Relatorio - Final MCH Dehis
Relatorio - Final MCH Dehis
Relatorio - Final MCH Dehis
PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E
INTERNACIONALIZAÇÃO -AGEUFMA
Observação: Os relatórios dos projetos aprovados em agências de fomento estão isentos de avaliação (nas
instâncias da UFMA), devendo ser apresentados ao Departamento de Pesquisa na forma como foram
encaminhados ao órgão financiador, entretanto sugerimos informar os produtos gerados, conforme o item 7
deste formulário.
RELATÓRIO
FINAL [ X ] ANUAL [ ]
NOME FUNÇÃO
1. INTRODUÇÃO
“Para que servem as humanidades?” A pergunta feita pela Professora Leyla Perrone Moisés, em um dos seus
mais emblemáticos textos, e a resposta que a ela se seguiu, sobre os estudos que têm o homem, enquanto
sujeito histórico, como objeto central de reflexão, serve para traduzir a relevância dos estudos inquisitoriais
em minhas prioridades de investigação.
Foi em 1990 que efetivamente comecei a me debruçar sobre a temática Inquisitorial, quando, à época, sob a
orientação da Professora Doutora Anita Novinsky coube-me a transcrição do processo inquisitorial de João
Dique, senhor de engenho, morador no Rio de Janeiro setecentista,
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2310299
Desde então, os estudos que versam sobre a Inquisição portuguesa têm sido recorrentes e progressivamente
adensados em minha trajetória acadêmica. Em todos eles, a vertente tem sido marcada pelo entrelaçamento
entre Europa e América Portuguesa, especialmente no que diz respeito à documentação, se levarmos em
conta que todos os processos por mim transcritos e analisados encontram-se alocados no Arquivo da Torre
do Tombo ANTT, digitalizados e disponibilizados online na plataforma DigitArq / TT.
Somado aos vários estudos com a temática História das Mulheres, que igualmente tenho me debruçado,
especificamente no Mestrado e Doutorado na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – FFLCH / USP e Pós-Doutorado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa – ICS / UL, o projeto “Mulheres no santo ofício: elementos para a compreensão do trabalho
feminino em Lisboa segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” foi elaborado.
Cumpre ressaltar que a primeira parte do seu desenvolvimento (2017 – 2021) já encontra-se concluída e
aprovada no Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão, do qual faço parte como
Professora Associada.
Por estes marcos, a proposta do projeto “Mulheres no santo ofício: elementos para a compreensão do trabalho
feminino em Lisboa segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” PARTE II constitui-se como
seguimento de um estudo em curso.
Nesta segunda parte, as protagonistas continuam a ser as mulheres moradoras e presas na cidade de Lisboa
pela Inquisição, entre os anos de 1536 a 1636, com enfoque particular às suas profissões. A intenção foi dar
seguimento as observações dos seus cotidianos, teias de sociabilidade, motivos das suas prisões e análise das
suas atividades laborais iniciadas no projeto “Mulheres no santo ofício: elementos para a compreensão do
trabalho feminino em Lisboa segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” PARTE I, desenvolvido
neste Departamento de 2017 a 2020.
A justificativa permaneceu ancorada ao fato de que, embora muitas pesquisas sobre a temática inquisitorial
tenham sido feitas, os estudos dos sujeitos históricos femininos, no que se refere ao seu cotidiano e ofícios,
apresentam-se de forma bastante diluída na historiografia.
O recorte temporal, séculos XVI e XVII, como já traçado no Projeto antecedente (parte I), decorre da
necessidade em se perceber vivências femininas ibéricas nos cem primeiros anos do funcionamento da
máquina inquisitorial. Momento em que internamente Portugal consolidava a instalação do Tribunal da
Inquisição e a ideologia Tridentina e externamente ampliava o seu império ultramarino e estabelecia em
“Além-Mar” a montagem efetiva do sistema colonial na América Portuguesa.
Não menos importante, no rol que compõe a contiguidade deste estudo, foi a possibilidade de continuar a
aceder a informações sobre aquela cidade e sua população em uma temporalidade da qual pouco se sabe em
decorrência da significativa destruição documental quando do terremoto que assolou a capital lusitana em
1755. Dos 100 (cem) processos inquisitoriais abertos e intentados contra mulheres lisboetas nos séculos XVI
e XVII (1536 – 1636) e elencados para a pesquisa completa, foram transcritos e analisados na referida
PARTE I do Projeto um total de dez processos, a saber:
2. Processo inquisitorial da beata Isabel Fernandes, cristã velha, 55 anos, tecedeira, acusada de
proposições heréticas. https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2309426
5. Processo inquisitorial de Inês de Caminha, cristã-nova, 25 anos, tendeira da casinha dos almotacés,
acusada de judaísmo. https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2302216
6. Processo inquisitorial de Catarina Álvares, cristã-nova, ama de Duarte Tristão, acusada de judaísmo.
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2304327
A pesquisa “Mulheres no santo ofício: elementos para a compreensão do trabalho feminino em Lisboa
segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” PARTE II avançou as análises dos processos
Histórias de mulheres que foram presas pela Inquisição Portuguesa e que viviam das mais diversas atividades
laborais: padeiras, taberneiras, costureiras, tendeiras, amas, engomadeiras, tintureiras, domésticas,
mercadoras, fiandeiras, cozinheiras, parteiras, curandeiras, cartomantes, rendeiras, tecelãs, etc. e como esses
ofícios entrecruzavam-se com as heresias, proposições heréticas ou crimes os quais foram acusadas.
Some-se a isso, a possibilidade de verificar o estabelecimento das redes de relações possíveis derivadas dos
exercícios dos seus ofícios dentro de um contexto marcadamente androcêntrico e católico em uma Lisboa
marcada por intensa dinâmica mercantil de trocas comerciais e confluências que lhe renderam a qualificação
de cidade global no século XVI.
2. MÉTODOS E PROCEDIMENTOS
Como dito anteriormente, o corpo de documental que compõe a investigação integral é constituído por 100
processos inquisitoriais correspondentes a Inquisição de Lisboa e encontram-se alocados e disponibilizados
integralmente no acervo digital do Arquivo Nacional da Torre do Tombo ANTT http://digitarq.dgarq.gov.pt/
Para a pesquisa “MULHERES NO SANTO OFÍCIO: elementos para a compreensão do trabalho feminino
em Lisboa segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” PARTE II procedeu-se a transcrição
paleográfica e análise dos seguintes processos (sequenciados aos trabalhados na parte I), a saber:
13✓PROCESSO DE JOANA VELHA. Idade: 27 anos Crime/Acusação: acusou um familiar do santo ofício
de ter parentes cristãos-novos Cargos, funções, atividades: criada em casa de D. Maria de Castro Vasconcelos
Naturalidade: Lisboa ... Datas 1557- 03-09 - 1557-03-13. Código de referência PT/TT/TSO-IL/028/09912.
Cota atual Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9912
20✓PROCESSO DE ANTÓNIA DIAS. Outras formas do nome: Antónia Dias, "A Tancas" Estatuto social:
meio 1/4 de cristã-nova Idade: 50 anos Crime/Acusação: judaísmo Cargos, funções, atividades: regateira.
Datas 1629-08-16 - 1633-01-09. Código de referência PT/TT/TSO-IL/028/03716. Cota atual Tribunal do
Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 3716
Metodologicamente, o percurso foi pautado na transcrição paleográfica digital dos processos e na análise do
conteúdo referente a cada mulher estudada, com especial atenção às suas atividades laborais e resistências
cotidianas. O saber paleográfico e o diálogo com as tecnologias digitais assumiram lugar de destaque, como
ferramenta fundamental para alcançar o conteúdo dos processos e neles reconhecer as informações acerca
das suas protagonistas.
A pesquisa seguiu as balizas propostas por Carlo Ginzburg, nomeadamente nos seus apontamentos inscritos
em “O queijo e os vermes” e “Mitos, emblemas e sinais”, onde trata sobre o uso de processos como fontes e
a imprescindível observância dos detalhes contidos nas fontes e seu potencial em revelar ricas informações
sobre pessoas anônimas, comuns, mas que compõe o protagonismo da história.
Recorreu-se, assim, à microanálise de casos particulares de mulheres “comuns”. Para tanto, todo o conjunto
reúne textos que revisitam mulheres secularmente silenciadas e invisibilizadas pela historiografia.
Para instrumentalizar a análise dos processos, foi utilizada a plataforma Transkribus, inserindo a pesquisa no
campo das humanidades digitais e permitindo a organização digital das informações com o repertório das
histórias e suas referências para posterior divulgação.
Nesse sentido, a metodologia empregada na documentação em ambiente digital, especificamente no que diz
respeito a transcrição digital dos documentos e o treino da tecnologia de reconhecimento do texto manuscrito,
trilhou o percurso indicado no guia da Plataforma Transkribus disponibilizado nos endereços:
https://readcoop.eu/transkribus/howto/how-to-transcribe-documents-with-transkribus-introduction/
https://readcoop.eu/transkribus/howto/how-to-train-a-handwritten-text-recognition-model-in-transkribus/
3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
(Apresentação e discussão dos principais resultados obtidos, deixando claro os avanços teóricos,
experimentais ou práticos obtidos pela pesquisa relacionando as dificuldades e limitações)
A primeira etapa da pesquisa dedicou-se, por um lado, a levantar aspectos da cidade de Lisboa, “palco” por
onde transitaram e viveram as mulheres de que trata a presente investigação. Conhecer a cidade,
esquadrinhá-la do ponto de vista geográfico e de sua tessitura social foi fundamental para a percepção da
dinâmica econômica à época. Por outro, e em diálogo simétrico com a compreensão do espaço, foi feita
uma introdução a história do estabelecimento do tribunal inquisitorial em Portugal.
Lisboa, ao longo do século XVI, firmava-se como uma das cidades mais importantes da Europa1
apresentando, em termos populacionais, quase 60 mil habitantes em 1527, 100 mil em 1551 e mais de 110
mil em 16202.
Cidade da pimenta e das drogas, do ouro, da prata, das pedras preciosas, do açúcar, dos escravos, do pau-
brasil e outras madeiras preciosas, dos têxteis, do tabaco, apresentava diversificadas oportunidades de
negócio e de riqueza e permitia velocidades ímpares de acumulação de capitais.3
Sua cartografia urbana encontrava-se modelada em cinco grandes bairros: Morro do Castelo, Ribeira, Santa
Justa, Bairros Ocidentais e Bairros Orientais. Destes, a Ribeira refletia, mais do que qualquer outro, a
complexa dinâmica econômica e social que fazia da cidade um crescente empório comercial compassado
1 https://ensina.rtp.pt/artigo/lisboa-no-renascimento-a-cidade-global/
2 COSTA LOBO, A. de Sousa Silva. História da Sociedade em Portugal no Século XV. Lisboa, Imprensa Nacional, 1904,
p. 31-32.
