Ilhados - Lucas Santana
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Ilhados - Lucas Santana
Lucas Santana
Copyright © 2024 Lucas Santana
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, é mera coincidência e não é intencional do autor.
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LUCIANA FAUBER
TERRA
1 ✹ A SUNGA
E
stava deitado ao lado de Elisa sob o sol, naquela praia meio deserta
que era nossa favorita. Ninguém gostava daquela praia, a água era
gelada demais, escura demais, muito perto do rio, preferiam as praias
do outro lado da ilha. Mas gostávamos dela assim, vazia e gelada. Era uma
daquelas praias com a faixa de areia extensa, imensa, que do começo mal se
dava para ver o mar. Deitávamos no meio, nem muito perto da água, nem
muito perto da pequena mata que separava a praia da cidade, e nos
sentíamos como duas formigas minúsculas sob a lupa de uma criança
entediada que queria nos queimar. Duas salsichas sobre a grelha de uma
churrasqueira. Eu adorava aquela sensação, como se a minha pele estivesse
borbulhando de calor.
Virei-me de lado, para Elisa. Ela estava deitada com a barriga para
cima na esteira de bambu. A cabeça coberta pelo grande chapéu de palha,
os braços estendidos ao lado do corpo. Uma das pernas, a esquerda, mais
perto de mim, estava dobrada, o joelho apontado para o céu. Observei seu
corpo, a pele negra contrastando com o biquíni azul-turquesa, quase da cor
do mar, mas não daquele mar, outro mar, um de águas calmas, paradas.
Pequenas gotículas de suor se formavam em todo o trajeto que percorri com
os olhos. No cume do joelho havia uma gota um pouco maior, ainda não
grande o suficiente para escorrer sobre a coxa e cair até sua virilha. Decidi
ajudar aquela gota, cumprir o papel da gravidade, pus meu dedo sobre ela,
estourando-a e puxando-a para baixo. Elisa deu um leve tremor quando a
toquei e a ouvi sorrir. Aquele era nosso código. Percorri a sua coxa com a
ponta do dedo, descendo levemente até encontrar o biquíni. Nessa hora ela
já havia tirado o chapéu do rosto e estava virada para mim. Beijou-me.
Naquela praia deserta era onde explorávamos nossos corpos.
Estávamos sozinhos e podíamos fazer o que quiséssemos. Tiramos a roupa
de banho, e, sob o calor do sol, unimos nosso corpo em um só, fervente,
ensopado de suor e empanados por terra. A praia era grande o suficiente
para nos proteger de curiosos, se alguém entrasse por ela pela mata,
veríamos a tempo de nos vestirmos antes que se aproximassem demais. Ao
nosso lado estava o rio que desembocava no mar, e do outro, depois de
muitos metros de areia, pedras difíceis demais de serem atravessadas. Elisa
sempre tirava uma camisinha de dentro de sua bolsa de palha, a minha
sunga, a parte de baixo do biquíni, e sentava em cima de mim. Nunca tirava
o sutiã, dizia que não queria perder a marquinha de bronze, então nunca
cheguei a ver seus seios.
Quando terminávamos, exaustos, amolecidos pelo sol e pelo
cansaço, corríamos, sem roupa mesmo, para o rio, e mergulhávamos na
água turva e gelada. Aquela era minha parte favorita da manhã: o choque
térmico. Meu corpo fervente, cheio de calor da praia, do sol e do corpo de
Elisa, de repente envolvido pela água gelada do rio. Era como se a água me
tirasse de um torpor, me levasse de volta para a realidade.
Ficávamos brincando no rio por cerca de meia hora, mergulhando,
boiando, jogando água na cara do outro, fingindo afogamento. Eram longos
minutos de risadas. Nossas pernas, em agitação para nos mantermos
flutuando, se tocavam, nos excitávamos novamente, colocava minha mão
em suas partes íntimas e ela, nas minhas.
— Ei, olhe! — disse Elisa, apontando para o mar, enquanto minha
mão ainda explorava seus pelos pubianos.
Olhei. Eram duas dúzias de barcos, veleiros, vindos do mar e
aproximando-se do rio, em direção ao centro da cidade. Entre eles,
catboats, como chamavam as embarcações menores, de apenas um mastro e
uma pequena vela, que comportavam até duas pessoas. Também havia
alguns maiores, com cabines completas, quarto, banheiro e cozinha, dois
mastros e grandes velas, os ketch boats. Observei, atento e animado, as
bandeiras que se agitavam em alguns conveses. Itália, França, Suíça, Costa
do Marfim, África do Sul, Brasil. Eu adorava aquele colorido, aquela
diversidade de cultura. Conhecer novos costumes, idiomas, ouvir histórias
daqueles estrangeiros aventureiros.
Adentraram o rio, o vento favorecendo a navegação. Eu e Elisa
estávamos animados, a temporada dos velejadores começava. Naqueles dias
eu não olhava mais o calendário, apenas curtia dia após outro, sem saber
números nem em que dia estávamos — a beleza do verão. Alguns dos
marinheiros estavam sobre o convés, rindo e assoviando, acenando para
nós. Estranhei, geralmente eles ignoravam os habitantes locais em seus
primeiros dias, até se acomodarem. Quando olhei para o lado, entendi: Elisa
havia tirado a parte de cima do biquíni e boiava com o rosto para cima,
expondo seus seios para aqueles estrangeiros. Senti raiva, dela e dos
homens. Eu sabia que ela desprezava tudo que era da nossa ilha, mas não
sabia que eu era uma dessas coisas.
Um dos barcos me chamou a atenção, um catboat, um simples, com
uma pequena cabine, que provavelmente só continha uma minúscula cama
para uma única pessoa. Em seu casco, com tipografia vernacular, estava
pintado de azul-marinho a palavra SOTAFORD. Mas o que me chamou
atenção não foi o nome excêntrico do barco, e sim seu velejador, que estava
sozinho, ao contrário das outras embarcações, com sempre dois ou mais
homens. Ele não olhava para o corpo nu de Elisa, mas olhava para mim,
diretamente em meus olhos. Quando viu que eu o olhava, deu um sorriso
com um canto da boca, acenou com a cabeça e virou-se para o outro lado,
guiando o leme. Suas costas brancas e cheias de sinais estavam
avermelhadas, queimadas pelo sol dos dias que passaram atravessando o
oceano. Quantos dias será que levaram? Semanas? Não estava ventando
muito ultimamente, o que explicava um menor número de embarcações do
que o normal. Naquela época do ano, favorecidos pela corrente e pelo
vento, vintenas de veleiros, fazendo suas travessias de oceano, dando voltas
no mundo, paravam em nossa ilha por alguns dias, às vezes semanas. Era
como um porto seguro, para abastecimento, noites de sono confortáveis,
bebida e sexo.
Observei-os, não todos, apenas o Sotaford, passar por nós e seguir
rio adentro até a marina, no centro da cidade, onde alugariam quartos de
pousadas e passariam no máximo três semanas fora do mar, aproveitando as
férias, curtindo a vida, que para nós era monótona, mas para eles era
agitada, do nosso arquipélago. Ainda observava as costas do velejador do
Sotaford, largas, os músculos retesados com a força ao manejar o leme,
músculos definidos pelo esforço constante que fazia para guiar o barco.
Desci meus olhos e observei sua sunga, laranja, na parte de trás costurada a
palavra Dortnellas, seja lá o que fosse aquilo, acompanhando a curva de sua
bunda. Um traje de banho horrível.
— Ai, tô toda queimada — queixou-se Elisa, ao meu lado.
Olhei para ela, pela primeira vez vendo seus seios. Em comparação
à sua pele escura, eram brancos, nunca antes expostos ao sol, e agora
estavam num tom vermelho vivo. Parecia doloroso.
— Bem feito. — Foi o que falei.
Ela jogou água na minha cara e nadamos até a praia para nos
vestirmos.
E
le tinha cerca de trinta e cinco anos, talvez mais, trinta e sete, podia
notar pelas suas rugas de expressão, um vinco profundo em sua testa,
entre suas sobrancelhas grossas, sinal de que, provavelmente, era uma
pessoa séria e mantinha em sua cara, frequentemente, uma expressão
austera. Tinha uma barba espessa, que não recebia tratamento há meses, e
um bigode que chegava a cobrir seus lábios. A barba e o bigode eram da cor
dos seus cabelos, um loiro escuro, esverdeado pelo sol, e perto das
costeletas estavam ficando cinza. Vestia uma regata de algodão lilás,
folgada e cavada. Podia ver os pelos, abundantes, mas curtos, do seu peito.
A regata estava torta, então o peito estava parcialmente à mostra, podia ver
parte do mamilo, coberto por pelos loiro-acinzentados.
— Prazer, sou Arnaud. Enchanté — disse ele, estendendo o braço
para eu apertar sua mão, com um sotaque pronunciado. Sorriu para mim,
evidenciando as rugas pé-de-galinha no canto dos olhos castanho-
esverdeados, que lhe davam o charme da maturidade.
Eu devo ter ficado congelado o encarando por alguns segundos, pois
senti uma cotovelada do meu pai em minha costela. Dei-me conta do meu
vexame e rapidamente apertei a mão do senhor Sotaford-Dortnellas, que
agora eu sabia se chamar Arnaud. Arnô, em seu sotaque.
A mão dele estava quente, pegando fogo, ou talvez a minha
estivesse gelada demais. O que era estranho, já que eu havia acabado de sair
do sol. Torci para ele não me reconhecer, para ele não dizer ei, você é
aquele garoto que eu vi nadando no rio, com aquela garota pelada. Minha
mãe iria morrer, ela não gostava que eu fosse para aquele lado da ilha. O
mar era violento, e a correnteza do rio, muito forte, dizia. Se soubesse que
eu estava com Elisa, pelada, seria outro infarto. Minha mãe não gostava
dela, dizia que aquela minha amiga era muito relaxada, sem pretensões para
o futuro. Para minha sorte, ele não disse nada. Talvez nem se lembrasse, ou
não tivesse me reconhecido. Apertou minha mão com firmeza e pensei tê-lo
visto dar uma piscadela em um olho. Soltou minha mão e se curvou para
pegar suas malas.
— Pode deixar que Nico leva lá pra cima — adiantou-se minha mãe,
e olhou para mim, levantando as sobrancelhas, sinal para eu me apressar.
— Não precisa, já sou grandinho — brincou ele, e pegou as malas.
Minha mãe riu, divertida com a descontração do homem. — Ele pode me
mostrar onde é o quarto — disse Arnaud, olhando para mim.
— Sim, acompanhe ele, Nico. Os lençóis já estão trocados e tem
uma toalha limpa em cima da cama. Mostre a ele onde é o banheiro lá de
cima — falou ela, sorridente como sempre. — O almoço fica pronto daqui a
pouco — acrescentou, retirando-se e indo para a cozinha.
Eu morava em uma casa de dois andares, branca com janelas azuis,
toda coberta por trepadeiras, com um amplo terraço que a circundava. No
térreo, apenas uma sala, uma grande cozinha, um banheiro e o escritório do
meu pai. No piso superior ficavam os três quartos, o meu, o do meu irmão,
que estava vazio, e o dos meus pais. Além de dois banheiros. Cada quarto
também tinha sua varanda, separadas, e tinham vista para a parte de trás da
casa, para o mar.
Tínhamos uma vista privilegiada. Não havia praia ali, entretanto,
apenas uma encosta escarpa e cheia de pedras. No alto da casa havia uma
caixa d’água de concreto, onde podíamos subir por uma escada. Funcionava
como uma pequena laje, ou um mirante. De lá podíamos ver as grandes
montanhas ao sul da ilha. Ao norte, à noite, dava para se ver as luzes da Ilha
Grande, no horizonte, à distância, e seu céu alaranjado pelas luzes da
metrópole. Aqui, ao menos, podíamos enxergar as estrelas, sem toda aquela
poluição luminosa dos resorts e arranha-céus da cidade grande. Chamavam
aquela ilha de Ilha Grande devido à sua grande cidade, que beirava
trezentos mil habitantes, população essa que dobrava na alta estação. Mas a
nossa ilha era a maior do arquipélago, que somava cerca de sete ilhas.
Éramos protegidos por leis ambientais, e a maior parte da ilha era coberta
por florestas e montanhas. Nossa cidade, então, era pouco desenvolvida,
com menos de dez mil habitantes, sem resorts, sem cassinos ou cabarés,
apenas pequenas pousadas e bares. A criminalidade era quase nula, e acho
que era isso que atraía os velejadores. Pessoas que passavam meses na
imensidão e calmaria do oceano certamente almejavam tranquilidade. Isso
não os impedia, embora, de visitar a Ilha Grande vez ou outra.
Não falei nada enquanto subia a escada com Arnaud, estava
encabulado. Sentia-me uma criança, um adolescente inexperiente, por ter
ficado todo aquele tempo encarando o corpo dele enquanto ele esperava
para apertar a minha mão. E se ele tivesse notado? Por que eu estava
encarando o corpo de um homem, de toda forma?
De um lado, o corredor tinha duas portas. Primeiro, o quarto do meu
irmão, que agora seria o quarto de Arnaud por dois dias. Depois, a porta do
meu quarto, que ficava em frente ao banheiro. No fim do corredor ficava o
quarto dos meus pais, uma suíte. Entramos no quarto dele, amplo e pouco
mobiliado. Apenas uma cama de solteiro (será que ele era solteiro?), um
guarda-roupa preenchido apenas por cabides vazios e uma mesa, sem
cadeira. Um tapete redondo era a única decoração. Na parede oposta à porta
ficava uma grande janela e uma outra porta, que dava para a varanda. Ele
foi até lá conferir a vista.
— Uau — falou, dando de cara com a imensidão do oceano, meio
azul-turquesa, como o biquíni favorito de Elisa, meio verde-esmeralda.
Entre a casa e a encosta do mar havia um pequeno gramado com
uma piscina e uma banheira de hidromassagem, mas ele pareceu não notar.
Ao lado, perpendicular à nossa casa, e de frente para a piscina, ficava a
pousada do meu pai. Era uma pequena construção que ele havia colocado
de pé naquele mesmo ano, com a minha ajuda, e nesse verão abriria pela
primeira vez. Tinha apenas quatro quartos, dois embaixo, com terraços que
davam para o gramado, e dois em cima, com varandas iguais às nossas.
Cada um com seu próprio banheiro e uma pequena cozinha, muito embora
os hóspedes pudessem se sentir livres para comer na nossa casa.
Eu estava terminando um curso técnico de turismo e um de inglês.
Ali, não tínhamos muitas opções de estudo. Após o ensino médio só havia
três escolhas: ir para uma universidade pública no continente, ir para uma
faculdade particular na Ilha Grande, ou trabalhar ali na nossa ilha. Eu não
obtive notas suficientes para passar numa universidade pública, nem muito
menos meus pais tinham dinheiro para me bancar numa faculdade particular
da Ilha Grande, então passei alguns anos vagabundando com Elisa até que
meus pais me obrigaram a fazer o curso técnico para que os ajudasse na
pousada.
— Se quiser uma rede, dá pra armar uma aqui — falei, apontando
para a varanda.
Ele olhou para mim com os olhos brilhando. Reparei que eram da
cor do mar, não aquele azul-esverdeado cristalino que atraía os turistas ao
nosso arquipélago, mas aquela do mar revolto, turvo como a água do rio
que desembocava na minha praiazinha secreta.
— Seria perfeito — respondeu.
Voltamos para o quarto, ele acomodou as malas em cima da cama e
se espreguiçou, erguendo e esticando os braços. Sua regata levantou e pude
ver um pedaço da sua barriga, perto da virilha, onde os pelos finos e loiros
do abdome começavam a se misturar com os pentelhos mais grossos e mais
escuros.
— E o banheiro, onde fica? — indagou, olhando para mim. Eu
rapidamente desviei o olhar e fingi encarar o mar.
— No final do corredor — falei, e com a mão gesticulei para ele me
seguir. Lá, abri a porta do banheiro e falei: — aqui. — Ele não respondeu.
Olhei para trás, para ver se havia me entendido, mas ele estava de costas
para mim, olhando para meu quarto, que estava com a porta aberta.
— Aqui é o seu quarto? — perguntou, com seu sotaque engraçado.
Tive vergonha, meu quarto estava bagunçando, provavelmente tinha
uma cueca suja jogada em cima da cama. Geralmente eu arrumava minha
cama pela manhã, mas naquele dia eu e Elisa tínhamos saído cedo para a
praia e não tive tempo.
— Gosto musical interessante — falou, referindo-se aos pôsteres
colados na parede atrás da cama.
Não sabia o que ele queria dizer com interessante.
— O almoço tá pronto! — gritou minha mãe lá de baixo, e nossa
atenção foi rapidamente desviada. Eu estava faminto.
— Estou faminto! — exclamou ele, sorrindo e dando tapinhas na
barriga.
N
o dia seguinte, coloquei na cabeça que fazer aquilo seria só uma
obrigação do meu trabalho. Minha primeira obrigação do meu
primeiro trabalho, como funcionário da pousada do meu pai. Era isso.
Eu estava nervoso porque era minha primeira tarefa, e não porque eu ia
levar Arnaud para conhecer a ilha, só eu e ele. Ou pelo menos foi isso que
fiquei repetindo mentalmente.
Iríamos às partes habitadas da ilha, pois, como eu ainda não tinha
licença para fazer trilha na reserva, não poderia levá-lo às áreas mais
inóspitas. Meu pai estava indo para o centro da cidade, então nos deu
carona até lá em sua caminhonete. Fomos na parte de trás, juntos com
minha bicicleta, sob o sol, o cabelo de Arnaud agitando-se ao vento e seus
olhos escondidos atrás dos óculos escuros de lentes avermelhadas. Ele
olhava a paisagem, calado, com um esboço de sorriso na boca. Eu olhava
para ele, quando ele não estava olhando para mim, querendo ver suas
expressões ao admirar nossa paisagem, vendo as plantações de coqueiros,
os bosques, as mansões das celebridades, as casinhas brancas com janelas
azuis que estampavam cartões-postais.
Passamos pela entrada da casa de Rebeca, minha amiga, e pensei em
chamá-la para ir conosco, pois ela havia acabado de chegar de viagem e
ainda não a tinha visto. Mas eu poderia vê-la depois, mais tarde ou no dia
seguinte. Naquela manhã eu queria ficar sozinho com Arnaud. Era minha
obrigação de trabalho.
Meu pai nos deixou em frente à loja do pai de Elisa, onde Arnaud
alugou uma bicicleta. Fiquei aliviado por Elisa não estar lá, pois, por
alguma razão, sentia-me constrangido em ter que apresentá-la a Arnaud, ou
apresentá-lo a ela. Seguimos pelas ruas estreitas do centro, ruas tão estreitas
que o sol não nos alcançava, com paralelepípedos escorregadios que
brilhavam à noite, refletindo a luz amarelada dos postes públicos,
empurrando nossas bicicletas por debaixo de sacadas e marquises antigas,
as casas brancas, amarelas e azuis, as roseiras e bougainvilles que subiam
pelas paredes, as orquídeas penduradas nas janelas, e o constante cheiro de
sal, mar e peixe fresco.
Paramos em uma ou duas lojas de artesanato, que vendiam coisas
sem graça, que se encontravam em qualquer outro lugar do mundo,
chaveirinhos de coqueiro, de prancha de surf, muito embora ninguém ali na
ilha surfasse, já que não tínhamos grandes ondas, garrafinhas com
esculturas de areia, barquinhos dentro de garrafas. Passamos por uma
pequena livraria, a única da nossa cidade, e Arnaud parou em frente,
observando a vitrine.
— Não vale a pena, só vendem porcaria aqui. As livrarias boas
ficam na Ilha Grande — falei, enquanto ele percorria com os olhos as capas
de livros com conteúdo de qualidade duvidosa.
Passamos ao lado da marina, lá havia mais barcos chegando e
atracando, marinheiros saindo de seus veleiros, velas sendo içadas e outras,
guardadas. Passei um olhar rápido procurando pelo barco dele, numa
desculpa para perguntar o que significava Sotaford, mas não encontrei,
havia barcos demais. A marina era um de meus lugares favoritos da cidade,
bem ali no centro, com os barcos que chegavam pelo canal estreito, abrindo
espaço entre os prédios antigos e trazendo um pedacinho do mar para
dentro da ilha. Era barulhento e movimentado, o chão escorregadio,
marinheiros subindo e descendo, gritando ordens e sei lá mais o quê, com
suas línguas estranhas e jargões, pescadores oferecendo seus produtos e
gente anunciando, aos berros, vagas em albergues. Ao redor, restaurantes
baratos, o cheiro de peixe assado se misturando ao do peixe fresco, e
pássaros que se acumulavam ao redor, numa algazarra à procura de comida
fácil.
Levei-o até a praça da cidade, rodeada por bares, pizzarias e mais
pousadas, onde molhamos nosso rosto com a água da fonte, localizada no
centro da praça. No fundo da fonte, moedas brilhavam sob o sol, provas
concretas da constante insatisfação humana, que tudo possui, mas sempre
deseja algo a mais. No centro da fonte se erguia uma estátua de muito mau
gosto. Aquela estátua foi o pesadelo de toda criança que cresceu ali na ilha.
Era um Poseidon, o guardião da ilha e dos mares, de dois metros de altura,
portando um tridente, e um golfinho pulando aos seus pés. Da boca do
animal saía a água da fonte. Antigamente, aos seus pés, existiam lâmpadas
avermelhadas e, à noite, quando se acendiam, o deus adquiria um aspecto
de demônio. Hoje em dia as lâmpadas eram mais modernas, brancas, de
LED, posicionadas em um canto melhor, e à noite a estátua não ficava mais
tão assustadora.
A igreja da cidade ficava a poucos metros dali e fomos até lá,
subindo a rua, numa parte onde o relevo se elevava um pouco, formando
uma pequena colina. Eu nunca fui muito religioso, nem meus pais, mas
admitia a beleza da arquitetura dela. Era a maior construção da nossa ilha,
ocupando o espaço de alguns quarteirões. Erguia-se sobre os prédios,
destacando-se no céu. O branco das paredes, brilhando naquela hora do dia,
quase chegava a cegar. Seus detalhes eram pintados de azul, combinando
com a maioria das casas da ilha. Duas torres esguias erguiam-se nas laterais,
com as pontas pintadas de azul, onde os sinos tocavam a cada duas horas. A
vista da sala do sino era espetacular, podia-se ver toda a ilha, olhando a
cidade do alto. As montanhas eram o ponto mais alto da nossa ilha, mas
eram longe, ao sul. Naquela porção do território, a igreja era o ponto mais
alto. Mas não se podia entrar lá, subi apenas uma vez, escondido com meus
amigos durante o casamento de um casal de atores famosos, que havia
chamado toda a atenção da ilha. Entre essas duas torres, um pouco mais
atrás, erguia-se outra, ainda maior e mais larga, com uma cúpula azul que
ostentava o poder da Igreja. No alto da cúpula, uma pequena cruz dourada
virava-se para o mar.
— Um belo lugar para se casar — observou Arnaud.
Perguntei-me se Arnaud era casado, se tinha filhos, se planejava
casar. Imaginei como seria a família dele, se tinha pais, se eles protestaram
quando ele falou que ia atravessar o oceano, se tinha irmãos, se tinha um
cachorro que havia deixado no continente aos cuidados do seu melhor
amigo. Se ele tinha amigos, namoradas, namorados.
— Eu costumava namorar escondido nos fundos da igreja da minha
cidade quando era adolescente. Tenho certeza que vocês fazem o mesmo
por aqui — disse ele, sorrindo.
Sorri e admiti. Fazíamos isso, especialmente quando éramos ainda
mais jovens e brincávamos com essa ideia de proibido. Hoje namorávamos
na praça ou na praia, sem vergonha. A rua atrás da igreja era deserta e
pouco movimentada, cercada de um lado pela parede cega da construção e
do outro pelo muro do cemitério. À noite, durante a missa, em meio ao
cheiro de mijo que exalava dos muros, e da áurea macabra do cemitério,
beijávamos no escuro. Imaginei como Arnaud devia ser na adolescência,
quem ele beijava, como ele beijava, o que ele fazia, qual era seu gosto
musical, literário, que filmes ele viu naquela época, qual sua comida
favorita.
Aquela parte do centro da cidade era a mais antiga da ilha,
remetendo ao período da colonização, e a maioria dos prédios, corroídos
pelo tempo e pela maresia, era desocupada. O único movimento naquelas
ruas era nas horas antes e depois das missas. Descemos a rua silenciosa da
igreja até uma pequena praia localizada entre grandes rochas, uma pequena
faixa de areia escondida, de onde saía um caminho estreito de cerca de
duzentos metros de comprimento, feito de pedra, erguido sobre a água, em
direção ao mar, como uma ponte. No fim do caminho havia uma pequena
ilha rochosa, ocupada apenas por uma capela branca.
— Vou te mostrar o lado da nossa ilha que os turistas não conhecem
— falei, animado, aquele era um dos meus pontos favoritos da cidade. —
Não espalhe pra ninguém.
Ele passou os dedos teatralmente nos lábios, selando-os como que
fechando um zíper.
Deixamos nossas bicicletas na praia e seguimos o caminho em
direção ao mar, com as ondas se agitando ao lado, um pouco abaixo dos
nossos pés. Deixei Arnaud ir à frente, o cabelo bagunçado, a camisa de
linho verde aguado, com uma mancha de suor nas costas, esvoaçando atrás
de si. Observei sua perna, peluda, os músculos da panturrilha se contraindo
e relaxando enquanto ele caminhava. O barulho da sandália batendo contra
o calcanhar enquanto ele caminhava sobre as pedras úmidas. Estava de
costas para mim, mas eu sabia que aquele seu esboço de sorriso estava lá.
A capela não tinha portas nem janelas. Elas haviam sido retiradas há
muitos anos, restando-se apenas os espaços onde antes ficavam.
— Não tem nada aqui — exclamou ele, surpreso, ao entrar.
Sorri, era exatamente a reação que eu esperava dele. A capela era
uma pequena sala de poucos metros quadrados completamente vazia, sem
nenhum móvel ou ornamentação, apenas a parede branca desbotada.
— Construíram essa capela centenas de anos atrás. Os colonizadores
acreditavam que a ilha era governada por demônios, então construíram o
templo aqui, afastado da ilha, onde acreditavam que seu deus ia protegê-los
— expliquei, passando a mão na parede embolorada, que clamava por uma
restauração. — Acontece que nos anos seguintes a maresia, a ressaca do
mar ou as tempestades sempre arruinavam a capela, deixando apenas as
paredes, então um dia cansaram de reconstruí-la, tiraram as coisas de dentro
e a abandonaram. Alguns anos depois construíram a igreja grande.
Arnaud havia tirado os óculos escuros e os havia pendurado na
camisa que, com o peso do objeto, era puxada para baixo, aumentando o
decote e expondo ainda mais o peito peludo, e me observava, com aqueles
olhos verdes de banzeiro em fascínio, prestando atenção em minha história.
— Mas não foi por isso que te trouxe aqui — falei, e ele franziu o
cenho, ainda sorrindo, mas intrigado com o enigma. — Olhe pra janela.
