CERU - História de Vida - 80-98

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HISTÓRIAS DE VIDA E

DEPOIMENTOS PESSOAIS*

Maria Isaura Pereira de Queiroz

Uma das técnicas mais fascinantes da sociologia é a das his-


tórias de vida e depoimentos pessoais. A coleta de tais documentos
parece, à primeira vista, coisa fácil e ao alcance de qualquer um;
pois não basta chegar simplesmente a uma pessoa, pedir-lhe que
conte sua vida ou dê sua opinião, anotando cuidadosamente o que
ela diz? Ao executar o trabalho, todavia, as dificuldades e os proble-
mas ressaltam; não só problemas de escolha do informante e obten-
ção do material, como do preparo do pesquisador.
Foi a psicologia que primeiro se serviu das histórias de vida;
ultimamente, a sociologia tomou consciência do partido que delas
pode tirar; mas a atitude de cada uma é diferente. Para a psicologia,
é o indivíduo como tal o centro de interesse; mesmo considerando
que a personalidade resulta da interação indivíduo-grupo, toda a
ênfase é dada ao primeiro; através da história de vida busca-se com-
preender como a personalidade se formou e as vicissitudes que atra-
vessa devido ao contato com o grupo; como, a partir de um núcleo
de qualidades inatas, se desenvolveu e absorveu os valores que o
grupo ora lhe oferece, ora lhe impõe; ou então se busca estudar o
indivíduo e suas reações em determinada situação, considerados
como parte do ambiente e influindo sobre o ambiente; em ambos os
casos, é sempre o "indivíduo" que interessa; a história de vida, nos
dois casos, apresenta ótimas possibilidades de estudo.
Coleção TEXTOS. Série 2, u. 10

A sociologia tem por objeto os fatos sociais, que a princípio foi


considerado como exterior aos indivíduos e estudado nos comporta-
mentos visíveis dos mesmos e nas cristalizações institucionais; o
interesse que apresentam a história de vida e o depoimento pessoal,
para este tipo de sociologia, é limitado; servem como ilustração da-
quilo que outras técnicas permitiram estudar. Foi a partir do mo-
mento em que se admitiu que valores e opiniões tinham base coleti-
va, não eram produtos essencialmente individuais, que as histórias
de vida ganharam importância para a sociologia; ao seu primeiro
ponto de vista puramente objetivo e exterior seguiu-se outro, o de
"compreender o social não apenas como o que se realiza por meio
dos homens, mas como o que é vivido e agido por eles"23 (DUFREN-
NE, 1952), isto é, o estudo do fato social humanizado, encarado na
sua matriz que é o indivíduo, criador e criatura do grupo. A história
de vida permite justamente estudar o fato social de seu interior, na
fonte. O que os homens pensam, sentem e fazem, constituindo fatos
sociais tanto, por exemplo, quanto as técnicas que empregam em
seus trabalhos, a história de vida vem nô-lo mostrar ao vivo; ela
permite uma abordagem interior de fatos que antes só se observava
do exterior.
Tome-se, por exemplo, a afirmação da inexistência de diferen-
ças de cor entre nós, que pode ser estudada em seus aspectos obje-
tivos - quando mais não seja na lei que proíbe sua manifestação;
são esses fatos sociais frios e desumanizados. Mas a atitude de um
brasileiro branco diante, seja da comunidade negra, seja de um ne-
gro em particular; ou a atitude do negro para com os brancos1 tudo

23
Mikel Dufrenne. Coup cToeil sur 1'Anthropologle Culturelle Américaine. Cahiers
Intemationaux de Sociologie, Paris, v. 7, n. 12, 1952.

