Pierre Ansart - História e Memória Dos Ressentimentos
Pierre Ansart - História e Memória Dos Ressentimentos
Pierre Ansart - História e Memória Dos Ressentimentos
Pierre Ansart2
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Traduzido do francês por Maria das Graças de Souza. Publicado por primeira vez
como “História e memória dos ressentimentos”, Tradução de Jacy Alves de Seixas.
In: BRESCIANE, Stella; NAXARA, Marcia. Memória e (Res)sentimento. Indagações so-
bre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2004. (3ª reimpressão 2021).
Agradecemos à editora Unicamp, que gentilmente nos autorizou a publicação desse
artigo, originalmente publicado em francês como “Histoire et mémoire des ressenti-
ments”. In ANSART, Pierre (org). Le ressentiment. Bruxelas: Bruylant, 2002. Quando
possível, indicamos as referências bibliográficas traduzidas ao português e publica-
das em edições brasileiras.
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Pierre Ansart (20/02/1922 a 28/10/2016) foi professor emérito da Universidade de
Paris-Diderot, especialista em Proudhon. Ele desenvolveu pesquisas sobre ideologias
e utopias políticas ocidentais (marxismo, proudhonismo, anarquismo) e asiáticas
(confucionismo) e seus significados sócio-históricos, por uma abordagem multidisci-
plinar entre sociologia, história e psicologia política.
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Nietzsche
Em seu ensaio de 1887, A genealogia da moral,3 Nietzsche inaugurou
a problemática que está no ponto de partida de nossa reflexão, ao elaborar
o conceito de ressentimento. Ora, a concepção elaborada neste texto
comporta, como escreveu o próprio Nietzsche, uma parte de polêmica, de
provocação, que torna a definição do ressentimento em parte enigmática.
O conceito de ressentimento é, na perspectiva nietzschiana,
construído no ponto de encontro de três abordagens complementares:
histórica, psicológica e sociopolítica.
Historicamente, o ressentimento seria o longínquo resultado de
um conflito, de uma ação impetrada, no início de nossa era, pela religião
judaico-cristã, contra os aristocratas guerreiros que tinham o privilégio de
3
NIETZSCHE, F. La généalogie de la morale (Zur Genealogie der Moral). Paris: Gallimard
Folio, 1971 [1887], conferir DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962
[Para a primeira obra, sugerimos a tradução: A Genealogia da Moral. Tradução de
Carlos José de Menezes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009]
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4
NIETZSCHE, F. La généalogie de la morale (Zur Genealogie der Moral). Paris: Gallimard
Folio, 1971, pp.52-55.
5
PLATÃO. La République. livros I-VIII. Tradução de Émile Chambry. Paris: Les Belles
Lettres, 1989 [1932], p. 551d. [Sugerimos a tradução: A república. Tradução de Anna
Lia Amaral de Almeida Prado; revisão técnica e introdução de Roberto Bolzani Filho. 2
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.]
6
MAQUIAVEL, N. Le Prince. Ouvres complètes. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la
Pléiade, 1953 (1513), p. 39; [Sugerimos a tradução: O Príncipe. Tradução de Antonio
Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L&PM, 1999.]
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SCHELER, M. L’homme du ressentiment (Vom Umsturz der Werte). Paris: Gallimard,
1958 [1912]. Tradução e revisão do alemão para o francês anônima.
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8
MERTON, R. K. Éléments de théorie et de méthode sociologique. Paris: Librairie Plon,
1965 [1953].
9
Ibidem, p. 188.
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“A atitude da antiga geração a respeito da nova nos apresenta uma situação
inteiramente carregada de ressentimento potencial”, segundo SCHELER, M. L’homme
du ressentiment (Vom Umsturz der Werte). Paris: Gallimard, 1958 [1912], p. 99.
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FREUD, S.; LACAN, J. De quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoïa
et l’homosexualité, Revue française de psychanalyse, v. 5, pp. 391-401, 1932.
12
ANSART, P. La gestion des passions politiques. Lausanne: L’âge d’Homme, 1983; Les
cliniciens des passions politiques. Paris: Éditions du Seuil, 1997.
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13
MARX, K. Le Dix-huit Brumaire de Louis Bonaparte. Paris: Éditions Sociales, 1969 [1852],
p. 46. [Sugerimos a tradução: O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio
Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.]
14
“Entre as emoções e os sentimentos relevantes, deve-se colocar antes de tudo:
o rancor e o desejo de se vingar, a maldade, o ciúme, a inveja e a malícia” diz
SCHELER, M. L’homme du ressentiment (Vom Umsturz der Werte). Paris: Gallimard,
1958 [1912], p. 14.
