Lazer Genero e Sexualidade Ebook
Lazer Genero e Sexualidade Ebook
Lazer Genero e Sexualidade Ebook
LAZER,
GÊNERO E
SEXUALIDADE
DIÁLOGOS ENTRE
BRASIL E PORTUGAL
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lazer, gênero e sexualidade [livro eletrônico] : diálogos entre Brasil e Portugal
/ organização Hélder Ferreira Isayama, Maria Manuel Baptista. – 1. ed. –
Campinas, SP : Mercado de Letras, 2022.
ePub.
Vários autores.
ISBN 978-85-7591-676-6
22-139366 CDD-306.4812
Índices para catálogo sistemático:
1. Lazer : Práticas sociais :
Mediação cultural : Sociologia 306.4812
1a edição
2023
FORMATO DIGITAL
BRASIL
Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.
É proibida sua reprodução ou armazenamento parcial ou total ou
transmissão de qualquer meio eletrônico ou qualquer meio existente
sem a autorização prévia do Editor. O infrator estará sujeito às
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Conselho Editorial Educação Nacional
Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani – USP
Prof. Dra. Anita Helena Schlesener – UFPR/UTP
Profa. Dra. Dirce Djanira Pacheco Zan – Unicamp
Profa. Dra. Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira – Unicamp
Prof. Dr. Elton Luiz Nardi – Unoesc
Prof. Dr. João dos Reis da Silva Junior – UFSCar
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Profa. Dra. Marilane Wolf Paim – UFFS
Profa. Dra. Maria do Amparo Borges Ferro – UFPI
Prof. Dr. Renato Dagnino – Unicamp
Prof. Dr. Sidney Reinaldo da Silva – UTP / IFPR
Profa. Dra. Vera Jacob – UFPA
APRESENTAÇÃO
Hélder Ferreira Isayama e Maria Manuel Baptista
SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO
Referências
Notas
1 Inicialmente é importante ressaltar que o termo “ideologia de gênero” não existe na produção
científica sobre o tema. O termo é utilizado para rotular práticas educativas que problematizam
relações de opressão e desigualdades sociais. Essa visão é construída ao redor da ideia de que,
para os estudos de gênero e sexualidades, o gênero é algo individual, pensado ora como objeto
de uma escolha consciente e deliberada dos sujeitos, ora como um resultado causal de
impressões do ambiente, no qual o indivíduo seria apenas uma tela em branco. Esses discursos
apresentam uma série de afirmações que tem assustado mães e pais, eleitoras/es, e promovido
discursos de ódio contra qualquer debate que questione as falas moralizantes (Mattos 2018).
(R)EXISTÊNCIAS DE DISCUSSÕES DE GÊNERO E
SEXUALIDADE NAS PESQUISAS DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS
DO LAZER (PPGIEL/UFMG) ↵
Denise Falcão
Luiza Macedo
Lucilene Alencar
Marcília de Sousa Silva
Exatamente porque o conceito gênero enfatiza essa pluralidade dos processos pelos quais a
cultura constrói e distingue corpos e sujeitos femininos e masculinos, torna-se necessário
admitir que isso se expressa pela articulação de gênero com outras “marcas” sociais, tais
como classe, raça/etnia, sexualidade, geração, religião, nacionalidade. É necessário admitir
também que cada uma dessas articulações produz modificações importantes nas formas pelas
quais feminilidades ou as masculinidades são, ou podem ser, vividas e experienciadas por
grupos diversos, dentro dos mesmos grupos ou, ainda, pelos mesmos indivíduos, em
diferentes momentos de sua vida.
a análise praticada pelos Estudos Culturais consiste no compromisso cívico e político (no
sentido grego e mais radical de intervenção e envolvimento nos assuntos da polis) de estudar
o mundo, de modo a poder intervir nele com mais rigor e eficácia, construindo um
conhecimento com relevância social.
Metodologia
O recorte temporal é dado a partir da primeira defesa de dissertação no
âmbito do PPGIEL, que foi realizada em 2008, indo até dezembro de 2021,
ao iniciar esta investigação. Importante salientar que em 2008 o Programa
contava apenas com o nível de mestrado, tendo sido apenas em 2016 as
primeiras defesas de doutorado, de estudantes que ingressaram no Programa
em 2012.
O ponto de partida para a busca dos trabalhos a serem aqui analisados no
âmbito foi a lista de titulados emitida oficialmente pela Secretaria do
PPGIEL, onde estão indicadas, dentre outras informações, a data de defesa,
o nível (mestrado ou doutorado), o nome do/a discente e do/a orientador/a,
assim como os/as membros que compuseram a banca. A partir desta lista,
foram utilizados os títulos e nomes dos/as discentes para a busca dos
resumos. Considerando, então, os trabalhos defendidos entre 2008 e 2021,
foram identificadas 256 defesas, sendo 174 de mestrado e 82 de doutorado.
No entanto, para a análise não foram considerados os 256 trabalhos
produzidos, já que uma das metodologias escolhidas para análise foi a leitura
dos resumos em busca de identificar se havia indicação de temas de gênero
e/ou sexualidade.
Para a análise dos resumos, lançamos mão da Avaliação Heurística, que é
uma ferramenta de inspeção de usabilidade e, de acordo com Nielsen (1994),
é o método mais informal e comum de avaliação. A partir disso, foi gerada
uma nuvem de palavras com os 35 resumos encontrados em que foram
identificadas as temáticas de gênero e /ou sexualidade.
Importante indicar que compreendemos as limitações da metodologia
escolhida, pois com a leitura dos trabalhos é possível perceber que alguns
resumos indicam a presença de questões de gênero e/ou sexualidade, mas no
decorrer do trabalho não há aprofundamento nessas questões. O inverso
também acontece, quando no resumo não há menção às temáticas e no
decorrer do trabalho elas são pontuadas. Sendo assim, optamos por não
trabalhar com generalizações, de modo a não tecer análises e impressões a
partir do todo ou buscando fios condutores que interligam todos os trabalhos
selecionados, mas sim analisar a partir de exemplos e tópicos que nos
chamaram atenção durante o processo de pesquisa, o que está de acordo com
a proposta dos Estudos Culturais.
Considerações finais
Referências
Notas
Segundo Helene Cixous (2018) não basta ser assinado por mulher para
ser uma escrita feminina. Um texto feminino, escrito por mulher, não tem
um fim, muitas vezes não tem ponta, inicia por lados opostos e não se
antecipa. Para a autora, a mulher sente, antes de querer e fazer a escrita.
Produzir esse texto num conjunto de quatro mulheres de diferentes
territórios nacionais, com identidades que estão em processo de
desidentificação é um risco e um atrevimento, pois a busca da escrita
feminina está em enfrentar as matrizes de poder em busca de questionar o
patriarcado2. ancorado no falocentrismo3. que fabrica e reforça o machismo
e a heteronormatização,4. alimentando o racismo e outras violências.
Ao citar e associar essas matrizes de poder, partimos da ideia de
Regulação defendida por Judith Butler (2010, 2016, 2017), compreendemos
que o sistema de poder do patriarcado é um tipo particular de regulação que
ao se associar as linguagens machistas, produz o falocentrismo e elege
eclipsar o feminino e tomar o seu lugar, constituindo mulheres como
irrepresentáveis; colocando em prática um projeto político e econômico que
desemboca na desigualdade de gênero.
Assim, versar em torno dos Estudos Culturais e no campo Decolonial,
com uma escrita feminina não performatizada, é escrever como mulher e
por mulheres sem performar o chamado “feminino”, com a licença das
ancestrais, da natureza, com a orientação do sentir e das significações dos
conhecimentos produzidos por mulheres, pelos saberes e experiências.
Logo, a categoria interseccional também nos fortalece como uma
ferramenta analítica, que lança luz para tratarmos e discutirmos as letras das
músicas.