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quanto se oculta por detrás desta frase comuníssima: "Eu não te-
nho preconceito, mas,.."; o significado que para negros e brancos se
prende ao elemento cor; o preconceito que se manifesta em certas
situações e noutras não - fatos sociais, pois resultam da vida em
grupo - só podem ser alcançados através do comportamento e das
opiniões dos indivíduos, e a história de vida é um dos bons auxilia-
res para sua investigação. O preconceito será assim estudado em
função do membro do grupo; será estudado dentro da comunidade,
que não será encarada como uma reunião de indivíduos a que se
impõem uma coleção determinada de instituições, de valores e de
hábitos, mas sim como uma realidade palpitante, isto é, levando-se
em canta o grupo de indivíduos vivendo, sentindo, agindo dentro da
armadura das instituições, à qual o viver, sentir e agir afrouxa, dá
elasticidade, modifica.
Consideradas sociologia e psicologia como o estuda de duas
faces complementares e inseparáveis de uma mesma realidade, a
história de vida do ponto de vista psicológica, estudando a integra-
ção do indivíduo em determinada cultura, a formação de sua perso-
nalidade pela interação entre suas qualidades individuais e o meio
em que vive, se completa com a história de vida do ponto de vista
sociológico, que mostra, dentro da rigidez do esqueleto estrutural
da sociedade, em suas instituições e "mores", as linhas mais "fá-
ceis" de conduta, os "arranjos", a flexibilidade "do comportamento
humano, que não são individuais porque seguidos por muitos.
Desta compreensão da história de vida decorrem duas conse-
qüências: primeiro, que a psicologia pode encontrar seu material
numa história de vida, pois se seu objetivo é o indivíduo (mesmo que
deste indivíduo se generalize para os restantes, sendo então neces-
sária a escolha de um indivíduo representativo); segundo, que a
sociologia não pode se contentar com uma história de vida, pois,

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mesmo que tenha escolhido um indivíduo característico do grupo


estudado, não poderá nunca afirmar, a partir de um, que os manei-
rismos que ele manifesta diante das instituições sejam coletivos.
Na verdade, qualquer história de vida tem em si seu problema
e seu interesse, para a psicologia; uma vez que se trata da interação
personalidade-meio, a questão a formular é interior, imanente à his-
tória de vida; o psicólogo pode abordá-la sem ter em mente quesito
algum, ela própria os fornece (o que não impede, é claro, que ele
proponha anteriormente uma questão e utilize a história de vida
para seu conhecimento). Para o sociólogo não; o problema sociológi-
co em relação à história de vida tem o mesmo caráter do fato socio-
lógico em relação ao indivíduo: é-lhe ao mesmo tempo exterior e
interior, enquanto em relação ao fato psicológico é apenas interior.
A biografia de ura negro que demonstra sentimentos de rancor con-
tra brancos explica, para o psicólogo, como estes sentimentos se
desenvolveram a partir do contato e experiências com brancos, mos-
tra em que situação tais sentimentos aparecem e as reações que o
indivíduo apresenta então; o problema psicológico é interior à vida
desse negro, não existe fora dela, a não ser na medida em que ele
seja membro de uma comunidade onde, entre as instituições, figure
a da animadversão entre as raças; mas aqui saímos fora da psicolo-
gia porque o problema não depende mais do negro como indivíduo
nem de sua vida particular, e sim do meio; quando o negro penetra
naquele meio, o problema podia já existir; e mesmo que não existis-
se, desde que surja, aparece como linha de conduta de muitos, re-
sultante de um complexo de fatores sociais; é de certa maneira im-
posto ao negro do exterior. Eis porque dizemos que, na história de
vida encarada do ponto de vista sociológico, o problema é ao mesmo
tempo exterior e interior - exterior porque é um modo de agir coleti-
vo, que se inscreve nos costumes do grupo, interior porque o indiví-
duo o absorve, tornando-o parte de sua personalidade.

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O relato de uma história de vida pode sugerir problemas ao


sociólogo, e sempre possui elementos que o interessam, pois nunca
se viu um homem que existisse completamente só, sem inscrever
em sua vida os aspectos da comunidade em que se criou e habita;
todavia, diante de "uma" história de vida, como ter certeza de que o
problema nela encontrado é de fato sociológico e não peculiaridade
individual? Duas soluções se apresentam: acumular as histórias
de vida para delas deduzir o que é coletivo e o que é individual, ou
formular o problema antes de iniciar a história de vida, de acordo
com o que se observou na comunidade que se pretende estudar,
pressupondo-se então um estudo ou um conhecimento prévio do
grupo, da cultura, da comunidade em foco. Sabendo-se, por exem-
plo, que em certa comunidade, que reúne indivíduos de raças di-
ferentes, existe a "linha de cor", pode-se investigar qual o valor e o
significado atribuído por brancos e negros à cor e como reagem
diante dela.
A formulação prévia da questão é uma das regras mais impor-
tantes na colheita da história de vida para fins sociológicos; de acor-
do com a questão escolhida se orientarão as diferentes fases do tra-
balho: preparo do pesquisador, escolha do informante, entrevistas,
análise dos dados. Regra, aliás, básica em toda a pesquisa, socioló-
gica atualmente; foi-se o tempo em que se confundia prenoção com
hipótese de trabalho ou com problema e em que se encarecia que o
pesquisador devia ser como uma "tábulas rasa", ao qual a simples
observação revelaria a estrutura íntima dos fatos sociais. A coleta
cega do material foi substituída pela colheita dirigida, sendo a dire-
ção exercida pelo problema que o sociólogo tem em mente.
Tocamos então o preparo do pesquisador; para que este possa
formular o problema, é preciso que conheça sociologia em geral e o
grupo que pretende estudar em particular; quanto maior a familia-

