Corpo Encostado - Ana Claudia

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Repertório, Salvador, nº 25, p.37-40, 2015.

CORPO-ENCOSTADO*
LEANING BODY

Ana Claudia Moraes de Carvalho1

Resumo: O presente artigo mostra um estudo episte- Abstract: This article presents an epistemological and
mológico e metodológico com base na Etnocenologia, methodological study based on Etnocenologia on body
sobre corpo e suas interfaces, contribuindo para o pro- and its interfaces, contributing to the process of crea-
cesso de criação em Artes Cênicas. Visa compreender tion in Performing Arts. This research seeks to unders-
o fazer ritual de uma comunidade de Candomblé Ketu, tand the ritual model of a community of Candomblé
em Benevides-Pará, pela outridade. A partir de então, Ketu in Benevides - Pará, by otherness. As a result body
noções de corpo foram propostas: corpo-templo, da rela- concepts were proposed: body-temple, the relationship
ção com as entidades; corpo-cena, na construção do cor- with the entities; body-scene, in body building actress; and
po da atriz; e em sua derivação enquanto corpo-encos- its derivation as a body-leaning, the cosmic force of the
tado, pela força cósmica das entidades, apadrinhando o entities sponsoring the artwork, the result of research
trabalho artístico, resultado das pesquisas realizadas nos conducted in the sacred space of temples.
espaços sagrados dos terreiros.
Keywords: Body. Etnocenologia. Creation process.
Palavras-chave: Corpo. Etnocenologia. Processo de Otherness.
criação. Outridade.

