Jacques Rancière - O Mestre Ignorante
Jacques Rancière - O Mestre Ignorante
Jacques Rancière - O Mestre Ignorante
O Mestre Ignorante
CINCO LIÇÕES SOBRE A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL
ÍNDICE
A LIÇÃO DO IGNORANTE
A ilha do livro – Calipso e o serralheiro – O mestre e Sócrates – Os negócios de cada um –
O cego e seu cão – Tudo está em tudo
A SOCIEDADE DO DESPREZO
As leis da gravidade – a paixão da desigualdade – a loucura retórica – Os inferiores
superiores – O rei filósofo e o povo soberano – Como desrazoar razoavelmente – A palavra
no Aventino
capítulo primeiro
Uma longa e movimentada carreira deveria, no entanto, tê-lo resguardado das surpresas:
dezenove anos, comemorados em 1789. Ele, então, ensinava Retórica em Dijon e se preparava
para o ofício de advogado. Em 1792, havia servido como artilheiro nas tropas da República. Em
seguida, a Convenção o teve, sucessivamente, como instrutor na Seção das Pólvoras, Secretário
do Ministro da Guerra e substituto do Diretor da Escola Politécnica. De retorno a Dijon, ele havia
Em março de 1815, a estima de seus compatriotas o havia tornado, à sua revelia, deputado. A
volta dos Bourbons o conduzira ao exílio, onde obtivera da liberalidade do rei dos Países-Baixos
o posto de professor em meio período. Joseph Jacotot conhecia as leis da hospitalidade e contava
Mas o acaso decidiu outra coisa. Com efeito, às lições do modesto leitor acorreram
número ignorava o francês. Joseph Jacotot, por sua vez, ignorava totalmente o holandês. Não
existia, portanto, língua na qual pudesse instruí-los naquilo que lhe solicitavam. Apesar disso, ele
quis responder às suas expectativas. Para tanto, era preciso estabelecer, entre eles, o laço
mínimo de uma coisa comum. Ora, publicara-se em Bruxelas, naquela época, uma edição
bilíngüe do Telêmaco: estava encontrada a coisa comum e, dessa forma, Telêmaco entrou na
vida de Joseph Jacotot. Por meio de um intérprete, ele indicou a obra aos estudantes e lhes
solicitou que aprendessem, amparados pela tradução, o texto francês. Quando eles haviam
atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes que repetissem sem parar o que haviam
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 2
aprendido e, quanto ao resto, que se contentassem de lê-lo para poder narrá-lo. Era uma solução
de improviso, mas também, em pequena escala, uma experiência filosófica, no gosto daquelas
tão apreciadas no Século das Luzes. E Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do
século passado.
No entanto, a experiência superou suas expectativas. Ele solicitara aos estudantes assim
preparados que escrevessem em francês o que pensavam de tudo quanto haviam lido. «Ele
estava esperando por terríveis barbarismos ou, mesmo, por uma impotência absoluta. Como, de
fato, poderiam todos esses jovens, privados de explicações, compreender e resolver dificuldades
de uma língua nova para eles? De toda forma, era preciso verificar até onde esse novo caminho,
aberto por acaso, os havia conduzido e quais os resultados desse empirismo desesperado. Mas,
qual não foi sua surpresa quando descobriu que seus alunos, abandonados a si mesmos, se
haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses! Não seria, pois,
preciso mais do que querer, para poder? Todos os homens seriam, pois, virtualmente capazes de
Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito. Até ali, ele
havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos: que a grande tarefa do
mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los gradativamente à sua própria
ciência. Como eles, sabia que não se tratava de entupir os alunos de conhecimentos, fazendo-os
repetir como papagaios, mas, também, que é preciso evitar esses caminhos do acaso, onde se
conseqüência. Em suma, o ato essencial do mestre era explicar, destacar os elementos simples
dos conhecimentos e harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato, que
1Félix e Victor Ratier, «Enseignement universel. Emancipation intellectuelle», Journal de philosophie panécastique,
1938, p. 155.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 3
julgamento e do gosto, até onde sua destinação social o requeria, preparando-se para dar à sua
educação uso compatível com essa destinação: ensinar, advogar ou governar para as elites;
buscavam, agora, arrancar da elite do povo; fazer, na carreira das ciências, novas descobertas
para os espíritos dotados desse gênio particular. Sem dúvida, o procedimento desses homens de
ciência divergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos. Mas não se extraía daí qualquer
argumento contra essa ordem. Ao contrário, é preciso haver adquirido, inicialmente, uma
formação sólida e metódica, para dar vazão às singularidades do gênio. Post hoc, ergo propter
hoc.
Joseph Jacotot, em trinta anos de ofício. Porém, eis que um grão de areia vinha, fortuitamente,
se introduzir na engrenagem. Ele não havia dado a seus «alunos» nenhuma explicação sobre os
primeiros elementos da língua. Ele não lhes havia explicado a ortografia e as conjugações.
Sozinhos, eles haviam buscado as palavras francesas correspondentes àquelas que conheciam, e
as razões de suas desinências. Sozinhos eles haviam aprendido a combiná-las, para fazer, por sua
vez, frases francesas: frases cuja ortografia e gramática tornavam-se cada vez mais exatas, à
medida em que avançavam na leitura do livro; mas, sobretudo, frases de escritores, e não de
iniciantes. Seriam, pois, supérfluas as explicações do mestre? Ou, se não o eram, para que e para
A ORDEM EXPLICADORA
Uma súbita iluminação tornou, assim, brutalmente nítida, no espírito de Joseph Jacotot,
essa cega evidência de todo o sistema de ensino: a necessidade de explicações. No entanto, o que
haveria de mais seguro do que essa evidência? Ninguém nunca sabe, de fato, o que
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 4
compreendeu. E, para que compreenda, é preciso que alguém lhe tenha dado uma explicação,
Essa lógica não deixa, entretanto, de comportar certa obscuridade. Eis, por exemplo, um
livro entre as mãos do aluno. Esse livro é composto de um conjunto de raciocínios destinados a
fazer o aluno compreender uma matéria. Mas, eis que, agora, o mestre toma a palavra para
explicar o livro. Ele faz um conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em
que o livro se constitui. Mas, por que teria o livro necessidade de tal assistência? Ao invés de
pagar um explicador, o pai de família não poderia, simplesmente, dar o livro a seu filho, não
poderia este compreender, diretamente, os raciocínios do livro? E, caso não o fizesse, por que,
então, compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não compreendeu?
Teriam esses últimos uma natureza diferente? E não seria necessário, nesse caso, explicar, ainda,
a forma de compreendê-los?
reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter. O que detém a regressão e concede ao
sistema seu fundamento é, simplesmente, que o explicador é o único juiz do ponto em que a
explicação está, ela própria, explicada. Ele é o único juiz dessa questão, em si mesma vertiginosa:
que o mestre supera o pai de família: como poderia esse último assegurar-se de que seu filho
compreendeu os raciocínios do livro? O que falta ao pai de família, o que sempre faltará ao trio
que forma com a criança e o livro, é essa arte singular do explicador: a arte da distância. O
segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a
distância, também, entre aprender e compreender. O explicador é aquele que impõe e abole a
Esse status privilegiado da palavra não suprime a regressão ao infinito, senão para
instituir uma hierarquia paradoxal. Na ordem do explicador, com efeito, é preciso uma
explicação oral para explicar a explicação escrita. Isso supõe que os raciocínios são mais claros –
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 5
imprimem-se melhor no espírito do aluno – quando veiculados pela palavra do mestre, que se
dissipa no instante, do que no livro, onde estão inscritas para sempre em caracteres indeléveis.
Como entender esse privilégio paradoxal da palavra sobre a escrita, do ouvido sobre a vista? Que
Mas, a esse paradoxo logo segue-se outro: as palavras que a criança aprende melhor,
aquelas em cujo sentido ela penetra mais facilmente, de que se apropria melhor para seu próprio
uso, são as que aprende sem mestre explicador, antes de qualquer mestre explicador. No
rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o que todos os filhos dos homens
aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar – a língua materna. Fala-se a eles, e
fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam
por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam
realizar sua instrução, são capazes, quase todos – qualquer que seja seu sexo, condição social e
E, então, essa criança que aprendeu a falar por sua própria inteligência e por intermédio
de mestres que não lhe explicam a língua, começa sua instrução, propriamente dita. Tudo se
passa, agora, como se ela não mais pudesse aprender com o recurso da inteligência que lhe
serviu até aqui, como se a relação autônoma entre a aprendizagem e a verificação lhe fosse, a
partir daí, estrangeira. Entre uma e outra, uma opacidade, agora, se estabeleceu. Trata-se de
compreender – e essa simples palavra recobre tudo com um véu: compreender é o que a criança
não pode fazer sem as explicações fornecidas, em certa ordem progressiva, por um mestre. Mais
tarde, por tantos mestres quanto forem as matérias a compreender. A isso se soma a estranha
circunstância, de que as explicações, depois que se iniciou a era do progresso, não cessam de se
aperfeiçoar para melhor explicar, melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, sem
pelo contrário, começa a erguer-se um triste rumor, que não mais deixará de se amplificar, de
aperfeiçoamento para tornar as explicações mais fáceis de serem compreendidas por aqueles que
não as compreendem…
lógica do sistema explicador. A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de
de mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui
o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que
não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da
explicador consiste nesse duplo gesto inaugural: por um lado, ele decreta o começo absoluto –
somente agora tem início o ato de aprender; por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem
aprendidas desse véu de ignorância que ele próprio se encarrega de retirar. Até ele, o pequeno
homem tateou às cegas, num esforço de adivinhação. Agora, ele vai aprender. Ele escutava
palavras e as repetia. Trata-se, agora, de ler, e ele não escutará as palavras, se não escuta as
sílabas, e as sílabas, se não escuta as letras que ninguém poderia fazê-lo escutar, nem o livro,
nem seus pais – somente a palavra do mestre. O mito pedagógico, dizíamos, divide o mundo em
dois. Mas, deve-se dizer, mais precisamente, que ele divide a inteligência em duas. Há, segundo
ele, uma inteligência inferior e uma inteligência superior. A primeira registra as percepções ao
acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito círculo dos hábitos e das
por suas razões, procede por método, do simples ao complexo, da parte ao todo. É ela que
aluno, e verificar se o aluno entendeu o que acabou de aprender. Tal é o princípio da explicação.
velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser
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maléfico que pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Ao contrário, é
exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que ele é mais eficaz. Mais ele é culto, mais se
mostra evidente a ele a distância que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Mais ele é
esclarecido, e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e buscar com método,
mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra, pela clareza das explicações a autoridade
do livro. Antes de qualquer coisa, dir-se-á, é preciso que o aluno compreenda e, para isso, que a
ele se forneçam explicações cada vez melhores. Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido: a
criança está compreendendo? Ela não compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe,
mais rigorosas em seu princípio, mais atrativas em sua forma; e verificarei que ele compreendeu.
ordem dos esclarecidos – compreender – a causadora de todo o mal. É ela que interrompe o
movimento da razão, destrói sua confiança em si, expulsa-a de sua via própria, ao quebrar em
dois o mundo da inteligência, ao instaurar a ruptura entre o animal que tateia e o pequeno
progresso no embrutecimento. A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obedece à
férula, eis tudo: ela aplicará sua inteligência em outra coisa. Aquele, contudo, que foi explicado
investirá sua inteligência em um trabalho do luto: compreender significa, para ele, compreender
que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem. Não é mais à férula que ele se submete,
mas à hierarquia do mundo das inteligências. Quanto ao resto, ele permanece tão tranqüilo
quanto o outro: se a solução do problema é muito difícil de buscar, ele terá a inteligência de
arregalar os olhos. O mestre é vigilante e paciente. Ele notará quando a criança já não estiver
entendendo, e a recolocará no bom caminho, por meio de uma re-explicação. Assim, a criança
adquire uma nova inteligência – a das explicações do mestre. Mais tarde, ela poderá, por sua vez,
converter-se em um explicador. Ela possui os meios. Ela, no entanto, os aperfeiçoará: ela será
um homem do progresso.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 8
O ACASO E A VONTADE
É assim que corre o mundo dos explicadores explicados. E como correria, também, para
Jacotot pensava que todo raciocínio deve partir dos fatos e ceder diante deles. Porém, não
concluamos, com isso, que se tratava de um materialista. Ao contrário: como Descartes, que
provava o movimento ao andar, mas também como seu contemporâneo, o muito realista e
religioso Maine de Biran, ele tinha os fatos do espírito que age e que toma consciência de sua
atividade como mais seguros do que qualquer coisa material. E era bem disso que se tratava: o
fato era que alguns estudantes se ensinaram a falar e a escrever em francês, sem o socorro de
suas explicações. Ele nada lhes havia transmitido de sua ciência, nada explicado quanto aos
radicais e as flexões da língua francesa. Ele nem mesmo havia procedido à maneira desses
pedagogos reformadores que, como o preceptor do Emílio, perdem seus alunos, para melhor
guiá-los e balizam astuciosamente todo um percurso com obstáculos que precisam superar
sozinhos. Ele os havia deixado sós com o texto de Fénelon, uma tradução – nem mesmo
interlinear, como era uso nas escolas – e a vontade de aprender o francês. Ele somente lhes havia
dado a ordem de atravessar uma floresta cujas saídas ignorava. A necessidade o havia
mestre que une a inteligência impressa nas palavras escritas àquela do aprendiz. E, ao mesmo
tempo, ele havia suprimido essa distância imaginária, que é o princípio do embrutecimento
pedagógico. Tudo se deu, a rigor, entre a inteligência de Fénelon, que havia querido fazer um
certo uso da língua francesa, a do tradutor, que havia querido fornecer o equivalente em
holandês, e a inteligência dos aprendizes, que queriam aprender a língua francesa. E ficou
evidente que nenhuma outra inteligência era necessária. Sem perceber, ele os havia feito
descobrir o que ele próprio com eles descobria: todas as frases e, por conseguinte, todas as
inteligências que as produzem são de mesma natureza. Compreender não é mais do que traduzir,
isto é, fornecer o equivalente de um texto, mas não sua razão. Nada há atrás da página escrita,
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 9
nenhum fundo duplo que necessite do trabalho de uma inteligência outra, a do explicador;
nenhuma língua do mestre, nenhuma língua da língua cujas palavras e frases tenham o poder de
dizer a razão das palavras e frases de um texto. E disso os estudantes flamengos haviam
fornecido a prova: para falar do Telêmaco, eles não tinham à sua disposição senão as palavras do
Telêmaco. Bastam, portanto, as frases de Fénelon para compreender as frases de Fénelon e para
dizer o que delas se compreendeu. Aprender e compreender são duas maneiras de exprimir o
mesmo ato de tradução. Nada há aquém dos textos, a não ser a vontade de se expressar, isto é, de
traduzir. Se eles haviam compreendido a língua ao aprender Fénelon, não era simplesmente pela
ginástica que compara uma página à esquerda com uma página à direita. Não é a aptidão de
mudar de coluna que conta, mas a capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem. Se
eles haviam aprendido isso com Fénelon, é porque o ato de Fénelon escritor era, ele próprio, um
ato de tradutor: para traduzir uma lição de política em um relato legendário, Fénelon havia
transposto, em francês do seu século, o grego de Homero, o latim de Virgílio e a língua, culta ou
primitiva, de cem outros textos, do conto infantil à história erudita. Ele havia aplicado a essa
dupla tradução a mesma inteligência que eles empregavam, por sua vez, para relatar com frases
Mas a inteligência que os fizera aprender o francês em Telêmaco era a mesma que os
havia feito aprender a língua materna: observando e retendo, repetindo e verificando, associando
o que buscavam aprender àquilo que já conheciam, fazendo e refletindo sobre o que haviam
feito. Eles haviam procedido como não se deve proceder, como fazem as crianças, por
adivinhação. E a questão, então, se impunha: não seria necessário inverter a ordem admitida
dos valores intelectuais? Não seria esse método maldito, da adivinhação, o verdadeiro
movimento da inteligência humana que toma posse de seu próprio poder? E sua proscrição não
opõem o método mau, do acaso, ao caminho da razão. Mas eles se dão, antecipadamente, aquilo
que querem provar. Eles supõem um pequeno animal que, se chocando com as coisas, explora
um mundo que ainda não é capaz de ver, mas que essas coisas, precisamente, lhe ensinarão a
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 10
discernir. Mas o filhote de homem é, antes de qualquer outra coisa, um ser de palavra. A criança
que repete as palavras aprendidas e o estudante flamengo «perdido» em seu Telêmaco não se
guiam pelo acaso. Todo o seu esforço, toda a sua exploração é tencionada pelo seguinte: uma
palavra humana lhes foi dirigida, a qual querem reconhecer e à qual querem responder – não na
qualidade de alunos, ou de sábios, mas na condição de homens; como se responde a alguém que
O fato estava lá: eles haviam aprendido sozinhos e sem mestre explicador. Ora, o que se
dá uma vez é sempre possível. De resto, essa descoberta deveria ser responsável por uma
reviravolta nos princípios do professor Jacotot. Mas o homem Jacotot estava mais preparado
para reconhecer a variedade daquilo que se pode esperar de um homem. Seu pai havia sido
açougueiro, antes de cuidar das contas de seu avô, o carpinteiro que havia enviado seu neto ao
colégio. Ele próprio era professor de retórica, quando escutou ecoar o apelo às armas, em 1792. O
voto de seus companheiros o havia feito capitão de artilharia e ele se distinguira como um
notável artilheiro. Em 1793, na Seção das Pólvoras, esse latinista se havia tornado instrutor de
química para a formação acelerada dos operários que seriam enviados para aplicar em todos os
cantos do território as descobertas de Fourcroy. Em casa desse mesmo Fourcroy ele havia
conhecido Vauquelin, filho de camponês que se dera uma formação em química às escondidas de
seu patrão. Na Escola Politécnica, ele tinha visto chegar jovens que comissões improvisadas
haviam selecionado, com base no duplo critério de vivacidade de espírito e de patriotismo. E eles
os havia visto tornarem-se muito bons matemáticos, menos pela matemática que Monge ou
Lagrange lhes explicava, do que por aquela que praticavam diante deles. Ele próprio havia,
matemático que, mais tarde, exerceria na Universidade de Dijon. Assim como havia
gramática hebraica. Ele pensava – só Deus sabe a razão – que essa língua tinha futuro. Enfim,
ele havia construído para si, apesar dele mas com o maior rigor, uma competência de
representante do povo. Em suma, ele sabia que a vontade dos indivíduos e o perigo da Pátria
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 11
queimar as etapas da progressão explicativa. Ele pensava que este estado de exceção, comandado
pelas necessidades da Nação, em nada diferia, em seu princípio, da urgência que rege a
exploração do mundo pela criança, ou dessa outra exigência que rege a via singular dos sábios e
acaso praticado com sucesso pelos estudantes flamengos revelava seu segundo segredo. Esse
método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender
sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão de seu próprio desejo ou pelas
contingências da situação.
O MESTRE EMANCIPADOR
Jacotot. Disso advinha uma conseqüência capital, não mais para os alunos, mas para o Mestre.
Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes, não sabiam e, agora,
sim. Logo, Jacotot lhes havia ensinado algo. No entanto, ele nada lhes havia comunicado de sua
ciência. Não era, portanto, a ciência do Mestre que os alunos aprendiam. Ele havia sido mestre
por força da ordem que mergulhara os alunos no círculo de onde eles podiam sair sozinhos,
quando retirava sua inteligência para deixar as deles entregues àquela do livro. Assim se haviam
dissociado as duas funções que a prática do mestre explicador vai religar, a do sábio e a do
mestre. Assim se haviam igualmente separado, liberadas uma da outra, as duas faculdades que
estabelecera uma relação de vontade e vontade: relação de dominação do mestre, que tivera por
conseqüência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro –
inteligência do livro que era, também, a coisa comum, o laço intelectual igualitário entre o
necessidade de um mestre, quando sua vontade não é suficientemente forte para coloca-la e
mantê-la em seu caminho. Mas, a sujeição é puramente de vontade a vontade. Ela se torna
embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de
coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade,
diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece
senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.
Essa experiência pedagógica abria, assim, uma ruptura com a lógica de todas as
distinguem pelos meios escolhidos para tornar sábio o ignorante: métodos duros ou suaves,
tradicionais ou modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento se pode comparar. Desse
ponto de vista, poder-se-ia, numa primeira aproximação, comparar a rapidez dos alunos de
Jacotot com a lentidão dos métodos tradicionais. Mas, na verdade, nada havia aí a comparar. O
confronto dos métodos supõe um acordo mínimo, no que se refere aos fins do ato pedagógico:
transmitir os conhecimentos do mestre ao aluno. Ora, Jacotot nada havia transmitido. O método
uma coisa de pouca conseqüência. A comparação não mais se estabelecia entre métodos, mas
entre dois usos da inteligência e entre duas concepções da ordem intelectual. A via rápida não
era a melhor pedagogia. Ela era uma outra via, a da liberdade, via que Jacotot havia
experimentado nos exércitos no ano II, na fabricação das pólvoras ou na instalação da Escola
capacidade intelectual de cada ser humano. Por detrás da relação pedagógica estabelecida entre
a ignorância e a ciência, seria preciso reconhecer a relação filosófica muito mais fundamental,
entre o embrutecimento e a emancipação. Havia, assim, não dois, mas quatro termos em jogo. O
combinadas: por um mestre emancipador ou por um mestre embrutecedor; por um mestre sábio
A última proposição era a mais dura de suportar. Passa, ainda, a idéia de que um sábio
deve se dispensar de toda a explicação sobre sua ciência. Mas como admitir que um ignorante
possa ser causa de ciência para um outro ignorante? A própria experiência de Jacotot era
ambígua, no que se refere à sua condição de professor de francês. Mas já que ela havia, ao
menos, mostrado que não era o saber do mestre que ensinava ao aluno, nada o impedia de
ensinar outra coisa além de seu próprio saber: ensinar o que ignorava. Joseph Jacotot dedicou-
se, então, a variar as experiências, a repetir, de propósito, o que o acaso havia uma vez
produzido. Ele se pôs, assim, a ensinar duas matérias em que sua incompetência era patente, a
pintura e o piano. Os estudantes de Direito queriam, ainda, que lhe fosse atribuída uma cátedra
que estava livre em sua faculdade. Mas a Universidade de Louvain já se inquietava demais em
relação a esse leitor extravagante por quem os alunos desertavam dos cursos magistrais, para
espremer-se, à noite, em uma sala muito pequena e apenas iluminada por duas velas e ouvi-lo
dizer: «É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes.» 2 De modo que a autoridade
consultada respondeu não reconhecer nele títulos que o habilitassem para tal ensino. Mas, à
época, ele se ocupava precisamente de experimentar a distância entre o título e o ato. Ao invés,
pois, de fazer em francês um curso de direito, ele ensinou os estudantes a pleitear em holandês.
O CÍRCULO DA POTÊNCIA
ignora, desde que se emancipe o aluno; isso é, que se force o aluno a usar sua própria
2Sommaire des leçons publiques de M. Jacotot sur les principes de l’enseignement universel, publicado por J. S. Van
de Weyer, Bruxelas, 1822, p.11.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 14
inteligência. Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não
poderá sair se não se tornar útil a si mesma. Para emancipar um ignorante, é preciso e suficiente
que sejamos, nós mesmos, emancipados; isso é, conscientes do verdadeiro poder do espírito
humano. O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita que ele o
pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: círculo da potência homólogo a esse círculo da
impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método (que denominaremos, a partir
impotência está sempre dado, ele é a própria marcha do mundo social, que se dissimula na
evidente diferença entre a ignorância e a ciência. O círculo da potência, quanto a ele, só vigora
em virtude de sua publicidade. Mas não pode aparecer senão como uma tautologia, ou um
absurdo. Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora
quanto o que sabe? Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma
desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não se acredita capaz de aprender por
subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação deve
ser começado.
Aí está o paradoxo. Pois, refletindo bem, o «método» que ele propõe é o mais velho de
todos e não pára de ser ratificado, todos os dias, em todas as circunstâncias em que o indivíduo
tem necessidade de se apropriar de um conhecimento que não tem como fazer que lhe seja
explicado. Não há homem sobre a Terra que não tenha aprendido alguma coisa por si mesmo e
sem mestre explicador. Chamemos a essa maneira de aprender «Ensino Universal» e poderemos
afirmar: «o Ensino Universal existe, de fato, desde o começo do mundo ao lado de todos os
métodos explicadores. Esse ensino, por si só, formou, de fato, todos os grandes homens.» Mas,
eis o que é estranho: «Todo homem faz essa experiência mil vezes em sua vida, e, no entanto,
jamais ocorreu a alguém dizer ao outro: aprendi muitas coisas sem explicações e creio que, como
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 15
eu, também o podeis (…) nem eu nem quem quer que seja havia pensado em empregar esse
método para instruir os outros.»3 Bastaria dizer à inteligência que dormita em cada um: Age
quod agis, continua a fazer o que fazes, «aprende o fato, imita-o, conhece-te a ti mesmo, é a
marcha da natureza»4. Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu
Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticam esse método,
mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele
implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o
verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua
capacidade. É preciso ousar reconhecê-lo e prosseguir a verificação aberta de seu poder. Sem o
que, o método da impotência, o Velho, durará tanto quanto a ordem das coisas.
Quem gostaria de começar? Havia, à época, muitos tipos de homens de boa vontade que
se preocupavam com a instrução do povo: homens da ordem queriam levar o povo a se colocar
acima de seus apetites brutais; homens de revolução queriam conduzi-lo à consciência de seus
direitos; homens de progresso desejavam, pela instrução, atenuar o abismo entre as classes;
populares os meios de uma promoção social. Todas estas boas intenções encontravam um
obstáculo: os homens do povo têm pouco tempo e, menos ainda, dinheiro para investir nessa
reputação: o Ensino Mútuo. Ele permitia reunir em um vasto local um grande número de alunos,
divididos em destacamentos, dirigidos pelos mais avançados entre eles, que eram promovidos à
3 Enseignement universel. Langue maternelle, 6e édition, Paris, 1836, p. 448 e Journal de l’émancipation
intellectuelle, t. III, p. 121.
4 Enseignement universel. Langue étrangère, 2 e édition, Paris, 1829, p. 219.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 16
intermédio desses monitores sobre toda a população a ser instruída. A perspectiva agradava aos
amigos do progresso: é assim que a ciência se difunde, dos píncaros até as mais modestas
dizia ele. Ele sonhava com outra coisa, a título de ensino mútuo: que cada ignorante pudesse se
fazer, para outro ignorante, um mestre que revelaria a ele seu poder intelectual. Mais
exatamente, seu problema não era a instrução do povo: instruem-se os recrutas que se engajam
sob sua bandeira, os subalternos que devem poder compreender as ordens, o povo que se quer
governar – à maneira progressiva, isto é, sem direito divino e somente segundo a hierarquia das
capacidades. O problema era a emancipação: que todo homem do povo pudesse conceber sua
dignidade de homem, medir a dimensão de sua capacidade intelectual e decidir quanto a seu
uso. Os amigos da instrução asseguravam que era essa a condição de uma verdadeira liberdade.
Em seguida, reconheciam dever ao povo essa instrução, e estavam prontos a brigar entre si para
fixar aquela que lhe deveria ser concedida. Jacotot não via que liberdade podia resultar, para o
povo, dos deveres de seus instrutores. Ele pressentia, ao contrário, que estava em jogo uma nova
forma de embrutecimento. Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem
que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser,
nada, talvez. Ele saberá que pode aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas
homem. O impressor de Jacotot tinha um filho que era débil mental. Todos se preocupavam por
não poder fazer nada a respeito. Jacotot lhe ensinou o hebraico, e a criança tornou-se um
excelente litógrafo. O hebreu, é evidente, jamais lhe serviu para nada – a não ser para saber o
que as inteligências mais bem dotadas e mais instruídas ainda ignoravam, e não se tratava do
hebraico.
As coisas estavam, portanto, muito claras: não se tratava aí de um método para instruir o
povo, mas da graça a ser anunciada aos pobres: eles podiam tudo o que pode um homem.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 17
Bastava anunciar. Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele proclamou que se pode ensinar o que
se ignora e que um pai de família pobre e ignorante é capaz, se ele é emancipado, de fazer a
educação de seus filhos, sem recorrer a qualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse
Ensino Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio
Lion; da Inglaterra e da Prússia se veio escutar a boa nova, que, depois, foi levada a São
Petersburgo e a Nova Orleans. A novidade chegou até ao Rio de Janeiro. Durante alguns anos, a
capítulo segundo
A lição do ignorante
Normal Militar de Louvain, onde o príncipe filósofo Frederick d’Orange encarregou o fundador
do Ensino Universal de instruir os futuros instrutores militares: «Imaginai recrutas sentados nos
bancos escolares e sussurrando, todos ao mesmo tempo: Calipso, Calipso não, etc., etc.; dois
meses depois, eles sabiam ler, escrever e contar (…) Durante essa educação primária, nós
aprendíamos, um, o inglês, outro, o alemão, esse, fortificação, aquele, química, etc., etc.