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ridade com este grupo, maior facilidade para a formulação da ques-


tão, que ganha em sutileza e agudez. Será muito mais fácil formular
problemas a respeito da sociedade em que vivemos do que a respei-
to de sociedades bantus ou indígenas.
Se o sociólogo é, porém, um membro do grupo, que assim
conhece do interior, ele mesmo terá uma opinião, uma atitude, da
qual pode não ter muita consciência, diante do problema que pre-
tende estudar. Analisar sua atitude pessoal por meio de um depoi-
mento honesto, em que sejam expostas não somente sua própria
opinião, experiências e comportamentos, como também as opiniões,
experiências e comportamentos, das pessoas em cujo círculo vive, é
alcançar, por meio do melhor conhecimento de si mesmo, maior
objetividade para a pesquisa em vista; a análise permite-lhe desven-
dar tendências que ignorava ou que não levava em conta; conscien-
te da existência delas, poderá vigiá-las e evitar que deformem os
dados no ato da colheita. Por outro lado, este depoimento enrique-
cerá o acervo de dados sobre o problema que estuda.24
A escolha do informante também está diretamente presa ao
problema pré-formulado. O informante tem de ser alguém em cuja
vida e atitudes se possa estudar a questão; no caso do preconceito
de cor, por exemplo, de nada adianta obter a história de vida de um
indivíduo que não tenha contatos com outros de cor diferente. Colo-
ca-se aqui, outrossim, a questão da escolha do "indivíduo represen-
tativo"; diante de muitos indivíduos desconhecidos que fecham em
si mesmos o segredo de seus comportamentos e opiniões, como des-
cobrir o tipo médio? O pesquisador, ou conhece tão intimamente o

24
É um preparo que o Prof. Roger Bastide vem exigindo dos alunos de sociologia,
sempre que os encarrega de obter uma história de vida.

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grupo, seus componentes e seus "mores" que lhe é fácil escolher o


informante representativo da média ou cuja vida seja especialmente
interessante para a hipótese a investigar, ou então terá de operar
uma sondagem prévia. Esta seria feita pedindo-se a vários infor-
mantes em potência que redijam curtas biografias, ou que dêem
seu depoimento pessoal sobre o problema visado; aos que fornece-
rem os relatos mais interessantes, pedir-se-á a história de vida com-
pleta e detalhada, sendo de bom aviso figurarem entre os escolhidos
tanto representantes do comum, quanto aberrantes. As restantes
biografias são outros tantos dados, servindo como meio de verifica-
ção de que as atitudes manifestadas pelos informantes são de fato
coletivas e não produtos inteiramente pessoais.
Nota-se mais urna vez o afastamento do "um" pelo sociólogo;
porque mesmo que só um indivíduo seja escolhido, ele o é como
representante da coletividade, como amostra de como agem todos; e
para sua escolha, ou para a verificação dos dados que forneceu,
recorre-se sempre à pluralidade. Para um estudo sociológico em que
se queiram utilizar unicamente histórias de vida, muitas delas de-
vem ser buscadas; não sendo assim, ficamos na psicologia. Se con-
siderarmos que, para a obtenção de histórias de vida, é necessário o
preparo prévio do pesquisador (mesmo que ele possua conhecimen-
tos sociológicos e familiaridade com a sociedade a estudar, é preciso
sempre um pequeno preparo teórico peculiar ao assunto escolhido,
assim como a auto-analise a que nos referimos atrás), a escolha
cuidadosa do informante, a entrada em relações com este para que
se estabeleça um clima de confiança sem o qual o trabalho é impos-
sível, grande quantidade de colóquios para se conseguir uma narra-
ção integral, vemos que esta técnica de estudo é das que consomem
tempo e das que mais vagar e paciência requerem; o trabalho não
pode ser feito de maneira intensiva - longas entrevistas para esgo-