Maria Baptista (2009) questiona que se houver algum ‘método’ nos
Estudos Culturais ele está em contestar, ou seja, questionar as categorias
interseccionais.
Com a ferramenta da bricolagem (Paraiso 2014), optamos por criar uma
ficha que nos orientou durante a escuta das músicas, indicando: a) o nome
da música; b) o nome da intérprete; c) contexto das músicas e lazer; e d) os
atravessamentos interseccionais.
Para nortear a ficha, escolhemos as palavras chaves: lazer, diversão,
festa, ócio, descanso, desenvolvimento, pausa, tempo, atividades
obrigatórias e não obrigatórias, gênero, classe, raça, território... termos que
se associam ao lazer e as mulheres, e que iluminaram nosso olhar.
A construção do texto foi correndo paralelamente ao exercício de ouvir
as músicas, ler as letras das canções e preencher as fichas, bem como, com
diálogos entre as autoras e os cruzamentos interseccionais. Também
ouvimos as músicas e assistimos a Live5. das cantoras e produtoras do
álbum.
As mulheres no álbum
Na música de Abertura, cantada por Ana e Zélia notamos o início de
uma denúncia. As compositoras anunciam que está na hora da mulher dizer
“chega”. E na sequência temos Tom Grito (artista, slammer e poeta que se
identifica como Trans não Binárie) e Gênesis (escritora, poeta, slammer e
contadora de histórias), ambas integrantes do coletivo Slam das Minas do
Rio de Janeiro, recitando “Princípio da Interseccionalidade”.
Nessa declamação, as slammers anunciam: “Mulher é tristeza de filho
teimoso, partido ou tirado por conta da cor. Mulher é certeza de quem tá na
luta. Todas as santas, todas as putas. As minas, as monas, as rachas, as
trans. As pretas, indígenas, as brancas de paz. Mulher é quem faz, é quem
move o mundo. É quem me acolhe, é quem anda comigo. É voz na minha
luta. É revolução”. As autoras de forma poética apresentam as mulheres
como símbolo de poder. Este poder da mulher é representado nesta música,
por múltiplas formas, desde a capacidade da geração de um ser, até a
disposição que evidencia na luta pela sua sobrevivência e as de quem gerou.
Percebemos que o álbum representa a diversidade de mulheres em todas
as suas composições. Todas as mulheres oprimidas fazem parte das
músicas. Zélia Duncan e Ana Costa, enfatizam e constatam o poder de
grandeza da mulher. “Toda mulher é potência. Possibilidade de vida e
transformação”.
Um destaque que caracteriza a descrição da mulher no álbum é a relação
com a natureza. Na música de abertura, por exemplo, a mulher se iguala a
ventania, força dos mares, cheiro de flor, água doce. E em mais oito
canções6. a mulher é representada pelos elementos da natureza, como, lua
do sertão, filha do luar, fruto de uma nascente, trovão, ervas e castanhas. E
em comum nas letras está a identificação das mulheres como flor, água doce
e marés.
A relação da mulher com natureza nas canções das autoras tem um
cunho histórico, é antiga, surge em contraponto ao movimento ecologista
moderno7. quando determinavam a reprodução feminina como responsável
pela ruína da terra.8. No entanto, essa relação advém de um sentimento da
mulher encontrar-se ligada com os ritmos da natureza, dessa forma
entendiam a interconexão entre esta e os seres humanos. Por isso, a
prevenção contra o aniquilamento ambiental ter seu ponto forte através
dessa conexão. Não estamos afirmando aqui, que as mulheres são
protetoras, guardiãs das florestas9. e muito menos tendo uma visão
sentimental, romântica, mas sim mostrar essa interconexão existente entre
uma e a outra. A Organização das Nações Unidas (ONU 2018) aponta10.
em um estudo realizado em 2017, que as mulheres são as mais vulneráveis
em desastres naturais. Segundo esse mesmo estudo, nas catástrofes as
mulheres representam 80% dos refugiados.
Para reforçar ainda mais esse vínculo entre mulheres e natureza, as
músicas utilizam vários elementos naturais (sol e a lua) como simbologia
dessa potência, basta para isso, que as mulheres se reconheçam. “E quando
o sol se apagar. Se um dia a voz se perder. Mesmo se a fé se abalar. E a
terra toda tremer. Alguma força maior vai te dizer. Que todas as dores do
mundo. Não cabem só dentro de você” (Lida do Amor, Ana Costa – Zélia
Duncan – Canta: Leila Pinheiro). De acordo com a cultura indígena:
A mulher é uma fonte de energias, é intuição, é a mulher selvagem não no sentido primitivo
da palavra, mas selvagem como desprovida de vícios de uma sociedade dominante, uma
mulher sutil, uma mulher primeira, um espírito em harmonia, uma mulher intuitiva em
evolução para com sua sociedade e para com o bem-estar do planeta Terra. Essa mulher não
está condicionada psicológica e historicamente a transmitir o espírito de competição e
dominação segundo os moldes da sociedade contemporânea. O poder dela é outro. Seu
poder é o conhecimento passado através dos séculos e que está reprimido pela história. A
mulher intuitivamente protege os seios e o ventre contra o seu dominador e busca forças nos
antepassados e nos espíritos da natureza para sobrevivência da família. (Potiguara 2018, p.
46)
Quer dizer, somos feministas, mas feministas comunitárias porque a nossa luta não teve
início na Revolução Francesa. Lutamos contra um patriarcado colonizador desde quando os
espanhóis e portugueses invadiram o nosso território. Não estamos fazendo competição com
as feministas, estamos colocando nossa proposta como mulheres indígenas que lutam contra
o machismo dentro do universo indígena, mas também desde as invasões territoriais.
Além disso, embora a compreensão das ligações entre o racismo e a violência doméstica
seja um componente importante de qualquer estratégia de intervenção eficaz, também é
nítido que as mulheres não-brancas não precisam esperar o triunfo final sobre o racismo
antes de poderem viver vidas livres de violência. (Crenshaw 1993, p. 17)
Breves considerações
Referências
Notas
Fernanda de Castro
Maria Manuel Baptista
Nota Introdutória
Minha filha, Deus não quer que a semente se perca, compreendes? É um pecado...o
ato sexual é um ato físico que se torna nobre somente porque pode fazer nascer uma
nova vida
Confessor, Igreja de San Lorenzo, Nápoles
(Valentini e Meglio 1974, pp. 161-162)
[N]ão há dúvida que cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro a partir do seu próprio
fluxo, a partir da energia que dela flui: o olho interpreta tudo em termos de ver – o falar, o
ouvir, o cagar, o foder... Mas há sempre uma conexão que se estabelece com outra máquina,
numa transversal onde a primeira corta o fluxo da outra ou «vê» o seu fluxo cortado. (2004,
p. 11)
toda uma técnica destinada a vigiar, analisar e diagnosticar o pensamento, as suas origens,
as suas qualidades, os seus perigos, os seus poderes de sedução, e todas as forças obscuras
que podem esconder-se sob o aspeto que ela apresenta. E se o objetivo é de facto finalmente
expulsar tudo o que é impuro ou indutor de impureza, não pode ser alcançado senão por
meio de uma vigilância que nunca desarma, uma suspeita contra si mesmo da qual cada um
deve ser portador em toda a parte e a cada instante. É necessário que a questão se mantenha
sempre posta de maneira a detetar tudo o que se pode esconder de “fornicação” secreta nos
recônditos mais profundos da alma. (2019, pp. 263-264)
Sim, Continue, continue (...) Mas o que faz exatamente minha filha? (...) Quando se sente
particularmente «quente», minha filha? À noite, na cama? Na Primavera? Depois de leituras
ousadas ou filmes imorais? (...) Acaricia-se com as mãos, ou emprega outros meios... outros
meios? (...) Fê-lo alguma vez com uma amiga?... Quero dizer, tem relações homossexuais?