– Nem um pouco, mas nós lhe explicávamos e eu vos asseguro que ele aproveitou
Há uma ordem na loucura, como em toda coisa. Comecemos pelo começo: Telêmaco.
Tudo está em tudo, diz o louco. E a malícia pública acrescenta: e tudo está no Telêmaco. Pois
Telêmaco é, aparentemente, o livro que serve para tudo. O aluno quer aprender a ler? Quer
imperturbável, um Telêmaco em suas mãos e o aluno começará a repetir Calipso, Calipso não,
Calipso não podia, e assim em diante, até que ele saiba o número prescrito de livros do
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 19
Telêmaco e que possa relatar os outros. De tudo que ele aprende – a forma das letras, o lugar ou
lições de moral – lhe será pedido que fale, que diga o que ele vê, o que pensa disso, o que faz com
isso. Somente uma condição será imperativa: de tudo o que disser deverá demonstrar a
materialidade no livro. Ser-lhe-á solicitado que faça composições e improvisações nas mesmas
condições: ele deverá empregar as palavras e as maneiras do livro para construir suas frases;
deverá mostrar, no livro, os fatos relacionados com seus raciocínios. Em suma, de tudo o que
A ILHA DO LIVRO
disponível nas livrarias. Não é uma obra-prima da língua francesa. Mas seu estilo é puro, o
vocabulário variado, a moral severa. Aprende-se aí mitologia e geografia. Escuta-se aí, através da
clássico, um desses em que uma língua apresenta o essencial de suas formas e de seus poderes.
Um livro que é um todo; um centro ao qual se pode associar tudo o que se aprender de novo; um
círculo no interior do qual é possível compreender cada uma dessas novas coisas, encontrar os
meios de dizer o que se vê, o que se pensa disso, o que se faz com isso. Este é o primeiro princípio
do Ensino Universal: é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto. Para
começar, é preciso aprender qualquer coisa. O Palice diria a mesma coisa? O Palice, talvez, mas
o Velho, quanto a ele, diz: é preciso aprender tal coisa, e depois tal outra e ainda uma outra tal.
alguns elementos, que são aplicados a alguns trechos escolhidos de leitura, alguns exercícios
rudimentos, outro livro, outros exercícios, outro professor… A cada etapa, cava-se o abismo da
ignorância que o professor tapa, antes de cavar um outro. Fragmentos se acrescentam, peças
isoladas de um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mestre que ele jamais
atingirá. O livro nunca está inteiro, a lição jamais acabada. O mestre sempre guarda na manga
um saber, isto é, uma ignorância do aluno. Entendi isso, diz o aluno, satisfeito. – Isso é o que
você pensa, corrige o mestre. Na verdade, há uma dificuldade de que, até aqui, eu o poupei. Ela
será explicada quando chegarmos à lição correspondente. – O que quer dizer isso? pergunta o
aluno, curioso. – Eu poderia lhe explicar, responde o mestre, mas seria prematuro: você não
entenderia. Isso lhe será explicado no ano que vem. Há sempre uma distância a separar o
mestre do aluno, que, para ir mais além, sempre ressentirá a necessidade de um outro mestre, de
indefinidamente reproduzida. «Todo homem que é ensinado não é senão uma metade de
homem.»6
Não nos perguntemos se o pequeno cavalheiro instruído sofre com essa mutilação. A
ensinado algo, logo, ele aprendeu, logo, ele pode esquecer. Atrás de si escava-se, novamente, o
abismo da ignorância. Eis, no entanto, a maravilha da coisa: essa ignorância, a partir daí, é a dos
outros. O que ele esqueceu, ele ultrapassou. Ele não está mais em situação de soletrar e a
criança, não sou um papagaio. Mais ela esquece, mais lhe parece evidente que compreendeu.
Mais ela se torna inteligente, mais pode contemplar do alto aqueles que deixou para trás, os que
permanecem na antecâmara do saber, diante do livro mudo, aqueles que repetem, por não serem
suficientemente inteligentes para compreender. Eis a virtude dos explicadores: o ser que
inferiorizaram, eles o amarram pelo mais sólido dos laços ao país do embrutecimento: a
instruído se comoverá, talvez, com a ignorância do povo e pretenderá trabalhar para sua
instrução. Saberá que a coisa é difícil, diante de cérebros que a rotina endureceu, ou que a falta
de método perdeu. Mas, se ele é devotado, ele saberá que há um tipo de explicações adaptado
para cada categoria, na hierarquia das inteligências: ele buscará se colocar a seu nível.
Passemos, agora, a uma outra história. O louco – o Fundador, como o chamam seus
sectários – entra em cena com seu Telêmaco, um livro, uma coisa. – Toma e lê, diz ele ao pobre.
– Eu não sei ler, responde o pobre. Como compreenderia eu o que está escrito no livro? – Da
mesma forma como compreendeste todas as coisas, até aqui: comparando dois fatos. Vou te
relatar um fato, a primeira frase do livro: Calipso, Calipso não… Eis, agora, um segundo fato:
as palavras estão escritas aí. Não reconheces nada? A primeira palavra que te disse era
Calipso, não será também a primeira palavra na folha? Olha bem, até que estejas certo de
reconhecê-la em meio a uma multidão de outras palavras. Para tanto, será preciso que me
digas tudo o que vês. Há aí signos que a mão traçou sobre o papel, cujos chumbos a mão reuniu
na gráfica. Conta-me essa palavra. Faze-me «o relato das aventuras, isto é, das idas e vindas,
dos desvios, em uma palavra, dos trajetos da pena que escreveu essa palavra sobre o papel ou
do buril que a gravou sobre o cobre»7. Saberias tu reconhecer aí a letra O que um de meus
esquadro? Conta-me a forma de cada letra como descreverias as formas de um objeto ou lugar
desconhecido. Não digas que não podes. Tu sabes ver, tu sabes falar, tu sabes mostrar, tu podes
te lembrar. O que mais é preciso? Uma atenção absoluta, para ver e rever, dizer e redizer. Não
procures me enganar e te enganar. Foi bem isso que viste? O que pensas disso? Não és um ser
pensante? Ou acreditas ser apenas corpo? «O fundador Sganarelle mudou tudo isso (…) tens
Falar-se-á, em seguida, do que fala o livro: o que pensas de Calipso, da dor, de uma
deusa, de uma primavera eterna? – Mostra-me o que te faz dizer o que dizes.
O livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o aluno, mas sabe-se de
onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não terá o direito
de se manter longe, mas à sua porta. O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar
incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? o que pensas disso? o que
Mas esse infinito não é mais um segredo do mestre, é a marcha do aluno. O livro, quanto
a ele, está pronto e acabado. É um todo que o aluno tem em mãos, que ele pode percorrer
inteiramente com um olhar. Não há nada que o mestre lhe subtraia, e nada que ele possa
subtrair ao olhar do mestre. O círculo abole a trapaça. E, antes de mais nada, essa grande
trapaça, que é a incapacidade: eu não posso, eu não compreendo… Não há nada a compreender.
Tudo está no livro. Basta relatar – a forma de cada signo, as aventuras de cada frase, a lição de
cada livro. É preciso começar a falar. Não digas que não podes. Tu sabes dizer eu não posso.
Diga, em seu lugar, Calipso não podia… E terás começado. Terás começado por um caminho que
já conhecias e que deverás, daqui por diante, seguir sem dele te afastares. Não digas: eu não
posso dizer. Ou, então, aprende a dizê-lo à maneira de Calipso, ou de Telêmaco, de Narval ou de
Idomenéia. O outro círculo já foi começado, o da potência. Não cessarás de encontrar maneiras
descobrir que nada há de escondido, não há palavras por trás das palavras, língua que diga a
8 Ibid., p. 380.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 23
verdade da língua. Aprendem-se signos e, ainda, signos; frases e, ainda, frases. Repetem-se:
frases prontas. Decoram-se: livros inteiros. E o Velho indigna-se: eis o que significa, para vós,
aprender qualquer coisa. Primeiramente, vossas crianças repetem como papagaios. Elas
imaginação. Vossas crianças decoram. Este é vosso primeiro erro. E eis o segundo: vossas
crianças não aprendem de cor. Dizeis que elas o fazem, mas é impossível. Os cérebros humanos
memória infantil é incapaz de tais esforços, porque a impotência em geral é uma palavra de
ordem. Ele diz que a memória não é a mesma coisa que a inteligência ou a imaginação, porque
usa a arma comum àqueles que pretendem reinar sobre a ignorância: a divisão. Ele crê que a
memória é fraca, porque não crê no poder da inteligência humana. Ele a crê inferior, porque crê
É só o que o Velho conhece. Ele tem necessidade do desigual, mas não desse desigual
estabelecido pelo decreto do príncipe, senão do desigual por si só, que está em todas as mentes e
em todas as frases. Para tanto, dispõe de uma arma branca, a diferença: isso não é aquilo, tal
coisa é completamente diferente de tal outra, não se pode comparar…, a memória não é
inteligência; repetir não é saber; comparação não é razão; há o fundo e a forma… Qualquer
farinha pode ser moída no moinho da distinção. O argumento pode, assim, se modernizar,
da criança, senão pode-se comprometer sua saúde e colocar em risco o desenvolvimento de suas
faculdades… Tudo o que o Velho pede é que se lhe concedam suas negações e diferenças: isso
não é, isso é diferente, isso é mais, isso é menos. Eis o que é amplamente suficiente para erigir
CALIPSO E O SERRALHEIRO
Deixemos falar o Velho. Examinemos os fatos. Há uma vontade que rege e uma
inteligência que obedece. Chamemos de atenção o ato que faz agir essa inteligência sob a coerção
absoluta de uma vontade. Esse ato não é diferente, quer se trate da forma de uma letra a ser
reconhecida, de uma frase a ser memorizada, de uma relação a estabelecer entre dois seres
matemáticos, dos elementos de um discurso a ser composto. Não há uma faculdade que registra,
uma outra que compreende, uma outra que julga… O serralheiro que denomina o O de redonda e
o L de esquadro já pensa por meio de relações. E inventar é da mesma ordem que recordar.
deixemos que dissertem sobre o «gênio» dos criadores. Nós nos contentaremos em fazer como
esses criadores: como Racine, que aprendeu de cor, traduziu, repetiu e imitou Eurípides, Bossuet
que fez o mesmo com Tertuliano, Rousseau com Amyot, Boileau com Horácio e Juvenal; como
Demóstenes, que copiou oito vezes Tucídides, Hooft, que leu cinqüenta e duas vezes Tácito,
Sêneca, que recomenda a leitura sempre renovada de um mesmo livro, Haydn, que repetiu
torso9… A potência não se divide. Não há senão um poder, o de ver e de dizer, de prestar atenção
ao que se vê e ao que se diz. Aprendem-se frases e, ainda, frases; descobrem-se fatos, isto é,
relações entre coisas e, ainda, outras relações, que são de mesma natureza; aprende-se a
combinar letras, palavras, frases, idéias… Não se dirá que adquirimos a ciência, que conhecemos
a verdade, ou que nos tornamos gênios. Saberemos, contudo, que, na ordem intelectual,
Eis o que quer dizer Tudo está em tudo: a tautologia é a potência. Toda a potência da
língua está no todo de um livro. Todo conhecimento de si como inteligência está no domínio de
9 Gonod, Nouvelle exposition de la méthode de Joseph Jacotot, Paris, 1830, pp. 12-13.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 25
um livro, de um capítulo, de uma frase, de uma palavra. Tudo está em tudo e tudo está em
Telêmaco? E na primeira palavra de Telêmaco? E o discípulo sente o solo desaparecer sob seus
«Era preciso dizer que vós acreditais que todas as obras humanas estão na palavra
Calipso, porque essa palavra é uma obra da inteligência humana. Aquele que fez a adição de
frações é o mesmo ser intelectual que o que fez a palavra Calipso. Este artista sabia o grego;
escolheu uma palavra que significa ardilosa, escondida. Este artista assemelha-se àquele que
imaginou os meios de escrever a palavra da qual se trata. Ele se assemelha àquele que fez o papel
sobre o qual se escreve, àquele que emprega a pena nessa tarefa, àquele que talha as penas com
um canivete, àquele que fez o canivete com o ferro, àquele que forneceu o ferro a seus
semelhantes, àquele que fez a tinta, àquele que imprimiu a palavra Calipso, àquele que fez a
máquina de impressão, àquele que explica os efeitos de tal máquina, àquele que generalizou
essas explicações, àquele que fez a tinta de impressão, etc. etc. etc.… Todas as ciências, todas as
artes, a anatomia e a dinâmica, etc. etc. são frutos da mesma inteligência que fez a palavra
Calipso. Um filósofo, abordando uma terra desconhecida, adivinhou que ela era habitada ao ver
uma figura geométrica na areia. «São passos de homem», disse. Seus camaradas acreditaram
que estava louco, porque as linhas que ele lhes mostrava não se pareciam com passos. Os sábios
do aperfeiçoado século XIX arregalam os olhos, abestalhados, quando se lhes mostra a palavra
Calipso e que lhes é dito: «Há aí dedo do homem». Eu aposto que o representante da escola
normal francesa dirá, olhando a palavra Calipso: «Ele pode dizê-lo e repeti-lo, mas isso não tem
Eis tudo o que está em Calipso: a potência da inteligência, que está presente em toda
inteligência faz os signos e os raciocínios. Não há dois tipos de espíritos. Há desigualdade nas
manifestações da inteligência, segundo a energia mais ou menos grande que a vontade comunica
à inteligência para descobrir e combinar relações novas, mas não há hierarquia de capacidade
e que abre o caminho para toda aventura no país do saber. Pois se trata de ousar se aventurar, e
não de aprender mais ou menos bem, ou mais ou menos rápido. O «método Jacotot» não é
melhor, é diferente. Por isso, os procedimentos colocados em prática importam pouco, neles
mesmos. É o Telêmaco, mas poderia ser qualquer outro. Começa-se pelo texto, e não pela
gramática, pelas palavras inteiras, e não pelas sílabas. Não é que seja preciso aprender assim
para aprender melhor, e que o método Jacotot seja o ancestral do método global. De fato, vai-se
mais rápido começando por Calipso, e não por B, A, BA. Mas a rapidez não é senão um efeito da
potência adquirida, uma conseqüência do princípio emancipador. «O antigo método faz começar
pelas letras porque dirige os alunos segundo o princípio da desigualdade intelectual e, sobretudo,
da inferioridade intelectual das crianças. Acredita que as letras são mais fáceis de distinguir do
que as palavras: é um erro, mas, enfim, ela assim o crê. Ele crê que uma inteligência infantil não
está apta senão a aprender C, A, CA, e que é preciso uma inteligência adulta, isto é, superior,
para aprender Calipso»11. Em suma, B, A, BA, tal como Calipso, é uma bandeira: incapacidade
contra capacidade. Soletrar é um ato de contrição, antes de ser um meio de aprender. É por isso
que se poderia mudar a ordem dos procedimentos sem nada mudar quanto à oposição dos
princípios. «Um dia o Velho talvez pensará em fazer ler por palavras e, então, talvez nós
significativa? Nada. Nossos alunos não deixariam de ser emancipados e os do Velho não seriam
menos embrutecidos (…) O Velho não embrutece seus alunos ao faze-los soletrar, mas ao dizer-
lhes que não podem soletrar sozinhos; portanto, ele não os emanciparia, ao fazê-los ler palavras
inteiras, porque teria todo o cuidado em dizer-lhes que sua jovem inteligência não pode
dispensar as explicações que ele retira de seu velho cérebro. Não é, pois, o procedimento, a
velho princípio, embrutece não importa o que se faça; o princípio da igualdade, o princípio
Jacotot, emancipa qualquer que seja o procedimento, o livro, o fato ao qual se aplique.»12
O problema é revelar uma inteligência a ela mesma. Qualquer coisa serve para fazê-lo. É
Telêmaco; pode ser uma oração ou uma canção que a criança ou o ignorante saiba de cor. Há
sempre alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de comparação, ao qual é
possível relacionar uma coisa nova a ser conhecida. Disso testemunha o serralheiro que arregala
os olhos quando lhe é dito que ele pode ler. Ele não conhece sequer as letras. No entanto, se ele
colocar os olhos nesse calendário, será que não sabe a ordem dos meses e que não pode, assim,
adivinhar janeiro, fevereiro, março… Ele só sabe contar um pouco. Mas quem o impede de
contar bem lentamente, seguindo as linhas para reconhecer escrito aí o que já sabe? Ele sabe que
se chama Guillaume e que o dia de seu santo padroeiro é 16 de janeiro. Ele saberá perfeitamente
encontrar a palavra. Ele sabe que fevereiro só tem vinte e oito dias. Ele vê claramente uma
coluna que é mais curta que as outras e, assim, ele reconhecerá 28. E assim por diante. Há
sempre alguma coisa que o mestre pode lhe pedir que descubra, sobre a qual pode interrogá-lo e
O MESTRE E SÓCRATES
Com efeito, são esses os dois atos fundamentais do mestre: ele interroga, comanda uma
Ele verifica que o trabalho dessa inteligência se faz com atenção, que essa palavra não diz
12 Ibid., p. 11.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 28
qualquer coisa para se subtrair à coerção. Dir-se-á que, para isso, é preciso um mestre muito
hábil e muito sábio? Ao contrário, a ciência do mestre sábio torna muito difícil para ele não
arruinar o método. Conhecendo as respostas, suas perguntas para elas orientam naturalmente o
aluno. É o segredo dos bons mestres: com suas perguntas, eles guiam discretamente a
inteligência do aluno – tão discretamente, que a fazem trabalhar, mas não o suficiente para
que o método Jacotot – isso é, o método do aluno – difere radicalmente do método do mestre
socrático. Por suas interrogações, Sócrates leva o escravo de Mênon a reconhecer as verdades
matemáticas que nele estão. Há aí, talvez, um caminho para o saber, mas ele não é em nada o da
emancipação. Ao contrário. Sócrates deve tomar o escravo pelas mãos para que esse possa
reencontrar o que está nele próprio. A demonstração de seu saber é, ao mesmo tempo, a de sua
impotência: jamais ele caminhará sozinho e, aliás, ninguém lhe pede que caminhe, senão para
ilustrar a lição do mestre. Nela, Sócrates interroga um escravo que está destinado a permanecer
como tal.
sábio, Sócrates interroga para instruir. Ora, quem quer emancipar um homem deve interrogá-lo
à maneira dos homens e não à maneira dos sábios, para instruir-se a si próprio e não para
instruir um outro. E, isto, somente o fará bem aquele que, de fato, não sabe mais do que seu
aluno, que jamais fez a viagem antes dele, o mestre ignorante: este não poupará à criança o
tempo que lhe for necessário para se dar conta da palavra Calipso. Mas, alguém poderá
perguntar, o que tem ela a ver com Calipso e quando sequer ela ouviria falar disso? Deixemos,
então, Calipso de lado. Que criança não ouviu falar do Pai-Nosso, não sabe de cor a oração?
Nesse caso, a coisa está dada e o pai de família pobre e ignorante que quer ensinar seu filho a ler
não estará embaraçado. Ele sempre encontrará em sua vizinhança alguma pessoa atenciosa e
suficientemente letrada, capaz de copiar para ele essa oração. Com isso, o pai ou a mãe pode
começar a instrução de seu filho, perguntando-lhe onde está o Pai. «Se a criança é atenta, ele
dirá que a primeira palavra que está no papel deve ser o Pai, pois é a primeira na frase. Nosso
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 29
conhecer essas duas palavras e reconhecê-las em qualquer parte.»13 Que pai ou mãe não saberia
perguntar à criança, às voltas com o texto da oração, o que ele vê, o que com isso pode fazer, ou o
que disso pode dizer, ou o que pensa sobre o que disse ou fez? Fazê-lo da mesma forma como
interrogaria um vizinho sobre o instrumento que tem em mãos, e sobre o uso que dá ao objeto?
Ensinar o que se ignora é simplesmente questionar sobre tudo que se ignora. Não é preciso
nenhuma ciência para fazer tais perguntas. O ignorante pode tudo perguntar, e somente suas
questões serão, para o viajante do país dos signos, questões verdadeiras, a exigir o exercício
Que seja! diz o contraditor. Mas, o que faz a força do interrogador faz também a
incompetência do verificador. Como saberá ele que a criança não divaga? O pai ou a mãe sempre
poderão pedir à criança: – Mostra-me Pai, ou Céus. Mas como poderão eles verificar se a criança
avança – se ela avança – em sua aprendizagem. O mestre e o aluno ignorantes não estariam,
O PODER DO IGNORANTE
ciência infusa, sobretudo dessa ciência do povo que se oporia à dos sábios. É preciso ser sábio
para julgar os resultados do trabalho, para verificar a ciência do aluno. O ignorante, por sua vez,
fará menos e mais, ao mesmo tempo. Ele não verificará o que o aluno descobriu, verificará se ele
buscou. Ele julgará se estava atento. Ora, basta ser homem para julgar do fato do trabalho. Tão
bem quanto o filósofo, que «reconhece» passos de homem nas linhas na areia, a mãe sabe ver
«nos olhos, em toda a expressão de seu filho, quando ele faz um trabalho qualquer, quando ele
mostra palavras de uma frase, se ele está atento ao que faz.»14 O que o mestre ignorante deve
exigir de seu aluno é que ele prove que estudou com atenção. É pouco? Vejamos, então, tudo o
que essa exigência tem, para o aluno, de uma tarefa interminável. Vejamos, também, a
inteligência que ela pode dar ao examinador ignorante: «Quem impede essa mãe ignorante, mas
emancipada, de observar, a cada vez que pergunta onde está Pai, se a criança mostra sempre a
mesma palavra; quem se oporá a que ela esconda essa palavra e pergunte: qual é a palavra que
Imagem piedosa, receita de mulheres… Esse foi o julgamento do porta-voz oficial da tribo
dos explicadores: «Pode-se ensinar o que se ignora é ainda uma máxima de dona de casa.»16 Ao
que se responderá que a «intuição maternal» não exerce aqui nenhum privilégio doméstico. O
dedo que esconde a palavra Pai, é o mesmo que está em Calipso, a escondida ou a ardilosa: a
marca da inteligência humana, a mais elementar das astúcias da razão humana – a verdadeira,
aquela que é própria a cada um e comum a todos, essa razão que se manifesta exemplarmente
ali, onde o saber do ignorante e a ignorância do mestre, agindo, fazem a demonstração dos
quando aquele que fala não sabe o que diz… Essa capacidade é o laço que une os homens.»17 A
prática do mestre ignorante não é um simples expediente que permite ao pobre que não tem
tempo, nem dinheiro, nem saber, instruir seus filhos. É a experiência crucial que libera os puros
poderes da razão, lá onde a ciência não pode mais vir a seu socorro. O que um ignorante pode
uma vez, todos os ignorantes podem sempre. Pois não há hierarquia na ignorância. E o que os
ignorantes e os sábios podem, comumente, é a isso que se deve chamar o poder do ser
14 Ibid., p. 73.
15 Ibid., p. 73.
16 Lorain, Réfutation de la méthode Jacotot, Paris, 1830, p. 90.
inteligência onde há uma agregação, ligadura de um espírito a outro espírito. Há inteligência ali
onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação.
A coisa comum, situada entre as duas inteligências, é a caução dessa igualdade, e isso em um
duplo sentido. Uma coisa material é, antes de mais nada, «o único ponto de comunicação entre
livro mantém a igual distância os dois espíritos, enquanto que a explicação é aniilação de um
pelo outro. Mas a coisa é, igualmente, uma instância sempre disponível de verificação material: o
palavras escritas em um livro, a uma coisa que ele possa verificar com seus sentidos.»19 O
examinado está sempre sujeito a uma verificação no livro aberto, na materialidade de cada
palavra, na trajetória de cada signo. A coisa, o livro, exorciza a cada vez a trapaça da
incapacidade, e aquela do saber. Por isso, o mestre ignorante poderá, eventualmente, estender
sua competência até a verificação não tanto da ciência do pequeno cavalheiro instruído, mas da
atenção que ele dá ao que diz e faz. «Nós podeis, por esse meio, até mesmo prestar serviço a um
de vossos vizinhos que se encontra, por circunstâncias independentes de sua vontade, forçado a
enviar seu filho ao colégio. Se o vizinho vos pede para verificar o que sabe o pequeno colegial,
não estareis em nada embaraçado com essa requisição, ainda que não tenhais estudos. O que
estais aprendendo, jovem amigo, direis à criança. – Grego. – O que? – Esopo – O que? – As
Fábulas – Que fábula conheceis? – A primeira – Onde está a primeira palavra? – Ei-la aqui. –
Passai-me vosso livro. Recitai-me a quarta palavra. Colocai-a por escrito. O que escrevestes não
se parece com a quarta palavra do livro. Vizinho, essa criança não sabe o que dizer saber. Essa é
uma prova de que lhe faltou atenção, quando estudava ou quando indicou o que diz saber.
Aconselhai-o a estudar. Voltarei a passar, e vos direi se está aprendendo o grego, que ignoro, que
É assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele que sabe quanto o ignorante:
verificando se ele está pesquisando continuamente. Quem busca, sempre encontra. Não encontra
necessariamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas encontra
alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já conhece. O essencial é essa contínua vigilância,
essa atenção que jamais se relaxa sem que venha a se instalar a desrazão – em que excelem tanto
aquele que sabe quanto o ignorante. O mestre é aquele que mantém o que busca em seu
OS NEGÓCIOS DE CADA UM
Mas ainda é preciso, para verificar essa pesquisa, saber o que quer dizer pesquisar. Esse é
o cerne de todo o método. Para emancipar a outrem, é preciso que se tenha emancipado a si
outros viajantes, como sujeito intelectual que participa da potência comum dos seres
intelectuais.
Como se tem acesso a esse conhecimento de si? «Um camponês, um artista (pai de
família) se emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social»21. A
coisa parecerá simples, e mesmo simplória, para quem desconhece o peso do velho mandamento
que a filosofia, pela voz de Platão, instituiu como destino para o artesão: Não faças nada além de
teu próprio negócio, que não é de pensar no que quer que seja, mas simplesmente fazer essa
coisa que esgota a definição de teu ser: se tu és sapateiro, calçados e crianças que serão
raça de ouro, aos guardiães da pólis que incumbiria a tarefa de educá-lo, para torná-lo um deles.
É bem verdade que a era do progresso pretendeu abalar a rigidez do velho mandamento.
Com os enciclopedistas, decretou que nada mais se fizesse como rotina, nem mesmo o trabalho
dos artesãos. E sabia que não há ator social, por mais ínfimo que seja, que não se constitua, ao
mesmo tempo, em um ser pensante. O cidadão Destutt de Tracy relembrou, no alvorecer do novo
século: «Todo homem que fala tem idéias de ideologia, de gramática, de lógica e de eloqüência.
Todo homem que age tem princípios de moral privada e de moral social. Todo ser, apenas por
vegetar, desenvolve suas noções de física e de cálculo; e, somente pelo fato de viver com seus
semelhantes, desenvolve sua pequena coleção de fatos históricos e sua maneira de julgá-los.»22
Impossível, portanto, que os sapateiros façam apenas calçados – que não sejam também,
rotina de seu meio ou o acaso de seus encontros, a marcha racional do progresso será
açodamento dos violentos. Faz-se, portanto, necessário que um mínimo de instrução, retirado
dos princípios da razão, da ciência e do interesse geral, imbua de noções sadias cabeças que, sem
isso, as formarão falhas. Escusado mencionar que essa empreitada será tão mais proveitosa
quanto mais ela subtrair o filho do camponês ou do artesão do meio natural produtor dessas
falsas idéias. No entanto, essa evidência encontra rapidamente sua contradição: a criança que
deve ser subtraída à rotina e à superstição deve, no entanto, voltar à sua atividade e à sua
condição. E a era do progresso foi, desde sua aurora, advertida do perigo mortal que há em
separar a criança do povo da condição para qual está votada e das idéias relativas a essa
condição. Assim, ela se esbarra com essa contradição: sabe-se, agora, que as ciências dependem
22 Destutt de Tracy, Observations sur le système actuel d’instruction publique. Paris, ano IX.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 34
todas de princípios simples, que são acessíveis a todos os espíritos que delas desejarem se
apropriar, desde que sigam o método adequado. Mas, a mesma natureza que abre a carreira das
ciências a todos os espíritos quer uma ordem social em que as classes estejam separadas e os
pelas luzes da instrução, as idéias falsas que a criança deve a seu meio familiar; o outro afugenta,
pela educação, as aspirações extravagantes que o escolar poderia tirar de sua jovem ciência e o
traz de volta à condição dos seus. O pai de família, incapaz de tirar de sua prática rotineira as
condições para a instrução intelectual de seu filho, mostra-se, em troca, todo-poderoso para lhe
ensinar, pela palavra e pelo exemplo, a virtude que há em se manter em sua condição. A família
duplo caráter se traduz por uma dupla limitação da consciência de si do artesão: a consciência de
que aquilo que faz depende de uma ciência que não é a sua, a consciência de que aquilo que é o
por parte de cada homem, de sua natureza de sujeito intelectual; fórmula cartesiana da
igualdade, posta ao revés: «Descartes dizia: eu penso, logo sou; e esse belo pensamento do
grande filósofo é um dos princípios do Ensino Universal. Nós invertemos seu pensamento e
dizemos: eu sou homem, logo, penso».23 A inversão inclui o sujeito homem na igualdade do
ser humano, é preciso fazer operar, contra o interdito platônico, uma das etimologias da fantasia
do Crátilo: o homem, o anthropos, é o ser que examina o que vê, que se conhece nessa reflexão
sobre seu ato24. Toda a prática do Ensino Universal se resume na questão: o que pensas disso?