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tar rapidamente o assunto - porque os detalhes se perdem e o can-


saço de pesquisador e informante deforma o relato. A história de
vida, para o sociólogo, dificilmente poderá então constituir um úni-
co instrumento de trabalho.
O meio de remediar a esta dificuldade é recorrer a depoimen-
tos pessoais, a fragmentos de histórias de vida, que são fáceis de
obter em maior quantidade.
Toda história de vida tem de ser um depoimento, isto é, não
apenas um relato cronológico de acontecimentos, mas trazer em si
a riqueza de sentimentos, opiniões e atitudes da pessoa que a rela-
ta; a não ser assim, revelar-se-á pobre, incolor, pouco significativa e
pouco útil, tanto para a psicologia quanto para a sociologia. Para o
psicólogo que estuda uma personalidade, porém, depoimentos pes-
soais ou apenas fragmentos de história de vida não são de muito
valor porque incompletos; ele precisa conhecer, não só como o indi-
víduo reagiu numa determinada circunstância, mas também que
motivos, o impeliram então, o que deve ser buscado geralmente no
passado, porque é o desenvolvimento individual em interação com o
grupo e a cultura que dá esses motivos. Para o sociólogo, desejoso
de conhecer como se comporta a coletividade, os depoimentos e os
fragmentos de história de vida tem grande interesse porque focali-
zam justamente o comportamento a conhecer, indicando a quanti-
dade de material, se ele é coletivo ou não; a abundância de depoi-
mentos, opiniões, fragmentos de histórias de vida, completar-se-ão
uns aos outros, agindo também como correção e controle não só em
relação uns aos outros, como em relação às poucas histórias de
vida que se obtiver.
Diante da necessidade de utilização desses depoimentos, res-
salta novamente a importância da formulação do problema antes de
iniciada a pesquisa; sem uma questão precisa, que depoimentos

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HISTÓRIAS DE VIDA E DEPOIMENTOS PESSOAIS

buscar? E mesmo quando se trata do relato de uma história de vida,


em que a maior quantidade de dados e de informações deve ser
solicitada, o pesquisador não pode perder de vista seu problema
porque corre o risco de deixar vago e obscuro o lance que mais de
perto lhe interessam, enquanto lhe são fornecidos com abundância
dados de somenos importância para seu objetivo; com maior razão
ainda em se tratando de depoimentos, que são buscados tendo em
vista determinado fim, que devem focalizar determinado comporta-
mento ou determinada opinião, isto é, que se deve colher visando o
problema formulado anteriormente.
Colhidos os dados, é óbvio que a análise será feita de acordo
com o problema. Não só a análise, mas antes dela as pesquisas,
sobre a confiança que o documento pode merecer, a verificação dos
dados, serão também orientadas pelo problema. No caso, por exem-
plo, de o documento ser confrontado com outros diferentes, estes
também devem ter sido coligidos de acordo com o problema central
e o confronto será diretamente influenciado por ele, pois o que se
procura verificar é justamente a confiança que nos pode merecer o
documento em relação ao problema.
Toda esta exposição parece concorrer para a conclusão de que
só um sociólogo ou indivíduo que conheça bastante sociologia será
capaz de coligir uma história de vida com os requisitos necessários;
de fato, um sociólogo ou um estudante de sociologia será a pessoa
melhor indicada para a tarefa, porque só eles terão o preparo espe-
cial para obter o documento mais rico e mais preciso do ponto de
vista do problema a estudar, pois têm muito mais a consciência
aguda desse problema e das dificuldades da obtenção. Isso não quer
dizer que dados colhidos sem a orientação de um foco especial de
interesse devam ser desdenhados como inúteis; no caso, por exem-
plo, de uma biografia escrita por qualquer autor - dela pode e deve

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lançar mio o sociólogo, para seu estudo; mas os dados assim obti-
dos são menos precisos e necessitam de uma análise muito mais
delicada e cuidadosa, como nota Robert Angell.25 Podemos esculpir
madeira com qualquer canivete; mas o trabalho será muito mais
fácil, rendoso e perfeito, se usarmos o instrumento apropriado.
Pode-se argüir que os autobiógrafos embelezam-se a si mes-
mos, ou que os escritores tendem sempre a dar uma idéia simpática
ou antipática de seu biografado, criando uma imagem fictícia das
ações, atitudes, reações, emoções. O mesmo, porém, acontece quando
o indivíduo conta sua história ao pesquisador; todos nós somos le-
vados, às vezes de maneira inteiramente inconsciente, a nos mos-
trar como queremos ser idealmente e não como realmente somos.
Mas o psicólogo é quem sofre mais com isto, ele é que está lidando
com uma personalidade em sua formação e vicissitudes; quanto ao
sociólogo, pode sanar a falha pela comparação com outras autobio-
grafias e depoimentos, se se lida com documentos frios, ou pelo
interrogatório de pessoas da família sobre o informante, em se tra-
tando de histórias de vida. Neste último caso, o próprio conheci-
mento do informante, à medida que as entrevistas vão se acumu-
lando, permitirá de certo modo ao pesquisador uma atitude de
confiança ou de desconfiança para com a narração que está ouvin-
do. Aliás, a falta de veracidade em relação a certos acontecimentos
ou detalhes (desde que descoberta e constatada pelo sociólogo) pode
até constituir um dado suplementar; conhecido o grupo social do
informante, a falha indica a existência, nesse ponto, de uma valori-
zação ou de uma desvalorização social que o indivíduo voluntária