(...) quando se desce tão baixo, é uma calamidade. E com animais, minha filha, fez coisas
vergonhosas com animais? (...) E quando se acaricia, em que pensa? (...) pensa... os seus
dedos, nesses momentos, são... representam o membro do homem, que se agita entre as suas
pernas.
Confessor, Igreja Santa Maria delle Grazie, Nápoles. (Valentini e Meglio 1974, pp. 119-
121)
o padre operava o primeiro sacrifício, denominado castração (...) Depois, voltado para o sul,
o padre relacionou o desejo ao prazer. Porque existem padres hedonistas, inclusive
orgásticos. O desejo aliviar-se-á no prazer, e não somente o prazer obtido para calar um
momento o desejo, mas obtê-lo já é uma maneira de interrompê-lo, de descarregá-lo no
próprio instante e de descarregar-se dele. (1996, p. 191)
A mulher que é continente contra a vontade do seu marido não só se vê privada das
recompensas da continência, como é responsável pela conduta adúltera do seu marido e terá
a prestar por esta mais contas do que ele. Porquê? Porque foi ela que o impeliu para o
abismo do deboche ao privá-lo da união legítima. (Crisóstomo 1966, p. 1)
(...) o casamento, esse, é uma obrigação para todos os que não podem alcançar a perfeição
do estado virginal. O casamento é em si mesmo uma lei. Mas cria também obrigações. E
obrigações que se referem ao que é precisamente a razão de ser do casamento: a saber,
“limitar a uma só pessoa” o seu desejo, obriga-se com efeito a essa unicidade da relação;
mas obriga-se também perante o cônjuge a permitir-lhe satisfazer com uma pessoa e uma só
[até ao fim da vida de um deles] o seu próprio desejo. (Foucault 2019, p. 292)
Vós, noiva, deveis ter presente que o homem, por natureza, está destinado a ser o chefe da
família. Para isso, Deus dotou-o de qualidades diversas das vossas. Se ele é menos intuitivo
que vós, é mais forte e prático. Os seus passos seguem a razão.(Schmitt 1949, pp. 44-45)
E ainda, “(...) o sexo que Deus vos deu está em função da vida e do
amor” (Schmitt 1949, p. 95).
Para os sacerdotes, a mulher, o Outro, não se pode recusar ao homem,
deve ser passiva e deixar-se dominar por quem detém a chefia e a
autoridade do lar, o filho de Deus: “Não pode recusar ao seu esposo a sua
casta ternura (...) não pode negligenciar, não pode estar ausente (...) é
também o seu dever (...) [que] deixe o seu marido fazer se ele achar bom
fazê-lo” (Valentini e Meglio 1974, p. 190). “Ela é o Outro”, referiu Simone
Beauvoir na sua magnum opus intitulada O Segundo Sexo. No entanto, de
acordo com Stuart Hall (1996, 1997), existem Outros para além do Outro
que se pode revelar redutor e inclusive eliminar, ocultar ou camuflar outros
níveis hierárquicos de opressão. De facto, Elas são os Outros, vários no
cerne de uma hierarquia composta por Outros (Fig. 1). Outras cujo corpo é
solteiro e de propriedade privada ↔ pública e outros prostituídos, cuja
propriedade é pública, corpos públicos moldados a partir do barro ou
retirados de uma costela masculina para satisfazer os desejos e necessidades
mais prementes do corpo dos filhos de Deus. São corpos de utilidade
público-privada.
Todos os perfis de mulheres apresentados ao longo das confissões: a
solteira, a casada, a divorciada e a prostituta congregam o mesmo tipo de
violência concreta e simbólica, em diferentes graus de opressão.
Atravessam-nas a desumanização, a opressão e a precaridade:
Elaboração própria.
O trabalho doméstico foi transformado num atributo natural em vez de ser reconhecido
como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O capital tinha que nos
convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz
plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. (2019, pp. 42-43)
Se há alguma abstração com efeitos tão concretos quanto nefastos esta é
a conceção do ‘amor romântico’. É com ele que, segundo Federici (2019),
naturalizamos as funções determinadas para o corpo da mulher. É
necessário que se refira que há, inclusive, alguma satisfação, paixão e
idealismo na execução destas funções (maternais ↔ domésticas) que não
são consideradas trabalho com valor. A teoria católica e os diálogos entre os
sacerdotes e os jornalistas expõem uma espécie de chantagem que se
articula à conceção de amor romântico: se não for uma boa esposa
(exploração do corpo) e dona de casa (exploração da força de trabalho) é
porque não ama o seu marido e a sua família, por exemplo. Portanto, o
trabalho doméstico e reprodutivo é, segundo a teoria católica e os
sacerdotes em O Sexo no Confessionário, uma forma de amor, e o amor
não se paga.
O amor romântico é um mecanismo fulcral para que as opressões e
precariedades sobre os corpos das mulheres sejam eficazes e a instituição da
família tradicional e canónica se conserve, sempre ao serviço dos interesses
da Igreja católica e do Estado, numa articulação insidiosa e sedutora, pois,
segundo Frei Carlos Schmitt, “o sonho de toda a namorada é ver-se um dia
de aliança no dedo” (1949, p. 27). O amor romântico é um vínculo precário,
um regime de verdade e um dispositivo patriarcal, amplificado pelo
matrimónio heteronormativo, que promove as hierarquias sexuais, o
sacrifício e a privatização ↔ nacionalização dos corpos femininos.
Os corpos das mulheres foram compulsivamente confinados ao lar e a
um regime de função e utilidade público-privada. Segundo Alicia Puleo, as
mulheres encontram-se numa violência muito particular pela associação à
Natureza, ao inferior e sub-humano (2021). É na defesa do natural/natureza
e do biológico-reprodutor que reside o argumento da teoria católica, que
sempre estimulou a idealização da figura feminina, do estereótipo da
mulher-mãe e das virtudes do cuidado. O tratamento do corpo da mulher é
engendrado a partir de uma perspetiva androcêntrica de opressão com
múltiplas implicações na criação dos estereótipos que representam a
mulher.
A lógica da opressão e da violência androcêntrica e falocêntrica é
construída a partir de um quadro de precaridade e vulnerabilidade simbólica
e concreta. Esta vulnerabilidade de que falamos não concerne ao conceito
de ‘vulnerabilidade feminina’ construída pelos arquétipos literários,
científicos e religiosos, mas ao conceito de vulnerabilidade construído,
crítica e politicamente, por Judith Butler. Falar da desumanização do Outro
subentende a ideia de retirar a um determinado sujeito a sua humanidade.
No fundo, quem é que conta como humano e quem é que não entra nesta
categoria? Quem é que o determina e define, perguntamos uma vez mais.
Segundo a ideia butleriana, o processo de desrealização está ligado à
desumanização e, por consequência, à precariedade e violência.
Desumanizar alguém pressupõe, sempre, violentá-lo e precarizá-lo.
Santificar, virginizar, coisificar, instrumentalizar e objetificar o corpo da
mulher é submetê-lo à precariedade e violência: é desumanizá-lo. Neste
processo, há uma dupla vulnerabilidade: a naturalização e internalização
dos processos de violência quer pelos corpos opressores, quer pelos corpos
oprimidos. É na intersecção e na articulação de várias violências que se
(re)produzem sistemas de dominação, exploração e opressão que estrutura e
fortificam o sistema capitalista tipicamente neoliberal, patriarcal e
falocêntrico.