A construção possuía quatro janelas, ou melhor, buracos, onde
deveriam estar as janelas, dois do lado esquerdo e dois do lado direito. Os
do lado esquerdo davam para o mar, aquela imensidão a se perder de vista,
uma beleza espetacular. Mas não era isso que eu queria que ele visse, pois o
mar ele já conhecia demais. Eu queria que ele conhecesse a minha ilha.
Então o mandei olhar pela janela do lado direito, virada para a cidade. Ele
colocou a cabeça para fora e ficou olhando por alguns segundos.
Então virou-se de volta para dentro e exclamou, olhando para mim,
com os olhos brilhando como uma criança encantada pelo presente de natal:
— Uau!
A parede da capela era larga, então sentamos no vão da janela, que
era grande o suficiente para nós dois. Ficamos com os pés para fora,
balançando-os. Nossas pernas, lado a lado, estavam quase se tocando, e o
turbilhão de vento nos soprava o rosto. Bebemos água compartilhando a
mesma garrafa, eu provando a sua saliva quando levava a garrafa à boca, e
ele provando a minha.
— Você tem uma vida incrível aqui — falou em certo momento,
após um silêncio de contemplação.
— Um pouco monótona, mas eu gosto — concordei. Turistas
geralmente costumavam falar isso, como nossa ilha era incrível. Antes de se
cansarem da nossa monotonia após alguns dias. Nada acontecia aqui.
Estavam acostumados à agitação e a todos os excessos do continente. E nós
ao marasmo, com algumas tempestades aqui e acolá. Além disso, eles
conheciam nossa ilha apenas no verão, seu período de maior brilho.
— O que você gosta de fazer? — perguntou, parecendo subitamente
interessado em minha vida.
— Além disso? — sorri, apontando para o mar ao nosso redor.
— Além disso — ele insistiu.
— Quando não estou no curso, leio, vejo filmes, acampo. Saio com
meus amigos também, mas gosto de ficar sozinho. Também escrevo e ajudo
meus pais no trabalho — disse, expondo quase completamente a minha vida
inteira, muito embora ainda não soubesse nada sobre a dele.
Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Você escreve? Tem que me mostrar algum texto seu um dia.
— Talvez — falei, envergonhado. Não gostava de mostrar meus
textos a ninguém. Era como se despir de minha pele e mostrar minha alma a
todos. Por isso, guardava minhas histórias apenas para mim.
Ele havia parado de balançar as pernas, e sua mão, apoiada na
janela, estava a apenas alguns centímetros da minha. Eu podia sentir a
tensão entre nossos dedos, como uma força magnética, nos puxando, nos
atraindo. Aquela força era tão forte que fiquei sem fôlego, com o coração
acelerado, tentando resistir ao impulso de colocar a mão sobre a dele e
sentir o toque de sua pele. Queria saber qual era a sensação de segurar uma
mão tão diferente da minha, que contrastava em cor, tamanho, textura,
força. De repente, ele afastou a mão e tirou o caderninho do bolso. Tentei
imaginar o que era aquilo, mas achei indiscrição perguntar. Enquanto ele
escrevia, seja lá o que fosse, dei um gole na água, tentando disfarçar a
ansiedade com calor. Mas logo me arrependi, pois instantaneamente minha
bexiga começou a implorar para ser esvaziada.
Eu só tinha duas opções para fazer xixi ali: ou voltava para o
caminho de pedras e despejava minha bexiga no mar, ou descia da janela e
fazia isso na frente de Arnaud. A faixa de pedras era bem mais estreita nas
outras laterais da capela, e não comportava uma pessoa. Apenas ali, entre o
mar e a parede onde estávamos sentados, eu poderia ficar em pé e mijar no
reino de Poseidon.
— Preciso mijar — ele disse, interrompendo meus pensamentos.
Trinquei os dentes, tentando suprimir o riso. Às ironias da vida só me
restava rir. — Acho que não tem banheiro nessa capela, não é?
— Claro que tem. Vem — falei, tomado por uma coragem que não
sabia de onde vinha, talvez motivado pelo deus dos mares, e pulei da janela
sobre as pedras que nos separavam do mar. Abri os botões do meu short,
apontei meu pênis para a água e abri a torneira.
Atrás de mim, ouvi Arnaud dar uma risadinha. Então ele repetiu
meus movimentos, pulando nas pedras e posicionando-se ao meu lado.
Mantive o olhar fixo no horizonte, minha cabeça imóvel, enquanto ouvia
seu zíper abrir e sua urina encontrar o mar. O vento estava ao nosso favor, o
mijo projetava-se longe, o amarelo se fundindo ao azul, e com o canto do
olho eu podia ver o arco de urina que saía de Arnaud, quase formando um
arco-íris. Desejei que a direção do vento mudasse, que seu líquido quente
fosse soprado sobre mim, que molhasse meus pés e eu sentisse o calor que
saíra do seu corpo, eu então fingiria choque e repulsa, olharia para ele
surpreso e, com a rapidez do momento, veria o que havia guardado em sua
cueca, antes que ele escondesse novamente.
Mas isso não aconteceu, continuei paralisado, quase em pânico,
olhando para frente, meus olhos só viam o mar. Ao meu lado, Arnaud
também parecia imóvel, calado, só ouvíamos o barulho do vento, do mar e
do nosso mijo. Esforcei-me ao máximo para segurar meu globo ocular,
impedi-lo de girar para baixo e encarar as partes dele. Eu não conseguia
entender. Quantas vezes eu já não tinha mijado ali mesmo naquelas pedras,
ao lado de meus amigos, Américo e Augusto, e nunca senti nenhuma
vontade de olhar para seus pênis, e, nas vezes que acidentalmente os vi,
nada me causou? Parecia que eu estava longe de descobrir que efeito era
esse que o homem causava em mim, e isso me desesperava. Para piorar, eu
não sabia se eu causava algum efeito nele. Será que ele também sentia uma
vontade desesperadora de olhar em minha direção?
Com o canto dos olhos, vi Arnaud se agitar ao meu lado, e então
ouvi o barulho do seu zíper fechar.
— Que bela vista você me trouxe para ver, hein — falou. Engoli em
seco.
Ajeitei a cueca, fechei o short e, lentamente, olhei para ele,
inclinando um pouco minha cabeça, já que ele era mais alto que eu. Ele não
olhava para mim, seu pescoço estava esticado, quase tenso, e seu rosto
virado para frente. Olhava para o horizonte. Acompanhei o seu olhar.
Ao longe, víamos a enseada da praia do centro da cidade, cheia de
coqueiros, guarda-sóis, banhistas, lanchas e os quiosques ao fundo, com
seus bares e restaurantes caros.
— Aquela é a praia mais movimentada, mas não é a melhor — falei,
pensando se um dia eu chegaria a mostrar a Arnaud todas as praias da nossa
ilha. Aquela minha praia secreta.
— Um dia você me mostra as melhores — ele disse, olhando
finalmente para mim, com seu sotaque que parecia cada vez mais fraco,
como se ele já estivesse se adaptando à nossa ilha, e sua voz grave e firme,
porém gentil, que, cada vez mais que eu a ouvia, começava a me dar
arrepios na nuca. Não arrepios ruins, aqueles de pavor. Talvez sim, de
pavor, pois a sensação de prazer que eu tinha ao ouvi-lo falar me apavorava.
Ele estava novamente com os óculos escuros, mas era como se eu pudesse
ver seus olhos.
4 ✹ O TOQUE
H
avia passado um ano inteiro ajudando meu pai com a construção da
pousada. Faltava um dia para ela ser oficialmente aberta, mas havia
alguns pequenos ajustes a serem feitos. Retoques na pintura,
lâmpadas, tomadas e interruptores a serem instalados. Passei aquela manhã
com meu pai, ajudando-o. Rebeca, minha vizinha, uma garota da minha
idade, estava na beira da piscina, balançando os pés na água, observando-
nos. Ela era minha melhor amiga, mas eu só a via naquela época do ano.
Morava no continente, cursava jornalismo numa universidade prestigiada de
lá, e apenas passava as férias de verão ali na ilha, na casa da avó, nossa
vizinha. Conheci Rebeca quando éramos duas crianças entediadas e sem
amigos. Meus pais, amigos da avó dela, traziam ela para brincar em nossa
piscina. E assim, eu esperava todo ano pela melhor de todas as estações, o
verão, trazendo o sol e Rebeca. Ela era descendente de japoneses e suas
bochechas, claras, estavam avermelhadas por causa do calor. Ali no sol,
seus cabelos lisos pareciam ainda mais pretos.
— Tu deveria nos ajudar em vez de ficar aí só olhando —
resmunguei, enquanto ela bebericava o chá gelado que minha mãe havia
servido. Rebeca estava de maiô, frequentemente vinha até a nossa casa
tomar banho de piscina, já que na da avó não tinha. Muitas vezes ela
chegava sem avisar.
— Eu não — sentenciou, então colocou o copo de lado, sob a
sombra de um guarda-sol, e mergulhou na piscina.
Apressei-me, queria me jogar na água com ela. O sol estava
escaldante e o ar, extremamente quente e abafado. Havia começado o
trabalho vestido, mas, àquela altura, encharcado de suor, já havia tirado a
camisa e trabalhava apenas de short. Por baixo do short, porém, vestia uma
sunga, pronto para me jogar na água.
— Tome banho antes de mergulhar, tá todo sujo de tinta —
observou meu pai, quando terminei de instalar os interruptores e verifiquei
se todos funcionavam.
— E suado! — gritou Rebeca, fazendo uma cara de nojo.
Na borda da piscina, mármore fervente, tirei meu short, joguei em
uma cadeira espreguiçadeira que ficava ali ao lado e corri até o chuveiro.
Aquela água fresca e gelada correndo sobre minha cabeça quente era a
melhor sensação do mundo. O choque térmico. Olhei para a minha pele,
preta, brilhando sob o sol, avermelhada com o calor: parecia brasa.
Pulei na piscina, recebi uma reprimenda do meu pai por ter molhado
tudo ao redor, e me aproximei de Rebeca, que tinha na cara um risinho
desconfiado.
— O que foi? — perguntei. Achava que ela tinha feito algo errado.
— Não fizesse xixi na piscina não, né?
— Quem é aquele boy lá em cima? Não olhe! — disse, apontando
com o polegar para trás de si, onde estava a varanda do quarto do meu
irmão.
— É um hóspede novo, chegou antes do previsto. Vai ficar lá na
casa enquanto não terminamos aqui — expliquei.
— Ele tava te olhando agorinha, quando tu tomava banho. Acho que
é... — ela disse, gesticulando a mão, dobrando o punho, ainda com o risinho
sapeca.
— Primeiro, não, ele não tava — neguei prontamente, mesmo sem
ter visto. Não queria deixar dúvidas em minha própria cabeça. Estava? —
Provavelmente ele tá te olhando. E, segundo, tu é a última pessoa que
deveria estar julgando os outros.
— Não tô julgando, querido, tô apenas afirmando — retrucou,
pomposa, jogando o cabelo molhado para trás. — Tu que está perdendo, um
homão desses...
— Não faz meu tipo, e nem muito menos o seu, que eu saiba —
brinquei, muito embora começasse a questionar aquela afirmação. Eu me
considerava, até o momento, heterossexual, não notava os homens e nunca
os olhara com desejo. Arnaud, entretanto, estava despertando em mim
sensações que eu não conhecia.
— Eu sei, mas... Não tem sapatão nessa ilha, vou morrer seca aqui.
Minha sorte é essa piscina. — Rebeca jogou-se para trás, pondo-se a boiar.
Nadei até a borda da piscina e peguei o copo dela de chá gelado,
dando um gole enquanto discretamente verificava se Arnaud realmente
olhava para mim. Mas ele não estava mais na varanda.
— Vai pro centro hoje à noite? — ela perguntou, tomando o copo de
volta da minha mão.
— Acho que não — respondi. Com a primeira leva de velejadores
na ilha, naquela noite, uma sexta-feira, o centro da cidade estaria muito
movimentado, com os bares cheios e a boate aberta, depois de todos aqueles
meses juntando poeira. As meninas estariam ocupadas, suas atenções todas
voltadas para os novos aventureiros, e os meninos, carrancudos, com
ciúmes, procurando briga. Eu não estava a fim de presenciar esse festival.
— Também não — disse, colocando o copo vazio de volta à borda
da piscina. — Parece que sobramos só nós dois — acrescentou. — E tu e
Elisa, como estão? — perguntou ela, de repente, nadando até o meu lado.
— Como tu sabe? — Estava surpreso, eu e Elisa transávamos há
mais de dois anos, mas nunca passou disso, entre nós era só sexo, e nunca
contamos a ninguém. Era como uma brincadeira pra gente, apenas uma
experiência, nada sério. Éramos diferentes demais, tínhamos gostos e
objetivos diferentes, então nossa relação nunca passou disso. Nunca contei
a Rebeca, temia que ela me julgasse ou achasse ridículo. Sabia que ela não
era a maior fã de Elisa.
— É um pouco óbvio, todo mundo sabe.
Todo mundo quem?
— Não importa — retruquei. — De todo modo, ela vai encontrar
algum turista hoje no centro e se ocupar dele o resto do verão. Como todo
mundo faz.
— E fugir com ele depois.
— Ela não faria isso... Faria?
Peguei-me olhando de novo para a varanda ao lado do meu
quarto, inconscientemente, ou não, esperando encontrar Arnaud ali. Para
minha surpresa, me senti decepcionado ao não vê-lo, com sua regata torta
que deixava o peito exposto e o short acima dos joelhos, na altura certa para
mostrar a divisão dos músculos da coxa.
Ali, olhando para a varanda vazia, lembrei do nosso caminho de
volta para casa, no dia anterior, quando saímos da capela. Nossa conversa
sobre a vida, sobre o mundo, livros e músicas, enquanto pedalávamos
lentamente sob o sol. Apesar de, naquele momento, eu saber um pouco mais
sobre ele, queria saber muito mais. E que ele soubesse ainda mais sobre
mim. Contei para ele quais eram meus livros favoritos, esperando
impressioná-lo, e tive a impressão de ter mesmo conseguido, já que
tínhamos gostos parecidos. Falamos sobre nossos livros favoritos, Crusoé,
O processo, O estrangeiro, O cortiço, falamos de Stephen King, Machado,
Saramago, Murakami, Agatha Christie, Elena Ferrante. Falamos da
supervalorização do Apanhador no Campo de Centeio e em como
odiávamos Lolita. Falamos de música também, as clássicas, as eruditas, os
rocks, os pops, as folclóricas, falamos de algumas músicas da minha região
que ele conhecia e de algumas francesas que eu amava.
Até as nossas diferenças nos completavam. Eu era do cinema falado;
ele, do mudo. Preferia os de cores, e ele, os monocromáticos. Meu estilo era
mais Xavier Dolan, enquanto ele, Jean-Luc Godard. O contemporâneo e o
clássico. Na mitologia grega era o contrário, ele preferia o contemporâneo,
Percy Jackson, e eu, a clássica, Odisseia. Nas comidas, eu preferia doce; e
ele, o salgado. “Um dia eu te faço uma tartiflette tão deliciosa que você
nunca mais vai querer comer doce na vida”, ele disse. E eu soube que a
partir daquele momento sonharia eternamente com o dia em que ele
cozinharia batatas com bacon para mim. Continuamos assim, trocando
figurinhas (muito embora nosso álbum ainda estivesse cheio de espaços a
serem preenchidos), fascinados com nossas descobertas, pedalando para
casa distraídos, com o vento bagunçando nossos cabelos, olhando um para o
outro, sorrindo, jogando conversa fora e quase atropelando pedestres ou
tropeçando em pedras, até que nosso caminho acabou e nos despedimos,
“obrigado pelo passeio, Nico”, ele disse e foi para o quarto dele, e eu, para
o meu.
Arnaud, onde estava você? Eu precisava de mais figurinhas. Por que
não estava ali na varanda, como Rebeca havia me dito, me olhando? Eu
queria que ele me olhasse do mesmo modo que eu o olhava. Na verdade,
nem sabia que modo era esse que eu olhava para ele. Era desejo,
curiosidade, admiração? Não sabia o que era, mas era aquele olhar que me
causava um embrulho engraçado no estômago, aquele mesmo olhar que ele
me lançara quando chegou na ilha em seu barco a vela, o Sotaford. Era um
olhar que eu nunca antes vira em alguém, e nem para ninguém eu assim
havia olhado. Nem para Elisa. O que era que aqueles olhos cor de mar
revolto queriam dizer? Eu estava intrigado.
— Tais bem? — perguntou Rebeca. Olhei para ela. Eu havia passado
muito tempo encarando a varanda. — Tá meio avoado.
— Cansado — respondi.
as meu cansaço passou instantaneamente assim que vi Arnaud
M
chegar. Ou melhor, ouvi. Reconheci seus passos, o barulho das sandálias se
chocando contra o piso de pedra molhada e em seu calcanhar.
— O que fazem? — perguntou ele, sentando-se numa
espreguiçadeira sob o guarda-sol, ao lado da piscina. Ele segurava um
pequeno prato com uma toranja, uma colher e uma faca, e os colocou sobre
a mesinha de plástico ao lado de sua cadeira.
— Prazer, Rebeca — disse ela, estendendo o braço para fora da
piscina.
Arnaud era alto, e sem nem mesmo precisar levantar da cadeira,
esticou o braço e apertou a mão molhada dela.
— Enchanté — respondeu.
— Ui, que chique — disse Rebeca, dando uma de suas risadinhas.
— Anchantê, Arnô. Nico falou muito bem de você — acrescentou, e eu a
fuzilei com o olhar.
— Vocês aceitam? — ofereceu Arnaud, após um sorriso educado e
desconcertado, apontando para a toranja ao seu lado. — Não quero comer
uma inteira. — Rebeca recusou, agradecendo e se afastando da borda da
piscina para ir nadar.
— Aceito — respondi. Eu não podia recusar a oferta de uma toranja,
fruta rara na nossa casa. Era cara, importada do continente, e minha mãe só
comprava quando tinha visitas. Ainda mais se era oferecida por Arnaud, eu
tinha que aceitar.
Ele partiu a toranja no meio e, em vez de me entregar a banda dali
de onde estava, levantou-se da cadeira e sentou-se na borda da piscina,
colocando os pés na água, ao meu lado.
— Só trouxe uma colher — falou, desculpando-se, entregando a
minha metade da fruta. — Vamos ter que dividir. Se você não se importar...
— Não me importo — respondi prontamente, quase que exasperado.
Desesperado. Eu poderia comer sem a colher, mas comer uma toranja dessa
forma não era nada bonito. O suco vermelho escorrendo pela boca... Não,
eu queria compartilhar a colher de Arnaud.
Ele sorriu, os pés de galinha surgindo ao redor dos seus olhos verdes
que tinham brilho do mar ao meio-dia. Saí da piscina e sentei ao lado dele,
com as fatias de toranja entre nós dois. Olhei para a pousada, para saber se
meu pai estava ali nos observando, como se eu estivesse fazendo algo
errado e não quisesse ser pego em flagrante. Mas ele não estava, devia ter
entrado em um dos quartos para consertar alguma coisa.
A fruta estava suculenta, com aquele sabor cítrico que me lembrava
verão, ácida e doce, com um amargo no final. Comemos a toranja em
silêncio, observando Rebeca nadar, compartilhando a colher enquanto o sol
queimava nossos ombros. Ele, com o short enrolado na coxa para não
molhar, os pelos da perna submersos, balançando com a agitação da água, a
camisa de botões completamente aberta, o suor escorrendo no peito. Eu, de
sunga, ainda molhado, as gotas d’água que sobreviveram à evaporação
ainda escorrendo na pele, me dando arrepios quando o vento me tocava.
Ele, entretanto, não me tocou, enfiava a colher na sua metade da
toranja, e então levava à boca, passando-a entre os lábios, me entregando
logo em seguida, sem tocar seus dedos nos meus, e eu repetia seus
movimentos, levando a colher umedecida com sua saliva à boca, um toque
indireto, um beijo indireto.
— Não é fácil comer toranja — disse ele, observando seus dedos
lambuzados com o suco pegajoso e vermelho da fruta.
Eu, inconscientemente, ou não, levei um dedo, o meu, não o dele, à
boca e chupei, limpando com a língua o resquício de suco que havia
grudado à minha pele. Ele pareceu não reagir, ficou paralisado observando
enquanto eu colocava o dedo na boca e lentamente tirava, deixando um
filete de saliva entre os dois, e então, num sobressalto, como se tivesse
levado um choque, levantou-se, pegou as cascas da toranja que já havíamos
terminado de comer e falou:
— Vou tomar um banho. — E caminhou depressa em direção à casa,
batendo a porta atrás de si ao entrar.
Fiquei estático, observando a porta fechada, me arrependendo da
estupidez que eu havia acabado de fazer. Eu realmente havia chupado meu
dedo olhando para ele? Olhei para Rebeca, para ver se ela havia visto
alguma coisa, mas ela parecia distraída no celular, na borda da piscina, de
costas para mim. Mergulhei na água, para me esfriar, o corpo e a mente, e
fiquei boiando, o sol queimando minhas pálpebras, a água gelada nas costas
e o barulho do mar se chocando contra as pedras à distância.
E
squadrinhei meu sabonete minuciosamente, à procura de evidências
que comprovassem o crime. Que me confirmassem que Arnaud
realmente havia tomado banho com ele. E lá estava ela: a
comprovação daquele ato libidinoso, da profanação, do sacrilégio. Meu
sabonete fora violado por aquele homem, e a prova disso era um fio, fino e
quase imperceptível, de cabelo loiro colado na espuma seca do sabonete.
Não havia ninguém com cabelos loiros naquela casa, além dele.
Pensei em jogá-lo fora. Eu era extremamente higiênico e um
pouco individualista, não gostava que usassem minhas coisas,
especialmente quando se tratava de itens de higiene pessoal. Uma vez meu
irmão usou meu sabonete e o joguei no lixo, enojado. Mas aquele sabonete
ali, o usado por Arnaud, que o havia passado em todo seu corpo, em vez de
jogá-lo fora, eu o cheirei. Queria saber qual cheiro era mais forte, o do
sabonete ou o do corpo dele.
Entrei debaixo do chuveiro e, quando menos esperei, estava
esfregando aquele pedaço de sabão no meu corpo. No rosto, descendo pelo
pescoço, peito, roçando nos mamilos, pela barriga, até a virilha. Estava
quase sem fôlego, dando longas e profundas aspiradas de ar, com os olhos
fechados, esfregando o sabão em meus pelos pubianos e pênis, formando
uma espessa espuma. Fui escorregando pela parede até me sentar no chão, o
mesmo chão que há poucos minutos Arnaud estivera em pé, nu, por onde
havia escorrido a sujeira do corpo dele. Eu pensava no corpo dele, as partes
que eu havia visto, e as partes que não, pensava naquele sabonete, e por
onde ele havia percorrido. Queria pegar as células mortas da pele de Arnaud
que haviam ficado ali naquela espuma e esfregá-las em mim, queria ter uma
parte do seu corpo no meu.
Quando ejaculei, tentei fazer silêncio, a porta era fina, alguém no
corredor poderia escutar, mas deixei escapar um gemido, não resisti, um
gemido longo, exausto, desesperado. Um gemido de quem há muito tempo
era privado de prazer. Um gemido de alguém que ansiava por um prazer
que nunca havia tido.
E
ra sábado, o que significava que era meu dia de trabalhar na loja da
minha mãe. Ela trabalhava lá durante a semana, alternando turnos com
seu funcionário, que era uns cinco anos mais velho do que eu, e no
sábado os dois folgavam, ficando para mim a responsabilidade de abrir a
loja e ficar lá como único atendente. Ao menos aos sábados a loja só abria
pela manhã. Meus amigos, os que não estavam trabalhando na loja dos pais,
como eu, iam para a praia naquela hora, e, no caminho, passavam lá para
me cumprimentar, ou só me fazer raiva mesmo, tentando despertar inveja. E
eu tinha inveja. Nem Rebeca me poupava dessa humilhação.
Estava sozinho na loja, com a cabeça baixa, encarando o meu
celular e vendo as fotos que meus amigos publicavam na internet em tempo
real, da praia, quando o sininho da porta soou. Levantei os olhos para
receber o cliente. Para a minha surpresa e completo choque, era Arnaud.
Puta que pariu, pensei. Toda vez que eu via Arnaud era como se
fosse a primeira vez. Seu sorriso galanteador, os dentes brancos e alinhados,
as marcas de expressão que lhe davam um charme, o cabelo perfeitamente
bagunçado que me tirava o fôlego. Arnaud era como uma sereia, ou tritão,
saindo do mar seminu, coberto por algas, com seu feitiço que me
hipnotizava e me atraía para o fundo do oceano.
— Bonjour — exclamou, tirando os óculos escuros e revelando
seus olhos verde-amarronzados. — Não te vi hoje no café da manhã.
— Bom dia — respondi. E então expliquei: — Nos sábados eu
saio cedo, pra abrir a loja.
— Ah, bom — falou, começando a caminhar pelo ambiente,
observando os cabides.
Vestia o mesmo short branco de algodão. Ele não tinha outra
roupa? Pelo menos era outra a camisa que vestia. Uma rosa clara, quase
branca, também de linho, folgada e de botões. Só o primeiro estava aberto.
A camisa era curta, então eu podia ver a curva da sua bunda. O short
branco, esticado pelos músculos, ficava um pouco transparente, e eu podia
ver a costura da cueca, por baixo. Suspirei ali sentado atrás do balcão.
— Procura alguma coisa em específico? — perguntei, tentando
distrair a mente.
A loja vendia roupas de praia, sungas, biquínis, shorts, regatas,
vestidos leves, cangas, bolsas de palha, óculos de mergulho, de sol, bonés e
assim ia. Tantas coisas que ele poderia estar procurando...
— Uma sunga — respondeu.
Trinquei os dentes. Não podia ser outra coisa?
Levantei-me da cadeira e fui mostrar a ele onde ficavam as
sungas.
— Você deve entender de moda praia melhor que eu — falou,
sorrindo. — Qual você indica?
Só pode estar de brincadeira. Visualizei em minha cabeça aquela
sunga laranja horrorosa com a qual ele havia chegado na ilha, aquela com
Dortnellas escrito na bunda. Não era a cor certa para ele. Visualizei seu
corpo, branco, avermelhado, beijado pelo sol, suas curvas, músculos, pelos
e sinais. O cabelo liso, levemente ondulado, permanentemente emaranhado
pelo vento, volumoso. A sobrancelha despenteada — que vontade eu tinha
de lamber meu dedo e passar nela, para ajeitá-la! — a barba mal feita.
Visualizei seus olhos, imensos, do tamanho de todos os oceanos juntos, do
tamanho do Pantalassa, o oceano que banhava a Pangeia, os tons terrosos,
verde e castanho, juntando-se e formando um mar de estação chuvosa.
Sabia qual era a sunga perfeita para ele, a sunga que eu queria vê-lo usar.
Escolhi um tom verde-escuro da cor exata de seus olhos. Obviamente,
apontei despretensiosamente, fingindo não dar a mínima, fingindo não ter
pensado no assunto, como um vendedor que quer se livrar do cliente logo,
apontando para uma roupa qualquer.
Ele pegou a sunga e foi para o provador. Ficava ao lado do
balcão. Eram duas cabines, protegidas por uma cortina. Dentro, apenas um
espelho de corpo inteiro, uma lâmpada pendurada no teto, um banquinho e
um gancho para colocar as roupas. Entrou no primeiro deles.