3 BORGES COELHO, António e Baptista-Bastos. O nome das ruas. Câmara Municipal de Lisboa. Pelouro da Cultura e
Livros Horizonte. Lisboa. 1993. p.35
4 RODRIGUES, José Albertino. Ecologia urbana de Lisboa na segunda metade do século XVI. Análise Social, vol. VIII,
n.º 29, 1970. pp 101 – 102.
A transferência do Palácio Real da Alcáçova para o Palácio da Ribeira, situado as margens do Tejo entre a
Ribeira das Naus e a Alfândega, na praça então chamada Terreiro do Paço atesta a importância que a área
adquiriu no século XVI. Não menos importante é o fato de que naquelas imediações estavam também
instaladas a Casa da Índia5, o Arsenal, o Pelourinho, o Terreiro do Trigo, o Açougue, a Misericórdia e o cais,
com um intenso movimento de navios.
A Casa da Índia (junto aos passos reais da Ribeira e para oeste deles) era ao mesmo tempo o que hoje
chamaríamos uma alfândega, uma capitania do porto e um ministério das colónias. Adjacentes a ela
estavam a Ribeira das Naus (onde se construíam os navios) e os armazéns (dos materiais para a construção
naval, dos mantimentos). Compreendia a Casa da Índia quatro grandes repartições ou "mesas": a mesa das
drogas, onde se despachava a especiaria; a mesa grande, onde se despachavam a pedraria e os tecidos; a
das armadas, que tinha a seu cargo o assento das tripulações dos navios e demais gente que seguia para a
Índia; e a mesa do tesoureiro, onde eram pagos os direitos Era a efervescente Lisboa, onde o comércio de
5 "... ali se tratam os negócios da Índia e, por isso, lhe dão o nome de Casa da Índia.
Contudo, a mim me parece que se deve chamar o empório dos aromas, pérolas, rubis, esmeraldas e de outras pedras
preciosas que, de ano em ano, nos são trazidos da Índia; talvez com maior verdade, se lhe pudesse chamar o armazém
da prata e do ouro, quer em barra, quer trabalhada. Ali estão patentes, para quem os quiser admirar, inúmeros
compartimentos, distribuídos com ordem e arte, tão recheados com aquelas preciosidades todas que - palavra - mal
se poderia acreditar, se os olhos não vissem tais maravilhas e as mãos não lhes tocassem. Damião de Góis - "Descrição
de Lisboa". https://cctic.ese.ipsantarem.pt/red/hist/ficha_quotidiano.php?cod=70
6 BORGES COELHO, António e Baptista-Bastos. O nome das ruas. Câmara Municipal de Lisboa. Pelouro da Cultura e
Livros Horizonte. Lisboa. 1993. p.79.
por homens e mulheres.7 Naqueles espaços desenrolam-se histórias de mulheres que agora rompem o
cerco de uma historiografia, que por tanto tempo as barrou, como mostram os processos analisados.
É importante, assinalar, uma vez mais como os processos instaurados pelo Tribunal do Santo Ofício
oferecem possibilidades multifacetadas de abordagens no que diz respeito a estudos sobre diversos
aspectos das sociedade na Época Moderna. É o caso desta pesquisa, que intenciona ultrapassar os olhares
voltados para os “crimes”, sentenças e penas e mergulhar no cotidiano econômico daquelas mulheres em
Lisboa, no século XVI e assim conhecer seus ofícios e lugares de ocupação na cidade.
Começamos esta PARTE II com um rol de mulheres que exerciam suas atividades laborais como criadas, dos
quais pôde-se alcançar elementos especificamente do mundo do trabalho.
Concluo que já devo ser muito velha quando descubro que passei a infância numa Lisboa onde as lavadeiras ainda
iam buscar a roupa branca às casas das famílias grandes (os tanques não chegavam para tanto lençol), o soalho
era encerado de joelhos, havia portas principais e portas de serviço, os andares tinham quartos contíguos à
cozinha para as empregadas – e quantas vezes sem janela – e, tristemente, ainda se ouvia falar de «sopeiras» e
«magalas».
7 OLIVEIRA, Lélio Luiz de. Viver em Lisboa: Século XVI. Alameda Editorial, 2015.
https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/livro-traz-um-retrato-da-vida-cotidiana-e-economica-de-lisboa-no-
seculo-xvi/
Joana Ferreira, tinha 27 anos quando no dia 28 de abril de 1621 foi presa pelo Tribunal Inquisitorial de
Lisboa, acusada de poliandria e falsificação de documento.Filha de Pedro Martins, almocreve, e Maria
Ferreira, era cristã-velha e natural de Alenquer. (TIF 51-52)
A acusação contra Joana Ferreira deu-se por ter sido casada pela primeira vez com Pedro Rodrigues e pela
segunda vez com Domingos Costa.
Em sua confissão, feita perante a Mesa Inquisitorial em 30 de abril de 1681, Joana declarou que (TIFs 45,46)
por volta de 1609 – 1611 havia se casado com Pedro Rodrigues na Igreja de Nossa Senhora de Triana,
Freguesia de Alenquer, fazendo com ele vida marital de portas adentro.
Contudo, três ou quatro meses depois, segundo suas palavras, Pedro Rodrigues se foi de sua casa e a deixou
sem lhe dizer cousa alguã (TIF 46).
Passado pouco mais de um ano, soube que Pedro estava na cidade. Ao encontrar-se com ele fez-lhe muitos
pedidos que fizesse vida com ella, mas que o dito Pedro Rodrigues lhe respondera que a não conhecia por
mulher, nem havia de fazer vida com ella enquanto vivesse (TIF 46).
Diante disso, Joana não ocupou-se mais de saber sobre sua vida e se, encontrava-se na cidade, ou fora dela.
Aqui reside o ponto que mais nos interessa no conjunto das indagações e prospeções da pesquisa. Tudo
indica que Joana Ferreira exerceu a atividade de “criada de servir”. Nesse sentido, trata-se de um
significativo apontamento para os estudos do trabalho doméstico. Daqui decorre um convite a
perscrutarmos as segmentações internas do serviço doméstico, das suas realidades de subalternização
histórica das vozes e das experiências das mulheres em uma linha que pode unir as criadas de servir em
épocas passadas e as empregadas domésticas do presente.
Ser criada de servir parece ter sido um dos destinos mais comuns para moças (raparigas) pobres, ou seja, o
serviço de criadagem, sobretudo, quando nos referimos às vivências de uma cidade dinâmica e cosmopolita
como a Lisboa seiscentista. Infelizmente não há maiores detalhamentos do exercício de seu ofício, como
por exemplo que casas trabalhou. Ainda assim, o apontamento de serem casas honradas, sugere ser casas
de família e não prostíbulos, assegurando assim a sua reputação.
Depois de mais ou menos dois anos, indo para Sacavém, encontrou no caminho hum Domingos da Costa,
natural e morador em Sacavém que vivia por suas fazendas e que, depois de ocasião de algumas palavras
que tiveram se vierão a afeiçoar e querer se e q espaço de anno e meio, pouco mais ou menos, tiveram certa
conversação e o ditto Domingos da Costa disse a ella confitente que por viverem em pecado mortal se queria
casar e receber com ella se ella não fosse casada, como lhe dizião muitas pessoas, o que ella declarante lhe
negou sempre. (TIF 47)
E como ambos resolveram se casar, Joana foi a Vila de Alenquer para tratar dos pregões8 ao que uma
pessoa lhe disse ter visto a poucos dias na cidade o seu primeiro marido, Pedro Rodrigues. Diante de tal
informação, Joana decidiu não solicitar os pregões em Alenquer, mas sim em Benavente, onde havia
residido por dois ou três anos quando era moça e onde não sabiam que ela era casada.
E como os pregões corridos, e sem impedimentos e com duas testemunhas que trouxe de Benavente, foram
lidos diante do escrivão dos casamentos que levou a mando do Vigário-Geral para o Prior de Sacavém que
tinha notícia que Joana era de Alenquer e que não quis lá receber os pregões.
Joana, então, voltou a vila de Alenquer para ver se havia alguma solução para o seu caso e dando conta de
tudo o que se passava a um Pedro Rodrigues, oleiro, viúvo e morador daquela vila e a Pedro Corrêa, filho
de um escrivão já falecido, pediu a este que lhe fizesse uns pregões falsos com certidão de cura.(TIF 48)
De posse dos documentos, casou-se na Igreja da vila de Sacavém com Domingos Costa e com este fez vida
marital.(TIF 49) Dois meses se passaram até ali aparecer o seu primeiro marido Pedro Rodrigues, segundo
diziam, com a intenção de a matar.
Na mesma ocasião, o Visitador a mandou chamar e por ela entender que a prenderiam, se escondeu. E
adoecendo de paxão a troxerão para o hospital desta cidade, onde esteve muy doente.(TIF 49)
Joana relatou que ainda havia voltado para a casa de Domingos Costa e por tudo pedia perdão pelas suas
culpas à Mesa Inquisitorial.(TIF 50)
8 https://genealogiafb.blogspot.com/2016/03/processos-de-proclamas-ou-banhos.html
Sua sentença deu-se no auto-da-fé de 08 de dezembro de 1621, onde recebeu como pena: “Abjuração de
levi”9, degredo para o Brasil por 5 anos, penitências espirituais e pagamento de custas. (TIF 64)
Local: Sacavém – Lisboa. Situada na antiga via militar que ligava Lisboa a Mérida, Sacavém, segundo alguns
historiadores, deve o seu nome à palavra árabe sagahi ou sagabi, que pode ser traduzida por “próximo de”,
devido à sua proximidade de Lisboa. Era já paróquia em 1191. De Sacavém foram formadas as freguesias
de São João da Talha, em 1388, Camarate, em 1511, e mais recentemente Portela e Prior Velho.10
O processo de Maria Henriques nos fala de uma “mourisca” forra acusada e presa pelo Tribunal Inquisitorial
pelo “crime” de islamismo em 30 de julho de 1560.
Maria era casada com Manuel de Oliveira, “mourisco” e trabalhava como criada de D. Antónia Henriques,
mulher de D. Lopo de Almeida, que a fez cativa aquando da tomada do Cabo da Guiné.
D. Lopo de Almeida, descendia e mantinha a sua linhagem fidalga. Filho de D. Diogo Fernandes de Almeida,
Prior do Crato, Conselheiro e Monteiro-mor de D.João II e alcaide-mor de Torre Novas, e de D. Leonor
Bernardes, era irmão de Pedro de Almeida, Alcaide-mor de Torres Novas e Conselheiro de D. João III e
de D. Estêvão deAlmeida, Bispo de Astorga (1539), de Leão (1542) e de Cartagena (1548). É referenciado
em 1518 como Cavaleiro do Conselho no Livro da Matrícula dos Moradores da Casa de D.Manuel,
em 1523, no Livro de Tenças d'El Rey D. João III, com o hábito de Cristo e como Capitão de Sofala em 1525.
