Vozes Do Carandiru
Vozes Do Carandiru
Vozes Do Carandiru
1
HARTMAN, G. (2000), p. 212
2
BOSI, E. (1999), p. 55
3
Idem, p.67
4
ZENI, B. (2002), p.25
A condição de marginalidade é “outro” impedimento para a
lembrança dos fatos. Os Racionais terminam a música com descrença
diante da iniciativa de reviver dores. “Mas quem vai acreditar no meu
depoimento?/ Dia 3 de outubro, diário de um detento.”5
As lembranças compõem um verdadeiro quebra-cabeça da
memória. São peças esparsas que precisam fazer sentido novamente.
Torna-se necessário superar a tristeza, juntar novamente os detalhes e
contar de novo. Neste caso, a memória ganha função social, é como se
toda a dor se revestisse de um significado nobre. É preciso lembrar para
não esquecer e para que não aconteça de novo. E a literatura e a
linguagem funcionam como elementos socializadores da memória. Ainda
nas palavras de Bosi, “como salvar sua lembrança senão escrevendo
sobre ela, fixando assim seus traços cada vez mais fugidios? (...). O
indivíduo é o memorizador das camadas do passado (...), pode reter
objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um
tesouro comum”.6
Ramos e Varella foram os “provocadores” da memória. Afinal, era
preciso ativá-la novamente e as nossas lembranças vêm mais facilmente
à tona quando outros a provocam. Neste caso, os autores fizeram
renascer aquele 2 de Outubro de 1992 com perguntas, curiosidades e
miudezas esquecidas até pelos sobreviventes. E são os pequenos
detalhes que enriquecem a narrativa e fazem, como diz Hartman, a
literatura “atuar sobre o passado resgatando o individual, com rosto e
nome próprios, do lugar do terror no qual aquele rosto e aquele nome
foram levados embora”.
Zeni optou por não “interferir” na lembrança de André du Rapper
e o deixou sozinho para gravar os fatos. Basta ler a narrativa para se ter
noção exata desta postura. O relato é fragmentado, como se o rapper
fizesse um intenso esforço para retratar os fatos exatamente na ordem
como eles aconteceram, mas não conseguisse justamente por causa dos
“atalhos” que a memória cria com o tempo. É uma enxurrada de
pensamentos, com descrições nuas da violência e opiniões do
sobrevivente sobre o código próprio de ética que reina na cadeia:
13
FOUCAULT, M. (1985), p. 57
14
VARELLA D. (2002), p.86
15
VELHO, G. (1989) p.17
Hosmany Ramos sorveu ao máximo o conhecimento de seu
entrevistado e, em muitos trechos do relato, parte para uma dupla
subjetivação: a do sobrevivente do Massacre e a dele próprio. Na
qualidade de detento, Ramos possui uma visão bastante realista do
ambiente carcerário que aliou à experiência de Milton Marques Vianna.
Tanto que a vítima do Carandiru admite o seu estranhamento diante da
narrativa pronta e diz que apesar de ser “testemunha ocular dos fatos,
após ter lido o manuscrito, constatou que as palavras nas mãos de um
escritor sempre voam”16.
Ramos imprime o seu próprio tom à narrativa. Fica difícil definir,
por exemplo, na última parte do relato, se as opiniões do sobrevivente
do Massacre diante do despreparo das autoridades, não é compartilhada
pelo médico e autor, ele próprio, uma vítima do sistema penal brasileiro.
“Os presos vivem como gado, e a finalidade da pena é meramente
punitiva, burlando a teoria positivista de que ‘a segurança social se
alcança mais com o trabalho de recuperação do infrator do que com a
punição’ ”. 17
Os Racionais acertam ao descrever os sentimentos mais íntimos
de quem vive o dia-a-dia atrás das grades. É como se fôssemos
transportados para o interior do presídio e compartilhássemos também
uma cela no Carandiru.
Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma
sentença/ Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,
sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento,
desprezo, desilusão, ação do tempo/ Misture bem essa química/
Pronto: eis um novo detento/ Lamentos no corredor, na cela, no
pátio/ Ao redor do campo, em todos os cantos/ Mas eu conheço
o sistema, meu irmão, hã.../Aqui não tem santo/ Rátátátá...
/Preciso evitar que um safado faça minha mãe chorar/ Minha
palavra de honra me protege pra viver no país das calças bege.
18
24
JENKINS, K. (2001), p.28
25
FOUCAULT, M. (2000), p.129
BIBLIOGRAFIA