Escutei ele se mexer, tirando a roupa. E então vi sua camisa e
short caírem no chão, por baixo da cortina. Da distância que eu estava,
podia ver seus pés e tornozelos.
Ele abriu a cortina levemente, colocando a cabeça de fora e
olhando para mim.
Ficou pequena, pode pegar um número maior, por favor?
—
Fui até as sungas e vi que ele havia pego uma de tamanho P. Era
óbvio que ele não vestia P, e não era possível que ele não soubesse disso.
Peguei uma G, que certamente era o tamanho dele. Fui até o provador e,
quando me aproximei, puxei a cortina, esperando que ele ainda estivesse
vestido com a sunga pequena. Estava pelado. Seu pênis, amolecido, pendia
entre suas coxas peludas. Percebi que, ao contrário de mim, ele não era
circuncidado.
Desviei o olhar rapidamente (ou o mais rápido que pude) e
estiquei o braço para lhe entregar a sunga. Ele a pegou e, rapidamente,
fechou a cortina.
— E aí, ça va? — perguntou, ao abrir a cortina novamente,
vestido com a sunga.
Estava perfeita. Não era daquelas sungas retangulares que
escondiam as curvas do corpo. Era mais cavada, seguindo o contorno da
virilha, marcando bem o volume do seu pênis, sem esmagá-lo ou evidenciá-
lo demais. Sua coxa era grossa, e aquele formato tinha o encaixe perfeito,
era confortável para quem vestia e para quem olhava. Virou-se novamente
para o espelho, não sei se para se olhar de novo, ou para me mostrar a parte
de trás, ou os dois, mas ali também estava perfeito. A costura acompanhava
o formato da sua bunda, valorizando-a, e tive vontade de pôr a mão para ver
se era tão dura como aparentava. Era menor que sua sunga anterior, então
dava para ver uma parte da sua pele alguns tons mais clara que o resto do
corpo, coberta por uma fina camada de pelos, onde o sol ainda não havia
tocado.
— Aham, acho que sim — respondi, seco, tentando demonstrar
indiferença. Não sei se tive sucesso. Muito provavelmente minha voz saiu
trêmula.
— Agora só preciso corrigir a marca do bronze — disse, olhando
por cima do ombro a parte branca da bunda que aparecia.
Ele arrancou a etiqueta da sunga, vestiu a roupa por cima, pagou e
saiu, naquele seu andar despretensioso, como se ele não tivesse pressa de
chegar a lugar algum. Nunca tive tanta vontade de largar a loja e ir para a
praia como naquele dia. Eu queria ver Arnaud deitado sob o sol vestindo a
sunga que eu havia escolhido para ele. No fundo, senti ciúmes de todas as
pessoas que estavam na praia e colocariam os olhos sobre ele. Odiei minha
mãe por ter me feito trabalhar ali, ao mesmo tempo que a amei.
ais tarde, uma cliente, após provar uma roupa, me falou que
M
alguém havia esquecido alguma coisa na cabine. Quando fui verificar, vi
uma cueca branca jogada no banquinho. O banco também era branco, então
eu, distraído por Arnaud, não havia visto. Era a cueca dele, tinha certeza. Só
agora eu me tocava de que ele havia chegado usando uma cueca por baixo
do short e saído vestindo a sunga, sem levar a cueca. Havia feito aquilo de
propósito? Quando peguei a cueca, sem saber o que fazer com ela (levaria
para casa e entregaria a ele? Jogaria no lixo e nunca mais a mencionaria
novamente?), vi que havia uma mancha levemente amarelada no fundo,
uma mancha de suor, daquelas que não saem depois de inúmeras lavagens.
Estava úmida, suada. Sem pensar duas vezes, cheirei.
O odor tomou conta de minha cabeça instantaneamente, fiquei
atordoado, nauseado, como se estivesse cheirando uma droga viciante.
Corri para a entrada da loja, tranquei a porta, virei a placa, informando que
a loja estava fechada, entrei no provador e fechei a cortina atrás de mim.
Com a cueca dele enfiada em minha cara, usando-a como uma máscara pós-
apocalíptica para filtragem de ar, inspirei fundo, dando longas tragadas de
ar, deixando o cheiro dele entrar não só em meus pulmões, mas em meu
sangue. Queria ficar drogado e chapado com aquele cheiro de suor, da
virilha de Arnaud. Aquele cheiro que havia atravessado oceanos e chegado
até mim. Coloquei a cueca na boca e a mordi, como uma mordaça, para
abafar o meu gemido enquanto chegava ao meu ápice de prazer.
Quando terminei, tomado por aquele torpor da droga Arnaud,
tomei outra decisão selvagem. Vesti a cueca. Não a minha, a dele. Ficou
ridícula em mim, muito folgada, parecendo uma fralda. Precisava segurá-la
para evitar que ela caísse. Então vesti meu short por cima.
Voltei para casa assim, ainda sentindo em meu nariz o cheiro de
Arnaud, usando a cueca dele, deixando meu suor se misturar ao dele. Levei
minha cueca no bolso. Quando cheguei, subi até meu quarto, e, com as
portas e cortinas fechadas, tirei a cueca dele, que estava úmida com meu
suor, coloquei em uma sacola e vesti a minha própria cueca. Da minha
varanda, certifiquei-me que ele já havia voltado para a pousada. Sua cortina
estava aberta e o vi de relance no quarto. Bati na porta e entreguei-lhe a
cueca, falando que ele a havia esquecido no provador.
Ele agradeceu, pedindo desculpas pelo vexame, e fechou a porta.
Voltei para meu quarto correndo, fui até a varanda e olhei para a dele.
Mas ele havia fechado as cortinas. Malditas cortinas.
u não aguentava mais aquilo, aquelas dúvidas, incertezas, aquela
E
nuvem que pairava sobre nós, como algum tipo de tensão. Eu queria falar
alguma coisa, queria que ele falasse, que desse algum sinal, algo que
indicasse que realmente estava acontecendo alguma coisa, e que tudo não
estava apenas em minha cabeça. Dormi inquieto naquela noite, como se
pressentisse que no dia seguinte, finalmente, ele daria o primeiro sinal.
7 ✹ OS SINAIS
D
omingo era o dia mais movimentado da praia. A maioria do comércio
fechava e todo mundo ia para a praia perto do centro. Também,
naquele dia, os turistas hospedados na Ilha Grande aproveitavam para
explorar as outras ilhas do arquipélago, e muitos acabavam na nossa ilha.
Então era um dia de muita movimentação na cidade.
Aquele era meu dia favorito da semana. Todos os meus amigos se
reuniam. Os que moravam mais longe iam de bicicleta. No caminho, eu
passava pela entrada da casa de Rebeca e ela se juntava a mim. Outros se
juntavam à medida que passávamos na frente de suas casas. No centro,
encontrávamos com os que vinham de outras regiões da ilha. Nesses
assuntos, éramos pontuais. Elisa também se juntava a nós, ela morava mais
próxima àquela praia. Deixávamos nossas bicicletas na oficina do pai dela,
então íamos a pé. Naquele dia Elisa não me deu muita atenção, parecia
distraída com alguma coisa.
— Me disseram que ela ficou podre de bêbada ontem — Rebeca
cochichou, apontando o nariz para Elisa, que ia mais à frente. — E não
voltou pra casa. Foi com um gringo pro barco dele.
Apertei os lábios, chateado. Quantas vezes eu e Elisa não
debochamos daqueles gringos branquelos e idiotas que vinham fazer
baderna na nossa ilha, e das meninas bobas que caíam na lábia deles? Tudo
pra quê, pra dar uma voltinha num barco? Eu a estava julgando, mas
naquela altura não me dava conta de que eu mesmo estava prestes a entrar
no barco de Arnaud.
quela noite foi ainda mais quente do que a anterior. Talvez até
A
mais quente do que aquela manhã, do que a sauna. Depois do jantar, fui
para o quintal e fiquei deitado na beira da piscina, apenas de sunga, minhas
costas coladas à pedra gelada, uma perna dentro da água. Escutava música
com fones de ouvido, agitando a piscina com o pé, enquanto observava o
céu estrelado. Do meu lado, uma latinha de cerveja esquentava. Sentia
cheiro de maresia e dos limões sicilianos que meu pai havia plantado abaixo
da janela de seu quarto e que começavam a amadurecer. Adorava aquela
tranquilidade, até havia deixado as luzes do quintal e da piscina apagadas,
para dar um clima de ilha deserta. Arnaud não estava na pousada e nem
havia aparecido para o jantar, perguntava-me onde será que ele estava.
Devo ter adormecido, pois, quando abri os olhos novamente, a luz
do quarto dele, acima de mim, estava acesa. Observei-a por alguns minutos
até que ela apagou. Ouvi os passos dele descendo as escadas e então ele
apareceu com uma garrafa de vinho e duas taças. Estava de short e uma
camisa de botões completamente aberta, mostrando seu peito e barriga.
Mesmo àquela luz fraca, que vinha apenas da casa, pude ver que ele estava
bronzeado. Tentei imaginar como estava a marca de bronze da sunga nova.
Ele veio andando em minha direção e retirei os fones de ouvido.
— Posso me juntar a você? — perguntou, já sentando-se em uma
espreguiçadeira a menos de um metro de mim. Senti o seu cheiro misturado
ao de protetor solar. — Tá muito calor hoje. — E então acrescentou,
sorrindo: — Acho que o calor da sauna ainda está em mim.
— Sim — respondi, ainda deitado na borda da piscina, sem
querer relembrar a minha fuga da sauna. Estava calor mesmo, mas eu não
tinha certeza se era consequência do tempo, da sauna, ou dele.
— Se importa se eu fumar? — indagou, colocando a garrafa no
chão ao lado da cadeira.
— Fique à vontade — respondi. Não gostava do cheiro de
cigarro, na verdade odiava, mas eu não queria recriminá-lo. Talvez ele
saísse para fumar em outro lugar, e eu não queria que ele me deixasse
sozinho. Eu estava disposto a inalar aquela fumaça tóxica, cancerígena, para
estar perto dele.
Ele acendeu o cigarro, deu uma tragada, soprou a fumaça para o
outro lado, para que ela não fosse até mim, e falou:
— Aceita vinho? Vi lá de cima que você estava aqui e tomei a
liberdade de trazer uma taça extra. Ou prefere cerveja? — Ele ergueu a
garrafa, me mostrando o rótulo. — É francês. São os melhores — disse,
piscando um olho.
— Aceito — falei, talvez rápido demais. Eu preferia cerveja naquele
calor, mas se ele estava dizendo que os franceses eram os mais gostosos,
quem era eu para recusar?
Ele nos serviu e bebemos em silêncio por alguns instantes.
— Nico é apelido de quê? — perguntou ele de repente.
— Não é apelido, é meu nome mesmo — respondi. Já estava
acostumado com aquele tipo de pergunta. — Em homenagem à cantora.
Meu pai era fã do Velvet Underground.
Ele riu, deixando fumaça sair pelo nariz e escapar uma pequena
tosse.
— É um anagrama — falou, dando outro gole no vinho.
Sorri, ele conhecia a história. Pelo menos não sugeriu ser um
personagem de Percy Jackson e os Olimpianos, o filho de Hades. Nem fez
as tantas piadas às quais eu já estava mais que acostumado. Nicotina.
Pinico. Nanico.
— Icon — falei. O nome da cantora era um anagrama da palavra
ícone, em inglês.
— Você gosta dela? — perguntou, soprando a fumaça, muito
embora provavelmente já soubesse a resposta, pois na parede do meu quarto
havia um pôster dela.
— Gosto.
— Aposto que adivinho sua música favorita dela — disse,
brincando, com um sorriso de canto de boca.
— Tente — falei, aceitando o desafio.
Semicerrou os olhos de maneira teatral, curvando-se em minha
direção, apoiando a cabeça nas mãos, com os cotovelos dobrados sobre os
joelhos. Fingia ler minha alma. Tive medo de ele realmente ser capaz de
fazer isso. Senti o cheiro amadeirado do vinho que vinha da boca dele.
— The Fairest of the Seasons — disse, depois de alguns
segundos.
A melhor das estações. Ele acertou. Não sei se eu era previsível
demais, se foi sorte, pois era uma de suas músicas mais conhecidas, ou se
ele quis dizer algo com a escolha daquela música em particular.
— I want to know, do I stay or do I go — ele recitou. Eu quero
saber se devo ficar ou se devo ir.
Deve ficar.
Não falou o resto da letra, não precisou. A música passou em
nossas cabeças, pairando no ar entre nós.
“Olhando em seus olhos,
E vendo os meus me alertando
ara ler os sinais cuidadosamente”.
P
Seus olhos continuavam parados sobre os meus, iluminados
apenas pela luz da lua. Meu coração não batia mais no peito, e sim na boca.
Eu queria ler aqueles sinais cuidadosamente.
Ele se levantou bruscamente, dando uma tragada final no cigarro.
Jogou a piola na taça, que ainda não estava seca.
— Melhor eu ir me deitar, já bebi demais — falou, subindo para
seu quarto. Quis chamá-lo, gritar, pedir, suplicar para que não fosse embora,
para que ficasse ali na piscina comigo, que deitasse ao meu lado e que,
juntos, olhássemos as estrelas. Mas não consegui, estava mudo, meu
coração estava entalado na minha garganta e ali palavras não passavam. Vi
sua luz acendendo e a cortina fechando.
Rolei para o lado, deixando meu corpo mergulhar na água fria da
piscina. Queria me afogar.
◆ ◆ ◆
O
cheiro de café invadia o corredor quando saí do meu quarto na manhã
seguinte. Na minha cabeça, as palavras do poema se repetiam. A
espera que parece sem fim. Que espera? Desci as escadas,
encontrando minha mãe servindo café aos hóspedes. Ali estavam Bruno,
Oliver e Arnaud. Margarida, a escritora, estava reclusa em seu quarto.
— Nico, os rapazes — começou a dizer minha mãe, assim que
entrei, apontando para o casal, que não eram rapazes, e sim homens adultos,
— vão fazer o tour do Seu Sebastião amanhã na base das montanhas.
Apenas ri. Seu Sebastião era um pescador do sul da ilha que, em alta
estação de turismo, fazia um bico de “guia turístico” pelas montanhas,
fazendo um percurso curto, superficial e preguiçoso por áreas que nem
tinham as melhores vistas.
— Não falei? É um charlatão — disse minha mãe, em resposta ao
meu riso irônico.
Os rapazes se entreolharam, visivelmente decepcionados. Então eu
vi ali uma oportunidade.
— Eu posso levá-los — falei.
— Você não é muito novo para isso? — perguntou um deles. Não
sabia qual era qual, Bruno ou Oliver. Tentei não demostrar que fiquei
profundamente ofendido com a pergunta.
Minha mãe sorriu, um sorriso de mãe orgulhosa. Foi até o meu
lado e colocou uma mão sobre meu ombro.
— Esse rapaz só não escalou essas montanhas ainda porque não
deixei. O pai o levava pra acampar lá no pé da montanha desde criança,
faça chuva, faça sol. Hoje em dia ele acampa com os amigos, até no
inverno. E acabou de tirar uma licença da prefeitura, ele agora é trilheiro
regularizado, viu! Ninguém conhece mais essa mata que ele.
Sorri, encabulado. Acampar nas montanhas era uma de minhas
paixões, além da praia no verão. O silêncio, o barulho do rio, dos pássaros,
dos insetos. Gostava da tranquilidade e da distância da cidade e das pessoas.
Eu ia para lá a fim de dar um tempo na vida, para escrever, e até para
estudar. Foi lá que perdi a virgindade com Elisa, em minha barraca, debaixo
da chuva. Sempre quis escalar aquelas montanhas, mas eram perigosas
demais. Era preciso ser alpinista profissional e ter autorização da prefeitura.
— Quando você pode nos levar? — perguntaram.
— Quando vocês quiserem. Amanhã, pode ser? — respondi, já
passando em minha cabeça a lista de coisas que precisávamos levar.
— Amanhã, então — decidiram.
Fui ao centro da cidade comprar o material que eu precisava e
estava faltando. Por acaso, encontrei Américo na rua. Fiquei animado, fazia
alguns dias que eu não falava com ele, o idiota estava sem responder
minhas mensagens. Provavelmente ocupado fazendo lives sem parar. Ia
chamá-lo para acampar, ele gostava e devia estar precisando descansar. Mas
quando me aproximei, percebi que os homens com quem ele estava
conversando brigavam com ele. Falavam baixo, para ninguém entender,
mas com a voz agressiva. Quando um deles colocou a mão no peito do meu
amigo e o empurrou contra a parede, eu intervi.
— Ei, o que é isso?! — gritei, chegando perto. — Tá tudo bem,
Américo?
O cara me afastou com um tapa. A dor fina no lábio surgindo ao
mesmo tempo que o gosto férreo do sangue na língua. Ele usava um anel
enorme, em formato de caveira (quão caricato!) e o outro homem tirou um
canivete do bolso. O que era aquilo, um assalto?
— Nico, saia daqui — disse Américo, olhando para mim. Ele estava
sério, não tinha nem um pouco do meu desespero. — Não se meta. É
negócios.
— Não — insisti. Como ia deixá-lo ali daquela forma?
— Tô falando sério. Vá embora — ele sibilou entre os dentes, me
assustando. Nunca vi Américo daquele jeito. De repente, senti mais medo
dele do que daqueles caras.
— É, moleque, vai embora — eles falaram, avançando para cima de
mim. Dei um passo para trás e saí correndo. Não tive escolha.
Quando meu lábio parou de sangrar, e minha mão parou de tremer,
voltei para casa, já com uma desculpa pronta parar falar caso me
perguntassem como me machuquei. Afinal, nem eu sabia ao certo o que
tinha acontecido. Mais tarde, tentei falar com Américo novamente, e tudo
que ele me respondeu foi: “tá tudo bem, não precisa se preocupar”.
Naquela noite, dormi mal, sonhei com um tsunami gigante devastando a
ilha inteira.
É
uma piada do meu marido. Meu. Marido. Marido Marido Marido
Marido. Fingi não demonstrar emoção ao escutar aquelas palavras,
mas por dentro eu estava morto. Despedaçado, destruído. Foi como
um choque térmico ao sair do sol e pular no rio, só que ruim. Talvez como
sair do rio e pular no Sol. Senti um buraco enorme se abrir em meu peito.
Ou aos meus pés, como se a terra abaixo de mim tivesse sumido e eu
afundasse, aos poucos, para as regiões abissais de algum oceano
desconhecido e tenebroso. Tentei me controlar, não sorrir, não chorar, não
gritar, não sair correndo. A verdade é que eu não compreendia aquele
sentimento. Estava magoado, como se ele tivesse mentido para mim ou me
traído. Mas não, ele não mentiu, pois nunca havíamos conversado sobre
aquilo, nem sobre nada. Nem muito menos havia me traído, pois não
éramos nada, nem amigos chegávamos a ser. Ele era um hóspede do meu
pai. Ou melhor, ele era um homem. E eu não sentia aquele tipo de coisa por
homens. Sentia?
— Ele não tem um senso de humor muito bom, então — falei,
tentando não parecer mal-humorado. A minha vontade era de me levantar e
ir embora, na chuva mesmo, abandonar ele e os outros dois ali na selva.
Que morressem de fome ou engolidos por um animal selvagem. Esperava
que ele não fosse como Rebeca, que podia ler minha alma.
Ele riu. Foi um riso exagerado, meio nervoso, meio triste.
— Não, ele não tinha.
Tinha?
— Tinha? — perguntei. No passado? Então eles haviam se
separado? Haviam brigado, o marido o expulsou de casa e ele decidira
velejar pelo mundo, parando em ilhas paradisíacas em busca de sexo?
— Ele faleceu há dois anos. Câncer — respondeu Arnaud, me
afundando ainda mais na fenda abissal daquele oceano que me engolira. —
Acontece que o lago onde ele costumava nadar estava contaminado por
resíduos tóxicos de uma mineradora, ninguém sabia na época. Estávamos
planejando velejar pelo mundo quando ele adoeceu — continuou ele,
soturno, e eu arrependido de ter feito aquela pergunta. — Tínhamos até
comprado um barco. Usado, de um vizinho nosso que estava velho demais
para velejar. Sotaford era o sobrenome. Antes de partir, Jérôme me fez
prometer que eu faria essa travessia mesmo sem ele, uma última coisa para
me despedir de sua memória. Me preparei por quase dois anos. Ele me fez
prometer, também, que usaria a sunga mais feia que encontrasse, para que
ninguém desse em cima de mim — riu, um riso nostálgico, cheio de dor, —
e era uma piada, claro, mas quando eu estava comprando roupas para a
viagem, acabei encontrando aquela laranja, a Dortnellas. Quando a vi, por
acaso, lembrei dele e ri, soube que era aquela, a que afastaria olhares. Nem
perguntei o que a palavra significava.
Um silêncio pairou sobre nós, um silêncio desconfortável,
mortificante. Eu não sabia como responder aquilo, e ele não tinha mais nada
a dizer. Arrependi-me profundamente de ter perguntado o que significava a
porra daquela palavra. Mas, para meu horror, senti alívio. Alívio ao saber
que o marido daquele homem estava morto. Sim, uma coisa terrível para se
pensar, e eu reconhecia isso, mas não pude evitar de sentir. Além disso,
agora eu sabia que ele era, de fato, gay. Todas aquelas sensações, o meu
chão despencando ao ouvir aquela maldita palavra, marido, o alívio ao
descobrir que aquele homem não estava mais entre nós, a excitação ao
confirmar que Arnaud era gay, tudo isso me fez compreender o que eu
estava sentindo. Eu não estava mais confuso. Pela primeira vez, no fundo
do meu ser, da minha alma, das minhas entranhas, admiti que desejava
Arnaud.
— Bonne nuit, Nico — despediu-se, fechando os olhos e virando
as costas para mim.
Ao menos não estávamos num silêncio ensurdecedor, pois ainda
chovia. Sentia-me pequeno, ingênuo e idiota. Arnaud era um homem
maduro, casado por sabe-se lá quanto tempo. Seu marido havia morrido e
ele largou tudo, o emprego, a casa e os deuses sabem mais o quê para fazer
os últimos desejos do homem que amara. Aquilo era amor. E eu ali, noites
revirando na cama, sem nem ao menos saber, de verdade, se era gay,
perguntando-me se ele sentia atração por mim. É claro que não sentia. O
que eu era, além de um jovem inexperiente e sem perspectiva para o futuro?
Arnaud voltaria ao mar dali a algumas semanas, e depois para o continente,
onde eu nunca mais o veria. Eu era um pequeno grão de areia perdido no
meio do universo de Arnaud. Uma gota d’água naquele temporal.
esolvi voltar por outro caminho, pela trilha oficial da ilha. Além
R
de, dessa forma, mostrar outras paisagens, aquela trilha era mais fácil e
mais curta, chegaríamos mais cedo em casa. Ela era mais urbanizada, o
percurso era marcado por tábuas no chão, era iluminado, sinalizado, e havia
pontos com áreas de descanso e bebedouros com água potável.
Em certo ponto da trilha, ainda longe da área habitada, passamos
pela entrada de uma casa que ficava um pouco mais adentro na floresta,
escondida pelas árvores. Era um casarão antigo, datado dos primórdios da
ilha. Ninguém entrava ali. Tinham medo. Diziam ser perigoso, assombrado,
habitado por uma velha bruxa maligna. Era uma lei não oficial falada entre
os moradores: não se aproxime da casa da bruxa. Quando eu era
adolescente, claro, eu e meus amigos brincávamos de ver quem chegava
mais perto da casa. Todo moleque fazia isso. Até que um dia, um menino
que morava lá por aquelas bandas da ilha — não o conhecíamos —
apareceu morto na trilha que levava até a casa. Espancado, com as mãos
decepadas e a língua arrancada. A polícia não conseguiu descobrir o que
havia acontecido, e eu nunca mais ousei chegar perto de lá.
— A gente vai ficar por aqui — o casal falou.
Arregalei os olhos, pego desprevenido.
— Aí é a casa da bruxa — falei.
Um deles, Oliver, riu.
— Não existe bruxa — disse.
— Mas... — comecei a dizer, mas senti a mão de Arnaud pousando
nas minhas costas. Foi um toque firme, quase autoritário, como se me
mandasse calar a boca. As palavras se entalaram na minha garganta.
— Então nós vamos indo — disse Arnaud, me empurrando. — Bom
passeio para vocês dois.
— Obrigado — disse Bruno, e os dois seguiram na direção da
casa amaldiçoada.
Eu e Arnaud ficamos um momento parados, em silêncio,
observando eles dois desaparecendo na trilha.
Uau, isso que é reviravolta, pensei, percebendo que havia
repetido, mesmo que mentalmente, o “uau” que Arnaud sempre falava. Ele
então colocou a mão no bolso, tirando o celular para tirar uma foto da trilha,
com o casal estrangeiro lá no fundo, pequenininhos.
— O que acabou de acontecer? — perguntei.
Arnaud deu de ombros, sério. Ficou olhando por alguns segundos a
foto que havia tirado. Depois continuou a andar. E eu o segui. Naquele
momento, tudo o que eu queria fazer era segui-lo e me perder em seus
mistérios.
Eu e Arnaud continuamos o caminho em silêncio. Por algum motivo
eu não me sentia desconfortável, mesmo havendo entre nós uma conversa
em pendência.
— Isso daria uma história interessante — disse Arnaud em
determinado momento, arqueando uma de suas sobrancelhas.
Se isso foi apenas um comentário genérico ou se ele estava
sugerindo que eu escrevesse uma história sobre aquilo, não soube dizer.
Nessa trilha passávamos pela vila de pescadores no lado leste da
ilha, aquela próxima à praia secreta que eu ia com Elisa. Tive vontade de
chamar Arnaud para ir até lá, queria mostrá-la a ele como quem conta seu
mais profundo segredo, abrir para ele toda a minha intimidade. Talvez
depois... Imaginei como seria se fosse ele no lugar de Elisa.
Chegamos em casa antes do anoitecer, num horário perfeito para
encerrar o meu tour pela ilha selvagem. Chamei Arnaud para me
acompanhar, pois chegávamos na última parada da caminhada, para fechar
com chave de ouro. O sol começava a se pôr. Corri até a lateral da casa e
comecei a subir as escadas que levavam até a caixa d’água, no topo do
telhado. Ele me seguiu sem perguntar.
A caixa d’água era um grande bloco de concreto, com o espaço
exato para nos sentarmos com as pernas arqueadas. Sentamos, nossos
ombros se tocando.
O céu começou a adquirir tons rosados, alaranjados, à medida que
o sol ia baixando ao nosso lado, pronto para se esconder além do mar e
aquecer outras terras. Parecia uma obra surrealista, pinceladas de tons
avermelhados por todo o firmamento. Ao fundo, as montanhas. Nos
arredores, o mar. Estávamos no ponto mais alto daquele lado da ilha,
nenhuma casa subia mais alta que aquele nosso pequeno mirante
improvisado, eu me sentia o dono do mundo, do universo, o senhor dos
mares, céus e montanhas. O menino da ilha.