9 EYMERICH. Nicolau. Directorium Inquisitorum – Manual dos Inquisidores. Brasília: Rosa dos Ventos. 1993. papel. 3,
pág. 315 e seguintes.
10 https://www.cm-loures.pt/AreaConteudo.aspx?DisplayId=1039
Assim também sua esposa, D. Antónia Henriques, filha de João Pereira II, comendador de Casével da
Ordem de Cristo e de FilipaHenriques.11
Em sua confissão, feita em 6 de agosto de 1560, Maria relatou que se fizera xpaa quando foi feita cativa de
Dom Lopo de Almeida, no tempo em que tomaram o Cabo da Guiné, e que a batizaram em Nossa Senhora
do Couto tendo por seu padrinho um homem da casa do dito Dom Lopo e por sua madrinha Felipa
Rodrigues.(TIF 19)
Seu estatuto de forra, porém, pode encontrar explicação nos estudos desenvolvidos por Rogério de Oliveira
Ribas ao mostrar que, ao serem capturados, alguns mouros permaneceriam cativos, outros conquistariam
a alforria, desde que abraçassem o cristianismo, embora alerte que, a conversão ao cristianismo não
implicava necessariamente qualquer tipo de alforria.13
Observando o conteúdo narrativo de seu processo inquisitorial constata-se que a prisão de Maria Henriques
deu-se por “ser cristã” e, ao mesmo tempo, professar a fé islâmica.
11 VASCONCELOS, António Maria Falcão Pestana de. Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Nobreza e
Ordens Militares Relações Sociais e de Poder (Séculos XIV a XVI). Vol. II. Dissertação de Doutoramento em História
Medievale do Renascimento, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2008
12 ALVES, Adalberto. “Em busca da Lisboa Árabe”. CTT Correios de Portugal, 2007, p.142.
13 RIBAS, Rogério de Oliveira. SER MOURISCO EM PORTUGAL DURANTE O SÉCULO XVI. ‘Usos do Passado’ — XII
Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006, UFF.
Ao analisar o papel dos mouriscos na estrutura ocupacional da sociedade portuguesa quinhentista, Ribas
também aponta em seu trabalho que:
E esta era a atividade laboral da mourisca forra Maria Henriques. Interesse de nossa pesquisa.15
Uma importante constatação feita por Maria Antónia Pires de Almeida assinala que, as histórias das criadas
são de difícil acesso para o historiador, mas podem ser abordadas a partir de algumas fontes, como as
artísticas, em especial a pintura e a azulejaria.16
Contudo, muitos e importantes estudos confirmam que na Europa, o trabalho escravo destinou-se à
agricultura, pesca, ofícios, serviços domésticos e serviços de transporte de mercadorias, de água e de
despejos, passando a integrar a população urbana, nomeadamente em cidades de comércio como Lisboa
ou Sevilha. Como ocorreu com Maria Henriques.17
14 RIBAS, Rogério de Oliveira. SER MOURISCO EM PORTUGAL DURANTE O SÉCULO XVI. ‘Usos do Passado’ — XII
Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006, UFF.
15 As mulheres escravas em Lisboa ocupavam-se sobretudo nas tarefas domésticas e venda ambulante, actividades
bem documentadas em estampas e pinturas, como colarejas, vendedoras de frutas e legumes, galinheiras, lavadeiras.
In: “Espaços urbanos: dinâmicas demográficas e sociais (séculos XVII-XX)”. Programa COMPETE – Programa
Operacional Factores de Competitividade na sua componente FEDER e pelo orçamento da Fundação para a Ciência e
a Tecnologia na sua componente OE.
http://www.ghp.ics.uminho.pt/eu/ficheiros%20de%20publica%C3%A7%C3%B5es/OS%20Escravos%20na%20Lisboa
%20Joanina%20-%20Delminda%20Rijo.pdf
16 ALMEIDA, Maria Antónia Pires de. Mulheres escravas em Portugal: resistências quotidianas e representações na
arte Maria Antónia Pires de Almeida Investigadora do CIES-IUL Professora Auxiliar Convidada do ISCTE-IUL. PACO:
Projeto de Análise e Classificação das Ocupações, ISCTE, Nuno Madureira (dir.), 1998-2002.
Mulheres_escravas_em_Portugal_resistenci.pdf
17 https://ensina.rtp.pt/explicador/a-escravatura-nos-seculos-xv-e-xvi-h47/
Daí a importância dos estudos voltados para o campo da História Social do Trabalho ou no da Escravidão
para uma compreensão mais adensada da história dos mundos do trabalho, como bem evidencia o
historiador Marcel Van Der Linden.18
Neste cenário, em que os detalhamentos desta atividade aparecem pulverizados, e em número reduzido,
encontramos no Dicionário de Raphael Bluteau, embora datado do século XVIII, alguma pista das funções
exercidas pelas criadas como Maria Henriques:
Criada, que serve em huma casa. Pequena criada, que acompanha fora de casa a sua
senhora. Cousa de criada. Criada, & criado da Raynha.19
18 VAN DER LINDEN, Marcel. História do Trabalho: o velho, o novo e o global. Revista Mundos do Trabalho,
Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 11-26, jan.-jun. 2009.
19 SILVA, António de Morais, 1755-1824. Diccionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau /
reformado, e accrescentado por António de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. - Lisboa : na Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789. Letra C, p.609.
Nesse sentido, percebemos que ao tratar das “criadas” na Lisboa quinhentista e seiscentista estamos
muitas vezes alcançando dimensões mais complexas que abrangem, inclusive a escravidão, já que esta
atividade muitas vezes se confundia com aquelas exercidas por escravas ou forras. Isso, torna este aspecto
da investigação especialmente importante, pois a historiografia ainda carece de abordagens que se
debrucem de forma específica à presença de escravos e escravas em Portugal nos séculos XV e XVI,
temporalidade desta pesquisa.
Grande parte da criadagem era composta por escravos africanos (recorde-se que Maria foi trazida da
Guiné), sobretudo em casa daqueles portugueses que estão em condição de os comprar.
20 LAHON, Didier. O ESCRAVO AFRICANO NA VIDA ECONÓMICA E SOCIAL PORTUGUESA DO ANTIGO REGIME.
AFRICANA. STUDIA, N° 7. 2004. Edição da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp.73-100, p.74.
Vão seguindo umas após outras, muito lentamente, numa .fila que chega a atingir a
extensão de 10, 15 ou 20 pessoas.21
A sentença de Maria Henriques foi proferida no auto-da-fé de 16 de março de 1561, recebendo como pena
Abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuos, instrução na fé. Todavia, por perdão do
Cardeal Infante Inquisidor Geral, datado de 13 de julho de 1561 foi-lhe levantado o cárcere e tirado o hábito.
Local: Lisboa.
13✓PROCESSO DE JOANA VELHA. Processo de Joana Velha - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq
(arquivos.pt)
Joana Velha, mulata forra, tinha 27 anos quando em 09 de março de 1557 foi presa pelo Tribunal
Inquisitorial de Lisboa por acusar um familiar do santo ofício de ter parentes cristãos-novos.
Passavam pouco mais de vinte anos do estabelecimento do Tribunal da Inquisição em Lisboa. A vigilância e
as punições pairavam sobre a sociedade e uma destas formas era a atuação de um corpo de funcionários
inquisitoriais que reportavam os “desvios de fé” das pessoas, os chamados Familiares do Santo Ofício.
21 SAUSSURE, Cesar de. Cartas Escritas de Lisboa no ano de 1730. In: O Portugal de D. João V, visto por três forasteiros,
op. cit., p. 273.
membros civis que apoiavam a ação dos tribunais, gozando de certos privilégios,
nomeadamente licença de porte de armas, isenção de impostos, isenção de serviço
militar, indulgência plenária e funções de representação. 22
Solteira, natural e moradora em Lisboa, Joana era filha de Inês Velha e trabalhava como criada em casa de
D. Maria de Castro Vasconcelos.
Derivado do latim domina, o termo dona, segundo o dicionário de António de Morais Silva, significa senhora
de alguma coisa, proprietária.23 Já no dicionário de Raphael Bluteau, a palavra dona foi descrita como:
Título de mulher nobre, assim como por syncopa de domninus, querem alguns, que se
diga domnus, parece, que também por syncopa de donmina se houvera de dizer domna.
(...) Privilégio de damas que se conmunica as Donas. (...) Donma como derivado do latim
donmina quer dizer senhora. Molher viúva de calidade, que no palácio assiste a uma
rainha, ou a huma princeza. Molher de idade, que serve em uma casa de capello, à
diferença das donzelas. Com este título de domina serão tratadas geralmente entre os
romanos mais cortezãos as molheres moças, ou donzelas, sendo nobres. 24
Para Aline Antunes Zanatta, o vocábulo, enquanto signatário de título ou tratamento honorífico a uma dama
ou senhora nobre em Portugal tem suas raízes nos primórdios da Idade Moderna, mais precisamente a
partir do século XV, quando:
o rei português passou a “filhar e tomar alguém como seu criado (criação)”, contudo,
diferente do que se pode imaginar do termo criado, este não tinha nenhum sentido
pejorativo, mas significava uma forma de tratamento, pois o reconhecimento da honra e
respectivos privilégios do rei para com seus súditos era registrado por meio do
assentamento dos escolhidos nos livros régios.” A auto representação destes indivíduos
22 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.56.
23 SILVA, Antônio de Morais, 1755-1824. Novo dicionário compacto da língua portuguesa / António de Morais
Silva. - Lisboa: Livros Horizonte, 1980. - 5 vol. Ed. compacta do Grande dicionário da língua portuguesa.
24 Vocabulário Português e Latino, autorizado com exemplos melhores escritores portugueses e latinos e oferecido a
El Rey de Portugal D. João V. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. V vol. III, p. 287.
Sobre isso, Maria Beatriz Nizza da Silva acrescenta que as mulheres adquiriam a condição nobre pela via
masculina, de pais ou avôs, ou pelo casamento, incorporando o “dona” aos seus nomes.26 Como criada,
mondonga ou mondongueira27, da casa de uma Dona, as funções de Joana estavam voltadas para tudo o
que girava em torno do cotidiano da casa, como ir às compras, tratar da criação, partir a lenha, tirar água
do poço, etc.28
25 ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: O divórcio entre a elite paulista (1765-1822).
Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas, 2003, p. 15.
26 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e plebéias na sociedade colonial. Lisboa: Editorial Estampa, 2002. p. 63-65.