25
GOTTSCHALK, Louis; KLUCKHOHN, Clyde; ANGELL, Robert. The use of personal
documents in history, anthropology and sociology. Social Science Research Council,
New York, Bulletin 53, 1945.
HISTÓRIAS DE VIDA E DEPOIMENTOS PESSOAIS

ou involuntariamente pretende ignorar, exagerar ou contradizer.


Todos estes cuidados que requer a obtenção de uma história de
vida, estão a repetir que somente um estudioso de psicologia ou de
sociologia deve se encarregar do trabalho; os leigos ou os pouco
treinados nos fornecem documentos imprecisos ou deformados e,
dada a dificuldade de se obter uma história de vida completa devi-
dos ao tempo que toma, o risco não deve ser corrido.
Colhi, o ano passado, fragmentos de uma história de vida que
espero completar mais tarde, e alguns depoimentos pessoais.
O problema que norteou a escolha de meus informantes foi o
das relações entre brancos e pretos em São Paulo, de princípios do
século até 1930, isto é, no período em que, libertados havia pouco,
tiveram os negros de se haver com a concorrência dos imigrantes
melhor preparados do que eles para a luta no terreno do trabalho
livre.
Minha informante para a história de vida é pessoa de cor,
nascida em 1900; passou sua infância e mocidade na cidade de São
Paulo; empregada doméstica desde os 26 anos, tem vivido quase
exclusivamente no meio de brancos, suas amizades são, em grande
maioria, com gente branca. Conheço-a há tempo; estava, assim,
afastada a primeira dificuldade das relações entre informante e pes-
quisador, que é a conquista da confiança para que a narração seja
feita cora a maior franqueza. Outra dificuldade é a perda de interes-
se por parte, quer do pesquisador, quer do informante; muitas ve-
zes, colóquios começados com todo o entusiasmo vão adquirindo
um aspecto de obrigação que acelera o relato para acabar depressa
ou que lhe abate a vivacidade; ora, minha informante não só tem
decidido pendor para contar histórias, como narra-as com vivacida-
de e sabor; sabia de antemão que nosso interesse não diminuiria,
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antes tenderia a aumentar com o correr das entrevistas, dadas as


suas qualidades, de narradora.
Aqui intervém o perigo do "bovarysmo" que sói ocorrer quan-
do se trata de pessoa de muita imaginação: a criação de um perso-
nagem fictício pela informante para se revelar, a meus olhos, inte-
ressante como uma heroína de romance; dadas, porém, as relações
antigas entre nós duas, o conhecimento que tenho dela e de uma
parte de sua vida, com relativa facilidade descobriria os exageros.
Havia terceira vantagem na escolha desta informante, e que
não era de desdenhar: as entrevistas podiam ter lugar no ambiente
o mais normal possível, sem afastá-la de suas atividades e obriga-
ções cotidianas, sem criar para ela um "clima" diferente e sem dar
aos colóquios nenhum aspecto formal ou fora do comum. Ela leva a
passeio, todas as manhãs, a criança de quem é pajem; várias vezes
eu já a tinha acompanhado conversando. As entrevistas tiveram,
assim, caráter normal dentro de seus hábitos e de nossas relações
mútuas, realizando-se nesses passeios matinais.
Outro perigo era o de ela não se mostrar inteiramente franca
por ocupar, em relação a mim, uma posição subalterna e temer me
desgostar; este perigo também não existiu no caso; houve uma épo-
ca, a de minha infância, em que ela, apesar de empregada, ocupou
em relação a mim a posição contrária; como adulta e minha pajem,
representava a autoridade superior a quem eu devia obediência;
desta autoridade ficou um resíduo que impossibilita o estabeleci-
mento, entre nós, de relações de superior para inferior; a afeição
proveniente de um longo conhecimento, o respeito que despertaram
seu caráter e inteligência, concorre para destruir qualquer diferen-
ça de nível que tenda a se estabelecer; ela sabe que pode ser franca
comigo na exteriorização de suas opiniões e espera de mim a mes-
ma atitude.