Ficamos em silêncio todo esse tempo, embasbacados pela beleza
daquele céu artístico, uma beleza que eu via todo dia, mas nunca deixava de
ficar maravilhado. Imaginava o que Arnaud sentia, então, já que ele nunca
tinha visto antes. Esperei ele falar algum “uau”, mas devem ter ficado
apenas em seus pensamentos.
Meu tronco estava levemente curvado para trás, meu rosto virado
para cima, e apoiava o peso do meu corpo com as mãos. Arnaud, por sua
vez, abraçava as pernas, que estavam dobradas exatamente como as minhas.
Nossos ombros ainda se encostavam. Ombro contra ombro, foi o máximo
de tempo que passei, até então, tocando-o. Procurei aproveitar aquele
momento ao máximo, fantasiando inúmeras possibilidades. O que será que
ele pensava daquele toque de ombros?
O sol se pôs e as estrelas surgiram com o negro do céu. Mal
podíamos ver um ao outro. O vento soprava frio, trazendo arrepios em meus
braços. Foi quando senti uma leve movimentação em minha perna, como se
uma formiga subisse ali. Olhei para o lado e vi que Arnaud ainda estava
concentrado na paisagem, observando as estrelas, pensando sobre milhões
de coisas que eu nunca seria capaz de adivinhar, mas sua mão, que não mais
abraçava a perna, agora se movimentava. Com as pontas dos dedos, ele
acariciava minha perna, na panturrilha, roçando levemente a sua pele contra
as pontas dos meus pelos. Mexia-os, os dedos, devagar, com ternura, com
cautela, como um explorador a desvendar territórios desconhecidos, um
aventureiro a conhecer seus limites. Aquele pequeno toque carregava tanto
significado e informações que fiquei atordoado. Os olhares, os sinais, a
espera que parecia sem fim, a conversa que teríamos na sexta-feira. Tudo
fazia sentido. O que era óbvio desde o começo apenas naquele momento
pude perceber: o que eu sentia por Arnaud era recíproco.
Era minha vez de ser o explorador. De desbravar terras nunca antes
vistas. Levei a minha mão à sua, que ainda estava em minha perna, e, com
as pontas dos meus dedos, acariciei o dorso da sua mão, fazendo um mapa
mental daquele relevo, um topógrafo avaliando a textura daquela pele,
tendões, veias, pelos. Senti ele estremecer ao meu lado, ou talvez fosse
apenas eu, nervoso, em pânico, meu coração retumbando numa altura que
provavelmente era ouvida no alto daquela montanha e provocaria
avalanches se houvesse neve. Ele parou de brincar com os pelos da minha
perna e voltou sua palma para cima, juntando-a com a minha. Mantinha a
cabeça erguida, os olhos fixos no horizonte, no breu onde as montanhas se
camuflavam de céu, nas estrelas, incontáveis, acima de nós, perguntava-me
onde sua cabeça estava, se ali, comigo, ao meu lado, com a mão que
começava a entrelaçar os dedos aos meus, ou nas montanhas invisíveis, na
imensidão do oceano, do planeta, da vastidão do espaço, das galáxias.
N
unca, em minha vida inteira, havia dormido tanto. Acordei quase ao
meio-dia, perdendo toda uma manhã de sol. Repeti, em meus sonhos,
a noite anterior, quando Arnaud acariciou, leve e brevemente, a
minha perna. Quando ficamos com as mãos entrelaçadas, sentindo um ao
outro, ouvindo o silêncio que tudo dizia, o barulho do vento, da noite.
Quando, imersos nas estrelas, viajamos entre as galáxias. Estava agitado,
animado, meu coração borbulhando cheio de sonhos e expectativas.
Desci as escadas e a casa estava silenciosa. Minha mãe só
trabalhava na loja à tarde, então naquele horário ela devia estar em casa.
Encontrei-a na sala, assistindo à televisão.
— Cadê todo mundo? — perguntei.
— Tô de folga — disse ela, animada. Parecia descansada. —
Margarida não vai almoçar. Bruno e Oliver foram embora essa manhã.
Pagaram em dinheiro, acredita? Saíram daqui com as malas bem cheias.
Devem ter feito a festa nas lojas da Ilha Grande. Não imaginava que eram
tão ricos. Ah, e Arnô voltou para o mar.
Tudo que ouvi foi a última frase. Meu chão caiu. Fiquei atônito,
estarrecido. Arnaud foi embora, pegou o seu barco e me largou, para
sempre, naquela ilha de merda. Deixou-me abandonado e ilhado.
Arrependi-me, na mesma hora, de ter ficado calado na noite anterior.
Deveria ter falado alguma coisa, deveria ter abraçado, beijado ele. Não fiz
nada, fiquei mudo, petrificado, fingindo que nada estava acontecendo, que
aquela informação não me afetava, como se não estivesse prestes a vomitar
meu coração naquele momento. Desperdicei uma oportunidade que nunca
aconteceria novamente, perdi a chance de fazer algo que eu esperava tanto.
Maldito seja. Droga, droga, droga.
Senti a bile subindo pelo esôfago e corri até o banheiro, vomitando
líquido. Queria vomitar Arnaud. Queria vomitar o bicho que ele implantara
no meu peito, que estava se contorcendo sem dó nem piedade.
Voltei para o meu quarto, onde fiquei no escuro, com a cortina
fechada, o resto do dia. Mal comi, apenas belisquei a comida, e minha mãe
achou que eu estava doente. Disse que eu devia ter pego algo no mato.
Certo momento, escutei um barulho na minha janela. Parecia
alguém jogando pedras. Quando fui para a varanda, quase cegado pelo sol,
Rebeca estava em pé na borda da piscina, de biquíni, com um punhado de
pedrinhas na mão.
— Tá doente?! — gritou.
Fiz que sim com a cabeça e voltei à minha cama.
A
h, a iminência do beijo! Aquela fração de segundos onde tudo é
premeditado e esperado, a distância que só encurta, a antecipação do
toque! Dizem que a digestão começa antes mesmo de colocarmos a
comida na boca, que, só com o olhar, o estômago já se prepara para o
trabalho. Sábios esses cientistas. Pois beijo é também expectativa,
esperança de desejo realizado, é satisfação de fome. E essa fração de
segundos cheia de ocitocina, cheia de desejo e atração, foi quase tão boa
quanto o tal famigerado beijo.
Mas palavras não parecem ser suficientes para explicar o que
aconteceu quando eu juntei os meus lábios aos de Arnaud. O que é
engraçado, vindo de um escritor. Em minhas mãos me faltam metáforas. E
nos dicionários não há sinônimos nem comparativos adequados. Nos livros
de romance contemporâneos eu não encontraria clichês o suficiente. Talvez
essa minha dificuldade de descrever aquele momento se deve ao fato de ter
sido algo que eu nunca experimentara antes. Era uma sensação nova, um
sentimento desconhecido. Deve ser essa a sensação de um recém-nascido ao
ver o mundo pela primeira vez, quando ele descobre que o que ele conhecia,
e onde vivia até então, aquele pequeno útero, não era tudo. Quando ele
descobre que havia um universo inteiro ali fora, novas cores, novos sons,
novos cheiros, coisas tão novas e diferentes que ele ainda não seria capaz de
descrevê-las.
Então foi assim que aconteceu, como se eu tivesse saído direto da
caverna de Platão, como se eu tivesse nascido de novo, ou tivesse sido
criado, ou como se o universo inteiro tivesse se formado naquele exato
instante. É isso mesmo, foi o big bang, bem no meio do meu peito, no meu
coração, a explosão inicial que deu origem a todo o universo. Senti as
estrelas, sóis e galáxias se expandirem, percorrerem minhas veias, e, num
arrepio, atingirem todas as minhas extremidades. Eu me sentia leve, parecia
que ia voar, e ali eu soube que, no momento da criação, não existia
gravidade. Mas Arnaud colocou sua mão, firme e pesada, na minha nuca e
me segurou para que eu não saísse voando dali.
Quando senti seus lábios tocando os meus, a mão na minha nuca, o
bigode roçando em meu nariz, a barba que pinicava meu rosto, ao mesmo
tempo em que aquela explosão acontecia em meu peito, me atentei àqueles
detalhes, não os deixaria escapar, pois deles eu não queria me esquecer.
Cada movimento fiz com precisão e calma, eu queria detalhes, queria
conhecimento, queria entender aquele pedaço de descoberta que se
denominava Arnaud. Queria saber onde ele gostava de ser tocado, e onde eu
gostava que ele me tocasse. Queria saber o sabor dos seus toques e o cheiro
dos seus gemidos, nessa loucura sinestésica que éramos nós dois. Queria
saber como eram seus suspiros, arrepios, como lhe tirar o fôlego. Queria
conhecer o prazer que ele poderia me dar.
O
tempo, ou eu, havia paralisado. Fiquei congelado na escada, um pé
em cada degrau. Meu coração também havia parado ao ouvir a voz da
minha mãe, que saíra da sua boca como o canto de um urubu
anunciando carcaça.
— Seu pai e eu queremos conversar com você.
— Agora? — perguntei, ainda de costas para ela, pronto para correr
até o refúgio do meu quarto.
— Agora. Na cozinha. — A cozinha era o local de reuniões
familiares tensas.
Meu pai já estava sentado à mesa, tamborilando a madeira com os
dedos. Minha mãe puxou uma cadeira para mim e sentou-se ao lado.
Eu estava desconfortável. Como se não bastasse o medo do assunto
que eles abordariam, sentia dor e receava estar sangrando. Além disso, tinha
certeza de que meu cheiro me denunciava: suor, sexo, saliva, Arnaud.
— Você se descontrolou... — ela começou a dizer. Quis erguer os
braços, me render à polícia da moral, admitir minha culpa. Sim, sou
culpado. Mea culpa! Prenda-me em nome da lei! Descontrolei-me mesmo,
entreguei meu corpo a um homem, um homem mais velho que eu, um
homem desconhecido, ele tirou minha roupa, lambeu meu corpo, me
machucou em um lugar delicado e proibido. — Com esses seus amigos.
Ouvi falar que tinha droga rolando solta na festa, Nico. Como pôde fazer
isso? Quase me matou do coração quando Rebeca nos ligou. Teu pai teve
que ficar acordado até tarde, e ainda incomodamos o pobre do seu Arnô
para ir te buscar.
Pobre de Arnaud? Pobre de mim!
— Eu sei que foi seu aniversário — meu pai começou a dizer. Olhei
para ele, surpreso, achei que, como sempre, ele só ficaria calado,
assentindo, enquanto minha mãe dava seu discurso inflamado. — Mas você
precisa ter controle de si mesmo. O estado em que você estava... Podia ter
acabado afogado no mar ou alguém ter tirado proveito de você. — Ele tinha
razão. Lembrei de quando caminhei, embriagado, sobre as pedras que
levavam à capela. Eu podia ter escorregado e acabado afogado naquele mar
escuro. Lembrei também da capela, meu corpo sem controle, a textura da
língua de Américo...
— E aquele Américo... — minha mãe continuou, como se tivesse
lido minha mente. Ouvi meu pai se remexer desconfortavelmente do outro
lado da mesa. Mas não era possível que eles soubessem o que tinha
acontecido naquela capela. — Achamos melhor você não andar mais com
ele. As pessoas andam falando algumas coisas sobre ele...
— O quê? — perguntei, franzindo o cenho. Meus pais sempre
gostaram dele. Minha mãe sempre dizia como era bom ter uma pessoa
bonita na nossa casa, para variar, quando ele nos visitava.
Ela desviou o olhar, fingiu estar olhando alguma coisa na barra de
seu vestido, e meu pai pigarreou e se levantou.
— Não importa. Espero que você tenha nos escutado — falou meu
pai, e assim eu sabia que o tempo da conversa havia se esgotado. Não havia
mais nada a se falar. Aprendi, ao longo de todos esses anos, que não
adiantaria insistir no assunto, eles não voltariam a falar sobre isso. O que
meus pais tinham intenção de falar, eles falavam. Será que todo mundo já
sabia que Américo era traficante? Isso podia ser perigoso.
Levantei-me devagar, tinha medo do que estava escorrendo em
minha bunda. Era sangue? Meu deus, eu estava morrendo lentamente de
hemorragia? E se meus pais vissem? A dor já havia passado, apenas restava
um pequeno incômodo. Olhei para o assento quando levantei, confirmando
que não havia nada sujo ali. Aliviado, subi as escadas correndo e me
tranquei no banheiro.
S
implesmente não conseguia acreditar que o tempo havia passado sem
eu perceber. O tempo é realmente um filho-da-puta miserável: quando
queremos que ele passe rápido, ele se arrasta, nos tortura, nos deixa
sem dormir, contando os segundos que parecem segurar os ponteiros do
relógio, numa espera que parece sem fim; quando precisamos de mais
tempo, ele desaparece num estalo. É essa a relatividade do tempo que os
físicos tanto falam? Cientistas devem ser pessoas realmente muito
apaixonadas.
E agora, diante daqueles míseros três dias que me restavam, outro
dilema surgiu na minha cabeça (quantos dilemas!): eu deveria aproveitar ao
máximo esses três dias, correndo o risco de me apegar a Arnaud e tornar
sua partida extremamente dolorosa, ou arrancar logo o curativo de uma só
vez, cortar meu contato com ele, esquecê-lo logo, para evitar prolongar
aquela dor? Pergunta que eu sequer tinha tempo para responder.
Escutei um barulho de água se agitando ao nosso lado e, quando
olhei, vi Arnaud se aproximando de nós, colocando-se entre minhas pernas
que balançavam sobre a piscina. Através da água, vi a sua sunga verde,
aquela mesma que eu tinha cuidadosamente escolhido para ele, da cor dos
seus olhos, que estavam escondidos atrás dos óculos, mas era como se eu
pudesse vê-los. Seu corpo estava avermelhado, e imaginei que devia estar
quente como na noite passada, quando ele estava por cima do meu corpo,
me esquentando como o sol. Rapidamente, antes que o volume crescente da
minha sunga se tornasse perceptível, entrei na piscina e me juntei a ele.
— Vocês conhecem a Ilha da Borracha? — perguntou,
aproximando-se ainda mais de mim. — Ouvi uns velejadores falando dela.
Ouvi Rebeca dar uma risadinha ao meu lado e ruborizei. Não
consegui responder, não queria ter que explicar o que aquela ilha
representava. Além disso, estava achando engraçado sua ingenuidade.
— O que foi? Por que estão rindo? — perguntou Arnaud.
Por baixo da água, senti sua mão tocar minhas costas e ele abraçar
minha cintura. Eu estava cansado de agitar as pernas, para me manter
boiando, então me agarrei a ele, como uma âncora, segurei em seu ombro,
como amigos que se apoiam um ao outro, cansados, mas que na verdade,
por debaixo da água, eram amantes secretos. Muito embora eu não soubesse
se Rebeca estava vendo o nosso toque submerso, a sua mão sobre minha
cintura, aquela era a primeira vez que eu tocava Arnaud em público (não
contando aquela vez na mesa de jantar), e aquilo deixou meu coração
acelerado, nervoso, excitado. Quis virar-me para ele, jogar meus braços
sobre seus ombros e beijá-lo, agarrando seu quadril com minhas pernas.
Mas não precisei, aquele toque discreto, quase imperceptível, submerso, era
tão íntimo — e bom — quanto um beijo, quanto sexo. Era o prazer da
intimidade, do proibido, do secreto. Seu braço rente às minhas costas, sua
mão segurando minha cintura com força. Como se ele dissesse estou aqui,
você está aí, não vou te soltar e você não vai embora. Não, eu não ia
embora, não queria, não queria que ele fosse embora, não queria que o
nosso tempo passasse. Queria ficar ali para sempre, segurando seu ombro,
sentindo seus músculos rígidos, enquanto ele segurava minha cintura, perto
da minha bunda, seu dedo mindinho dentro da minha sunga.
— Só vendo pra saber. É uma ilha maravilhosa, deveríamos ir lá —
falou Rebeca, e eu quase engasguei.
Nunca tinha ido na Ilha da Borracha, mas conhecia sua reputação.
Não era seu nome oficial (que provavelmente era o nome de algum branco
colonizador genocida), mas ela era conhecida assim devido à grande
quantidade de camisinhas que se podia encontrar na areia de suas praias.
Era a nossa ilha-motel. Onde os amantes proibidos iam para namorar, ou
transar. Minúscula e perdida no meio do mar, ela estava fora dos roteiros
turísticos, e até da maioria dos mapas, sendo acessível apenas por quem
tinha barco e conhecia a região.
— Legal. Vamos depois do almoço? — disse Arnaud, descendo sua
mão e alcançando minha bunda. Sua mão era tão grande, e eu pequeno, que
ocupava ela inteira. Quando ele apertou, seus dedos grossos e firmes
adentraram o espaço entre minhas nádegas, enfiando o tecido da sunga lá
dentro. Foi só um aperto, bem rápido, e ele rapidamente soltou e se afastou
de mim. Quase agarrei seu braço e gritei, implorando, suplicando, para que
ele voltasse e continuasse o que estava fazendo, mas ele saiu da piscina e
foi para seu quarto.
— Tá gostando de brincar com o perigo mesmo, né? Tá quase pior
que eu — exclamou Rebeca, quando Arnaud saiu. — E se seus pais vissem,
tá louco?
Aquilo me deixou preocupado, pois não sabia como meus pais
reagiriam se soubessem que eu estava com um homem, ou, pior, um homem
mais velho, hóspede da pousada. Meu pai provavelmente ficaria sentado no
canto da mesa, julgando-me com seu olhar calado, sua cabeça balançando
em desaprovação, enquanto minha mãe berrava e soltava um discurso que
duraria três dias. E Arnaud, coitado, seria expulso da pousada? Em que
situação eu o havia metido! Sentir-se atraído por homens era assim, afinal?
Um mar de dúvidas, medo, dor, vergonha, paranoias e constante
necessidade de discrição? Eu me escondia com Elisa, mas tinha certeza que
se levasse ela para a minha piscina e ali nos beijássemos, ninguém se
incomodaria ou perguntaria se eu estava ficando louco. Era difícil entender
como dois homens juntos era uma coisa tão não-natural para as outras
pessoas. Apesar de tudo ser uma novidade para mim, aquilo havia evoluído
de uma maneira tão natural, que era como se, aquele tempo todo, no fundo,
eu sempre soubesse. Como se meu organismo estivesse secretamente
esperando a pessoa certa para me dizer: você gosta disso também. Que
ingênuo eu fui aqueles anos todos, enganado pelo próprio corpo!
— Você vai com a gente? — perguntei, já com a paranoia tomando
conta da minha cabeça: não queria que me vissem, sozinho, entrando em
um barco com Arnaud e indo em direção à Ilha da Borracha.
— Vou, mas não sozinha, não quero segurar vela. — Prendi a
respiração. Temia que ela chamasse os meninos. Não queria vê-los, não
agora, e especialmente não Américo. A memória da língua seca dele dentro
da minha boca ainda era fresca. — Vou chamar Inara.
— Quem é Inara? — perguntei, aliviado por ela não ter sugerido
nossos amigos.
— A menina que conheci na festa. Lembra dela?
— Vagamente — falei, enquanto na minha mente passava as
imagens dela colocando a mão por dentro da blusa daquela menina negra,
de cabelos curtos.
— Falando nisso, o que aconteceu na capela? Américo não deixou
ninguém ir pra lá, disse que tinha uma surpresa pra tu. Vi ele te levando, até
fiquei preocupada, porque vocês estavam doidões, e ia lá ver se tava tudo
bem. Mas Augusto não deixou, disse que Américo tinha algo pra falar pra
tu. O que rolou?
— Nada — respondi. — Assim que cheguei lá, fiquei tonto e passei
mal.
Rebeca estreitou os olhos, me avaliando.
— Sei — disse.
essa vez ele não me assistiu comer a banana, talvez por estar
D
ocupado com a navegação, compelido pela presença das meninas ou então
não mais precisando alimentar seus desejos e fantasias com a imagem de
um objeto fálico em minha boca. Comi a fruta adocicada, uma de minhas
favoritas, em silêncio, olhando para o piso do barco, tentando fazer com que
o mundo parasse de girar e agradecido por ele não ter feito nenhuma piada
por eu estar passando mal. Quando terminei de comer, já havíamos deixado
a cidade, agora o rio atravessava plantações, fazendas e bosques. Estava
melhor, não sei se por ter comido, por ter me acostumado ao balançar da
embarcação ou por finalmente me encontrar fora da cidade e longe dos
olhares curiosos. Levei meus olhos até Arnaud, que, quando viu que eu o
observava, sorriu e fez um rápido gesto com a mão, me chamando. Livre do
enjoo, me levantei e me aproximei dele, que, em pé na popa, controlava o
leme com o olhar fixo no rio à nossa frente. Não falei nada, não quis
interromper o que quer que ele estivesse pensando, o vinco profundo entre
suas sobrancelhas franzidas denunciava sua concentração, então me limitei
a ficar parado ao seu lado, desejando apenas a sua proximidade.
Achei que ele nem ia perceber minha presença, focado demais em
sua função como capitão daquele pequeno barco, um exímio trabalhador
empenhado em seu serviço, mas ele, mesmo sem desviar o olhar um
milímetro sequer, colocou seu braço em torno da minha cintura e me
segurou perto de si, segurando o leme com a outra mão.
Aquilo me arrepiou. Arnaud me segurava firmemente, me fazendo
sentir a força do seu braço, prendendo meu corpo ao seu, me dando mais
estabilidade em relação ao balanço das ondas. Era como se fosse uma
âncora humana, da mesma forma como fizera mais cedo, na piscina. Ou eu
era a âncora dele? Levantei a cabeça para olhá-lo e ele abaixou a dele,
ambos estávamos de óculos escuros, mas podíamos enxergar por entre as
lentes. Vi os finos pés de galinha se formarem em torno dos olhos verde-
escuros, profundos como fendas abissais, da cor do banzeiro, o prelúdio
daquele sorriso que era capaz de me derrubar como uma voragem. E logo
veio, quase instantaneamente depois dos olhos, os músculos das bochechas
queimadas pelo sol se contraindo, os cantos da boca se curvando, os dentes
brancos aparecendo, o sorriso que parecia mágico, um encanto de uma
sereia, tão poderoso que fazia homens se jogarem no mar e se afogarem. Eu
me jogaria no mar por aquele sorriso.
Matutei sobre aquele gesto por um tempo. Ele havia me chamado
para perto de si apenas porque eu estava visivelmente melhor do enjoo ou
porque havíamos deixado a cidade, ficando longe dos possíveis olhares que
tanto me preocuparam? Eu tentava atribuir significado aos gestos de
Arnaud, talvez induzido pela sua escassez de palavras, como se tudo fosse
calculado, como se tudo ele observasse e fizesse as coisas certas nos
momentos certos, para que nada precisasse ser dito. Deixei-me apertar
naquele abraço, no calor do seu corpo que me dizia muito mais do que as
palavras poderiam dizer. Aquele braço em torno de minha cintura me dizia
que nenhum daqueles questionamentos importavam. Que a razão para
aquele gesto, para aquele abraço e aquele beijo, não era que havíamos nos
afastado da cidade ou que meu enjoo havia passado, e sim que ele
simplesmente me queria ali ao seu lado. E assim meus pensamentos
calaram, minhas paranoias cessaram, e eu apenas aceitei que o que eu
queria era também estar ali ao lado dele, não importassem as circunstâncias.
A água batia em meu peito e era tão transparente que podia ver
meus pés na areia clara ao fundo, junto a peixes pequenos e corais
coloridos. Puxei Arnaud para perto de mim e o beijei, sentindo o gosto que
me dava vontade de mais. Ele não tinha gosto de mar, de praia, era o
contrário. Para sempre, a partir daquele momento, a praia teria gosto de
Arnaud.
Além daquele sorriso que parecia nunca deixar seu rosto e daqueles
olhos que me faziam perder a noção do tempo-espaço, do seu corpo
molhado de suor e mar colado ao meu, dos seus pelos e pele que se
misturavam aos meus, do sabor do seu beijo que tinha surrupiado o sabor
dos trópicos, da voz que saía da sua boca em doses homeopáticas e me
encantava como magia, havia o vazio, o nada ao nosso redor, apenas a
imensidão azul, do céu e do mar, nos cercando, as ilhas à distância quase
imperceptíveis, e ali eu sentia como se estivéssemos sozinhos no universo,
perdidos entre as estrelas e buracos negros, eu e Arnaud, num abraço que
era o próprio big bang. Tínhamos pouco tempo, mas o tempo ali, no meio
do mar ao lado daquele barquinho branco a vela nas águas claras e calmas
do arquipélago, parecia parado. E eu não tinha como reclamar.
Olhei para Rebeca, que estava em pé no convés ao lado de Inara,
com seus biquínis e prontas para pularem na água e se juntarem a nós. Ela
olhou para mim e sorrimos, os sorrisos mais largos e reais que jamais
havíamos trocado. E eu soube que aquilo, sim, era felicidade.
15 ✹ A ILHA DA
BORRACHA
G
raças ao GPS, encontramos a Ilha da Borracha com pouca
dificuldade. Devido ao seu tamanho reduzido, podia passar
despercebida naquela paisagem de tons pastéis que refletia com
intensidade o brilho do sol, ofuscando o mais atento dos marujos. Arnaud
ancorou o barco a alguns metros da areia e caminhamos até a ilha com o
mar na altura do peito, o sol queimando as cabeças, o vento soprando
suavemente e o cheiro de sal e algas misturado com maresia. Nosso capitão,
por ser o mais alto dos quatro, carregou nossas bolsas, com comida, roupas,
água e celulares. A água era calma, quase que completamente parada,
morna e transparente, com os peixes coloridos nadando ao nosso redor.
A ilha era tão pequena que parecia ser possível contorná-la numa
caminhada lenta de meia hora. No centro havia uma pequena mata,
composta majoritariamente por palmeiras e coqueiros, tão diminuta e
esparsa que se podia ver o outro lado. Caminhei atrás dele, observando ele
carregar nossas coisas. Observei suas costas largas, avermelhadas e
queimadas pelo sol, e o suor que por ali escorria. Desejei que o nível do mar
fosse mais baixo, pela primeira vez me tornando um ativista ambiental
contra o aquecimento global, para que ali fosse possível ver a bunda de
Arnaud, perfeitamente acomodada na sunga da cor dos seus olhos. Quando
nos aproximamos da areia e a água ficou rasa, depois de ter apreciado bem
a vista, da paisagem e dele, passei à sua frente, para que ele me apreciasse,
nunca deixando de olhar para trás, para encontrar seu sorriso e seu olhar
que não saía de mim.
Desviando meu olhar de Arnaud, a vista dali era deslumbrante, o
mar azul e brilhante a se perder de vista, sem sinal de civilização, apenas o
reino dos seres marinhos. Ao longe, no horizonte, se distinguia uma
pequena mancha azulada: a Ilha Grande. O silêncio ali era estarrecedor, pois
nem os pássaros haviam encontrado aquele pequeno paraíso. Além das
folhas que se agitavam suavemente com o vento fraco, tudo o que ouvíamos
eram nossos passos e vozes, que saíam de nossas bocas culpadas pelo crime
de perturbar aquela paz. Nem o mar ousava fazer ondas para quebrar aquele
silêncio.