27 https://michaelis.uol.com.br/busca?id=Nyjzz
28 https://geneall.net/pt/forum/103321/creado-de-servir-como-se-podera-definir/
29 HENRIQUES, Isabel Castro & LEITE, Pedro Pereira. Lisboa cidade africana: Percursos de Lugares de Memória. Edição:
Marca d’ Água: Publicações e Projetos 1ª edição, Junho 2013 Local de Edição: Lisboa/Ilha de Moçambique
A sentença de Joana Velha ocorreu em auto-da-fé privado 4 dias depois de ser presa, portanto em 13 de
março de 1557 quando foi admoestada e por nada dizer a mandaram soltar e que tivesse tento no que
falava.
Local: Lisboa.
O processo de Anna de Abreu mostra com detalhes os ensinamentos de práticas e preceitos da religião
judaica passados pela sua mãe Ana da Rosa, confirmando o papel da mulher na transmissão dos
fundamentos judaicos na família, mas o processo de Anna de Abreu é igualmente rico em apontar
significativos elementos sobre a pobreza econômica de mulheres na Lisboa quinhentista e as possibilidades
de trabalho que encontravam, muitas vezes, como criadas em casas de “Donas” em relações marcadas e
movidas pela tensão de classes e da religião oficial em contraposição com o judaísmo convertido à força.
De um lado, Dona Ângela, fidalga e católica e do outro, Anna de Abreu, criada, pobre e cristã-nova / judia
(TIF 35).
Ana tinha 18 anos, quando foi presa em 24 de outubro de 1598 pelo Tribunal Inquisitorial, acusada de
judaísmo. Filha do cristão velho António Leitão, Mestre de Ensinar a Ler, natural da Freguesia do Loreto,
(TIF37 e 102) e Ana da Rosa. Era solteira, natural de Lisboa e moradora no Carmo, também na cidade de
Lisboa, onde trabalhava como criada na casa de D. Ângela de Brito, responsável por denunciá-la ao
Tribunal.30
Anna, morava na casa de D. Ângela de Brito desde março de 1598 (TIF 79) e foi no dia 23 de outubro de
1598 quando aquela senhora se apresentou na Casa do Despacho do Tribunal Inquisitorial perante o
Deputado Manoel Álvares Tavares, Inquisidor para fazer a sua denúncia contra Anna. Disse ter mais de
30 Sua irmã Hieronyma da Costa, de 15 anos foi presa a 4 ade agosto de 1600. (processo de Ana de Abreu, TIF 37)
cinquenta anos, ser cristã-velha, casada com Diogo Miranda (ausente para a cidade Baçaim, Índia) e
moradora à rua Dom Gilianes (TIF35) defronte a portaria do Mosteiro do Carmo em Lisboa. (TIF14)
Na geografia da cidade, que muito nos interessa nesta pesquisa por relevar os caminhos e espaços
percorridos e vividos pelas mulheres que protagonizam este estudo, convém abrir aqui uma nota sobre o
lugar citado, já que naquelas imediações ficava a residência de Dona Ângela de Brito e onde morava Anna
de Abreu. Sobre isso, encontramos fundamentadas informações no minucioso trabalho do Professor
Francisco Teixeira, intitulado “O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura dos
Carmelitas”.
31 TEIXEIRA, Francisco. O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura dos Carmelitas. In: Atas do
Ciclo de Conferências sobre “Convento de Nossa Senhora dos Remédios e a Ordem do Carmo em Portugal e no Brasil”
associado à Exposição, 2013.
https://www2.cm-evora.pt/conventoremedios/Atas/comunica%C3%A7%C3%B5es/francisco_teixeira.pdf
Disse que, naquele mesmo ano (1598), havia embarcado na Nau Nossa Senhora da Paz para se encontrar
com seu marido levando consigo uma moça de dezoito para dezanove anos chamada Ana de Abreu, a quem
tratava por “Abreu”. (TIF 5 e 16)
De acordo com suas palavras, como a nau não tivesse partido, desembarcou e mandou que Ana fosse para
a casa da sua mãe Anna da Rosa, moradora na Rua do Crucifixo em Lisboa, mas que Anna da Rosa teria
rogado a ella declarante que tornasse a levar Anna de Abreu porq era pobre e não tinha com q a sustentar
e de feito ella declarante a tornou a recolher em casa.
Ainda em seu relato, D. Ângela de Brito, afirmou que no mês de agosto estando em casa, lhe disse Antônia
Dias, solteira, cristã-velha que vive na escada da mesma casa no sobrado debaixo que Anna de Abreu lhe
dissera que se ia confessar esta semana ao Santíssimo Sacramento sem confessar todos os pecados. Ao
tomar conhecimento disso, perguntou a Anna o motivo pelo qual não confessaria os seus pecados e q por
o não confessava a não avia de ter em casa. E respondendo-lhe Anna de Abreu que os confessaria, Dona
Ângela lhe mandou confessar e depois lhe perguntou se os tinha confessado (TIF 6).
Sobre isso, Anna de Abreu lhe teria dito que havia se confessado, mas que não a tinham absolvido. E Dona
Ângela pressionando para saber o motivo de não a terem absolvido e por q a via andar muito triste, Anna
respondeu-lhe que ainda não confessara os pecados que tinha e que eram por ela, sua mãe, seu irmão
Antônio Leitão e sua mulher Mariana da Costa, sua tia Antônia Costa, sua prima Isabel da Costa e outra tia,
que não sabia o nome, tomarem todas o Santíssimo Sacramento e os levarem na mão para casa onde
enterravam, cada um em sua casa, e o pisavam com os pés, outras vezes, achando-se todos, os metiam em
uma cova em um quintal e o pisavam, outras vezes ainda, tomavam o Santíssimo Sacramento e o pisavam
na casa e depois varriam a casa e o lançavam pela janela fora.
Após ouvir o relato, Dona Ângela mandou avisar a Mesa Inquisitorial e que Anna de Abreu ali se
apresentasse. (TIF 7) E assim foi feito.
Em sua fala, acrescentou que Anna de Abreu, também, lhe teria dito que sua mãe possuía uma bezerra e
que todas aquelas pessoas comiam carne na Quaresma, mas não a comiam às sextas, sábados e domingos,
e a comiam cozida com azeite e cebola, que obravam (trabalhavam) aos domingo e que às sextas-feiras à
noite, vestissem camisa lavada e que aos domingos trabalhassem e ficassem sem comer até à noite, depois
da saída da Lua ou estrela. (TIF 8) E repreendendo-lhe perguntou o porquê de guardar os sábados. Anna
respondeu-lhe com um tom seguro: se v. mi me quer ter em sua casa eu ei de guardar os sabbados e ei de
morrer na lei de minha mai.
E o diálogo continuou com Dona Ângela indagando-lhe q lei era a de sua mai porq não avia mais q duas leis
a de xpõ nosso Redemptor e a de Moises, ao que Anna respondeu a de Moises. (TIF 9)
O processo de Anna de Abreu continua por longas páginas com um detalhamento significativo de suas
práticas contra a religião, imposta, que não reconhecia nem se identificava. Há, inclusive, um rol de
situações que descortinam vivências de contrariedade, como por exemplo os relatos de Anna de Abreu de
que ela e membros da sua família cuspiam e faziam figas para o crucifixo, receber a hóstia consagrada e
logo lançá-la fora.(TIF 16)
Outro elemento que merece ser assinalado é o discorrer de situações que levaram Anna de Abreu a um
estado de medo, confusão mental e aflição por não ter confessado, o que acreditava dever ter confessado
aos Padres. Particularmente o episódio narrado na página (TIF) 15 quando Anna, ao voltar de uma confissão
chega “contente”, mas a noite entre queixas e gemidos disse a Dona Ângela, quando esta lhe perguntou o
que havia, que estava pior na consciência. (TIF 15)
Em uma das suas presenças à Mesa foi lhe perguntado sobre a dita bezerra. (TIF 74, 75)
Perguntada q cousa he Bezerra e q cousa era esta a q ella chama Bezerra? Respondeo q
ella não sabe q cousa he bezerra senão aquillo q a dita sua mai lhe disse q era Seu Deus e
q era huã Sancta q se chamava bezerra a qual bezerra era feita de barro e sua mai lhe
disse q a mandara fazer por hum oleiro. Perguntada q figura tinha a dita bezerra? Disse q
tinha figura de homem nu. Perguntada de q maneira tinha o rosto e as mãos Disse q tinha
em cada mão cinco dedos, e no rosto tinha a barba e biguodes pretos e sobrancelhas
pretas e a cabeça preta pintado isto de cor preta e que todo o mais corpo da dita Bezerra
era branco e q era a própria Figura de hum homem dispido, com ambas as mãos juntas
postas sobre a barriga E Perguntada mais disse q a dita bezerra não tinha nada nas mãos
nem na cabeça e q estava posta em pee, e q não tinha pello corpo nhum sinal. Perguntada
se vio alguã vez bezerra viva, ou a ouvio nomear como era? Disse que não. Perguntada
porq rezão quãdo veo a esta mesa não disse também isso? Respondeo q tivera antão
vergonha foi lhe dito q olhase o q dizia e o que falava porq isto q diz não parece verdade
e q pertanto dissese a verdade e não alevantasse mentira nhuã perq per isso a castigarão
e ella tornou a dizer q isto q aqui diz he verdade q asi passou como tem dito. (TIF75)
Sentença. Três meses após a sua prisão, apresentou-se no auto-da-fé de 31/01/1599. Como pena foi-lhe
atribuída abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial a arbítrio, instrução na fé, penas e penitências
espirituais. Todavia, por despacho de 01/03/1600, foi-lhe retirado o hábito penitencial e mandada soltar.
O processo de Anna de Abreu necessitará uma abordagem mais alargada do que apresentado aqui, pois
traz muitos detalhes práticas contestatórias que o seu núcleo familiar manifestou contrariamente à religião
católica. Além disso, percorre várias igrejas, como a de São Roque e São Nicolau, onde Anna de Abreu se
confessou, e vários nomes de pessoas, muitas delas mulheres, locais de moradia e atividades laborais, como
Portas de Santa Catarina, São Vicente de Fora, loja de seda de peneira e forno de pão. A intenção é retornar
a este processo para adentrar mais a fundo tantas e ricas informações.
Local: rua Dom Gilianes (TIF35) defronte a portaria do Mosteiro do Carmo em Lisboa.
Joana Ferreira, tinha vinte anos quando foi presa em 25 de junho de 1584. Natural da Vila de Alfeizerão e
cristã-nova como seus pais João do Couto, sapateiro e Beatriz Vieira, acusada de blasfémias contra o nome
de Jesus.