Referências
Apesar das poucas e honrosas exceções para entender a situação da mulher negra [...],
poderíamos dizer que a dependência cultural é uma das características do movimento de
mulheres em nosso país. As intelectuais e ativistas tendem a reproduzir a postura do
feminismo europeu e norteamericano ao minimizar, ou até mesmo deixar de reconhecer, a
especificidade da natureza da experiência do patriarcalismo por parte de mulheres negras,
indígenas e de países antes colonizados. (Gonzalez 2008, p. 36)
As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico
sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não têm dado conta da
diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade
feminina das mulheres negras. Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que
justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que
mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de
mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres
que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras,
quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram
que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar.
O poder público não tem feito nada. Aliás, tem sim: fomentado a desigualdade e cavado
com as próprias mãos o abismo que alimenta a miséria de uns e o enriquecimento de outros.
Desde o golpe de 2016, o sucateamento dos aparelhos de estímulo à cultura, a perseguição a
uma educação libertária e emancipadora, as reformas Trabalhista e Tributária e, em breve, a
Administrativa, a desaceleração das políticas afirmativas para população negra e
LGBTQIA+ e o reforço dos discursos meritocráticos tem dado o tom da elitização e
militarização do nosso país. (Moraes 2021, n.p.)
É nos desfiles das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali,
ela [mulher negra] perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto, adorada,
desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para
vê-la [...] E ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das revistas nacionais
e internacionais, vista e admirada pelo mundo inteiro […] o outro lado do endeusamento
carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na
empregada doméstica. (p. 228)
não é por acaso que, no Aurélio, a outra função da mucama está entre parênteses. Deve ser
ocultada, recalcada, tirada de cena. Mas isso não significa que não esteja aí, com sua
malemolência perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presença se torna
manifesta é justamente o da exaltação mítica da mulata nesse entre parênteses que é o
carnaval. (p. 220)
Estes dias lembrei que na adolescência meu sonho era ser Globeleza, pois, certamente, foi a
primeira vez que vi uma mulher negra ser tratada na Tv como “bonita” [...] É doloroso
pensar e constatar que a mulata – categoria historicamente construída à custa da violência
sexual de homens brancos contra mulheres negras – mantenha-se como um sonho de
consumo “nosso” por sucessivas gerações. (Xavier 2016, n.p.)
Por outro lado, dizer que o Brasil só funciona depois do carnaval revela
o cinismo que nos rodeia. Conforme ressalta Júlia de Miranda (2020),
alguns festejos brasileiros bebem diretamente nos símbolos afro, como o
carnaval, o samba, o maracatu, o frevo, a festa de 31 de dezembro na praia,
entre outros, e nessas épocas explodem a violência do preconceito racial
que nega a todo custo o fato da cultura brasileira ser negra.
Iara Félix Viana (2013, p. 181) ao estudar mulheres negras, lazer e
bailes funk ressalta a organização das mulheres nessas práticas e aponta que
E eu preciso falar que os meus primeiros leitores foram pessoas do movimento social negro.
Cada leitor e cada leitora levava pra sala de aula, pra academia. Então hoje, se eu chego
nesse espaço da Ocupação [Itaú], é um espaço que foi construído a partir da leitura dos
meus pares. Eu cheguei onde cheguei hoje por conta desse nosso trabalho de formiguinha
que a gente sabe fazer muito bem. Aquela imagem de escrava Anastácia (aponta pra ela), eu
tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala
com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo
nosso, porque a nossa fala força a máscara. Porque todo nosso processo pra eu chegar aqui,
foi preciso colocar o bloco na rua e esse bloco a gente não põe sozinha. (Evaristo 2017,
n.p.).
Considerações finais
Referências
Notas
1 Falas da autora extraída de materiais digitais disponíveis na web e da sua obra “Por um feminismo
Afro-latino-Americano” (2020).
2 A vadiagem passou a ser prevista como contravenção no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941.
Vadiagem é «entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem
ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência
mediante ocupação ilícita».
DO NAVIO NEGREIRO PRO VOO:1.
INTERSECÇÕES ENTRE GÊNERO E RAÇA NA
VIVÊNCIA DE MULHERES NEGRAS TRIPULANTES NO
BRASIL ↵
Racismo e turismo
A distinção entre trabalho remunerado e não remunerado é colocada, assim, no cerne das
formas de exploração características do sistema patriarcal no mundo capitalista. O trabalho
que as mulheres fornecem gratuitamente, como aquele que está envolvido na criação dos
filhos e no cotidiano das atividades domésticas, libera os homens para que se engajem no
trabalho remunerado. São elas apenas que fornecem esse tipo de trabalho gratuitamente, e
sua gratuidade se define numa relação, o casamento. É nele que o trabalho gratuito das
mulheres pode ser caracterizado como não produtivo. Os produtos que não têm valor
quando decorrem do trabalho da mulher em casa passam, no entanto, a ter valor econômico
fora da casa, quando atendem às necessidades de outras pessoas que não o marido (Delphy
2013a, p. 123). Vale observar que isso inclui, para Delphy, a produção dos alimentos, as
roupas lavadas, mas também o cuidado com as crianças e as formas de apoio moral e
trabalho sexual e reprodutivo que têm sido parte do casamento. Daí a afirmação de que “se
um homem se casa com sua empregada doméstica ou com uma prostituta, o mesmo trabalho
e a mesma mulher repentinamente se tornam não remunerados e ‘improdutivos’” (Delphy e
Leonard, 2004, p. 84). (Biroli 2016, p. 726)
Eu vejo bastante, por parte dos passageiros também, embora a figura da comissária
de voo já seja uma figura hiper sexualizada por si só, independentemente da etnia
(…) é um fetichezinho, uma fantasiazinha ridícula.
Entre as mulheres ouvidas para a pesquisa, foram relatadas inúmeras
situações de assédio verbal por meio de comentários – o tipo mais frequente
de assédio no turismo (Cho 2002).
Gomes (2009), em artigo intitulado “A construção do Brasil como
paraíso das mulatas”, aborda como os mecanismos históricos e de poder
(colonial, patriarcal e de biopoder) utilizam as categorias de gênero e raça
como dispositivos de saber-poder. Apresentando a realidade de que a
representação erotizada da mulher brasileira tem origens coloniais,
estendendo-se às campanhas de marketing turístico promovidas pela
Embratur de 1970-90, a autora constata que a sexualização atravessada por
gênero é racializada.
Grada Kilomba (2019) analisa como o “sujeito negro” é inspecionado
como um “objeto” de fetiche, um “objeto” de obsessão e desejo, a
romantização como uma forma comum da narrativa colonial, que
transforma as relações de poder e abuso sexual, muitas vezes praticadas
contra a mulher negra, em gloriosas conquistas sexuais, que resultam num
novo corpo exótico, e ainda mais desejável. Historicamente, mulheres
negras têm tido essa função de serem corpos sexualizados e reprodutores de
trabalhadoras/es (Collins 2000; Hooks 1981, 1992).
A respeito deste tema, Mae Jemison, 35 anos, comissária de bordo,
afirma:
Eu vejo também por parte dos colegas, né, não de todos (…) mas sempre tem, né?
Um ou outro que acaba: “Ah, mulata! Ah, eu soube que tu era do carnaval! Que era de
comissão de frente…!”, “Ah, que linda!”, “Ah, que gata!”, “Ah, eu imagino!”… Essas
coisas sempre têm, né?
Tem assédio por parte dos proprietários, mas tem muito mais assédio por parte dos
pilotos. Por exemplo, por ser extremamente caro para a gente conseguir a carteira de
aeronaves maiores, os pilotos têm que ajudar, né? A gente não consegue pagar. A
hora de instrução de um helicóptero está mil reais, tem aeronaves que a hora é dez
mil reais. Aí não dá para pagar, né, a instrução. Então a gente sempre precisa de um
amigo pra ajudar a tirar carteira dessa aeronave. E sempre tem historinha, sabe?