A areia fina e branca da ilha estava pegando fogo, escaldante,
afinal estava há não sei quantas horas fervendo sob o sol. Saídos da água,
com os pés ainda molhados, corremos até a sombra das árvores, quase
pulando, com o chão nos queimando feito brasa. Não vi sinal de camisinhas
na areia, e pensei que a ilha deveria se chamar Ilha da Brasa.
— Vamos dar uma volta por aí — disse Rebeca, calçando seus
chinelos e puxando Inara pela mão, quando colocamos nossas coisas na
sombra de uma palmeira. E então acrescentou, com seu sorriso maroto de
quem apronta: — quando estivermos voltando, dou uma tossida pra vocês
se vestirem.
Quis matá-la, pular sobre seu pescoço, degolá-la e enterrá-la na
areia, logo depois me enterrando também, pois ela havia acabado de me
matar de vergonha.
Quando as duas deram as costas para nós e saíram caminhando, ouvi
Inara falar:
— Você matou o menino de vergonha. — Estavam longe, mas o
vento trouxe o som até mim.
— Um empurrãozinho não faz mal a ninguém — retrucou Rebeca, e
eu morri ainda mais de vergonha.
Olhei para Arnaud e ele estava sentado sobre a canga, secando-se
com o calor, quase deitado, anotando alguma coisa no seu caderninho, o
diário de viagem. A água do mar ainda escorria em seu corpo, que, aos
meus olhos, era perfeitamente esculpido. Observei-o por uns instantes. O
cabelo, que parecia ainda mais claro devido aos dias de exposição ao sol,
estava úmido e jogado para trás. Da barba desgrenhada pingou uma gota
d’água, que escorreu pelo sulco entre os músculos do peito e se perdeu
entre os pelos finos e molhados do abdome. Parecia não ter escutado o que
Rebeca tinha falado, ou então não dera atenção, pois ele não precisava de
um empurrãozinho. Ele olhou para mim e sorriu. A confiança que exalava
do seu olhar mostrava que não precisava de nenhum incentivo. Sabia
demais o que queria fazer. Eu invejava aquela sua segurança, pois em mim,
em cada passo, em cada respiração, em cada célula, havia um vacilo, uma
dúvida, uma hesitação. Cada ação minha era acompanhada de uma
pergunta, de um “e se?” ou “será?” ou “deveria?”, e, mesmo ali, alvo do seu
sorriso, influenciado por sua segurança que há não muito tempo havia me
incentivado a pular do barco em seus braços sem pestanejar, eu me
perguntava se estava fazendo a coisa certa. Perguntava-me se me entregar
daquela forma a Arnaud era um pulo alto demais em uma piscina rasa
demais. Eu sobreviveria àquela queda?
Ele havia deixado um espaço na canga para mim e lá eu me sentei,
encostando a lateral do meu corpo no dele.
— Agora eu te transformo num porquinho da índia — disse ele,
dando em seguida uma gargalhada um pouco contida.
— Do que você está falando? — perguntei, rindo com ele. Não
havia entendido o que ele quis dizer com aquilo, mas achei engraçado ele
ter falado uma bobagem e dado uma gargalhada sozinho. Eu estava surpreso
com aquela espontaneidade que até então não conhecia.
— Mar de Monstros — respondeu, comprimindo os lábios e
franzindo o cenho, como se aquela fosse uma referência óbvia. — Percy
Jackson.
Continuei rindo, ainda sem entender o que um porquinho da índia
tinha a ver com aquilo, mas sem querer estragar a candura do momento.
Nunca havia lido Percy Jackson, mas sabia que havia um personagem com
o nome igual ao meu. Então falei, em tom de brincadeira, querendo
estimular aquele seu momento raro de descontração, para estender o seu
sorriso:
— Eu poderia achar que você só se interessou por mim porque
tenho o nome de um personagem que você gosta.
— N’importe quoi! — exclamou, e voltou a gargalhar.
— O que isso quer dizer? — perguntei, após assistir, admirado,
àquele riso contagiante que tomava conta do seu corpo inteiro: o rosto que
se transformava, os olhos quase fechados, as pequenas rugas aparecendo no
canto dos olhos, as covinhas em suas bochechas, a boca aberta de ponta a
ponta, mostrando os dentes, o corpo se agitando, e eu tinha certeza que
aquela gargalhada produzia ondas que chegavam até mim e me faziam
sorrir também.
— N’importe quoi? Bobagem. Quando te vi pela primeira vez,
você não tinha um nome para eu me interessar ou admirar — disse, e eu
lembrei do nome Sotaford-Dortnellas que havia se fixado em minha mente
naquele dia. Qual imagem será que Arnaud havia fixado de mim? — E eu
me apaixonei por você, não por seu nome.
Eu me apaixonei por você. Aquela foi a única frase que ficou
registrada na minha cabeça naquele momento. Naqueles segundos depois
que aquelas palavras foram pronunciadas em alto e bom som, pensamentos
se retorciam num turbilhão em minha mente. Expectativas, possibilidades,
questionamentos. A naturalidade com que ele havia pronunciado aquelas
palavras que eu tanto havia demorado para apenas entendê-las, me
desconcertou. Ele havia resumido, em uma pequena frase, dita assim, como
quem não quer nada, como quem observa que o sol está quente, que o mar
está azul, todos os sentimentos que se reviravam dentro de mim no mais
completo e absoluto frenesi. E assim ele apaziguara aquela loucura,
organizara os meus sentimentos, que passaram a ter nome, classificação,
explicação. Aquela emoção que eu sentia, as pernas trêmulas, o coração que
parecia ora fraquejar, ora bater tão forte que às vezes parecia querer sair
pela boca, as noites ansiosas, as dúvidas, as inseguranças, as paranoias, o
desejo que era cada vez maior, a felicidade tão imensa que até parecia não
merecida, tudo isso tinha nome. Era a força de uma paixão recíproca. Eu era
um biólogo que havia acabado de descobrir um novo organismo, tinha lhe
dado nome, descoberto sua espécie, gênero, família, ordem, classe, filo e
reino. E essa espécie se chamava Nico e Arnaud.
Vi em seu sorriso que ele havia percebido. Percebeu que alguma
coisa mudara dentro de mim ao pronunciar aquelas palavras. Como se
aquela confusão e caos que haviam me preenchido aquele tempo todo
fossem visíveis. Como se aquela organização dentro do meu corpo tivesse
sido testemunhada por seus olhos afiados. A sua declaração de amor havia
tido o efeito de um feitiço selado, como se o que até agora parecia um
sonho, se tornara real e tangível. Como se até aquele momento, antes de ele
falar explicitamente que estava, sim, apaixonado por mim, eu não
conseguisse acreditar. Mesmo depois de seus sinais, gestos, sorrisos, toques,
beijos, mordidas. E ali, deitado naquela canga sob a sombra de um
coqueiro, ele viu, em minha expressão corporal, ou dentro da minha alma,
que aquelas dúvidas, todas elas, haviam se dissipado. Ele era, afinal, um
feiticeiro.
Ele respondeu àquela minha reviravolta me puxando pelo braço,
colocando-me sobre ele, sentando-me sobre suas pernas, exatamente como
Elisa fazia comigo. Apoiei minhas mãos em seu peito nu, suado, quente, os
pelos finos colados na pele avermelhada que revestia seus músculos.
Embaixo de mim, onde eu havia sentado, em sua sunga, senti o seu volume
crescer.
Olhei em seus olhos, eu e eles éramos uma só intensidade. Forças
que se chocavam. Olhares que pareciam pororoca, a devastação das ondas
fluviais contra a impetuosidade das marés oceânicas. E aquele olhar, aquela
energia que ali circulou naqueles breves instantes antes de nos unirmos em
um beijo, era o recuo do mar prenunciando o tsunami que estava por chegar.
— Eu me apaixonei por você — falei, mas não repetindo suas
palavras, pois aquelas eram minhas. Saíram de mim, numa necessidade
pungente de pronunciá-las e ouvi-las com minha própria voz, como uma
confirmação final, uma oficialização em cartório perante um juiz de
suprema instância. Aquela paixão era real, e não uma viagem mirabolante
dos meus neurônios. — Eu... — repeti, em meio aos beijos — me apaixonei
por você.
À
quela distância eu não sabia dizer se o grito era de Rebeca ou Inara.
Vestidos com nossas sungas, eu e Arnaud corremos o mais rápido que
pudemos, adentrando a pequena mata que nos separava do outro lado
da ilha. Ele, por ter as pernas mais longas, correu à minha frente. No
caminho, enquanto escutava o grito, que se tornara “Socorro! Nico!
Arnaud! Rápido!”, imaginei todos os cenários possíveis que poderiam ter
acontecido. Elas foram atacadas por um tubarão, uma embarcação pirata
atracou ali perto e atacou as duas, uma delas foi levada por um milionário
tarado que estava passeando por ali na sua lancha, ou foi levada por uma
correnteza perigosa, ou tropeçou e caiu com a cabeça em cima de uma
pedra, sangrando até a morte, ou algum bicho saiu de dentro da mata, uma
aranha venenosa, ou, pior, uma cobra, picou uma das duas, ou as duas, e
elas estavam morrendo lentamente, meu deus, teríamos tempo de colocá-las
no barco e levá-las até o hospital? Eu teria que ligar para a avó de Rebeca,
para meus pais, para a guarda costeira? E se uma delas morresse, eu teria
que falar para a família? Como eu explicaria o que estávamos fazendo na
Ilha da Borracha?
— Qu'est-ce qui se passe? — Ouvi ele perguntar, afobado e sem
fôlego, sem perceber que estava falando em francês. E então se corrigiu: —
O que aconteceu?!
Quando saí da mata, o pé machucado por ter pisado em sabe-se lá
o quê e o rosto arranhado por galhos, dei de cara com Inara chorando,
ajoelhada na areia, ao lado de Rebeca, que estava deitada com os olhos
fechados. Não consigo nem explicar o pavor que tomou conta de mim ao
ver aquela cena, pois ela parecia morta.
As duas estavam molhadas, e podia ver um rastro na areia que ia
das pernas de Rebeca até o mar, como se ela tivesse sido arrastada por
Inara. De sua boca pendia um líquido amarelado. Vômito.
Estávamos nadando e de repente Rebeca começou a gritar —
—
respondeu Inara, soluçando. — Ela não me respondia, começou a passar
mal e desmaiou, aí arrastei ela até aqui!
Eu sabia o que era aquilo, já tinha visto acontecer algumas vezes
ali na região. Ela havia sido queimada por uma água-viva minúscula, que
era quase invisível, e estava tendo uma reação alérgica. Ela precisava ser
levada ao hospital com urgência, antes que parasse de respirar. Olhei para
Arnaud com os olhos arregalados, em pânico, sem conseguir agir, nem dizer
nada. Por sorte, ele agiu, viu nos meus olhos que a situação era grave,
rapidamente se curvou, pegou Rebeca nos braços e corremos para o barco.
Eu e Inara pegamos nossas coisas, sem nos importar se estávamos
molhando as bolsas ou não.
O
marido de Arnaud havia voltado para me assombrar, como havia feito
naquela noite do acampamento, sua memória me atormentando. E,
assim como naquela outra vez, isso me fez perceber que Arnaud
havia tido uma vida de verdade, seu coração já pertencera, realmente, a
alguém, um alguém que ainda fazia parte do seu coração, um amor
verdadeiro que havia sido tirado dele e que jamais poderia ser substituído.
Enquanto isso, eu me esforçava para agradá-lo e impressioná-lo, quase que
mendigando por seu amor, sem nem sequer entender o motivo para estar
fazendo isso. Eu não passava de uma mera paixonite de verão. Como eu
poderia disputar com um amor daquela dimensão? Guardei o celular e o
caderno de volta na bolsa e resolvi não tocar novamente no assunto.
Ele estava na varanda, observando a rua lá embaixo, a algazarra de
veículos que subia até o nosso andar. Abracei-o por trás, meu rosto
encostado nas suas costas nuas.
— O que aconteceu? — ele perguntou, ao virar-se e olhar para o
meu rosto. Eu odiava a minha própria transparência.
— Por que você acha que aconteceu algo? — perguntei, tentando
fingir que estava tudo bem.
— Você tá com essa cara de quem é a pessoa mais triste do mundo
— disse, sorrindo, aquele sorriso que me acalmava, colocando a mão em
meu rosto.
— Talvez eu seja. Só temos mais dois dias — falei, olhando para
baixo, não ousava olhar nos seus olhos, não queria ser hipnotizado.
Houve um momento de silêncio entre nós, onde só se ouvia o
barulho do vento e dos carros lá embaixo, na rua. Achei que ele ia falar
alguma coisa misteriosa, enigmática e confiante sobre aproveitar o tempo
que temos ou que os dias não importavam, pois o que valia era a
intensidade que existia no nosso relacionamento. Mas o que ele se resumiu
a falar foi:
— Não quero ir. — E mergulhou seu rosto em meu cabelo.
Meu coração amoleceu, ele sabia usar as palavras certas para me
conquistar. Uma coisa esperada de desbravadores de oceanos. Exploradores
e colonizadores de corações. Tive uma pontada de esperança, como se
houvesse uma chance de Arnaud ficar ali comigo, para sempre, naquela ilha
paradisíaca, que seria um paraíso de verdade, como se antes nunca tivesse
sido, mas a esperança passou num segundo, quando lembrei do celular dele,
da foto, do seu marido morto, que ainda estava em seu coração, exigindo-
lhe um último ato de amor, a promessa de atravessar o mar, aquela
promessa fúnebre que o levara até mim e o faria partir.
— Você tem que ir — falei, afastando-me dele. — Tem uma
promessa a cumprir.
— Posso adiar. — Lá estava novamente aquele vinco entre suas
sobrancelhas. Ele falava sério, parecia que já havia pensado sobre isso antes
e realmente considerava a opção. — Já adiei por anos.
— Os ventos vão mudar daqui a dez dias, depois disso vai ser
impossível seguir o percurso — sentenciei. Ele já devia saber disso. Todo
mundo sabia, especialmente os velejadores. Havia uma janela de tempo em
que eles podiam ficar parados ali, aproveitando que os ventos estavam
fracos. Dali a alguns dias os ventos voltariam a ficar fortes, mas, com a
mudança das estações, em menos de duas semanas, a direção dos ventos
mudaria e o restante da travessia poderia ficar mais difícil e bem mais
demorado.
— Então temos dez dias.
Arnaud voltou com uma criança nos braços, de cerca de quatro anos,
com cabelinhos encaracolados presos acima da cabeça com uma fita
amarela. Entraram pela porta que dava acesso à piscina, os dois
gargalhando, apesar de estarem ensopados pela chuva e tremendo de frio,
como se rissem da piada mais engraçada do mundo. Onde ele tinha
arranjado aquela criança?
Atrás deles, dois adultos, em seus quarenta anos, entraram
carregando malas, pingando água no piso. Os novos hóspedes que meu pai
havia falado.
Arnaud tentou entregar a criança aos pais, mas a menina se segurou
no pescoço dele, para não se deixar ser levada. Todos riram e fiquei
encantado em como as pessoas eram facilmente conquistadas por Arnaud,
até crianças que mal sabiam falar.
— Deixe o moço ir buscar as coisas dele, Ysla! — exclamou a mãe
da menina, desvencilhando-a dos braços de Arnaud, que rapidamente saiu
pela porta e correu até a pousada para buscar seus pertences.
Apresentei-me à família e os ajudei a se instalarem no quarto do
meu irmão, logo após se secarem.
— Uma pena que chegaram aqui logo durante a tempestade! Com
sorte, ela passa logo — falei, tranquilizando-os.
Imprimi minha história para Margarida ler e desci as escadas até a
sala, onde encontrei Arnaud tirando a camisa e enxugando-se com uma
toalha. Meu pai estava presente, então tentei, o máximo que pude, não
olhar.
— Tenho más notícias — disse meu pai, colocando o martelo de
lado. — A dona da casa não está aqui e eu sou um péssimo cozinheiro.
— Pode deixar comigo — rebateu Arnaud. Seu braço erguido e
dobrado esfregava a toalha nos cabelos, que eram uma confusão que mais
parecia um mar ressacado. O desgraçado sorria com aquele sorriso
galanteador e eu quase quis tomar a toalha de suas mãos e enxugá-lo eu
mesmo, passando a mão sobre seus bíceps, axilas, enxugando os pelos do
peito e descendo, descendo... — Sei a receita parfaite para esse dia de
chuva.
A
rnaud deve ter percebido o quanto eu empalideci vendo as imagens da
loja destruída da minha mãe, pois na hora ele se colocou na frente da
TV, bloqueando a visão, e segurou as minhas mãos trêmulas e
geladas. As dele estavam firmes e quentes. Aquele seu toque me puxou de
volta à realidade, pois na mente eu já perambulava em cenários de tragédia.
Lembrava da história que Arnaud havia me contado, e que tanto me
impressionara, sobre seus pais mortos, sobre como ele ficara desolado e
sozinho no mundo. Imaginei como eu ficaria sem a minha mãe, como eu e
meu pai ficaríamos. Ela era rígida, dura, às vezes cruel, mas era a alma
daquela casa. Ela nos colocava nos eixos, ela que tinha o domínio da
palavra. Minha mãe era a força que nos unia, que fazia com que fôssemos
uma família, que nossa casa fosse um lar. O que seria de mim? O que seria
de Arnaud? Ele estava bem ali na minha frente, me segurando, olhando em
meus olhos, me acalmando. Quando ele falou que estava tudo bem, eu
acreditei.
— Os telefones ainda não voltaram — exclamou meu pai, que se
juntara a nós, na sala, parecendo prestes a ter um infarto, enquanto tentava,
pela milésima vez, ligar para a esposa.
— Vamos até lá. Ela deve estar bem — falou Arnaud, calmo, como
se ele tivesse controle sobre toda a situação. Colocou a mão sobre o ombro
do meu pai, que pareceu se tranquilizar imediatamente. Era esse o efeito
que Arnaud tinha nas pessoas.
O telhado da garagem havia sido entortado pelo vento, mas a
caminhonete estava bem, apenas coberta por folhas. Margarida e o casal se
ofereceram para verificar a situação da pousada e saímos eu, meu pai e
Arnaud. Como a carroceria do veículo estava molhada, fomos todos dentro
da cabine, apertados, meu pai dirigindo, minha coxa completamente colada
à de Arnaud, ombro contra ombro, meu pé encostado no dele.
Demos uma passada rápida na casa ao lado para verificar se estava
tudo bem com Rebeca e dona Kazuko. Estavam, apesar do susto. A casa
também estava inteira, apenas algumas telhas foram arrancadas, e meu pai
prometera passar lá mais tarde para ajeitar. Rebeca se ofereceu para ir com
a gente, e, devido à falta de espaço, eu tive que ir na carroceria. Não queria,
é claro, preferia ir no aperto, aconchegado pelo corpo de Arnaud, mas fui
obrigado por meu pai a ceder o espaço para a mocinha.
Apesar de ainda estar um pouco frio e úmido, as nuvens já haviam
deixado o céu, que estava completamente azul. Se não fosse pelo caminho
esburacado cheio de lama e pelos galhos de árvore caídos no meio da rua,
seria impossível dizer que uma tempestade havia acabado de passar por ali.
O
maior estrago da tempestade havia sido na agricultura. O vento e a
chuva fortes varreram as plantações, destruindo a colheita dos
pequenos agricultores que viviam de subsistência. Naquele mês não
iríamos encontrar as frutas e vegetais frescos locais, apenas os importados
do continente, bem mais caros. Na minha casa não foi diferente, o pomar
que meu pai havia criado com tanto esmero havia virado lama. O pé de
limão siciliano foi o único que resistiu, mas estava um pouco despedaçado,
o tomateiro esmagado, as ervas e hortaliças todas destruídas.
Aquele havia sido um dia nostálgico, cheio de memórias. No
telhado da casa de dona Kazuko, enquanto ajudava meu pai a ajeitar as
telhas, lembrei da noite que eu passara ali depois do verão que eu havia
conhecido Rebeca. Era tão jovem que sequer tenho certeza se realmente
lembro daquilo ou se foi uma lembrança resgatada pelos meus pais,
implantada em minha cabeça com seus relatos. De tanto ter me afeiçoado
àquela garotinha que passara o verão na casa ao lado, vindo em minha casa
todas as manhãs e tardes para brincar comigo na piscina e correr no
gramado, não aceitei a partida dela quando se findou aquela estação.
Quando me disseram que no dia seguinte Rebeca não mais retornaria, fugi
de casa à noite e subi na casa da idosa, sei lá como, e ali fiquei a madrugada
inteira, esperando Rebeca aparecer, até ser encontrado na manhã seguinte.
Naquela idade, o tempo era um conceito muito abstrato. Quando me
falavam que bastava esperar o próximo verão para o retorno de Rebeca, eu
não compreendia. O conceito de ano não cabia em minha cabeça. E assim,
em alguns verões seguintes, como um cachorro em desespero por seu dono
que sai para o trabalho, dia após dia achando que daquela vez ele não
retornaria, eu sofria com o fim do verão e a partida de Rebeca. Ali, anos
depois, novamente no telhado dela, dessa vez com meu pai, e com minha
amiga no jardim nos esperando descer, ao lado da sua avó cheia de
agradecimentos, pensei que no fim desse verão não haveria telhado alto o
suficiente para lamentar sua partida.
Recebemos uma ligação do meu irmão naquele dia, perguntando
como estávamos, se a tempestade havia feito algum estrago. Meu pai o
tranquilizou, falou que estava tudo bem, exceto por algumas telhas
quebradas e pelas plantas que morreram. Meu irmão anunciou que estava
com saudades e que nos visitaria muito em breve, quando juntasse dinheiro
suficiente para pagar a passagem de preço exorbitante. Meu pai, como
sempre, ofereceu dinheiro, mas ele recusou. Após um até logo e um eu te
amo, passou o telefone para minha mãe, que o encheu de perguntas sobre
sua esposa, que estava grávida. Por intermédio da minha mãe, me mandou
beijos e lembranças. Não se deu o trabalho de falar comigo.
No quintal também havia um pé de acerola, que meu pai havia
plantado com minha ajuda e do meu irmão, quando éramos crianças. Eu
tinha seis anos, e ele, doze. Acompanhamos, com expectativa, o
crescimento da árvore, quase no ritmo do nosso próprio crescimento. A
primeira colheita das frutinhas vermelhas e azedas foi um evento, nossa
mãe nos fotografando, meu pai nos acudindo quando eu e meu irmão
começamos a nos coçar e gritar, atingidos pelas substâncias urticantes das
folhas da árvore. A cada mês a árvore dava mais frutos, e a cada colheita eu
e meu irmão éramos mais experientes em se esquivar das folhas. Colhíamos
tudo, passávamos a semana tomando suco e comendo doce de acerola sem
parar. Eram tantos frutos que minha mãe doava para os vizinhos.
Então nós dois crescemos, nossa empolgação e gosto pelas frutinhas
azedas ia diminuindo, não aguentávamos mais catar todos aqueles frutos,
entediados, com outros interesses, e abandonávamos o trabalho na metade,
deixando a árvore carregada de alimento para os pássaros. Meu irmão foi o
primeiro a parar de colher acerolas, de vez. Certo mês, não apareceu para
me ajudar a pegar as frutas. Colhi sozinho, passando horas para tirar metade
dos frutos, rogando pragas infinitas para meu irmão preguiçoso. Depois me
acostumei à sua ausência e meu pai começou, aos poucos, a me ajudar.
Então foi minha vez de crescer e abandonar a tarefa, deixando o trabalho
para meu pai sozinho, que, quase toda manhã, acordava cedo para colher as
frutas da árvore que havia plantado para nós.
Eu vi no olhar do meu pai a dor da perda de um filho quando vimos
que o pé de acerola estava morto. A pequena árvore tinha ficado em pé,
após a tempestade, e achávamos que havia sobrevivido, mas, ao nos
aproximarmos, vimos que o tronco estava partido. Ela caiu no chão, morta,
quando a toquei. Em um de seus galhos, avistei uma bolinha vermelha.
Uma única acerola. Enfiei a mão entre as folhas, sem me preocupar com a
coceira que aquilo me daria, e arranquei a fruta. Ofereci a meu pai, que
balançou a cabeça em negação, e a comi. O último fruto. Resisti ao impulso
do meu rosto de exibir uma careta ao sentir o azedo se espalhar pela boca e
mastiguei a carne tenra e pouca da acerola, sentindo seu leve adocicado
com sabor de infância. Quando apenas restava a semente, a cuspi em minha
mão, enterrando-a, em seguida, ao lado da mãe falecida, com a esperança
de que um dia ali nasceria um outro pé.
Nas horas seguintes, recolhemos as plantas mortas e as colocamos
em grandes sacos para jogar no lixo, a terra revirada cheia de lama e folhas
murchas foi retirada e colocamos nova. A renovação da terra. A terra, antes
cheia de vida, depois cheia de morte, estava novamente fértil. Meu pai
trouxe seus saquinhos cheios de sementes. Tomate, hortelã, manjericão,
cebolinha, pimenta, tudo foi enterrado para um novo nascimento.
A
ssisti, ainda paralisado, Arnaud escorregar entre as pedras antes
mesmo de alcançar a escada. Vi seu pé derrapar em uma poça d’água
e ele cair de lado, ralando o braço na ponta da pedra. Vi ele se
levantar, o sangue escorrendo pelo membro ferido, e tentar de novo. Voltou
a cair quando começou a subir a escada. Atrás de mim, acima de nós, Ysla
chamava por ele. Ela caminhava em direção à escada. Finalmente meu
corpo destravou. Subi engatinhando, usando as pernas e as mãos, quando vi
Arnaud escorregando novamente. Ergui meus braços para segurá-lo, mesmo
estando metros abaixo dele, dúzias de degraus nos separando. Visualizei sua
queda de quase vinte metros sobre as pedras pontiagudas, sua coluna
despedaçando naqueles degraus corroídos pela maresia e erosão, seus
braços deslocando-se em posições não anatômicas, seu pescoço quebrando
bem na minha frente, eu quase já podia escutar o estalo que sua coluna faria
ao se partir, mas ele se agarrou em um galho e evitou a queda.
Eu, pelo contrário, não consegui evitar a minha queda. Havia
erguido os braços para salvá-lo e acabei perdendo o equilíbrio, por falta de
apoio nas mãos e pelo susto que tive ao ver Arnaud correndo risco de se
espatifar nas pedras. Caí de costas e a última coisa que lembro, além da dor
que tomou conta de todo o meu corpo, é do céu azul diante dos meus olhos
lentamente escurecendo, como um anoitecer sem os tons alaranjados, e o
barulho das ondas que quebravam ao redor se distanciando, ficando
abafado, até tudo virar escuridão e silêncio.
◆ ◆ ◆
Quando voltei a abrir os olhos, estava numa cama. Não estava num
hospital, pois não havia hospital na nossa ilha. Era uma pequena clínica de
pronto-socorro, especializada em vítimas de afogamento, queimaduras, e,
bom, ortopedia. Eu estava deitado de lado, sem camisa, provavelmente
minhas costas estavam feridas. Havia um pequeno curativo no meu braço,
daqueles de injeção.
— O que aconteceu? — perguntei, sem saber se tinha alguém ali
para me responder.