Todo seu poder está na consciência da emancipação que ela atualiza no mestre, e suscita no
aluno. O pai poderá emancipar seu filho, se começar por se conhecer a si próprio, isto é, por
examinar os atos intelectuais de que é o sujeito, por observar a maneira como utiliza, nesses atos,
intelectuais do ignorante. Ele conhece sua língua. Ele sabe, igualmente, usá-la para protestar
contra seu estado ou para interrogar os que sabem, ou acreditam saber, mais do que ele. Ele
conhece seu ofício, seus instrumentos e uso; ele seria capaz, se necessário, de aperfeiçoá-los. Ele
deve começar a refletir sobre essas capacidades e sobre a maneira como as adquiriu.
Avaliemos melhor essa reflexão. Não se trata de opor os saberes manuais e do povo, a
inteligência do instrumento e do operário, à ciência das escolas ou à retórica das elites. Não se
trata de perguntar quem construiu Tebas e suas sete portas, para reivindicar o lugar de
duas inteligências, que toda obra da arte humana é a realização das mesmas virtualidades
assinalar como se fez. Em toda parte é possível essa reflexão, essa volta sobre si mesmo, que não
é a pura contemplação de uma substância pensante, mas a atenção incondicionada a seus atos
mesma inteligência na conquista de novos territórios. Permanece embrutecido aquele que opõe a
obra das mãos operárias e do povo altor às nuvens da retórica. A fabricação de nuvens é uma
obra da arte humana que exige, nem menos, nem mais, tanto trabalho, tanta atenção intelectual
24Platão, Crátilo, 399 c: «Único entre todos os animais, o homem foi justamente chamado anthropos, porque ele
examina o que viu (anathrôn haapôpê).»
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 36
um tolo, nem um preguiçoso. E seríamos embrutecidos, por nossa vez, se não reconhecêssemos
em suas dissertações a mesma arte, a mesma inteligência, o mesmo trabalho que os daqueles que
Lerminier, seremos capazes de reconhecer a inteligência manifestada pela obra dos mais
humildes. «As camponesas pobres dos arredores de Grenoble fabricam luvas; pagam-se-lhes
trinta centavos a dúzia. Mas, desde que se emanciparam, elas se aplicam a olhar, a estudar, a
compreender uma luva bem confeccionada. Elas adivinharão o sentido de todas as frases, de
todas as palavras dessa luva. Acabarão por falar tão bem quanto as mulheres da cidade, que
ganham sete francos por dúzia. Trata-se somente de aprender uma língua que se fala com
tesouras, agulha e linha. A questão sempre está limitada (nas sociedades humanas) a
A idealidade material da língua refuta qualquer oposição entre raça de ouro e raça de
ferro, qualquer hierarquia – ainda que invertida – entre os homens votados ao trabalho manual
se executa da mesma maneira. É por isso que o ignorante pode, assim que se conheceu a si
mesmo, verificar a pesquisa de seu filho no livro que não consegue ler: mesmo não conhecendo
as matérias que o filho estuda, se este lhe diz como está fazendo, saberá reconhecer se está
fazendo, ou não, obra de pesquisador. Pois ele sabe o que é pesquisar e não tem senão uma coisa
a pedir a seu filho, que é virar e revirar suas palavras e frases, como ele próprio vira e revira seus
O livro – Telêmaco ou outro – colocado entre duas inteligências resume essa comunidade
ideal que se inscreve na materialidade das coisas. O livro é a igualdade das inteligências. Por isso,
25 EM, p. 349.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 37
condenava a democracia do livro. O filósofo-rei platônico opunha à palavra viva a letra morta do
livro – pensamento tornado matéria à disposição dos homens da matéria, discurso ao mesmo
tempo mudo e tagarela, errando ao acaso entre aqueles cujo único negócio é pensar. O privilégio
explicador é somente a moeda de troco desse interdito. E o privilégio que o «método Jacotot»
dos espíritos que marcava, em Platão, a crítica da escrita26. O livro sela a nova relação entre dois
ignorantes que a partir daí se reconhecem como inteligências. E essa nova relação transforma a
disciplinadora da educação, intervém a decisão da emancipação, que torna o pai ou a mãe capaz
de representar, para seu filho, o papel do mestre ignorante em quem se encarna a exigência
gentil, mas um mestre intratável. O mandamento emancipador não conhece negociações. Ele
verificará no livro a igualdade das inteligências, desde que o pai ou a mãe verifiquem a
radicalidade da pesquisa que ele está realizando. A célula familiar já não é mais, então, o lugar de
um retrocesso que conduz o artesão à consciência de sua nulidade. Ela é o lugar de uma nova
consciência, de uma superação de si que estende o «próprio negócio» de cada um até o ponto em
Pois é exatamente isso que se trata de verificar: a igualdade de princípio dos seres
falantes. Ao forçar a vontade do filho, o pai de família pobre verifica que eles têm a mesma
inteligência, que seu filho pesquisa como ele; e o que o filho busca no livro é a inteligência
daquele que o escreveu, para verificar se ela procede exatamente como a sua. Essa reciprocidade
é o cerne do método emancipador, o princípio de uma filosofia nova que o Fundador, juntando
26 Cf. Platão, Fedro, 274 e / 277 a, e Rancière, Le Philosophe et ses pauvres, Fayard, 1983, pp. 66 e seg.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 38
duas palavras gregas, batizou de panecástica, porque ela busca o todo da inteligência humana
em cada manifestação intelectual. Decerto, não o havia compreendido bem o proprietário que
enviou seu jardineiro para se formar em Louvain, pretendendo torná-lo instrutor de seus filhos.
emancipador: fornecer, não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode uma
inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra
permite que a inteligência se atualize pela verificação. O que embrutece o povo não é a falta de
embrutece, ao mesmo tempo, os «superiores». Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a
um semelhante, capaz de verificar a igualdade das duas inteligências. Ora, o espírito superior se
condena a jamais ser compreendido pelos inferiores. Ele só se assegura de sua inteligência
desqualificando aqueles que lhe poderiam recusar esse reconhecimento. Tal como o sábio que
sabe que os espíritos femininos são inferiores aos espíritos masculinos, e que passa toda sua
existência a dialogar com um ser que não pode compreendê-lo: «Que intimidade! que doçura nas
conversações amorosas! nos casais! nas famílias! Aquele que fala nunca está certo de ter sido
compreendido. Ele tem um espírito e um coração! um grande espírito! um coração sensível! mas
o cadáver ao qual a cadeia social o amarrou, ou a amarrou! Oh, infelicidade!»27 Dir-se-á que a
admiração de seus alunos e do mundo exterior o consola dessa desgraça doméstica? Mas o que
apreciei muito vossa última obra; ele vos responderá, mordendo os lábios: muito me honrais;
isso é: meu caro, não saberia me envaidecer com o sufrágio de vossa pequena inteligência…28
inteligência não é, em nada, uma exclusividade dos sábios e dos poetas eminentes. Sua força vem
do fato de que ela envolve toda a população, sob a aparência de humildade. «Eu não posso», vos
declara o ignorante que incitais a se instruir. «Eu não sou mais do que um operário». Percebei
bem o que está contido no silogismo. Antes de tudo, «eu não posso» significa «eu não quero, por
que faria eu semelhante esforço?» O que quer dizer, também: eu poderia, sem dúvida, fazê-lo,
pois sou inteligente; mas não sou senão um operário: gente como eu não o consegue; meu
vizinho não o conseguiria. De que isso me serviria, então, já que trato com imbecis?
Assim vai a crença na desigualdade. Não há espírito superior que não encontre um mais
superior ainda, para rebaixá-lo; não há espírito inferior que não encontre outro mais inferior
ainda, para desprezar. A toga professoral de Louvain é bem pouca coisa, em Paris. E o artesão
parisiense sabe como lhe são inferiores os artesãos de província – que sabem, por sua vez, como
são atrasados os camponeses. No dia em que esses últimos pensarem que conhecem as coisas e
que a toga de Paris abriga um fantasista, o cerco se fechará. A superioridade universal dos
inferiores se unirá à inferioridade universal dos superiores para criar um mundo em que
nenhuma inteligência poderá se reconhecer em seu igual. Ora, a razão se perde ali onde um
homem fala a um outro que nada lhe pode replicar. «Não há espetáculo mais belo, mais
instrutivo, do que o espetáculo do homem que fala. Porém, o ouvinte deve se reservar o direito
de pensar no que acabou de ouvir e o expositor deve convidá-lo a tanto (…) Logo, é preciso que o
ouvinte verifique se o expositor está atualmente no uso de sua razão, se dela está escapando, ou
se a está abraçando. Sem essa verificação autorizada, exigida pela própria igualdade das
inteligências, não vejo, numa conversa, mais do que um discurso entre o cego e seu cão.»29
Resposta à fábula do cego e do paralítico, o cego que fala a seu cão é o apólogo do mundo
das inteligências desiguais. Percebe-se bem que se trata de filosofia e de humanidade, não de
do semelhante de que todos os emancipados são capazes, todos aqueles que decidiram pensar
Tudo está em tudo. A tautologia da potência é também a da igualdade, que busca o dedo
da inteligência em toda obra de homem. Esse é o sentido do exercício que tanto surpreendeu
Baptiste Froussard, homem de progresso e diretor de escola em Grenoble, que veio acompanhar
em Louvain os dois filhos do deputado Casimir Perier. Membro da Sociedade dos Métodos de
Ensino, Baptiste Froussard já havia ouvido falar do Ensino Universal e deve ter reconhecido, na
classe de Mlle. Marcellis, exercícios que o presidente dessa Sociedade, M. de Lasteyrie, havia
descrito. Ele observou jovens moças, segundo o costume, fazerem composições em quinze
minutos, umas sobre o último homem, outras sobre o retorno do exilado, e escrever sobre esses
temas peças de literatura que, como assegurava o fundador, «não fariam feio entre as mais belas
páginas de nossos melhores autores». Essa afirmação levantava vivas reservas nos visitantes
ilustres. Mas M. Jacotot havia encontrado o meio de convencê-los: já que, em toda evidência,
eles próprios podiam ser contados entre os melhores escritores da época, bastava-lhes
havia prestado de bom grado ao exercício. Mas o mesmo não sucedeu com M. Guigniaut – o
enviado da Escola Normal de Paris que se mostrara incapaz de ver qualquer dedo em Calipso,
mas que, em troca, havia visto em uma composição a ausência indesculpável de um circunflexo
sobre a palavra croître. Convidado para a prova, ele se tinha apresentado com uma hora de
atraso, sendo-lhe solicitado que voltasse no dia seguinte. Mas, à tarde, ele havia retomado o
caminho de Paris, levando em suas bagagens, como peça de acusação, esse i vergonhosamente
improvisar era, antes de qualquer outra coisa, aprender a vencer a si próprio, a vencer esse
orgulho que se disfarça de humildade para declarar sua incapacidade de falar diante de outrem –
terminar, a fazer por si mesmo um todo, a aprisionar a língua em um círculo. Assim, duas alunas
haviam improvisado, com toda segurança, sobre a morte do ateu, após o que M. Jacotot, para
afugentar essas tristes idéias, pediu a outra aluna para improvisar sobre o vôo de uma mosca.
Estava decretada a hilaridade na sala, mas M. Jacotot colocou as coisas no lugar: não se tratava
de rir, era preciso falar. E, sobre esse tema aéreo, durante oito minutos e meio a jovem disse
Baptiste Froussard havia participado da lição de música. M. Jacotot lhe havia solicitado
fragmentos de poesia francesa, sobre os quais as jovens alunas haviam improvisado melodias
com acompanhamento que interpretaram de um modo adorável. Muitas vezes, ainda, ele havia
voltado à casa de Mlle. Marcellis, conduzindo ele mesmo exercícios de composição de moral e de
metafísica, todos realizados com uma facilidade e um talento admiráveis. Mas, eis o exercício
que mais o surpreendeu: um dia, M. Jacotot havia se dirigido às alunas: «Senhoritas, sabeis que
há arte em toda obra humana; em uma máquina a vapor, como em um vestido; em uma obra de
literatura, como em um sapato. Muito bem! Vós me fareis uma composição sobre a arte em geral,
relacionando vossas palavras, vossas expressões, vossos pensamentos a uma ou outra passagem
dos autores que vos serão indicados, de maneira a poder tudo justificar ou verificar»30.
Diversas obras foram então trazidas a Baptiste Froussard, que indicou pessoalmente, a
uma, certa passagem de Athalie, a outra, um capítulo da gramática; a outra, ainda, uma
diante. Não lhe foi preciso esperar muito pelos resultados desse estranho exercício sobre coisas
tão pouco comparáveis. Ao fim de meia hora, novamente o estupor o invadiu, ao perceber a
qualidade das composições que haviam sido feitas em sua presença, e dos comentários
improvisados que as justificavam. Ele admirou, em particular, uma explicação da arte feita sobre
Nesse dia, mais do que nunca, Baptiste Froussard compreendeu em que sentido se pode
dizer que tudo está em tudo. Ele já sabia que M. Jacotot era um pedagogo surpreendente e podia
presumir a qualidade dos alunos formados sob sua orientação. Contudo, ele voltou para casa
tendo compreendido uma coisa a mais: as alunas de Mlle. Marcellis, de Louvain, tinham a
mesma inteligência que as artesãs de Grenoble e, mesmo – muito mais difícil de admitir – que as
capítulo terceiro
É preciso refletir melhor sobre a razão desses efeitos: «Nós orientamos as crianças a
partir da opinião da igualdade das inteligências».
Mas, o que é uma opinião? É, dizem os explicadores, um sentimento que formamos sobre
fracos e populares, e se opõem à ciência, que conhece as verdadeiras razões dos fenômenos. Se
Devagar. Nós vos concedemos que uma opinião não é uma verdade. Porém, é isso que
nos interessa: quem não conhece a verdade busca por ela, e há muitas descobertas a serem feitas
no caminho. O único erro seria o de tomar nossas opiniões por verdades. Isso, sem dúvida, é o
que se faz cotidianamente. Mas esta é, justamente, a única coisa em que queremos nos distinguir
– nós, adeptos do louco: pensamos que nossas opiniões são opiniões, e nada mais. Nós
observamos certos fatos. Nós acreditamos que tal poderia ser a razão para esses fatos. Faremos,
e podereis fazer também, algumas experiências para verificar a solidez dessa opinião. Parece-
nos, inclusive, que o procedimento não é totalmente inédito. Não é assim que agem,
Mas, na verdade, pouco nos importa o respeito. Limitemo-nos aos fatos: vimos crianças e
adultos, aprenderem sozinhos, sem mestre explicador, a ler, a escrever, a tocar música, ou a falar
línguas estrangeiras. Acreditamos que esses fatos poderiam se explicar pela igualdade das
inteligências. É uma opinião cuja verificação estamos perseguindo. É bem verdade que há nisso
outros fenômenos físicos. Ao produzir as supostas causas para esses fenômenos, eles se
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 44
habilitam a reproduzir seus efeitos conhecidos. Tal caminho nos está interditado. Jamais
poderemos dizer: tomemos duas inteligências iguais e submetâmo-las a tal ou tal condição.
Conhecemos a inteligência por seus efeitos. Não podemos, entretanto, isolá-la ou medi-la.
Estamos reduzidos a multiplicar as experiências inspiradas por essa opinião. E jamais podermos
Isso é inegável. Nosso problema, contudo, não é provar que todas as inteligências são
iguais. É ver o que se pode fazer, a partir dessa suposição. E, para isso, basta-nos que essa
opinião seja possível, isto é, que nenhuma verdade contrária seja demonstrada.
cérebros e folhas
aos olhos de todos que as inteligências são desiguais. Primeiramente, não há na natureza dois
seres idênticos. Observai as folhas que caem dessa árvore. Elas vos parecem exatamente
parelhas. Observai mais de perto, para vos dissuadirdes. Em meio a esses milhares de folhas, não
há duas assemelhadas. A individualidade é a lei do mundo. Como essa lei, que se aplica a
vegetais, não se aplicaria, a fortiori, a esse ser infinitamente mais elevado na hierarquia vital,
que é a inteligência humana? Logo, todas as inteligências são diferentes. Além disso, sempre
houve, sempre haverá, há em toda parte seres desigualmente dotados para as coisas da
inteligência: sábios e ignorantes, pessoas de espírito e tolos, espíritos abertos e cérebros obtusos.
Sabemos o que se diz a esse respeito: a diferença das circunstâncias, do meio social, a educação…
Pois bem, façamos uma experiência: tomemos duas crianças saídas do mesmo meio, educadas da
mesma maneira. Tomemos dois irmãos, enviêmo-los à mesma escola, submetidos aos mesmos
exercícios. O que veremos? Um será mais bem sucedido do que o outro. Logo, existe uma
diferença intrínseca. E essa diferença deve-se ao seguinte: um dos dois é mais inteligente, mais
dotado, tem mais recursos do que o outro. Logo, vê-se bem que as inteligências são desiguais.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 45
O que responder a essas evidências? Comecemos pelo começo: por essas folhas que tanto
interessam aos espíritos superiores. Nós as reconheceremos tão diferentes quanto eles quiserem.
Indagaremos, apenas: como, no entanto, se passa da diferença das folhas à desigualdade das
inteligências? A desigualdade é apenas um gênero da diferença, e não é dele que se fala, no caso
das folhas. Uma folha é um ser material, enquanto que um espírito é imaterial. Como concluir,
É bem verdade que nesse terreno têm-se agora rudes adversários: os fisiologistas. As
propriedades do espírito, dizem os mais radicais dentre eles, são na realidade propriedades do
cérebro humano. Diferença e desigualdade reinam aí, como na configuração de todos os outros
órgãos do corpo humano. Tanto quanto pesa o cérebro, vale a inteligência. Sobre a questão se
debruçam frenólogos e cranióscopos: este aqui, dizem, tem a bossa do gênio; esse outro não tem
conseqüente. Esse só conheceria cérebros e poderia aplicar a eles tudo que se aplica aos seres
materiais. Para ele, efetivamente, as proposições de emancipação intelectual não seriam mais do
que sonhos de cérebros bizarros, afetados por uma forma particular da velha doença do espírito
que é conhecida pelo nome de melancolia. Nesse caso, os espíritos superiores – isso é, os
cérebros superiores não se dariam ao trabalho inútil de demonstrar sua superioridade a cérebros
nisso não encontrariam qualquer obstáculo: sua superioridade intelectual exercer-se-ia de fato,
assim como acontece com a superioridade física. Não haveria mais necessidade de leis, de
assembléias e de governos na ordem política, tanto quanto não haveria mais necessidade de
Mas, tal não é o caso. Temos governos e leis. Temos espíritos superiores que buscam
das inteligências, em sua imensa maioria, não seguem os fisiologistas e fazem pouco dos
cranióscopos. A superioridade de que se vangloriam não se mede, segundo eles, por esses
instrumentos. O materialismo seria uma explicação cômoda de sua superioridade, mas, para
eles, trata-se ainda de uma outra coisa. Sua superioridade é espiritual. Eles são espiritualistas,
antes de tudo porque têm uma boa opinião de si mesmos. Eles acreditam na alma imaterial e
imortal. Mas, como o que é imaterial seria susceptível de mais e do menos? Tal é a contradição
dos espíritos superiores. Eles querem uma alma imortal, um espírito distinto da matéria, e
querem inteligências diferentes. Mas, é a matéria que faz as diferenças. Se nos atemos à
diferentes, a objetos materiais diferentes. No entanto, os espíritos superiores não querem saber,
nem de uma superioridade que fosse somente material, nem de uma espiritualidade que os
fizesse iguais aos inferiores. Eles reivindicam as diferenças dos materialistas no seio da elevação
inteligência.
Eles bem percebem essa fragilidade, tal como sabem que é preciso conceder algo aos
inferiores, ainda que por pura precaução. Eis, portanto, como resolvem as coisas: há em todo
homem, dizem eles, uma alma imaterial. Ela permite ao mais humilde conhecer as grandes
somos todos iguais e até concedemos que os mais humildes freqüentemente nos superariam.
Que isso lhes baste, pois, e não aspirem, ademais, a essas capacidades intelectuais, que são
privilégio – muitas vezes, pesadamente adquirido – daqueles que têm por tarefa cuidar dos
interesses gerais da sociedade. E que não venham nos dizer que essas diferenças são puramente
sociais. Basta ver essas duas crianças, saídas do mesmo meio, formadas pelo mesmo mestre. Um
Que seja! Logo, vejamos essas crianças; e vejamos, também, vossos logo. Um é mais bem
sucedido do que o outro – é um fato. Se ele é mais bem sucedido, dizeis, é porque é mais
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 47
inteligente: é aqui que a explicação torna-se obscura. Haveis mostrado um outro fato que seria a
causa do primeiro? Se um fisiologista descobrisse que um dos cérebros era mais estreito, ou mais
leve do que o outro, isso seria um fato. Ele poderia legitimamente logar. Vós, porém, não
mostrais outro fato. Ao dizer: «Ele é mais inteligente», vós simplesmente resumis as idéias que
relatam esse fato. Vós o haveis nomeado. Entretanto, o nome de um fato não é sua causa, e sim,
no máximo, sua metáfora. Vós haveis relatado o fato, uma primeira vez, dizendo: «Ele é mais
bem sucedido», e o haveis relatado com outro nome, ao afirmar: «Ele é mais inteligente».
Contudo, não há mais no segundo enunciado do que havia no primeiro. «Esse homem é mais
bem sucedido do que esse outro, porque ele tem mais espírito; isso significa, exatamente: ele é
mais bem sucedido porque é mais bem sucedido (…) Esse jovem tem muito mais recursos, diz-
se. Eu pergunto: o que é ter mais recursos? e recomeçais a me relatar a história das duas
crianças; logo, mais recursos, digo a mim mesmo, significa em francês o conjunto de fatos que
Impossível, pois, romper o círculo. É preciso mostrar a causa da desigualdade, ainda que
isso signifique ter que tomá-la emprestada dos protuberantes, ou limitar-se a uma tautologia. A
um animal atento
nomearemos os fatos sem pretender atribuir-lhes uma causa. Primeiro fato: «Vejo que o homem
faz coisas que os outros animais não fazem. Chamo a esse fato, a gosto, espírito, ou inteligência;
31 LE, p. 228-229.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 48
nada explico, dou um nome ao que vejo.»32 Posso dizer, igualmente, que o homem é um animal
razoável. Com isso, consignarei o fato de que o homem dispõe de uma linguagem articulada, da
qual se serve para fazer palavras, figuras, comparações, a fim de comunicar seu pensamento aos
semelhantes. Em segundo lugar, quando comparo dois homens, «vejo que, nos primeiros
momentos da vida, eles têm absolutamente a mesma inteligência, isto é, fazem exatamente as
mesmas coisas, com o mesmo objetivo, com a mesma intenção. Digo que esses dois homens têm
uma inteligência igual, e essa expressão inteligência igual é um signo abreviado de todos os fatos
Mais tarde, verei outros fatos. Constatarei que essas duas inteligências já não fazem as
mesmas coisas, não mais obtêm os mesmos resultados. Poderei afirmar, se quiser, que a
inteligência de um é mais desenvolvida do que a do outro – se estou consciente de que, ainda aí,
estou apenas relatando um novo fato. Nada me impede, então, de fazer uma suposição. Não direi
que a faculdade de um é inferior à do outro, somente suporei que ela não foi igualmente
exercida. Nada me concede certeza quanto a isso, mas nada me prova o contrário. Basta-me
saber que esta falta de exercício é possível, e que muitas experiência o atestam. De modo que
deslocarei ligeiramente a tautologia: não direi que ele é menos bem sucedido porque é menos
inteligente. Direi que talvez ele tenha realizado um trabalho menos bom porque trabalhou
menos bem, que não viu bem porque não olhou bem. Direi que ele dedicou a seu trabalho menor
atenção.
Assim fazendo, é bem possível que eu não tenha avançado muito, mas já o suficiente para
sair do círculo. A atenção não é nem uma bossa do cérebro, nem uma qualidade oculta. É um fato
imaterial em seu princípio e material em seus efeitos: temos mil e um meios de verificar sua
presença, sua ausência ou sua maior ou menor intensidade. É para isso que tendem todos os
32 Ibid., p. 229.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 49
possíveis nos são razoavelmente sugeridas pela experiência. Sabemos porque crianças pequenas
mais ou menos as mesmas necessidades a serem satisfeitas e todos querem igualmente entrar na
sociedade dos humanos, na sociedade dos seres falantes. E, para isso, é preciso que a inteligência
trabalhe sem repouso. «Esta criança está rodeada de objetos que lhe falam, todos ao mesmo
tempo, em línguas diferentes; é preciso que ela os estude separadamente, e em seu conjunto; eles
não têm entre si qualquer relação e, freqüentemente, se contradizem. Ela nada pode adivinhar
sobre esses idiomas que a natureza fala, ao mesmo tempo a seu olho, a seu tato, a todos os seus
sentidos. É preciso que esteja sempre repetindo, para poder se lembrar de tantos signos
Dado esse grande passo, a necessidade se faz menos imperiosa, a atenção menos
diversificam e ela desenvolve as capacidades intelectuais que lhe são solicitadas. A mesma coisa
se passa com os homens do povo. É inútil discutir se sua inteligência «menor» é um efeito da
circunstâncias deles exigem. Ali onde a necessidade cessa, a inteligência se repousa, a menos que
uma vontade mais forte se faça ouvir, que diz: continua; vê o que fizeste e o que podes fazer se
aplicares a mesma inteligência que já empregaste, investindo em toda coisa a mesma atenção,
Resumamos essas observações, e diremos: o homem é uma vontade servida por uma
inteligência. Talvez o fato de vontades desigualmente imperiosas seja suficiente para explicar a
33 LM, p. 199.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 50
O homem é uma vontade servida por uma inteligência. Essa fórmula é herdeira de uma
longa história. Resumindo o pensamento dos espíritos fortes do século XVIII, Saint-Lambert
havia afirmado: O homem é uma organização viva, servida por uma inteligência. A fórmula
inteligência servida por órgãos. Mas essa inversão realizava uma restauração bastante ambígua
da inteligência. O que havia desagradado ao Visconde na fórmula do filósofo não era o fato de
que ela deixava muito pouco para a inteligência humana. Ele mesmo se preocupava bem pouco
com ela. O que, ao contrário, o havia descontentado era o modelo republicano de um rei a serviço
da organização coletiva. O que ele queria restaurar era a boa ordem hierárquica: um rei que
comanda e sujeitos que obedecem. A inteligência-rainha, para ele, não era certamente aquela da
criança ou do operário tensionado para a apropriação do mundo dos signos; era a inteligência
divina já inscrita nos códigos dados aos homens pela divindade, na própria língua que não devia
sua origem nem à natureza, nem à arte humana, mas ao puro dom divino. A parte que cabia à
vontade humana era a de se submeter a essa inteligência já manifestada, inscrita nos códigos, na
social e da objetividade da linguagem sobre a filosofia «individualista» das Luzes, Bonald devia
reavaliar as formulações mais «materialistas» dessa filosofia. Para rejeitar toda anterioridade do
pensamento sobre a linguagem, para negar à inteligência qualquer direito à pesquisa da verdade
que lhe fosse própria, ele deveria se alinhar com aqueles que haviam reduzido as operações do
espírito ao puro mecanismo das sensações materiais e dos signos da linguagem; e isso até o
ponto de zombar daqueles monges do Monte Athos que, contemplando o movimento de seu
signos da linguagem e as idéias do entendimento, que o século XVIII havia buscado e que o
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 51
homem, escreve o Visconde, pensa sua fala antes de falar seu pensamento»35. Teoria materialista
da linguagem que não oculta o pio pensamento que a anima: «Guardiã fiel e perpétua do sagrado
Face a esses pensamentos fortes, uma mão enraivecida rabiscou em seu exemplar as
seguintes linhas: «Compare-se a toda essa tagarelice escandalosa a resposta do oráculo sobre a
sábia ignorância de Sócrates»37. Não é a mão de Joseph Jacotot, mas a do colega de M. de Bonald
na Câmara, o Cavaleiro Maine de Biran que, um pouco adiante, derruba em duas linhas todo o
edifício do Visconde: a anterioridade dos signos da linguagem nada muda à preeminência do ato
intelectual que, para cada filho de homem, lhes fornece sentido: «O homem só aprende a falar
ligando idéias às palavras que recebe de sua ama.» Coincidência surpreendente, à primeira vista.