Tipo, querendo troca de favores, sempre tem, infelizmente. São poucos que ajudam
sem querer nada em troca. Tem muito assédio por parte de pilotos.
Não pode chamar (atenção)… quer dizer, não é que não pode, mas não é o ideal
chamar atenção para sua beleza, né? Vamos colocar entre aspas de novo. É muito
mais difícil conseguir emprego se você for… se você chamar atenção pela beleza,
porque aí a gente entra naquele quesito lá de “a mulher do patrão não vai gostar, vai
ficar com ciúmes”. E a gente fica muito próximo, né, do patrão? É de uma pessoa que
tem um alto poder aquisitivo. Nossa! Eu já escutei de um tudo: que não pode ir bonita
voar, que o uniforme tem que ser mais folgadinho…
Dos homens é um desrespeito muito escancarado mesmo de... ah... enfim, tratar a
gente como um corpo quente, como... e tem muito assédio mesmo, né? Hoje em dia,
eu meio que já dou nome às coisas, então eles se assustam um pouco… Quando os
homens mesmo, os meninos, os pilotos estão falando alguma coisa assim, tipo, “ah!
Nossa! sei lá… posso te falar uma coisa? Você tem o corpo tal, tal, tal”, eu falo: “Meu,
eu não te dei liberdade para falar assim. Sabia que isso é assédio? E falar o nome
mesmo: é assédio, cuidado, seu nome é institucional, você tá nessa empresa aqui,
você não está na sua casa, não está num bar”. Então eu costumo falar a palavra
assédio mesmo, importunação, e isso assusta um pouco. Daí eles dão uma...
entendeu.
Quantas vezes eu já passei por situações assim, gente, do cara meter a mão na
minha bunda. Teve uma vez que eu fui para cima do passageiro, e aí o chefe do voo,
que era um homem, ao invés de estar do meu lado, ele falou assim: “ele tá com um
pin do [sigla de um partido político]”. Eu falei assim: “$#%&!, não estou nem aí! Ele
passou a mão na minha bunda! A bunda é minha! Eu não estou nem aí de que partido
esse cara é! Eu quero que ele desça com a Polícia Federal!” O chefe do voo “arregou”
e o comandante também. Não quiseram chamar a polícia para o político. Aí eu falei
assim: “Por isso que esses babacas continuam fazendo sempre as mesmas coisas,
porque eles não têm punição e vocês não estão do lado das mulheres que estão aqui
voando com vocês”. (Brenda Robinson, 44 anos, ex-comissária de bordo)
Bessie Coleman, 33 anos, comissária de bordo/estudante de aviação,
reforça a questão:
Tem uma menina que inclusive foi demitida por causa disso, né? O cliente passou a
mão na bunda dela, ela denunciou, não foi feito nada. E aí quando denunciou para a
ética, a ética pediu foto do uniforme dela, para ver se o uniforme dela estava muito
justo (para poder, para o cara ter se sentindo à vontade para assediar). Ela falou: “Eu
briguei, eu briguei. E aí o que eles fizeram? Me demitiram”.
Percebemos, assim, como as mulheres analisadas representam a parcela
da população que vive de forma precária, segundo a ideia de precariedade
defendida por Judith Butler (2009). O silenciamento das mulheres negras
tripulantes com relação aos casos de assédio reflete a alocação diferencial
de reconhecimento, e aqueles que não aparecem e não podem aparecer
como “sujeitos” dentro do discurso hegemônico. A precariedade, segundo
Butler, é uma rubrica que reúne mulheres, queers, transgêneros, pobres e
apátridas.
“Não escutar”, segundo Kilomba (2019), é uma estratégia que protege o
“sujeito branco” de reconhecer o mundo subjetivo das pessoas “negras”.
Historicamente, isso tem sido usado como marca da opressão, significando
a negação da subjetividade de pessoas “negras”, bem como seus relatos
pessoais de racismo.
Considerações finais
Referências
Notas
1 A inspiração para o título deste trabalho advém do artigo “Do navio negreiro pro voo”, de autoria
de Laiara Borges (2020), disponível no Portal Geledés. Link: https://www.geledes.org.br/do-
navio-negreiro-pro-voo/
2 No artigo “Black Travel Movement: Systemic racism informing tourism”, de Stefanie Benjamin e
Alana K. Dillette (2021), as autoras utilizam o termo “White-washed” para se referirem à
paisagem/cenário turístico predominante.
3 Para manter a confidencialidade das entrevistas utilizamos pseudônimos escolhidos pelas
entrevistadas.
FÉRIAS NUM “RESORT FLUTUANTE” E TRABALHO
NUMA “CASA DE LATA”: CONTRADIÇÕES A BORDO DE
CRUZEIROS MARÍTIMOS ↵
A “Casa de Lata”
Metodologia
Lembro da primeira vez que vi o navio de perto, tinha 14 decks, era gigante (T11).
Quando chegamos ao porto do Rio de Janeiro, vi aquele navio enorme e lindo (T12).
Nos primeiros dias eu falava com Deus e perguntava o que eu estava fazendo ali
(T18).
As rígidas regras da semiosfera marítima são sentidas de imediato pelo
tripulante novato, sem que tenha tempo para se adaptar ou refletir sobre
todas as demandas e sobre o novo ambiente de trabalho, totalmente diverso
daquele conhecido em terra. As acomodações e o ambiente idealizado
perdem o glamour imediatamente, sendo quase impossível não fazer
comparativos entre o “Resort Flutuante” e a “Casa de Lata”:
Ao entrar no navio, mudam para um mundo diferente, com regras e hierarquia a que
não estavam habituados, horários e dureza de trabalho que raramente são vistos em
terra, choque de culturas, protecionismo de grupos, alimentação completamente
diferente e muitos outros fatores que causam um imenso choque a quem embarca
pela primeira vez (T1).
No início foi difícil porque eram muitas regras a seguir dentro do navio... Sem contar
que é um Big Brother, tem câmeras por todo lado (T14).
Um navio tem regras e hierarquia muito definidas, a vida a bordo não é tão
glamourosa como se pinta. Me iludi com a ideia de que uniformes impecáveis e
elegantes eram sinônimo de pessoas confiáveis (T17).
Alguns dos meus novos amigos foram morar no deck zero, mais conhecido como a
“favela” e ficava literalmente “embaixo d´água” (T11).
O cenário por mim idealizado era a piscina de passageiros. E quando me dei conta de
como era a área destinada à tripulação, eu ri, mas foi de nervoso. Temos uma piscina,
uma verdadeira caixa d´água sem ambientação nenhuma de veraneio (T.5).
Navios menores e mais antigos geralmente não possuem piscina para a
tripulação. Alguns possuem uma sala para a prática de exercícios, área que
pode colaborar para algum bem-estar físico. Durante a pandemia da
COVID-19, os tripulantes ficaram presos no mar, as atividades de lazer e
ócio foram paralisadas e muitos ficaram isolados em cabines individuais
devido às infecções (Radic et al. 2020). Com o isolamento, a internet
ganhou uma grande importância na vida de milhares de tripulantes, pois foi
a principal ferramenta para a comunicação, por meio de redes sociais, entre
tripulantes de diferentes navios, familiares e amigos. O relato de um
tripulante, publicado numa rede social, em grupo privado para tripulantes
(CrewLife 2021), mencionou que no período da pandemia da COVID-19 “a
falta de atividade física aumentou o sofrimento psíquico” e que as
“interações sociais protegiam e preservavam” o que chamou de
“‘microssociedade no mar’”, ou seja, o ambiente de trabalho a bordo.
Nota-se a importância do contato humano, das relações sociais, mesmo
quando se trata de um ambiente encerrado como o de um navio.
o bar (crewbar), é pequeno sem cara de bar, sem cor de bar, mas fazem umas festas.