A religião (do latim relegere) recolhe, reúne, a blasfêmia rompe, quebra. É um pecado de
irreligião, oposto ao louvor que o homem, criatura de Deus, por sua palavra, deve a Deus. A
etimologia remete-nos a duas palavras gregas: blaptein (lesar, ferir, danificar) e phème
(reputação). Blapto, estragar, destruir; phain, tornar visível. Literalmente significa
"ação contra a imagem". É, portanto, uma palavra ou gesto que fere uma reputação, uma
palavra ultrajante ou difamante. A blasfêmia é definida pela Igreja como o desprezo para com
Deus, desejado em pensamento e manifestado por palavra ou por ação. 32
São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, classifica o crime de blasfêmia em três categorias: 1a ) herética
– aquela em que as sentenças proferidas expressam alegações contrárias à fé, em geral expõem oposições
a questões religiosas; 2a ) injuriosa – toda e qualquer vulgaridade contra Deus, a Virgem Maria, os santos
ou as coisas e pessoas dedicadas ao culto divino; 3a ) imprecativa – desejam o mal a Deus, à Virgem, aos
santos ou às coisas e pessoas dedicadas ao culto divino.33
Joana parece ter se enquadrado na terceira categoria. Não obstante, sob o olhar específico que motiva esta
pesquisa cabe ressaltar alguns dados.
Joana era solteira e trabalhava como criada de Francisco Fernandes, carpinteiro no lugar de Santa Iria,
termo da cidade de Lisboa, onde era moradora. Assim, seu processo compõe o rol de mulheres que
exerciam a atividade de criadas. No seu caso, criada de um carpinteiro, ofício bastante comum e que teve
impulso garantido pelo movimento das expansões ultramarinas portuguesas, como observa João Furtado
Martins em seu estudo “Os carpinteiros na Inquisição de Lisboa no século XVIII: trabalho, sociabilidades e
cultura material” .34
32 PIERONI, Geraldo. Os excluídos do Reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2000: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p.204
33 Apud MENEZES, Raul Goiana Novais. Palavras torpes: blasfêmia na primeira visitação do Santo Ofício às partes
do Brasil (Pernambuco, 1593-1595). Recife: UFPE. Dissertação (Mestrado em História), 2010, p. 68.
34 MARTINS, João Furtado. Os carpinteiros na Inquisição de Lisboa no século XVIII: trabalho, sociabilidades e cultura
material. Librosdelacorte.es, MONOGRÁFICO 6, año 9 (2017). ISSN 1989-6425
DOI:https://dx.doi.org/10.15366/ldc2017.9.m6.013
Após serem ouvidas muitas testemunhas de acusação e de defesa de Joana, sua sentença foi proferida no
auto-da-fé privado de 23/07/1585 onde recebeu como pena abjuração de leve suspeita na fé, penitência
pública na sua freguesia num domingo, estando na missa do dia no cruzeiro, em corpo, com uma vela acesa
na mão, onde lhe seria lida sua sentença, penas e penitências espirituais.
Isabel Pereira, tinha 30 anos quando foi presa e levada ao Tribunal Inquisitorial de Lisboa em 27 de
novembro de 1630, acusada de sodomia.
Natural da Vila de Ponte de Lima, filha de Pedro Esteves, lavrador e Ana Dias, moradores onde chamão a
Sobrada na freguesia de S. Salvador de Rendufa hua legoa de ponte de lima (TIF.15) Isabel era cristã-velha,
solteira e trabalhava desde os 15 anos (TIF. 19) como criada das freiras do Mosteiro de São Salvador em
Lisboa, onde morava nas cazas q ficão por baixo das do Confessor do Convento (TIF.79)
O Mosteiro do Salvador de Lisboa estava localizado na Freguesia de Santo Estêvão em Lisboa, Lisboa, era
feminino, e pertencia à Ordem dos Pregadores (Dominicanos). Era também designado por Mosteiro ou
Convento do Santíssimo Rei Salvador e foi o primeiro convento feminino da Observância em Portugal. Em
1415, por ocasião da morte de D. João de Azambuja, que foi sepultado no convento, não estavam ainda
concluídas as obras de construção do edifício que terminaram por intervenção da rainha D. Leonor, mulher
de D. Duarte, em 1438, as obras. Pouco mais de cem anos depois, em 1551, a comunidade conventual do
Mosteiro do Salvador de Lisboa era composta por oitenta freiras e quinze servidores e o convento dispunha
de uma renda anual de mil e cem cruzados.35
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1458488#:~:text=O%20Mosteiro%20do%20Salvador%20de%20Lisboa%20foi
%20o%20primeiro%20convento,por%20interven%C3%A7%C3%A3o%20da%20rainha%20D.
Outras importantes informações sobre o Convento constam no “Livro da fundação do Mosteiro do Salvador
da cidade de Lisboa, & de alguns casos dignos de memoria, que nelle acontecerão composto pella Madre
Soror Maria do Baptista” que relata:
36 Convento do Santíssimo Rei Salvador. Exterior. Fachada igreja. José Vicente. 06-11-2013 © CML. DMC. DPC.
José Vicente 2013. https://patrimoniocultural.cm-lisboa.pt/lxconventos/ficha.aspx?t=i&id=655
ver mais que a Jesus Cristo Crucificado”. O rigor das suas práticas seria de tal modo
extremo que “excedia, não somente a fraqueza feminina; mas todas as forças de varões
muito robustos. E como só ler, ou ouvir contar o que faziam mulheres de sua natureza
fracas, faz tremer as carnes de puro espanto” 37
No campo específico do trabalho de criada conventual, atividade exercida por Isabel Pereira, protagonista
deste processo, Isabel Drumond Braga destaca que em Portugal, na época Moderna, ao contrário do que
aconteceu em Espanha, predominavam as casas religiosas femininas. Nestas, como nas masculinas, havia
um número significativo de criadas e criados aos quais cabiam as tarefas subalternas.38
As criadas que trabalhavam nos conventos, voltavam-se para servir as meninas e também nas tarefas
conventuais.39 Nesse sentido, o “Auto de apresentação e aceitação de um Breve a favor de D. Luísa Teresa
Henriques, educanda no Convento do Salvador”, de Lisboa, da Ordem de S. Domingos, também pode
O processo contra Isabel Pereira é intenso em detalhes sobre as suas relações carnais que teve, por exemplo
com o Padre que foi a sua primeira testemunha de acusação na Mesa Inquisitorial.
Por isso, também, merece um estudo à parte, principalmente se considerarmos o ambiente em que se
desenrolaram. Mas, o que buscamos nesta pesquisa são pistas sobre o mundo do trabalho e deste, também
importantes apontamentos puderam ser alcançados nas falas das testemunhas e da própria.
37 BAPTISTA, Maria do, O.P. 1570-1659, Livro da fundação do Mosteiro do Salvador da cidade de Lisboa, & de
alguns casos dignos de memória, que nelle acontecerão / composto pella... Madre Soror Maria do Baptista... - Em
Lisboa: por Pedro Crasbeeck, 1618. - [10], 152 f. ; 8º (14 cm) https://purl.pt/14095/4/res-684-p_PDF/res-684-
p_PDF_24-C-R0150/res-684-p_0000_Obra%20Completa_t24-C-R0150.pdf / Os conventos femininos de clausura em
Lisboa [1] | Cairn.info
38 BRAGA, Isabel Drumond. Sabores e Segredos. Receituários Conventuais Portugueses da Época Moderna. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015. p.21
39 file:///C:/Users/mariz/Downloads/AGIC.pdf
40 (título), Cód. CX/2-3, n.º 94 (referência), Biblioteca Pública de Évora (entidade detentora) Tipos de recursos
relacionados: Documento manuscrito Natureza das relações: Assunto Datas dos recursos relacionados e/ou das relações:
1697. https://books.openedition.org/cidehus/3079
O relato da 1ª. testemunha contra Isabel, foi do Padre Frei Felippe da Cruz, Religioso Professo da Ordem de
São Domingos, Sacerdote e Pregador, a vinte e sete de novembro de 1630. Sua denúncia traz um
apontamento que pode esclarecer mais sobre as atividades nomeadas simplesmente “criadas”. (TIF.11) Diz
o Padre Felippe, que Isabel, “moça criada do mosteiro”, era baixa de corpo, amarela do rosto. (TIF. 12).
Já em sua confissão, Isabel disse ter 26 anos, não saber ler nem escrever e que, desde os 15 anos, servia as
freiras do Salvador.(TIF.15,19,20)
Por despacho de 28 de setembro de 1632 foi determinado que Isabel ouvisse a sua sentença na Sala do
Santo Ofício diante dos Inquisidores, Oficiais e mais Ministros e algumas pessoas Religiosas. (TIF.50) Como
pena, Isabel foi degredada para Angola por cinco anos, teve confiscados todos os seus bens para o Fisco e
Câmara Real e mais penitências espirituais.
No conjunto das mulheres estudadas nesta investigação também destacam-se as mulheres dedicadas ao
comércio, como Joana Francesa.
Joana Francesa, tinha 30 anos quando foi presa e levada para o os cárceres do Tribunal Inquisitorial de
Lisboa em 11 de outubro de 1606 acusada de judaísmo.
Filha Bento Lopes, cristão-novo, fanqueiro e Catarina Gomes, Joana era cristã-nova, natural e moradora na
Rua do Príncipe em Lisboa, onde era casada com Paulo Rodrigues, merceeiro, também cristão-novo.
Em uma família marcada pelas atividades comerciais Joana também trabalhava no ramo exercendo a
atividade de tendeira de legumes secos e “outras coisas”. A página inicial de seu processo indica que tinha
uma “logea de legumes” (TIF.5), “tenda de chícharros legumes” (TIF.13) na Ribeira (TIF 57).41
Em sua confissão, Joana Francesa disse que morava na cidade de Lisboa junto a Misericórdia onde tinha
tenda de legumes, saccos e outras cousas. (TIF 85)
Na Lisboa do século XVI, a Ribeira era um espaço destacado no comércio da cidade. De acordo com os
estudos de Leonor Freire Costa, a mudança do centro urbano da colina do Castelo para a Ribeira do Tejo,
em meados do século XV foi decisiva na dinâmica urbana de Lisboa.