Para começar, vê-se mal que pode estar aproximando o antigo lugar-tenente das guardas de Luís
XVI e o antigo capitão dos exércitos do ano I; o castelão administrador e o professor da Escola
hipóteses – pode-se cogitar – o fato de o primeiro contar vinte anos quando do início da
Revolução, ter abandonado aos vinte e cinco anos o tumulto parisiense e ter meditado
longamente, à distância, sobre o sentido e a virtude que poderia assumir, em meio a tantas
transformações, o velho adágio socrático. Jacotot o entende à maneira dos moralistas, Maine de
Biran como os metafísicos. Ainda assim, eles conservam uma visão comum, que sustenta a
34 Bonald, Recherches philosophiques sur les premiers objets des connaissances morales, Paris, 1818, t. I, p. 67.
35 Bonald, Législation primitive considérée dans les premiers temps par les seules lumières de la raison, Oeuvres
complètes, Paris, 1859, p. 1161.
36 Recherches philosophiques…, p. 105.
37 Maine de Biran, «Les Recherches philosophiques de M. de Bonald», in Oeuvres complètes, Paris, 1939, t. XII, p.
252.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 52
pensamento. Não é mais na transparência recíproca dos signos da linguagem e das idéias do
vontade – revolucionária e imperial – recobriu inteiramente essa terra prometida das línguas
transparências da linguagem – sejam elas republicanas ou teocráticas. Ela se apóia sobre seu ato
atenção e busca, antes de ser combinação de idéias. A vontade é potência de se mover, de agir
homem: o homem é uma vontade servida por uma inteligência. A vontade é o poder racional a
ser desatrelado das querelas dos ideístas e dos coisistas. É também nesse sentido que se deve
precisar a igualdade cartesiana do cogito. Opor-se-á a esse sujeito pensante que só se conhecia
como tal divorciando-se de todo sentido e de todo corpo, um novo sujeito pensante que se
experimenta na ação que exerce sobre si mesmo, tanto quanto sobre os corpos. Dessa forma,
segundo os princípios do Ensino Universal, Jacotot fazia sua própria tradução da célebre análise
cartesiana do pedaço de cera: «Eu quero olhar e vejo. Quero escutar e ouço. Quero tatear e meu
braço se estende, passeia pela superfície dos objetos ou penetra em seu interior; minha mão se
abre, se desenvolve, se estende, se fecha, meus dedos se afastam ou se aproximam para obedecer
à minha vontade. Nesse ato de tateio, só conheço minha vontade de tatear. Essa vontade não é
nem meu braço, nem minha mão, nem meu cérebro, nem o tateio. Essa vontade sou eu, é minha
alma, é minha potência, é minha faculdade. Sinto essa vontade, ela está presente a mim, ela sou
eu; quanto à maneira como sou obedecido, não a sinto, não a conheço senão por seus atos (…)
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 53
Considero a ideificação como um tatear. Tenho sensações quando me apraz: ordeno a meus
sentidos fornecê-las. Tenho idéias quando quero: ordeno a minha inteligência buscá-las, tatear.
A mão e a inteligência são escravos, cada uma com suas atribuições. O homem é uma vontade
entendimento. Porém, ele o conhecia, justamente, como poder do falso, como causa de erro: a
precipitação em afirmar, apesar da idéia não ser clara e distinta. É preciso dizer, ao contrário,
que é a falta de vontade que faz errar a inteligência. O pecado original do espírito não é a
precipitação, é a distração, é a ausência. «Agir sem vontade ou sem reflexão não produz um ato
intelectual. O efeito que daí resulta não pode ser classificado entre as produções da inteligência,
nem comparado com elas. Na inação, não se pode ver nem mais, nem menos ação; não há nada.
O ato da inteligência é ver e comparar o que vê. Ela o faz, inicialmente, segundo o acaso.
É-lhe preciso procurar repetir, criar as condições para ver de novo o que ela já viu, para ver fatos
semelhantes, para ver fatos que poderiam ser a causa do que ela viu. É-lhe preciso, ainda, formar
palavras, frases, figuras, para dizer aos outros o que viu. Em suma, por mais que isso incomode
enfadonha. O primeiro vício é o da preguiça. É mais fácil se ausentar, ver pela metade, dizer o
que não se vê, dizer o que se acredita ver. Assim se formam frases de ausências, os logo que não
traduzem qualquer aventura do espírito. «Eu não posso» é o exemplo dessas frases de ausência.
«Eu não posso» não é o nome de nenhum fato. Nada se passa no espírito que corresponda a essa
asserção. A rigor, ela não quer dizer nada. De forma que a palavra se carrega ou se esvazia de
acordo com a vontade, que contrai ou relaxa a ação da inteligência. A significação é obra de
vontade. Esse é o segredo do Ensino Universal. É também esse o segredo daqueles que são
chamados gênios: o trabalho incessante para dobrar o corpo aos hábitos necessários, para
de sucesso: «Isso é verdade para os oradores, como para as crianças. Eles se formam em
assembléias, como nós nos formamos na vida (…) Aquele que eventualmente fez rir de si na
última sessão podia aprender a fazer rir sempre e quando quisesse, se estudasse todas as
relações que levaram a essas vaias que o desconcertaram, fechando-lhe para sempre a boca. Esse
foi o início de Demóstenes. Ele aprendeu, fazendo, sem querer, que dele se risse, como poderia
excitar reações contra Ésquines. Mas Demóstenes não era preguiçoso. Ele não podia sê-lo.»40.
Um indivíduo pode tudo o que quiser, proclama ainda o Ensino Universal. Mas não nos
enganemos sobre o que esse querer significa. O Ensino Universal não é a chave do sucesso
oferecida aos empreendedores pela exploração dos prodigiosos poderes da vontade. Nada seria
mais contrário ao pensamento da emancipação, do que esse reclame de circo. E o Mestre se irrita
quando os discípulos abrem sua escola sob a insígnia de Quem quer, pode. A única insígnia que
bem verdade que os ambiciosos e os conquistadores lhe fornecem uma comprovação selvagem.
Sua paixão é uma fonte insaciável de idéias e eles se tornam rapidamente capazes de comandar
generais, sábios ou financistas cuja ciência ignoram. Mas o que nos interessa não é esse efeito
teatral. O que os ambiciosos ganham de poder intelectual não se julgando inferiores a ninguém,
eles tornam a perder considerando-se superiores a todos os outros. O que nos interessa é a
exploração dos poderes de cada homem, quando ele se julga igual a todos os outros e julga todos
os outros iguais a si. Por vontade, compreendemos essa volta sobre si do ser racional que se
conhece como capaz de agir. Essa fonte de racionalidade, essa consciência, essa estima de si
como ser racional em ato que alimenta o movimento da inteligência. O ser racional é, antes de
tudo, um ser que conhece sua potência, que jamais se mente a esse respeito.
o princípio de veracidade
que afirma eu não posso dizer. O ser razoável que se volta sobre si mesmo sabe o nada dessas
pode mentir a si próprio, somente pode se esquecer. «Eu não posso» é, assim, uma frase de
esquecimento de si, de que o indivíduo razoável abdicou. Nenhum gênio maligno pode se
interpor entre a consciência e seu ato. Mas é preciso, também, inverter o adágio socrático.
Ninguém é voluntariamente mau, proclamava ele. Diremos o inverso: «Toda asneira vem do
vício.»41 Ninguém erra, senão por maldade, isto é, por preguiça, por desejo de não mais ouvir
falar do que um ser razoável deve a si mesmo. O princípio do mal não está em uma consciência
errada sobre o bem que é o fim da ação. Está na infidelidade a si. Conhece-te a ti mesmo não
quer mais dizer, à maneira platônica: saiba onde está teu bem. Mas sim: volta a ti, ao que em ti
não pode te enganar. Tua impotência não é mais do que preguiça em caminhar. Tua humildade
não é senão temor orgulhoso de tropeçar ante o olhar dos outros. Tropeçar não é nada; o mal
está em divagar, sair de seu caminho, não mais prestar atenção ao que se diz, esquecer-se do que
chave de nenhuma ciência, senão a relação privilegiada de cada um com a verdade – aquela que
41 LN, p. 33.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 56
pensadores da época pensam diferentemente de Jacotot. Para eles, a verdade que rege o
assentimento intelectual se identifica ao laço que une os homens. A verdade é o que os congraça;
o erro é rompimento e solidão. A sociedade, sua instituição, o objetivo que persegue, eis o que
define o querer com o qual o indivíduo deve se identificar, para atingir uma percepção justa.
positivista. Menos severos são os ecléticos, com seu senso comum e suas grandes verdades
escritas no coração de cada um, filósofo ou sapateiro. Contudo, são todos homens de agregação.
E Jacotot rompe com isso. Que se diga, se assim se deseja, que a verdade congraça. Porém o que
porque são homens, isto é, seres distantes. A linguagem não os reúne. Ao contrário, é sua
em comunidade de inteligência: o homem é um ser que sabe muito bem quando aquele que fala
A verdade não agrega absolutamente os homens. Ela não se dá a eles. Ela existe
por si mesma; ela é o que é e não o que é dito. Dizer depende do homem; mas a verdade não
depende.»42 Mas nem por isso ela nos é estrangeira, e não estamos exilados de seu país. A
experiência de veracidade nos liga a seu núcleo ausente, nos faz dar voltas em torno de seu
centro. Podemos, primeiramente, ver e mostrar verdades. Assim, «ensinei o que ignoro» é uma
verdade. É o nome de um fato que existiu, que pode se reproduzir. Quanto à razão desse fato, ela
é, por hora, uma opinião, e isso pode durar talvez para sempre. Mas, com essa opinião, damos
voltas em torno da verdade, de frases em frases. O essencial é não mentir, não dizer que se viu
quando se manteve os olhos fechados, não contar senão o que se viu, não acreditar que se deu
Assim, cada um de nós descreve, em torno da verdade, sua parábola. Não há duas órbitas
semelhantes. E é por isso que os explicadores põem nossa revolução em perigo. «Essas órbitas
das concepções humanitárias se cruzam raramente, e não têm senão alguns pontos em comum.
As linhas mistas que descrevem jamais coincidem sem uma perturbação que suspende a
liberdade e, por conseguinte, o uso da inteligência que dela deriva. O aluno sente que ele jamais
teria seguido o caminho em que acaba de ser precipitado; e se esquece de que há mil sendas
abertas para a vontade, nos espaços intelectuais.»43 Essa coincidência de órbitas é o que
profundo, quanto essa coincidência se faz mais sutil, menos perceptível. É por isso que o método
socrático, aparentemente tão próximo do Ensino Universal, representa a forma mais temível de
manejo do espírito que está dirigindo. De desvios em desvios, o espírito chega a um fim que não
havia sequer entrevisto quando da partida. Ele se espanta, se volta, percebe seu guia, o espanto
Ninguém tem relação com a verdade, se não está em sua órbita própria. Que ninguém se
gabe, no entanto, dessa singularidade, proclamando: Amicus Plato, sed magis amica veritas!
Essa é uma frase teatral. Aristóteles, que a profere, não faz diferente de Platão. Como ele, relata
suas opiniões, narra suas aventuras intelectuais, colhe em seu caminho algumas verdades.
Quanto à verdade, ela não confia em filósofos que se dizem seus amigos, ela só é amiga de si
mesma.
a razão e a língua
A verdade não se diz. Ela é una e a linguagem despedaça, ela é necessária e as línguas são
arbitrárias. Antes mesmo da proclamação do Ensino Universal, essa tese da arbitrariedade das
línguas fez do ensino de Jacotot objeto de escândalo. Sua aula inaugural em Louvain havia
tomado por tema essa questão, herdada do século XVIII de Diderot e do abade Batteux: seria
natural a construção «direta», que dispõe o sujeito antes do verbo e do atributo? Teriam os
intelectual de sua língua? Ele tomava o partido da negativa. Com Diderot, julgava a ordem
«inversa» tão natural, ou mais, do que a dita ordem natural, acreditava a linguagem do
sentimento anterior à da análise. Mas, sobretudo, recusava a própria idéia de uma ordem natural
e as hierarquias que poderia induzir. Todas as línguas eram igualmente arbitrárias. Não havia
Bruxelas, um jovem filósofo, Van Meenen, denunciava essa tese como uma caução teórica
fornecida à oligarquia. Cinco anos mais tarde, após a publicação da Língua materna, era a vez de
um jovem jurista próximo a Van Meenen, que havia acompanhado e, mesmo, publicado os
cursos de Jacotot, inflamar-se. Em seu Essai sur le livre de Monsieur Jacotot, Jean Sylvain Van
de Weyer admoesta o professor de francês que, juntamente com Bacon, Hobbes, Locke, Harris,
Condillac, Dumarsais, Rousseau, Destutt de Tracy e Bonald, ousa ainda sustentar que o
francesa era, para eles, dar vantagem à língua da oligarquia holandesa, língua atrasada, da fração
menos civilizada, mas também língua secreta do poder. Seguindo-os, o Courrier de la Meuse
acusará o «método Jacotot» de chegar no momento certo para impor sem maiores dificuldades a
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 59
língua e a civilização – entre aspas – holandesas. Mas as coisas foram ainda mais profundas. Os
jovens defensores da identidade belga e da pátria intelectual francesa haviam lido, eles também,
sua unidade de princípio com a lei divina. Eles, sem dúvida, se afastavam, quanto ao resto, da
metafísicas, morais e sociais inscritas pela divindade no coração de cada um. Seu líder filosófico
era um jovem professor de Paris, chamado Victor Cousin. Na tese da arbitrariedade das línguas
homem do povo. No paradoxo do leitor de Louvain, eles viam perpetuado o vício desses filósofos
que «freqüentemente confundiram em seus ataques, sob o nome de preconceitos, tanto os erros
funestos cujo berço haviam descoberto bem próximo a eles, quanto as verdades fundamentais a
metafísica, onde há muito haviam desaprendido a descer, deixando-se guiar unicamente pela
O fato é: Jacotot não deseja reaprender esse tipo de descida. Ele não escuta as frases em
cascatas com esse senso reto e esse coração simples. Ele nada quer com essa liberdade medrosa
que se garante no acordo das leis do pensamento com as leis da linguagem e aquelas da
sociedade. A liberdade não se garante por nenhuma harmonia preestabelecida. Ela se toma, ela
se conquista e se perde somente pelo esforço de cada um. E não existe razão assegurada por estar
já escrita nas construções da língua e das leis da cidade. As leis da língua nada têm a ver com a
razão e as leis da cidade têm tudo a ver com a desrazão. Se há lei divina, é o pensamento em si
mesmo, em sua veracidade sustentada, que se faz a única testemunha. O homem não pensa
porque fala – isso seria, precisamente, submeter o pensamento à ordem material existente – o
Resta que o pensamento deve se dizer, se manifestar por obras, se comunicar a outros
seres pensantes. Ele deve fazê-lo através de línguas de significações arbitrárias. Mas nada
justifica que se veja nisso um obstáculo para a comunicação. Somente os preguiçosos tremeriam
frente à idéia desse arbitrário, vendo-o como o túmulo da razão. Ao contrário, é porque não há
código dado pela divindade, língua da língua, que a inteligência humana emprega toda a sua arte
em se fazer entender e em entender o que a inteligência vizinha lhe significa. O pensamento não
se diz em verdade, ele se exprime em veracidade. Ele se divide, ele se relata, ele se traduz por
um outro que fará, para si, um outro relato, uma outra tradução, com uma única condição: a
vontade de comunicar, a vontade de adivinhar o que o outro pensou e que nada, afora seu relato,
garante, que nenhum dicionário universal explica como deve ser entendido. A vontade adivinha
a vontade. É nesse esforço comum que toma sentido a definição de homem como uma vontade
servida por uma inteligência. «Penso e quero comunicar meu pensamento: imediatamente
minha inteligência emprega, com arte, signos quaisquer, os combina, os compõe, os analisa – e
eis uma expressão, uma imagem, um fato material que será, desde então, para mim o retrato de
um pensamento, isto é, de um fato imaterial. A cada vez que contemplá-lo, este retrato me
recordará meu pensamento, sobre o qual então pensarei. Posso, assim, falar a mim mesmo
quando quiser. No entanto, um dia eu me encontro face a outro homem: eu repito, em sua
presença, meus gestos e palavras e ele, se assim o quiser, vai me adivinhar (…) Ora, não se pode
convir com palavras a significação de palavras. Um quer falar, o outro quer adivinhar – eis tudo.
Desse concurso de vontades resulta um pensamento visível para dois homens, ao mesmo tempo.
A princípio, ele existe imaterialmente para alguém que, em seguida, o diz a si mesmo, dando-lhe
uma forma para seu ouvido ou para seus olhos; e que, enfim, deseja que essa forma, que esse ser
material reproduza para um outro homem o mesmo pensamento primitivo. Essas criações ou, se
assim se prefere, essas metamorfoses são o efeito de duas vontades que se ajudam entre si.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 61
Assim, o pensamento torna-se palavra; depois, esta palavra, ou vocábulo, volta a ser
pensamento; uma idéia se faz matéria e essa matéria se faz idéia; e tudo isso é o efeito da
vontade. Os pensamentos voam de um espírito a outro nas asas da palavra. Cada vocábulo é
enviado com a intenção de carregar um só pensamento, mas, apesar disso, essa palavra, esse
vocábulo, essa larva se fecunda pela vontade do ouvinte; e o representante de uma mônada
torna-se o centro de uma esfera de idéias que irradiam em todos os sentidos, de forma que o
falante, para além do que quis dizer, disse realmente uma infinidade de coisas; ele formou o
corpo de uma idéia com tinta, e essa matéria destinada a envolver misteriosamente um só ser
recursos que põe em ação são simplesmente os de toda situação de comunicação entre dois seres
racionais. A relação de dois ignorantes com o livro que eles não sabem ler somente radicaliza
as palavras em pensamentos. Essa vontade que preside à operação não é uma receita de
taumaturgo. Ela é esse desejo de compreender e de se fazer compreender, sem o qual nenhum
em seu verdadeiro sentido: não o derrisório poder de suspender os véus das coisas, mas a
potência de tradução que confronta um falante a outro falante. É essa mesma potência que
ensinamento do Fedro, dois tipos de discursos, um dos quais privado do poder de «se socorrer a
si próprio» e condenado a sempre dizer estupidamente a mesma coisa. Toda palavra, dita ou
escrita, é uma tradução que só ganha seu sentido na contra-tradução, na invenção das causas
possíveis para o som que ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar que se apega a
todos os indícios, para saber o que tem a lhe dizer um animal racional que a considera como a
em espírito. Compreende-se que eles as calem aos profanos. Para esses últimos, como para todo
ser racional, resta, assim, esse movimento da palavra que é, ao mesmo tempo, distância
comunicar-se com outras e de verificar sua similitude com elas. «O homem é condenado a sentir
e se calar ou, se quer falar, a falar indefinidamente, pois ele sempre tem o que retificar, para mais
ou para menos, naquilo que acaba de dizer (…) porque, o que quer que se diga, é preciso
apressar-se em acrescentar: não é isso; e, como a retificação não é mais plena do que o primeiro
impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade, mesmo quando a sentimos, nos faz falar como
poetas, narrar as aventuras de nosso espírito e verificar se são compreendidas por outros
aventureiros, comunicar nosso sentimento e vê-lo partilhado por outros seres sencientes. A
improvisação é o exercício pelo qual o ser humano se conhece e se confirma em sua natureza de
ser razoável, isto é, de animal «que faz palavras, figuras, comparações para contar o que pensa a
seus semelhantes»48. A virtude de nossa inteligência está menos em saber, do que em fazer.
«Saber não é nada, fazer é tudo». Mas esse fazer é, fundamentalmente, ato de comunicação. E,
portanto, «falar é a melhor prova da capacidade de fazer o que quer que seja»49. No ato de
palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a
mesma coisa. Ele se comunica como artesão: alguém que maneja as palavras como
instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto
47 Ibid., p. 231.
48 EM, p. 163.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 63
por palavras de seu discurso: «Quando o homem age sobre a matéria, as aventuras desse corpo
tornam-se a história das aventuras de seu espírito. E a emancipação do artesão é, antes de mais
nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade material é da natureza do
discurso. Ele se comunica em poeta: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua
emoção, partilhável. Por isso, o exercício da palavra e a concepção de qualquer obra como
discurso são um prelúdio para toda aprendizagem, na lógica do Ensino Universal. É preciso que
o artesão fale de suas obras para se emancipar; é preciso que o aluno fale da arte que quer
aprender. «Falar das obras dos homens é o meio de conhecer a arte humana.»50
Daí o estranho método pelo qual o Fundador, entre outras loucuras, fez aprender o
desenho e a pintura. Primeiro, ele pede ao aluno para falar sobre o que vai representar. Por
exemplo, um desenho a ser copiado. Seria perigoso dar às crianças explicações sobre as medidas
que deve tomar, antes de começar sua obra. Sabe-se porque: o risco é que com isso a criança se
sinta incapaz. Partir-se-á, portanto, da vontade que a criança tem de imitar. Mas essa vontade
será verificada. Alguns dias antes de colocar um lápis em suas mãos, ser-lhe-á oferecido um
desenho, para que observe e ser-lhe-á pedido que dê conta do que observou. Ela talvez diga, à
princípio, poucas coisas, do gênero: «Essa cabeça é bonita.» Mas o exercício será repetido, a
mesma cabeça lhe será reapresentada, sendo-lhe solicitado que observe ainda e que de novo fale,
mesmo que seja para repetir o que já disse. Assim ela se tornará mais atenta, mais consciente de
sua capacidade, mais capaz de imitar. Nós sabemos a razão desse efeito, que é completamente
diferente da memorização visual e do adestramento gestual. O que a criança verificou por meio
desse exercício é que a pintura é uma linguagem, que o desenho que lhe é dado a imitar lhe fala.
Mais tarde, ela será colocada diante de um quadro e lhe será solicitado que improvise acerca da
49 Ibid., p. 314.
50 EM, p. 347.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 64
unidade de sentimento presente, por exemplo, nessa pintura de Poussain que representa o
enterro de Fócion. Os especialistas, sem dúvida, se indignarão: como pretender saber que é isso
que Poussain quis colocar em seu quadro? O que esse discurso hipotético tem a ver com a arte
Responder-se-á que não se pretende saber o que Poussain quis fazer; o exercício consiste
apenas em imaginar o que ele pode ter querido fazer. Verifica-se, dessa forma, que todo saber
fazer é um querer dizer e que esse querer dizer se dirige a todo ser razoável. Em suma, verifica-
adágio de Horácio, não é o saber reservado unicamente aos artistas: a pintura, como a escultura,
a gravura e qualquer outra arte é uma língua que pode ser compreendida e falada por qualquer
um que tenha inteligência de sua língua. Em matéria de arte, como se sabe, «eu não posso» se
traduz habitualmente por «isso não me diz nada». A verificação da «unidade de sentimento»,
isto é, do querer dizer da obra, será, assim, meio de emancipação para aquele que «não sabe»
Decerto o que se pretende não é, longe disso, fazer obras de arte. Os visitantes que
apreciam as composições literárias dos alunos de Jacotot freqüentemente torcem o nariz diante
de seus desenhos e pinturas. Não se trata de formar grandes pintores, mas homens
emancipados, capazes de dizer eu também sou pintor – fórmula em que não entra qualquer
orgulho mas, bem ao contrário, o justo sentimento do poder de todo ser razoável. «Não há
orgulho em dizer, em voz alta: Eu também sou pintor! O orgulho consiste em dizer baixinho,
sobre os outros: Vocês também não são pintores»51 E eu também sou pintor significa: eu
também tenho uma alma, sentimentos a comunicar a meus semelhantes. Método do Ensino
Universal que é idêntico à sua moral: «Diz-se, no Ensino Universal, que todo homem que tem
alma nasceu com a alma. Acredita-se, no Ensino Universal, que o homem sente prazer e pena e
51 LM, p. 149.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 65
que só incumbe a ele saber quando, como e por que concurso de circunstâncias experimentou
essa pena ou esse prazer (…) Mais ainda, o homem sabe que há outros seres que a ele se
assemelham e aos quais poderá comunicar os sentimentos que experimenta, desde que os situe
nas circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres. Assim que ele conhece o que o
comoveu, ele pode se exercitar em comover os outros, se ele estuda a escolha e o emprego dos
prazer e a pena. Mas essa similitude não é, para cada um, senão uma virtualidade a ser
verificada. E ela só pode sê-lo através do longo caminho do dissemelhante. Devo verificar a razão
de meu sentimento, mas não posso fazê-lo aventurando-os nessa floresta de signos que, por si
sós, não querem dizer nada, não mantêm qualquer acordo. O que se concebe bem, repita-se com
Boileau, se enuncia claramente. Essa frase não quer dizer nada. Como todas as frases que
deslizam sub-repticiamente do pensamento para a matéria, ela não exprime nenhuma aventura
intelectual. Bem conceber é próprio do homem razoável. Bem enunciar é uma obra de artesão,
que supõe o exercício dos instrumentos da língua. É bem verdade que o homem razoável tudo
pode fazer. Mas ele deve aprender a língua própria a cada uma das coisas que quer fazer: sapato,
máquina ou poema. Consideremos, por exemplo, essa terna mãe, que vê seu filho voltar de uma
longa guerra. Ela experimenta uma comoção que não lhe permite falar. Mas «esses longos
abraços; esses enleios de um amor que parece temer uma nova separação; esses olhos onde a
alegria brilha, em meio a lágrimas; essa boca que sorri, para servir de intérprete para a equívoca
linguagem do choro; esses beijos, esses olhares, essa atitude, esses suspiros, mesmo esse
silêncio»53, em resumo, toda essa improvisação não é muito mais eloqüente do que os poemas?
52 EM, p. 322.
53 LM, p. 281.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 66
dessas idéias e desses sentimentos que se contradizem e se nuançam até o infinito, fazê-los viajar
no maqui de palavras e frases. E isso não se inventa. Pois, nesse caso, seria preciso supor um
tertius entre a individualidade desse pensamento e a língua comum. O que implicaria em uma
outra língua: mas como seu inventor seria entendido? É preciso aprender, buscar nos livros os
instrumentos dessa expressão. Decerto que não nos livros dos gramáticos: eles ignoram
completamente essa viagem. E, não no livro dos oradores: eles não buscam se fazer adivinhar,
eles querem se fazer escutar. Eles nada querem dizer, eles querem comandar: ligar as
inteligências, submeter as vontades, forçar a ação. É preciso aprender com aqueles que
arbitrário da língua, com os que tentaram fazer escutar o diálogo mudo da alma com ela mesma,
que comprometeram todo o crédito de sua palavra no desafio da similitude dos espíritos.
Aprendamos, portanto, com esses poetas decorados com o título de gênios. São eles que
nos revelarão o segredo dessa palavra imponente. O segredo do gênio é o do Ensino Universal:
aprender, repetir, imitar, traduzir, decompor, recompor. No século XIX, é bem verdade, certos
gênios começam a invocar uma inspiração mais do que humana. Mas os clássicos não partilham
do alimento desse tipo de gênios. Racine não tem vergonha de ser o que é: um miserável. Ele
aprende Eurípides e Virgílio de cor, como um papagaio. Ele procura traduzi-los, decompõe suas
expressões, as recompõe de outra maneira. Ele sabe que ser poeta é traduzir duas vezes: traduzir
em versos franceses a dor de uma mãe, a cólera de uma rainha ou a fúria de uma amante é
preciso traduzir não somente Fedro – o que era de se esperar – mas, também, Atalie e Josabeth.
Pois Racine não se ilude sobre o que faz. Não acredita conhecer melhor os sentimentos humanos
do que seus ouvintes. «Se Racine conhecesse melhor do que eu o coração de uma mãe, ele
perderia seu tempo tentando me dizer o que leu: eu jamais encontraria sua observação em
minhas lembranças, e não ficaria comovido. Esse grande poeta supõe, exatamente, o contrário:
ele só trabalha, só se esforça tanto, apaga cada palavra, modifica cada expressão porque espera
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 67
que seus leitores compreenderão tudo, precisamente, como ele próprio compreende.»54 Como
todo criador, Racine aplica instintivamente o Método – isto é, a moral – do Ensino Universal.