Por conhecer muito bem a vida noturna, sempre achei aquele divertimento da
tripulação meio fingido, o local não era agradável, mas é lá onde a tripulação
extravasa, fuma, bebe, dança, flerta, se conhece, reclama do dia que teve... (T.5).
Além dos espaços exclusivos, aqueles que estão nas posições de staff e
officers a bordo tem permissão para frequentar as áreas de hóspedes. Um
dos tripulantes chama esta divisão de “apartheid na Marinha”:
A empresa determina restaurantes diversos para cada categoria. Sendo assim, acho
que já deu para intuir que a comida que eu como é diferente da do rapaz da
lavanderia, que é diferente da comida do oficial. A carga horária é surreal, acredito
que exista uma seleção natural: a bordo estão os mais fortes, trabalhadores que
dormem pouco, se alimentam mal.... é notória a coloração da pele não saudável, são
verdadeiros guerreiros. A parte positiva é que quando retornam à terra natal, a seus
países subdesenvolvidos, compram uma casa com o dinheiro de um contrato (T.5).
os homens “machos”, segundo ele, são mais difíceis para trabalhar, pois sabem tudo,
conhecem tudo e não aceitam muito bem as ordens. Já as mulheres se adaptam
melhor, pois para trabalhar a bordo é necessário respeitar a hierarquia e ter disciplina.
Precisa obedecer ao chefe e às ordens. Gays também trabalham bem a bordo –
homens ou mulheres. As mulheres, quando vêm em casal, trabalham mais felizes.
Não pense você que quando uma mulher decide embarcar é semelhante a quando
um homem embarca, pois não é mesmo! ... é nessa hora que você sente o sabor do
patriarcado, no comentário do namorado “o que meus amigos dirão?” Posso afirmar
com certeza que o machismo estrutural fere, muitas mulheres navegantes terão
relatos muito mais bombásticos e abusivos que os meus! Pressionada por não ter um
comportamento prescrito para o sexo feminino, meu namorado exigia a minha volta,
fingia estar doente... no final, eu entendia que minha conduta era uma ameaça, minha
viagem manchava sua reputação... Joguei a aliança no mar e decretei que nunca
mais passaria por situação de abuso. (T.5).
Embarcar é você abrir sua mente e se adaptar a morar numa cabine com até 4
pessoas de diferentes nacionalidades, culturas, idiomas e religiões (T4).
A experiência do navio é intensa: começando com a tripulação formada por pessoas
de nacionalidades diferentes, que acabam criando uma conexão muito forte. Basta um
olhar para entender um ao outro (T13).
No mesmo dia que embarquei entendi que Deus escreve certo por linhas tortas, meus
olhos cruzaram com outros olhos, e depois de algum tempo eu não resisti e fiz o que
sempre fui contra, continuei casada, mas troquei de marido. Dessa vez, brasileiro.
Digo marido porque a bordo tudo é intenso, e quando você começa a namorar já vira
praticamente um casamento (T15).
Conclusão
Referências
Criminalizar a homotransfobia pode não ser a solução para os crimes e muito menos para o
fim da discriminação que, nos parece, está no DNA cultural da nossa sociedade. Mas é uma
ferramenta de conquista da dignidade e da segurança de seres humanos, que por
demonstrarem sua afetividade ou por viverem sua identidade de gênero diferente da suposta
determinação da biológica sofrem agressões e assassinatos todos os dias. (Canabarro 2013,
p. 12)
Considerações finais
Referências
Notas
Metodologia
Casa Florescer
O lazer, assim como toda atividade humana, é uma prática que reproduz
as diferenças sociais historicamente construídas, isso significa que o acesso
às atividades de lazer, cultura, esporte e turismo é limitado pelo preconceito
e discriminação. Segundo o estudo “O lazer do brasileiro, sob o recorte da
categoria sexo, estado civil e escolaridade” de Soutto Mayor e Isayama
(2017), há um número muito pequeno de pessoas que se interessam em
atividades relacionadas às práticas artísticas, manuais, intelectuais e ao ócio
como uma forma de lazer. De acordo com os autores, esse resultado pode
ser reflexo de uma educação orientada para o pragmatismo profissional,
conectado com as imposições do mercado, além da influência dos
princípios da produtividade e, consequentemente, da ideia de meritocracia.
Quanto ao sexo das pessoas entrevistas no estudo, há diferenças
significativas quanto a escolha das práticas de lazer: enquanto para os
homens as atividades físico-esportivas são escolhas óbvias, as mulheres
optam pelo ócio. Homens optam por um lazer fora do ambiente doméstico e
as escolhas mais comuns entre as mulheres é “ficar deitada” e “não fazer
nada”.
A pesquisa “O lazer do brasileiro: discussão dos dados coletados em
escolaridade, renda, classes sociais e cor/raça” (Pedrão e Uvinha 2017),
assegura que a classe E nos seus momentos de lazer opta majoritariamente
por atividades que têm relação com o ócio, pois as atividades de lazer que
são escolhidas e praticadas variam de acordo com a classe social, já que as
oportunidades e as possibilidades dessas práticas são distintas e,
consequentemente, a sua forma de apropriação sobre o tempo livre é
igualmente desigual. Observou-se também que uma maior escolaridade
representa maiores possibilidades de atividades de lazer. Isso é resultado da
relação da educação com a capacidade de identificar e vivenciar as opções
de lazer nos espaços, além de oportunizar o reconhecimento e a importância
dessas atividades, como pode ser observado na fala de uma das
entrevistadas:
[...] eu morava na periferia, eu não sabia que existia Pinacoteca, eu não sabia que
existia Teatro Municipal, eu não sabia que existia, é, sei lá, o cinema na Avenida
Paulista, umas coisas assim que eu não tinha noção de nada... Itaú Cultural, eu não
sabia de nada disso, não tinha noção de nada. Foi um choque de cultura pra mim, e
eu acho que foi da mesma forma pra essas meninas que vieram da rua, de outras
cidades.
[...] de início pode gerar um desconforto de você estar com uma pessoa de uma outra
classe social que fala totalmente diferente de você, que é uma pessoa extremamente
egoísta, que nunca sofreu na vida, porque nunca passou fome na vida, que nunca
precisou chupar um pau ou dar o cu pra comer uma marmitex, mas eu tive que passar
por isso, nem por isso eu vou sair condenando todo mundo ou querendo matar todo
mundo porque eu tive que chupar e dar o cu pra poder sobreviver. Muitas não
passaram por isso, mas eu posso trocar experiência com essas pessoas, você tá me
entendendo? Eu pude me ligar que os cara não é só violento com travesti não, bem.
Os caras não é só violento com travesti, os cara é violento até com mulher, amor.
Mulheres bonitas. E não é só uma violência de meter a porrada, violências
psicológicas assim, absurdas e quando a gente se junta, a gente se une, rico, pobre,
mulher, preto, branco, a gente só tem a ganhar, né bem?
Considerações finais
[...] o maior ponto negativo na Casa Florescer é que as pessoas, elas vêm visitar a
Casa sem conhecimento, então isso fode muito. A psicóloga até tentou fazer um
textinho bonitinho falando “olha, trate as pessoas assim, são todas elas, não pergunte
do nome civil e tal”, mas meio que ficou em off porque entra e sai pessoa, e nem a
psicóloga sabe quando vai entrar e quando vai sair a pessoa. Essa era a coisa mais
foda, sabe? Você chegar e a pessoa falar “ah, que não sei o quê”, e todo santo dia
você tem que falar “olha, não falo com a minha mãe, fui expulsa de casa, eu me
drogo, eu fiz prostituição”. Todo santo dia isso, você falar isso, é meio que chato,
cansativo, é, acho que esse é o ponto mais negativo.