* Noção de corpo artístico concebido a partir das pes-


quisas para o doutorado, na relação da atriz que encena
um corpo sagrado. “Andar com fé eu vou,
que a fé não costuma falhar...”
1
Possui graduação em Pedagogia e pós-graduação em Gilberto Gil
Psicopedagogia Preventiva pela Universidade do Esta-
do do Pará e pós-graduação em Estudos Contempo-
râneos do Corpo pela Universidade Federal do Pará.
Atualmente é Coordenadora Pedagógica e professora
de Educação Inclusiva na EEEM Alexandre Zacharias
Meu encontro com a Etnocenologia surgiu no
de Assumpção/SEDUC e mestra em Artes pelo Insti- curso de especialização do Instituto de Ciências da
tuto Ciências das Artes/ICA- UFPA. Trabalhou como Arte/ICA, da Universidade Federal do Pará/UFPA.
instrutora de dança-teatro com a crianças do projeto Desde o início esse novo universo contemplou o
de Iniciação Artística da Fundação Curro Velho. Tem que buscava nas pesquisas, pois abrigava o afeto e
experiência na área de Artes, com ênfase em teatro e a noção de coletividade. Noção essa emanada da
dança. É atriz e bailarina da Companhia Atores Con- força que vem da organização artístico-cultural do
temporâneos e da Companhia Brasileira de Cortejos. povo. Força coletiva que fez toda a diferença em
É membro do Grupo de Pesquisa em Etnocenologia minha formação enquanto artista-pesquisadora-et-
e Carnaval - TAMBOR. Atualmente trabalha como nocenológica. A partir de então, adentrei nos estu-
professora convidada no Parfor/UFPA no Curso de
dos da Etnocenologia, aprofundando-os no curso
Graduação em Teatro e é a Primeira Porta-Bandeira da
Escola de Samba Rosa da Terra Firme.
de Mestrado em Artes, pelo mesmo Instituto.
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Meu trajeto afetivo, então, foi sendo traçado simbólica e social do povo de santo. A pesquisa so-
com bases etnocenológicas de outridade, ou alte- bre o corpo da Yaô, filha de santo, corpo-templo3 de
ridade, buscando a capacidade de pensar, respeitar, uma Yemanjá Ogunté, revelou informações nunca
admirar, respirar o outro. A outridade foi o dife- antes vivenciadas por mim em uma pesquisa. Com-
rencial na escolha pela Etnocenologia. A disciplina preendo que a singularidade estava no fato de aden-
apresenta, como principal pilar epistemológico, as trar em um campo espiritual, desconhecido.
Práticas e Comportamentos Humanos Espetacula- No estudo sobre o corpo de uma Yaô e sua co-
res Organizados/PCHEOS e se organiza em três munidade, construí a metodologia circular4 a fim de me
eixos principais: as Artes do Espetáculo, os Ritos aproximar da essência espiralar do Candomblé e de
Espetaculares e os Papeis Sociais. Para Bião, os Ri- toda sua organização sócio-espiritual. A metodo-
tos Espetaculares são fenômenos adjetivamente logia circular foi construída a partir dos estudos e
espetaculares porque: proposições adquiridas nas pesquisas realizadas em
campo, na observação dos espaços e espetaculari-
Esses fenômenos, sem possuírem, de modo ex- dade sagrada. Na etnometodologia da pesquisa so-
plícito e cabal, todas as mesmas características bre o Candomblé e seu ritual utilizei o movimento
acima descritas, mormente no que tange à gra- anti-horário para cruzar noções, proposições, cria-
tuidade, ainda assim, envolvem, em sua realiza- ções, ciências afins, onde todos os pontos cruzam-
ção, também completa e coletiva, formas sociais
-se várias vezes para adensar o pensamento episte-
de representação, aparentadas às do teatro e da
mológico da pesquisa. Essa imagem metodológica
ópera, por exemplo, formas de padrões corpo-
rais ritmados, como os compartilhados com a representa o xiré, roda ancestral do Candomblé,
dança e a música cênica, formas de brincadei- onde são dançados seus movimentos litúrgicos.
ra comunitária, assim como certos folguedos, e Partindo da força matriz dessa manifestação
formas de ações coletivas envolvendo o prazer religiosa, a coletividade, em função do corpo-templo
do testemunho do risco físico, como as artes cir- exaltado na comunidade, surgiu a noção de circula-
censes por exemplo. É o campo dos rituais reli- ridade das preposições5, onde a irmandade se prepara
giosos e políticos, dos festejos públicos, enfim para os rituais de perpetuação de suas tradições.
dos ritos representativos ou comemorativos, na Pelos, para e sobre as entidades e seus rituais, a co-
terminologia de Émile Durkheim. Nesse grupo munidade em uma circularidade constante realiza
de objetos, ser espetacular seria uma qualidade
suas festas espirituais. Tudo está em sintonia para
complementar, imprescindível decerto para sua
conformação, mas não substancialmente essen-
que o ritual aconteça na roda e no espaço ances-
cial. (2007, p. 27) tral. Como resultado das pesquisas realizadas no
terreiro, construí dois solos artísticos que foram
Enveredei para a pesquisa de fenômenos dentro apresentados no cortejo teatral – O Auto do Círio,
dos Ritos Espetaculares, por eu ser da Amazônia Projeto de Extensão da Universidade Federal do
brasileira, recheada de multiplicidades de fenôme-
nos rituais, onde as manifestações são vividas inten-
munidade, seja a mesma religiosa, tribal, acadêmica. A
samente por seu povo, apresentando religiosidade,
pesquisa conceitual sobre esse corpo surgiu nos estu-
espiritualidade, simplicidade e espetacularidade. dos de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos do
Pensando nisso, iniciei em 2012, baseada na ou- Corpo pelo Instituto Ciências da Arte/UFPA em 2007.
tridade, a pesquisa na comunidade de Candomblé- 3
Noção de corpo sagrado, morada da entidade, cavalo
-Ketu, em Benevides/PA, intitulada Odo Iyá – Da – como são chamados os filhos de santo.
espetacularidade do Yle Ase Oba Okuta Ayra Yn- 4
Metodologia construída a partir da circularidade da
tyle ao Corpo-cena, sobre o ritual de iniciação ao comunidade do candomblé. Grafada pela influência da
Candomblé, chamado de Feitura. Na comunidade roda de xiré, no ir e vir do movimento circular da ir-
enfatizei o corpo-comunidade2 como representação mandade. Nela noções etnocenológicas se completam.
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Organização de pensamento epistemológico para a
compreensão de que é pela coletividade que as festas e
Noção de corpo que representa socialmente uma co-
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rituais são realizados.
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Pará/UFPA. Esse cortejo acontece na antevéspera A noção de corpo-encostado é o fundamento cósmi-