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HISTÓRIAS DE VIDA E DEPOIMENTOS PESSOAIS

Todavia, estas condições, que acreditei de começo "condições


ótimas" para a obtenção de uma história de vida, tinham o inconve-
niente da própria amizade que nos liga. Se o interesse de nós am-
bas, no desenrolar da narrativa, não diminuía; se, pelo fato de eu
conhecê-la bem e de longa data, era menor o perigo de ela construir
para mim um personagem fictício, por outro lado eu mesma, de
maneira insensível (percebi um dia, quando relia o que acabava de
escrever imediatamente após a entrevista) era levada a atenuar ou
acentuar certos traços pelo uso de determinadas expressões, sem-
pre tendendo a dar uma impressão favorável do personagem. A im-
parcialidade, que é difícil de ser conservada diante de ou trem - é
rara sermos inteiramente indiferentes, reações de antipatia ou sim-
patia norteiam tanto nossas atividades em relação a outro indivíduo
quanto nossa maneira de representá-lo aos olhos do público - tor-
na-se mais difícil quando está em jogo a amizade. Mesmo no caso de
não existir a amizade entre informante e pesquisador, o perigo da
afetividade, menor no início das entrevistas, vai avultando, pois os
encontros amiudados, o conhecimento mais íntimo, vão minando a
indiferença inicial no sentido da simpatia ou da antipatia. O perigo,
maior no meu caso, existe sempre. E a escolha de urr. informante
inteiramente desconhecido e indiferente é solução precária que fun-
ciona somente no início dos colóquios, mas que deixa de ser solução
à medida que o trabalho vai desenvolvendo entre pesquisador e in-
formante relações amistosas ou não.
Há duas maneiras de sanar o inconveniente. O primeiro é o
sistema de anotar tudo, palavra por palavra, à medida que o infor-
mante vai falando (sendo então de grande utilidade a taquigrafia), o
que elimina as reações do pesquisador. Ou então tomar plena cons-
ciência da deformação acarretada pela afetividade e estar sempre
em atitude de desconfiança em relação a nós mesmos, ao redigir-
Coleção TEXTOS. Série 2, n. 10

mos as entrevistas. A mais segura é sem dúvida a solução de ano-


tar, no próprio momento em que a pessoa fala, tudo quanto conta.26
Adotei, porém, a segunda; a primeira tenderia justamente a formar
o clima de exceção e de artificialismo que tentei eliminar, colocaria a
informante numa situação fora do comum para ela - a de ditar qual-
quer coisa a alguém, - diminuiria sensivelmente a espontaneidade
do relato, que é uma das preciosidades da história de vida.
Deixei, pois, minha informante falar livremente; raramente lhe
perguntava uma ou outra coisa, fazendo-o apenas quando havia
dúvidas a esclarecer, detalhes a acrescentar concernentes à ques-
tão que mais me preocupava. Apesar dos inconvenientes - depender
muito da memória do pesquisador; sofrer a história de vida duas
deformações, primeiro da pessoa que conta, em seguida da pessoa
que anota - esta maneira não só é mais suave para informante e
pesquisador, como elimina a atitude natural de defesa que senti-
mos diante do lápis e do papel, a qual levaria insensivelmente o
informante a fornecer um relato "expurgado" no sentido de se dar a
conhecer tal qual deseja ser visto pelos outros e não tal qual real-
mente é.
Também não mencionei que meu problema central era o do
preconceito de cor. Não sabendo qual a questão que preocupa o
pesquisador, o informante conta sua história naturalmente, tal como
a compreende, sem dar maior importância a determinado aspecto,
examinando o passado sem idéias preconcebidas. Conhecendo o
problema será levado, insensivelmente embora, a acentuar uma ou
outra passagem a que não daria maior importância em situações
normais. No caso da minha informante, por exemplo, se eu dissesse
que estava estudando as relações entre brancos e pretos, imediata-

