Crianças o Descriançável
Crianças o Descriançável
Crianças o Descriançável
“Criançar o descriançável”: a
transicionalidade da infância e o
paradoxo da proteção-liberdade
Maria Cristina Gonçalves Vicentin [1]
Abstract: The new rights of children and adolescents, as well as the experiences of
democratizing the relationships between children, adolescents, and adults that has been
occurring since the second half of the twentieth century, have produced new ways regarding
the right to self-determination and the right to freedom of children and adolescents. This
inflection has not transpired without tensions relative to the rights to protection, which are
O título “Criançar o descriançável” não é original. A “fórmula” compõe, ao contrário, um conjunto de outros textos
das quais sou autora ou co-autora, dirigidos a diferentes interlocutores (profissionais da saúde, educação e assistên-
cia) e sustentam uma estratégia de difusão de um ethos criançável na relação com crianças e adolescentes, reto-
mando alguns elementos indicados anteriormente em outra perspectiva e com outros desdobramentos. (VICENTIN,
2016a; 2016b; VICENTIN, M C G; GRAMKOW, G., 2018).
Este texto foi originalmente apresentado no Seminário Museus, infância e liberdade de expressão, proposto pelo
Museu de Arte Moderna, na semana de x a y , na mesa “Liberdade de expressão e infância: proteção dos direitos
das crianças e restrições à liberdade de expressão se completam ou se repelem?” realizada no dia 4/10/2018. A
apresentação está disponível no https://www.facebook.com/watch/live/?v=497790020701905&ref=watch_perma-
link. Pequenas modificações foram introduzidas na passagem para a forma escrita.
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
183
ENSAIOS “CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL”
often based on the supposed sociopolitical inability of children and adolescents, and the
subordinate position of childhood – its structural vulnerability – in contemporary Society.
In this text, in dialogue with the productions of Childhood Social Studies, we consider the
relationship between rights of protection and freedom as a paradox and not a contradiction.
Based on Winnicott’s notion of childhood transitionality, we present some indications for an
ethical-political position for the adult world interested in inhabiting this paradox.
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
184
“CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL” ENSAIOS
Não é casual que tenha vindo do cinema – esta Nesta empreitada, romperam-se os vínculos
que talvez seja a arte que mais tenha aberto iniciáticos entre adultos e criança, a trans-
certos lugares de expressão singulares para missão dos saberes práticos, a liberdade de
a infância – uma arguta observação e umas movimento e de agitação que se encontrava
das mais fortes imagens sobre a infância em quando crianças e adultos andavam mis-
nosso tempo histórico. Diz Jean-Luc Godard: turados no trabalho e diversões, nas festas
“as crianças são prisioneiros políticos” (apud e cerimônias (DONZELOT, 1986; SCHÉRER,
DELEUZE, 1992, p. 55) para se referir a este 2002). Daí em diante suas tarefas e brinca-
tempo histórico (o do final do XVIII e mais deiras terão o único objetivo de construir
sua formação. E vigorará a crença de que os
particularmente o do XIX) que reconheceu
adultos é que podem envergar a bandeira da
a particularidade da infância mas às custas
proteção e do cuidado em relação às crianças
de sua conformidade às normas, de seu assu-
e adolescentes em função do saber que os
jeitamento a potentes dispositivos de codifi- qualifica e distingue para traduzir e interpre-
cação, de natureza sanitária, pedagógica e tar o que é interesse da criança e do jovem
política. (CASTRO, 2007). Oculta-se assim ou se mini-
miza o papel criador de crianças e jovens
De fato, o “dispositivo da infância” (CORAZZA, no processo de transmissão social ou inter-
2000), constituído na Modernidade, instituiu geracional. Sob a égide da imaturidade dos
a infância como um problema econômico-po- mais novos, se invisibiliza e legitima a pulsão
lítico, uma preocupação médico-moral, um de dominação adulta. Prisioneiros políticos
encargo pedagógico, um objeto de conheci- portanto na medida em que estão atados a
mento das Ciências Humanas e Sociais, a ser uma espécie de declaração de incapacidade
interrogado, investigado, mensurado, clas- sociopolítica; numa posição de subordina-
sificado e normalizado por um conjunto de ção (MÉNDEZ, 1994; CASTRO, 2001; JOBIM;
mecanismos disciplinares que circunscrevem SOUZA, 2009; MELO, 2011; ROSEMBERG;
o âmbito das experiências próprias de cada MARIANO, 2010).
idade, descrevem os cuidados de que elas
devem ser objeto e as operações necessárias As críticas a esta concepção se consolidam
para garantir sua transformação em cidadãos nas décadas de 1980 e 1990, especialmente a
partir dos Estudos Sociais sobre a Infância (na
úteis e ajustados à ordem social e econô-
tradição anglo-saxônica), ou Sociologia da
mica vigente. (DONZELOT, 1986; CORAZZA,
Infância (na tradição francófona), que bus-
2000). Nessa combinação das duplas forças
cam entender a infância como uma constru-
de infantilização e adultização, a forma-in-
ção social; atacar o conceito de socialização
fantil foi subjetivada “num espelho-simula- da criança como inculcação, até então pre-
cro do sujeito verdadeiro adulto” (CORAZZA, dominante, e conceber a criança como ator
2002, p. 200-201). Além de se orientar por social (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).