A então chamada Ribeira correspondia à extensa faixa junto ao Tejo, exterior às cercas medievais,
começando nas Portas da Cruz, a oriente, e seguindo no sentido de poente até à Porta da Oura (ou do Ouro)
e praia de Cata-Que-Farás (atual Cais do Sodré), ao Corpo Santo e Fontainhas. Sítio de praias e aterros com
múltipla funcionalidade que definiu a Lisboa dos descobrimentos: da atracagem de embarcações de
pequenas dimensões nos cais da zona oriental, desde a Porta da Cruz até ao grandioso Cais de Pedra para
navios de grande calado, começado a construir no final de quatrocentos, para poente, as areias do Tejo
destinavam-se à construção naval e a armazéns de apoio. O amplo terreiro criado no início do reinado de
D. Manuel, no sítio então central da cidade, em extensão para ocidente, e o seu reconhecimento como
terreiro do Paço, resultante da implantação da residência régia na zona portuária, revela a transformação
simbólica de um tempo em que rei e nobreza se envolvem no mundo marítimo e mercantil do império que
se formava e sustentava em ligação com o Mar. 42
42 FREIRE COSTA, Leonor. Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do
Cabo. Lisboa. Patrimónia, 1997. In: https://journals.openedition.org/e-spania/25062?lang=pt
Segundo João Brandão43, na Ribeira lisboeta quinhentista laboravam muitas pessoas. Entre elas estava
Joana Francesa. Era ali onde se concentravam as “tendas” de venda dos mais variados produtos, dentre os
quais frutas, verduras e legumes, como os que Joana vendia e sobrevivia em seus dias.44
Brandão afirma ainda que, já em 1551 registravam-se em Lisboa vendas de alhos, cebolas, chícharos e
favas45.
Quando foi presa, foram achadas duas memoriazinhas de ouro, quem foram entregues ao tesoureiro do
Tribunal do Santo Ofício.(TIF.15) A sentença de Joana Ferreira foi proferida no auto-da-fé de 05/04/1609.
Confisco de bens, abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais.
Júlia Fernandes tinha 50 anos quando em 03 de julho de 1560 foi presa e levada aos cárceres do Tribunal
da Inquisição de Lisboa acusada de blasfêmias. Seu processo indica que a ré era mulata, filha de pai branco
e mãe preta.(página de abertura do processo)
Viúva e moradora em Lisboa, Júlia trabalhava com a compra e venda de caça e galinhas. Vivia, portanto, de
atividades comerciais ligadas a um ramo bastante destacado da alimentação lisboeta quinhentista.
43 BRANDÃO, João. Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552. Lisboa, Livros Horizonte, 1990. p.208.
44 Diz-me o que comes… Alimentação antes e depois da cidade. Fragmentos de Arqueologia de Lisboa. Câmara
Municipal de Lisboa/ Direcção Municipal de Cultura/ Departamento de Património Cultural/ Centro de Arqueologia de
Lisboa Sociedade de Geografia de Lisboa/ Secção de Arqueologia. Lisboa, 2017.p.100
45 BRANDÃO, João. Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552. Lisboa, Livros Horizonte, 1990. p.212-213
O ramo de comércio praticado por Júlia compunha o cotidiano lisboeta quinhentista, como destaca Judite
A. Gonçalves de Freitas em seu artigo “Mudança de gosto e gosto de mudança: modelos de comportamento
alimentar em Portugal (séculos XV-XVI)”.
A autora assinala que o pão e a carne faziam parte da alimentação do português dos estratos médios e que
dentre as carnes mais consumidas, destacam-se as carnes de porco, vaca, carneiro e cabrito, para além da
proveniente de aves de criação doméstica. Além disso, esclarece que, nos escalões menos elevados, a caça
era uma importante fonte de subsistência e que variedade das espécies era bastante grande destacando-
se as carnes de javali, lebre e coelho e que, de igual modo muito apreciadas eram as carnes de aves de
perdiz, abetardo, gru, pato bravo, cerceta, garça, maçarico, tordo e sisão, sendo forma mais frequente
de comer carne era assada no espeto, embora houvesse quem a comesse cozida, picada ou estufada.46
Quanto a criação de animais, Judite Freitas esclarece que tratava-se de uma atividade complementar
à agricultura, constituindo igualmente uma importante fonte de alimento. As espécies eram em tudo,
semelhantes às de hoje: patos, galinhas, coelhos, faisões, rolas e pombos encontrando no “Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal”, uma enorme variedade de receitas de carne que dão-nos uma
ideia dos métodos de preparação e das formas de a comer, com prevalência para a carne de galinha.
A técnica de confecção era em tudo semelhante à tradicional preparação medieval. Em todo o caso,
destacava-se a utilização de uma grande variedade de especiarias como o açafrão, cravo, pimenta,
gengibre, cominhos, açúcar, já entre as gorduras mais utilizadas destacam-se o toucinho, o azeite e a
manteiga.
Tais dados somam-se no conjunto que nos dá a conhecer melhor os detalhes deste mercado, pois no
caso de Júlia, ela tanto comprava, quanto vendia caça e galinhas.
Outra detalhada referência sobre a atividade de Júlia Fernandes é encontrada no artigo “Alimentos e
Alimentação no Portugal Quinhentista”, especialmente no tópico 4, intitulado “Comprar e vender bens
alimentares”, a autora aponta que a alimentação se apoiava no que cada um conseguia produzir, apanhar,
caçar ou pescar, mas também que se compravam os bens alimentares, quer em mercados e feiras, quer aos
46 FREITAS, Judite A. Gonçalves de. Mudança de gosto e gosto de mudança: modelos de comportamento alimentar
em Portugal (séculos XV-XVI). Revista da UFP. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa. 3 (Mai. 1999) 85-97.
p.87-88.
que vendiam porta-a-porta, quer aos vendeiros, e vendeiras, nas lojas. Às feiras e mercados chegavam os
produtos que a terra dava em cada estação sendo diferentes os produtos encontrados à venda na
No que se refere a venda de galinhas, Delminda Rijo relembra que s mulheres escravas em Lisboa
ocupavam-se sobretudo nas tarefas domésticas e venda ambulante, actividades bem documentadas em
estampas e pinturas, como colarejas, vendedoras de frutas e legumes, galinheiras e lavadeiras.48
Embora Júlia não seja identificada como escrava, é identificada como “mulata” e, talvez, também as
mulheres mestiças ocupassem um número significativo em tais vendas.
As mulheres que se ocupavam da venda das galinhas, ou, as “galinheiras”, via de regra percorriam as ruas
da cidade apregoando os animais que transportavam em canastras transformadas em gaiolas.49
As vendedoras de galinhas vivas das ruas de Lisboa eram varinas que normalmente, se
dedicavam à venda do peixe pela manhã, como tal trajavam, desde a canastra, entretecida
de verga até à "sogra" na cabeça para lhe dar equilíbrio, socas nos pés, lenço ao pescoço,
saia rodada e farta de panos, avental e fundos bolsos. Com uma blusa de motivos originais
e uma ampla bolsa à cinta, sempre descalças até às novas leis impostas que o proibiu.
Conhecidas também como as "galinheiras", calcorreavam as ruas da cidade de Lisboa com
galináceos vivos sobre a cabeça num cesto-gaiola protegidas por uma rede de cordel
esticada com uma pequena estaca central, dando a forma de gaiola e por vezes um galo ao
braço. Garantiam sempre às freguesas que todas as galinhas eram boas poedeiras. Assim
andavam de rua em rua da cidade, desde os bairros das avenidas novas até aos bairros mais
populares de Lisboa apregoando num tom agudo e arrastado: “Galiiiinhas! Quem nas quer,
e com ovo!”Algumas como mercadoria extra traziam cestas com ovos para um negócio
extra. Como por vezes já conheciam bem a clientela, pois, naqueles tempos, só comia
galinha quem estava doente ou em dia de festa. Também há registo de homens que
comercializavam galinhas vivas pelas ruas da capital, fazendo o transporte da mercadoria
47 FERNANDES, Isabel Maria. Alimentos e Alimentação no Portugal Quinhentista. Guimarães, Ed. Sociedade Martins
Sarmento, 2002. p. 133-134.
48 “Espaços urbanos: dinâmicas demográficas e sociais (séculos XVII-XX)”. Programa COMPETE – Programa
Operacional Factores de Competitividade na sua componente FEDER e pelo orçamento da Fundação para a Ciência e
a Tecnologia na sua componente OE.
http://www.ghp.ics.uminho.pt/eu/ficheiros%20de%20publica%C3%A7%C3%B5es/OS%20Escravos%20na%20Lisbo
a%20Joanina%20-%20Delminda%20Rijo.pdf
49 https://toponimialisboa.wordpress.com/2013/10/16/a-travessa-das-galinheiras-em-belem/
e das grandes gaiolas em burros, se bem que na sua grande maioria eram mulheres que se
dedicavam mais a este tipo de negócio. 50
As galinhas eram compradas para serem criadas no quintal de casa ou até na varanda com o objetivo de se
tornarem boas poedeiras ou de engordá-las para os dias de festa.52
50 https://historiaschistoria.blogspot.com/2020/12/profissoes-de-antigamente.html
Em que pese o seu crime cometido, blasfemar, Júlia teve a sua sentença foi proferida no auto-da-fé de
06/10/1560 e como pena fazer Abjuração de Levi suspeita na fé, ouvir a missa de pé com uma vela acesa,
penas e penitências espirituais.
Provavelmente, depois disso, tenha voltado a vender caças e galinhas pelas ruas daquela Lisboa vigiada.
Andresa Nunes tinha 71 anos, quando foi presa e levada aos cárceres do Tribunal Inquisitorial em 25 de
outubro de 1595.
Filha de Afonso Rodrigues, cristão-novo, mercador de Aveiro (TIF. 58) e Leonor Nunes, cristã-velha (de
Penamacor) (TIF. 58), era natural de Viseu.
De suas moradas tem-se algumas indicações: moradora à Rua das Pedras Negras em Lisboa.(TIF.7),
moradora ao Arco de João Teixeira, freguesia de Sam Mamede (TIF.55) junto ao Terreiro do Ximenes
(TIF.77)
A Rua das Pedras Negras, de acordo com Norberto de Araújo, teria sido um arruamento mais encaracolado
antes do Terramoto que “há cêrca de duzentos anos [mais ou menos 1744] começando num ângulo,
exactamente na vértice das Travessas do Almada e das Pedras Negras, e descrevendo uma larga curva” ao
qual “Os arquitectos de Pombal, e os que se lhes seguiram, arrazaram, terraplanaram e abriram um xadrez
regular, que é aquele que estamos passeando. Esta actual Rua das Pedras Negras não corresponde de
maneira alguma à do século XVII.”53
Viúva de Heitor Fernandes, tosador, Andresa tinha por atividade laboral fazer tapetes.
A primeira sessão de apresentação de Andresa Nunes perante a Mesa Inquisitorial deu-se em nove de
novembro de 1595, mas foi na segunda sessão, em doze de janeiro de 1596, que Andresa apresentou mais
detalhes sobre si e seu ofício.
Disse que, o seu ofício era fazer tapetes e que o aprendeu com uma mulher chamada Guiomar Fernandes.
