pesquisador norte-americano do desenvolvi-
ção” (muitas vezes em nome do amor e da mento emocional de bebês que sugere que
compaixão) destes sujeitos tornados vulne- ser bilíngue é uma ferramenta clínica impor-
ráveis, na forma de violências, restrição e tantíssima e vital para os que trabalham com
sequestro de direitos (MÉNDEZ, 1994). crianças. Ele diz ter tido aos sete anos uma
importante experiência: observando bebês
Os que se interessam pelos direitos da infân- na interação com os adultos diz ter sido capaz
cia em seu paradoxo da proteção e da liber- de entender simultaneamente a linguagem
dade podem fazer frente ao descriançável, do bebê e do adulto, quando o adulto parecia
sustentando um ethos criançável que se con- não entendê-lo de jeito nenhum. Ocorreu-
traponha às “máquinas da rostidade adulta” -lhe que ele estava em uma idade central,
(GUATTARI, 1987). Sugerimos algumas pistas que ainda era bilíngue. Entendamos o mul-
para este ethos. tilinguismo aqui não apenas como a posse

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de vários sistemas de linguagem, mas como suas posições estão inacabadas, segue sendo
a capacidade de variação permanente que capaz de superar suas servidões” (LAPAS-
cada um porta, impedindo-o de ser homogê- SADE, 1973, p. 279).
neo ou dominante.

Finalmente, este exercício não supõe de Referências


nenhuma forma o apagamento da posição do
adulto. Ao contrário, colocar em análise as ARAGON, L E; VICENTIN, M C G. Criançar o
descriançável. Trabalho apresentado no XIV
relações de poder não é abdicar da potên-
Simpósio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
cia de ser, mas não temer colocar em análise graduação em Psicologia. Universidade Federal de
suas posições. Assim, é necessário considerar Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. Mimeo.
o alerta de Jobim e Souza (2008, p 12-13):
o de que o equacionamento desta tensão - ARANTES, E.M. M. Direitos da criança e do
adolescente: um debate necessário. Psicologia
entre conceder maior autonomia à infância Clínica, Rio de Janeiro, v. 24, n.1, p. 45-56, 2012.
e à adolescência, direito de voz e de parti-
cipação política- não pode se dar sob o risco CECCIM, R. B.; PALOMBINI, A. de L. Imagens
de favorecer uma certa omissão dos adultos da infância, devir-criança e uma formulação à
e das instituições em construir junto com educação do cuidado. Psicologia & Sociedade
[Online], 21(3). Abril, 2010. Disponível: http://
as crianças e os adolescentes a garantia de www.ufrgs.br/seerpsicsoc/ojs/viewarticle.
direitos em um contexto de definições claras php?id=714. Acesso em: 23 de julho de 2017.
em relação ao bem humano. E não pode se
dar sem o exercício de abertura dos adultos CASTRO, L R de. Da invisibilidade à ação: crianças
e jovens na construção da cultura. p. 19-46.
às “possibilidades de ação e de resistência
In: Castro, L. R. (Org.).Crianças e jovens na
política por parte de crianças e adolescen- construção da cultura. Rio de Janeiro: NAU/
tes” (MELO, 2019, p.13). FAPERJ, 2001. 226 p.

Finalmente, se há uma proteção que nos _____________________. A politização (necessária)


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interessa invocar ao pensar nas crianças não
Psicol. Política, 7(14), São Paulo, dez. 2007.
é a da inocência ou da ingenuidade. Ao con- Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/
trário, como nos ensinou Gagnebin (1997), a v7n14/v7n14a05.pdf. Acesso em 1/10/2018.
partir de Walter Benjamin, a fragilidade que
nos interessa é este lugar de não soberania CORAZZA, S. M. História da infância sem fim. Ijuí:
Editora Unijui, 2000. 392 p.
e de inacabamento que a criança afirma em
relação à “segurança” dos adultos e à sua ____________________. Infância e educação: era
suposta completude ou maturidade. Se há uma vez...quer que conte outra vez? Petrópolis:
algo que nos interessa nesta zona de vizi- Vozes, 2002. 204 p.
nhança com as crianças é que toda história DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34,
individual e coletiva é “entrada permanente 1992. 226 p.
na vida” e nunca resultado definitivo e que
“qualquer que seja o grau de sua preca- DONZELOT, J. A Polícia das famílias. Rio de Janeiro:
riedade, de sua solidão, de sua alienação, Graal, 1986. 209p.
o ser humano, na medida em que todas as

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Recebido em: 30/06/2020

Aceito em: 30/07/2020

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