— Você caiu nas pedras. — Era a voz do meu pai. Finalmente olhei
ao redor. Ele estava sentado em uma cadeira, atrás de mim, ao lado da
cama. A sala possuía cinco camas, separadas por cortinas, com cadeiras
para acompanhantes entre elas. Todas as cortinas estavam abertas e as
camas vazias, exceto pela minha. — Você está louco? Descer aquelas
pedras?! E ainda levar o hóspede para lá? Meu deus, Nico! Sorte sua que
Arnaud estava por perto. Ele o salvou — completou, sem nem perceber a
contradição da sua fala ao me recriminar por ter levado Arnaud e
agradecido por Arnaud estar lá. Talvez ele estivesse mais certo do que
nunca, pois Arnaud era, ao mesmo tempo, salvação e condenação.
— Onde ele está? — perguntei. Tentava imaginar como Arnaud
conseguira descer a escada para me socorrer, e ainda por cima voltar a subi-
la me carregando. Ela mal conseguira subir sozinho... — E Ysla?
— Os pais estavam levando as coisas de volta à pousada, e ela fugiu
sem ninguém ver. Deve ter passado pela cerca. A gente tava procurando por
ela. Então Arnaud chegou correndo com a menina e falou o que aconteceu,
e correu pra te buscar. Ele te colocou nas costas e eu joguei uma corda pra
ajudar a subir.
— Onde ele tá? — Voltei a perguntar.
— Na sala de espera. Ele se cortou nas pedras, estavam fazendo
curativos nele.
Tentei me levantar, não sei bem o motivo. Talvez querendo ir atrás
dele. Mas o que eu diria? Como poderia agradecer por ele ter salvado a
minha vida? Ou como poderia pedir desculpas pelo que eu o havia feito
passar? Quando me movi, senti uma dor horrível nas costas e voltei a ficar
parado.
— O que eu tenho?
— O raio-x não mostrou nada grave, só uma pancada. Uma
contusão nas costas. Por sorte não bateu a cabeça.
Coloquei a mão nas costas e senti um curativo que era do tamanho
da minha palma.
— Quando posso ir pra casa? — perguntei.
— O médico falou que você precisa ficar em observação até
amanhã.
Suspirei. Aquilo era perda de tempo. Perda do pouco tempo que eu
possuía com Arnaud. Eu não queria desperdiçar uma noite sendo observado
em uma clínica.
— Vamos fugir — falei, quando meu pai saiu para comprar meus
remédios e Arnaud entrou na sala. Ele tinha um curativo no rosto, no osso
abaixo do olho esquerdo, na panturrilha direita e gazes enroladas nos dois
antebraços. Quis abraçá-lo, pedir desculpas por tê-lo feito descer aquelas
pedras, agradecer por ter salvado Ysla e me socorrido. Queria fazer sua dor
passar. E que ele fizesse a minha passar. — Não quero passar a noite aqui.
Não quero perder tempo. Podemos fugir pras montanhas, acampar. Ou...
— É para o seu bem, petit Nico. Não me deixe mais preocupado —
disse, e então se aproximou de mim, segurou firme o meu pulso e me beijou
na testa. — Amanhã de manhã virei te buscar. E então iremos acampar.
Aquela promessa apaziguou minha pressa. A calma de Arnaud, o
seu beijo, o seu olhar, o seu toque em meu braço, tudo nisso me dizia que
tínhamos todo o tempo do mundo. Rebeca apareceu logo depois, estava na
recepção aquele tempo inteiro, me esperando. Abraçou-me com lágrimas
nos olhos, recriminando-me por quase tê-la matado de susto. Eu retruquei
falando que era a vingança pelo dia que ela se queimou com a água-viva.
Estávamos quites.
Dormi mal, incomodado com a dor nas costas, com o silêncio do
pronto-socorro — não permitiam acompanhantes durante a noite —, a
ausência de Arnaud, a ansiedade pelo dia seguinte. Ensaiava, na minha
cabeça, mais uma briga que teria com meus pais, por faltar o trabalho e ir
acampar com Arnaud.
Era meio da madrugada quando três homens entraram na
enfermaria. Reconheci todos: os dois homens mal-encarados que nos
observaram quando saímos da igreja e Américo. Não soube quem os
deixara entrar nem onde estavam os funcionários do hospital.
Tentei me levantar, mas um deles segurou meu peito contra a cama.
O outro tirou o canivete do bolso e encostou a lâmina no meu pescoço.
Américo permaneceu na porta, olhando para o chão.
— Américo?! — perguntei, assustado. Minha voz tremia, e eu
segurava a respiração, com medo de me cortar. Meu amigo não olhou para
mim.
— Nico, Nico, Nicotina... — o do canivete falou, alisando minha
pele com a lâmina. — Eu não tô nem aí se tu é viado ou pra quem tu dá o
cu. Não ligo pra essas coisas. Não é, Américo? — Ele olhou para Américo,
que não esboçou reações. — Mas tu tá andando com aquele jornalistazinho
de merda por aí, e ele tá metendo o nariz onde não deve. Então, se tu quiser
proteger tua família, preciso que faça uma coisa por mim.
— O quê? — perguntei, sem conseguir segurar as lágrimas nos
olhos.
— Pegue o computador do gringo e leve pra gente na casa da bruxa.
Até amanhã ao meio-dia. Senão...
Ele terminou a frase pressionando a lâmina no meu pescoço.
Quando saíram, me deixando sozinho, pus a mão na pele que ardia, para ver
se havia cortado. Mas não havia sangue. Passei o resto da noite acordado,
chorando, em pânico. Ninguém apareceu para me socorrer.
Não havia dor. De mais nenhum tipo. Nem aquela dor nostálgica, da
saudade antecipada, da despedida iminente, uma dor sentimental que era
quase física. Nem a dor física, aquela dos cortes, dos meus e dos dele.
Como se nada tivesse acontecido. Como se a água do rio no dia anterior,
como se nossos beijos, e como se a água daquele lago onde nadávamos sem
roupa, nos houvesse curado. Apoiava-me em Arnaud quando eu me cansava
de nadar, pois ele era um homem incansável. Em seu olhar o fogo ainda não
havia apagado e, quando, com os dedos enrugados prestes a se dissolverem
na água, eu me retirei do lago, subindo pelo píer e prostrando-me sobre
aquela madeira, expus ao sol e arreganhei ao seu olhar aquele orifício que,
com seu tamanho e grossura, ele havia aberto e deixado seu formato, ele
nadou em minha direção com a velocidade de um tubarão ensandecido pelo
cheiro do sangue de um surfista.
Corri, não por medo, pois medo eu jamais sentiria na presença dele,
mas por petulância, uma provocação, um corre atrás de mim se puder.
Ele me alcançou bem antes do ponto onde eu o havia alcançado há
não muito tempo atrás, quando ali eu havia corrido atrás dele e esbarrado
contra seu peito. Mal eu havia saído do píer, a água gelada ainda pingava do
meu corpo, e ele, numa violência gentil, me agarrou pelos dois braços,
virou-me de frente para ele, fazendo-me alvo daqueles olhos que com sua
água me molhavam e com seu fogo me aqueciam, e me empurrou com suas
mãos pesadas, lançando-me no chão. Minhas costas, ao se chocarem contra
a terra, arrancaram da minha boca um pequeno grito, de susto e de dor. Foi
um grito rápido, baixo, apenas um reflexo, que logo foi calado por seu
beijo, que ocupou toda minha boca.
— Tá com medo? — ele perguntou.
— Sim — menti. — Não é você o repórter aventureiro que tá me
colocando em risco? Eu, um pobre jovem inocente...
Ele segurou meu pescoço e sufocou minha brincadeira. Apertando
minha pele e mordendo o meu pescoço me fez confundir as sensações. A
dor que eu sentia em minhas costas, a dor do impacto, do ferimento que se
misturava à terra molhada e à grama que pinicava minha pele, a mão no
meu pescoço, seus dentes querendo me rasgar, seus dedos na minha boca,
seca, ressecada pelos meus arquejos, a língua molhada que descia pelo meu
peito, eu não sabia mais o que era dor, nem prazer, era tudo uma coisa só. E
era bom.
— Pare de falar besteira — ele disse. Então ordenou: — Abra a
boca.
Entreguei-me àqueles meus desejos que eu não conseguia explicar, e
ele me satisfez. Na minha boca, onde faltava saliva, ele cuspiu, e então eu
me sentia completo.
Ele virou-me de bruços, era a vez da minha frente entrar em contato
com aquela terra molhada, meu pênis endurecido em comunhão com a
fertilidade da natureza. Com os dedos que molhara com minha saliva,
misturada à dele, ele me lubrificou, e então me penetrou, novamente
nublando o significado de dor e prazer. Agarrei a terra com as mãos, entre
meus dedos vi aquele solo rico em matéria orgânica escapulir e a raiz das
gramas que arranquei com minha força desmedida. Coitadas delas, das
plantas, que morreram sob a vivacidade com a qual eu e Arnaud nos
amávamos.
Olhei para trás e nossos olhos se encontraram, sob aquele
movimento intenso que nossos corpos executavam, e ele me penetrou com
aquele olhar quase tão intensamente quanto ele me penetrava com seu
pênis. O fogo naqueles olhos anunciava uma erupção vulcânica prestes a
acontecer. E assim o espetáculo aconteceu. O encontro da lava com o mar.
Água em chamas, vapor para todos os lados. Sua exclamação final de
prazer, o gemido gutural que irrompeu floresta adentro, que acordou os
bichos, que provocaria deslizamentos de barreiras. Lancei minha semente
ali sobre a terra, aquela terra marrom tão fértil quanto meu fruto e ali a
deixamos semear, nos levantando cheios de suor, lama e folhas grudadas.
— Depois voltamos aqui para ver se nasceu um pequeno Nico —
disse ele, dando-me a mão para me ajudar a levantar, rindo da pequena poça
de porra que se enterrava na areia.
Entre aquelas risadas, banhos, transas, beijos, carícias e gozos,
aquele dia passou perfeitamente em câmera lenta. O tempo estava em nosso
favor, e os seus minutos passaram tão lentamente, dando-nos momentos de
prazer e amor que pareciam eternos, que eu me lembro de cada mínimo
detalhe daquele dia. Ali, tudo o que tínhamos era a companhia um do outro,
e nada mais importava, nem o passado, nem o presente, nem o futuro, como
se não existisse mais nada ao nosso redor e como se aquele dia fosse durar
para sempre. E eu sentia que havia durado para sempre!
Foi na perfeição daquela manhã ensolarada e tarde abafada, onde a
brisa do mar não nos alcançava, cercados pela floresta e pelas águas puras
do rio e do lago, que eu e Arnaud nos curamos. Juntos, éramos o remédio
um do outro, e assim, com o meu toque que lhe dava arrepios e o seu toque
que me dava palpitações no coração, não havia mais ferimentos, cortes,
cicatrizes, tristezas, preocupações, dúvidas, medos, nem inseguranças.
Não havia mais dor.
22 ✹ O SILÊNCIO
V
oltamos ao acampamento esfomeados, mesmo tendo nos alimentado
um do outro. Revirando a mochila para pegar comida, me deparei
com meu celular novo, que ali havia enfiado sem me preocupar em
ter contato com a sociedade, pois na mata o sinal era escasso, piscando a luz
verde que indicava chamada perdida. Quando acendi o visor, vi as trinta e
sete ligações não atendidas da minha mãe.
De repente, todas as dores voltaram. Eu estava fodido. Literalmente
e figurativamente.
Cheguei a ponderar se deveria ignorar aquelas chamadas perdidas e
fingir que nada acontecera, ou retornar as ligações da minha mãe. O medo
do que ela poderia falar era grande demais. Sentei-me, nervoso, sentindo
um embrulho ruim na barriga e a dor nas costas voltar. O universo decidira
então por mim: não havia sinal no celular. Naquelas áreas afastadas e
inóspitas, o sinal chegava na sorte. E, por sorte, ou azar, minha mãe
conseguira fazer as trinta e sete ligações durante algum daqueles momentos
de raridade onde a tecnologia nos alcançava.
Arnaud apareceu na entrada da barraca exatamente quando eu
encarava a tela do celular em desespero, meus olhos congelados e a pele
pálida, meu coração já havia parado há alguns minutos.
— O que aconteceu? — perguntou, e eu apenas virei a tela do
celular para ele ver com os próprios olhos. Ele arqueou as sobrancelhas,
aquelas que eu tanto amava, grossas e bagunçadas, que eu gostava de passar
o dedo para ajeitar os fios que eram quase tão revoltos quanto os olhos que
protegiam. — Vamos arrumar tudo e voltar.
Não me movi, apenas comprimi os lábios, enquanto ele já se
adiantava jogando as coisas nas mochilas. Eu não queria ir embora, queria
jogar aquele celular no rio e fingir que minha mãe não existia. Que só nós
dois existíamos.
— Nico, vamos voltar — insistiu, vendo minha negação em me
mover.
— Não quero — falei, percebendo o quanto soava infantil. Uma
criança birrenta recusando obediência. Envergonhado, porém sem nunca
largar a fúria, comecei a arrumar minhas coisas para partir e deixar aquele
acampamento para trás.
Até quando eu e Arnaud continuaríamos a ser interrompidos?
Ele era meu mais antigo amigo, dos tempos da escola, quando ainda
éramos crianças e corríamos de cueca no gramado durante o recreio.
Crescemos juntos, viramos crianças pentelhas ao mesmo tempo, e as
traquinagens nós compartilhávamos. As fugas da escola, os banhos de rio
escondidos, os doces que roubávamos de lojas para comer depois da aula. A
rebeldia da adolescência também veio junta para nós, naquele tempo
conhecemos Augusto, que se mudara para a cidade vindo de outra ilha do
arquipélago para estudar.
Foi assim, com os hormônios descontrolados, que nós três nos
apaixonamos por Elisa. Porém, entre nós nunca houve competição, apenas
companheirismo, confidência e apoio. O desprezo que Elisa demonstrava
ter por nós fez com que eles perdessem o interesse nela, e passaram a
investir em outras meninas, percebendo assim a capacidade dos seus
charmes para conquistar garotas e, dessa forma, começamos a explorar,
também ao mesmo tempo, nossa vida sexual. Éramos melhores amigos
desde sempre, confidentes, e em ninguém eu confiava mais do que neles.
— É sobre o notebook, Américo? — perguntei. — Se tu veio aqui
me ameaçar, eu...
Vou morar na Ilha Grande — disse, me interrompendo. Não
—
olhava para mim, mas para o reflexo da lua na piscina.
— O quê?! — perguntei, sobressaltado, mas ainda mantendo
nossos sussurros, pois não queríamos ser ouvidos por meus pais. — Por
quê?!
— Você sabe — disse, virando o rosto para mim. Estava sério. —
Todos sabem.
— Tua mãe te expulsou de casa. Não é isso? Mas por quê... por que
tu tá envolvido com aqueles caras? Américo, se precisar de ajuda tu precisa
me falar.
— Não é possível que tu seja tão burro, Nico — respondeu, se
levantando e parando de frente para mim.
Também me levantei, furioso e com a respiração acelerada, prestes a
empurrá-lo na piscina.
— Então me explique, se me acha tão burro, em vez de falar em
enigmas — exclamei, ainda sem levantar a voz, mas furioso. Eu,
definitivamente, não aguentava mais essas palavras não ditas que
esperavam uma capacidade de presunção alheia. Maldito seja quem criou a
expressão “para um bom entendedor meia palavra basta”. Foda-se essa meia
palavra. Eu queria mil palavras!
Américo não me deu mil palavras, nem meias palavras. Ele encurtou
o pequeno espaço que havia entre nós com um passo e aproximou seu rosto
do meu. Com os olhos fechados, me deu o beijo que pareceu ser o mais
longo da história do universo.
Como sempre acontecia em situações que me pegavam de surpresa,
fiquei travado e não me mexi, mantendo minha boca rígida. Ele levou o
tempo que achava necessário naquele beijo e então se afastou. Olhou para
mim por longos segundos com um olhar entristecido. E, com um sorriso
desanimado, acenou com a cabeça e correu para a rua. Abri a boca para
falar alguma coisa, pois achava que era necessário, achava que aquela noite
não podia terminar daquele jeito, sem desfecho, sem explicações, sem mil
palavras, mas dali nada saiu, nem meia palavra. Fiquei com o braço
erguido, para chamá-lo de volta, mas ele já havia sumido na escuridão.
Quando abaixei o braço e começava a me virar para me sentar na
espreguiçadeira e processar o que havia acabado de acontecer, meu olhar
encontrou Arnaud parado em sua varanda, sua silhueta marcada pela luz
acesa do quarto atrás de si.
Ele me olhava calado, e, pela primeira vez, fiquei incomodado com
o silêncio entre nós.
23 ✹ A CALMARIA
S
em deixar que nossos olhares se desencontrassem, caminhei para o
quarto de Arnaud, querendo saber o que ele vira, o que ele achava que
acontecera, e, se necessário, explicar tudo para ele, mas aquilo foi uma
má ideia, pois, sem olhar para onde andava, tropecei na espreguiçadeira e
caí no chão, derrubando a mesa ao meu lado e fazendo um barulho que mais
parecia o fim do mundo. Instantaneamente as luzes do quintal se acenderam
e meu pai apareceu na porta com uma arma na mão. Eu nem sequer sabia
que ele possuía uma arma.
Minha única reação, mesmo caído no chão sobre a mesa quebrada,
foi erguer os braços, numa posição ridícula que fez meu pai abaixar a arma
e gargalhar.
— Nico?! — ele exclamou, em meio ao riso. — O que tá fazendo
aí?
— Eu... — gaguejei, sem acreditar na situação surreal na qual me
encontrava. Caído no chão, o corpo cheio de dores, recém-beijado por
Américo, meu pai rindo da minha cara enquanto segurava uma arma.
— É Nico?! — ouvi minha mãe gritar de dentro da casa. — Mande
esse moleque entrar!
Após verificar que nada sangrava, meu pai me ajudou a levantar e
me levou para dentro de casa, até a minha mãe, que nos aguardava no sofá.
Antes de entrar, dei uma última olhada para a varanda de Arnaud, mas ele
não estava mais lá.
Parecia que eu caminhava para a minha própria execução. Sentei,
trêmulo, com as pernas bambas, na cadeira elétrica que havia se
transformado o sofá.
— Eu te liguei mais de cinquenta vezes — começou ela.
Trinta e sete, pensei. Mas não ousei falar em voz alta.
— E se fosse caso de vida ou morte? — continuou.
Se fosse? Era bom que fosse! Eu não queria acreditar que ela me
fizera sair do acampamento para algo que não era caso de vida ou morte.
— O bebê do seu irmão nasceu — concluiu, por fim.
Sorri, afinal, não era um caso de morte, e sim de vida.
Imaginei o pequeno, meu sobrinho, em parte meu sangue, o pequeno
ser humano que encarava um novo mundo. Imaginei seus olhinhos curiosos,
as bochechas gordinhas, perguntei-me se um dia ele colheria acerolas assim
como um dia seu pai colhera. Sorri com o pensamento de tratar meu irmão
como “pai”, era difícil para mim imaginá-lo como pai de uma criança,
alguém que eu havia visto crescer ao meu lado. No mesmo instante, mesmo
sem nunca ter me sentido particularmente afetuoso com crianças, desejei
segurar o bebê nos meus braços. Eu e meu irmão não tivemos um bom
relacionamento nos últimos anos, o julgava por ter desejado casar tão
jovem, o amaldiçoei por ter decidido nos abandonar e ir para o continente.
Mas naquele momento, tudo aquilo parecia bobagem. Sentia falta do meu
irmão e do bebê que eu nem sequer conhecia.
— Vamos visitá-lo? — perguntei, uma parte minha querendo
conhecer o meu sobrinho, parabenizar meu irmão e minha cunhada que não
via há tanto tempo, em minha cabeça já fazendo planos de que tipo de tio eu
seria. A outra parte de mim torcia para que eles falassem que eu não
precisava ir, pois eu também queria ficar ali com Arnaud.
— Eu e seu pai vamos, mas você não — falou, e eu suspirei
aliviado. — Alguém precisa cuidar da pousada, por isso queríamos que
você voltasse logo. Partiremos amanhã bem cedinho. O casal vai embora
amanhã, com a menina, e ficarão apenas Arnaud e Margarida, então acho
que você conseguirá administrar tudo sozinho.
— Não se preocupem — falei, abanando a mão no ar. — Tomarei
conta de tudo.
A
rnaud foi embora naquela tarde. Não sei quanto tempo demorou para
as viaturas e ambulâncias chegarem lá em casa. Muito tempo.
Cuidaram dos ferimentos, levaram os bandidos, passaram alguns
minutos ouvindo nossos depoimentos. Foram embora rápido demais, como
se nada grave tivesse acontecido ali. Entretanto, meu mundo parecia
desmoronar. Como um inverno que chegava apocalíptico, arruinando o
verão.
Ver Arnaud se aprontando para partir, colocando suas coisas na mala
para ir embora, foi o pior de tudo. Era uma coisa para a qual eu não estava
preparado. Eu estava na varanda do meu quarto, varrendo os cacos de vidro
e limpando o sangue, quando o vi lá na pousada. A dor que eu senti ao ver
aquilo me nocauteou de uma maneira que eu nunca achei que um ato tão
simples como o de arrumar uma bagagem fosse capaz de fazer. Eu não
podia deixar aquilo acontecer daquela forma, tão bruscamente, tão de
repente, sem longos beijos e sexo e abraços de adeus, sem choros no ombro
um do outro, sem súplicas nem promessas. O que seria de mim ali, sem ele,
depois de todas as mudanças que provocara em mim?
Com algo entalado na garganta e as mãos que tremiam como que
prestes a convulsionar, principiei a correr até a pousada, queria subir no
quarto de Arnaud, beijá-lo, abraçá-lo, pedir para que ficasse mais um
pouco, mais um dia, dois dias, dez dias, ficasse o resto das estações, mas na
saída da casa encontrei minha mãe, que me segurou nos braços.
— Para onde você vai? — perguntou, mas não respondi de
imediato, não com palavras, respondi com um ato de rebeldia, tentando
desvencilhar-me das mãos que tinham mais força do que eu esperava, me
provocando um grito de dor, pelo ferimento no meu braço.
— Arnaud tá indo embora — falei, finalmente, após minha
fraqueza me impedir de sair dali, não, choraminguei, feito uma criança, um
bebê, finalmente incapaz de manter a máscara que protegia a verdade dos
meus pais, pois dessa máscara eu não precisava mais. Eles já sabiam de
tudo.
— Sim. Tá mais do que na hora — falou a mulher, olhando
seriamente para meu pai, um olhar que dizia muitas coisas que eu não era
capaz de compreender, e o homem olhou para mim e deu de ombros.
Desabei. Caí de joelhos na frente deles, o choro rompendo garganta
afora. Solucei, o catarro escorrendo pelo nariz, a baba descendo pelo meu
pescoço. Meu pai me segurou pelo braço e me puxou para cima.
— Para de chorar, Nico. Você tem que ser forte. Temos que ser
fortes.
— Me desculpa, pai — exclamei, as palavras emboladas pelo choro,
e me joguei sobre ele. Meu pai me abraçou, colocando a mão sobre minha
cabeça, acarinhando as tranças que deviam estar todas desfeitas. — Foi
culpa minha, desculpa, foi tudo culpa minha.
Meu pai me levou para a cozinha e me colocou numa cadeira. Fiquei
lá, chorando, enquanto ele pegava um copo de água para mim. Ele esperou
o copo se esvaziar e o choro arrefecer, fazendo carinho na minha cabeça,
passando a mão pelas tranças desfeitas, e então falou:
— Eu poderia me culpar, também. O prefeito conversou comigo
esses dias, quis me convencer a apoiá-lo nessa palhaçada de privatização. A
nossa pousada é a mais próxima da reserva e ele queria que eu concordasse
em ser uma espécie de apoio para os esquemas dele, caso contrário, ele
ameaçou retirar nossa licença de funcionamento.
— Que esquemas, pai?
— Não sei, nem quero saber. Aqui é nós por nós, Nico. Somos
pretos, eu e você. Isso, nem sua mãe nem Arnaud jamais vão entender.
Precisamos trabalhar dobrado, precisamos nos comportar o tempo inteiro,
precisamos vigiar cada mínimo movimento nosso, pois sempre estão
esperando nossa queda. Arnaud achou que podia sair andando por aí
fazendo o que quisesse porque é branco, porque é europeu. E tava certo,
podia. Mas sobrou pra quem? Pra gente. Sempre sobra pra quem tá à
margem. Mas ele também não tem culpa disso. De toda forma, o melhor é
Arnaud se afastar, por ora.
Escutei um barulho lá fora e corri para a janela da cozinha. Vi,
passando pelo portão da entrada do nosso terreno, um táxi.
O aperto no coração foi aumentando à medida que aquele carro se
aproximava. Como se as próprias mãos do taxista estivessem dentro do meu
peito espremendo aquele órgão de bombear sangue e sofrimento até extrair
a última gota do suco. Quando o carro parou perto do terraço, me virei para
correr até a porta. Meu pai me segurou e disse:
— Você não escutou nada do que eu falei?
Ouvi o barulho da porta do táxi se fechando lá fora. Voltei para a
janela e vi Arnaud, bem ali, a alguns metros de mim, escapando por entre
meus dedos, vaporizando, sumindo para sempre da minha vida da forma
mais injusta possível. Eu não poderia deixar que ele fosse embora daquela
forma, sem uma última palavra, sem um último olhar, sem um daqueles
nossos olhares que evoluíram em linguagem própria, que palavras não mais
necessitavam, um sorriso de adeus, um sorriso que diz que tudo vai ficar
bem, um sorriso que diz eu te amo, por favor não vá embora.
De ponta dos pés, observei tudo à distância, como um mero
espectador da minha própria desgraça, a bagagem dele já estava dentro da
mala do carro, o taxista fixava a bicicleta alugada no teto do veículo e
Arnaud se preparava para entrar no carro e ir embora.
Aquele último olhar dele antes de entrar no táxi assombrou
minhas longas e solitárias noites que se sucederam. Ele procurou, em vão,
meu olhar, mas não me viu ali atrás daquela janela. Naqueles longos
segundos enquanto o taxista prendia a bicicleta e Arnaud abria a porta de
trás para se sentar, vi seu rosto virar, seu olhar que não era mais mar nem
revolta e sim pesar e esperança. Olhava para a porta, fechada, talvez me
esperando, esperando que dali eu saísse correndo e o abraçasse, em prantos,
e a esperança que durou aqueles poucos segundos se evaporou diante dos
meus olhos. Vi o momento em que a esperança deu lugar à decepção, à
tristeza, quando seu olhar baixou, a linha da sua boca se ampliou como um
horizonte e ele entrou no carro, fechando a porta entre nós.
O taxista pisou no acelerador e saiu com o carro, deixando para trás
apenas poeira, dióxido de carbono e a memória de Arnaud que ardia na
minha garganta.
Meu pai me soltou e fui até o terraço. Minha mãe, dessa vez, não me
impediu de passar pela porta. Vi o rastro do táxi, da partida de Arnaud, e,
por pouco, não corri, como um cachorro atrás de um carro, uma criança
atrás da mãe levada pela polícia. Fiquei parado observando o veículo virar à
esquerda depois do portão e sumir na estrada, o braço esfaqueado que
voltara a sangrar e a perna que não tinha mais forças para me sustentar, e
sentei-me na cadeira de balanço onde tantas tardes meu pai havia sentado
para ler o jornal, num torpor que me impedia de assimilar que aquela
presença que tanto influenciara minha vida, havia, de vez, ido embora.