É, na verdade a pessoa trans, quando acessa esses lugares, ela começa a ver tudo
de um novo jeito, começa a entender que ela pode tá ali, que ela é capaz de tá ali. Na
verdade, ela tem que enfrentar o preconceito. Porque sempre vão ter olhares e
chacotinhas só pelo fato dela ser trans e estar ali. [...] Na verdade, você começa a ter
hábitos diferentes, né? Começa a ver que... geralmente as pessoas trans, elas vêm
do hábito da noite, né? Têm hábitos que uma pessoa ‘do dia’ que frequenta esses
lugares, tem um modo de falar, de se comportar, de se vestir, então você começa a
entender que você tá sendo diferente, né?
Referências
Notas
1 Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf.
Acesso em: julho/2021.
2 Disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/. Acesso em:
julho/2021.
3 Disponível em: https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2016/08/IAE-Brasil-Web-3-1.pdf.
Acesso em: julho/2021.
4 Política social constituída por um conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios que
compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e são prestados diretamente ao
cidadão ou por meio de convênios com organizações sem fins lucrativos. Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/rede_socioassistencial/inde
x.php?p=3200. Acesso em: julho/2021.
5 Disponível em:
https://www.stonewall.org.uk/sites/default/files/lgbt_in_britain_home_and_communities.pdf.
Acesso em: julho/2021.
6 Disponível em: https://www.gaytimes.co.uk/life/queer-men-of-colour-are-choosing-to-isolate-
themselves-from-mainstream-gay-culture-new-study-finds/. Acesso em: julho/2021.
7 Linguagem praticada por membros do candomblé, religião de matriz africana que possui em sua
base sacerdotal muitos homossexuais e conhecida aceitação da população trans, resultando em
grande parte da identidade LGBT (Cruz e Tito 2016).
O LAZER COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE
PESSOAS LGBT+ PRIVADAS DE LIBERDADE ↵
Nesse sentido, os direitos humanos (como direitos inerentes à própria condição e dignidade
humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo modelo positivista,
incorporando-os ao sistema de direito positivo como elementos essenciais, visto que apenas
mediante um processo de “fundamentalização” (precisamente pela incorporação às
constituições), os direitos naturais e inalienáveis da pessoa adquirem a hierarquia jurídica e
seu caráter vinculante em relação a todos os poderes constituídos no âmbito de um Estado
Constitucional. (Sarlet 2010, p. 109)
Do ponto de vista formal, direitos fundamentais são aqueles que a ordem constitucional
qualifica expressamente como tais. Já do ponto de vista material, são direitos fundamentais
aqueles direitos que ostentam maior importância, ou seja, os direitos que devem ser
reconhecidos por qualquer Constituição legítima. Em outros termos, a fundamentalidade em
sentido material está ligada à essencialidade do direito para implementação da dignidade
humana. (Pereira 2006, p. 77)
A partir da Constituição de 1988, o lazer passou a ser direito social de todos os cidadãos
brasileiros. A inclusão do lazer nesse documento pode ser considerada um marco em
relação à efetivação desse direito, tendo em vista que até então não havia registro na lei que
explicitasse seu reconhecimento. Esse aspecto também vem sendo assegurado em
praticamente todas as constituições estaduais e leis orgânicas de municípios brasileiros.
(Isayama e Stoppa 2017, p. 3)
Há, sem dúvida, direitos sociais que são antes poderes de agir. É o caso do direito ao lazer.
Mas assim mesmo quando a eles se referem, as constituições tendem a encará-los pelo
prisma do dever do Estado, portanto, como poderes de exigir prestação concreta por parte
deste. (Ferreira Filho 2009, p. 50)
Ao prever o lazer como um direito social, assim como fez também com
a saúde e a educação, o Poder Constituinte emitiu ao legislador ordinário e
ao gestor público a diretriz (1) de não agir contra e (2) de promover ações
em favor. Em outras palavras, as normas infraconstitucionais e atos
administrativos do poder público devem ser produzidas em sentido a não
criar obstáculo aos indivíduos de vivenciar em seu cotidiano experiências
de lazer e – mais do que isso – devem ser direcionadas a dar concretude a
esse direito social, entendido fundamental aos indivíduos, com ações
positivas e emprego de recursos públicos a fim de possibilitar que todas as
pessoas tenham o adequado acesso. Medidas que caminhem em sentido
contrário ao de ampliar as vivências de lazer aos indivíduos afrontam a
Constituição.
O lazer, além de constar no capítulo “Dos Direitos Sociais”, este
inserido no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, aparece, ainda,
em outros dois pontos do texto constitucional. Surge no “Título VIII – Da
ordem social”, em seção dedicada ao Desporto, estabelecendo ao Poder
Público obrigação de fazer consistente em formular estratégias que
incentive a prática de lazer para a promoção social (art. 217, §3º,
CRFB/88).4. Aparece, também, no capítulo dedicado aos direitos “Da
Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, estabelecendo
como dever do estado, da sociedade e da família assegurar aos menores de
idade, com absoluta prioridade, práticas sociais como a de lazer (art. 227,
CRFB/88).5.
Ao prever que o Estado deve incentivar o lazer como forma de
promoção social, reconhece a Constituição que a vivência desse direito é
desigualmente distribuída em sociedade entre as classes sociais. Interfere,
de forma acentuada, fatores econômicos, que determinam não apenas o
tempo disponível, mas o acesso desigual de recursos materiais para
vivenciá-lo. A promoção, leia-se, assistência social, está inserida na
necessidade do Estado em financiar ações como forma a mitigar
desnivelamentos do regime capitalista. Nesse sentido, Calvet (2005)
sintetiza que
O autor da proposta, deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ),11. explica que não há lei federal
regendo o tema, o que causa enorme insegurança jurídica para essa população
vulnerabilizada e estigmatizada. “Queremos dar visibilidade para essa parcela LGBTI+ da
população carcerária, e lhe assegurar garantias que corroborem sua dignidade humana”,
disse Freixo lembrando que o ex-deputado Jean Wyllys já havia apresentado proposta neste
sentido, que acabou arquivada. (Xavier 2010).
Considerações finais
Em uma unidade prisional, o lazer ganha mais importância, sendo um
meio facilitador de interação entre pessoas que dividem o mesmo espaço
físico, precisam conviver e se respeitar, cooperar mutuamente. Na interação,
percebemos e conhecemos o outro e, assim, o lazer favorece o convívio e a
criação de laços de pertencimento, especialmente relevantes à população
carcerária LGBT+, que marcadamente enfrenta os desafios do abandono
familiar.
O problema do abandono afetivo extramuros sofrido por membros da
comunidade LGBT+ antecede a privação de liberdade, esta somente
agravando o isolamento social. Pessoas que não raro são rejeitadas pela
família já na juventude e, muitas indo parar nas ruas, desamparadas,
buscam estratégias cotidianas de sobrevivência e de escapar da violência. O
lazer, certamente, está longe de compensar o abandono afetivo por quem o
sofre. Todas as pessoas deveriam poder contar com a assistência, o cuidado
familiar e, principalmente, deveriam viver a experiência de serem amadas,
respeitadas por seus parentes, sobretudo aqueles mais próximos. A falta
deixa um “buraco” que o lazer não tampa.
Por outro lado, pessoas em geral que sofrem do abandono afetivo,
membros da comunidade LGBT+ em particular, podem encontrar no lazer
(na dança, na música, nas artes como um todo) maneiras de extravasar
sentimentos reprimidos desde a infância, de estabelecer laços de afeto com
terceiros para escapar do isolamento. O lazer nesse sentido pode revelar-se
emancipatório, facilitando enfrentar as pressões vividas no meio social.
Lazer emancipatório que se traduz também subversivo, canal por onde
reverbera a liberdade para o indivíduo ser o que é ou de sonhar a ser.