26
Esta história de vida foi colhida em 1951, antes da vigência do gravador.

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mente ela buscaria em sua memória tudo quanto a isso se referisse,


relatando os' acontecimentos sem a isenção de ânimo com que o fez.
O inconveniente está em que o informante pode se perder numa
quantidade de detalhes que não interessam de perto ao pesquisa-
dor. Todavia, o material que parece não se ligar ao problema central
não é de desdenhar; muitas vezes o que num relance se acredita
desligado da questão revela, num reexame, raízes profundas que o
prendem sutilmente a ela; por outro lado, como a obtenção de histó-
rias de vida requer tempo, o que limita sua quantidade, quanto mais
rica em dados de toda a espécie, melhor, porque permitirá que pes-
quisadores, do mesmo ou de diferentes ramos das ciências sociais a
possam aproveitar também.
Não pedi que respeitasse a cronologia; minha informante avan-
çava e recuava na história como bem entendia, contando os episó-
dios de acordo com associações que ia espontaneamente estabele-
cendo. O abandono da cronologia - que só deve ser empregada para
esclarecer a situação dos acontecimentos mais importantes no tem-
po, nunca para dirigir o fio da narrativa - é interessante porque
aproxima a história de vida das associações livres da psicanálise,
permitindo ao pesquisador uma penetração mais funda na mente
do informante.
São estas as melhores maneiras de se obter um material vivo,
objetivo, espontâneo: deixar ao informante toda a liberdade no rela-
to, sem o conhecimento do problema do pesquisador que influiria
na orientação de sua narrativa, sem lápis nem papel que o cons-
trangeriam, sem a cronologia que o obrigaria a uma ordenação dos
fatos de sua vida que lhes tiraria o sabor de aparecerem associados
da maneira que ele os vê associados. Mas estas regras (e nenhuma
outra) não devem ser erigidas em dogma; como sempre, a situação,
os temperamentos de pesquisador e informante, as relações entre

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Coleção TEXTOS. Série 2, n. 10

ambos, o tipo de problema a investigar ou outros fatores podem


tornar preferível a entrevista em que funcionem intensamente lápis
e papel, em que a cronologia seja respeitada e em que o informante
esteja ao par do objetivo do pesquisador.
Ao redigir a narrativa que ouviu, deve o pesquisador anotar
quais as perguntas que fez e em que ponto as formulou. Se, por
exemplo, os pontos que necessitavam de esclarecimento foram sem-
pre os mesmos, indicarão por parte do informante um desejo, cons-
ciente ou não, de fugir diante deles, o que muitas vezes é significa-
tivo para o problema estudado.
Quanto ao tempo que deve durar cada entrevista, variará de
pesquisador para pesquisador, de informante para informante, es-
tando não somente na dependência do temperamento e do vigor de
cada um deles, quanto da relação que entre ambos se estabelece;
numa relação de simpatia, a duração da entrevista poderá ser maior
do que se a antipatia se for desenvolvendo entre pesquisador e
informante. Assim, somente a experiência poderá estabelecer o
tempo ótimo para cada caso. Em se tratando do meu, verifiquei
que mais de hora e meia era demasiado para minha memória; no
dia em que a conversa se prolongou por duas horas - não só não
quisera quebrar o fio de um episódio que apaixonava minha infor-
mante, como também tentei experimentar quanto tempo eu agüen-
taria - tive muita dificuldade em lembrar de tudo na ordem em que
fora contado; minha informante não se mostrava cansada depois
de duas horas de entrevista; tive a impressão de que poderia con-
tinuar ainda por mais duas...
Ao mesmo tempo em que trabalhava nesta história de vida,
obtive vários depoimentos de outras pessoas sobre a questão do
preconceito de cor em São Paulo, ora colocando diretamente o pro-
blema diante do indivíduo, pedindo sua opinião e o relato de sua

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HISTÓRIAS DE VIDA E DEPOIMENTOS PESSOAIS

experiência pessoal, ora sondando por perguntas que o levassem,


sem perceber, a formular um parecer. Neste último caso, por exem-
plo, conversando com o encarregado de arquivos de um jornal pau-
lista, obtive, indagando do aumento ou da diminuição da criminali-
dade negra em São Paulo, dados sobre as relações entre brancos e
pretos, sem que o informante tivesse notado da minha parte qual-
quer interesse maior por esta última questão. A mesma abordagem
que usara na obtenção da história de vida - deixar o informante na
ignorância do problema central - utilizei-a desta vez; porém, como
também no caso das histórias de vida, depende do problema, do
pesquisador, do informante, do encontro entre ambos, a adoção desse
sistema ou do sistema de pedir diretamente a informação.
A tarefa do sociólogo é mais ingrata na obtenção dos depoi-
mentos. As questões devem ser muito claras e objetivas para que
rapidamente o informante dê um parecer preciso. No caso da obten-
ção indireta, a dificuldade aumenta; não se trata, como na história
de vida livremente obtida, de deixar o indivíduo falar como queira,
mas sim de dirigi-lo veladamente, com segurança e presteza, para
determinado fim.
Não basta o pesquisador consignar os depoimentos obtidos;
soltos nada significam. É preciso que anote cuidadosamente tudo
quanto sabe a respeito do depoente, de sua vida, profissão, nível
social, ambiente em que vive, para que a opinião dele se situe den-
tro de determinado contexto e queira dizer qualquer coisa. Também
as condições em que se realizou a entrevista devem ser relatadas.
Mesmo na história de vida, em que a situação grupai e o ambiente
estão explícitos e visíveis através da narrativa, é muito útil comple-
tar o trabalho com tudo quanto o pesquisador sabe a respeito do
informante; os dois documentos se completam: a história de vida de
um lado, o informante visto pelo pesquisador do outro. As condi-