— Você não vai atrás dele? — ouvi alguém falar. Olhei para o lado,
assustado. Era Margarida, meio tímida, meio atenta, vinda da área da
piscina.
— Não sei o que fazer... — respondi. — Sinto que tô preso no meio
de um fogo cruzado.
Ela olhou para os lados.
— Não tô vendo nenhuma bala — disse. — E se tem uma coisa que
já aprendi sobre você, é que você sempre faz o que quer. E sempre se vira
sozinho.
Sem precisar responder ou pensar, levantei-me da cadeira num salto,
corri até minha bicicleta, que estava encostada numa árvore perto da
garagem, dei um rápido aceno com a cabeça para Margarida, e saí.
◆ ◆ ◆
Teria ficado ali embaixo daquela árvore numa das ruelas desertas do
centro se não fosse o calor insuportável, a fome, a resignação e a minha
falta de persistência. Em outras palavras, desisti. Certamente o pensamento
de sair pedalando pelas ruas a gritar seu nome até que o fizesse me ouvir
passara pela minha cabeça, mas me faltava coragem. E a minha falta de
coragem só aumentava a minha tristeza. Montei em minha bicicleta e
pedalei de volta para casa.
Ouvi um sininho de bicicleta tocar atrás de mim, provavelmente
alguém me chamando ou sinalizando alguma coisa, mas não dei atenção,
não era Arnaud, ele já havia devolvido sua bicicleta. Então a pessoa me
alcançou, diminuiu a velocidade e se posicionou ao meu lado, me
acompanhando. Virei a cabeça e vi Rebeca, toda vermelha, a pele dos seus
ombros começando a despelar.
— Caralho, Nico! Tu tá bem? Voinha não me deixou ir pra pousada,
ficou preocupada com o que aconteceu. Liguei pra lá e tua mãe disse que tu
tinha saído, então fui pra cidade te procurar.
— Arnaud foi embora — falei, e ela deu uma freada brusca em sua
bicicleta. Se estivéssemos mais rápidos, definitivamente ela teria capotado.
Fui obrigado a parar também.
— Como assim? Acabei de passar pela marina e vi o barco dele lá
— falou, com o cenho franzido. — Vi outros velejadores indo embora. Mas
não ele.
— Ele saiu da pousada do meu pai — respondi, sem intenção de
reviver as péssimas memórias do que tinha acontecido naquela manhã cedo.
— Não sei onde ele tá.
Seu cenho não estava mais franzido, mas em seu olhar persistia a
seriedade. Ela parecia prestes a tomar uma decisão. E, com uma
determinação que eu nunca tive, ela disse:
— Ele deve estar muito bem escondido. Espero que esteja. Seja lá o
que ele tá investigando nessa ilha, ele tá correndo muito perigo. Mas eu vou
encontrá-lo. Te encontro mais tarde!
25 ✹ OS OLHOS
N
ão demorou para Rebeca voltar com o endereço onde Arnaud estava.
Quando eu quis saber como conseguira, ela disse que foi perguntando
aqui e ali. Não revelou suas fontes. Uma boa jornalista nunca revela
suas fontes.
— Falando em jornalista, tenho uma coisa pra te falar — ela disse.
— Mas eu preciso que você garanta que não vai me matar.
— Eu quase matei aquele cara na pousada, mas ainda não sou
assassino, Beca.
— Pois saiba que se for seguir essa carreira, nessa ilha você vai ter
um futuro promissor, do jeito que as coisas andam por aqui...
— Tá bom, Beca, chega de piadas de mau gosto e fala logo o que
tem pra falar.
Ela me olhou séria, suspirou fundo, e disse:
— Minhas aulas só voltam daqui a um mês. Eu ainda ia passar uns
quinze dias aqui. Mas eu recebi um e-mail de um jornal foda onde eu tinha
aplicado pra uma vaga. E eu passei, Nico! Consegui um estágio lá! Eu só...
Preciso estar lá daqui a dois dias.
Gritei e a agarrei. Pulamos abraçados. Era algo que ela estava
esperando há muito tempo, e naquele momento minha tristeza deu espaço
para que eu me sentisse feliz por ela. Eu estava orgulhoso dela.
— Com você sendo jornalista por aí, eu é que não vou ser assassino.
Agora corra, não vá perder esse estágio! — exclamei.
Depois do longo abraço, das lágrimas enxugadas, e de vê-la partir
para casa, fui até o endereço que ela havia me dado.
MAR
26 ✹ A LOUCURA
L
ogo depois de tomar a decisão de virar as costas para Arnaud, para não
vê-lo se distanciar de mim e ir embora, voltei para casa com lágrimas
nos olhos e soluços na garganta. Tão tomado por angústia eu estava,
que não pensei em nada enquanto fazia aquele trajeto, apenas girava os
pedais um após o outro, com movimentos automáticos e mecânicos e meus
pensamentos brancos como uma lousa nunca utilizada.
Quando cheguei em casa, pronto para ignorar os gritos da minha
mãe por ter dormido fora sem dizer onde estava, encontrei Rebeca sentada
no nosso terraço.
— Por pouco eu ia ter que ir embora sem me despedir — falou,
suspirando em alívio e se levantando quando me aproximei. — Morri de te
ligar.
— Nem sei onde tá meu celular — respondi, abraçando-a.
Não lembro com exatidão as últimas palavras que eu e Rebeca
trocamos antes de ela partir. Eu me sentia aéreo, desprendido do corpo. Ou
melhor, eu queria me desprender do meu corpo. As palavras que saíam da
boca dos outros chegavam aos meus ouvidos fragmentadas. E as que saíam
da minha boca não faziam significado para mim, como se ditas por algum
alienígena hospedado na minha cabeça.
Lembro que Rebeca falou que estava indo embora naquele
momento, suas malas já estavam prontas e apenas esperava o táxi buscá-la.
Disse que antes de partir para o aeroporto na Ilha Grande ia passar no
centro da cidade para se despedir de Inara, pois, naqueles dias que elas
passaram juntas na praia, ela se afeiçoou à turista e acabara gostando dela
mais do que pretendia. Que já estava sentindo saudades. Que Inara ia
embora dali a uns três dias. Elas combinaram de se reencontrar, mas Rebeca
não tinha certeza se o relacionamento delas duraria. Segundo ela, os dias
que passaram juntas de férias no arquipélago foram só isso: férias. Tiveram
um amor relâmpago, de verão, passageiro, ali naquele paraíso que fugia
tanto da realidade. Viveram um amor intenso com data de expiração, com
uma contagem regressiva que fazia tudo valer a pena da forma mais
poderosa possível. No continente, de volta ao mundo real, à vida de
verdade, com responsabilidades, agendas, rotinas, onde nem tudo era sol e
biquíni, as coisas não seriam iguais. Será que elas iriam se gostar com tanto
espaço e tempo disponível, sem o fim do verão logo ali como uma saída de
emergência? Rebeca não tinha certeza se a paixão entre ela e Inara
sobreviveria às outras estações, as mais frias. Se a Rebeca e a Inara do
verão iriam se gostar tanto quanto suas versões respectivas do cotidiano
enfadonho. Sem a raridade do verão, talvez o amor perdesse valor. Talvez
não valesse a pena. Talvez a frieza do inverno esfriasse o que fora aquecido
no verão.
Talvez...
Talvez eu e Arnaud também fôssemos só verão.
Rebeca beijou-me na bochecha com a promessa de que mandaria
fotos do estágio assim que chegasse lá.
— Não se perca! — ela gritou para mim, já dentro do táxi.
Como se fosse possível se perder naquela ilha minúscula...
Meus pais não falaram nada quando entrei em casa e subi para meu
quarto. Aquele silêncio, aquela quebra de expectativa, foi bem pior do que
os gritos, puxadas de cabelo, passos pesados e batidas de portas que eu
estava esperando. Esperava que gritassem comigo por ter saído, que me
perguntassem se eu estava louco por ter dormido fora de casa sem avisar,
depois de tudo que tinha acontecido, que estavam prestes a chamar a
polícia, mas só recebi silêncio. Eu precisava de gritos, de tabefes, de uma
surra, para me acordar e me tirar daquele torpor. Mas nem viraram a cabeça
para me olhar. Acho que isso foi o que mais doeu. Como se nem isso eu
valesse a pena mais.
Angustiei-me no isolamento do meu quarto, ignorando toda a
destruição dele, a porta arrombada, o vidro da varanda estraçalhado,
desesperado com o verão que ainda nem tinha oficialmente acabado, mas
que para mim não fazia mais sentido. O verão para mim significava mais do
que a estação mais quente do ano, onde os dias são mais longos e as praias
cheias de turistas. O verão para mim era a vinda de Rebeca, a animação das
férias, as praias com Augusto e Américo. As transas com Elisa na areia
quente. E Arnaud... Bom, Arnaud havia dado um novo significado àquela
estação. O que seria de mim a partir de então? Viver às custas dos meus
pais, tendo como única opção trabalhar na pousada ou na loja deles? De
quem foi a ideia de não aplicar para uma universidade, mesmo? Quem foi
que falou que aquela maldita ilha era um paraíso de onde não fazia sentido
sair?
A solidão que eu já visualizava que iria passar a partir daquele
outono era imensurável. Era aterradora. O que eu faria? Com quem
conversaria? Não se perca, Rebeca me falara. Mas eu já me sentia perdido.
Meus cem anos de solidão se passariam em uma única geração, a minha,
naquele ano pós-verão. Não haveria Aurelianos suficientes para substituir o
Nico ferido e sozinho que restara.
Eu quase podia sentir raiva de Arnaud. Ódio. Por ele ter chegado
naquela ilha com aquele seu corpo sedutor, a sunga ridícula, os olhares
misteriosos.
Caminhei pelo quarto em círculos, em triângulos, quadrados, em X,
zigue-zague, estava inquieto demais para permanecer parado. Sentei-me na
cadeira do computador e girei. Queria gritar. Queria que alguém gritasse
comigo. Enterrei meu rosto no travesseiro e gritei. O máximo que pude, até
sentir minha garganta doer como se ali algo tivesse se rompido e sangrasse.
Não sangrou.
Por que ele tinha que ir embora?
Por que eu tinha que ficar?
Será que eu devia ter me escondido no barco dele, feito um pacote
de cocaína contrabandeado?
Liguei o computador para mandar um e-mail para ele. Claro que ele
não tinha redes sociais. Passei vários minutos encarando a tela. Não sabia o
que escrever. O que eu poderia lhe dizer, sabendo que ele só leria dali a
alguns meses? Oi, Arnaud do futuro, espero que ainda se lembre de mim. E,
quando ele respondesse, será que eu ainda lembraria dele? Não parecia ser
possível que não. Uma coisa daquelas era inesquecível. Era um verão que
eu carregaria para sempre pelo resto da minha vida. Eu viraria um clichê.
Um clichê de romance gay.
Eu terminaria sendo mais uma história melosa de amor impossível,
que no final os dois homens apaixonados se separam, impedidos de
expressarem o seu livre direito de amar. Talvez um deles morresse, ou então
fosse embora e seguisse sua vida, talvez com medo de repressão ou
ameaçado pela família, obrigado a fingir ser heterossexual, frustrado pelo
resto da sua miserável vida. E eu estaria aqui, velho, sozinho e fracassado,
escrevendo uma memória de cinquenta anos atrás que nunca fui capaz de
largar ou superar, carregando-a como o peso de uma cruz, sentado numa
cadeira velha e carcomida, desconfortável na minha bunda cheia de
hemorroidas e sofrendo para escrever com minhas mãos deformadas pela
artrose, pensando no meu amado morto ou casado com uma mulher infeliz e
enganada.
Ou, no futuro, com três filhos, dois netos e uma esposa, eu sentaria
na cadeira de balanço do terraço e relembraria aquele verão que eu nunca
iria esquecer, pensando nas possibilidades que eu poderia ter se tivesse
seguido o outro caminho.
Talvez eu até virasse um velho amargurado e solitário, após uma
sequência de casamentos infelizes e divórcios violentos, e receberia uma
ligação do asilo onde Arnaud passara os últimos anos da sua vida, sozinho e
sem amor, avisando que ele morreu, e que seu último desejo era que a
enfermeira que cuidava dele me ligasse e me falasse que ele nunca se
esquecera de mim, que eu sempre fora o amor da sua vida, e que ele se
arrependia de ter entrado no barco e partido naquele dia. E eu olharia para
minha atual esposa, velha e enrugada, adormecida ao meu lado e sentiria
desgosto. E eu terminaria meus dias com o pensamento de ter desperdiçado
toda a minha vida e odiando aquela mulher iludida que tanto detestava.
Ou então ficaria velho e ranzinza, solteiro para sempre, incapaz de
ter outro relacionamento, cuidando da pousada em processo de falência do
meu pai, que falecera de ataque cardíaco alguns anos antes, logo após
minha mãe, que me largara a casa mal cuidada, e veria na Internet fotos de
Arnaud bem-sucedido, malhado e cheio de cirurgias plásticas, com
preenchimento nos lábios e sem rugas, em seu mais novo lançamento numa
livraria chique em Nova York, ao lado do seu esposo troféu, um garoto
loiro, magro e trinta anos mais novo do que ele.
Enlouquecido por tantas possibilidades e incertezas, aflito por um
futuro incerto que eu não conseguia enxergar ou prever, tomado pela fome e
falta de apetite, torturado pelo calor e atacado por uma coceira nervosa na
base do meu couro cabeludo que me fez ferir a pele sensível e queimada
pelo sol da minha nuca, não vi o tempo passar. Quando me dei conta, já
havia anoitecido e eu nem sequer tinha escrito o maldito e-mail.
Tinha vontade de gritar, arrancar os cabelos, sair correndo, sair
voando do planeta Terra e fazê-lo girar de volta para que o tempo voltasse,
e mesmo assim eu não saberia o que fazer, não sabia se repetiria tudo de
novo, se evitaria Arnaud, se entraria em seu barco, se o impediria de partir,
não sei, mas eu queria sair correndo dali.
Então cometi uma loucura.
◆ ◆ ◆
A
maioria das famílias em nossa ilha passava por um período de aperto
financeiro com o fim do verão. Como a maioria dependia do fluxo de
turistas para garantir a renda, quando a alta estação acabava, o
dinheiro diminuía. O mesmo acontecia com minha família, que possuía uma
loja de artigos para o verão e uma pousada, que, durante aquele seu
primeiro ano, mal fora ocupada. Cabia a mim, na chegada do outono,
substituir o funcionário de meio-período da loja da minha mãe, que virava
uma loja de roupas para outono e inverno.
Apático e grosseiro, com a mente em outro lugar, sem intenção ou
motivação de forçar um sorriso falso para agradar os clientes, acabei
afastando as poucas pessoas que pisaram na loja. Aproveitando a minha
falta de fome na hora do almoço, escapei da loja e fui até a pousada de
Inara, que ficava a alguns quarteirões descendo a rua principal.
O sorriso que ela deu ao me ver foi sincero, e por um instante
esqueci de todas as coisas ruins que se passavam na minha cabeça. Aquele
sorriso e braços abertos eram uma memória viva do verão que mal
terminara. Foi como ver um rosto conhecido depois de horas perdido em
meio a uma multidão de estranhos.
Passamos o meu horário de almoço conversando, sentados na praça
de Poseidon, sob a sombra de uma árvore. Minha fome finalmente
despertara e eu comia um sanduíche. Inara havia trazido uma garrafa de
vinho rosé, e a dividimos bebendo direto do gargalo.
— Rebeca me falou que vocês vão se encontrar no continente —
falei em determinado momento, quando os assuntos banais sobre o clima,
praia e férias acabaram. — Tu não tem medo de que lá as coisas entre vocês
sejam diferentes?
— Vão ser diferentes sim. Mas por que eu teria medo?
Fiquei calado. Em minha cabeça, eu fazia outras perguntas. Como
seríamos eu e Arnaud longe das férias de verão, sem pressa?
Esquentaríamos ou esfriaríamos? Arnaud, onde você estava? Em que
mundos fantásticos você navegava? Que perigos corria? Tempestades
homéricas, monstros marinhos, ondas gigantes, sereias e tritões? O
fantasma de Jérôme te deixava dormir? E o meu fantasma, te assombrava
durante a realização dessa promessa póstuma e mórbida? Você falava sobre
mim como Inara falava de Rebeca, sonhando, planejando, criando
expectativas otimistas sobre o futuro pós-verão? Provavelmente não, pois
você estava sozinho, sem ter com quem falar.
Inara se despediu de mim com um convite para visitá-la quando
pudesse, no continente. Falara que assim que se encontrasse com Rebeca,
me encheriam de fotos juntas. Por educação, falei que a visitaria sim, com
certeza. Mas certamente eu não teria dinheiro para isso. Eu nunca tinha ido
ao continente antes, e pela primeira vez senti um desejo palpável de ir.
Peguei a garrafa de vinho vazia, com uma ideia na cabeça, e voltei para o
trabalho me arrastando, as dúvidas sobre o futuro, sobre Arnaud e sobre
mim mesmo pesando em meus ombros.
Em casa, no ócio do tédio, sem nada para fazer, sem ter com quem
conversar, sem ter para onde ir, procurei respostas para a minha angústia e
companhia para minha solidão irreparável em livros, mas, como dizia
Platão: livro é mestre que fala, mas não responde. Não conseguia passar de
três páginas, não me concentrava. O tédio me venceu. Nada me interessava,
nem filmes, nem besteiras na internet, nem pornografia. Haviam consertado
meu quarto, colocado novas portas, limpado as manchas de sangue, e eu
não suportava ficar ali como se nada tivesse acontecido. Na piscina, eu
tinha vontade de me afogar. As praias certamente me deprimiriam com o
número reduzido de turistas. A cidade estava num clima de tensão, tinham
medo do prefeito, das mudanças que ele estava fazendo na legislação
municipal, dos homens armados que começaram a aparecer aqui e acolá,
fazendo ameaças, exigindo dinheiro para manter a segurança; dos crimes,
da mineradora que havia chegado com tratores, máquinas enormes,
explosivos. Das explosões vindas das montanhas, dos tremores, da água da
torneira que, de repente, havia se tornado salobra, imprópria para consumo.
Dos animais mortos aparecendo na praia.
C
om meus dias ocupados entre dormir e trabalhar na loja da minha
mãe, não vi quando Margarida foi embora. Ela tinha ficado na
pousada por algumas semanas depois do verão, arrastando-se no
outono para terminar seu livro. Enclausurou-se no quarto até terminá-lo e
saiu às pressas, pois estava em cima do prazo para entregá-lo aos seus
editores. Quando cheguei em casa num fim de tarde chuvoso, após um dia
particularmente entediante no trabalho, onde nem um cliente sequer havia
passado por aquela porta, ela já havia partido. Deixou-me uma carta, que,
furioso, recusei-me a ler e a enfiei dentro de uma gaveta destinada a coisas
sem destino.
Naquele momento o verão parecia uma coisa tão distante que
algumas lembranças começavam a se esvair. Começava a esquecer como
era o tom de voz de Arnaud, aquele seu sotaque tão atraente e diferente, que
eu nunca mais ouvira igual, aquela sua voz séria, contida, porém educada,
sempre sexy, que me fazia arrepiar os pelos do pescoço. Como era mesmo
ter um arrepio no pescoço? Eu não lembrava. Não lembrava qual era a
sensação de ter seus dedos passando de leve sobre os pelos da minha perna,
e assim eu fazia igual, com a minha própria mão, mas não parecia correto.
Acordar, trabalhar, dormir. Essa era a minha rotina. Os finais de
semana eram os mais difíceis, pois não havia o trabalho para me ocupar.
Também não tinha mais amigos na ilha para me distrair. Eventualmente,
parei de pensar em Arnaud, não imaginava mais onde ele poderia estar, não
perguntava para as estrelas, para o mar, para todos os deuses, onde ele
estava, não pensava mais em nada, minha mente era um vazio que nada
mais poderia preencher. Segui os dias absorto naquele vazio, como um
zumbi, arrastando os pés pelo chão, pensamentos perdidos em algum lugar
obscuro da minha mente.
Numa dessas semanas — não sou capaz de diferenciar os dias
naquele período, pois todos eram iguais — acordei e dei de cara com um
dia, não cinzento, úmido e chuvoso, mas ensolarado, quente e seco, que me
lembrava o verão. Quando eu desci, pronto para pegar minha bicicleta e ir
para o trabalho, minha mãe apareceu na porta da cozinha e disse que eu não
precisava ir trabalhar, podia tirar o dia de folga, aproveitar que não estava
chovendo para tomar um sol e respirar ar fresco. Respondi que não
precisava, que não queria tomar sol ou ar fresco nenhum, que queria
trabalhar, mas ela rebateu com um daqueles seus olhares afiados, precisos e
intimidadores.
Sem saber o que fazer ou que rumo tomar naquele dia inteiro livre
para fazer o que quisesse, contanto que fosse fora de casa, parei a bicicleta
assim que passei pelo portão da entrada da minha casa. O sol ainda não
queimava, estava cedo, apenas dava uma sensação agradável de
aquecimento, como um cobertor quente no inverno. O vento soprava seco,
levantando poeira e agitando as árvores, que balançavam sincronizadas ao
longo da estrada. Olhei para os dois lados, pensando para onde eu deveria
ir. À esquerda, o mesmo caminho que fiz tantas vezes durante as últimas
semanas, exaustivamente, todos os dias, sem precisar raciocinar ou pensar
qual caminho deveria seguir, pois minhas emoções humanas estavam
enterradas e eu apenas seguia no modo automático. Para o lado direito, o
caminho para o norte da ilha, que depois fazia uma curva, seguindo seu
litoral e adentrava a floresta, na trilha que ia até as montanhas. Um caminho
cheio de lembranças.
Segui para o lado direito, as lembranças aflorando em minha pele,
com o suor, como um remédio processado e metabolizado, o corpo
excretando as substâncias tóxicas em excesso. Algumas memórias são
fortes demais, não podemos nos livrar delas enterrando-as num fundo
obscuro da subconsciência. Penetram nos neurônios e nos músculos
cardíacos para nunca mais sair, como vírus ou metais pesados. Esses meus
tecidos estavam saturados, quase arrebentando, cheios de memórias. Ali eu
questionei o poder do tempo, o de curar feridas e limpar memórias. Dizem
que com o tempo esquecemos as coisas, em especial aquelas que nos
machucam. Não podia ser verdade. Não, aquilo não ia acontecer, eu não ia
esquecer, não com tantas coisas à minha volta que me lembravam dele.
Memórias são como fumaça de cigarro, que entra nos pulmões e fica lá para
sempre, até a morte. Há dados sobre isso, sobre quantas pessoas morrem
por ano de câncer no pulmão. Só não há dados de quantas pessoas morrem
de amor no coração.
Fazendo aquele caminho, lembrei de quando eu e Arnaud fizemos
aquela trilha, seguidos por aquele casal hospedado na pousada, como era
mesmo o nome deles? Oliver e Bruno, desgraçados que trabalhavam para
aquela maldita empresa. Eu teria cometido um erro ao levá-los ali?
Tinha um portão de ferro na entrada da trilha. Entrada proibida,
dizia. Todo o parque, que passara a ser uma propriedade privada, estava
fechado para manutenção. Diziam que iam reformar as trilhas, atualizar
sinalizações, fazer postos de parada e descanso. Eu não sabia se era verdade
— provavelmente não, caso contrário teríamos visto movimentação de
trabalhadores lá da pousada —, mas eu não me importava. Joguei minha
bicicleta por cima do portão e pulei.
Lembrei de novo de Arnaud. De como eu o temia naquela época que
entrei ali com ele pela primeira vez. Como me fascinavam seus gestos,
olhares, toques, palavras. As palavras não ditas. Como ele me alegrava e
deprimia. Aquela noite do acampamento, as conversas, eu indo dormir do
lado de fora da barraca — que ingênuo! — quando começou a chover e ele
me chamou lá para dentro com ele. Ele me mandou tirar a roupa, quis me
aquecer. E eu hesitei. Quantas oportunidades desperdiçadas! Oportunidades
perdidas desde quando ele chegara, com aquela sunga que me fascinou com
sua feiura, aquelas palavras que ficaram presas na minha memória,
Sotaford-Dortnellas, como vindas de um sonho misterioso. Quando ele
pegara aquele meu livro de poemas, e me devolveu aqueles versos que tudo
diziam mas nada entendi. Quando recitamos aquela música, da cantora
Nico. A melhor das estações. Arnaud profetizou aquele nosso verão, que
foi, sim, a melhor das estações. Naquela noite ele me perguntou,
parafraseando a intérprete, se deveria ir ou ficar. E eu nada falei, pois temia
as palavras, temia os sinais. Eu devia ter lido seus sinais cuidadosamente.
Já tinha avançado a trilha, empurrando a bicicleta, quando ouvi um
tiro vindo de dentro da mata.
Os pássaros voaram no alto, assustados. Deviam estar caçando ali,
mas eu preferia não ficar para descobrir. Fui, continuei o caminho
pedalando. Se já estava ali, não iria mais voltar, seguiria a trilha até o fim,
mas querendo sair dali o mais depressa possível. Não só pelo tiro, mas pelas
memórias que pareciam me perseguir.
Passei pelo rio, que corria poderoso, cheio, bem maior do que no
verão, pois estava abastecido com as águas da chuva. Mas a água estava
barrenta e malcheirosa. Algo horrível estava se passando ali e a destruição
do paraíso, que até o momento era algo apenas da minha cabeça, acontecia
bem diante dos meus olhos. Havia peixes mortos, em decomposição, ao
longo de toda a margem. Os resíduos tóxicos da mineradora estavam
matando-os. Senti um tremor na terra. Afastei-me da água.
Pouco antes do meio-dia, cheguei ao local onde eu sempre
acampava. Parei para descansar, exausto, ofegante, molhado de suor.
Alguém já acampava ali, havia pelo menos sete barracas montadas.
Estranhei, afinal, o parque não estava fechado? Como conseguiram passar
com tanta coisa? Não havia ninguém ali, entretanto, talvez estivessem na
trilha ou no lago. Ah, o lago...
Lembrei de quando pulei na água pelado, sozinho, e nadei para que
ele me assistisse. De quando corri até ele e ele disse para eu o esperar, uma
espera sem fim, pois teríamos uma conversa. Quão angustiante fora aquela
espera! E ali estava eu de novo, esperando, angustiado. Como ele pôde ter
ido embora tão rápido? E como podia estar demorando tanto para dar sinais
de vida? Ele estava vivo?
Decidi não ficar por ali e passei pelas barracas. Estavam ali há
algum tempo. O solo estava chamuscado pela fogueira, havia roupas
penduradas nos varais, restos de comida e lixo pelos cantos. Estava tudo
imundo. Decidi tirar foto, queria mostrar a meu pai a situação da reserva.
Foi quando vi as armas. Espingardas, pistolas e fuzis. Eram armas de caça.
Vi dardos tranquilizantes também. Tinha um macaco ali também, do lado de
uma barraca. Morto. Tinha marcas de queimadura pelo corpo, e haviam
raspado sua cabeça. Segurei o choro para não fazer barulho. Torturaram ele.
