Fluxo - Bianca Scliar e Rafaela Herran - A Dança Concreta
Fluxo - Bianca Scliar e Rafaela Herran - A Dança Concreta
Fluxo - Bianca Scliar e Rafaela Herran - A Dança Concreta
Bianca Scliar
Rafaela Samartino Herran
DOI: 10.5965/1414573104492023e0201
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons – (CC BY 4.0)
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A dança concreta não concreta das Mulheres Guarani
Bianca Scliar | Rafaela Samartino Herran
Este artigo dança com o xondaro para refletir sobre os corpos sensoriais
ativados na dança. A partir de um mergulho em sonhos e visões, destacamos
modos de socialidade ativados entre humanos e não humanos. O diálogo
entre autores da filosofia processual e as práticas dançadas na Casa de Rezo
destaca as concepções de transindividualidade e percepção não sensória,
conceitos relevantes para compor com as espirais rítmicas que sustentam
essa dança. O xondaro se faz livre, foge das palavras, faz um corpo do corpo
que move. O que dança o xondaro é a pergunta que este texto se propõe a
responder.
This article dances with the xondaro to reflect on the sensory bodies
activated in dance. We dive into dreams and visions to highlight modes of
sociality activated between humans and non-humans. The dialogue between
process philosophy and the practices danced at Casa de Rezo brings up the
notions of transindividuality and non-sensed perception, concepts relevant to
compose the rhythmic spirals that sustain this dance. The xondaro becomes
free, runs away from words, makes a body out of the body that moves. What
does xondaro dance? This is the question that this text proposes to answer.
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Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Denize Gonzaga é historiadora, museóloga,
e produtora Cultural. Revisora do Caixa-Ponto, Jornal de Teatro e da FGV.
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Doutora em Artes e Filosofia pela Concordia University (Montreal/Canadá). Mestre em Arte Pública e
Estratégias Contemporâneas pela Bauhaus Universität-Weimar. Graduada em Artes Visuais pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Professora Adjunta do Curso de Artes Cênicas da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). [email protected]
http://lattes.cnpq.br/8372597292097059 https://orcid.org/0000-0003-3406-8647
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Mestre em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduada em Artes
Cênicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atriz, professora.
[email protected]
http://lattes.cnpq.br/7702745389846893 https://orcid.org/0000-0002-6390-5259
Este artículo baila con el xondaro para reflexionar sobre los cuerpos
sensoriales activados en la danza. A partir de una inmersión en sueños y
visiones, destacamos modos de socialidad activados entre humanos y no
humanos. El diálogo entre autores de filosofía procesual y las prácticas
danzadas en la Casa de Rezo resalta los conceptos de transindividualidad y
percepción no sensorial, relevantes para componer las espirales rítmicas que
sustentan esta danza. El xondaro se libera, huye de las palabras, hace cuerpo
del cuerpo que se mueve. Qué baila el xondaro es la pregunta que este texto
se propone responder.
Percebemos que não bastava ver a dança das mulheres Guarani, nem mesmo
dançar junto. Era preciso dar-se às conversas, ouvi-las e ali, a partir das narrativas,
pudemos reconhecer que o corpo que dança não coincide com o corpo que vemos
dançar. A dança extende-se em um processo de improvisação e mobilidade sem
análogos desde as descrições baseadas em epistemológicas lineares e que
colocam os sentidos como preceitos para a volição e sensações do corpo. No
xondaro é preciso descrever algo que não é concreto, mas um vocabulário
espiritual ou metafísico parecia insuficiente pois a dança de fato leva os sentidos
até Nhanderu ete. Recorremos então à noção de apresentação-sensória, forjada
por Whitehead, para reconhecer que há uma parcela da experiência que tem
qualidades, impressões e expressividade, mas que não é concreta, apesar de ser
dançada.