Ele sabe que não existem homens de grandes pensamentos, somente homens de grandes
expressões. Ele sabe que todo o poder do poeta se concentra em dois atos: a tradução e a contra-
tradução. Ele sabe que, em certo sentido, o poema é sempre a ausência de um outro poema:
como poema mudo que a ternura de uma mãe ou a fúria de uma amante improvisam. Em poucos
raros efeitos, o primeiro se aproxima do segundo, até o ponto de imitá-lo – como em Corneille –
em uma ou três sílabas: Eu! ou, ainda, Que morra! De resto, está suspenso pela contra-tradução
que fará o ouvinte. É essa contra-tradução que produzirá a emoção do poema; é essa «esfera de
idéias reluzentes» que reanimará as palavras. Todo o esforço, todo o trabalho do poeta é de
suscitar essa aura em torno de cada palavra da expressão. É por isso que ele analisa, disseca,
traduz as expressões dos outros, que ele apaga e corrige sem cessar as suas. Ele se esforça para
tudo dizer, sabendo que não se pode dizer tudo, mas que é essa tensão incondicional do tradutor
que abre a possibilidade de outra tensão, de outra vontade: a língua não permite dizer tudo, e «é
preciso que eu recorra e meu próprio gênio, ao gênio de todos os homens, para adivinhar o que
Racine quis dizer, o que ele diria na qualidade de homem, o que ele diz quando não fala, o que
Modéstia verdadeira do «gênio», isto é, do artista emancipado: ele emprega toda sua
potência, toda sua arte em nos mostrar seu poema como ausência de um outro, cujo
conhecimento ele nos concede o crédito de possuir tão bem quanto ele próprio. «Acreditamo-nos
Racine e temos razão.» Essa crença nada tem a ver com uma pretensão qualquer de ilusionista.
Ela não implica, de nenhuma maneira, que nossos versos valem os de Racine, nem que o valerão
em breve. Significa, para começo, que nós entendemos o que Racine tem a nos dizer, que seus
pensamentos não são absolutamente de espécie diferente dos nossos e que suas expressões se
54 LM, p. 284.
55 Ibid., p. 282.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 68
completam apenas pela nossa contra-tradução. Nós sabemos, antes de mais nada, por ele
mesmo, que somos homens iguais a ele. E, igualmente por seu intermédio, conhecemos a
potência da língua que nos faz sabê-lo por meio do arbitrário dos signos. Nossa «igualdade» com
Racine, nós a conhecemos como o fruto do trabalho de Racine. Seu gênio é de ter realizado sua
obra sob as bases do princípio da igualdade das inteligências, de não ter se acreditado superior
àqueles a quem falava, de ter inclusive trabalhado para que aqueles que prediziam que ele
passaria como o vento. Resta-nos verificar essa igualdade, conquistar essa potência por nosso
trabalho. Isso não significa: fazer tragédias iguais àquelas de Racine, mas empregar tanta
atenção, tanta pesquisa da arte para relatar o que sentimos e dá-lo a experimentar aos outros,
por meio do arbitrário da língua ou da resistência de toda matéria à obra de nossas mãos. A lição
cada um de nós é artista, na medida em que adota dois procedimentos: não se contentar em ser
homem de um ofício, mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão; não se
contentar em sentir, mas buscar partilhá-lo. O artista tem necessidade de igualdade, tanto
quanto o explicador tem necessidade de desigualdade. E ele esboça, assim, o modelo de uma
sociedade razoável, onde mesmo aquilo que é exterior à razão – a matéria, os signos da
Pode-se, assim, sonhar com uma sociedade de emancipados, que seria uma sociedade de
artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem,
entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência. Ela não conheceria
senão espíritos ativos: homens que fazem, que falam do que fazem e transformam, assim, todas
as suas obras em meios de assinalar a humanidade que neles há, como nos demais. Tais homens
saberiam que ninguém nasce com mais inteligência do que seu vizinho, que a superioridade que
alguém manifesta é somente o fruto de uma aplicação tão encarniçada ao exercício de manejar as
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 69
conseqüência de circunstâncias que não o obrigaram a buscar mais. Em suma, eles saberiam que
a perfeição alcançada por um ou outro em sua arte não é mais do que a aplicação particular do
poder comum a todo ser razoável, que qualquer um pode experimentar quando se retira para
esse espaço íntimo da consciência em que a mentira já não faz mais sentido. Eles saberiam que a
dignidade do homem é independente de sua posição, que «o homem não nasceu para tal ou tal
posição particular, mas para ser feliz em si mesmo, independentemente da sorte»56 e que esse
reflexo de sentimento que brilha nos olhos de uma esposa, de um filho ou de um amigo queridos
Tais homens não perderiam seu tempo criando falanstérios onde as vocações
distribuir harmoniosamente as funções e os recursos comuns. Para unir o gênero humano, não
há melhor laço do que essa inteligência idêntica em todos. É ela a justa medida do semelhante,
iluminando a doce inclinação do coração que nos leva à ajuda e ao amor recíprocos. É ela que
fornece ao semelhante os meios de aquilatar a dimensão dos serviços que pode esperar do
semelhante e de preparar, por sua vez, as condições para testemunhar-lhe seu reconhecimento.
Mas não falemos à moda dos utilitaristas. O principal serviço que o homem pode esperar do
homem refere-se a essa faculdade de comunicar entre si o prazer e a pena, a esperança e o medo,
para se comoverem reciprocamente: «Se os homens não tivessem a faculdade, uma faculdade
estrangeiros uns aos outros; eles se dispersariam ao acaso sobre o globo e as sociedades se
dissolveriam (…) O exercício dessa potência é, ao mesmo tempo, o mais doce de todos os nossos
56 Ibid., p. 243.
57 EM, p. 338.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 70
Não nos perguntemos, portanto, quais seriam as leis desse povo de sábios, seus
magistrados, suas assembléias e tribunais. O homem que obedece à razão não tem necessidade
de leis, nem de magistrados. Os estóicos já sabiam disso: a virtude que se conhece a si própria é
potência para todas as outras. Mas sabemos que essa razão não é privilégio dos sábios. Os
insensatos são os únicos a fazer questão da desigualdade e da dominação, a querer ter razão. A
razão começa ali onde cessam os discursos ordenados pelo objetivo de ter razão, e onde se
reconhece a igualdade: não uma igualdade decretada por lei ou pela força, nem uma igualdade
recebida passivamente, mas uma igualdade em ato, verificada a cada passo por esses
caminhantes, que, em sua constante atenção a si próprios e em sua infinita revolução em torno
De modo que é preciso inverter as questões dos zombeteiros. Como, se perguntam eles,
uma coisa como a igualdade das inteligências é pensável? E como sua opinião poderia se instalar,
possível sem a igualdade? A inteligência não é potência de compreensão, que se encarregaria ela
própria de comparar seu saber a seu objeto. Ela é potência de se fazer compreender, que passa
pela verificação do outro. E somente o igual compreende o igual. Igualdade e inteligência são
termos sinônimos, assim como razão e vontade. Essa sinonímia que funda a capacidade
intelectual de cada homem é também aquela que torna uma sociedade em geral possível. A
igualdade das inteligências é o laço comum do gênero humano, a condição necessária e suficiente
para que uma sociedade de homens exista. «Se os homens se considerassem como iguais, a
constituição estaria logo pronta»58. É verdade que nós não sabemos que os homens são iguais.
Nós dizemos que eles talvez sejam. Essa é a nossa opinião e nós buscamos, com aqueles que
acreditam nisso como nós, verificá-la. Mas nós sabemos que esse talvez é exatamente o que
capítulo quarto
A sociedade do desprezo
Mas não há sociedade possível! Há somente a sociedade que existe. Nós nos perdíamos
em nossos sonhos, eis que batem à nossa porta. É o enviado do Ministério da Instrução Pública,
que vem comunicar a M. Jacotot o decreto real acerca das condições requeridas para manter
uma escola no território do reino. É o oficial delegado pela Escola Militar de Delft, para pôr
ordem nessa bizarra Escola Normal Militar de Louvain. É o carteiro, trazendo a última
publicação dos Annales Academiæ Lovaniensis, com a oratio de nosso colega Franciscus
Josephus Dumbeck a investir contra o Universal – novo corruptor da juventude: «Cum porro
educatio universum populum amplectatur, cujus virtus primaria posita est in unitatis
concentu, perversa methodus hanc unitatem solvit, civitatemque scindit in partes sibi adversas
(…) Absit tamen hic a nostra patria furor! Enitendum est studiosis juvenibus, ut literarum et
pulchri studio ducti non solum turpem desidiam fugiant ut gravissimum malum ; sed ut
studeant Pudori illi et Modestiae, jam antiquitus divinis honoribus cultæ. Sic tantum optimi
erunt civis, legum vindices, bonarum artium doctores, divinorum præceptorum interpretes,
patriæ defensores, gentis totius decora (…) Tu quoque haec Audi, Regia Majestas! Tibi enim
civium tuorum, eorumque adeo juvenum, cura demandata est. Officium est sacrum dissipandi
59 «Ainda que a educação envolva a totalidade do povo e que sua primeira virtude resida na harmonia unitária, um
método perverso destrói essa unidade e cinde a sociedade em dois partidos opostos (…) Afugentemos essa loucura de
nosso país. Os jovens estudiosos devem se esforçar, não somente guiados pelo amor pelo belo e pelas letras, para fugir
à preguiça como o mal mais grave, mas também para se apegarem a esse Pudor, a essa Modéstia celebrados desde
sempre pela Antiguidade com honras divinas. Somente assim serão cidadãos de elite, vingadores das leis, mestres da
virtude, intérpretes dos mandamentos divinos, defensores da pátria, honra de toda uma raça (…) E tu, também,
escuta, Real Majestade! Pois é a ti que foi confiado o cuidado de teus sujeitos, sobretudo nessa tenra idade. É um dever
sagrado aniquilar mestres dessa têmpera, suprimir essas escolas de trevas.» Annales Academiaæ Lovaniensis, vol. IX,
1825-1826, pp. 216, 220, 222.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 72
O reino dos Países-Baixos é pequeno, mas civilizado como qualquer grande Estado. Nele,
a autoridade pública elege como uma de suas primeiras preocupações a educação das jovens
almas e a harmonia dos corações cidadãos. Aí, a possibilidade de abrir uma escola não é dada a
qualquer um, sobretudo não a alguém que não somente não apresenta certificado de capacidade,
mas ainda orgulha-se de ensinar o que ignora, excitando os zombeteiros contra mestres,
submestres, reitores, inspetores, comissários e ministros que têm uma idéia um pouco mais
elevada de seus deveres para com a juventude e a ciência. Absit hic a nostra patria furor!
Digâmo-lo à nossa maneira : «Levantando sua ignóbil cabeça, o embrutecimento grita-me: para
trás, inovador insensato! A espécie de que queres me privar está ligada a mim por laços
indissolúveis! Eu sou aquele que foi, que é e que será sobre Terra, enquanto as almas habitarem
corpos de argila. Hoje, mais do que nunca, não podes esperar sucesso. Eles acreditam estar
fazendo progressos e suas opiniões são solidamente estabelecidas sobre esse pivô; rio-me de teus
as leis da gravidade
Nós nos perdíamos contemplando a rotação dos espíritos pensantes em torno da verdade.
Todos os corpos se precipitam estupidamente para o centro. Havíamos dito que nada se devia
induzir das folhas aos espíritos e da matéria ao imaterial. A inteligência não segue as leis da
matéria. Isso, porém, só é válido para a inteligência de cada indivíduo tomado separadamente:
ela é indivisível, sem comunidade, sem partilha. Ela não pode, portanto, ser propriedade de
nenhum conjunto, sem o que ela não mais seria propriedade das partes. Logo, é preciso concluir
que a inteligência está somente nos indivíduos, mas que ela não está em sua reunião. «A
inerte e sem inteligência (…) Na cooperação de duas moléculas intelectuais que nomeamos
homens, há duas inteligências; elas têm a mesma natureza, mas não há inteligência única que
presida essa reunião. Na matéria, a gravidade é força única a animar a massa e as moléculas; na
classe dos seres intelectuais, a inteligência somente dirige indivíduos: sua reunião está
lingüística para significarem mutuamente seus pensamentos. Mas esse comércio só é possível
sob as bases de uma relação inversa, que submete a reunião das inteligências às leis de qualquer
entre si, as inteligências imateriais devem estar submetidas às leis da matéria. A livre revolução
de cada inteligência em torno do ausente astro da verdade, o vôo distante da livre comunicação
mundo dual. E talvez seja necessário conceder algum crédito à hipótese dos maniqueístas: eles
viam desordem na criação, explicando-a pelo concurso de duas inteligências. Não é só que haja
inteligentes não fazem uma criação inteligente. Quando o Visconde de Bonald proclama a
dos maniqueístas. Eles comparam os poderes da inteligência dos sábios e inventores aos
antagônicos. Assim o fazem J. Bentham e seu discípulo J. Mill, testemunhas da loucura das
revolucionárias francesas.
levianamente os autores dessas loucuras. Talvez seja preciso simplificar a hipótese: a divindade é
una, a criatura é que é dupla. A divindade deu à criatura uma vontade e uma inteligência para
responder às necessidades de sua existência. Ela as concedeu aos indivíduos, não à espécie. A
espécie não tem necessidade nem de uma, nem de outra. Ela não precisa cuidar de sua
conservação. São os indivíduos que a conservam. Somente eles precisam de uma vontade
razoável, para guiar livremente a inteligência posta a seu serviço. Em troca, não existe qualquer
razão a esperar do conjunto social. Ele existe porque existe, eis tudo. E ele só pode ser arbitrário.
Sabemos em que condição ele poderia se fundar na natureza: no caso da desigualdade das
inteligências. Nesse caso, como vimos, a ordem social seria natural: «As leis humanas, as leis de
convenção, seriam inúteis para conservá-la. A obediência a essas leis não seria mais um dever,
nem uma virtude; derivaria da superioridade da inteligência de cádis e janízaros; e esta espécie
Bem vemos que não é assim. Logo, apenas a convenção pode reinar na ordem social. Mas
imaginar uma outra hipótese: que cada uma das vontades individuais que compõem o gênero
humano seja razoável. Nesse caso, tudo se passaria como se o gênero humano fosse, ele próprio,
sem solavancos, sem desvios, sem aberrações. Como conciliar, porém, uma tal uniformidade
com a liberdade de vontades individuais que podem, cada uma, quando melhor lhe apraz, usar
ou não a razão? «O momento da razão para um corpúsculo não é o mesmo para os átomos
vizinhos. Sempre há, em cada instante, razão, irreflexão, paixão, calma, atenção, vigília, sono,
repouso, caminhada, em todos os sentidos; logo, em um dado instante, uma corporação, uma
nação, uma espécie, um gênero estão, ao mesmo tempo, na razão e na desrazão, e o resultado
62 Le., p. 75.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 75
não depende em nada da vontade dessa massa. Logo, é precisamente porque cada homem é livre
O Fundador sublinhou os seus logo: não é uma verdade incontestável que ele nos
apresenta, é uma suposição, uma aventura de seu espírito que ele está narrando, a partir dos
fatos que observou. Já vimos que o espírito, a aliança da vontade e da inteligência, conhecia duas
modalidades fundamentais: a atenção e a distração. Basta que haja distração, que a inteligência
se disperse, para que seja levada pela gravitação da matéria. Eis porque alguns filósofos e
teólogos explicam o pecado original como uma simples distração. Nesse sentido, podemos com
eles dizer que o mal não é mais do que ausência. Mas sabemos, também, que essa ausência é
uma recusa. Aquele que se distrai não vê por que razão deveria prestar atenção. A distração é, de
início, preguiça, desejo de subtrair-se ao esforço. A própria preguiça não é, todavia, torpor da
carne, ela é ato de um espírito que subestima sua própria potência. A comunicação razoável se
funda na igualdade entre a estima de si e a estima dos outros. Ela favorece a contínua verificação
dessa igualdade. A preguiça que faz com que as inteligências caiam na gravidade material tem
por princípio o desprezo. Esse desprezo procura se fazer passar por modéstia: eu não posso, diz o
ignorante que pretende abster-se da tarefa de aprender. Sabemos por experiência o que essa
modéstia significa. O desprezo por si é sempre, também, desprezo pelos outros. Eu não posso,
diz o aluno que não quer submeter sua improvisação ao julgamento de seus pares. Não
compreendo vosso método, diz o interlocutor, não sou competente, nada sei sobre o assunto.
Compreende-se rapidamente o que isso quer dizer: «Isso não é o senso comum, pois eu não
compreendo; um homem como eu!»64. E assim ocorre em todas as idades e em todas as camadas
da sociedade. «Esses seres que se pretendem desafortunados pela natureza não querem mais do
que pretextos para se dispensarem do estudo que lhes desagrada, do exercício de que não
gostam. Quereis uma prova? Esperai um instante, deixai que falem; escutai até o fim. Não ouvis,
por detrás da precaução oratória desse modesto personagem que não tem, diz ele, espírito
poético, a solidez de julgamento que ele se atribui? Que perspicácia a distingui-lo! Nada lhe
superioridade de outrem, em um gênero, para melhor fazer reconhecer nossa própria, em outro
gênero; e não é difícil ver, na continuação de seu discurso, que nossa superioridade sempre
a paixão da desigualdade
Pode-se, portanto, atribuir a causa da distração pela qual a inteligência consente com o
destino da matéria a uma só paixão: o desprezo, a paixão pela desigualdade. Não é o amor pela
riqueza nem por qualquer bem que perverte a vontade, é a necessidade de pensar sob o signo da
desigualdade. A esse respeito, Hobbes fez um poema mais atento do que Rousseau: o mal social
não vem do primeiro que pensou em dizer «Isso me pertence»; ele vem do primeiro que pensou
em dizer: «Não és igual a mim». A desigualdade não é a conseqüência de nada, ela é uma paixão
primitiva; ou, mais exatamente, ela não tem outra causa, a não ser a igualdade. A paixão pela
desigualdade é a vertigem da igualdade, a preguiça diante da enorme tarefa que ela requer, o
medo diante de um ser racional que se respeita a si próprio. É mais fácil se comparar,
estabelecer a troca social como um comércio de glória e de desprezo em que, a cada inferioridade
que se confessa, recebe-se, em contrapartida, uma superioridade. Assim, a igualdade dos seres
diremos que é a vontade da preponderância que submeteu a vontade livre ao sistema material
da gravidade, que fez com que o espírito caísse no mundo cego da gravitação. É a desrazão da
essência, e engendra a agregação como fato e o reino da ficção coletiva. O amor da dominação
65 LM, p. 278.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 77
obriga os homens a se protegerem uns dos outros, no seio de uma ordem convencional que não
pode ser razoável, posto que somente é feita da desrazão de cada um, dessa submissão à lei de
outrem que o desejo de lhe ser superior fatalmente acaba por implicar. «Esse ser de nossa
imaginação a que chamamos gênero humano se compõe da loucura de cada um de nós, sem
corpo de argila e submetida à divindade maléfica da matéria. Não há nem divindade maléfica,
nem massa fatal, nem mal radical. Apenas essa paixão, ou essa ficção da desigualdade, que
desenvolve suas conseqüências. Por isso, pode-se descrever a submissão social de duas maneiras
aparentemente contraditórias. Pode-se dizer que a ordem social está submetida a uma
necessidade material irrevogável, que ela roda como os planetas, segundo leis eternas que
nenhum indivíduo pode mudar. Mas pode-se, igualmente, dizer que ela não é mais do que uma
ficção. E que nenhum gênero, espécie, corporação tem qualquer realidade. Somente os
indivíduos são reais, somente eles têm uma vontade e uma inteligência; a totalidade da ordem
que os submete ao gênero humano, às leis da sociedade e às diversas autoridades não é mais do
que uma criação da imaginação. Estes dois modos de falar acabam por se equivaler: é a desrazão
de cada um que cria e recria, incessantemente, essa massa arrasadora, essa ficção derrisória à
qual cada cidadão deve submeter sua vontade, mas à qual, também, cada homem tem meios de
subtrair sua inteligência. «O que fazemos, o que dizemos nos tribunais, como nas assembléias,
na guerra, é regido por suposições. Tudo é ficção: somente a consciência e a razão de cada um de
obedecesse à razão, leis, magistrados, tudo seria inútil; mas as paixões o conduzem: ele se
revolta, e por isso é punido de maneira humilhante. Cada um de nós se encontra forçado a
buscar em um o apoio contra o outro (…) É evidente que, a partir do momento em que os
homens se põem em sociedade para buscar proteção uns contra os outros, essa necessidade
66 Ibid., p. 91.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 78
recíproca anuncia uma alienação da razão, que não promete qualquer resultado razoável. O que
pode a sociedade, senão nos acorrentar ao estado infeliz a que nós mesmos nos votamos!»67.
Assim, o mundo social não é apenas o mundo da não-razão, mas o da desrazão, isto é, de
inteligência quanto o fariam para a comunicação razoável das obras de seu espírito.
Simplesmente, esse trabalho é um trabalho de luto. A guerra é a lei da ordem social. Não
imaginemos, entretanto, sob esse nome de guerra, nenhuma fatalidade de forças materiais,
nenhum desencadeamento de hordas dominadas por instintos bestiais. A guerra, como qualquer
obra humana, é, antes de tudo, ato de palavra. Mas essa palavra recusa a aura de idéias
irradiantes do contra-tradutor suscitado por uma outra inteligência ou por um outro discurso. A
inteligência não mais se ocupa de adivinhar e de se fazer adivinhar. Ela tem por objetivo o
consentimento.
A vontade pervertida não cessa de empregar a inteligência, mas sob a base de uma
distração fundamental. Ela habitua a inteligência a só ver o que concorre para a preponderância,
o que serve para anular outra inteligência. O universo da desrazão social é feito de vontades
servidas por inteligências. No entanto, cada uma dessas vontades dá por sua missão destruir
uma outra vontade, impedindo a outra inteligência de ver. E sabemos que este resultado não é
muito difícil de se obter. Basta deixar agir a radical exterioridade da ordem da língua em relação
à ordem da razão. A vontade razoável, guiada por sua ligação distante com a verdade e por sua
vontade de falar a seu semelhante, controla essa exterioridade, ela a supera pela força da
atenção. A vontade distraída, tendo abandonado a via da igualdade, fará uso contrário dessa
exterioridade, sob o modo retórico, para precipitar a agregação dos espíritos, sua queda no
a loucura retórica
Poder da retórica, dessa arte de raciocinar que se esforça em anular a razão. Desde que
Aristóteles sobre esse poder da falsificação, que imita o poder da verdade. Assim, em 1816 o
genebrino Étienne Dumont traduziu para o francês o Traité des sophismes parlamentaires de
seu amigo Jeremie Bentham. Jacotot não menciona essa obra, mas sua marca está sensível nos
no centro de sua análise a desrazão das assembléias deliberantes. O léxico que ele usa para falar
do assunto é bastante próximo daquele empregado por Dumont. E sua análise da falsa modéstia
cujas engrenagens um e outro desmontam, seu olhar e sua moral diferem, contudo,
pelos beneficiários da ordem existente para se opor a qualquer reforma progressista. Ele
denuncia as alegorias que hipostasiam a ordem instituída, as palavras que lançam, conforme a
oportunidade, um véu róseo ou sinistro sob as coisas, os sofismas que servem para assimilar
qualquer proposição de reforma ao espectro da anarquia. Para ele, esses sofismas se explicam
pelo jogo de interesses, seu sucesso pela fraqueza intelectual das raças parlamentares e pelo
68«A cada vez que se assinala um vício de nossas instituições, propondo-se um remédio, levanta-se imediatamente um
grande funcionário que, sem discutir a proposição, exclama, com ar compungido: “Eu não estou preparado para
examinar a questão, confesso minha incapacidade, etc.” Mas eis o sentido escondido dessas palavras: “Se um homem
como eu, bem colocado e dotado de um gênio proporcional a essa dignidade, confessa sua incapacidade, quanto não
haveria de presunção, quanto não haveria de loucura de parte daqueles que pretendem ter uma opinião já formada!” É
um método indireto de intimidação; é a arrogância, sob um tênue véu de modéstia.» Traité des sophismes
parlementaires, trad. Regnault, Paris, 1840, p. 84.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 80
formados para a liberdade podem combatê-los eficazmente. E Dumont, menos impetuoso que
seu amigo, insiste na esperança razoável que assimila a marcha das instituições morais à das
ciências físicas. «Não haveria em moral, como em física, erros que a filosofia fez desaparecer?
(…) É possível atacar os falsos argumentos até o ponto em que eles não mais ousem se mostrar.
Não tomo por prova mais do que a doutrina tanto tempo famosa, mesmo na Inglaterra, sobre o
desinteressada com os sofismas do interesse privado. Isso supõe a cultura de uma razão que
campo da política, criando seres a partir de palavras, forjando por meio dessas palavras
raciocínios absurdos e, dessa forma, ocultando a verdade com o véu do preconceito. De forma
que «a expressão figurada de corpo político produziu um grande número de idéias falsas e
bizarras. Uma analogia unicamente fundada em metáforas serviu de base para pretensos
argumentos e a poesia invadiu o domínio da razão»70. A essa linguagem figurada, cuja figuração
concede ao interesse não razoável todos os seus disfarces, é possível opor uma linguagem
razão sobre a intenção de falar. A linguagem poética que se reconhece como tal não contradiz a
razão. Ao contrário, ele recomenda a cada sujeito falante não tomar o relato de suas aventuras de
espírito pela voz da verdade. Cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas. A perversão
se introduz quando esse poema se dá por outra coisa além do poema, quando pretende se impor
como verdade e forçar a ação. A retórica é uma poesia pervertida. Isso quer dizer também que,
em sociedade, não se sai da ficção. A metáfora é solidária com a demissão original da vontade. O
69 Dumont, prefácio de Bentham, Tactique des assemblées parlementaires, Genève, 1816, p. XV.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 81
corpo político é uma ficção, mas uma ficção não é uma expressão figurada, à qual se poderá opor
uma definição exata do conjunto social. Há, de fato, uma lógica dos corpos à qual ninguém pode,
como sujeito político, se subtrair. O homem pode ser dotado de razão, o cidadão não pode sê-lo.
A retórica, como se disse, tem por princípio a guerra. Não busca a compreensão, mas o
aniquilamento da vontade adversa. A retórica é uma palavra de revolta contra a condição poética
do ser falante. Ela fala para fazer calar. Tu não falarás mais, não pensarás mais, tu farás o
seguinte, tal é seu programa. Sua eficácia é regulada pela sua própria suspensão. A razão ordena
que se fale sempre, a desrazão retórica não fala senão para fazer advir o momento do silêncio.
Momento do ato, dir-se-ia habitualmente, em homenagem àquele que da palavra faz uma ação.
Mas esse momento é, muito pelo contrário, o da falta de ato, da inteligência ausente, da vontade
subjugada, dos homens submetidos à única lei da gravidade. «Os sucessos do orador são obra do
momento; ele suspende um decreto como se assalta uma fortificação (…) A extensão dos
mérito de semelhantes discursos. É uma frase, uma palavra, por vezes uma entonação, um gesto
que despertaram o povo adormecido e levantaram a massa, que sempre tende a recair por força
de seu próprio peso. Enquanto Manlius pode mostrar o Capitólio, esse gesto o salvou. A cada vez
que Fócion podia aproveitar a oportunidade de dizer uma frase, Demóstenes era vencido.
Mirabeau o havia compreendido, ele, que dirigia os movimentos, comandava as pausas através
de frases e palavras; respondia-se-lhe em três pontos, ele replicava, discutia longamente, para
hábitos parlamentares, ele fechava a discussão com uma só palavra. Por mais longo que seja o
discurso de um orador, não é seu tamanho, não são seus desenvolvimentos que lhe concedem a
desenvolvimentos. O orador é aquele que triunfa; é aquele que pronunciou a palavra, a frase que
homem superior que faz pesar a balança será sempre aquele que pressente melhor quando e
como ela vai pesar. O que melhor submete os outros é aquele que se submete a si próprio. E
submetendo-se à sua própria desrazão, ele faz triunfar a desrazão da massa. Sócrates já ensinava
a Alcibíades, como a Cálicles: quem pretende ser mestre do povo é forçado a ser seu escravo.
Enquanto Alcibíades diverte-se com a figura simplória de um sapateiro, em sua barraca, e glosa
sobre a estultice dessas pessoas, o filósofo se contenta em lhe replicar: «Por que então não vos
os inferiores superiores
Isso funcionava antigamente, dirá o espírito superior, habituado à grave palavra das
assembléias censitárias; isso valia para as assembléias demagógicas, compostas pela escumalha,
Examinemos, porém, melhor as coisas. Essa estupidez que leva o povo ateniense a inclinar-se,
ora por Ésquines, ora por Demóstenes, tem um conteúdo muito preciso. O que o faz inclinar-se,
alternativamente, ora para um, ora para outro, não é sua ignorância ou sua versatilidade. É que
ateniense: o sentimento de sua evidente superioridade sobre o povo imbecil dos tebanos. Em
resumo, o móvel que faz girar as massas é o mesmo que anima os espíritos superiores, o mesmo
que faz girar a sociedade sobre si própria, de geração em geração: o sentimento da desigualdade
das inteligências – esse sentimento que, para distinguir os espíritos superiores, os confunde na
crença universal. Ainda hoje, o que permite ao pensador desprezar a inteligência do operário,
senão o desprezo do operário pelo camponês, do camponês por sua mulher, de sua mulher pela
esposa do vizinho e, assim, indefinidamente? A desrazão social encontra sua fórmula resumida
no que se poderia chamar de paradoxo dos inferiores superiores: cada um se submete àquele
que considera como seu inferior, estando submetido à lei da massa pela própria pretensão de se
distinguir.
assembléias de notáveis graves e respeitáveis. Em toda parte onde homens se agregam sob as
bases de sua superioridade, eles se sujeitam à lei das massas materiais. Uma assembléia
portanto, bem mais provavelmente à estúpida lei da matéria, do que uma assembléia
democrática. «Um senado tem uma conduta que não pode mudar por si próprio, e o orador que
sempre mais bem sucedido do que todos os outros.»73 Appius Claudius, o homem da oposição
radical a qualquer reivindicação da plebe, foi o orador senatorial por excelência, porque
compreendeu melhor do que qualquer outro a inflexibilidade do movimento que atraía para
«sua» direção própria as cabeças da elite romana. Sua máquina retórica, a máquina dos homens
superiores, engasgou, como se sabe, uma só vez: quando os plebeus se reuniram no Aventino.