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Democracia e ressentimento
Após ter assim tentado trazer essas correções à definição do
ressentimento, podemos examinar se essa questão do ressentimento pode
ser aplicada à nossa situação política: o regime democrático favorece ou
desfavorece a formação dos ressentimentos? Será que a democracia seria,
de algum modo, a terapia? E, no seio das diversas formas de democracia,
que fenômenos atuais favoreceriam a formação de “ódios retornados”,
analisados por Nietzsche? Ao formular essas questões, buscamos uma
interrogação muito antiga, renovando-a: Platão examinava que paixões
eram suscitadas pelas diferentes constituições da Grécia. Alexis de
Tocqueville procurava quais eram as “paixões gerais e dominantes” da
aristocracia e as opunha às paixões da democracia.15
Uma resposta nos é imediatamente oferecida pela ideologia
democrática. Segundo os apologistas da democracia, desde o século XVIII
até nossos dias (de Voltaire a Habermas),16 um dos objetivos da democracia
seria substituir as violências pela tolerância, o confronto dos ódios pelo
15
TOCQUEVILLE, A de. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, Folio, 1961 [1835-
1840]. [Sugerimos a tradução: A Democracia na América - Leis e Costumes. De certas
leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos
por seu estado social democrático. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.]
16
HABERMAS, J. Morale et communication; Conscience morale et activité communica-
tionnelle. Paris: Éditions du Cerf, 1986 [1983]. [Sugerimos a tradução: Consciência mo-
ral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989.]
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História e memória dos ressentimentos
A advertência de Freud
Freud, em primeiro lugar, lembra-nos de que seria ilusório esperar,
mesmo que seja no mundo da utopia, a erradicação completa dos
ressentimentos. Sua resposta a esse problema não se situa no seio de
uma investigação histórica, mas no nível mais geral e antropológico da
ênfase dada às pulsões. E Freud não cessa de lembrar que a análise das
pulsões inconscientes nos confronta com a dualidade pulsional do amor
e do ódio. O exame do masoquismo, dos processos de identificação,
dos comportamentos de agressão ou de ciúme não deixa de conduzir à
redescoberta dessa dualidade incessantemente oposta e recomposta.17
Alguns psicanalistas, como Melanie Klein, irão mais longe nesse sentido,
fazendo da experiência infantil primitiva a experiência inevitável do ódio
e da agressividade. Essas indicações servem para nos fazer lembrar que,
17
FREUD, S. Malaise dans la civilization (Das Unbehagen in der Kultur). Paris: Presses
Universitaires de France, 1871 [1930]. [Sugerimos a tradução: O mal-estar na civilização.
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2011.]
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18
KLEIN, M.. RIVIÈRE, J. L’amour et la haine. Paris: Payot, 1937. ENRIQUEZ, Micheline. Aux
carrefours de la haine. Paranoïa, masochisme et apathie. Paris: Desclée de Brouwer,
1984.
19
FREUD, S. Malaise dans la civilization (Das Unbehagen in der Kultur). Paris: Presses
Universitaires de France, 1871 [1930], capítulo VIII.
20
Ibidem, p. 66.
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Castas e ordens
Ora, se comparamos, em linhas gerais, os sistemas sociais,
notamos que, dentre todos os regimes sociopolíticos, como um regime
absolutamente não igualitário, tal como o sistema de castas na Índia,
por causa da cultura que o acompanha, produzia mais obstáculos ao
desenvolvimento dos ressentimentos do que o regime democrático. Max
Scheler faz essa observação,23 e as pesquisas sobre a cultura sobre as
21
FREUD, S. Malaise dans la civilization (Das Unbehagen in der Kultur). Paris: Presses
Universitaires de France, 1871 [1930], capítulo VIII, pp. 67-68.
22
FREUD, S. Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort. In: FREUD, S. Essais de
psychanalyse. Traduction D. S. Jankélévitch. Paris: Payot, 1977 [1916], pp. 231-264.
23
SCHELER, M. L’homme du ressentiment (Vom Umsturz der Werte). Paris: Gallimard,
1958 [1912], p. 37.
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24
DUMONT, L. Homo hierchicus: le systhème des castes et ses implications. Paris:
Gallimard, 1979.
25
TOCQUEVILLE, A de. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, Folio, 1961 [1835-
1840], p. 14.
222
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26
ROSANVALLON, P. La crise de l’État-Providence. Paris: Éditions du Seuil, 1981.
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1- A tentação do esquecimento
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2-A rememoração
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“Pé negro” é uma expressão usada para se referir aos descendentes de europeus
retornados do Norte da África para a França após a independência da Argélia.
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3-As revisões
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MAMER, G. Batailles pour mémoire: les commémorations en France 1944-1982. Paris:
Papyrus, 1983.
29
CHAUMONT, J. M. La concurrence des victimes: génocide, identitá, reconnaissance.
Paris: La Découverte, 1997.
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4-A intensificação
30
ARENDT, H. Eichmann à Jérusalem. Rapport sur la banalité du mal. Paris: Gallimard,
1966.
31
GOLDHAGEN, D. J. Les bourreaux volontaires de Hitler, les alemands ordinaires et l’ho-
locauste. Paris: Éditions du Seuil, 1997.
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Referências bibliográficas
ANSART, P. La gestion des passions politiques. Lausanne: L’âge d’Homme, 1983.
ANSART, P. Les cliniciens des passions politiques. Paris: Éditions du Seuil, 1997.
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