Em seu relato sobre corpo e consciência e sobre como ambos escapam aos
sentidos, Whitehead desenvolve a noção de percepção não sensória para referir-
se à produção de sentidos em conjunção com a percepção concreta. Ao tratar o
não sensório como dado da experiência, ele sinaliza em direção ao campo que
excede a apresentação dos sentidos e convida a compreender o corpo individual
por meio de outras relações com a matéria de fato e com o corpo coletivo, que se
estende ao campo relacional. Para Whitehead, na percepção não sensória, o corpo
emerge não da apresentação-sensória do ambiente (aquilo o que é sentido escapa
à localização ou às qualidades), mas de uma sobreposição de apresentações que
antecipam o futuro imediato — conduzem a uma percepção direta do tempo não
sincronizada com a matéria de fato. Com a percepção não sensória, segundo
Whitehead, o movimento ativa passado e o presente fundidos a experiência. Para
além disso, com o pensamento desenvolvido por Erin Manning, sublinhamos que
habitualmente tomamos a percepção como algo que se finaliza no humano, o que
nos leva a obliterar as forças transindividuais, a destacar o indivíduo em
detrimento do campo expandido, lógica que produz o que a autora chama de
“genocídio da relação”5 (Manning, 2023, p. 15). Assim, a dança das mulheres Guarani
que percebemos no xondaro, excede suas posicionalidades, excede relações
espaciais, rítmicas e de intensidade. O movimento se instaura num corpo sentido
mas não sensorial.
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Even if we trust the evidence of our senses, however, we may still be severely limited in the extent of what
we can actually know. (Tradução nossa)
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Manning reforça a importância da transindividuação como instância na qual os sentidos se transmitem, se
preservam, criam e propulsionam um corpo a tomar forma. Para a autora, o campo relacional não pode ser
traçado, mas pode ser tomado em consideração para nos permitir acessar a porção partilhada que precede
e excede o individual. Em relação a isso, a autora afirma o seguinte: “The genocide of relation can never be
traced back”. (Tradução nossa).
Ateramos neste artigo o tom que especula sobre os corpos com o relato
individual da memória ainda viva do dia, no ano de 2011, em que recebi o convite
que adveio de uma amiga para acompanhá-la à Aldeia Mbyá Guarani Yynn Moroti
Wherá, da Terra Indígena M’Biguaçu, localizada às margens da BR-101, no município
de Biguaçu, Santa Catarina. Compreendemos essa caminhada como um ato
libertário e político que nos levou a ir ao encontro do ancestral, aquilo que é tão
antigo, que prevê o futuro.
por nós para tratar dos efeitos de uma movência transindividual (Herran, 2022).
Para nós, tais forças implicam a dança, a pré-compõe. Estas forças são
ensaiadas no círculo sagrado, para entrar em atuação em planos não humanos do
movimento. Fato é que, ao considerar a semblância no xondaro, nos rendemos
ante a impossibilidade de arquivar e enumerar o que o Massumi chama de
ocorrências, os elementos formais que descrevem uma dança. Conforme
apresentamos aqui e em outros trabalhos (Herran, 2022), o dançar entre humanos
e não humanos que o xondaro presume clama por esta abstração vivida, que,
conforme nos relembra Massumi, se agita antes do movimento tomar forma e que
requer o exercício das técnicas existências, as danças compartilhadas no círculo
sagrado (Massumi, 2011, p. 27).
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Activist philosophy refuses to recognize these divisions as fundamental, or to accept the hierarchy they
propagate. Its own fundamental duplicity, that of the relational/participative and the qualitative/creatively-
self-enjoy- ing, suggests a different schema. The relational/participatory aspect of process could fairly be
called political, and the qualitative/creatively-self- enjoying aspect aesthetic. These aspects are not treated
as in contradiction or opposition, but as co-occurring dimensions of every event’s relaying of formative
potential. (Tradução nossa)
Se, como ele afirma, há uma duplicidade no fato de que cada ocasião da
experiência chega até nós através de atividades que não são ela própria, mas que
apresenta-se como fragmentos somados ao acontecimento sensível, é impossível
encontrarmos a reversibilidade causal naquilo que percebemos. Esta asserção
complica as narrativas sobre as danças que dançam com o não humano, como é
o caso do xondaro. Aqui, precisamos salientar que não há metáforas, mas uma
dança que move sociabilidades entre-mundos. Não há uma presunção metafísica,
mas sim uma prática, uma técnica em ação que de fato mobiliza esses entre-
mundos, entre corpos, entre as percepções sensíveis e as não sensórias.