Por fim, ressaltamos a importância da garantia do lazer de pessoas
LGBT+ privadas de liberdade tendo em vista ser um direito fundamental e
pode se constituir como um espaço de mudanças na ordem social e cultural
criando possibilidades de participação cultural e democratização social.
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Notas
1 As sete Constituições brasileiras são as de 1824 (Brasil Império), 1891 (Brasil República), 1934
(Segunda República), 1937 (Estado Novo), 1946 (Terceira República), 1967 (Regime de
Ditadura Militar) e a de 1988 (Constituição Cidadã).
2 Artigo 60, § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a
forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação
dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais (Brasil 1988).
3 “Também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima
efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional
ter a mais ampla efetividade social” (Lenza 2013, p. 160).
4 Artigo 217, § 3º – O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social (BRASIL,
1988).
5 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
6 “O termo “Pão e Circo” foi criado pelo poeta romano Juvenal, que viveu na Roma Antiga, por volta
do ano 100 d.C. A expressão foi usada para denunciar a política do imperador romano e a falta
de (in)formação política do povo, o qual, sendo ludibriado, se preocupava apenas com a comida
e o lazer” (Bodart 2012).
7 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de
dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a
partir de quatorze anos (Brasil 1988).
8 Art. 22. A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o
retorno à liberdade (Brasil 1984).
9 Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências
com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática
esportiva (BRASIL, 1984).
10 Art. 82, §1º. § 1° A mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a
estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal (Brasil 1984).
11 Posteriormente, o congressista mudou de partido, filiando-se ao Partido Socialista Brasileiro –
PSB.
12 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I –
direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico (Brasil 1988, grifo nosso).
NOTAS SOBRE ÓCIO, DESEJO E ESQUIZOANÁLISE:
UMA LEITURA DELEUZEANA
O presente texto tem como objetivo refletir sobre o ócio e o desejo à luz
da esquizoanálise, propondo, desse modo, um outro ponto de vista sobre
estes conceitos frente ao que já se tem produzido. Um ponto de vista
deleuzeano. Nesse sentido, realizamos uma revisão narrativa com base em
literatura convocada referente à temática em questão.
Seguindo nesta proposta, dividimos este escrito em três partes. Na
primeira apresentamos algumas características respectivas ao conceito
tradicional de ócio, tais como o autotelismo e a liberdade para a sua
realização. E para isso convocamos literaturas de alguns estudiosos sobre a
temática, como Aquino e Martins (2007), Baptista (2016), Cuenca (2016) e
Martins (2013), frisando o seu caráter político.
Quanto à segunda parte de nosso texto, discorremos sobre o desejo e a
esquizoanálise, apresentando alguns de seus conceitos, que, segundo a
nossa interpretação, podem relacionar-se ao ócio. Entre eles estão a
territorialização, a desterritorialização, o devir, o corpo sem órgãos e o
desejo maquínico. Tais conceitos são apreendidos a partir das leituras de
Deleuze e Guattari, especificamente das obras Mil Platôs (2011, 2012a,
2012b), ou de obras de Deleuze, como Diferença e Repetição (2018) e
Conversações (2013). Também recorremos a algumas obras de Nietzsche,
como Assim falou Zaratustra (1986), O Anticristo (2011), O Nascimento
da Tragédia (2007) e Vontade de Potência (2017), visto a influência deste
pensador para o pensamento e a produção deleuzeana.
Por fim, no último momento deste texto dedicamo-nos ao seu objetivo
central, em que desenvolvemos interpretações sobre o ócio, levando em
consideração a noção de desejo, à luz dos conceitos da esquizoanálise aqui
apontados.
Do ócio
devir inumano, devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a
organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um
descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam.
(Deleuze 2013, p. 21)
Considerações finais
Referências
AQUINO, C. A, B. e MARTINS, J. C. O. “Ócio, lazer e tempo livre na
sociedade do consumo e do trabalho.” Revista Mal-Estar e
Subjetividade, vol. 7, nº 2, pp. 479-500, 2007.
BAPTISTA, M. M. “Estudos de ócio e Leisure Studies – o atual debate
filosófico, político e cultural.” Revista Brasileira de Estudos do Lazer,
vol. 3, nº 1, pp. 20-30, 2016.
CUENCA, M. C. “O ócio autotélico.” Revista do Centro de Pesquisa e
Formação - SESC, nº 2, pp. 10-29, 2016.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. São Paulo: Paz & Terra, 2018.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Kafka: por uma Literatura menor. Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs, vol. 02. São Paulo: Editora 34,
2011
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs, vol. 03. São Paulo: Editora 34,
2012a.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs, vol. 04. São Paulo: Editora 34,
2012b.
DELEUZE, G. e PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
MARTINS, J. C. O. “Tempo livre, ócio e lazer: sobre palavras, conceitos e
experiências”, in: MARTINS, J. C. e BAPTISTA, M. M. (orgs.) O ócio
nas culturas contemporâneas: teorias e novas perspectivas em
investigação. Coimbra: Grácio, pp. 11-22, 2013.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para
ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
NIETZSCHE, F. O anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2011.
NIETZSCHE, F. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
Notas
1 Referência a uma forma de apreensão sobre a condição humana, pautada na racionalidade. Tal
perspectiva é apresentada por Nietzsche (2007), para o que convoca o nome do deus Apolo.
2 Referência a uma forma de apreensão sobre a condição humana, pautada na “irracionalidade”, nas
paixões, nos prazeres, no campo do poético e inexplicável; apenas vivido. Tal perspectiva é
apresentada por Nietzsche (2007), para o que convoca o nome do deus Dionísio. Vale ressaltar
que tais apreensões, apolínea e dionisíaca, diferente do que nos é apresentado em nossas culturas
ocidentais, não são contraditórias, mas sim complementares.
SOBRE OS/AS AUTORES/AS
Carla Augusta Nogueira Lima e Santos – Doutora e mestre em Estudos do Lazer pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Docente na Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG), membro do Laboratório de Pesquisa sobre Formação e Atuação
Profissional em Lazer (ORICOLÉ/UFMG) e do grupo CIRANDA da UEMG.
Cathia Alves – Doutora em Estudos do Lazer. Docente do Instituto Federal de São Paulo,
campus Salto. Integrante dos grupos de pesquisa LIMC/IFSP, ORICOLÉ/UFMG e
GECE/NECO/UA.
Khellen Cristina Pires Correia Soares – Pós Doutora em Educação pela Universidade
Federal do Mato Grosso. Doutora em Estudos do lazer pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Goiás/Universidade de
Havana.
Marie Luce Tavares – Doutora e Mestre em Estudos do Lazer pela UFMG, com Estágio de
pós-graduação no Programa Doutoral em Estudos Culturais da Universidade de Aveiro.
Professora EBTT do IFMG – Campus Ouro Branco, líder do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES), membro do Laboratório de
Pesquisa em Formação e Atuação Profissional em Lazer – ORICOLÉ. Pesquisadora
Associada da Associação Brasileira de Pesquisadoras/es Negras/es (ABPN).
Tânia Mara Vieira Sampaio – Docente no Instituto Federal de Goiás, Campus Luziânia.
Atualmente realizando Pós-Doutorado em Estudos Culturais na Universidade de Aveiro
(UA), Portugal. Pós-Doutorado em Estudos do Lazer pela UFMG. Doutora e Mestre em
Ciências da Religião pela UMESP. Atuou nos Programa de Mestrado e Doutorado das
Universidade Católica de Brasília e UNIMEP e, atualmente, no Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer na UFMG. Participa dos Grupos de
Pesquisa Oricolé, do PPGIEL-UFMG; NEPEST e Negr@Luz do IFG; e GECE/NECO-DLC-
UA. Realiza pesquisas em: estudos de gênero, raça, etnia e classe educação-lazer,
educação-cidadania, educação e lazer para pessoas com deficiência.