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Coleção TEXTOS. Série 2,11. 10

ções das entrevistas, os momentos de maior interesse do informan-


te pela narrativa, os de maior emoção, tudo isso, quando anotado,
enriquece o material.
Em resumo, a obtenção de uma história de vida requer: que o
pesquisador possua, além do preparo sociológico, um preparo espe-
cial em relação ao problema que vai abordar e à técnica da história
de vida; a formulação prévia do problema; a escolha judiciosa do
informante; entrevistas que sejam o menos possível artificial e dife-
rente dos hábitos do informante; descoberta do tempo "ótimo" de tra-
balho para ambos; narrativa livre; desconhecimento, por parte do
informante, do problema que preocupa o pesquisador; anotação, por
este, das condições das entrevistas, das perguntas que formulou no
correr da conversa, de tudo quanto sabe a respeito do informante.
Queremos frisar mais uma vez que não são regras absolutas,
mas o que se nos afigura o melhor caminho a seguir. Regras preci-
sas em relação à técnica de obtenção de histórias de vida não po-
dem ser formuladas, não só porque podem variar de caso para caso,
como porque, sendo técnica relativamente recente, não houve ainda
número suficiente de experiências para bem desenvolvê-la. Para que
isto se dê é necessário não só que a técnica seja abundantemente
utilizada como que o pesquisador, além de dar os resultados de seu
trabalho, conte como agiu na obtenção dos dados e quais as dificul-
dades que encontrou.
É muito útil narrar o sociólogo suas peripécias ao utilizar qual-
quer técnica. Têm razão os que se queixam de que, em sociologia, a
maioria dos pesquisadores exibem o material obtido, analisam-no,
interpretam-no, sem descrever como agiram para obtê-lo. Torna-se
necessário que se prestem contas, aos outros estudiosos da maté-
ria, não só do critério usado na escolha dos dados, mas também de
como estes foram conseguidos e manipulados; contar se o lápis e o

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HISTÓRIAS DE VIDA E DEPOIMENTOS PESSOAIS

papel funcionaram ou não enquanto o narrador falava não é detalhe


de somenos importância, como parecem pensar os que se conten-
tam em fornecer o resultado de seus estudos. Somente o acumular
da experiência em relação às técnicas e ao seu modo de emprego
permitirá o aperfeiçoamento delas; aperfeiçoamento que só será al-
cançado por meio da comparação da maior quantidade de casos
semelhantes ou diferentes entre si; a comparação não é possível
quando se silencia sobre a maneira pela qual foi obtido e tratado o
material. Por outro lado, mostrar o caminho que se seguiu é permi-
tir que outros o aproveitem, o critiquem, o aperfeiçoem ou o refutem
em proveito de um sistema melhor.
Poder-se-á argumentar que os problemas sociológicos são em
extremo variáveis e que a abordagem necessariamente se modifica-
rá de acordo com cada caso e cada pesquisador, de tal modo que
nunca se conseguirá fixar normas para o tratamento dos diferentes
problemas. A variabilidade existe sim; porém também existe o ele-
mento comum; o que é variável, o é dentro de certos limites que
somente a apresentação de muitos casos permitirá perceber. Isto é,
dentro da variabilidade há uma constância que poderá ser alcança-
da desde que se acumule grande número de casos. Os problemas
sociológicos não fogem a esta constatação; dentro de sua variabili-
dade há que procurar a constante, a qual irá se desprendendo e
afirmando com o amontoar da experiência e com o relato minucioso
das diferentes técnicas empregadas no seu estudo, até permitir a
sua classificação em várias categorias e o afinamento dos melhores
meios de se pesquisar cada uma delas.

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