Disse ainda que havia sido criada na cidade de Viseu, em casa de seus pais, até “se entender” e que
aprendeu o “ofício de mulheres”, como coser, com Clara Gomes, Cristã Nova, moradora na Rua Nova, irmã
de Simão Gomes, barqueiro. (TIF.59)
Andresa relatou que foi já na Rua das Pedras Negras onde aprendeu a fazer tapetes e que ganhava sua vida
pello seu officio, e que conversava com quem lhe dava de fazer pello seu officio.(TIF.60)
54
Tais dados apontam um ofício transmitido pelo saber feminino e que a comercialização dos tapetes, de
facto era de caráter doméstico.
Ana Maria Gonçalves e Teresa Lousa no artigo intitulado Tapeçaria Contemporânea Portuguesa e sua
origem no feminino apresentam uma fundamentada explicação sobre este ofício. Mostram as autoras que
Fiar e tecer (panos para vestuário e para o lar) faziam parte das obrigações domésticas como um modo de
complementar o rendimento familiar, entendido como uma inerência à condição de mulher. Há um ditado
popular português dos finais da Idade Média que ilustra a dureza associada: “Mãe, o que é casar? Filha, é
fiar, parir e chorar”. (…) Às mulheres das classes mais baixas, reservados os trabalhos que os homens não
queriam fazer, havia uma clara separação das profissões têxteis cujas unidades de produção,
particularmente em meio rural, continuavam a manter-se nos domicílios.55
O ofício e arte de fazer tapetes parece estar intimamente entrelaçada com o universo feminino, inclusive
pela sua ligação ao universo doméstico da tecelagem e costura. Além de ser ter uma face econômica, pois
desdobramento da produção há a comercialização do produto, muitas vezes encomendado, como no caso
de Andresa.
Observando mais de perto o ofício de Andresa e lançando algumas considerações sobre a tapeçaria que
fazia, nos parece que sua produção era destinada mais ao uso cotidiano. 56
Após um longo percurso marcado por interrogatórios e admoestações, Andresa, que foi posta a tormento,
recebeu a sua sentença no auto-da-fé que ocorreu em vinte e três de fevereiro de 1597, onde foi com vela
acesa na mão e recebeu a sentença de abjuração de veemente, penitências espirituais, pagamento de
custas.
Locais: Rua das Pedras Negras em Lisboa.(TIF.7), Arco de João Teixeira, freguesia de Sam Mamede (TIF.55),
Terreiro do Ximenes (TIF.77)
56 CIRILLO, José. Artes da fibra. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Secretaria de Ensino a Distância,
2019. p.18
Beatriz Fernandes tinha 50 anos quando foi presa e levada para os cárceres do Tribunal Inquisitorial de
Lisboa em 20 de agosto de 1560 acusada de judaísmo. Cristã-nova, natural de Tavira e moradora em Lisboa,
Beatriz era viúva de João Ramos e trabalhava como botoeira.
Em seu processo, Beatriz Fernandes está identificada como uma viúva que faz botões moradora na Rua dos
Fornos abaixo do Sto espryto da pedreira (TIF.3) Tais referências se coadunam com os interesses desta
pesquisa, pois fornecem dados sobre o seu ofício, bem como sobre a sua localização em um local da cidade
bastante atingido pelo Terremoto de 1755.
arruamento neste tecido urbano, de ligação entre a Rua Nova do Almada e a Rua do
Crucifixo, que o Edital municipal de 12/04/1995 denominou Escadinhas do Santo Espírito
da Pedreira. Estas escadinhas que foram abertas entre a Rua Nova do Almada e a Rua do
Crucifixo e que ladeiam uma parte do edifício dos contemporâneos Armazéns do
Chiado, recuperam o topónimo antigo de Santo Espírito da Pedreira, documentado pelo
menos desde 1551 por Cristóvão Rodrigues de Oliveira, nas seculares freguesias de São
Nicolau e Nossa Senhora dos Mártires.O topónimo faz referência ao antigo convento que
existiu no local, da Irmandade do Santo Espírito da Pedreira, fundado em data anterior a
1279, por D. Antão e Dona Sancha. Possuía uma ermida e um hospital sendo que o espaço
conventual se situava na confluência da que é hoje a Rua Garrett com a Rua Nova do
Almada, e a entrada do Hospital na Rua do Carmo. À Irmandade da Casa do Espírito Santo,
de nobres e mercadores ricos, provavelmente de origem judaica, juntou-se em 1445 a
Confraria dos Mercadores. A igreja tinha o altar-mor da invocação ao Espírito Santo e o
nome Pedreira tem origem na grande rocha que caía sobre o vale a que chamamos Baixa.Em
1514 as instalações estavam em estado de abandono e durante o séc. XVII sofreram várias
obras de reconstrução tendo D. João III em 1671 feito delas doação aos Oratorianos. Com
o terramoto de 1755, o convento ficou em ruínas e a comunidade de religiosos foi
transferida provisoriamente para o Convento das Necessidades. Após a reconstrução do
convento concluída em 1792, os Oratorianos voltaram em 1833 e até 1834, após o que o
edifício teve outros usos como sede da 1ª Companhia da Guarda Municipal e Repartição de
Saúde, morada do Barão de Barcelinhos e de vários hotéis como o Hotel Universal, bem
como de diversas lojas e associações, sendo a partir de 1894 os Grandes Armazéns do
Chiado.57
57 https://toponimialisboa.wordpress.com/2015/11/13/as-escadinhas-do-santo-espirito-da-pedreira/ Convento do
Espírito Santo da Pedreira - Paixão por Lisboa (sapo.pt)
No século XVI, Lisboa era o centro dinâmico, principal entreposto comercial e contato do reino
português com o mundo. Apresentava um vertiginoso crescimento e um contingente populacional,
estimado em mais de 100.000 habitantes. Vitimada pelos terremotos de 1531 e 1755, a memória
das representações físicas de seus espaços, anterior àqueles eventos, pode ser revisitada por meio
dos desenhos, das iluminuras, das gravuras, das pinturas, bem como por meio das fontes literárias e
crônicas da época. A Ribeira fica em evidência na maior parte dessas representações. É a zona onde
o espaço físico (urbs) encerra também a dimensão social (civitas), espaço onde prevalecem a
topografia acidentada e os ofícios ligados às atividades marítimas.
Especialmente na obra de Gil Vicente, não é raro encontrar os tipos que povoavam as estreitas ruas
olisiponenses, representados, por exemplo no vasto grupo de personagens femininas: pastoras,
regateiras, taverneiras e alcoviteiras. Seu texto que mais apresenta ofícios exercidos pelas mulheres
é a Comédia de Rubena, onde enfoca figuras da parteira, da ama e das criadas. O corpo feminino de
origem popular deambula pelas artérias da cidade vendendo ervas, hortaliças, leite e queijo na
Ribeira; estripando peixes e assando sardinhas; carregando potes de água na cabeça para vendê-la
de porta em porta.
Aquelas mulheres se misturavam à paisagem da cidade, porém, o “Pranto da Maria Parda” é visto
como a sua “grande obra lisboeta”. Nela, o texto vicentino é a própria cidade de Lisboa e nos leva,
por exemplo à Rua do Forno, citada no processo de Beatriz Fernandes, localizada perto da Igreja de
São Cristóvão e que poderia remeter a uma lugar na Ribeira, já que, antes de ir à Mouraria, a
personagem ainda percorre do Poço do Chão à Praça dos Canos.59
De acordo com João Brandão, no estudo “Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552”, a cidade contava com
300 mulheres designadas como botoeiras, que não tinham outro ofício senão fazer botões e, por ele,
ganhavam muito dinheiro”.60
No final do século XIII, o material utilizado na realização artesanal de botões diversificou-se. Outrora
produzidos em osso, couro, madeira e metal, vão adquirir maior realce com a utilização de prata, marfim e
madrepérola.
Nos séculos XV e XVI, os botões adquirem um importante valor decorativo nas roupas europeias. Nas
pinturas de retratos, aparecem numa longa fila e em formato pequeno e redondo, sobre o vestuário dos
homens e das mulheres.
59 COELHO, Silvia C. S. e CRUZ, Eduardo da. Mercadores e tavernas: tristeza na Lisboa de Gil Vicente. Gil Vicente
Mercadores e tavernas (paginasmovimento.com.br) https://www.paginasmovimento.com.br/gil-vicente-mercadores-e-
tavernas.html
60 BRANDÃO, João. Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552. Lisboa, Livros Horizonte, 1990. p.207.
61 https://comjeitoearte.blogspot.com/2017/08/o-botao-na-moda-atraves-dos-tempos.html
A moda das mangas enormes, em diversos estilos diferentes, foi popular no século XVI. As mangas de estilo
italiano, eram independentes do corpete e a ele presas por botões de ouro ou fitas. Os materiais
empregados ouro ou prata, pedras preciosas ou esmaltados, de seda ou passamanaria, corda, cabedal,
chifre, madeira, osso, tecido e vidro ou ainda em diferentes variedades de metal como ferro, latão e cobre.62
Beatriz foi sentenciada e recebeu como pena abjuração em forma, cárcere e hábito perpétuo sem remissão,
justificada por ter tido sua pena perdoada duas vezes.
Conforme explica Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa, a "abjuração" era qualificada como “pena
juramental” e consistia na renúncia de algum erro com toda a formalidade. Segundo a tradição da Igreja
"abjuração era o ato público pelo qual um adulto convertido jurava solenemente rejeitar as crenças
heréticas, que antes admitia, e aceitar as verdades da religião católica, sendo a “abjuração em forma", como
ocorreu com Beatriz Fernandes, uma abjuração feita conforme forma estabelecida pelo Tribunal.63
62 https://comjeitoearte.blogspot.com/2017/08/o-botao-na-moda-atraves-dos-tempos.html
63 MURAKAWA, Clotilde de Almeida Azevedo. Inquisição Portuguesa: Vocabulário do Direito Penal Substantivo e
Adjetivo (Organização em campos lexicais associativos). Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Linguística
e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista " Júlio de Mesquita Filho",
(UNESP), campus de Araraquara-SP. Orientadora: Dra. Cacilda de Oliveira Camargo. p.128-129.
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/242492/murakawa_caa_dr_arafcl.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Isabel Farinha tinha19 anos quando foi presa e levada aos cárceres do Tribunal Inquisitorial de Lisboa em
quatorze de agosto de 1626 acusada de judaísmo.
Filha de António de Farinha, 1/4 de cristão-novo, pedreiro e Catarina João, cristã-velha e solteira, Isabel
foi considerada
Natural de Farinha Podre, Penacova, bispado de Coimbra, morava no Convento de Santa Clara em Lisboa,
onde trabalhava como servente.
De acordo com Maria Filomena Pimentel de Carvalho Andrade, em sua tese intitulada “IN OBOEDIENTIA,
SINE PROPRIO, ET IN CASTITATE, SUB CLAUSURA a Ordem de Santa Clara em Portugal (Sécs XIII – XIV), o
Convento de Santa Clara em Lisboa praticamente não possui documentação, uma vez que esta desapareceu
no terramoto de 1755 que arruinou parte da cidade e o Convento em questão. Ressalta ainda que, no
Arquivo da Torre do Tombo existe o fundo “OFM, Província de Portugal”, Santa Clara de Lisboa, com apenas
5 unidades de instalação: 4 livros e 1 maço, cujas datas estremas são: 1513-1844.