uma “estrutura de racionalização adulta”
(JENKS, 2002, p. 212), tal perspectiva adota Esta brevíssima localização da posição da
uma concepção de infância como veículo da criança na Modernidade tem como propó-
reprodução social. sito apenas extrair como um legado histórico
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
185
ENSAIOS “CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL”
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
186
“CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL” ENSAIOS
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
187
ENSAIOS “CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL”
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
188
“CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL” ENSAIOS
que não se encarnam em uma experiência A primeira é uma regra ética fundamental
tecida através dos “afetos existenciais” para se compor com a infância: uma regra
(GUATTARI, 1987), adultos inseguros e neces- da delicadeza e da sutileza. Isso que Win-
sitando desesperadamente de fiadores que nicott (1984) nos ensinou, por meio do jogo
possam lhes dizer o que é o normal e como do rabisco, no qual a criança não desenha só
devem proceder a cada momento. E encon- (como nos “testes psicológicos”), mas o tera-
tramos, como efeito da desigualdade social peuta se lança com ela num jogo de dese-
estrutural de nosso país, um conjunto de nhar. Sustentação das zonas de vizinhança
crianças e adolescentes que, considerados nas quais ser e devir não se distinguem.
“fora da norma da infância”, são criminaliza- A delicadeza se efetua por uma regra de late-
dos ou patologizados, na forma de uma pato- ralização e não da sobrecodificação. Ficar do
logia ontológica ou social (MARCHI, 2007). tamanho da criança para ter com elas uma
zona de vizinhança. “Criar epidermes capa-
Trata-se então não de construir outro mito zes de amaciar certos contatos e iniciar o
para a infância, mas uma frente comba- corpo para a vida junto a muitos outros”
tiva de resistência ao que a infância se tor- (SANT’ANNA, 2001, p. 125). Ser delicado com
nou como efeito das proteções por um lado o outro implica certa lentidão no trato com o
(“liberação progressiva para certas infân- tempo, para que seja possível observar, inte-
cias”) e como efeito de um tipo de proteção ragir e encontrar a medida certa. Ser sutil
que constrói ela mesma as negligências e as envolve cultivar um tempo que permita acei-
vulnerabilidades transformadas em restrição tar o paradoxo de ser si e outro, se implicar,
e sequestro de direitos (“liberdade vigiada se colocar no lugar de, sem deixar de ser o
para os pobres”) (DONZELOT, 1986). De fato, que se é, ou melhor, o que está se tornando
o direito da infância foi e tem sido um instru- junto.
mento decisivo na construção e fixação das
vulnerabilidades: os que não têm recursos ou A segunda regra, a do exercício do multilin-
capacidade jurídica de fazer valer os direitos guismo, em contraposição à hiper-comunica-
são os candidatos mais propícios a conver- ção do adulto em relação à criança (LOURAU,
ter-se em sujeitos vulneráveis; e, o mesmo 1991). É Daniel Stern (1992), psicanalista e
direito tem servido para legitimar a “prote- pesquisador norte-americano do desenvolvi-
ção” (muitas vezes em nome do amor e da mento emocional de bebês que sugere que
compaixão) destes sujeitos tornados vulne- ser bilíngue é uma ferramenta clínica impor-
ráveis, na forma de violências, restrição e tantíssima e vital para os que trabalham com
sequestro de direitos (MÉNDEZ, 1994). crianças. Ele diz ter tido aos sete anos uma
importante experiência: observando bebês
Os que se interessam pelos direitos da infân- na interação com os adultos diz ter sido capaz
cia em seu paradoxo da proteção e da liber- de entender simultaneamente a linguagem
dade podem fazer frente ao descriançável, do bebê e do adulto, quando o adulto parecia
sustentando um ethos criançável que se con- não entendê-lo de jeito nenhum. Ocorreu-
traponha às “máquinas da rostidade adulta” -lhe que ele estava em uma idade central,
(GUATTARI, 1987). Sugerimos algumas pistas que ainda era bilíngue. Entendamos o mul-
para este ethos. tilinguismo aqui não apenas como a posse
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
189
ENSAIOS “CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL”
de vários sistemas de linguagem, mas como suas posições estão inacabadas, segue sendo
a capacidade de variação permanente que capaz de superar suas servidões” (LAPAS-
cada um porta, impedindo-o de ser homogê- SADE, 1973, p. 279).
neo ou dominante.
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
190
“CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL” ENSAIOS
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
191
ENSAIOS “CRIANÇAR O DESCRIANÇÁVEL”
ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte | Ano 7 - N 18 / Agosto de 2020 / ISSN 2359-4705
192