Nesse dia, para evitar o desastre, foi preciso um louco – isso é, um homem razoável – capaz
supondo que suas bocas emitiam uma língua e não apenas um punhado de ruídos; falar-lhes,
supondo que eles tinham inteligência para compreender as palavras dos espíritos superiores; em
social não é concebível, possível, senão sob a base da igualdade primeira das inteligências. A
desigualdade não pode se pensar a ela própria. Em vão, até Sócrates aconselha a Cálicles que,
para sair do círculo do mestre-escravo, ele aprenda a verdadeira igualdade, que é proporção, de
modo a assim entrar no círculo daqueles que pensam a justiça a partir da geometria. A cada vez
que há casta, o superior submete sua razão à lei do inferior. Uma assembléia de filósofos é um
corpo inerte que gira sobre o eixo de sua própria desrazão, a desrazão de todos. Em vão, a
precisamente porque não há qualquer razão natural para a dominação que a convenção
na velha aporia: o superior cessa de sê-lo quando cessa de dominar. Monsieur le Duc de Lévis,
administrados a seus administradores? Não estivera o Senhor Duque distraído, como todos os
espíritos superiores, ele observaria que é seu sistema, o da desigualdade das inteligências, que é
inteligências, acreditar reconhecer um imbecil, na figura de seu prefeito? Não lhe será preciso,
então, testar ministros e prefeitos, burgomestres e chefes de gabinete, afim de verificar sua
superioridade? E como assegurar-se de que jamais se meterá entre eles um imbecil qualquer,
se faz obedecer por seus escravos, o branco pelos negros, é porque ele não lhes é nem superior,
homens, criando a dominação e forçando à obediência, é porque elas são as únicas a poder fazê-
lo. «É precisamente porque nós somos todos iguais por natureza que devemos ser todos
73 LM, p. 339.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 85
sociedade só existe pelas distinções e a natureza não apresenta senão igualdades. É impossível
que a igualdade subsista de fato por muito tempo; mas, mesmo quando destruída, ela permanece
A igualdade das inteligências ainda faz mais pela desigualdade: ela prova que a abolição
da ordem existente seria tão pouco razoável quanto essa própria ordem. «Se me fosse
perguntado: o que pensais da organização das sociedades humanas? Esse espetáculo me parece
contrário à natureza, responderia eu. Nada, aí, está em seu lugar, posto que há lugares diferentes
para seres não diferentes. De tal modo que, quando se propõe à razão mudar esta ordem, ela é
obrigada a reconhecer sua insuficiência. Ordem por ordem, lugares por lugares, diferenças por
desigualitários serão sempre impotentes para pensar. O homem razoável conhece a razão da
desrazão cidadã. No entanto, ele a reconhece, ao mesmo tempo, como insuperável. Ele é o único
a conhecer o círculo da desigualdade. Mas ele próprio, na condição de cidadão, aí está preso.
«Não há senão uma razão: ora, ela não organizou a ordem social. De forma que a felicidade não
poderia estar presente»77. Os filósofos, sem dúvida, têm razão em denunciar aqueles que buscam
racionalizar a ordem existente. Esta ordem não tem razão. Mas eles se iludem, perseguindo a
idéia de uma ordem social enfim racional. São bastante conhecidas duas figuras extremas e
simétricas dessa pretensão: o velho sonho platônico do rei filósofo e o sonho moderno da
soberania do povo. Não resta dúvida de que, como qualquer outro homem, um rei também pode
74 LM, p. 109.
75 EM, pp. 194-195.
76 EM, p. 195.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 86
ser filósofo. Mais precisamente, na condição de homem, ele o é. Mas, como chefe, um rei tem a
razão de seus ministros, que têm a razão de seus chefes de gabinete que, por sua vez, têm a razão
de todo mundo. Ele não depende, é bem verdade, da razão de seus superiores, mas somente da
razão dos inferiores. O rei filósofo ou o filósofo rei faz parte da sociedade; e ela lhe impõe, como
Por isso mesmo, a outra figura do sonho filosófico, a soberania do povo, não se mostra
mais sólida. Pois esta soberania, que se apresenta como um ideal a realizar, ou como um
princípio a impor, sempre existiu. Ainda ecoam na história os nomes desses reis que perderam o
trono por haver desconsiderado esse fato: nenhum deles reina, senão pelo peso que lhes atribui a
massa. Os filósofos se indignam. O povo, dizem, não pode alienar sua soberania. Objetar-se-á
que, talvez, ele não possa, mas que ele sempre o fez, desde o princípio dos tempos. «Os reis não
fazem os povos, por mais que queiram. Mas os povos podem fazer chefes, e eles sempre assim
quiseram«78. O povo se aliena em seu chefe exatamente da mesma forma como o chefe se aliena
em seu povo. Essa sujeição recíproca é o próprio princípio da ficção política como alienação
imaginar um povo de homens. Mas esta é uma expressão contraditória, um ser impossível. Não
há senão povos de cidadãos, de homens que alienaram sua razão à ficção desigualitária.
Não confundamos essa alienação com uma outra. Não estamos afirmando que o cidadão
é o homem ideal, revestido os despojos do homem real, o habitante de um céu político igualitário
igualdade entre os homens, isto é, entre indivíduos que se vêm somente como seres razoáveis. E
desigualdade.
77 LM, p. 363.
78 «Le Contrat social», Journal de philosophie panécastique, t. V, 1838, p. 62.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 87
O homem razoável sabe, pois, que não existe ciência política, que não há política da
verdade. A verdade não decide qualquer conflito da praça pública. Ela não fala ao homem, senão
na solidão de sua consciência. Ela se retira assim que explode o conflito entre duas consciências.
Quem espera reencontrá-la deve, em todo caso, saber que ela caminha solitária e sem cortejo.
Em troca, as opiniões políticas jamais vêm sem um imponente cortejo: Fraternidade ou morte,
dizem elas; ou ainda, quando chega sua vez, Legitimidade ou morte, Oligarquia ou morte, etc.
«O primeiro termo varia, mas o segundo é sempre expresso ou subentendido nas bandeiras, nos
ou morte. Nunca falta a morte; conheço, inclusive, filantropos que dizem: Supressão da pena de
morte ou morte»79 A verdade, quanto a ela, não proclama sanções; nunca vem ligada à morte.
Digâmo-lo, portanto, com Pascal: sempre se encontrou um meio de conceder a justiça à força,
mas está-se longe de encontrar aquele de conceder força à justiça. Esse projeto é, por si só, sem
sentido. Uma força é uma força. Pode ser razoável empregá-la. É, porém, insensato querer torná-
la razoável.
Resta, pois, ao homem razoável submeter-se à loucura cidadã, esforçando-se para não
perder sua razão. Os filósofos acreditam ter encontrado o meio: a obediência não pode ser
passiva, dizem eles, não pode haver deveres sem direitos! Mas isso é falar distraidamente. Não
há nada, nunca haverá, na idéia de dever que implique a idéia de direito. Quem se aliena, se
aliena absolutamente. Supor uma contrapartida para isso, é um pobre subterfúgio da vaidade,
sem outro efeito além de racionalizar a alienação, tornando-a capaz de melhor enredar aquele
que acredita preservar seus direitos. O homem razoável não se permite essas dissimulações. Ele
sabe que a ordem social nada tem a lhe oferecer de melhor, do que a superioridade dessa ordem
sobre a desordem. «Uma ordem qualquer, desde que não possa ser perturbada, eis o que são as
o que se encontrou de melhor para limitar a violência, deixando à razão os asilos, em que ela
pode se exercer mais livremente. De modo que o homem razoável jamais se considera acima das
leis. A superioridade que, em caso contrário, ele se atribuiria o faria cair no destino comum
desses superiores inferiores que constituem a espécie humana e entretêm sua desrazão. Ele
considera a ordem social como um mistério situado para além do poder da razão, obra de uma
razão superior que determina o sacrifício parcial de sua própria razão. Ele se submeterá, na
qualidade de cidadão, ao que a desrazão dos governantes exige, evitando apenas adotar as razões
que ela proclama. Mas ele não abdica de sua razão, ele apenas a reconduz a seu princípio
primeiro. A vontade razoável, como vimos, é antes de qualquer coisa a arte de se vencer a si
próprio. A razão se conservará fiel, controlando seu próprio sacrifício. O homem razoável é
virtuoso. Ele aliena parcialmente sua razão ao comando da desrazão, para manter esse foco de
racionalidade que é a capacidade de se vencer a si próprio. Eis como a razão conservará sempre
que a funda. «Quando dois homens se encontram, eles se tratam polidamente, como se
acreditassem serem iguais em inteligência; mas, quando um dos dois está no meio do país do
outro, já não se fazem mais tantas cerimônias: abusa-se da força, como da razão; tudo, no
intruso, denota uma origem bárbara. Ele é tratado sem boas maneiras, como a um idiota. Sua
pronúncia faz dobrar de rir, a inabilidade dos gestos e tudo nele anuncia a espécie bastarda à
qual pertence: esse é um povo desajeitado, aquele é leviano e frívolo, o outro é grosseiro, outro
ainda, orgulhoso e afetado. Em geral, cada povo se crê, de boa fé, superior a outro; e basta que as
paixões se intrometam, eis que a guerra explode: mata-se tanto quanto se pode, de uma parte e
de outra, como se esmagam insetos. Mais se mata, mais se é glorioso. É-se recompensado por
80 LE, p. 123.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 89
cabeça abatida; pede-se uma medalha por uma aldeia queimada, uma grande comenda no caso
de uma cidade grande, segundo a tarifa; e esse tráfico de sangue é chamado de amor à pátria (…)
é em nome da pátria que vos lançais como bestas selvagens sobre o povo vizinho; e se vos
perguntassem o que é a pátria, vos mataríeis uns aos outros, antes de chegar a um acordo sobre a
questão»81
guerras injustas, guerras de conquista que o delírio de dominação engendra; e há guerras justas,
aquelas em que se defende o solo da pátria atacada. O antigo artilheiro Joseph Jacotot deve sabê-
lo – ele que defendeu em 1792 a pátria em perigo e que em 1815 se opôs com todas as suas forças
de parlamentar ao retorno do rei, trazido pelos invasores. Mas sua experiência lhe permitiu
observar que a moral da coisa era completamente diferente do que parecia no início. O defensor
da pátria atacada faz, como cidadão, o que faria como homem. Ele não tem que sacrificar sua
razão à virtude. Pois a razão ordena ao animal razoável fazer o que puder para conservar a
qualidade de ser vivo. A razão, nesses casos, se reconcilia com a guerra e o egoísmo com a
virtude. Não há, pois, mérito particular em nada disso. Em compensação, aquele que obedece às
ordens da pátria conquistadora faz, se é razoável, o meritório sacrifício de sua razão ao mistério
da sociedade. É preciso maior virtude para guardar sua fortaleza interior e para saber, uma vez o
Mas, para isso, a guerra dos exércitos é ainda a menor das provações da razão. Nessa
situação, ela se contenta em administrar sua própria suspensão. Basta-lhe o auto-domínio para
obedecer à voz da autoridade – cuja potência é sempre mais do que suficiente para fazer-se
escutar por todos, sem qualquer equívoco. Bem mais perigosa é a ação nesses lugares em que a
81 LM, p. 289-290.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 90
que se delibera sobre a lei, nos tribunais em que se julga sobre sua aplicação. Esses lugares
apresentam à razão um mesmo mistério, diante do qual tudo o que se pode fazer é inclinar-se.
Em meio à confusão das paixões e dos sofismas da desrazão, a balança pende, a lei faz ouvir sua
voz, à qual tratar-se-á de obedecer como a um general. Contudo, esse mistério exige do homem
razoável sua participação. Ele conduz a razão não mais somente para o terreno do sacrifício, mas
para outro que está certo de ser o seu: o do raciocínio – quando, como bem sabe o homem
razoável, tudo o que interessa é o combate, somente prevalecem as leis da guerra. O sucesso
depende da habilidade e da força do lutador, não de sua razão. Eis porque, pela arma da retórica,
a paixão reina aí. A retórica, como se sabe, nada tem a ver com a razão. Mas seria a recíproca
verdadeira? Não seria a razão, de forma geral, esse controle de si próprio, que permite ao ser que
fala realizar, em qualquer domínio, uma obra de artista? A razão não seria ela própria, se não
facultasse o poder de falar na assembléia, como em todo lugar. A razão é o poder de aprender
todas as línguas. Ela pode, portanto, aprender a língua da assembléia e do tribunal. Ela pode
homem razoável se deixar abater no tribunal, vergonhoso para Sócrates ter abandonado a vitória
e sua própria vida nas mãos de Meletos e Anitos. É preciso aprender a língua de Anitos e
Meletos, a língua dos oradores – que se aprende como todas as outras, ou mesmo mais
facilmente do que qualquer outra, pois seu vocabulário e sua sintaxe estão presos a um estreito
círculo. Aí o tudo está em tudo se aplica melhor do que em qualquer outra circunstância. É pois
preciso aprender qualquer coisa – um discurso de Mirabeau, por exemplo – e a isso relacionar
todo o resto. Essa retórica que tanto trabalho exige dos aprendizes do Velho é para nós como um
jogo: «Sabemos tudo, antecipadamente; tudo está em nossos livros; basta mudar os nomes»82.
82 LM, p. 359.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 91
Mas sabemos, também, que os exageros no tamanho dos períodos e nos ornamentos do
estilo não são a quintessência da arte oratória. Sua função não é persuadir os espíritos, mas
distraí-los. O que captura o decreto – como a fortaleza – é o assalto, a palavra, o gesto que
decidem. A sorte de uma assembléia é muitas vezes decidida por um audacioso que, primeiro
entre todos, grita: Votação! Aprendamos, pois, nós também, a arte de gritar na hora certa
Votação! Não digamos que isso é indigno de nós e da razão. A razão não precisa de nós, somos
nós que precisamos dela. Nossa pretensa dignidade não é senão preguiça e covardia, semelhante
àquela de uma criança que não quer improvisar diante de seus colegas. Daqui a pouco, talvez,
nós gritemos também Votação! Mas o gritaremos com o bando de medrosos que estará fazendo
eco ao orador vitorioso – aquele que terá ousado o que nós, por preguiça, não ousamos.
renovando os sofismas denunciados por Betham? Quem quiser compreender a lição do razoável
desrazoante deve buscá-la na lição do mestre ignorante. Trata-se, assim, em todo caso, de
verificar o poder da razão, observar o que se pode fazer com ela, o que ela pode fazer para
manter-se ativa, no seio da própria desrazão. Preso ao círculo da loucura social, o razoável
desrazoante demonstra que a razão do indivíduo jamais cessa de exercer seu poder. No campo
fechado das paixões – dos exercícios da vontade distraída – é preciso mostrar que a vontade
atenta sempre pode o que elas podem – e ainda mais. A rainha das paixões pode fazer melhor do
que elas o que fazem seus escravos. «O sofisma mais sedutor, mais verossímil, será sempre obra
daquele que sabe melhor o que é um sofisma. Quem conhece a linha reta, dela se afasta quando é
preciso, tanto quanto é preciso, e jamais em excesso. Qualquer que seja a superioridade que nos
conceda a paixão, ela se confunde a si mesma, posto que é uma paixão. A razão vê tudo como é;
ela mostra, ela esconde dos olhos tanto quanto julga conveniente, nem mais, nem menos»83. Não
é uma lição de esperteza, mas de constância. Aquele que sabe permanecer fiel a si em meio à
desrazão, exercerá sobre as paixões do outro o mesmo domínio que exerce sobre as suas. «Tudo
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 92
se faz pelas paixões, estou consciente; mas tudo se poderia fazer ainda melhor, mesmo essas
ensinava, no Fedro como na República: o filósofo pratica a boa mentira, aquela que é o justo
necessário e suficiente, pois só ele conhece a mentira. Nisso consiste, precisamente, toda a
diferença: nós supomos, quanto a nós, que todos sabem o que é a mentira. É esse, inclusive, o
critério pelo qual definimos o ser razoável: sua incapacidade de se mentir. Não nos referimos,
portanto, ao privilégios dos sábios, mas ao poder dos homens razoáveis. E esse poder se resume
em uma opinião: a da igualdade das inteligências. É essa opinião que faltou a Sócrates e que
Aristóteles não pôde corrigir. A mesma superioridade que permite ao filósofo estabelecer as
Sócrates não quis fazer um discurso para agradar ao povo, para seduzir a «grande besta». Ele
não quis estudar a arte dos sicofantas Anitos e Meletos. Ele pensou, e quase todos o louvam por
tal, que isso equivaleria a permitir, em sua pessoa, a decadência da filosofia. Mas o fundo de sua
opinião é: Anitos e Meletos são sicofantas imbecis; não há, portanto, nenhuma arte em seu
discurso, somente uma cozinha. Não há aí o que aprender. Ora, os discursos de Anitos e Meletos
são uma manifestação da inteligência humana, ao mesmo título do que os de Sócrates. Não
estamos afirmando que são tão bons. Diremos, apenas, que procedem da mesma inteligência.
Sócrates, o «ignorante», se imaginou, quanto a ele, superior aos oradores de tribunal, teve
preguiça de aprender sua arte e consentiu com a desrazão do mundo. Por que agiu de tal modo?
Pela mesma razão que perdeu Laios, Édipo e todos os heróis trágicos: ele acreditou no oráculo
délfico; pensou que a divindade o havia eleito, que ela lhe havia dirigido uma mensagem
especial. Ele partilhou da loucura dos seres superiores: a crença no gênio. Um ser inspirado pela
83 LM, p. 356.
84 Ibid., p. 342.
85 Fedro, 263 e.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 93
divindade não aprende os discursos de Anitos, não os repete, não busca, quando é preciso,
apropriar-se de sua arte. Por isso é que os Anitos são mestres na ordem social.
Mas não o serão eles, de toda maneira? – perguntar-se-á ainda. De que serve triunfar no
fórum se sabemos que, de toda forma, nada pode mudar a ordem das sociedades? Para que
servem os indivíduos razoáveis – ou emancipados, como os denominais – que salvam sua vida e
conservam sua razão, se eles nada podem para mudar a sociedade, estando reduzidos à triste
a palavra no aventino
Respondamos, antes de tudo, que nem sempre o pior está assegurado, já que em toda
ordem social é sempre possível a todos os indivíduos serem razoáveis. A sociedade jamais o será,
mas ela pode reconhecer o milagre de momentos de razão que são aqueles, não da coincidência
vontades razoáveis. Quando o Senado desrazoava, fazíamos coro com Appius Claudius. Era o
meio mais rápido de pôr fim à questão, voltar mais cedo à cena do Aventino. Agora é Menenius
Agripa que tem a palavra. E pouco importa o detalhe do que diz aos plebeus. O essencial é que
lhes fala, e eles escutam; lhe falam, e ele escuta. Ele lhes fala de membros e de estômago, e isso
talvez não seja muito lisonjeiro. Mas o que ele lhes exprime é a igualdade dos seres que falam,
sua capacidade de compreender, desde logo, que se reconhecem como igualmente marcados pelo
signo da inteligência. Ele lhes diz que são como estômagos – isso depende da arte que se aprende
anacronicamente: isto depende do Ensino Universal. Mas ele lhes fala como a homens e, por esse
mesmo gesto, faz deles homens: isto depende da emancipação intelectual. No momento em que a
sociedade está ameaçada de ser dividida por sua própria loucura, a razão faz-se ação social
salvadora, exercendo a totalidade de seu poder próprio – o poder da igualdade reconhecida entre
os seres intelectuais.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 94
valeu todo o longo e aparentemente inútil tempo em que a razão foi guardada e em que aprendeu
com Appius Claudius a arte de desrazoar melhor do que ele. Há uma vida da razão que pode se
manter fiel a si própria na desrazão social e aí operar. É para isso que é necessário trabalhar.
Quem sabe com igual atenção compor, em nome da causa, as diatribes de Appius Claudius ou as
fábulas de Menenius Agripa é um aluno do Ensino Universal. Quem reconhece, com Menenius e
Agripa, que todo homem nasceu para compreender o que qualquer homem tem a lhe dizer
história do Aventino é muito velha. No entanto, exatamente nesse momento outras vozes se
fazem ouvir, vozes bem diferentes, para afirmar que o Aventino é o início de nossa história – a do
conhecimento de si, que faz de plebeus de ontem e de proletários de hoje homens capazes de
tudo que pode um homem. Em Paris, um outro excêntrico sonhador, Pierre-Simon Ballanche,
relata à sua maneira a mesma história do Aventino e lê a mesma lei proclamada, a da igualdade
dos seres que falam, da potência adquirida por aqueles que se reconhecem marcados pelo signo
da inteligência e que assim se tornam capazes de gravar seu nome no horizonte. E ele faz uma
estranha profecia: «A história romana, tal como ela nos foi apresentada até o presente, após
haver regulado uma parte de nossos destinos, após haver entrado, sob uma forma, na
composição de nossa vida social, de nossos costumes, de nossas opiniões, de nossas leis, vem,
sob outra forma, regular nossos novos pensamentos, os que devem entrar na composição de
nossa vida social futura»86. Nas oficinas de Paris ou de Lion, algumas cabeças sonhadoras
escutam essa história e a relatam, por sua vez, à sua própria maneira.
Sem dúvida, essa profecia da nova era é um sonho. Mas eis o que não é um sonho:
86«Essais de palingénésie sociale. Formule générale de l’histoire de tous les peuples appliquée à l’histoire du peuple
romain», Revue de Paris, av. 1829, p. 155.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 95
inteligências e prestar contas dessa verificação. A vitória do Aventino é muito real, mas, decerto
ela não se situa lá onde pensamos. Os tribunos que a plebe conquistou desrazoavam tanto
quanto os outros. Apesar disso, o fato de que cada plebeu se sinta homem, se acredite capaz,
acredite seu filho e qualquer outro capaz de exercer as prerrogativas da inteligência, isso é mais
do que nada. Não pode haver um partido dos emancipados, uma assembléia ou uma sociedade
emancipada. Mas todo homem pode, a cada instante, emancipar-se e emancipar a um outro,
anunciar a outros esse benefício e aumentar o número de homens que se reconhecem como tais e
não mais fazem de conta que são superiores inferiores. Uma sociedade, um povo, um Estado
serão sempre desrazoáveis. Mas pode-se multiplicar o número de homens que farão uso, na
Pode-se portanto dizer, e é preciso dizer: «Se cada família fizesse o que digo, logo a nação
estaria emancipada, não da emancipação que os sábios concedem, por suas explicações à altura
das inteligências do povo, mas da emancipação que conquistamos, mesmo contra os sábios,
capítulo quinto
A ssim, o dever dos discípulos de Joseph Jacotot é bem simples. Eles devem anunciar a
todos, em todo lugar e circunstância, a boa nova ou o benefício: pode-se ensinar aquilo que se
ignora. Um pai de família pobre e ignorante pode, portanto, começar a instrução de seus filhos.
Cabe, ainda, fornecer o princípio desta instrução: é preciso aprender qualquer coisa e a isso
relacionar todo o resto, segundo esse princípio: todas as inteligências são iguais.
Deve-se anunciá-lo e estar pronto para a verificação: falar ao pobre, fazê-lo falar do que
ele é e do que sabe; mostrar-lhe como instruir seu filho; copiar a oração que a criança sabe de
cor; levá-la a aprender de cor o primeiro capítulo de Telêmaco, livro que lhe será oferecido; estar
disponível para as solicitações daqueles que querem aprender com um mestre do Ensino
Universal aquilo que ele ignora; envidar, portanto, todos os esforços para convencer o ignorante
de seu poder: um discípulo de Grenoble não podia convencer uma mulher pobre e idosa a
aprender a ler e a escrever. Ele, então, lhe ofereceu dinheiro para obter seu consentimento. Em
outra coisa é, por si mesmo, indiferente. O problema não é fazer sábios, mas elevar aqueles que
88 Manuel populaire de la méthode Jacotot, par le Dr. Reter de Brigton, Paris, 1830, p. 3.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 97
Não se trata de incluir o Ensino Universal nos programas dos partidos reformadores,
emancipar um homem. Somente um indivíduo pode ser razoável – e somente por meio de sua
própria razão. Há, sem dúvida, cem maneiras de instruir: também se aprende na escola dos
embrutecedores; um professor é uma coisa – decerto menos manipulável do que um livro, mas
que pode ser aprendida: observá-lo, imitá-lo, dissecá-lo, recompô-lo, experimentar o que de sua
pessoa oferece. Sempre se aprende, ao escutar um homem falar. Um professor não é, nem mais,
nem menos inteligente do que qualquer outro homem; ele geralmente fornece uma grande
quantidade de fatos à observação daqueles que pesquisam. Há, porém, somente uma maneira de
Essa não é uma proposição metafísica. A experiência foi feita em Louvain, sob o
patrocínio de Sua Majestade o Rei dos Países Baixos. Sabe-se que ele era um soberano
esclarecido. Seu filho, o Príncipe Frederick, era apaixonado pela filosofia. Responsável pelos
exércitos, ele os queria modernos e instruídos, à prussiana. Ele se interessava por Jacotot;
incomodava-lhe a desgraça em que este último era mantido pelas autoridades acadêmicas de
Louvain, queria ter podido fazer qualquer coisa por ele e, ao mesmo tempo, pelo exército
holandês. O exército, naqueles tempos, era terreno propício para experimentação de idéias
reformadoras e novas pedagogias. O Príncipe convenceu, então, seu pai a criar em Louvain uma
A intenção era boa, mas o presente era de grego: Jacotot era um mestre, não um
dirigente. Seu método era próprio para formar homens emancipados, mas não instrutores
homem emancipado pode ser instrutor militar, tanto quanto serralheiro ou advogado. Um
ensino universal, contudo, não pode, sem se desbaratar, especializar-se na produção de uma
poderia fazer em prol de sua propagação seria proteger a livre circulação desse benefício dos
efeitos de sua autoridade. Não que um rei esclarecido não possa estabelecer onde e quando
quiser o Ensino Universal: mas tal estabelecimento jamais vingaria, pois o gênero humano
pertence ao velho método. É claro que, pela glória do soberano, sempre se poderia tentar a
experiência. Ela seguramente fracassaria, mas há fracassos que são instrutivos. Somente uma
intermediários da cena social, em proveito unicamente da dupla rei e filósofo. Para tanto, era
preciso, primeiramente, afastar todos os conselheiros do velho método à maneira dos países
civilizados, isto é, concedendo-lhes uma promoção; em segundo lugar, expurgar todos os outros
intermediários, que não os escolhidos pelo filósofo; em terceiro lugar, outorgar todo poder ao
filósofo: «Far-se-á o que eu disser, tudo o que eu disser, nada além do que eu disser; e a
perguntarão o que deve ser feito e como deve ser feito para, em seguida, submeter o todo ao
soberano. Serei considerado, não como um funcionário que se emprega, mas como um filósofo
que se deve consultar. Enfim, o estabelecimento do Ensino Universal será considerado, por um
Essas são condições que nenhuma monarquia civilizada poderia aceitar, sobretudo em se
qualidade de hóspede reconhecido, Jacotot aceitou essa experiência bastarda de coabitação com
Nessas bases, a Escola foi criada em março de 1827; e os alunos, a princípio abismados ao
escutar, de um intérprete, que seu professor nada tinha a lhes ensinar, devem ter podido
descobrir aí alguma vantagem já que, ao termo do período regulamentar, solicitaram por petição
o prolongamento de sua estadia na Escola, onde desejavam aprender pelo Método Universal as
89 MA, p. 97.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 99
Fortificações. Mas o Mestre não poderia estar satisfeito com esse ensino universal desbaratado,
nem com os conflitos quotidianos com as autoridades acadêmicas civis e com a hierarquia
militar. Ele precipitou, com suas explosões, a dissolução da Escola. Ele havia obedecido ao Rei,
ao formar, por um método acelerado, instrutores militares. Mas ele tinha melhor a fazer, do que
fabricar tenentes – espécie que jamais faltará em qualquer sociedade. Ele, aliás, preveniu
solenemente seus alunos: eles não deveriam jamais lutar pela adoção do Ensino Universal no
Exército. Eles não deviam, tampouco, esquecer que haviam presenciado uma aventura de
espírito um pouco mais ampla do que a fabricação de oficiais subalternos: «Vós haveis formado
sub-tenentes em alguns meses, é verdade. Mas, obstinar-se a obter resultados tão tímidos quanto
os das escolas européias, tanto civis quanto militares, é desbaratar o Ensino Universal. Se a
sociedade se beneficiar de vossas experiências, contentando-se com elas, tanto melhor: vós sereis
úteis ao Estado. Entretanto, não vos esqueçais jamais de que haveis presenciado resultados de
ordem muito superior ao que haveis obtido e aos quais sereis reduzidos. Aproveitai, pois, a
emancipação intelectual para vós e vossos filhos. Ajudai aos pobres. Mas limitai-vos a fazer, para
vosso país, tenentes e cidadãos acadêmicos. Não precisais mais de mim para avançar por essas
veredas.»90
O discurso do Fundador aos seus discípulos militares – e ele teve discípulos fiéis – figura
hábito do Mestre em toda matéria, não há uma só palavra sobre matemática. Ninguém é
discípulo do Ensino Universal se não leu e compreendeu, nessa obra, a história da Escola Normal
Militar de Louvain, se não se convenceu dessa oposição: o Ensino Universal não é, nem pode ser
um método social. Ele não pode ser difundido nas instituições da sociedade, nem por iniciativa
delas. Não que os emancipados não sejam respeitosos da ordem social: eles sabem que, de toda
maneira, ela é menos nociva do que a desordem. Mas é tudo o que lhe concedem, e decerto
nenhuma instituição poder-se-ia contentar com tão pouco. Não é suficiente que a desigualdade
se faça respeitar: ela quer ser objeto de crença e de amor. Ela quer ser explicada. Toda
instituição é uma explicação em ato da sociedade, uma encenação da desigualdade. Seu princípio
é e será sempre antitético ao do método fundado sobre a opinião da igualdade e da recusa das
explicações. O Ensino Universal não pode se dirigir senão a indivíduos, jamais a sociedades. «As
sociedades de homens reunidos em nações, desde os Lapões até os Patagônios, precisam, para
sua estabilidade, de uma forma, de uma ordem qualquer. Aqueles que são encarregados da
manutenção dessa ordem necessária devem explicar e fazer explicar que ela é a melhor possível,
e impedir qualquer explicação contrária. Esse é o objetivo das constituições e leis. Portanto,
repousando sobre uma explicação, toda ordem social sempre exclui qualquer outra explicação e,
sobre o perigo de toda explicação no ensino. O Fundador reconheceu, inclusive, que o cidadão de
um Estado deveria respeitar a ordem social de que faz parte e a explicação dessa ordem; mas
estabeleceu, também, que a lei só exigia do cidadão que suas ações e palavras fossem conformes
à ordem, não podendo impor-lhe pensamentos, opiniões, crenças; que o habitante de um país,
antes de ser um cidadão, era um homem, que a família era um santuário em que o pai é o
poderia ser semeada com sucesso»91. Afirmemo-lo, pois: o Ensino Universal não vingará, ele
não se estabelecerá na sociedade. Mas ele não morrerá, porque é o método natural do espírito
humano, o de todos os homens que buscam seu próprio caminho. O que os discípulos podem
fazer por ele é anunciar a todos os indivíduos, a todos os pais e mães de família, o meio de
É, pois, preciso anunciar o Ensino Universal a todos. Antes de tudo, aos pobres, sem
qualquer dúvida: eles não têm outro meio de se instruírem, não podem pagar explicadores
particulares, nem passar longos anos nos bancos escolares. Acima de tudo, é sobre eles que pesa
mais fortemente o preconceito da desigualdade das inteligências. São eles que devem ser
Quem o empregar, qualquer que sejam sua ciência e posição social, multiplicará seus poderes
intelectuais. É preciso, pois, anunciá-lo aos príncipes, aos ministros e aos poderosos: eles não
podem instituir o Ensino Universal; podem, no entanto, aplicá-lo na instrução de seus filhos. E
podem usar seu prestígio social para anunciar amplamente o benefício. Assim, o rei esclarecido
dos Países Baixos teria feito melhor em ensinar às suas crianças o que ignorava e emprestar sua
voz para a difusão das idéias emancipadoras nas famílias do reino. Dessa forma, o antigo colega
de Joseph Jacotot, o General de La Fayette, poderia tê-lo anunciado ao Presidente dos Estados
Unidos, país novo sobre o qual ainda não pesavam séculos de embrutecimento universitário.