do Círio de Nazaré, na capital paraense, há 21 anos. co da construção artística do corpo-cena. Antes de
Ao corpo dos solos que apresentei dei o nome me ser revelada a presença da entidade em mim e
de corpo-cena, corpo que representa o corpo-templo da no meu trabalho artístico, acreditava estar somente
Yaô de Yemanjá Ogunté no processo de criação em êxtase. Contudo, assim como adentro no cam-
artística. O corpo-cena trouxe ao público as referên- po espiritual para um trabalho artístico, a entidade
cias encontradas no corpo e no espaço sagrado do também adentra em mim para se encostar, apri-
Candomblé. O primeiro solo intitulei Flor de Efun morando a representação artística de sua presença
(Efun é a pintura sagrada das Yaôs), que trouxe a cósmica na Terra. No corpo-templo a entidade está
proposta de experimentar o corpo sagrado de uma em seu cavalo, denominação que se dá para filho
filha de santo e todos os referenciais encontrados de santo incorporado. No corpo-cena, a entidade se
nesse corpo, de forma artística. Era notório que, encosta na atriz para tornar sua encenação possível
pela técnica corporal do teatro, eu me encontrasse de se aproximar do cosmo, matéria e energia. A
com o corpo modificado. Para a realização dessa seguir, a imagem do corpo-templo, real, sagrado, e do
pesquisa vivenciei alguns rituais e práticas da co- corpo-cena em Flor de Efun, processo artístico apre-
munidade do Candomblé, como jogar búzios e pe- sentado no Auto do Círio:
dir permissão a Exu e Yemanjá para realizar meu
trabalho no terreiro e na rua. Assim o fiz.
O segundo solo, que nomeie de Iyá – Rainha
do Mar, apresentava o corpo sagrado de Yemanjá
Ogunté e todas as suas composições. Nos dois so-
los enfatizei o trabalho de pesquisa corporal para
o teatro. Entretanto, o fato de encenar um objeto
sagrado marcado de significações fez toda a dife-
rença. Somente nas pesquisas em andamento para
o doutorado é que observei a profundidade do en-
volvimento entre os corpos – templo e cena. Era evi-
dente que o meu corpo enquanto atriz sentia-se em
êxtase, mas havia algo superior. Algo que modifica-
Figura 1 – Yaô de Marckon de Moraes, no terreiro Yle Asé
va minha consciência também, algo que me movia Oba Okuta Ayra Yntyle. Benevides/PA. Fonte: arquivo
fortemente. Contudo, isso só me foi revelado em pessoal. Figura 2: Corpo-cena de Flor de Efun no Auto do
outra festa, não no Candomblé, mas na Umbanda Círio 2012. Belém/PA. Fonte: Gitano Studio.
brasileira, onde pude entender e propor o corpo-
-encostado, título desse ensaio. A palavra encosto A consciência do corpo-encostado nos meus traba-
ganhou significado popularmente pejorativo, en- lhos artísticos tornou evidente a clareza do encos-
tretanto apresenta vasto conjunto de significados. tamento, tanto no meu corpo modificado, quanto
Segundo Ferreira: sobre o estranhamento das pessoas que assistiam
os solos que apresentei. É um aprendizado de sen-
Encostar: v.t.d. 1. Pôr junto; aproximar [...] 3. sações e de forças inexplicáveis. Acredito ser mui-
Pôr de lado; de parte. [...] 6. Apoiar, arrimar. [...] to mais que uma pesquisa acadêmica, é transfor-
8. Tocar, ou quase que tocar em alguém. 9. Fir- mação, é liminaridade (TURNER, 1974). Ou seja,
mar-se, apoiar-se. [...] precisei passar pelo rito de iniciação para avançar
Encosto: sm. 1. Lugar ou objeto a que alguém ou
e continuar minha pesquisa, em processo de anda-
algo se encosta; arrimo. 2. Apoio, proteção. [...]
(2001, p. 266).
mento, junto e encostada por entidades-madrinhas
a fim de garantir a inteireza e outridade de meu
O corpo-encostado se refere a sinônimos positivos trabalho etnocenológico nos estudos dos Ritos Es-
- fé, proteção e apadrinhamento são alguns deles. petaculares, da cena, do corpo.

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REFERÊNCIAS

BIÃO, Armindo. Um trajeto, muitos projetos. In:


BIÃO, Armindo (Org.). Artes do corpo e do espetáculo:
questões de etnocenologia. Salvador: P&A editora,
2007.
CARVALHO, Ana Claudia Moraes. Odo Iya: da es-
petacularidade do Yle Ase Oba Okuta Ayra Yntyle
ao corpo-cena. Dissertação (Mestrado). 101 f. Uni-
versidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da
Arte, Programa de Pós-graduação em Artes, Be-
lém, 2014.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini
Aurélio. O minidicionário da língua portuguesa. 5.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
TURNER, Victor W. Liminaridade e “Communi-
tas”. In: O Processo Ritual -Estrutura e Anti – Estru-
tura. Coleção Antropologia 7. Petrópolis: Vozes,
1974. p. 117-159.

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