Destes, destaca-se o livro 4, de 1772, que traz no seu início um pequeno resumo da fundação do mosteiro
com a transcrição de algumas cartas régias (três, para o período em estudo) e de uma escritura de doação
feita pela fundadora ao cenóbio.64
64 ANDRADE, Maria Filomena Pimentel de Carvalho. OBOEDIENTIA, SINE PROPRIO, ET IN CASTITATE, SUB
CLAUSURA a Ordem de Santa Clara em Portugal (Sécs. XIII – XIV). Dissertação apresentada para cumprimento dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em História (Especialidade em História Económica e Social
Medieval), realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Iria Vicente Gonçalves. FSCH. Universidade
Nova de Lisboa, 2011. pp 33-34.
65 Convento de Santa Clara | Museu de Lisboa | Maqueta de Lisboa antes do Terramoto de 1755.
O Convento de Santa Clara de Lisboa era feminino, pertencia à Ordem dos Frades
Menores, e à Província de Portugal da Observância. Em 1288, foi fundado, por D.
Inês Fernandes, asturiana, viúva do mercador genovês D. Vivaldo de Pandulfo, e
por Maria Martins, Maria Domingues e Clara Eanes, que obtiveram autorização
por breve do papa Nicolau IV do mesmo ano. Começou a ser erigido no lugar do
atual Largo da Trindade, perto do Convento franciscano, mas a construção foi dois
anos depois foi transferida para o atual Campo de Santa Clara, junto a São Vicente
de Fora. Em 1292, a 1 de Fevereiro, foi entregue pela fundadora, que ficou a viver
junto ao Convento às primeiras clarissas, na presença do provincial dos
franciscanos e de outros membros da Ordem. Em 1294, a 7 de Setembro, foram
iniciadas as obras da igreja, sendo bispo de Lisboa D. João Martins de Soalhães.
Na capela-mor foi sepultado D. Vivaldo Pandulfo, e mais tarde, na casa do
capítulo, a rainha D. Joana de Castela. Em 1503, por influência espanhola, o
convento de freiras urbanistas passou de claustral a observante, sendo sujeito à
obediência do Vigário Provincial da Observância, ainda antes da separação das
províncias em Portugal. Em 1551, o convento tinha cem freiras, duas capelas com
65 Convento de Santa Clara | Museu de Lisboa | Maqueta de Lisboa antes do Terramoto de 1755 | Pormenor | José
Vicente 2013 © CML | DMC | DPC | José Vicente 2013
Aprofundando dados sobre o Mosteiro de Santa Clara de Lisboa, lugar onde trabalhava a protagonista deste
processo, o Sistema de Informação do Património Arquitectónico de Portugal registra de forma
pormenorizada a arquitetura e compartimentos do prédio:
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=1379441#:~:text=O%20Convento%20de%20Santa%20Clara,vi%C3%BAva%2
0do%20mercador%20genov%C3%AAs%20D. / http://lisboadeantigamente.blogspot.com/2019/07/mosteiro-de-santa-
clara.html
67 http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=26235
68
Convento de Santa Clara - Panorâmica de Lisboa do Museu Nacional do Azulejo. Alexandre Pais. 2012
Um documento que nos parece sugestivo para outros estudos sobre o referido Convento é o “Livro do
número das religiosas deste Mosteiro de Santa Clara de Lisboa e das patentes e estatutos que resultam das
visitas (1681-1645)”, constante no acervo da Biblioteca Nacional de Portugal.69 Embora posterior a estada
de Isabel Farinha naquele estabelecimento, pode trazer elementos para futuros trabalhos no tema.
O estatuto do ofício exercido por Isabel Farinha está alinhado com os ofícios de criadas de servir, vistos em
processos anteriores. Desse modo, o seu dia-a-dia voltava-se ao afazeres cotidianos no Convento, que
envolviam ocupações com lenha para aquecimento das águas para banhos e cozimento de alimentos, com
a cera das velas ou azeite dos candeeiros de iluminação, limpeza de espaços e objetos ritualísticos como
castiçais de estanho e prata, limpeza da cozinha e utensílios como baixelas de cobre, panelas, caldeirões,
68 Convento de Santa Clara - Panorâmica de Lisboa do Museu Nacional do Azulejo. Alexandre Pais. 2012.
http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=26235
69 https://purl.pt/24919
tabuleiros, tachos e caçarolas, limpeza das demais dependências, cuidados com a horta, criação de animais,
lavagem, secagem dobra e separação da rouparia, entre outros.70
O processo de Isabel Farinha é também significativamente rico em detalhes que permitem alcançar outros
elementos de sua vivência noConvento. Exemplo disso é a listagem do “Rol do fato q se amtregou de Izabel
farinha”(TIF.5) que Isabel “trouxe” consigo, e que apresenta interessantes aspectos da cultura material:
Vão duas camisas, hu travesseiro de linho, hua renda de travesseiro, hua mantilha,
hus pantufus, hua toalha de mãos de linho, hu guardanapo, hu gibão, hua coifa
cnastras, hua fita preta, duas camisas e hu lansol está na lavandeira, as duas
toalhas de cabesa ella as levou, hua velha e farapada a sinais, o lenso e hu
guardanapo não thevi tal couza.(TIF 5)
Sobre o seu “crime”, Isabel disse em sua confissão, feita em dezoito de agosto de 1626, que a verdade era
que a Crença da Ley de Moises lhe durara ate avera três mezes que entrou no mosteiro de Santa Clara desta
Cidade tempo em que deixou a ditta Crença e se tornou a nossa Santa fee
Ao ser perguntada se sabia o motivo pelo qual havia sido presa respondeu que por ser judia, por não crer
na fee de nosso Senhor Jesus Christo.(TIF 50)
Após várias sessões de admoestações, Isabel foi posta a “tormento” em primeiro de março de 1627 e ao
longo de três páginas inteiras em seu processo são narrados os detalhes da tortura a que foi submetida.
Sua sentença foi proferida no auto-da-fé de quatorze dias depois e como pena teve confisco de bens,
abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, instrução na fé católica e penitências
espirituais.
70 ROBERTO, Débora Sofia Fernandes. Comensalidade e Cozinha no Mundo dos Mosteiros e Conventos: Espaços,
Decoração e Funções. Dissertação de Mestrado em História de Arte – Época Moderna e Expansão. FSCH. Universidade
Nova de Lisboa, 2018. pp 90-91.
4. CONCLUSÕES
Toda a composição pesquisa “Mulheres no santo ofício: elementos para a compreensão do trabalho
feminino em Lisboa segundo a documentação inquisitorial (1536 – 1636)” PARTE II, ora concluida, tem
como compromisso fazer com que os impactos de seus resultados ultrapassem indicadores voltados única
e exclusivamente para dentro dos muros acadêmicos e possibilitem perceber, com um senso de novidade,
as suas contribuições para o conhecimento histórico, reflexões críticas e proposições de soluções que dizem
respeito, entre outros, ao crescimento, no tempo presente, da intolerância religiosa em várias perspectivas,
colocando um desafio ético-político fundamental àqueles que recusam o irracionalismo dos discursos e
práticas que embasam tais posturas.
Ora, o que se espera desta pesquisa, que cumpre aqui mais um capítulo, é que possa fornecer dados
relevantes para o estudo do tema, contribuindo para o adensar dos conhecimentos das ações e sujeitos
envolvidos nas teias inquisitoriais.
Ressalte-se ainda que, no campo das contribuições científicas e tecnológicas, apresenta 2 potenciais
imediatos de inovação que dizem respeito (1) à inédita abordagem temática, no âmbito da temática voltada
para as atividades laborais de mulheres na documentação inquisitorial, e a instrumentalização das fontes
com o uso da plataforma Transkribus quanto a paleografia digital. Outro ponto (2) que convém destacar no
âmbito das contribuições científicas e tecnológicas é o alinhamento da pesquisa aos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (Agenda 2030) da Agenda ONU 2030. A 70ª sessão da
Assembleia Geral da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2015,
marcou o cenário mundial com a aprovação do documento “Transforming Our World: the 2030 Agenda for
Sustainable Development”, que ficou conhecido como “2030 Agenda". Composta por 17 “Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável” e 169 “Objetivos”, a “Agenda” foi adotada pelos 193 Estados membros da
ONU e se consolidou como a mais importante referência para o desenvolvimento sustentável, vigente até
2030. Reconhecemos ainda um potencial de Inovação em que se imbricam resultados e a resolução de
problemas práticos no Objetivo 5 “Igualdade de Gênero”, da Agenda 2030. O objetivo 5 converge a essência
da pesquisa ao trazer à tona as histórias de mulheres trabalhadoras e anônimas que vieram antes de nós e
instigar a consciência de suas forças, bem como daquelas mulheres seculares, que com suas histórias e
exemplos servirão de inspiração, confiança e força diante da vida, de seus direitos e oportunidades. Durante
séculos instituiu-se que o papel da mulher na sociedade restringia-se apenas à dona de casa, esposa e mãe.
Entretanto, pesquisas e questionamentos tem surgido no sentido de desconstruir essas visões, mostrando
que as conquistas atuais ecoam em séculos passados. É o que propõe a investigação ao tratar de histórias
de mulheres que há quinhentos anos estavam trabalhando em diversos ofícios na cidade de Lisboa e que,
caindo nas malhas da ação do Tribunal Inquisitorial, acabaram presas em seus cárceres. Contribuindo com
o disposto no Objetivo 5, a pesquisa apresentou aspectos da vida de cada uma das mulheres que compõem
o corpo dos documentos estudados, estimulando e fortalecendo a reflexão crítica de mulheres e meninas
que tiverem contato com os resultados da pesquisa. Nesse sentido, a pesquisa, alinhada à Agenda ONU
2030, recupera histórias de mulheres que, embora, sem visibilidade, foram protagonistas e marcaram,
ainda que anonimamente, a história e o seu tempo, devendo por isso servir de referência para outras
mulheres e para a sociedade.
5. REFERÊNCIAS
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PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Judaísmo e Inquisição. Estudos. Lisboa: Presença, 1987.
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2299703
6. ANEXOS
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7. PRODUTOS GERADOS
(Informar nos colchetes o quantitativo - quando houver - apresentar os itens marcados na seção "Anexos")
• Artigos Publicados [ - ]
• Dissertação de Mestrado [ 2 ]
• Tese de Doutorado [ - ]
• Livros [ - ]
• Capítulos de Livros [ 4 ]
• Outros: [ 4 ]
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