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A sinestesia, fenômeno recorrentemente negligenciado como parte da composição do acontecimento, é
parte fundamental deste processo que chamamos de amodal. Para mais informações sobre sinestesia na
experiência estética e percepção, ver Massumi (2011), Manning (2022).
Pode se dizer, desde as falas de Dona Rosa sobre a dança Guarani, que o
nhebodjaity (ritmo) sintoniza o conhecimento, acolhendo a intensidade e indicando
o tom de voz que acompanham os instrumentos, além de proporcionar um
alinhamento que é considerado como uma conexão e concentração (djapuxaká).
Esta sintonia multidimensional faz com que os caminhos por onde circulam os
espíritos se abram e seja possível receber o conhecimento, a cura.
“esta” visão, este passo, esta vibração do som, etc.), mas das sobreposições que
descrevemos anteriormente. Assim sendo, na dança, surge uma percepção direta
do tempo, sincronizada no fluxo dos corpos em movimento e, com ela, o
sentimento, em movimento, de que o passado e o presente coagulam em uma
experiência de simultaneamente única mas já sentida. Assim, podemos afirmar,
finalmente, que, na criação e técnica inventiva do xondaro, ocorre não apenas o
exercício de uma individualidade encontrada com o sagrado (seja em
contemplação ou revelação), mas um acontecimento incorpóreo, evidenciado
quando o presente da relação deixa de ser pessoal ou objetivo. Nomeamos
incorpóreo, porque se refere à força que antecede e modula o gesto. O corpo que
dança nos alcança.
É ter esse cuidado de fazer o passinhos tudo igual, sempre juntinhas, sem
um pra lá outro pra cá, às vezes dá vontade de ir lá pra frente, mas que
a gente vá todo mundo junto, então isso é a força da mulher né, isso é a
força feminina mesmo, então eu acho que dá pra gente conseguir isso
né... a gente não cansa, porque a gente tá ali uma concentrada na outra,
então a gente divide a força, divide o cansaço com outra e vai indo...
Ganha mais força porque a gente tá ali grudadinha uma na outra então...
Na verdade não pode desistir, é porque dai na verdade né que é o círculo
das mulheres né não pode se quebrar na verdade, na verdade tem que
pular até cair, nem que caia, enquanto puder pular pula porque isso é
bonito, aí no momento que você se entrega pra aquilo que tá te
impedindo você quebra, é porque é uma corrente né, é uma corrente...
tem que ser forte por isso que é treinado pra isso que ela diz assim, tem
que praticar, tem que nheemboe, nheemboe é quando a gente tem que
aprender pra fazer isso... Na verdade é cada um tem o seu jeito de dançar,
mas a verdadeira a gente nunca sabe né, então é bem o segredo né,
assim, é o mistério que acontece no momento da cerimônia do ritual
então por isso que a gente tem que prestar atenção porque cada
cerimônia, cada acontecimento é diferente, então é o segredo.
Adriana Moreira Keretchu (informação verbal8)
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Em roda de conversa, 2017.
Referências
CADOGAN, León. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Gauirá.
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1959.
MANNING, Erin. Out of the Clear. Nova Iorque: Minor Composition, 2023.
MASSUMI, Brian. Semblance and the Event: Activist Philosophy and the Arts.
Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2011.
WHITEHEAD, Alfred North. Religion in the Making. Nova Iorque: The Macmillan
Company, 1926.