Tirei foto de tudo e fugi dali.
Escondi minha bicicleta quando cheguei perto da casa da bruxa.
Ninguém conhecia aquela reserva mais do que eu. Fui por dentro da mata,
sem fazer barulho, caminhando devagar por conta da grande camada de
folhas no solo. Ali, a floresta estava silenciosa: como se todos os bichos
tivessem medo da bruxa.
Encontrei o casarão depois de meia hora, no meio de uma clareira.
Era uma casa antiga de dois andares, caindo aos pedaços. O teto cheio de
plantas trepadeiras, as janelas quebradas, as paredes com lodo e infiltrações.
Não precisei entrar para saber o que estava acontecendo ali. Tráfico de
animais silvestres, no mínimo. Centenas de gaiolas estavam empilhadas do
lado de fora da casa, torrando sob o sol. A maioria estava vazia, mas muitas
delas estavam apinhadas de passarinhos, roedores e pequenos mamíferos.
Tirei foto de tudo, à distância. Havia muita movimentação de gente lá
dentro, e homens entrando e saindo carregando pacotes. Possivelmente
drogas. Ali era o quartel general do prefeito. Não era à toa que havia
fechado a reserva. Saí dali determinado a colocar aquilo tudo abaixo.
◆ ◆ ◆
A casa estava escura e silenciosa, meus pais dormiam. Devo ter feito
barulho ao subir a escada, talvez tropeçado, ou meus passos estavam
pesados demais, ou talvez esbarrei na parede, embriagado, ou então ainda
ria da cena ridícula de Sâmia. Ou talvez tivessem escutado o grito da
menina, pois vi uma luz se acendendo no corredor. Quando cheguei no alto
da escada, a luz não vinha do quarto dos meus pais, que continuava com a
porta fechada, mas sim do quarto ao lado do meu. Parado na porta, olhando
para mim seriamente, quase que furioso, talvez sentindo um pouco de pena,
com a cara inchada de sono, estava o meu irmão.
29 ✹ AS MUDANÇAS
F
iquei paralisado ao ver meu irmão na porta do seu quarto, como uma
assombração vinda do inferno para me levar para o mundo dos mortos.
O que ele estava fazendo ali? Quando havia chegado? O que queria?
— Oi — falei. Havia passado tanto tempo sem ele, que sua
presença me desconcertava. Eu já estava acostumado com aquele quarto
vazio ao lado do meu, que ele ocupara por tanto tempo. Estava acostumado
à minha vida sem ele. Será que isso aconteceria com Arnaud, quando, e se,
nos reencontrássemos? Eu não saberia o que dizer? Eu apenas balbuciaria
um tímido e sem graça oi?
— Não faça barulho pra não acordar o bebê — disse, e então
parou e me olhou, como que me analisando. — Vá dormir. — E fechou a
porta.
O álcool não me permitiu ficar ofendido com sua grosseria, além
disso, fiquei animado por ele ter trazido o bebê que eu tanto queria
conhecer. Vi a luz se apagar por baixo da porta e fui para meu quarto,
caminhando na ponta dos pés e tateando as paredes, torcendo para não
esbarrar em nada. Na cama, capotei e, com a ajuda do álcool, pois sem ele
eu passaria uma longa noite revirando-me na cama, no escuro onde não se
diferencia olhos fechados ou abertos, pensando onde será que estava
Arnaud, onde estava todo mundo, o que diabos eu estava fazendo ali
naquela ilha e o que deu na minha cabeça para quase cheirar pó no banheiro
de um bar com um velho desconhecido.
N
um desses dias iguais de inverno, onde a chuva pesada se arrastava
por tantos dias que é impossível diferenciá-los, o pescador que havia
desaparecido na tempestade do último verão foi encontrado. Seu
barco havia sido despedaçado sob as ondas e ventos intensos, e ele acabara
numa ilhazinha minúscula e deserta afastada do arquipélago e de todas as
rotas de embarcações. Passara os últimos meses se alimentando de coco,
peixe e água da chuva, sem nenhum contato com a humanidade, até que foi
resgatado por um barco de uma ONG, que estava de passagem pela área,
fazendo estudos sobre como efluentes agrícolas e industriais do arquipélago
estavam prejudicando o ecossistema local.
Vi, pela televisão, o rosto do pescador náufrago ao descer no porto e
ser recebido pela família que não via há tanto tempo. O brilho em seus
olhos e o sorriso imenso ao abraçar a esposa e os filhos, que mal
perceberam o estado do homem, raquítico, com insolação, o cabelo que
parecia um ninho de ratos, era de um amor incondicional, que resistira todo
aquele tempo, àquela falta de notícias, àquele oceano que os separava e o
isolava em um pedacinho de terra.
Obviamente não pude deixar de me comparar a ele, pois, apesar de
ainda possuir um teto sobre minha cabeça, comida e outras pessoas com
quem podia interagir, a pessoa que mais me importava naquele momento, e
a única que eu realmente queria ter contato, estava sem dar notícias. Sentia-
me isolado, tão ilhado quanto aquele pescador, condenado a passar meses
naquela ilha cercada por água, por quilômetros e mais quilômetros de um
oceano deserto e silencioso. Eu roía as unhas e coçava o couro cabeludo
freneticamente em angústia, esperando que aquela minha carta colocada em
uma garrafa e jogada ao mar, o meu e-mail, chegasse a Arnaud.
Naqueles dias, durante aquela espera, que parecia sem fim, minhas
inseguranças voltaram. Enquanto a chuva batia na porta da minha varanda e
o ar úmido mantinha tudo com um constante aspecto de molhado,
perguntava-me se meu e-mail havia chegado, ou se perdido no meio do
caminho, sendo extraviado pelos carteiros virtuais do mundo da internet.
Talvez ele ainda não tivesse chegado, meu subconsciente dizia, tentando me
acalmar, mas depois completava com um: talvez ele não tivesse chegado
porque seu barco naufragou e ele estava morto, sendo devorado por
tubarões e baleias e peixes medonhos, ou estivesse sozinho numa ilha
deserta, morrendo de fome. Será que ele sabia pescar ou abrir cocos? Ou
ainda, essa hipótese era a pior de todas, a que eu recusava a pensar, mas
meu subconsciente insistia em implantá-la em meus pensamentos,
provocando uma sensação ruim no peito e uma comichão na nuca: talvez
ele já tivesse chegado, lido o meu e-mail, se arrependido de tudo que
passara comigo e decidido ignorar a mensagem. O que seria de mim, nesse
caso? Eu estaria condenado a uma vida inteira de uma espera perpétua? Por
que ele não respondia, então, que não queria mais me encontrar? Seria uma
mensagem horrível, mas pelo menos aquilo tudo teria um desfecho.
Tentei me distrair o máximo que pude naqueles dias, indo trabalhar
na loja da minha mãe, ajudando meu pai em algumas mudanças na pousada,
que já se preparava para o próximo verão, passando tempo com o bebê do
meu irmão, a minúscula Ju, trocando mensagens com Rebeca, que estava
contentíssima no estágio, pois havia se destacado no escritório e conseguido
muitos elogios dos chefes; com Augusto, que me falou que as chuvas
brandas daquele inverno ajudaram a recuperar a plantação dos pais e, além
disso, havia se juntado à mesma ONG que resgatara o pescador náufrago.
Estavam organizando vários protestos por lá, e conseguiram paralisar os
trâmites jurídicos que iam expulsá-los, fazendo várias acusações de
corrupção contra a empresa que ia se instalar naquelas terras. Fiquei
sabendo por ele, também, que os pais de Sâmia estavam sendo investigados
por participarem do esquema de corrupção que culminara no contrato
fraudulento com aquela empresa, além de vários crimes ambientais pela
ilha. Segundo ele, a ONG recebeu vários documentos de uma fonte
anônima que apontava tudo aquilo. Mas faltavam mais provas.
— Que tipo de provas?
— Fotos talvez — ele me respondeu. — O povo só acredita vendo.
Também troquei mensagens com Américo, que se recusava a
receber minhas visitas, a não ser que fosse para me despedir quando eu
estivesse indo embora do arquipélago. Já que ele passara a me responder,
aproveitei e perguntei se ele tinha algum amigo fotógrafo que pudesse me
emprestar uma boa câmera. Mas ele me deu uma ideia melhor: me
emprestou a câmera que usava em suas lives. Caríssima e com alta
resolução, fazia gravações até no escuro.
P.S.: adivinha quem eu encontrei por aqui? Rebeca. O que você andou
aprontando por aí na minha ausência?”
31 ✹ O OCEANO
D
eus ex machina. Deus surgido da máquina. Uma expressão latina
utilizada para designar soluções caídas do céu, inesperadas, uma
salvação repentina quando tudo parece estar perdido. Dizem que veio
lá dos gregos, quando, numa peça, tudo parecia não ter solução e aparecia
um deus pendurado por cabos, no palco, e salvava os personagens. É assim
que chamo os salvadores da minha narrativa, que, quase pendurados por
cabos, me salvaram da perdição e loucura. Margarida, Rebeca, Elisa,
Américo, Augusto, o meu irmão, todos eles foram o meu Deus ex machina.
Estava tudo pronto para a minha viagem. Meu irmão já tinha
voltado para o continente com sua família há alguns dias e eu só aguardava
o dia que a minha passagem estava marcada, quando entraria no avião e
atravessaria o oceano em direção a Arnaud, libertando-me, finalmente, não
mais ilhado naquele pedaço de terra que um dia fora o meu paraíso.
Conversava diariamente com Arnaud. Já havíamos combinado tudo.
Eu chegaria no continente alguns dias antes do lançamento do livro de
Margarida, desceria em Marseille, onde ele me encontraria, e ali
passaríamos alguns dias juntos (em um hotel, pois ele havia entregue seu
apartamento antes de começar sua jornada nos mares), e então iríamos
juntos para Paris, onde seria o lançamento do livro.
Insone em expectativa, imaginava como seriam aqueles meus dias
no continente, com tanta terra ao meu redor, tantos lugares para ver e olhar,
sempre ao lado de Arnaud, onde ali ele não era um estrangeiro, um
marinheiro, onde tudo lhe era familiar e para mim era o contrário. Dessa
vez eu seria o estrangeiro, o que chegou, não de barco, mas de avião, e ele
me mostraria vistas, igrejas, trilhas, ruas estreitas e antigas, eu sentiria o seu
sol, o seu vento, veria as suas cores, andaríamos de mãos dadas em
territórios que nunca antes havia visto, e ele me deitaria em sua cama,
esfregaria em meu corpo o seu sabonete, me daria para experimentar
comidas desconhecidas, e continuaríamos a nos amar da mesma forma. Não
importa onde estivéssemos, quais territórios inexplorados nossos corpos
ocupassem, nós sempre nos conheceríamos, sempre nos amaríamos da
mesma forma. Éramos, um para o outro, porto seguro em mares agitados e
sombrios.
Quando falei para Rebeca que iria para a Europa, ela pulou e gritou
em comemoração. Não vi, é claro, mas supus que ela havia feito isso.
Quando falei que iria para o lançamento do livro de Margarida, ela
implorou para que eu conseguisse um convite para ela. Disse-me que
certamente naquele evento estariam vários diretores de teatro que ela queria
conhecer. Margarida prontamente me deu o convite. Quando me disse que
ela e Inara ainda estavam juntas, e que Inara seria sua acompanhante, aquilo
me encheu de esperanças. Se o amor de verão delas havia durado tanto
tempo, persistido durante outras estações, e existido mesmo sem as
limitações de tempo e espaço do verão naquela ilha, o meu e o de Arnaud
também poderia durar. Os meus medos de que mudaríamos e que nossa
paixão ia se dissipar se tornaram irrelevantes. Mudaríamos, é claro. Mas
mudanças não são sempre ruins.
Com minha mala pronta para a viagem no dia seguinte, olhei, em
retrospectiva, para o passado, pensando em todas as coisas que mudaram e
culminaram naquele precioso momento. O vento que soprava fraco e quente
e as primeiras frutas maduras, doces e suculentas, que chegavam na mesa
anunciavam que um outro verão chegava. No jardim, onde eu havia
plantado aquela última acerola sobrevivente da tempestade, nascera uma
nova aceroleira, dando prosseguimento a um ciclo, o ciclo da vida, muito
embora naquele ciclo nada se repetisse. Nunca haveria novamente um verão
como aquele passado. Não me banharia novamente, pelado, muito menos
com Elisa, no rio. E também não veria, chegando em meio aos veleiros da
temporada, um outro navegador queimado pelo sol e misterioso, com uma
sunga horrorosa e as costas largas, cuja imagem ficaria na minha cabeça por
longos dias.
Naquele novo ciclo, quando o sol novamente se erguia em sua
máxima potência, atraindo velejadores e turistas, eu não era mais o mesmo
Nico. Aquelas inseguranças, descobertas, medo do desconhecido, tudo isso
não se repetiria, pois, naquela nova fase da minha vida, tudo o que eu tinha
era a certeza de que eu seria feliz, onde, finalmente liberto dos limites
geográficos e metafóricos daquela ilha, eu seria completo. E acompanhado
de Arnaud.
Naquela última noite tive um sonho macabro e bizarro. Sonhei que
chegava em Marseille e me deparava com o funeral de Arnaud. Não havia
ninguém lá, apenas o seu corpo, empalidecido, frio, morto e sem roupa em
cima de um caixão aberto. Ele estava completamente pelado. Subi em seu
corpo, assim, sem mais nem menos, sem pudores, sem etiquetas sociais,
apenas munido por um desejo louco e incontrolável de senti-lo entre minhas
pernas novamente. Passei a mão sobre seu peito, a pele gelada, sentindo
aqueles pelos finos, loiros e mortos que tanto haviam me excitado e, para a
minha surpresa, continuavam a me excitar.
Acordei horrorizado, num salto, o volume do meu pênis enrijecido
elevando-se sob os lençóis. Arnaud me excitava mesmo morto. Com a
libido que havia desaparecido nos últimos meses de volta, nada pude fazer
além de tentar aliviar-me. Não funcionou, é claro, mesmo após duas
sucessivas ejaculações, pois, mesmo tocando-me e, com os olhos fechados,
visualizando Arnaud, a minha imaginação não era suficiente para suprir a
sua falta. Aquele desejo furioso que mal cabia dentro de mim só poderia ser
saciado por ele. Aliás, nem isso, pois, como ele mesmo havia dito, eu era
insaciável quando estava com ele. Quanto mais ele me dava, mais eu queria
tê-lo. E, na iminência de encontrá-lo novamente, eu o queria mais do que
nunca.
Antes de viajar, meu pai cuidou do meu cabelo. Desde que Inara
fizera aquelas tranças em mim, eu não cuidara mais dele. Não tinha
coragem. Quando alguém tocava nos meus cabelos, eu me lembrava do dia
em que os bandidos entraram na nossa casa e um deles me arrastou escada
abaixo, me puxando pelas tranças. Meu pai foi a primeira pessoa a quem eu
confiei me tocar depois daquilo. Ele fez dreads, disse que fazia no próprio
cabelo quando era jovem.
Sentamos no terraço da casa, ele numa cadeira, e eu, em um
banquinho na frente dele. Enquanto penteava meu cabelo para trás e
começava a fazer as tranças, enrolando-as com fios de lã, ele falou:
— Sinto muito pelo que aconteceu. Arnaud tava certo em denunciar
o esquema do prefeito. Talvez as coisas já tivessem sido resolvidas. Eu não
devia ter deixado ele ir embora. Ele era um bom hóspede, afinal. Você
também tava certo, Nico, me desculpa, eu afastei vocês e te fiz sofrer. —
Era a primeira vez que eu o via pedir desculpas e ser tão sincero. Ele estava
se esforçando para falar aquilo.
— O senhor também não tava errado, pai. Talvez fosse pra
acontecer — falei, tentando consolar nós dois. Não são esses momentos que
nos constroem como pessoas complexas? Não são essas cicatrizes que nos
deixam mais fortes? A conciliação, o deixar para trás. — Se não fosse por
isso, não estaríamos aqui. E eu não estaria viajando pra alcançar meus
sonhos.
— Eu sabia que um dia você ia sonhar longe. Faça tudo valer a
pena, meu filho. Não se arrependa. E não faça a gente se arrepender.
Sorri, tentando afastar os pensamentos negativos que brotavam na
minha cabeça. E se eu me arrependesse? Eu estava fazendo aquilo certo? E
se meus pais estivessem certos? E se tudo aquilo fosse realmente uma fase?
E se eu estivesse sendo precipitado demais? E se eu não devesse dar uma
chance tão grande para um amor que tinha surgido tão rápido? E se o meu
livro fosse um fracasso? E se...
— Melhor me arrepender de algo que fiz do que passar a vida inteira
imaginando como teria sido — falei, por fim, interrompendo os meus
próprios pensamentos malignos, apelando para aquele lugar-comum, na
esperança de que fosse real.
◆ ◆ ◆
A
imer c'est aussi savoir laisser partir. Amar é também saber deixar
partir. Haviam me dito essa frase tantas vezes. Primeiro, quando meus
pais faleceram no acidente de carro quando estavam indo me visitar
em Marseille. Foram tempos difíceis, aqueles. Sentia-me culpado,
arrependido. Mas quem ama, deixa partir, foi o que me disseram. E
disseram novamente quando Jérôme morreu. Falavam isso também quando
eu publiquei aquele livro. Aqueles anos que se sucederam foram horríveis,
pois eu não queria deixar Jérôme partir. E somente quando o deixei partir,
quando entrei naquele barco para cruzar os oceanos, para cumprir uma
promessa e para realizar uma vingança, acabando num pequeno paraíso em
forma de ilha, aprendi a amar novamente. E finalmente entendi o que
aquela frase significava.
Até que foi a minha vez de partir. De deixar para trás aquela ilha, o
pequeno Nico que ficou de coração partido. Montou em sua bicicleta e foi
embora sem nem olhar para trás. Fiquei parado no meio da rua, olhando-o
desaparecer na esquina com a bicicleta, na esperança de que ele desse uma
última olhada em meus olhos ou voltasse para mim. Mas ele continuou, me
deixou partir.
Precisei me segurar para não correr atrás dele ou pedir para que
fosse comigo, mas também precisei deixá-lo ir. Tínhamos nossa jornada a
cumprir, e não há jornada sem dor. Nico precisava daquele tempo sozinho,
mesmo que fosse doer, para se conhecer, se descobrir e ter certeza do que
queria para a própria vida. Ele precisava ser forte. E assim eu também
precisava daquele tempo sozinho, para concluir aquela viagem e deixar,
finalmente, Jérôme partir de vez, como um encerramento, mesmo que eu
me questionasse inúmeras vezes se havia feito a coisa certa. Antes de ir
embora, fiz minha última despedida: enviei todo o meu último trabalho, os
documentos da investigação que havia feito ali na ilha, para uma ONG
local. Eu não queria mais aquilo para mim.
Dias tortuosos foram aqueles no mar. O silêncio que tanto me
acalentou e reconfortou, durante a primeira etapa da viagem, ali adquirira
um aspecto aterrorizante. A agitação dos últimos meses havia esquentado
meu coração, e não estava preparado para deixá-lo esfriar novamente. No
mar, desenhei o que mais me havia marcado durante aquele verão. Não a
exuberância da paisagem, com suas árvores verdes, frutos extremamente
doces, o sol intenso, o azul perfeito do mar, o rio que corria puro ou a
música dos pássaros, muito menos o charme daquela cidade, com suas
flores coloridas, casas antigas de parede branca e janelas azuis, turistas e
moradores simpáticos, lojinhas de artesanato ou feiras públicas de peixe e
verduras. Foi Nico que mais marcou aquele verão.
Desenhei-o exaustivamente nos dias sozinho no mar, quando a falta
que ele fazia em mim me corroía aos poucos. Não tiramos fotos juntos, e
fechar os olhos e encontrá-lo em meus sonhos só aumentava o peso da
saudade. Consolei-me desenhando-o. Desenhei aqueles olhos que
encontraram os meus assim que cheguei na ilha, um olhar tão intenso e
complexo que havia ficado na minha cabeça o resto do dia, e, mesmo sem
ainda conhecê-lo, tinha certeza de que ele era importante. Quando cheguei
na pousada e o encontrei lá, soube que aquele meu verão não seria de
sossego e descanso. Desenhei o seu cabelo, aqueles cachos que me faziam
tanta falta. Como eu queria passar os dedos por aqueles fios e sentir aquele
cheiro que não me largava nunca! Desenhei o seu sorriso, enorme,
belíssimo, os dentes que reluziam, aquele riso que me fazia sentir um aperto
no coração de tanto desejo e amor. Desenhei seu corpo, perfeito, a pele que
se arrepiava aos meus toques e que me arrepiava de maneira igual.
Joguei fora minhas anotações, minha investigação, o esboço da
minha matéria. Não queria que Nico e sua família fossem afetados. Eu não
queria ser um ciclone a derrubar as árvores daquele paraíso calmo. Eu teria
que encontrar outra forma de ir atrás daquela empresa, mas não queria
pensar nisso naquele momento. Eu só conseguia pensar em Nico. De toda
forma, havia enviado os documentos para aquela ONG, talvez estivessem
em condições melhores de agir do que eu.
Por vezes desejei que um acidente ocorresse no meu barco, que eu
naufragasse para que um helicóptero viesse me socorrer e me levasse de
volta à ilha. Mas nada aconteceu, o mar continuou calmo e o vento, estável.
Sentia falta do jeito que Nico me tocava, com cuidado, curiosidade, e um
desejo que estava sempre ali; de tocar sua pele, macia, que, mesmo na
sombra, possuía o brilho do sol; do jeito que ele me olhava, seus olhinhos
brilhando, o sorriso sempre na boca, as palavras de afeto que pareciam
meticulosamente calculadas e do jeito que ele me escutava, tão atento,
sempre fazendo-me sentir desejado e importante. Mal sabia que era ele que
era importante para mim.
Não sou bom em palavras. Não sou de metáforas, comparativos ou
descrições intensas e detalhadas. Esse dom é de Nico. Eu sou jornalista,
minha escrita é objetiva. Para mim, é difícil explicar o que senti naqueles
primeiros dias na ilha, quando o conheci e, aos poucos, fui me afeiçoando a
ele cada vez mais, até que me peguei completamente apaixonado. Não
esperava aquilo, não naquela fase da minha vida, nunca achei que meu
coração, de tão machucado, fosse me permitir gostar de alguém novamente,
muito menos durante aquela viagem, enquanto fazia um trabalho
importante.
Em meus desenhos tentei explicar como foi, para mim, conhecer
Nico, como ele me fez melhorar, como ele me fez deixar o passado para trás
para começar uma nova vida, o quão intenso era o amor que eu sentia por
ele. Que eu sinto. Um amor tão grande como esse, que surgiu de forma tão
rápida e poderosa, é de difícil descrição.
Assombrava-me como até o mar havia mudado para mim de
maneira tão abrupta em tão pouco tempo. Aquela beleza que eu via na sua
imensidão azul havia desaparecido, e agora tudo o que via naquele deserto
salgado era um obstáculo, uma barreira que me separava de Nico. Com
tantas calmarias e tempestades que passei naquela travessia, sentia como se
estivesse sendo castigado pela decisão imbecil de ter deixado a Ilha, ou de
não ter trazido Nico comigo. Jérôme nunca me dera as especificações
daquela promessa. Nunca me disse que eu não poderia conhecer alguém no
caminho e querer levá-lo comigo. Jérôme, naquela altura, já havia me
deixado partir. Estava longe, em outros planos. E eu havia ficado sozinho.
✹
AGRADECIMENTOS
Ilhados é bem importante e pessoal para mim. Foi a primeira história que
escrevi e publiquei. Fez um sucesso no Wattpad, onde comecei a me
aventurar nessa vida de escritor. Lá, tive mais de 50 mil leituras, ganhei
mais de dez concursos e fiz muitos amigos queridos. Quando levei a
história para a Amazon, meio que ensaiando uma profissionalização da
minha escrita, Ilhados também me rendeu muita coisa. Mas isso já faz
muito tempo. Naquela época, eu ainda me considerava um escritor
iniciante. Aos poucos, quando fui amadurecendo, comecei a desgostar da
história. Via muita coisa errada no enredo, não me identificava mais com o
que tinha escrito, e aí retirei o livro da Amazon e o deixei apodrecer numa
gaveta imaginária.
Durante esse tempo, vez ou outra alguém chegava para mim perguntando
onde estava Ilhados. Dizendo que estava com saudades de Nico e Arnaud,
me pediam o pdf, pediam para eu republicar. Agradeço demais a todo
mundo que fez isso. Era muito louco ver que tanta gente sentia carinho por
algo que eu passei a detestar. Foi isso que me fez nunca esquecer Ilhados.
Ilhados é, principalmente, uma história sobre autoconhecimento. E foi com
o meu próprio processo de autoconhecimento que entendi o motivo de eu
ter colocado a história na gaveta. Eu peguei muita coisa da minha vida para
compor o protagonista. Coisas que eu odiava em mim mesmo, coisas do
meu passado. Quando eu estava trabalhando esses meus problemas, decidi
revisitar a história.
Lendo com um novo olhar, decidi reescrever tudo. Reescrevendo, vi que
não era tão ruim assim. As coisas que eu achei problemáticas, mudei, tirei
trechos, adicionei outros, aprimorei a escrita. Quem leu a primeira edição,
vai saber. E até agora estou nervoso, pensando no que vão achar, se vão
gostar ou não. Por favor, me falem! Na reescrita passei a enxergar o texto
com mais carinho, e espero que vocês sintam isso também. Sinto que dei
mais amor a Nico, dei mais vida à história, e o que antes eu não me
identificava mais, agora deixei muito mais a minha cara.
Assim, eu queria agradecer o apoio de todo mundo que chegou até aqui,
que leu, que me deu palavras de incentivo, que me deu dicas, críticas,
sugestões, que me acompanhou durante todo esse trajeto e, principalmente,
nunca me deixou esquecer Ilhados e nem quem eu sou. Obrigado, de
verdade! Sempre revisitem suas histórias! Reescrevam, se quiserem. E
sempre se tratem com carinho, mesmo aquele seu eu sem noção de dez anos
atrás. Ele tinha muito o que aprender, muito o que viver, e fez o melhor dele
com o que tinha na época.
E, é claro, um super agradecimento a Luciana Fauber, minha revisora,
preparadora e autora do belíssimo poema que abre esse livro. Ela leu todas
as versões de Ilhados, desde a época do Wattpad, e provavelmente sabe
alguns trechos decorados. Lu é uma pessoa muito querida, maravilhosa, e
deu todo o carinho e atenção que esse texto merecia. Obrigado demais, Lu,
te amo!
✹
ABOUT THE AUTHOR
Lucas Santana
Fruto Podre
Um conto assombroso no qual os fantasmas são os verdadeiros guardiões da
memória. - Eric Novello, autor de "Ninguém nasce herói".
O Parque
Atraído por um homem misterioso que começa a frequentar o parque onde
trabalha, um funcionário se perde em um jogo de sedução e violência.
Quando cadáveres surgem na praia logo ao lado, deixando-o preso numa
roda-gigante de medo, paranoia e adrenalina, seu mundo começa a
desmoronar.
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