Aliás, nos dias que se seguiram à Revolução de julho de 1830, o Fundador deixou Louvain para,
em Paris, indicar aos liberais e aos progressistas vencedores os meios de concretizar seus belos
entre os homens da Guarda Nacional. Casimir Perier, velho entusiasta da doutrina e futuro
Ministro da Instrução Pública de M. Laffitte, veio por iniciativa própria consultar-se com
Jacotot: – O que é preciso, para organizar a instrução que o governo deve ao povo e que pretende
fornecer segundo os melhores métodos? – Nada, respondeu o Fundador, o governo não deve
instrução ao povo, pela simples razão de que não se deve às pessoas aquilo que elas podem
conquistar por si próprias. Ora, a instrução é como a liberdade: não se concede, conquista-se.
Então o que é preciso fazer? – perguntou o Ministro. Basta – retrucou-lhe – anunciar que estou
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 102
em Paris, hospedado no Hotel Corneille, onde recebo todos os dias os pais de família pobres,
É preciso dizê-lo a todos os que se preocupam com a ciência, com o povo, ou com os dois
ao mesmo tempo. Os sábios, também, devem aprendê-lo: eles têm os meios de decuplicar sua
potência intelectual. Eles só se acreditam capazes de ensinar o que sabem. Conhecemos bem essa
lógica social da falsa modéstia – pela qual aquilo ao que se renuncia estabelece a solidez do que é
anunciado. Pois os sábios – os que pesquisam, é claro, e não os que explicam o saber dos outros
– querem, talvez, algo mais novo e menos convencional. Se eles começarem a ensinar o que
novas descobertas.
É preciso dizê-lo aos republicanos que querem um povo livre e igual e imaginam que isso
classe mais pobre e mais numerosa: eles podem fazer pelos pobre muito mais do que crêem e
com custos muito menores. Eles gastam tempo e dinheiro na experimentação e promoção de
das cabeças rústicas. Há, porém, um meio bem mais simples do que esse: com um velho
Telêmaco ou, mesmo, com uma pluma e papel para escrever uma oração, eles podem emancipar
embrutecimento não é uma superstição inveterada, mas terror frente à liberdade; a rotina não é
ignorância, mas covardia e orgulho das pessoas que renunciam a sua própria potência, pelo
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 103
simples prazer de constatar a impotência do vizinho. Basta emancipar. Não vos arruineis com
desinfectar a água, fabricar açúcar de beterraba e fazer cerveja com cascas de lentilhas. Mostrai-
lhes, antes, como fazer o filho repetir Calipso, Calipso não, Calipso não podia… E vereis de que
serão capazes.
também um homem que realiza uma obra, com a pluma, com a purina ou qualquer outro
instrumento. Cada inferior superior é também um igual, que narra e faz com que o outro narre o
que viu. É sempre possível trabalhar essa relação consigo mesmo, reconduzi-la à sua veracidade
primeira, para despertar no homem social o homem razoável. Quem não busca introduzir o
método do Ensino Universal nas engrenagens da máquina social pode suscitar essa energia toda
nova que fascina os apaixonados pela liberdade, essa potência sem gravidade, nem aglomeração,
que se propaga como um raio, pelo contacto de dois pólos. Quem abandona as engrenagens da
cortados de sua condição. O que dizer, então, da emancipação e da igualdade das inteligências,
Jacotot se, em tais condições, as mulheres ainda permanecerão belas! Privemos, pois, de
resposta esses embrutecidos, deixemo-los dando voltas em torno de seu círculo acadêmico-
nobiliário. Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora de mundo:
efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida, sobretudo nas
classes mais baixas, a idéia de que essa superioridade é tão somente uma ficção convencionada.
De fato, somente um emancipado pode escutar com tranqüilidade que a ordem social é
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 104
ele sabe seus iguais. Ele sabe o que pode esperar da ordem social e não causará aí muita
os homens do progresso
Deixemo-los, pois, entregues à doce e inquieta consciência de seu próprio gênio. Mas, ao
lado desses, não faltam homens de progresso, que não deveriam temer a mudança das velhas
que caminham, que não se preocupam com a classe social daquele que afirmou alguma coisa,
mas vão conferir por si próprios se a coisa é verdadeira; viajantes que percorrem toda a Europa
escutar falar de alguma experiência nova, aqui ou acolá, se deslocam, vão observar os fatos,
buscam reproduzir as experiências; que não vêem porque se passaria seis anos aprendendo algo,
se está provado que se pode aprendê-lo em dois; que pensam, sobretudo, que saber não é nada
em si e que fazer é tudo, que as ciências não são feitas para serem explicadas, mas para produzir
descobertas novas e invenções úteis; que, portanto, ao escutar falar de invenções aproveitáveis,
não se contentam em louvá-las ou em comentá-las, mas oferecem, se possível, sua fábrica ou sua
Não faltam viajantes e inovadores desse tipo para se interessarem ou, mesmo, para se
entusiasmarem com a idéia das aplicações possíveis do método de Jacotot. Podem ser
professores em ruptura com o Velho. Assim como o Professor Durietz, que se nutriu desde a
juventude com Locke e Condillac, Helvétius e Condorcet, e cedo partiu para o ataque contra «o
edifício empoeirado de nossas góticas instituições»92. Professor da Escola Central de Lille, ele
havia fundado na cidade um estabelecimento inspirado nos princípios desses mestres. Vítima do
«ódio ideologívoro» votado pelo Imperador a «qualquer instituição que não se enquadrasse em
seu objetivo de escravização universal», sempre pronto a liberar-se dos métodos que procedem
por recuos, ele veio aos Países Baixos realizar a educação do filho do Príncipe de Hatzfeld,
Embaixador da Prússia. Foi aí que ouviu falar do método Jacotot; de visita ao estabelecimento
que um antigo aluno da Escola Politécnica, M. de Séprès, fundara a partir desses princípios,
reconheceu sua conformidade com seus próprios princípios, e decidiu propagar o método por
toda parte onde fosse. Foi o que fez durante cinco anos, em São Petersburgo, em casa do Grande
voltar à França – mas, não sem, de passagem, divulgar a emancipação em Riga e Odessa, na
Alemanha e na Itália. Agora, ele pretendia «levantar o machado contra a árvore das abstrações»
decadente de seu pai, fazendo-a prosperar em meio aos distúrbios da Revolução e do Império.
Ele ainda quis fazer uma obra útil para a indústria nacional em geral, favorecendo a produção de
caxemiras. Para tanto, recrutou um orientalista da Biblioteca Nacional e o enviou ao Tibete, para
de lá trazer um rebanho de mil e quinhentas cabras a serem aclimatadas aos Pirineus. Ardoroso
amigo da liberdade e das Luzes, quis verificar por si mesmo os resultados do método Jacotot.
Convencido, prometeu apoio e, com sua ajuda, Durietz ganhou forças para aniquilar os
Sociedade Industrial, instituição pioneira criada graças ao dinamismo filantrópico dos irmãos
Dollfus, confiou a seu jovem animador, o Doutor Penot, a responsabilidade por um curso de
93 Ibid., p. 279.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 106
Beauvisage, ouviu falar do método. Operário, fez-se sozinho e quis estender seus negócios,
fundando uma fábrica nova na região da Somme. Mas ele não queria se separar de seus irmãos
associados. Esse sonho chocou-se, infelizmente, com uma realidade menos inspiradora. Em sua
quando se tratava de ir contra o patrão. Ele queria lhes fornecer uma instrução que destruísse
neles o velho homem e permitisse a realização de seu ideal. Para tanto, se dirigiu aos irmãos
feira de tecidos.
provisoriamente retirado. Um dia, ele se faz acompanhar de seu irmão Victor, que escrevia em
diversos jornais e, havendo visitado os Estados Unidos, voltara indignado que existisse ainda, em
contrário, M. de Lasteyrie tornou-se conhecido por sua vivacidade. Em sua juventude, já havia
aperfeiçoar a gestão de seus domínios. Inicialmente partidário da Revolução, tal como seu
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 107
cunhado, o Marquês de La Fayette, assim mesmo precisou, por volta do ano III, refugiar-se na
Espanha. Ali aprendeu a língua a ponto de traduzir diversas obras anticlericais, estudou os
carneiros da raça merino a ponto de publicar dois livros sobre o assunto e impressionou-se com
os méritos dessa espécie a ponto de trazer todo um rebanho para França. Ele ainda percorreu a
assim como dos pastéis-de-tintureiro, dos indigoteiros e de outros vegetais próprios à produção
da cor azul. Em 1812, soube da invenção, por Senefelder, da litografia. Partiu imediatamente
para Munique, onde aprendeu o procedimento, sendo responsável pelo primeiro prelo litográfico
da França. Os poderes pedagógicos dessa nova indústria o haviam orientado para as questões de
instrução. Assim, ele passou a militar pela introdução do Ensino Mútuo pelo método Lancaster.
Mas não se tratava em nada de um exclusivista. Entre outras sociedades, ele fundou a Sociedade
dos Métodos de Ensino, para estudo de todas as inovações pedagógicas. Tendo sido informado
pelo rumor público dos milagres que se faziam na Bélgica, decidiu-se a ir ver pessoalmente as
coisas.
Ainda ágil, em seus setenta anos – ele haveria de viver outros vinte, escrevendo livros e
– ele tomou a carruagem, viu o Fundador, visitou a instituição de Mlle. Marcellis, propôs
tão bem quanto ele. A opinião da igualdade das inteligências não lhe causava medo. Ele percebia
que isso representava um grande incentivo para a aquisição da ciência e da virtude, tanto quanto
um golpe desferido contra as aristocracias intelectuais, bem mais funestas do que qualquer
poder material. Ele esperava comprovar sua exatidão: então, pensava ele, «desaparecerão as
dos animais, a fim de gozar com exclusividade dos dons materiais que a fortuna cega distribui e
que sabem adquirir aqueles que se aproveitam da ignorância dos homens»94. De retorno, ele
anunciou, portanto, à Sociedade dos Métodos de Ensino: era um imenso passo que acabava de
ser feito pela civilização e a felicidade da espécie humana. A Sociedade devia examinar esse novo
método e recomendá-lo como um dos mais destacados entre aqueles que se mostravam próprios
de carneiros e de homens
M. Jacotot apreciava o zelo do Conde. Mas, viu-se rapidamente obrigado a denunciar sua
distração. Pois que se tratava, sem dúvida, de uma, e das mais estranhas, para quem aplaudia a
idéia de emancipação, ir submetê-la à aprovação de uma Sociedade dos Métodos. Com efeito, o
que é uma Sociedade dos Métodos? Um areópago de espíritos superiores, que obram pela
instrução das famílias e, para tanto, buscam selecionar os melhores métodos. Isso supõe,
evidentemente, que as famílias são incapazes de selecioná-los por si próprias – já que, para
tanto, seria forçoso que elas já fossem instruídas. Nesse caso, elas não mais precisariam que
alguém as instruísse. E, nesse caso, elas não mais teriam necessidade da Sociedade – o que é
contraditório com a hipótese. «É um velho truque, o das sociedades eruditas, ao qual todos
sempre foram e provavelmente sempre estarão cegos. Impede-se o povo de se dar ao trabalho de
importância que impressiona aos preguiçosos, jamais se louva, jamais se reprova, nem de mais,
nem de menos. Pois, a admiração entusiástica sempre anuncia um pequeno espírito: louvando-
conquista-se, ademais, um posto acima daqueles que são julgados; vale-se mais do que eles e
explicação embrutecedora que não pode deixar de fazer sucesso. Aliás, nele se invocam pequenos
94 Lasteyrie, Résumé de la méthode de l’enseignement universel d’après M. Jacotot, Paris, 1829, p. XXVII-XXVIII.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 109
axiomas com os quais se recheia o discurso: nada há de perfeito… É preciso desconfiar dos
exageros… O tempo é que deverá sancionar… (…) Um dos personagens toma a palavra e diz: –
Meus caros, estabelecemos entre nós que todos os bons métodos passariam por nosso crivo e que
a Nação Francesa confiaria nos resultados que sairiam de nossas análises. As populações dos
diferentes Departamentos de França não podem ter sociedades como a nossa para dirigi-las em
seus julgamentos. É bem verdade que há, aqui e ali, em certos centros, alguns pequenos crivos;
mas o melhor crivo, o crivo por excelência, só em Paris pode ser encontrado. Todos os bons
métodos disputam entre si a honra de serem depurados, verificados em vosso cadinho. Somente
um tem o direito de se revoltar; mas nós o dominamos e ele passará por aí, tanto quanto os
outros. A inteligência dos membros é o vasto laboratório onde se analisam legitimamente todos
os métodos. Em vão, o Universal se debate contra nossos regulamentos, que nos concedem o
Não se pense, no entanto, que a Sociedade dos métodos tenha julgado o método Jacotot
reconhecer tudo o que havia de bom nesse método. É bem verdade que algumas vozes
simplificação oferecida ao ofício de ensinar. E é bem verdade, também, que alguns espíritos
permaneceram céticos diante dos «curiosos detalhes» que seu «incansável presidente» havia
relatado de sua viagem. Fora da Sociedade, outras vozes ecoavam, denunciando a encenação do
composições «inéditas», copiadas das obras do Mestre, os livros que se abriam sozinhos nos
lugares certos. Ria-se, igualmente, do mestre ignorante de violão, cujo aluno havia tocado uma
música completamente diferente daquela que tinha sob seus olhos96. Mas os membros da
Sociedade dos métodos não eram homens de acreditar apenas em palavras. M. Froussard, cético,
precisamente, eles voltaram todos convencidos do progresso eminente que representava esse
novo método de ensino. Mas eles não se preocuparam nem um pouco em anunciá-lo aos pobres,
em por meio dele instruir os próprios filhos, nem em empregá-lo para ensinar o que ignoravam.
Eles reivindicaram sua adoção pela Sociedade, na escola ortomática que essa organizava a fim de
quanto M. Lasteyrie, se opuseram a isso: a Sociedade não podia adotar um método, «excluindo
todos os outros métodos já propostos ou a serem propostos ainda». Se o fizesse, ela estaria
passados, presentes e futuros97. Assim, ela rejeitou esse exagero, mas, imperturbavelmente
serena e objetiva, concedeu ao ensino do método Jacotot uma sala da escola ortomática.
ocorrido convocar uma comissão para apreciar o valor dos carneiros merino ou da litografia, ou
ainda estabelecer um relatório sobre a necessidade de importar uns e outros. Ele havia tomado a
emancipação, ele havia procedido de maneira bem diferente: tratava-se, segundo ele, de uma
questão pública, a ser considerada em sociedade. Essa infeliz distinção repousava em uma não
menos infeliz identificação: ele havia confundido o povo a instruir com um rebanho de carneiros.
Os rebanhos de carneiros não se conduzem por si sós, ele pensara que o mesmo se passava com
os homens: é claro que era preciso emancipá-los, mas cabia aos espíritos esclarecidos fazê-lo e,
para tanto, eles deveriam compartilhar suas luzes, de modo a encontrar os melhores métodos, os
melhores instrumentos de emancipação. Para ele, emancipar queria dizer substituir as trevas
96Cf. Remarques sur la méthode de M. Jacotot, Bruxelas, 1827 e L’Université protégée par l’ânerie des disciples de
Joseph Jacotot, Paris e Londres, 1830.
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 111
pela luz; ele havia pensado que o método Jacotot era um método de instrução como todos os
outros, um sistema de iluminação dos espíritos, a ser comparado aos outros; uma invenção sem
dúvida excelente, mas de mesma natureza que todas as que propunham, semana após semana,
método polonês de Jazwinski , o método galiano, o método Lévi, os métodos de Sénocq, Coupe,
Lacombe, Mesnager, Schlott, Alexis de Noailles e cem outros, cujas obras e memórias afluíam
para os escritórios da Sociedade. A partir daí, tudo estava dito: Sociedade, comissão, exame,
relatório, Revista, há pontos positivos e negativos, o tempo é que deverá sancionar, nec
Universal: ele havia observado, comparado, refletido, imitado, testado, corrigido por si próprio.
Mas, quando se tratou de anunciar a emancipação intelectual aos pais de família pobre e
ignorantes, ele se distraíra, esquecera-se de tudo. Ele traduzira igualdade por PROGRESSO e
emancipação dos pais de famílias pobres por INSTRUÇÃO DO POVO. Para se ocupar desses
seres de razão, dessas ontologias, era preciso a intervenção de outros seres de razão, de
emancipação intelectual pretendera deixá-la para trás; no entanto, ei-la que ressurge em seu
caminho, erigida em tribunal encarregado de triar, em seus princípios e exercícios, aquilo que
povo.
Lasteyrie, mas uma contradição que vai de encontro à emancipação intelectual, quando essa se
dirige àqueles que, como ela, desejam a felicidade dos pobres, aos homens de progresso. O
oráculo do embrutecimento bem havia prevenido o Fundador: «Hoje, menos do que nunca, não
podes esperar sucesso. Eles se crêem progressistas e suas opiniões estão solidamente
estabelecidas nessa base. Rio-me de teus esforços. Eles não arredarão de lá.»
que caminha, que vai ver, que experimenta, modifica sua prática, que verifica seu saber, e,
progresso é também outra coisa: um homem que pensa a partir da opinião do progresso e erige
Com efeito, sabemos que a explicação não é apenas o instrumento embrutecedor dos
pedagogos, mas o próprio laço da ordem social. Quem diz ordem, diz hierarquização. A
hierarquização supõe explicação, ficção distributiva, justificadora, de uma desigualdade que não
tem outra explicação, senão sua própria existência. O quotidiano do trabalho explicador não é
mais do que a menor expressão de uma explicação dominante, que caracteriza uma sociedade.
Modificando a forma e os limites dos impérios, guerras e revoluções mudam a natureza das
Sabemos, de fato, que a explicação é obra da preguiça. Basta-lhe introduzir a desigualdade, o que
se faz sem qualquer dificuldade. A hierarquia mais elementar é a do bem e do mal. A relação
lógica mais simples é a do antes e depois. Nesses quatro termos, o bem e o mal, o antes e o
depois, tem-se a matriz de todas as explicações. Antes, isso era melhor, dizem alguns: o
chefes, paternais, se faziam obedecer; a fé dos ancestrais era respeitada, as funções, bem
respeito para com os grandes. Busquemos, pois, conservar ou revivificar o que, em nossas
distinções, ainda nos une ao princípio do bem. A felicidade é para amanhã, respondem os
outros: o gênero humano era como uma criança, entregue aos caprichos e aos terrores de sua
imaginação, acalentada pelos contos de amas ignaras, submetida à força bruta dos déspotas e à
difunde seus benefícios, os homens descobrem seus direitos e a instrução lhes revela seus
deveres para com as ciências. A partir de agora, será a capacidade que deverá decidir a
sucumbir à força conquistadora de uma outra. Tempos de transição. Eis o que explica a
médicos, burgueses ou gente de Igreja que a deixavam falar, ocupando-se de outra coisa: faziam
talhar e polir lentes ou as poliam eles próprios, para experiências de ótica; reservavam, nos
açougues, os olhos das bestas para estudar sua anatomia; informavam-se entre si de suas
descobertas e debatiam suas hipóteses. Assim se realizavam, nos poros da velha sociedade,
Conde tem ainda um pouco desses gentis-homens experimentadores. Mas, no caminho, ele foi
aspirado pela força crescente da nova explicação, da nova desigualificação: o Progresso. Já não
são mais os curiosos e os espíritos indômitos que agora aperfeiçoam tal ou tal ramo das ciências,
tal ou tal meio técnico. É a sociedade que se aperfeiçoa, que pensa sua ordem sob o signo do
Mas essa forma de dizer tem uma força bem mais temível que a antiga. Esta era
continuamente obrigada a agir de maneira contrária a seu princípio. Antes, era melhor, dizia ela:
quanto mais avançamos, mais vamos em direção à decadência. Essa opinião dominante tinha,
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 114
entretanto, o defeito de não ser aplicável na prática explicadora dominante – a dos pedagogos.
Esses últimos deviam, de fato, supor que a criança se aproximava da perfeição ao se afastar de
sua origem, ao crescer, passando, sob a orientação que forneciam, de sua ignorância própria à
ciência que dispensavam. Cada prática pedagógica explica a desigualdade do saber como um
mal, e um mal redutível em uma progressão infinita em direção ao bem. Cada pedagogia é
Esses tempos estão em vias de acabar. A partir daqui, a ficção dominante e o quotidiano
do embrutecimento caminham no mesmo sentido. E, isso, por uma razão muito simples. O
apreender em sua inocência; nem mentira, nem violência, não é mais do que um retardo que se
própria natureza cuida disso, haverá sempre retardo, sempre haverá desigualdade. Mas, pode-se,
pedagogia: antes, tateava-se, às cegas, as palavras mais ou menos mal recolhidas da boca das
mães e amas não esclarecidas, por adivinhação, as idéias falsas retiradas do primeiro contato
com o universo material. Agora, começa uma nova era, em que o homem-criança ganha o
caminho reto de sua maturidade. O guia mostra o véu colocado sobre todas as coisas e começa a
retardar um pouco o progresso»98. Métodos são necessários. Sem método, sem um bom método,
Com o método, ele põe seus passos nos passos daqueles que avançam racionalmente,
progressivamente. Com eles, ergue-se numa aproximação indefinida. Jamais o aluno alcançará o
mestre, nem o povo sua elite esclarecida; no entanto, a esperança de chegar lá os faz avançar pelo
imita ainda a marcha dos homens de progresso à maneira antiga, que ele ataca o antigo
embrutecimento em termos apropriados para, à menor distração, revidar e colocar por terra
O que significa, também, que a vitória que se anuncia, dos progressistas sobre o Velho, é
também a vitória do Velho através de sua própria oposição, o triunfo absoluto da desigualdade
instituída, a racionalização exemplar dessa instituição. Este é o fundamento sólido sobre o qual
se erige o poder perene do Velho. O Fundador tentou mostrar aos progressistas de boa fé: «Os
tem necessidade de artes e tudo o que se lhe vendia era o latim, de nenhum uso para ele. Ele vai
desenhar, construir máquinas, etc. Filósofos, tendes razão, e admiro vosso zelo, sob o domínio de
um Grande Mestre que não vos vem em socorro, molemente estendido em seu trono de línguas
mortas. Admiro vossa devoção; vosso objetivo filantrópico é, sem dúvida, mais útil do que o do
Velho. Mas vossos meios não serão os seus? Vosso método não é o seu? Não temeis ser acusados,
tal como ele, de manter a supremacia dos mestres explicadores?»99 A boa vontade risca de se
tornar, assim, uma circunstância agravante. O Velho sabe o que quer, o embrutecimento; e age
explicações.
Este é o círculo dos progressistas. Eles querem arrancar os espíritos da velha rotina, da
dominação dos padres e dos obscurantistas de toda sorte. Para isso, é preciso métodos e
explicações mais racionais. É preciso testar e comparar, por meio de comissões e de relatórios. É
preciso empregar na instrução do povo um pessoal qualificado e diplomado, instruído nos novos
incompetentes, não deixar aos espíritos formados pelo acaso ou pela rotina, que ignoram as
ensinar qualquer coisa, de qualquer maneira. É preciso evitar que as famílias, lugares de
reprodução rotineira e da superstição inveterada, dos saberes empíricos e dos sentimentos mal
instrução pública. É preciso uma Universidade e um Grande Mestre. Em vão, dir-se-á que os
gregos e os romanos não tinham Universidade nem Grande Mestre e que as coisas não iam assim
tão mal. No tempo do progresso, não é preciso mais, para os mais ignorantes entre os povos
atrasados, do que uma curta temporada em Paris, para se convencerem «que Anitos e Meletos
assinalaram, desde então, a necessidade de uma organização que regulasse: 1º) que é preciso
explicar; 2º) o que é preciso explicar; 3º) como será preciso explicar». Sem estas precauções,
bem se vê: «1º) que nossos sapateiros poderiam ostentar Ensino Universal junto a suas
insígnias, como se fazia em Roma e Atenas, por falta de uma organização previdente; 2º) que o
alfaiate pretenderá explicar as superfícies regradas, sem prévio exame, como se viu em Roma» e
que, assim,acontecerá o que se deve a todo preço evitar: «que as velhas explicações se
Lutando por métodos novos, pelo Ensino Mútuo de Lancaster, os progressistas lutaram,
primeiramente, para mostrar a necessidade de se terem melhores coleiras. «Sabeis que não
aceitamos Lancastre e adivinhais porquê. No entanto, acabamos por vos permitir vosso
Lancastriano. Sabeis por que? É que a coleira ainda está lá. Preferiríamos vê-la em outras mãos.
Enfim, não é preciso desesperar de nada, enquanto houver coleira. Vossa geometria aplicada não
Lancasterianismo, em breve vos seria permitido o ensino industrial. Era uma coleira, tão boa
quanto qualquer outra – não só porque podia fornecer instrução, mas, sobretudo, porque podia
levar à crença na ficção desigualitária. Era um outro ardil que não se opunha ao mais antigo
senão para melhor afirmar seu princípio, o princípio de todos os ardis; «Dávamos voltas em
torno do latim; o instrutor escudeiro vai nos fazer dar voltas em torno das máquinas (…) Se não
se presta atenção, o embrutecimento vai se tornar maior à proporção que for menos sensível e
da criança, ao mesmo tempo em que fornece a seu espírito a melhor das ginásticas; um método
ativo que lhe concede o hábito de raciocinar por si própria e de enfrentar sozinha as
dificuldades; que forma a segurança da palavra e o sentido das responsabilidades; uma boa
formação clássica, que ensina a língua dos grandes escritores e despreza o jargão dos
gramáticos; um método prático e expeditivo, que queima as custosas e intermináveis etapas dos
colégios, para formar jovens esclarecidos e industriosos, prontos a se lançarem nas carreiras
úteis ao aperfeiçoamento social. Quem pode mais, pode menos – e um método capaz de ensinar
o que se ignora permite ensinar facilmente o que se sabe. Bons mestres abrem escolas sob sua
insígnia ; mestres experimentados, como Durietz, como o jovem Eugène Boutmy, como M. de
Séprès, antigo politécnico, que transferiu sua instituição de Anvers a Paris, e uma plêiade de
outros, ainda, em Paris, Rouen, Metz, Clermont-Ferrand, Poitiers, Lyon, Grenoble, Nantes,
Marseille… Sem falar nas instituições religiosas, mas, ainda assim, esclarecidas, como o
convertidos pelo incansável elo do discípulo Deshoullières. Essas instituições – não nos
referimos, é claro, às cópias que proliferam – se destacam pela exatidão com que seguem os
Jacotot é seguido, a não ser por um ou dois detalhes: por exemplo, aí não se ensina o que se
ignora… Mas não é ignorante quem quer, e M. Boutmy não pode ser culpado por conhecer
profundamente as línguas antigas, nem M. de Séprès, por ser um matemático dos mais
brilhantes.
Os prospectos não falam, também, da igualdade das inteligências. Mas, essa é apenas,
como se sabe, uma opinião do Fundador. Ele próprio nos ensinou a separar estritamente as
opiniões dos fatos e a fundar qualquer demonstração somente sobre os últimos. Para quê chocar
desta opinião? Melhor mostrar-lhes os fatos, os resultados do método, para demonstrar a força
do princípio. É também por esta razão que não se expõe o nome de Jacotot. Fala-se, sobretudo,
Montaigne, Locke e Condillac. O próprio Mestre não disse que não há método Jacotot, somente o
método do aluno, o método natural do espírito humano? Para que, então, brandir seu nome,
como um espantalho? Em 1828, Durietz já havia prevenido o Fundador: ele queria levantar o
machado contra a «árvore das abstrações», mas ele não o faria à moda dos madeireiros. Ele
preparar o triunfo do método. Ele queria chegar à emancipação intelectual, por meio do Ensino
Universal103.
Mas a revolução vitoriosa de 1830 oferecia um palco bem mais amplo para esta tentativa.
Em 1831, a ocasião foi propiciada pelo mais moderno dos progressistas, o jovem jornalista Émile
de Girardin. Ele tinha vinte e seis anos. Era o neto do Marquês de Girardin, que havia protegido
o autor do Emílio. Bastardo, é bem verdade; mas inauguravam-se tempos em que ninguém mais
se envergonharia de seu nascimento. Ele podia sentir a chegada da nova era e de novas forças: o
imprensa. Ele zombava dos latinistas e dos pedantes. Ele zombava dos jovens tolos que as boas
famílias da província enviavam a Paris, para cursar Direito e cortejar jovens mais oferecidas. Ele
queria elites ativas, terras fertilizadas pelas últimas descobertas da química, um povo instruído
sobre tudo o que pode concorrer para sua felicidade material e esclarecido sobre a balança dos
direitos, dos deveres e dos interesses, que faz o equilíbrio das sociedades modernas. Ele queria
que tudo isso acontecesse rapidamente, que a juventude se preparasse, por meio de métodos
rápidos, para se fazer, o quanto antes, útil à comunidade; queria que as descobertas dos sábios e
dos inventores logo penetrassem na vida dos ateliês, dos lares e até nos lugares mais recônditos,
a fim de engendrar novos pensamentos. Ele queria um órgão para difundir esses benefícios sem
mais tardar. É bem verdade que havia o Journal des connaissances usuelles, de Lasteyrie. Mas
esse tipo de publicações era muito oneroso e, assim, fatalmente reservado ao público que dele
não tinha qualquer necessidade. Para que vulgarizar a ciência para acadêmicos, e a economia
doméstica para mulheres do mundo? Por isso, ele lançou, através de uma gigantesca campanha
de subscrições e de publicidade, o Journal des connaissances utiles, com uma tiragem de cem
mil exemplares. Para financiá-lo e prolongar sua ação, ele fundou uma nova sociedade. Chamou-
O preço dessa emancipação era simples. «As constituições, tal como os edifícios,
precisam de um solo firme e nivelado, dizia ele. A instrução fornece um nível às inteligências, um
solo para as idéias (…) A instrução das massas coloca em perigo os governos absolutos. Sua
ignorância, ao contrário, coloca em perigo os governos republicanos, pois, para revelar às massas
seus direitos, os debates parlamentares não esperam até que elas possam exercê-los com
discernimento. E, a partir do momento em que um povo conhece seus direitos, não há mais
outro meio de governar, além de instrui-lo. O que todo governo republicano precisa, então, é um
vasto sistema de ensino graduado, nacional e profissional, que leve luz à obscuridade das
massas, que substitua todas as distinções arbitrárias, que designe para cada classe seu nível, para
Essa nova ordem era sem dúvida a da dignidade reconhecida da população trabalhadora,
de seu lugar preponderante na ordem social. A emancipação intelectual era a inversão da velha
hierarquia, ligada ao privilégio da instrução. Até ali, a instrução havia sido o monopólio das
classes dirigentes, que justificavam sua hegemonia pelo fato, bem conhecido, de que as crianças
do povo, uma vez instruídas, não mais aceitavam o status de seus pais. Era preciso inverter a
lógica social do sistema. A partir de então, a instrução não seria mais um privilégio: a falta de
instrução é que seria uma incapacidade. Era preciso, para obrigar o povo a se instruir, que, em
1840, qualquer homem de vinte anos que não soubesse ler fosse declarado civilmente incapaz;
era preciso que lhe fosse imediatamente reservado um dos primeiros números do sorteio que
condenavam ao serviço militar jovens de pouca sorte. Esta obrigação a pesar sobre o povo seria,
ao mesmo tempo, uma obrigação contraída em seu favor. Era preciso encontrar métodos
expeditivos para que até 1840 toda juventude francesa soubesse ler. Tal foi a divisa da Sociedade
Nacional para a Emancipação Intelectual: «Esparramai a instrução sobre a cabeça do povo, vós
dos Métodos, admirador entusiasta do Ensino Universal, Eugène Boutmy. No primeiro número
do Jornal, ele prometia indicar métodos expeditivos para a instrução das massas. Ele manteve
sua palavra, em um artigo intitulado O ensino por si próprio. O mestre deveria ler em voz alta
Calipso e o aluno repetir Calipso, em seguida, separando bem as palavras, Calipso não, Calipso
não podia, etc. O método se chamava Ensino Universal Natural, em homenagem à natureza que
ensinava, ela própria, seus filhos. Um honorável deputado, M. Victor de Tracy, havia instruído
assim quarenta camponeses de sua comuna, com tal sucesso que eles puderam lhe escrever uma
carta, na qual registravam sua viva gratidão por terem sido introduzidos na vida intelectual. Que
pelo estabelecimento de M. de Séprès. Ela enviou seus comissários para examinar o novo método
de autodidaxia, que ensinava os jovens a refletir, a falar e a raciocinar a partir dos fatos,
segundo o método natural, que sempre foi o das grandes descobertas. A situação do
estabelecimento, situado à Rue de Monceau – num bairro parisiense renomado pelo seu ar –
deixava bem pouco a desejar, no que se refere à salubridade de sua alimentação, de sua higiene e
de sua ginástica, tanto quanto por seus sentimentos morais e religiosos. Em três anos de ensino
secundário e por um preço máximo de oitocentos francos por ano, a Instituição comprometia-se
a tornar os alunos aptos a apresentarem-se para qualquer exame, de modo que um pai de família
podia prever exatamente o custo da instrução de seu filho, calculando sua rentabilidade. Nessas
programas, para determinar a carreira a que destinavam esses jovens. Em contrapartida, uma
vez essa carreira determinada, os comissários da Sociedade cuidariam para que a orientação
desejada pelos pais fosse escrupulosamente seguida, a fim de que o aluno aprendesse tudo o que
poderia fazê-lo distinguir-se em sua profissão, e que não aprendesse nada de supérfluo106. Mas
os comissários não tiveram, infelizmente, a possibilidade de levar muito além sua colaboração
com a obra do Liceu Nacional. Uma instituição agrícola bretã, destinada a difundir os
conhecimentos agronômicos e, ao mesmo tempo, regenerar uma parte da juventude ociosa das
financeiro. Mas ela, ao menos, havia semeado para o futuro: «Era um bom jornal, o dos
qualquer perigo. Quando um cavalo recebe antolhos e é montado por um bom cavaleiro, sabe-se
onde vai. Ele mesmo nada sabe, mas pode-se estar tranqüilo: por entre montes e vales, ele jamais
se desviará107.
o triunfo do velho
ser colocados a serviço dos progressistas, que trabalhavam, eles próprios, para maior benefício
revistas e jornais que entretinham o amor pelas explicações pelo aperfeiçoamento indefinido de
instituição explicadora e o poder de sanção social. «Por isso, todas essas patentes de invenções
tantas outras belas coisas, copiadas em livros novos, que oferecem novas explicações para os
mais antigos; o todo recomendado aos explicadores especializados de nossa época, que se riem, e
com razão, uns dos outros e de suas profecias. Jamais, como hoje em dia, os donos de patentes
foram merecedores de tanta lástima. Eles são tão numerosos que quase não encontram um aluno
que não tenha sua pequena explicação aperfeiçoada; de modo que serão brevemente reduzidos a
se explicarem reciprocamente sua respectivas explicações (…) o Velho zomba de suas brigas, os
excita, nomeia comissões para julgá-los; contudo, por mais que as comissões aprovem todos os
aperfeiçoamentos, ele jamais cede seu velho cetro a qualquer um deles. Divide et impera. O
Velho reserva para si os colégios, as universidades e conservatórios, e não concede aos outros
Tal como o tempo, o sistema explicador se alimenta de seus próprios filhos, aos quais
devora à medida que são produzidos; uma nova explicação, um novo aperfeiçoamento nascem e
o jovem método industrial investirá, diante das bugiarias científicas de seu avô; no entanto, os
industriais empregarão ainda suas regras e seus compassos aperfeiçoados para construir o trono
em que o Velho, senil, reinará sobre todos os ateliês. Em uma palavra, enquanto houver madeira
das inteligências. E, de fato, essa divisão de papéis nada tinha de inconseqüente: o que fundava a
distração dos progressistas era a mesma paixão que funda qualquer distração – a opinião da
desigualdade. É bem verdade que a ordem social não obriga ninguém a acreditar na
Mas esse simples anúncio – que os policiais jamais serão suficientes para impedir – encontra
também a resistência mais impenetrável: a da hierarquia intelectual, que não tem outro poder, a
não têm outro poder senão a ignorância, a incapacidade do povo, que embasa seu sacerdócio.
Como, sem abrir o abismo sob seus pés, diriam aos homens do povo que não precisam recorrer a
eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo que convém a sua dignidade? «Cada
um desses pretensos emancipadores tem seu rebanho de emancipados, em que coloca sela,
rédeas e brida»109. Todos se unem, portanto, para rejeitar o único método que não é bom, o
Os que calam esse nome próprio sabem o que fazem. Pois esse é o nome que faz, por si só,
toda a diferença, que diz igualdade das inteligências e cava o abismo sob os pés de todos os
provedores de instrução e de felicidade para o povo. É preciso que o nome seja calado, que o
anúncio não se propague. E que o charlatão o saiba, de uma vez por todas: «Tu podes gritar por
escrito, os que não sabem ler não podem saber senão por nós o que imprimiste; e seríamos bem
tolos em anunciar-lhes que eles não têm necessidade de nossas explicações. Se dermos lições de
leitura a alguns, continuaremos a empregar todos os bons métodos, jamais os que poderiam
passar a idéia da emancipação intelectual. Guardemo-nos de começar pela leitura das orações,
pois a criança que as conhece poderia acreditar que as teria adivinhado por si própria. E,
sobretudo, que ela jamais descubra que aquele que sabe ler as orações pode aprender a ler,
sozinho, todo o resto (…) guardemo-nos de jamais pronunciar estas palavras emancipadoras:
aprender e relacionar.110
O que, mais do que tudo, era preciso evitar era que os pobres soubessem que eles podiam
se instruir por suas próprias capacidades, que eles tinham capacidades – essas capacidades que
sucediam, agora, na ordem social e política, aos antigos títulos de nobreza. E a melhor coisa a
fazer era instruí-los, isto é, dar-lhes a medida de sua incapacidade. Por toda parte se abriam
escolas, mas em nenhum lugar se desejava anunciar a possibilidade de aprender sem mestre
explicador. A emancipação intelectual tinha fundado sua «política» sobre um princípio: não
buscar penetrar as instituições sociais, passar pelos indivíduos e pelas famílias. Mas chegara-se a
tornar caduca. Instituições sociais, corporações intelectuais e partidos políticos vinham, agora,
bater às portas das famílias, se dirigir a todos os indivíduos para instrui-los. Até então, a
milhares de advogados, de médicos e de universitários. Todo o resto das carreiras sociais estava
aberto àqueles que se haviam formado à sua guisa. Não era preciso, por exemplo, bacharelar-se
para ser politécnico. Mas, com o sistema de explicações aperfeiçoadas, instaurava-se, também, o
de exames aperfeiçoados. Desde então, com a ajuda dos aperfeiçoadores, o Velho bloqueava
cada vez mais, com seus exames, a liberdade de aprender por outro meio além de suas
explicações e pela nobre ascensão de seus graus. A partir daí, o exame aperfeiçoado –
caminho de quem pretendesse caminhar na sociedade por seus próprios pés. A emancipação
intelectual via, assim, suas defesas – as falhas da antiga ordem – inexoravelmente investidos
a sociedade pedagogizada
Para isso, todos conspiravam – e tanto mais, quanto mais queriam a república e a
felicidade do povo. Os republicanos têm por princípio a soberania do povo, mas eles sabem
perfeitamente que o povo soberano não pode ser identificado com a multidão ignorante e
inteiramente entregue à defesa de seus interesses materiais. Eles sabem perfeitamente que a
república significa igualdade de direitos e de deveres, mas que ela não pode decretar a igualdade
das inteligências. E é claro que a inteligência de um camponês atrasado não é a mesma que a de
um líder republicano. Uns pensam que a desigualdade inevitável concorre para a diversidade
social, como a infinita variedade de folhas concorre para a inesgotável riqueza da natureza. Basta
que ela não impeça que a inteligência inferior compreenda seus direitos e, sobretudo, seus
deveres. Outros pensam que o tempo, pouco a pouco, progressivamente, atenuará esta
igualdade – da boa igualdade, da igualdade não funesta – tem o mesmo requisito, a instrução do
povo: a instrução dos ignorantes pelos sábios; dos homens mergulhados em suas preocupações
materiais egoístas pelos homens devotados; de indivíduos fechados em seu particularismo pela
princípio, não haveria, em boa lógica, senão uma conseqüência a ser deduzida: a direção de uma
sinceros sentem um salto no coração, diante dessa conseqüência. Todo seu esforço consiste em
aceitar o princípio, recusando a conseqüência. É o que faz o eloqüente autor do Livro do povo,
iguais111». Mas o homem do povo deveria, por esta razão, ser condenado à obediência passiva, ser
reduzido ao nível dos animais? Não pode ser assim: «Sublime atributo da inteligência, a
soberania de si distingue o homem da besta»112. É certo que a repartição desigual desse sublime
atributo põe em perigo a «cidade de Deus» que o predicador convida o povo a edificar. Mas ela
permanece possível, se o povo souber «servir-se com sabedoria» de seu direito conquistado. O
meio para que ele não seja depreciado, o meio para que ele se sirva de seu direito com
sabedoria, o meio para construir igualdade com a desigualdade, é a instrução do povo, isto é, a
Tal é a lógica que se institui, a da «redução» das desigualdades. Quem consentiu com a
ficção da desigualdade das inteligências, que recusou a única igualdade que a ordem social,
direitos e deveres. A Instrução Pública, a ficção social instituída da desigualdade como atraso é a
mágica que conciliará todos esses seres de razão. E ela o fará ampliando ao infinito o campo de
suas explicações e dos exames que as controlam. Nesse sentido, o Velho sempre ganhará, com as
Contra isso, nada mais há a fazer, além de redizer sempre a esses homens supostamente
sinceros que prestem mais atenção: «Mudai esta forma, quebrai esta coleira, rompei, rompei
todo pacto com o Velho. Imaginai que ele não é mais imbecil do que vós. Pensai sobre isso, e
dizei-me o que vos parece»113. Mas como poderiam eles escutar o que se segue? Como escutar
que a missão dos luminosos não é esclarecer os obscurantistas? Que homem de ciência e de
devoção aceitaria deixar sua lucerna sobre o alqueire e o sal da terra sem sabor? E como as
jovens plantas frágeis, os espíritos infantis do povo acreditariam sem o benfazejo orvalho das
explicações? Quem poderia compreender que o meio, para eles, de elevarem-se na ordem
intelectual não era aprender com os sábios o que ignoravam, mas ensinar a outros ignorantes?
Este discurso, um homem pode, com muita dificuldade, compreendê-lo; mas nenhuma
capacidade jamais o entenderá. Joseph Jacotot, ele próprio, nunca não o teria escutado sem o
acaso que o fizera mestre ignorante. Somente o acaso é forte o suficiente para derrubar a crença
Bastaria, no entanto, um nada. Bastaria que os amigos do povo, por um curto instante,
fixassem sua atenção sobre esse ponto de partida, sobre esse primeiro princípio, que se resume
em um simples e bastante antigo axioma metafísico: a natureza do todo não pode ser a mesma
do que a das partes. O que se fornece de racionalidade à sociedade toma-se aos indivíduos que a
compõem. E o que ela recusa aos indivíduos, a sociedade poderá tomar para si, mas jamais
poderá devolver-lhes. Dá-se com a razão o mesmo do que com a igualdade, que é seu sinônimo.
É preciso escolher entre atribui-la a indivíduos reais ou à sua fictícia reunião. É preciso escolher
entre fazer uma sociedade desigual com homens iguais, ou uma sociedade igual com homens
desiguais. Quem tem só um pouco de gosto pela igualdade não deveria hesitar: os indivíduos são
Bastaria aprender a ser homens iguais em uma sociedade desigual – é isto que
emancipar significa. Esta coisa tão simples é, no entanto, a mais difícil de compreender,
consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais, reduzir indefinidamente a
desigualdade. Porém, quem tomou esse partido só tem um meio de levá-lo a termo: a
instituição explicadora e a sociedade. A sociedade dos inferiores superiores será igual, ela
de explicadores explicados.
causa do progresso social. E o progresso social era, antes de qualquer outra coisa, o progresso na
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 129
capacidade de a ordem social ser reconhecida como ordem racional. Essa crença só poderia se
sufocamento das virtualidades humanas contidas na idéia de igualdade. Uma enorme máquina
tempos. Jacotot foi o único a pensar esse ocultamento da igualdade sob o progresso, da
emancipação sob a instrução. Entendamos bem: seu século conheceu uma profusão de oradores
homenagear. Porém, talvez seja honra excessiva: eles simplesmente odiavam a igualdade.
acarretava a renúncia à aventura intelectual e moral da igualdade e que a instrução pública era o
trabalho do luto da emancipação. Um saber dessa ordem provoca uma horrorosa solidão. Jacotot
emancipadora. Ele fez saber aos discípulos que escondiam seu nome sob a insígnia do «método
natural»: ninguém, na Europa, estava em condições de carregar esse nome, o nome do louco. O
nome Jacotot era o nome próprio desse saber, a uma só vez desesperado e irônico, da igualdade
os contos da panecástica
Não havia nada a fazer, senão manter a distância agarrada a esse nome próprio. Assim,
Jacotot cuidou de colocar as coisas em seu devido lugar. Para os progressistas que vinham vê-lo,
reservava um crivo. Quando eles se inflamavam por causa da igualdade, ele lhes dizia,
suavemente: pode-se ensinar o que se ignora. Esse crivo mostrava-se, infelizmente, muito eficaz.
Era como apoiar sobre uma mola que jamais deixava de responder. A palavra, diziam eles
unanimemente, era mal escolhida. Havia ainda os discípulos, dentre os quais uma pequena
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 130
falange, que se incumbia, agora, de carregar a bandeira face aos professores do Ensino Universal
«Natural». Com eles, procedia à sua maneira, pacificamente. Ele os dividia em duas classes: a
em emancipar pais de família, na medida em que lhes mostravam como ensinar a seus filhos o
que ignoravam. Está claro que, nem por isso, tinham o mesmo peso para ele, que preferia «um
emancipado ignorante, um só, a cem milhões de sábios instruídos pelo Ensino Universal e não
jornal – generosamente alimentado pelos melhores trabalhos dos alunos do Liceu Nacional. A
ele estava ligada uma Sociedade para a Propagação do Ensino Universal cujo vice-presidente
impossibilidade de que pais de família pobres pudessem se ocupar, eles próprios, da instrução de
seus filhos. Era preciso marcar a diferença: o jornal de Jacotot, que seus dois filhos redigiam a
partir do que ele ditava – sua enfermidade o impedia de escrever, ele era obrigado a lutar para
sustentar uma cabeça que não mais queria se manter ereta – este jornal, portanto, tomou o título
de Jornal de Filosofia Panecástica. À sua imagem, seus fiéis criaram uma Sociedade de Filosofia
ingênuo Fedro. Mas, à diferença desses protagonistas de Platão, ele não reconhecia uma
hierarquia entre os oradores, nem entre seus discursos. O que lhe interessava, ao contrário, era
buscar sua igualdade. Tampouco ele esperava de qualquer discurso a verdade. Pois a verdade se
sente, não se diz. Ela fornece uma regra para a conduta do orador, mas ela jamais se manifesta
em sua frases. O panecástico também não julga a moralidade dos discursos. A moral que conta
para ele é aquela que preside ao ato de falar e de escrever, aquela da intenção de comunicar, do
reconhecimento do outro como sujeito intelectual capaz de compreender o que outro sujeito
intelectual quer lhe dizer. O panecástico se interessa por todos os discursos, por todas as
Isso supunha a adoção de uma atitude inédita em relação aos debates da época. A batalha
intelectual acerca do povo e de sua capacidade está na moda: M. de Lamennais publicara o Livre
havia denunciado a inconseqüência. Mme. George Sand havia, por sua vez, tomado a si a
bandeira do povo e de sua soberania. O Journal de philosophie panécastique analisava cada uma
destas manifestações intelectuais. Cada qual pretendia trazer ao campo político o testemunho da
verdade. Tratava-se de uma questão do interesse do cidadão, mas ao panecástico ela de nada
interessava. O que lhe importava era a cascata de refutações, era a arte que uns e outros
empregavam para exprimir o que queriam dizer. Ele mostrava como, ao traduzirem-se, eles
traduziam mil outros poemas, mil outras aventuras do espírito humano, obras clássicas, como,
até mesmo, o Barba Azul ou as réplicas proletárias da Praça Maubert. Essa pesquisa não era um
prazer de erudito. Era uma filosofia, a única que o povo podia praticar. As velhas filosofias
diziam a verdade e ensinavam a moral. Elas supunham que, para tanto, era preciso ser muito
sábio. A panecástica não dizia a verdade, nem pregava qualquer moral. Além disto, era simples e
fácil como o relato que cada qual faz de suas aventuras intelectuais. «É a história de cada um de
nós (…) Qualquer que seja vossa especialidade, pastor ou rei, podeis discorrer sobre o espírito
humano. A inteligência está em ação em todos os ofícios; ela pode ser encontrada em todos os
o mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual 132
degraus da escala social (…) o pai e o filho, ignorantes um e outro, podem entreter-se de
panecástica»115.
não era diferente daquele dos sábios e dos poderosos: como esses últimos, eles só podiam
não se concede, nem se reivindica, ela se pratica, ela se verifica. E os proletários não podiam
Eles, sem dúvida, tinham interesse em lutar, por exemplo, pela liberdade de imprensa – atacada
pelas leis de setembro de 1835; eles deviam, contudo, reconhecer que, para defendê-la, o
raciocínio de seus defensores não dispunha nem de mais força, nem menos, do que dispunham
de seus adversários para refutá-la. Pretendo – dizem, em resumo, alguns, que se tenha a
liberdade de dizer tudo aquilo que se deve ter a liberdade de dizer. – Não quero, respondiam,
em suma, os outros, que se tenha a liberdade de dizer tudo aquilo que não se deve ter a
igual que, para sustentar essas posições antagônicas, uns traduziam dos outros; na estima,
nascida da comparação, pelo poder da inteligência, que não cessa de se exercer no próprio seio
da desrazão retórica; no reconhecimento daquilo que falar pode querer dizer, para quem
renuncia à pretensão de ter razão e de dizer a verdade, ao preço da morte do outro. Apropriar-se
dessa arte, conquistar essa razão – era isto que contava para os proletários. É preciso ser
homem, antes de ser cidadão. «Qualquer que seja o partido que, como cidadão, ele possa tomar
nessa luta, como panecástico, ele deve admirar o espírito de seus adversários. Um proletário,
expulso da classe dos eleitores e, por motivo ainda mais forte, da classe dos elegíveis, não é
obrigado a considerar justo o que lhe parece como uma usurpação, nem de amar os usurpadores.
Mas ele deve estudar a arte daqueles que lhe explicam como ele é despojado para o seu próprio
bem»116.
Nada havia a fazer, senão persistir em indicar essa via extravagante, que consistia em
identificar em cada frase, em cada ato, o lado da igualdade. A igualdade não era um objetivo a
atingir, mas um ponto de partida, uma suposição a ser mantida em qualquer circunstância. A
verdade jamais falaria por si própria. Ela jamais existiria sem a verificação, sempre e em toda
parte. E isso não era um discurso a fazer ao povo, mas apenas um exemplo, ou, antes, exemplos,
a serem demonstrados em uma conversa. Isso era uma moral do fracasso e da distância, a ser
mantido até o fim com aqueles que quisessem partilhá-lo: «Buscai a verdade e não a
encontrareis, batei à sua porta e ela não vos abrirá, mas essa busca vos será útil para aprender a
fazer (…) renunciai a beber dessa fonte, mas não cesseis de buscar beber aí (…) Vinde, e
poetizaremos. Viva a Filosofia Panecástica! Ela é uma contadora de histórias que jamais chega ao
fim de seus contos. Ela se entrega ao prazer da imaginação, sem ter qualquer conta a prestar à
verdade – que, velada, ela só enxerga por debaixo de seus disfarces. Ela se contenta em admirar
essas máscaras, analisá-las, sem se atormentar quanto ao semblante que está por debaixo. O
Velho jamais está satisfeito; ele levanta uma máscara, se regozija, mas sua alegria dura pouco:
ele percebe rapidamente que a máscara que retirou cobria uma outra, e, assim, até a consumação
dos que buscam verdades. A supressão dessas máscaras superpostas é o que se chama de história
o túmulo da emancipação
1841 pelos filhos de Joseph Jacotot – Victor, o médico, e Fortuné, o advogado. O Fundador havia
fizeram gravar o credo da emancipação intelectual: Creio que Deus criou a alma humana capaz
de se instruir por si própria, e sem mestres. Mas estas coisas, decididamente, não se escrevem,
nem mesmo sobre o mármore de uma tumba. Alguns meses mais tarde, a inscrição seria
profanada.
substituir a voz de um solitário – nem mesmo quando, durante vários lustros, com ele se
Encarnado – que, como estamos lembrados, M. Luois Guillard dirigia nessa cidade, segundo os
princípios que aprendera em sua viagem a Louvain: o ensino deveria ser baseado no Conhece-te
a ti mesmo. Assim, o exame de consciência cotidianamente praticado pelas jovens almas dos
pensionistas dava-lhes a força moral que conduzia ao sucesso de sua aprendizagem intelectual.
doutrina emancipadora, publicada no número de setembro de 1842. Não era mais, porém, tempo
de debate. Dois meses após, era a vez de o Journal de l’émancipation intellectuelle silenciar-se.
O Fundador bem havia predito que o Ensino Universal não vingaria. É bem verdade que